O BEM-QUERER A SER
Seta
A seta aponta o caminho.
Porém, quando perde a ponta,
Não é o caminho que aponta,
Acaba nela, maninho,
Que ela o já tomou por conta.
Liturgias, teologias,
Igrejas e sinagogas,
Mesquitas, morais manias
Mais profecias que advogas
Têm ou não ponta que aponte?
- Isto é que é ter horizonte!
Invés
Ao invés do que parece,
Uma doença dá força.
É que ela nos oferece
A nova capacidade
(E ali de vez a reforça)
De aliviar de verdade
Um fardo que outrem invade:
“Coitadinho, está doente!”
- Não é culpa do paciente.
Condição
É da condição humana:
Nós somos muito complexos,
Os mais são muito mais fáceis.
Mas sonho de todos mana
E da esperança os reflexos
As dores tornam mais gráceis.
Igual precisão se apura,
Igual dose de loucura.
Esperança
A esperança é bem cruel,
Às vezes melhor é a morte.
Embala-me o coração,
Feita uma gota de mel,
Depois esmaga-o, de sorte
Que é pior do que o caixão.
E, contudo, quem alcança
Viver sem uma esperança?
Ninguém
Ninguém verdadeiramente
É o que julgaremos que é.
Toda a gente, toda a gente
Tem tanto ângulo presente
E eu só vejo o que anda ao pé!
E ninguém se preocupa,
Génio embora ou papalvo,
Naquilo de que se ocupa,
Por outrem manter a salvo.
É a lonjura permanente.
Como ajuizar dum ausente?
Todos somos passageiros,
Do primeiro aos derradeiros.
Falta
Sentir a falta do que já tivemos
Será um vazio de sofrer mui duro.
Contudo, estranho é que nós nunca cremos
Que sentir falta nós ao fim podemos
Do que jamais tivemos e que auguro.
Aliás, podemos sentir tal vazio
Que o acabamos a chorar em fio.
Esta fatalidade é a nossa vida:
Jamais a plenitude é conseguida.
Separação
Separação temporária
Há-de ter isto de bom:
Eleva a instância primária
E de interessante tom
Mil ninharias da vida
Daqueles a quem amamos,
Multidão despercebida
Que todo o dia avistamos,
De que nem dávamos conta,
De a sempre à mão termos pronta.
Bate
Bate o coração de medo
Deste amor inexplicável
Que, de inefável, é um credo.
Qualquer certeza é inviável.
És tu forma de ser eu
E eu, forma de seres tu.
É a fronteira que nasceu
Dos possíveis sem tabu.
E aqui vamos embarcados,
Cheios de medo, abraçados.
Incómodo
O amor, na fragilidade
Com que nós o praticamos,
É um incómodo da idade
Com que por ele cruzamos.
Mal dois olhares se trocam
E mal duas mãos se enlaçam,
Em tragédias desembocam
De suspeitas que os retraçam.
São os ciúmes, as zangas
E mil recriminações
A carregar com as cangas
A cerviz dos corações.
Momentos que deveriam
Ser os mais belos e alegres,
Despreocupados, se viam
Mortos sem regra que regres.
Tanto o incómodo incomoda
Que incomoda a vida toda.
Disfarce
Não há disfarce que venha
Por muito tempo esconder
Um amor, quando ele advenha.
Nem simulá-lo sequer
Poderá, sem dele a senha.
De ser sempre tão violento,
Quem logra parar o vento?
Êxtase
Só amando nos renovamos,
É o êxtase a linguagem
Do infinito que visamos:
O efémero é dele imagem,
O eterno é o que alimentamos.
Através do amor, o humano
Neste amor se diviniza
E o divino, inverso plano,
É no amor que se humaniza.
Pecado
Todo o pecado perdoa
O amor, menos o pecado
Contra o amor que lhe doa.
Tem perdão aparelhado
Para toda e qualquer vida,
Menos para a vida ao lado
Que sem amor for vivida.
Eterno
O amor é eterno, o que muda
Dele é a manifestação,
Nunca a essência a que se gruda,
Real seja ou ilusão.
Através do amor nós vemos
Tudo com tranquilidade
E o trabalho que teremos
Só então vinga de verdade.
Trabalho bem sucedido
É o amor a ser vivido.
Leva
Todo o sentimento leva
Ao amor e à paixão.
O ódio como a compaixão,
O medo, a veneração,
Até do desprezo a treva,
A amizade, a indiferença,
- Tudo paga igual avença.
Tudo, excepto a gratidão,
Quando uma dívida paga.
Certamente a pagarão
Todos e baga por baga,
A saldá-la por inteiro.
- Só que amor não é dinheiro...
Entrega
O amor é entrega de vida,
Torna-se, por gosto, um meio
Para outrem ser feliz.
Força pura repartida,
A realizar sem receio
Sonhos doutrem de raiz.
E dá-nos, nesta medida,
Um sentido para a vida.
Prisioneiro
Nada pode prisioneiro
Ser feito nem capturado
Na vida: o cume cimeiro
É viver por todo o lado
Em abertura constante,
Deixando acontecer tudo,
Grato andando, instante a instante,
De mudar quanto não mudo.
Vez
Quem ama uma vez na vida
Ou é superficial
Ou busca a fundura haurida.
E quem diz que é mui leal
Ou fiel não passa, acaso,
Dum surdo entorpecimento,
É imaginário no ocaso.
A fundura é ir no vento!
Muito há sempre quem confunda
A pele com alma funda!
Emocional
Um amor emocional
É um estado essencial
Da transitoriedade.
É como uma enfermidade:
Tem fase de incubação,
A aguda, a declinação.
Morta a ilusão na descrença
Tem, por fim, convalescença.
- Um amor que for total
Requer bem mais, afinal.
Despedaçado
Coração despedaçado:
Homem morto vive ainda.
Se falar, todo o traslado
É confusão na berlinda
E é terrível, se algo impetro,
Que as palavras são de espectro.
Seu olhar chispa centelhas
Que aquecem as virgens faces
E de novas pinta as velhas
Como de amantes que enlaces.
Ao respirar, importuna,
Como um cadáver na duna.
Coração despedaçado
É sempre um morto adiado.
Vez
Cada vez que alguém amar
É a vez única do amor.
Outra vez outro apontar
Não altera a singular
Paixão de primeiro alvor.
E ser única o que implica
É que então a intensifica.
Alegrias
As alegrias do amor,
Quem delas fala não ama.
Quem ama sente o calor
Necessário que conclama
Em quem ama de verdade
E, portanto, irá sentir
A infinda precariedade
Dele próprio no porvir.
Pende livre, leira a leira,
Da chama desta fogueira.
Fanou
É bem triste recordá-lo
Ao amor que se fanou.
Sofre o coração o abalo,
Mesmo até se avelhentou.
As cãs serão veneráveis
Em patriarcas, profetas...
Nas dores intoleráveis,
Não, que sangrarão das setas.
Não há idade para a dor
Do vazio dum amor.
Emanar
Um amor criado lento,
A emanar duma amizade,
Semelhança de vontade
Por um demorado intento,
Mútuo desligar, no ensejo,
De propensões e desejo...
- Poderá ser amizade,
Como amor não persuade.
Um amor não é esperado
E nunca por sacrifícios
Alguma vez grangeado,
Do dia-a-dia em ofícios
Jamais será calculado,
Nem pondera benefícios...
- O amor inteiro é gratuito,
Por isso é que pesa muito.
Alimenta
Num amor todo o carinho
Se alimenta de ilusão,
Por isso qualquer caminho
Acaba em desilusão.
Há, porém, sempre um cantinho
Em que há luz na escuridão.
E é neste canto adivinho
Que apostam os pés no chão.
Pagar
Muitos homens vão pagar
Para não terem afecto,
Sentimento a segurar.
Então irão humilhar,
Humilhados neste aspecto.
A fuga ao amor é um facto,
Pagarão para fugir.
Mesmo o casado ama o pacto
De ao lar pagar o contacto
Para a esposa nem tugir:
Esposa-objecto ele paga
Para nem ver quem o afaga.
Beijo
Um beijo até nos fulmina,
Relâmpago inesperado.
O amor percorre com sina
De temporal destravado.
Depois a vida se acalma
Como o azulíneo do céu
E tudo volta a ter alma
De antes daquele escarcéu.
Quem se lembra, quem se lembra
Da nuvem que se desmembra?
Escalar
Quando uma mulher decide
Com um homem ir dormir,
Não há parede a seguir
Que ela escalar não envide,
Nem nenhuma fortaleza
Que ela à força não destrua,
Nem moral que ela, de nua,
Não ignore, que a despreza.
Não existe nenhum Deus
Que a preocupe nos céus.
Órfãos
Quando o amor em nós domina,
De amor vivendo rodeados,
Se órfãos nos destina a sina,
No orfanato emparelhados,
Findamos de íntimo triste,
Porém puros de pecados,
Cismando: um segredo existe
Que implica andarmos errados...
A finados dobra o sino
A enterrar-nos no destino.
Íntimo
Um amor bem verdadeiro,
Bem íntimo no casal,
Dois amantes que emparceiro
Irmãos na estima, afinal,
Progenitores amados,
Com os filhos protegidos
- É o mais natural dos fados
Por humanos prosseguidos,
Trilho que mais comum cerra
A nossa missão na terra.
Temor
Não há temor num amor,
O perfeito amor atira
Para longe o que é temor.
O temor tem sempre em mira
Um castigo. Ora, o que teme
É imperfeito. Ainda geme,
O grito libertador
Inda aguarda o gritador.
Irresistível
É o amor o irresistível
Desejo de desejado
Ser irresistivelmente
Inteiro e por todo o lado,
No corpo como na mente,
E mais além se possível...
É um desejo irresistível.
Jamais
O amor que é felicidade
Não é jamais o desejo,
Não visa o prazer no ensejo,
É ser, é uma identidade:
Vai sendo, tão simplesmente,
Não prende outrem dentro em si
E o que visa sempre ali
É ser quem é quem o sente.
É o que visa conseguir
Dentro em quenquer que o sentir.
Rapaz
O rapaz raro procura
A rapariga ideal.
O rapaz, se ideal apura,
É ter, num grande estendal,
Um monte de raparigas
Que por ele andem em brigas.
Quanto menos ideais,
Melhor – julgará das tais.
Mais estúpidos, por isso,
São rapazes que lobrigas
No lume deste chamiço
Do que são as raparigas.
Defeitos
Quando amamos, nós queremos
Os defeitos escondidos.
Não é vaidade o que temos,
Mas amores protegidos.
Fruteira, quando se enxofra,
É para que ninguém sofra.
Aquele que ama gostava
De aparecer como um deus
Das alturas onde grava
Resquícios que houver dos céus.
Também não é por vaidade
- Quer é dar felicidade.
Perder
Pode-se perder o amor
Da mulher por ser confiante,
Por desconfiado ardor,
Por ser bom demais adiante
Ou nada bom, se calhar,
Por ser afectuoso ou frio,
Por tudo ou nada, ao azar...
- E este é que é o desafio.
Preencher
Ao preencher o vazio
Da individualidade,
Por um momento confio
Na ilusão que mais me agrade:
Ao sentir-me tão repleto,
A de que estarei completo.
É, porém, uma ilusão.
O amor une como a vide
No fértil caramanchão.
Contudo, depois divide.
Dívidas
Dívidas de amor
Só o amor as paga,
Silente calor,
Na linguagem gaga
Que anjos balbuciam
Nos peitos que ardiam.
É o que impele o homem.
O cálculo aborta:
Todos se consomem
Se não abre a porta,
Não acena o sim
Esta força afim.
Eixo quebradiço,
Da vida é o chamiço.
Cinco
Em cinco estádios da vida
Ama o homem a mulher.
Na infância ama a mãe querida,
Púbere, é uma irmã que houver.
Na juventude, é uma amante,
Na adultez, a esposa eleita.
Na velhice, o amor restante
É tal por filha perfeita.
Fecha a vida o ciclo então
Sempre à mulher dando a mão.
Possível
Amar e não ser feliz
É possível vida fora.
Ser feliz e, por agora,
Não amar quem tal se diz,
É possível igualmente.
Ora, ser feliz e amar,
Ambos simultaneamente,
É evento de consagrar
No que mais alto o consagre.
- É o nosso maior milagre.
Dormir
Dormir com uma mulher
Antes e após copularmos
Intimidade é viver.
Mais que os braços nos trocarmos
É o íntimo entrecruzarmos.
Almas de vez transferimos
E nunca mais encontramos
Cá por dentro os próprios imos,
Tão misturados andamos.
Morte
A morte é deveras justa,
Ninguém lhe fica de fora.
Cruel ou bondoso, a custa
Do final não lhe demora,
Como ao santo ou pecador.
Tudo cai por tal pendor.
Para além dela, no fundo,
Nada mais justo há no mundo.
Paixão
A paixão é atreita
À infelicidade
Quando ao fim é afeita
À felicidade.
Vale a pena, vale,
Que sem a paixão
Foi-se o principal:
Que é viver então?
Que é que era uma entrega,
Lúcida alegria
Que só então nos pega,
Depois passa, um dia?
Quer
O amor é sempre amoroso,
Quer nos una ou nos desuna.
Os extremos mais distantes,
Se é de unir, une, viscoso.
Os extremos mais unidos
Que uma vontade reúna,
Se os desunir, não há implantes
Que recosa os descosidos.
Sabe
O amor sabe a férias grandes,
O calor a aparecer,
O infindo onde te desmandes,
Mais o dia a fenecer
Quando adormecemos juntos
Fatigados da jornada.
Juntos dormem os assuntos,
Então nem perdemos nada.
Na madrugada a seguir
Abro a porta do porvir.
Soma
Um amor asfixiante
É a soma de dois inteiros:
Não vai mais para diante
Sem matar um dos parceiros,
O que vai sempre, depois,
Matar o amor entre os dois.
O amor é a soma perfeita
Que acopla duas metades
E uma à outra se respeita
Nas especificidades.
Só então a soma atingida
É perfeição conseguida.
Pata
O amor não é saudável
Nem sensato há-de ser nunca
E não é nunca razoável.
É de ter a pata adunca
Que não há-de ter razão,
Nem de explicação aufira:
É o que até de tua mão
A ti próprio te retira.
Navega
Ama de vez por inteiro,
Sem nada aí pelo meio.
Só aquilo que, pioneiro,
Navega no rio cheio
Te prende a respiração.
O que a faz perder então,
Só por isso, em teu lugar,
Vale a pena respirar.
Braço
Estende o braço a acolher
A saudação da mulher
Como se apenas agora
Fora de o fazer a hora.
Como rouxinol febril,
A tépida mão na tua
Dá-te a certeza, entre mil:
Não mais foge para a rua.
Hora
O amor vem à hora dele
E é sempre ele a escolhê-la,
Não nós, por mais que arrepele
De cada dia a procela.
E não são as qualidades
Nem virtudes superiores
Com que às paixões persuades.
Eram simples os amores
Se esta fora aquela via
Donde nasce cada dia.
Ter
Vale a pena amar
Quem se pode ter?
Amar é querer
Sempre outro lugar.
Amar é um vazio:
Sempre sugará
Derradeiro o fio
Do imo que se dá.
Encontro
O amor é encontro perpétuo,
Em que cada é o derradeiro,
O que não mais tira o tecto,
Não mais separa o parceiro,
E depois não vai além
Da mera continuação
Pequenina, de vintém
Duma anterior estação.
E nesta ilusão vivemos
Repetindo o que inovemos.
Fique
Mais que qualquer esperança,
Mais poderoso que o sonho,
É querer que o que se alcança
Eterno fique onde o ponho.
Como quem tem a certeza
De não poder melhorar,
Por muito mal que o que preza
Esteja a vida a tratar.
Por estranho que pareça,
É do amor vertebral peça.
Pouco
Um amor tem pouco a ver
Com presença ou convivência,
Com o tempo ou experiência
Por que passará quenquer.
Podemos amar alguém
Sem a suportar ao pé:
É a família que se tem,
Também qualquer outra até...
Um amor tem nas raízes
As mais estranhas matrizes.
Sensual
Um amor que é sensual
Ilude um amor celeste.
Este, a sós e sem rival
Não fará nada que preste.
Porém, faz, dado que tem,
Dele dentro, inconsciente,
O amor sensual também
A picá-lo para a frente.
Simultaneamente
Ser inteligente e belo
Pode simultaneamente
Ser qualquer um de verdade.
A rapariga quer vê-lo
Em quem amar bem presente,
Prova de autenticidade.
Prova de que é inteligente
Mais do que qualquer rapaz:
Para este, uma deter
A outra perder-se faz
Das qualidades que houver.
E então fica para trás
No mundo que à mão crescer.
Nadas
O amor é feito de nadas,
Momentos que não se espera
Onde irão ter nas paradas,
Onde surge uma quimera,
Segundos de eternidade
(Ilude mas persuade),
Olhar de acaso à paisagem,
A ver o que há frente aos olhos,
Distraído na sondagem,
A tropeçar nos escolhos...
Tudo em mínimos perfis,
Que os máximos matam, vis.
Sabemos
O amor, de ciência certa
Sabemos que irá morrer
E a vida inteira o acerta,
Polindo a memória a haver.
Ora, deste polimento
Brota amor doutro elemento.
E assim, degrau a degrau,
Saltamos o rio a vau.
Sempre morto e redivivo,
O amor, que mistério esquivo!
Receando
O homem deveras amante
Sempre de si desconfia,
Receando, a todo o instante,
Tão inferior é seu guia,
Não merecer recompensa
Da mulher que, muitas vezes,
Nem sequer naquilo pensa
Nem mais provas quer corteses.
Pobre
Se ela fora eloquente,
Pelo espírito a amaria.
Se ela não fala, ao presente
É o silêncio que é magia.
Dum homem o coração
É dum pobre o paladar:
Tudo sabe bem então
A quem não tem que trincar.
Elemento
Desejo incerto ou já facto,
O elemento primitivo
Da actividade interior
Em todo o trilho é o amor.
Causa de todo o contacto,
Fim de tudo quanto é vivo,
As virtudes e defeitos
Resume a que imos atreitos.
Desencadeiam
À medida que os sentidos
Numa direcção avançam,
Desencadeiam vagidos,
O amor deveras alcançam,
Exaurem. E ele retira,
Perdido o ponto de mira.
Quanto mais nossos sentidos
Devêm pródigos, fáceis,
Mais o amor, gestos contidos,
Empobrece as marcas gráceis
Ou então, tornado ignaro,
Deveras devém avaro.
Catorze
Catorze filhos felizes,
Miséria mais miserável.
Quais serão os chamarizes?
Não é o dinheiro imprestável.
Riem todos de alegria,
Não têm nada, contudo...
- Ou será que, por magia,
Eles é que têm tudo?
Sabedoria
A sabedoria vem
De experiência assimilada.
Cada dia um dom detém
Com gratidão da jornada.
Nenhum livro neste mundo,
Com toda a razão que lida,
Pode dar-me o que é, no fundo,
Sabedoria de vida.
Régias
O Cosmos tem régias leis
Com que nos rege e aos mundos.
Contra elas não podeis
Vencer, mas tombar nos fundos.
É o modo de a gente ver
Toda a omnipotência a ser
E, presente em todo o lado,
É Deus a ser-nos mostrado.
Ao tentarmos entendê-lo,
É de omnisciência apelo.
Aberto ao que em mim concito,
Vejo que isto é o Infinito...
Como é que as religiões
Nos fecharam os portões?!
É tão simples intuir
Por onde andamos a ir:
O lado de fora espelha
Quem de dentro escuta à orelha!
Colho
De tudo quanto fizer
Eu colho sempre os efeitos,
O bom que dali crescer,
O mau de actos por mal feitos.
E não sou apenas eu,
Mas filhos, netos, bisnetos
Que herdarão do trilho meu
Tanto os bons como os maus tectos.
Os ancestrais leram nisto
Como de Deus é a justiça;
Hoje as ciências avisto
Lendo a lei que nos enliça.
Dois lados, igual verdade:
De Deus o Cosmos é o rosto.
Quem é, pois, que o persuade
Se de tudo é o pressuposto?
Luta
Até a luta acabar,
Os melhores dentre nós
São mortos ou, em lugar,
Aprisionados após
Ou exilados de vez.
E nem memórias, talvez...
Os que aqui ficarem vivos
Serão colaboradores,
Os cobardes mais esquivos,
Homens fracos, sem pudores,
Minúsculos e que adoram
O escuro que em sol arvoram.
Viverão com bons artelhos
Até caírem de velhos.
Findou
Já findou a Primavera,
Lembramos nossa inocência.
Foi-se o Verão, nunca espera,
Da exuberância a vivência.
Do Outono sumiu-se a era,
Eis a nossa reverência
Corre o Inverno em contradança,
É a nossa perseverança.
Fé
A fé jamais separou,
Pois é aquilo que nos liga.
A religião abortou
Quando contra se empertiga.
A fé não é confusão
Mas apenas comunhão.
Os que acreditam em Deus
Afinal não têm fé,
São sucedâneos de ateus,
Mais ateus que quem já o é:
Em milagres acreditam
Que compram e que debitam.
À fé só chega o amor,
De Deus ocupa o lugar,
Somente em busca da flor,
Dia a dia a germinar.
Verdade é que O não tocamos,
Mas como nos achegamos!
Cedo
Tudo vem cedo demais,
Quando nunca preparados
Somos para coisas tais.
Por alma-gémea tentados,
A cara-metade igual
Onde ver-nos espelhados,
E, de repente, o sinal
De quem traz a diferença,
Surpresa doutro real,
O espanto doutra presença!
E é quem se transforma então,
Por ser tudo, na sentença,
O inverso do que é o meu chão,
Na melhor parte da tença
Que tudo em mim pôs à mão.
Manhã
Porque é que não acordamos
De manhã com quem amamos?
É que como o amor merece
Nunca, nunca nós lutamos
E então a ternura esquece.
Ou então idealizamos
Alguém tão, mas tão perfeito
Que demais o imaginamos:
Dele em nome rejeitamos
Então todo o mundo a eito.
Se calhar gente de sonho
Somos nós com outra cara.
Ou refinamento ponho
Em tudo e tudo tristonho
Devém ante a jóia rara.
- E anda aqui a esgadanhar-se
O coração sem disfarce!
Fala
Às vezes, a indiferença
De quem não fala connosco
Desespera. Sem sentença,
Pior que um desprezo tosco,
Tudo é frieza e distância
Sempre a raiar a arrogância.
Somos comunicação:
Quem não for, que fora então?
Depressa
Tudo nesta nossa vida
Corre depressa demais.
Faltam lendas à medida
Ou quem pese lendas tais?
A quem vive acompanhado
O tempo voa açodado.
Mas quem mora solitário,
Na fuga de tal fadário,
Apanha tudo pelo ar,
A correr e a tropeçar.
É um apanhador de histórias
No vazio das memórias.
Acolá, medalha de oiro,
Correr é um ancoradoiro.
Aqui, na pegada esquiva,
Tudo é só barco à deriva.
Areia
Há quem corra areia fora
Como se fora em missão,
Sem do sol mirar aurora
Nem admirar este chão,
Nem a vida, nem viver.
Há quem marche sem se ver...
Mas há também quem observe
E os perfumes nos preserve.
Agarrados
A saudade é mera forma
De ficarmos agarrados
Ao que fora bom por norma,
Como se os dotes herdados
Não foram reprodutíveis,
Multiplicáveis, tangíveis,
Como se o dia a seguir
Não traga melhor porvir!
Olhos
A paixão de olhos abertos
Não é nada nem ninguém.
Os olhos não são espertos.
À gargalhada, porém,
Riem quando os nós fechamos
E os outros então olhamos
Apenas no íntimo chão
Só com nosso coração.
Naco
Felicidade é na vida
Convencional tão restrita
Que, se um naco se lhe quita,
Ao tesoiro sem guarida,
Quimera tão desmentida,
Loucura humana é o que imita,
A maior de nossa lida.
Reduzir
Reduzir a nossa vida
A duas só dimensões,
A dos filhos e trabalho,
Deixa de fora, esquecida,
Toda a rota das regiões
Onde sentir que inda valho:
Política, religião,
Arte e o mais que venha à mão...
Pendor
Quando alguém for inseguro,
Foca o pendor negativo,
Mesmo se único que apuro
Dele em todo o rico arquivo,
Nunca as dezenas de acertos
De seus voos mais expertos.
E a verdade é que ninguém
Lhe liga ao que quer que alcança,
Caminhe ele mal ou bem:
Ocupa-os a própria dança
E tão concentrados vão
Que nem prestam atenção.
Eis a condição comum
Que não vê medroso algum.
Requer
Para a imaginação forte,
Forte sensibilidade,
Ser feliz requer um norte,
Condição que bem persuade:
Construir um lar bem doce
E bem pejado de luz
Que longe do mundo engrosse,
Em que tudo se traduz
Em podermos trabalhar
E tudo é viver e amar.
Vem
Vem aí uma criança!
Vem de França e Aragança...
E nós a parar os botes,
A boca a rezar um credo,
Temendo o que nos alcança.
Seremos sempre uns velhotes
Todos a tremer de medo
À porta duma criança.
Dois
Cada história tem dois lados,
Tem dois lados cada moeda
E mesmo os factos contados
São dois cada, em cada meda.
O outro lado da história
Nunca inverte o mal do mundo.
O mal conta a má memória,
Não lhe torna bom o fundo.
Tostão
Quem me dera ser um pobre
A viver muito feliz
Contando o tostão que sobre,
A esticá-lo de raiz
Até que, mesmo miúdo,
Afinal, dê para tudo!
Claro, não é do tostão,
É de nos darmos a mão.
Que, de mão dada, uma estrada,
Quão mais rica, mais folgada.
O problema é que a riqueza
Sempre a mão dada despreza.
Então não vale de nada
A fortuna acumulada.
Crianças
Crianças não justificam
Tristezas de ensolaradas
Manhãs floridas que ficam
De domingo ataviadas,
Com as cantorias todas
De céu pejadas de modas.
E mais se a família pronta
Estiver à mesa farta
E aves lá fora, sem conta,
Trilam que o amor reparta
E cada qual, repartindo,
É ternura no ar subindo.
Terra
Terra não é de ninguém.
Arrogar-se dono dela
Só dum papel que detém?
Seja dono de tal tela,
Deixando a terra, porém,
A quem lhe agarre a lapela,
Fecunde como convém,
Até pôr a fome à trela
De fartas mesas além.
- Legal? Só se a lei se enliça,
Braço dado, com justiça.
Dois
Uma vida a dois ser pode
Uma longa caminhada.
É com um sim que ela acode
E logo os filhos, de entrada,
Depois netos vão encher
A casa que ali houver.
Porém, quando o pretendente
Ao sim demora a exigi-lo,
Jamais vai ouvi-lo em frente,
No amanhã que lhe perfilo.
Negligência ou indolência,
O castigo é aquela ausência.
O amanhã será promessa
A nunca mais ser cumprida.
O tempo corre depressa,
A semente já sumida.
E cada passo encetado
Mais punição é do fado.
Outra
Sempre a mulher é uma flor
Cujo tom é furta-cor:
Mudamos nós de postura
E é logo outra criatura.
Outra, acaso uma avantesma,
Na que ao fim é sempre a mesma,
Só num olhar escondida
Que não muda a luz da vida.
Bate
Na guerra, nem sempre a morte
Bate na porta da frente.
Terror, traição, competente
General, mais ditam sorte,
Derrubando os bastiões,
Que o ronco de mil canhões.
Nem sempre tomba o valente
Na batalha da campanha.
Do inimigo o medo o apanha
E apanhado é, de repente,
Do tiro de compaixão
Na nuca, junto ao covão.
Caminho
Caminho da liberdade,
Sofrido, trágico, triste...
Mal ou bem porque me invade
Se tanto custa ao que insiste?
Temos sempre de escolher:
Liberdade ou bem-estar
De vida a se organizar,
A liberdade a sofrer
Ou então felicidade
Sem pinga de liberdade.
E a maioria, adivinho,
Trilha o segundo caminho.
Tambor
Somos todos o menino
Do tambor pelo Natal:
Não sabemos nenhum hino
E, de prendas, nem sinal.
Vemos todos os Reis Magos
A dar oiro, incenso e mirra...
E ao Menino, os olhos vagos,
Só prometo não ter birra.
Mas tenho o meu tamborim,
Minha prenda de sonhar.
“Posso tocar, Jesus, sim?”
E ele ri a me acenar.
Então pego nas baquetas
E toco com toda a gana,
Nunca tive em vida metas
De que tal gozo dimana,
Não vejo maior destino,
Nada me arrebata igual...
- Somos todos o menino
Do tambor pelo Natal.
Abre
Quem tem dinheiro bastante
E mais sexo disponível
Qualquer porta abre adiante
Mesmo a mais inatingível:
Até do banco emissor
Ele finda a ser senhor.
Tão depressa os ideais somem
Quão corruptível é o homem.
Imagina
Quem é mais inteligente
É quem mais porvir credível
Imagina dele à frente,
Não quem some o já existente
Em memória disponível.
Saber o saber presente
Não molda ao inexistente.
Gerir o porvir gerível,
Só quem gera o imprevisível.
Cria
Se a natura cria o homem,
O homem cria a natura:
O diálogo faz que assomem
Qualidades no que apura.
Cria o homem ferramenta,
Ferramenta ao homem cria:
Enquanto aquela implementa,
Por dentro, sem ver, crescia.
A linguagem traz consigo
Todo o pensamento abstracto:
A planear me lobrigo,
A gerar porvir em acto.
A mulher escolhe o homem,
Não pelo mais forte e bruto,
Mas por ser, entre os que a escolhem,
Mais inteligente e astuto.
O poder de simular
O futuro inexistente
Fá-lo vir e eu nele, a par,
Como aos dois for conveniente.
Génio
O génio da humanidade
Nunca em vida fez fortuna.
Fortuna, de quem se agrade,
É do cantor que ela enfuna,
Do atleta medalha de oiro,
Futebolista de topo,
Dum modelo que é um tesoiro,
Do actor (milhões por escopo)...
- O génio, não, não carece,
Que até da sorte se esquece.
Porção
Que porção de liberdade,
De intrínseca humanidade
Estaremos nós dispostos
A sacrificar aos gostos
Da paz e da social
Ordem que é sempre abismal?
- Neste equilíbrio fecundo
É que gira o nosso mundo.
Todos
Todos temos a tendência
Para ao fim sobrestimar
Capacidade e potência
De quem bonito tem ar
E atraente se mostrar.
Quem tiver boa aparência
Ascenderá mais depressa
Na escaleira da existência,
Melhor emprego começa
Onde bem se estabeleça.
E ser menos talentoso
Do que outrem poderá ser,
Mas a beleza tem gozo
De privilégios que houver
De apenas lhe pertencer.
E assim é que a Humanidade,
Na evolução imparável,
É amanhã outra entidade
Com um cariz amorável
Do belo mais inefável.
Sinto-me
Temor do infinito, não.
Sinto-me insignificante
Contemplando a imensidão
Do sideral Cosmos hiante.
E sinto curiosidade,
Espantada admiração,
Sem me atrever, de verdade,
Ao desespero que então
Me arrepia toda a pele
Se digo o que espero dele.
Caminho
Caminho em trilho rural
Quando encontro um formigueiro.
Nada, porém, ligo a tal,
Nem de mim lhe dou sinal.
Extra-terrestre pioneiro
Sou ante ele como os mais
São ante nós, siderais.
Asas
Se esta linda borboleta,
Ao bater asas influi
Na tempestade que afecta
Tanto que sem ela rui
Todo o caos que projecta
E tudo devém sereno
Num mundo de paz mais pleno,
Que esperança em mim auguro
De adivinhar o futuro?
Objectivo
Objectivo duma vida
É buscar felicidade.
Com religião vivida,
Com uma ou outra verdade
Ou sem nenhuma, à partida,
Todos buscam o melhor
No tempo que vier se impor.
A grande motivação
É a felicidade então.
Circuito
Quão mais restrito o circuito
De nossa acção e contacto
Tão mais feliz o concito,
Tão mais feliz sou de facto.
Quanto mais o amplificar
Tanto mais frequentemente
Eu me irei atormentar
De angústia com tanta gente.
A ampliação multiplica,
Aumenta a preocupação,
O desejo que me pica
O temor que arrasta ao chão.
Menor
Felicidade, obra-prima,
O menor erro a falseia,
A menor hesitação
Altera quanto sublima,
Delicadeza a desfeia
Se falhar um nada à mão,
E a menor das palermices
Embrutece-a com sandices.
Quando
Não foi quando descobriu
A América, mas sim quando
A descobri-la se viu
Que Colombo se sentiu
Feliz: na vida rumando.
O fim tem um travo amargo:
Nunca responde ao encargo.
Por isso, enquanto caminho
É que feliz me adivinho.
E toda a consumação
Ou começa ou então, não.
Prazer
O prazer na natureza
É prova de aprovação:
Se alguém de feliz se preza
É decerto porque é bom.
Mas a inversa não tem tons
Que confirmem tais matizes:
É que quando somos bons
Nem sempre somos felizes.
Mundo
A providência tempera
O mundo de tal maneira
Que a felicidade gera
A um custo que a emparceira:
Fruto de beleza e sumo,
Doçura de que me aposso,
Mas bem azedo, em resumo,
No fundo junto ao caroço.
Conhecer-se
Felicidade não há
Senão com conhecimento,
Mas conhecimento dá
De infelicidade aumento.
Pois conhecer-se feliz
É conhecer-se passando
Por ser feliz por um triz,
Logo atrás tudo deixando.
O saber finda a matar
Na felicidade e em tudo.
Não saber, porém, a par,
É nem existir, contudo.
Final
Não crer num final feliz,
Ter renunciado a ele,
Torna capaz, de raiz,
Viver no que, ao fim, apele:
Não há um século feliz
Mas momentos de alegria
E alegria na matriz
Do momento que se hauria.
Íntima
A felicidade é estado
De íntima satisfação,
De harmonia uma expressão
Entre nossa aspiração
E da vida o real dado.
É mais simples de atingir
Pela renúncia geral
Que pela busca ideal
De satisfação total,
Mais e mais sempre a fluir.
Busca de felicidade
Há-de implicar sempre, então,
Contínua necessidade,
Viver na insatisfação.
Dalguns
A felicidade duns,
Dalguns outros é a desgraça.
É o interesse dalguns
Que a outrem privações traça.
Então a infelicidade
Os campos doutrem invade.
Porém, mais tarde ou mais cedo,
Leva àqueles igual credo.
Fontes
Todas as fontes externas
De ser feliz e deleite
São inseguras badernas,
Transitórias, mal o aceite.
Com facilidade estancam,
Mesmo nas mais favoráveis
Circunstâncias: todos mancam
Se em bancos sentam instáveis.
Arbítrio
A paz ou felicidade
Construímos, destruímos:
O arbítrio livre é que invade
Do mundo a fatalidade
No acto em que nos assumimos.
E qualquer experiência
Que fizermos, negativa
Embora em qualquer vivência,
Podemos mudar-lhe a essência
E torná-la positiva.
E ao poder transmutador
Nada lhe muda o teor.
Merece
Nada merece um esforço,
Tudo o que é bom é vaidade,
O mundo é sempre um escorço
Da bancarrota da idade,
A vida, até com bom sócio,
Finda sempre em mau negócio,
Não paga, em nenhum momento,
Um qualquer investimento...
- Em tal contexto, feliz
É quem for como a criança:
Ignorante de raiz
Para continuar a dança.
Máquinas
Máquinas de ser feliz
Há-as bem dispendiosas,
Com desperdícios bem vis.
Económicas, gozosas,
Há-as com da vida a sorte
Que alegria dão cimeira
E com tão seguro norte
Que cobrem a vida inteira.
Somos tais máquinas vivas
Baratas, mas tão festivas!
Pende
A felicidade pende
De nós mesmos muito mais
Que de circunstâncias reais,
De eventualidades tais
Que a vida por si não rende.
É um erro visar tal alvo,
Torna a vida um monte calvo.
Sossego
O sossego é liberdade
Mas nunca da negativa
(Livre do medo que invade,
Da constrição com que viva...).
Liberdade é positiva
Para sentir o que sente
E confiar no que viva,
Ter todo o tempo o presente,
Ter vontade e confiança
No que faz e no que alcança.
Coragem
Que responsabilidade
A de ser feliz, que enorme!
Quem coragem tem que lhe há-de
Talhar um rosto conforme?
Tenho coragem com medo;
O feliz aceita a morte.
Se à felicidade acedo
Demais, maldirei a sorte
Numa angústia amordaçante:
Assusto-me logo adiante.
É o começo, então, assim,
Do que há-de vir sendo o fim.
Porém, se aceitar a morte,
Finda o medo e muda a sorte:
Venha o que vier em frente,
Acolho-o sempre contente.
Sofrem
Uns sofrem dum mal,
Outros doutros sofrem.
Ninguém, afinal,
Feliz é total,
Tanto a vida enxofrem
Poderes de Inferno
De Verão a Inverno.
Fraca
A felicidade
É ter esperança,
Fraca, na verdade,
De que vingar há-de,
Que um dia se alcança.
Pelo menos temos,
Sim, que acreditar,
Se viver queremos
No mundo onde havemos
De hoje respirar.
Ideia
Muitos têm ideia errada
Da felicidade vera:
Não é jamais alcançada
Por gratificação mera
Que a si próprios todos dão,
Auto-gratificação.
Provém da fidelidade
A um propósito que é digno
A vera felicidade.
Afasta o rosto maligno
Do que crer que é de ir gozando
Que é feliz de vez em quando.
Dom
Felicidade não é
Nem direito nem dever.
É um dom que se põe de pé,
Gratuito modo de ser,
Que se vai irradiando
Daquilo que vou fazendo,
Por entre a dor que, aguentando,
Vida fora for sofrendo.
Verdade é que se constrói,
Em si, não, do que se foi.
Simples
A felicidade pende
De deveras simples ser.
Sofrimento envolve e rende,
Da pureza que requer.
Pelo material jamais
Se chega à felicidade
Porque abdicará do mais
Que tem menos validade.
Ser feliz é mesmo ser,
Jamais é, portanto, ter.
Fórmulas
Fórmulas mágicas nunca
De ser feliz há-de haver.
Todo o caminho há-de ser
De treino que a emoção junca.
Apagar não é possível
Nossas histórias singelas.
Podemos e é exigível
Apenas reescrevê-las.
Por esta porta de nada
Sempre abrimos nova estrada.
Múltiplos
A felicidade tem
Múltiplos filhos e filhas:
O amor, todo o trato a bem,
Tolerância (poucas cilhas),
Alegre tranquilidade,
Sabedoria, paciência,
A solidariedade,
Perseverar na existência,
Auto-estima não fingida...
- Que família mais unida!
Vago
A felicidade cabe
No vago da mão fechada.
O poderoso que o sabe
Mentiu-a para que acabe
Na ilusão ao pobre atada.
E este quer ser poderoso,
A crer que isto há-de dar gozo!
Vai findar ao fim tolhido,
Perdido todo o sentido.
Céu
O céu aqui tem um rosto:
Roupa que compras a gosto,
Os cremes de maquilhagem,
Da geladeira a triagem
De bens que tiver lá dentro,
Carro para ir ao centro,
Para o trabalho ou levar
Os miúdos a passear
Domingo à tarde, em Agosto...
- O céu aqui tem um rosto.
Longe
É longe a felicidade,
No tempo a longa distância?
Em perspectiva, não há-de
Longe nem perto da infância
Estar, porque é o que se espera,
Aquilo que se procura.
Se te cansar ocorrera
O tempo que não to augura,
O lugar onde marcaste
Encontro com ela, à pressa
Fecha logo qualquer haste
À porta donde começa.
Empurra-te para fora,
Para a noite onde sozinho
A escuridão que aí mora
Enfrentas, ave sem ninho,
Como criança assustada
Em que tudo se resume
Em não querer mergulhada
Ser jamais em tal negrume.
Desejo
Se o desejo derradeiro
Duma pessoa feliz
É ser dono da razão,
Não precisa, por inteiro,
Pois a dele logo diz
Bastar para inspiração.
O mais são riscos que ameiam
De todos os que o rodeiam.
- Morre assim, nesta tristeza,
De ser feliz a beleza.
Milagre
A felicidade é Deus
Feito possibilidade,
O milagre dos ateus
Vivido em realidade.
A tensão do desafio
E procurar superá-lo
Salva ou mata por um fio,
É o supremo do regalo.
A tensão que mais excita
O improvável a concita.
E é quando a ele me atiro
Que o Infindo ali já miro.
Dói
As pessoas se aproximam
No que dói, não que festeja.
As dificuldades mimam
A espessura que se veja
Da união que é posta à prova
E ali tudo se renova.
Peso do que era impossível
A entrar devagar no dia,
Nunca o todo é, pois, credível,
Mas mentira ou fantasia:
Só feliz quem é que viste?
- Só um pouco feliz existe.
Segredo
É requerido o mistério,
O que ficar por dizer,
O segredo cujo império
É o suporte-mor do ser
Da mundial felicidade
Que perene nos invade.
Se soubéramos nós todos
O que quenquer saberia
O mundo e todos os bodos
Não importavam um dia.
Sempre é o desafio além
Que a todos nós nos mantém.
Guardar
Ser feliz é sempre adiar
O futuro a toda a hora,
I-lo guardar num lugar
Onde não esteja agora.
Viver o agora não é
O segredo que em nós mora,
É só agora estar de pé,
É só mesmo ter o agora.
Ora, ser feliz, por ora,
É aguardar mais da demora.
Buracos
Na vida os buracos
Serão permanentes.
Crescemos tais cactos
À volta, insistentes.
Árvore na fenda
Do cimento rijo,
Aqui moldo a venda,
A imitar, que exijo.
É nas reentrâncias
Que aplacamos ânsias.
Meta em plenitude
Somente se alude.