LONGOS RECANTOS IRREGULARES
Sorriso
Qualquer ânsia
Dum encontro nos furta
As vivências boas.
Ora, o sorriso é que é a distância
Mais curta
Entre duas pessoas.
Agarradas
As casas agarradas às ladeiras
Pelas unhas,
Em cunhas afiadas, em cunhas...
E tantas maneiras
De aviar o mesmo!
Tudo a esmo
Ou antes com o jeito aconchegado
De quem tem o amor ao lado.
E mais nada numa vida
Onde cada dia é mesmo a despedida.
Todavia, o que dali ameia
É mesmo de vida uma mancheia.
Abrandar
Tanto a correr
Por aí a acelerar
Andam
Que às vezes só conseguem perceber
Que conseguem abrandar
Quando abrandam!
Fracassos
Fracassos em cadeia,
Quando se encaram bem,
Analisam, criticam,
São mais que o fado que contra nós ameia:
Também
O carácter edificam.
A ciência
É a paciência
Que convém,
Toda a persistência...
- E é logo a saída um pouco mais além.
História
Muitas vezes esta é a história.
Ele não quer a outra, quer-te a ti,
A miúda que ele tem na memória.
Mas tu desapareceste por aí,
Afogada em desgosto,
Afogada em frenesi,
Sei lá bem em que mais...
Quase aposto
Que, afinal,
Dentre todas as tais
Tu és eternamente a tal.
Em todas as janelas
Ele anda à procura de ti nelas.
Demora
Maravilha-nos uma estrela.
Será da demora
De algum dia chegarmos a ela?
É que sempre a meta mais difícil se revela
A mais compensadora.
É uma misteriosa magia
Espalhada no dia-a-dia.
Bilhete
Trabalho árduo,
Disciplina
- O bilhete da fuga à pobreza.
Guardo-o
Na gabardina
De tudo o que se preza.
Quem quer, porém, trabalhar
E não pode?
Porque não partilhar
Mesmo o pouco que nos acode?
Porque é que o privilegiado,
O mais capaz,
Pouco ou nada faz
Pelo carenciado?
Porque é que não dá o rico
Nem de migalha
Um salpico
Mesmo a quem trabalha?
Verdadeiro
Verdadeiro amigo não é o que aparece
Como os mais
Na hora da dificuldade.
É o que aprecia a quermesse
Da nossa felicidade,
Que a celebra com arroubos tais
E tão gentis
Que o alegram mesmo quando não está feliz.
Perdoes
A não ser que a ti próprio te perdoes,
Irás continuar a fugir.
Does vida além o que does,
Jamais o perdão irás conseguir.
Nunca haverá lugar então
A qualquer reconversão.
A fuga,
Quanto mais o passo
Estuga,
Mais de espera teu compasso
Atrasa.
Ora, isto é o que em todo o espaço,
A vida te arrasa.
Precipício
Que bela flor
À beira do precipício
É o amor!
Quanta coragem
Desde o início
É preciso ter
Na viagem
Para a ir colher!
Quantos tombam
No abismo
E, do amor ao sismo,
A vida inteira arrombam!
Dá
Só o amor
Dá sentido e paz.
E dá valor,
Após,
À vida que faz
Cada um de nós.
Agora
Se quiser amar alguém,
Ame agora
E sem demora,
Que ninguém
Sabe o que irá produzir
O momento a seguir.
Varrendo
Varrendo dos dias qualquer
Escombro,
Uma mulher
Com a cabeça em teu ombro
Basta para a vida valer.
É uma cena
Bem pequena?
Pode ser...
- Mas tudo então vale a pena!
Bastante
Ao amor, o bastante jamais se lhe afigura
Bastante, jamais:
Todo o amor procura
Obrigatoriamente mais.
Queira ou não queira, no amor concito
Breve,
Ao de leve,
O Infinito.
Abdicar
Amar não requer
Reciprocidade.
É abdicar de si quenquer
E tornar-se para alguém
A fonte donde provém
De verdade
Todo o Bem.
Ocupa
Quem ama,
Se o amor lhe ocupa o centro,
É sempre ele mesmo, proclama.
Em si mesmo também,
Mesmo sem ninguém
Dentro.
Culpa
Não é de homens nem mulheres
A culpa do que concito
Com vigor:
Na mesa ao pôr os talheres,
Metemos sempre o Infinito
No amor.
Erro
O erro que tanto autocrata comete:
Só,
Na grandeza sombria do topete,
Subestima o homem lá em baixo no pó.
De tão absorto na própria vaidade,
Perdeu a oportunidade.
Atira-te
Tu és solteiro,
Ela é solteira
E a vida é curta.
Atira-te inteiro,
Logo à primeira,
De cabeça!
Furta a vida, furta,
Depressa!
Perda
Depois da perda dum filho
Sempre a mãe fica assombrada
Pela quebra do cadilho.
E nunca mais tem morada
Vivida
Para o resto da vida.
Quebrar-te
Estendi os braços,
Peguei-te ao colo,
Tão pequenina que em pedaços
Podias quebrar-te até ao miolo.
Minha tristeza desapareceu:
De ti precisava mais eu, enfim,
Que tu, caída do céu,
De mim.
Creste
Quem viveu pela verdade
Norteado,
Se creste no que aí viveu,
Ao ter-te depois falhado,
O que tal em ti degrade
Não é a cautela que te cresceu,
É que, à berma da estrada
Te abandonou sem nada.
É um vazio, é mais que pouco,
E quase te deixa louco.
Guião
Eis o guião,
Agrade ou não agrade
À caminhada:
Em pequenos, tudo tem o dobro da dimensão,
Em adultos, tudo fica pela metade
E, no termo da velhice, em nada.
Pior
A vida é ganha
No suor
Do que a trabalha
E o pior momento da campanha
É aguardar o alvor
Na manhã da batalha.
Sonhos
Ai que saudade
Da idade
Do sonho!
Como eles eram grandiosos
E milagrosos
No meio do mundo medonho!
Onde foram parar todos
Aqueles sonhos de bodos
De que já não disponho?
Que é que aconteceu?
Ou serei eu
Que já nem a mim me proponho?
Ou,
Se calhar já nem que sou
Me suponho...
Entrar
O céu é a linha do horizonte,
Tão fascinante
Que lhe armo permanentemente a ponte
Para ao longe entrar dentro de mim
Logo adiante.
Assim,
Quanto mais longínquo o longe
Mais perto o aperto,
De meu íntimo feito monge
A cultivar, fértil, o deserto.
Quanto mais longe o longe estiver
E mais perto de mim os pomos
Lhe colher,
Mais sou quem sou
No rumo em que vou,
Mais somos quem somos.
Nunca
Amar é nunca dizer adeus
Porque se diz adeus a tudo
Em nome do amor, o deus
Que, já sendo, ainda não sou, sobretudo,
De espanto tornado mudo.
E assim rompo com o mundo
E, sem nunca voltar atrás,
Volto ao princípio, jucundo,
A ver do que sou capaz.
E tudo perenemente recomeça,
Peça a peça.
O fito
É o Amor Infinito.
Fatal
O destino
É onde chegarão,
Sem tino,
A falta de sentido e orientação.
Sendo fatal,
Não sou eu, afinal.
Destino e liberdade
Não são contrários:
Chegar a um lugar entre vários
Pode ser uma escolha de vontade:
Não é inteiramente fatal a fatalidade.
Os malogrados esforços que envidam
Quantos no trilho da vida bloqueados se empanam!
Só os sábios duvidam,
Só os ousados se enganam.
Falta
À falta de melhor,
Há sempre um destino que se nos impõe.
É triste ser um senhor
Que de si não dispõe.
Afinal,
Nada era fatalmente fatal...
Procuramos
Procuramos tanto entre as casas
Os que nos tornam infelizes,
Os que não são asas
Nem raízes!
Enquanto ao lado,
Ignorado,
Nos acompanha, paciente,
Quem, entre a anónima gente,
De nós, afinal, toma cuidado.
Praias
Quantos se não reconhecem
Na história deles, nos espaços
Nem nos laços!
A vida deviam ser praias que aquecem
Onde o mundo inteiro se irmana
Num interminável fim-de-semana.
Nunca devia findar
Com tanto mundo sem lar.
Costas
Se memória e paixão se desencontram,
De costas de vez voltadas,
Perdidos nós entre os dois rumos das estradas,
Que bandidos nos encontram
Nas encruzilhadas?
Memória para um lado, para o outro o coração
Sem as camadas que aquela lhe der,
Então,
Quenquer,
Por mais que continue a viver,
Não é viver, não,
Principiou a morrer.
Dividido
Entre cada lado,
Desencadeou a desintegração:
É um cadáver iludido,
É um cadáver adiado,
Morto-vivo ainda a pisar o chão.
Matriz
A forma como gostam de nós
E como nós gostamos deles
É a matriz, de pais a avós,
De quanto amor vida fora interpeles.
Procuramos e procuramos
Vezes sem conta, a buscar
Quem melhor reproduza os tramos
De quem nos é familiar.
E talvez seja o estranho
Quem melhor
Nos interpele para o amor
Com ganho:
Vira-me do avesso
E aí eu cresço.
Parte
O amor é assim:
De surpresa em surpresa,
Passa a ser, com certeza,
A melhor parte de mim.
Eu e tu, após,
Sejam quais forem os vendavais,
Passamos a ser, cada vez mais,
Nós.
Escolhemos
Entre estar só
Ou ir bem acompanhado,
Escolho - mete dó! –
Por tanto ter preguiçado,
Ficar mal acompanhado.
Pior do que estar sozinho
É viver rodeado
De quem nos dá tanto carinho
E sentimo-nos sempre perto
De andarmos sozinhos no deserto.
Melhor
Melhor que dormir com alguém
É sonhar com ela
Sonhos que costure à janela
Comigo também.
E apaixonar-me, a seguir,
Ao vê-la a meu lado a dormir.
Forma
Esconder
Pode afinal acabar
Por ser
Uma forma de enganar.
Na política,
No negócio,
Na vida somítica
Dum amor que entrou em ócio.
Curvados
Da liberdade curvados pelo peso,
Quem ensinar-no-la nos há-de?
Ensinaram-nos apenas este vezo
De morrer pela liberdade.
Doo-me eu e tu te dóis
Neste interminável “e depois?”...
Passos
Toda a história sobrevivemos
E, acaso por nos enganarmos
Com os passos doutrem a darmos,
Nunca vivemos.
Nem viveremos:
De nosso fado o doentio tino
É apenas de nos achegarmos
Do destino.
Somente,
Eternamente.
Quem ergue a bandeira
De saltar pela outra ladeira?
Crescemos
Crescemos ingénuos e pobres
Mas não o percebíamos
E não invejávamos ninguém.
Dobrar o que a gente tem,
Para que é que o tu dobres?
Éramos felizes,
Tínhamos um porvir para onde íamos,
Tínhamos todos os matizes:
Teu nada onde tanto sobres,
Nosso nada a germinar raízes.
...Algo nos fez o juízo
Largar o paraíso.
Prenhe
Toda a utopia
É uma lei seca:
Ideia boa, prenhe de magia,
Mas não funciona, peca.
A não ser que a projectemos ao Infinito,
A atrair, interminável,
Nosso humilde, fatalmente falhado mas infatigável
Grito.
Que interminamente então nos aproxima,
Renitente,
Lá de cima.
Interminamente...
Cava
Tu, cava mais fundo,
Não oiças a tagarelice!
Está na terra a salvação do mundo,
Se nos dá ou não batatas,
Não na trafulhice
De políticos ou intelectuais
Pataratas,
Tão mais iguais quão mais desiguais.
Provocar
Amava meu marido
Mas gostava de provocar os demais,
Como num jogo sem sentido.
A gente passa, eles olham com olhos sensuais
E agrada-nos que nos olhem,
Embora com olhares que nos encolhem.
E a gente cantarola
Como num gemido
Mal contido
De amorosa rola...
Corremos a vida ligeira
E a gente, sem reparar, do abismo à beira.
Tínhamos
Não tínhamos nada
Mas éramos felizes.
Tínhamo-nos um ao outro: raízes
E estrada.
Mais nada...
- E éramos felizes!
Segredo
Todos nos olhavam,
Mas só depois ela se tornou bonita.
Segredo meu
Que eles não abarcavam:
Esta porta tem uma fechadura esquisita,
Só o amor a abriu.
Lembrava-me de ti,
Queria caminhar contigo para qualquer parte,
Para muito longe daqui,
Sem mais nada que acarte,
Apenas sentir, encantado,
Que estás a meu lado.
Ternura
Que sinto
Só de ver tua figura
De meu peito no plinto.
Absolutamente como crianças,
Podemos ir para uma ilha qualquer
Deitar-nos na areia,
A ouvir as danças
Do malmequer
Da lua cheia.
São crianças, os felizes.
Urge protegê-los,
De tão ridículos e frágeis nas matrizes,
Indefesos nos elos.
Connosco foi assim,
Um princípio sem fim.
Que faço eu,
Para onde estou a cair?
Para um abismo de Céu
Para onde não sei
Nem jamais saberei
Ir.
Vencedor
Da guerra o vencedor há-de demorar
Anos, fatal,
A entrar
Na vida normal.
Medonhos,
Estrangulam-no da guerra os cabelos:
Não sonha sonhos,
Sonha pesadelos.
Trabalho
O amor é um trabalho difícil e que trabalho!
Sem boda nem vestido branco,
A simplicidade dum malho
A pregar pregos, interminável,
Num banco.
E a gente
Na espera infindável
De que a fadiga nele se assente.
Momentos
Os pratos mais caros,
Conhaque, café e bolo,
Momentos raros...
E um desconsolo!
- Mas que felicidade,
Se nenhuma ali te invade?
Os bocados de pneu
Que te deram na prisão,
O talho de carne que, meio sandeu,
Lá cozinhaste no caldeirão,
- O que contigo partilharam,
O que com os mais partilhaste –
Que dias felizes celebraram,
Da desgraça no contraste!
A felicidade mora nisto,
O mais é um infecto quisto.
Sempre
A vida é sempre um teatro.
Da plateia,
Olhando embora por quatro,
É uma linda história o que ameia,
Um palco arrumado,
Actores brilhantes,
A iluminação, um sol nado
No mistério dos instantes.
Mas quando vamos aos bastidores,
Logo atrás da cortina,
São taliscas de tábua, trapos e fedores,
Telas inacabadas a cada esquina,
E nenhuma história,
Tudo escuro e sujo...
- E tudo nos leva ao bastidor sem glória
E tudo na vida é do bastidor que fujo.
Selvajarias
Como lograste sobreviver
Às selvajarias do mundo?
Fui muito amado na infância,
Mais do que quenquer,
E é deste amor que me inundo,
É a paz que sobrepuja qualquer ânsia.
É a quantidade
De amor que recebemos
A felicidade
A que nos atemos,
A nossa reserva
De solidez
Que interminável nos preserva
Para a próxima vez.
Não é do chá de malva:
- Só o amor nos salva.
Camisa
Podemos até viver
Numa camisa-de-forças:
É só amolecer,
Encolher
E se habituar
Ao jeito desbragado das comborças.
Podemos até sonhar...
Só que não deixa de ser
Uma camisa-de-forças qualquer.
Tormento
Sou um homem feliz:
Sou amado.
O maior tormento não é o que se diz:
É quando, postos de lado,
Não nos amam de raiz.
Ninho
Onde queria viver?
Na infância
Com a mamã, a mulher
De todo um ninho de elegância.
Sem mais qualquer
Ganância
De matar nem de morrer.
A beleza pura
Das neves da altura.
O ribeiro dos dias a escorrer
Ternura.
Utopia
Na utopia, primeiro,
Não se deve amar o dinheiro.
Depois, o amor onde o deponho?
No sonho.
Finalmente, por derradeiro,
É de arrasar o mundo inteiro.
- Sempre que a creia exequível
A utopia é da morte o dirigível.
Se apenas aproximável ao infinito
É que a tudo dou sentido com meu grito.
Vítimas
As vítimas prestam testemunho,
Os carrascos calam,
Desaparecem por trás do mortífero cunho,
O escuro invisível escalam,
Sem nomes nem vozes,
Tanto mais quanto mais foram atrozes.
Desaparecem sem deixar rasto.
Nada acerca deles
Há da notícia no repasto
A que apeles.
Onde outrora o sangue correu em rio
É agora o vazio.
Acorda
Acorda do sono!
Ai de quem apenas com o coro recita!
Olha que o machado que decapita
Sobrevive ao dono...
E em todas as épocas tropeças
Com ele a cortar cabeças.
Banho
Tomam banho em tinas de oiro
Cheias de leite,
O insultuoso tesoiro,
Vergonhoso deleite.
Vivem melhor
Com todo este despudor,
Mas a vida é mais repugnante,
De tão distante.
Não é por mor dos bens,
Da ostentação,
É por tudo pretender esmagar os ninguéns,
Romper com o rés-do-chão.
Ora, o que divide de vez,
Ao fim e ao cabo,
Tem sempre a tez
Do diabo.
Metro
Na revolução é assim:
A euforia passa depressa
E, no fim
Dos amores,
Vêm os saqueadores,
- O metro que a meça.
Quer
Não quer ser rico,
Tem medo de enriquecer...
Então, afinal, que quer?
Quer que outro qualquer
Com quem o prato debico
Não enriqueça
Mais que o que a ele lhe aconteça.
Alguém tornar-se mais rico que ele
É o que lhe arrepia a pele.
E é o que o faz correr
Para o mundo inteiro pobre manter.
Cosmos
Há todo um cosmos no mundo interior.
Quase não prestamos atenção a tal vertente,
Todos ocupados com o exterior,
Aparente.
Que admira que cada qual viva um ror
De si ausente?
Cinderelas
As cinderelas,
Tenho pena delas.
É que não há paraíso
Sem inferno.
Ora, quem tem juízo
Quando tudo em si é terno?
Elas em si nem cabem,
De tanta magia de infância
Prolongada vida fora.
Porém, não demora...
Elas, contudo, ainda não sabem,
Vivem na ignorância.
As cinderelas,
Tenho pena delas.
Ainda
Ele a telefonar,
De infeliz.
Que é que ainda pode comprar,
Que não viu, de que matiz?...
Já ganhou muito dinheiro,
Fortunas loucas.
Mas são sempre poucas,
Nem que fora o mundo inteiro...
Pode gastar, na verdade,
Um ror,
Não pode comprar a felicidade,
Não pode comprar o amor.
Um estudante pobre pode ter um coração,
Ele, não.
Milhões
Há milhões a comprar bonitas loiças
E tu com eles ali retoiças.
Ignoras por momentos o fastio
De teu íntimo, insuportável vazio.
“Onde me enganei, ao fim e ao cabo?”
- É a pergunta de que foges como do diabo.
Ordem
“Não vêem como nos matam,
Como a ordem do mundo nos anda a matar?
Não atam nem desatam...
Nada vos arrasa
Como nos anda a arrasar?
Pois bem, vamos experimentar
Fazê-lo em vossa casa.”
- E o terrorista, nosso vizinho
Do lado,
Faz-nos explodir o ninho.
De prevenir quem não teve o cuidado?
Pouco
As palavras pouco têm de comum
Com nosso íntimo fulgor,
Aí onde sou um
Comigo, com os outros, com o Cosmos e o mistério
Maior
Que o sidéreo.
Aí, nas íntimas galerias das minhas minas
Onde tento ler as sinas.
Que palavras
Para o inefável de tais lavras?
Menos
Na guerra, uma vida
Vale menos que uma pistola.
E julgam que está certa a medida
Que até já mentalmente nos imola!
A guerra é o falhanço da razão
Em encontrar a solução.
E até naquilo começa
A revelar como tropeça.
Gota
O homem deve espremer
De si o escravo
Até à última gota que tiver.
E tudo muda de travo:
Alma, roupas, o sabor dos elementos
E os pensamentos.
Ora, ocorre o contrário:
O homem adora ser escravo,
Em mãos e pés pregado o cravo.
Espremem então o homem do homem,
Sumário,
Até à última gota:
Quando por uma besta o tomem,
Atingiu a verdadeira cota.
Quando algum não aceitar esta condição,
Prestimoso,
É a maldição:
- Tornou-se extremamente perigoso.
Sapatos
Se o homem não for prioritário,
Então coxeia,
A vida inteira é um calvário
De vida meia:
Não há sapatos apertados,
Há pés errados.
Repente
O amor começa,
De repente tudo tem outra cor,
Há mais vozes, mais sons, nada tropeça
Em redor...
Não é possível compreender
Isto sequer.
Mistério
Quando o mistério nos atinge,
Parece que nós ficamos ausentes.
Podemos sentir tudo, nada se finge,
Podemos ser felizes, ali meio dementes,
Num cubículo estreito
Como se abarcáramos o mundo inteiro ao peito.
Comprar
Não se pode comprar democracia
Com petróleo e gás,
Nem ninguém a importaria
Das bananas e chocolates atrás,
Nem a proclama, convincente,
Nenhum decreto do Presidente.
Pessoas livres é o que se requer,
Não há democracia onde as não houver.
A um povo que queira ser escravo,
De democracia, nem um avo.
Apaga
Não se apaga o fogo com o fogo,
Mas com sabedoria:
Em água o afogo,
Com pontaria.
Ora, se água se incendiar,
Com que se irá o fogo apagar?
Quem a polícia policia?
Quem fará justiça
Se a justiça no crime se enguiça?
Simples
A gente simples é o que há
De mais indefeso.
O animal na floresta está
Mais bem protegido em seu vezo,
Do que aquela pobre gente
Do descalabro social levada na torrente.
Paisagem
A humanidade
Tanto pode mudar em cinco anos
Como em duzentos não mudar nada.
Paisagem, uma imensidade...
E, pelos escanos,
De escravos uma mentalidade
Bem camuflada.
Nada se pode restaurar
À roda da mesa de jantar.
Revolucionários de mesa de café
Que é que podem pôr de pé?...
A humanidade quer lá saber deles! Decidida,
Vive, cega e surda, a própria vida.
Medíocres
Não são os mais fortes que sobrevivem,
São os mais adaptáveis.
Estes, embora medíocres, que a tudo se esquivem
É que sobrevivem, incontornáveis,
E, do modo arteiro com que actuam,
A espécie humana perpetuam.
Nunca
Nunca, em milhares de anos,
Nada de bom foi atingido
Sobre as ruínas
Dum presente destruído.
O arcano dos arcanos
É que sempre foi requerido
A boas sinas
Um trabalho elaborado,
Lento e demorado.
A utopia que se nos aferra
É com paciência que lavra a terra.
Fera
Na ditadura,
Quando a fera descomunal foi morta,
Os pequenos monstros que dominam a figura
Do homem saltam da retorta
E revelam-se mais horrorosos
Que do grande monstro os caninos poderosos.
E ninguém tem prática da luta
Contra eles no meio da disputa.
Rios
Construímos pontes
Sobre os rios da ignorância,
Mas a vida tem outros horizontes:
Mudou o leito dos rios.
Que importância
Têm agora os velhos desafios?
Realidade
Mais que os átomos é fundamental
Do Cosmos na essência
A realidade fulcral,
Imaterial,
Da consciência.
Responsável
Nossa civilização
É responsável das traças
Das desgraças
Que aí vão.
Seríamos mais felizes
Se de vez a abandonássemos,
Retornássemos
À primeira condição,
Com os bons e maus matizes?
Do passado
Que jamais temos à mão
Nunca somos bons juízes:
Vemos sempre só um lado,
O da boa solução.
E então todo o mau caminho
Que o fez escapar do ninho?
Dizer
Quando alguém disser:
“Sou feliz”,
Dizer simplesmente quer:
“Tenho problemas de raiz
Que, para mim, apenas fingem
E, portanto, não me atingem.”
Tecido
Enamorar-se
Não é amar.
Podemo-nos enamorar
E, mal o tecido esgarce,
Odiar.
Encontre
A vida inteira somos a espera
De que nos encontre alguém.
Então contar-lhe-ei tudo, o fracasso e a quimera,
E a eterna pergunta: e depois que vem?
Uma estranha
Trouxe minha irmã para a aldeia,
Em braços,
Que a gadanha
Da morte há tempos lhe ameia
Com os derradeiros traços.
E lá se foi, do sino nos dobres,
Para as mansões divinas.
E a estranha enviava-me então prendas pobres
Por entre as más sinas.
Quando no banho um dia escorreguei,
Dela a mão desconhecida
Em que me amparei
Segurou-me a vida.
Apertou-me ao peito
Com ignotos gestos seus
De terno jeito:
“Meu pintainho mal afeito!”
- E eu vi, eu vi Deus!