DÉCIMO  QUARTO  TROVÁRIO

 

 

TUDO,  AO  RIR,  É  REENCONTRO

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha um número aleatório entre 1395 e 1533 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1395 – Tudo, ao rir, é reencontro

 

Tudo, ao rir, é reencontro

No canto em todos os modos:

Quadra da rima ao encontro,

Métrica do desencontro,

Trovas de os misturar todos.

 

No bom-humor, na ironia,

Vamos rindo dos trejeitos,

No sarcasmo que zurzia

O impudor de falsos peitos.

 

Canto aqui todos os temas

No ritmo todo e na rima

De qualquer dos mais poemas.

 

A festa é que prefigura

A nossa vera figura.

 

 

1396 – Valido

 

Tal qual o sexo é a Segurança Social:

Quando conseguimos algo é de perguntar

Se terá valido a pena, afinal,

Tanto esperar…

 

 

1397 – Senso

 

Que têm bom senso os demais

Só julgamos quando são,

Sem mais,

De nossa opinião.

 

 

1398 – Cosméticos

 

A melhor das maquilhagens

Para a mulher é a paixão,

Mas em cosméticos são

Bem mais fáceis as triagens.

 

 

1399 – Pedido

 

Três termos os homens deixam

Em pânico, num momento,

E muitos deles se queixam:

- Pedido de casamento.

 

 

1400 – Ferrar

 

Não queiras ferrar quenquer

Sem ver como te apresentes.

Se tu não podes morder,

Então não mostres os dentes.

 

 

1401 – Chega

 

O dinheiro que eu tiver

Chega até ao fim da vida,

A não ser

Que compre algo de seguida.

 

 

1402 – Dinheiro

 

Correr do dinheiro atrás

É ser um louco tenaz.

 

Guardá-lo seguro à vista

É ser um capitalista.

 

Gastá-lo em quaisquer enxergas

É ser um estoira-vergas.

 

Se se não busca um quinhão,

É carência de ambição.

 

Se sem labor o concita,

É decerto um parasita.

 

Se o houver acumulado

Após anos de trabalho,

Então é um degenerado,

Da vida nem colhe um galho.

 

Assim é, pois, o dinheiro

Nosso fiel e vil parceiro.

 

 

1403 – Mudas

 

Alguém com mudas de humor

Constantes sem ter por quê,

A quem o ature é um horror.

- E se esse tal for você?…

 

 

1404 – Mãe

 

A mãe ensina em verdade

O contorcionismo ao moço?

“Olha para a sujidade

Que tens atrás do pescoço!”

 

Ou antes é hipocrisia?

“Se te disse uma vez, disse

Um milhão! Ora a mania!

Não exageres… Que chatice!”

 

 

1405 – Diferenças

 

Entre chamar a atenção

Porque há louça por lavar

E chamar “grande calão!”

A quem dela não tratar

 

Há diferenças que rendem:

Ser sarcástico, escarninho,

São atitudes que ofendem,

Breve um lar fica maninho.

 

Enquanto, por outra via,

Vai alvorecer o dia.

 

 

1406 – Privacidade

 

Da privacidade a lei

É que a própria muitos prezam

Mas à doutrem, ao que sei,

Ninguém liga e todos lesam.

 

 

1407 – Trepa

 

Futebol é de operário,

O ténis, de director,

Golfe é de administrador:

Quão mais alguém trepa, vário,

Na hierarquia que engrolas,

Mais pequenas são as bolas.

 

 

1408 – Diabo

 

O diabo, à falsa fé,

Diz aos que ao alto chegaram

Que dêem um pontapé

Ao banco donde treparam:

 

Aquele que fez fortuna

De amigo graças à mão,

Livre-se dele, que enfuna

A vela só os que se vão.

 

 

1409 – Cisco

 

Vejo este cisco num olho,

Não vejo a montanha erguida

Nem o prado onde me acolho…

- Que faço, que faço à vida?

 

 

1410 – Sapato

 

Sapato novo incomoda,

Não é a vida diferente:

Apanha-nos contra a moda,

Desprevenidos, em frente

 

Nos obriga a caminhar

Rumando ao desconhecido

Quando nem se precisar,

Nem se quiser tal sentido.

 

E criamos moda nova

Que logo outra vez se inova,

 

Sempre nestes desacatos

De eternos novos sapatos.

 

 

1411 – Estranho

 

É estranho que dois mil anos

Corram até que alguém veja

Que Jesus com seus arcanos

Deve ser parte da Igreja!

 

 

1412 – Rejeição

 

Do que torna a vida estulta

Não há rejeição mais grada

Que do psiquiatra a consulta

Decisiva cancelada.

 

 

1413 – Perfeccionista

 

Ser perfeccionista acode

A quem nunca à vida é afeito:

Só na gramática pode

Algo ser mais que perfeito.

 

 

1414- Trono

 

Um trono com baionetas

Podemos sempre erigir,

Sentar nas pontas concretas

Ninguém vai é conseguir.

 

 

1415 – Fácil

 

Ao Homem, se desagrade,

Bem posso amá-lo inteirinho:

Mais fácil é a Humanidade

De amar do que é o meu vizinho.

 

 

1416 – Três

 

Há três coisas bem reais:

Deus, a estupidez e o riso.

Daqueles não sei jamais;

Deste o mais ter, que bom siso!

 

 

1417 – Educar

 

Vivemos todos aflitos:

Como atarmos os cadilhos?

Só os pais são os peritos

Em educar mal os filhos.

 

 

1418 – Mestre

 

Se um mestre uma obra vende,

Seu maior prazer final,

Após ver quanto ela rende,

É reavê-la, afinal,

Por sete vezes o preço

Por que a vendeu no começo.

 

 

1419 – Jardim

 

A família portuguesa

Vai ao jardim zoológico

O espanto da natureza

Saborear pedagógico.

 

Grita o mais novo: “olha um trigue!”

E ao mais velho, sob o toldo,

Isto faz que logo brigue:

“Não é um trigue, é um leopoldo!”

 

A mãe abana a cabeça:

“Pior a ementa que o cimento!”

O pai, ao lado, tropeça

De encontro ao gradeamento

 

E quase uma perna quebra:

“Quem sai aos seus, c’um carago,

É que não é de genebra!”

- E bebe o vinho dum trago.

 

 

1420 – Doença

 

Se um em quatro cidadãos

Sofre de doença mental,

Se tens três amigos sãos,

Então tu é que és o tal!…

 

 

1421 – Amigos

 

Os amigos são tal qual

Como são sempre os melões:

Provo cinquenta e, ao final,

Acho um bom e sem senões.

 

 

1422 – Elevada

 

Que elevada opinião

Temos nós da experiência

Que nos mata a sedução

E da ilusão a inocência!

 

 

1423 – Prazo

 

A longo prazo, uma vida

É doença terminal:

Se existe, logo em seguida

Há-de morrer, afinal.

 

 

1424 – Dom

 

Só posso, de meu lugar,

De santidade saber,

Por ter o dom de pecar,

- Por ter o dom e o prazer…

 

 

1425 – Curso

 

Do mundo o curso é faculdade

De muito louca, estranha via:

Vai muito mais pela vaidade

Que por gentil sabedoria.

 

 

1426 – Tempo

 

O tempo que é requerido

Ao fim governamental

Dum projecto é tal e qual

O que nele há já corrido.

 

 

1427 – Paraíso

 

Um paraíso que não

Posso deixar mais, eterno,

Nao é um paraíso então,

É mais depressa um inferno.

 

 

1428 – Turista

 

O turista, em maioria,

Bem maior tempo reparte

De olhos postados no guia

Do que em obras-primas de arte.

 

 

1429 – Alta

 

As mulheres de alta roda

Quando compram jóias, roupa,

Mais que equipamento em moda

A que nenhuma se poupa,

Antes é a profissional

Ferramenta instrumental

Que pretendem garantir

Por com as mais competir.

 

E todo o mundo trabalha

Para que o bem-estar delas

Floresça febril, sem falha,

Nas compras por atacado,

Satisfeito, sem sequelas

Que curem o alucinado

Mundo assim delas drogado.

 

 

1430 – Maneiras

 

As boas maneiras são

Admitir que toda a gente

É tão delicada, tão,

Que tem permanentemente

De se manejar com luvas

E na tempestade, então,

Há que a proteger das chuvas.

 

Porém, o respeito humano

Tem diversa natureza.

Ninguém chama por engano

Mentiroso a alguém que preza.

 

Mas poupar-lhe os sentimentos

E alimentar-lhe a vaidade

É perder, após momentos,

O que nele tomo a peito,

O que fundo nele agrade,

O que é digno de respeito.

 

Resta, ao fim deste capricho,

Um monte apenas de lixo.

 

 

1431 – Segunda

 

A segunda força armada,

De inferioridade certa,

Certa de ser derrotada,

À dispensa é porta aberta.

 

Como não são dispensadas,

Resta o sentido jucundo:

- Qualquer das forças armadas

É sempre a melhor do mundo!

 

 

1432 – Riqueza

 

No Estado policial

A riqueza é um dom sagrado,

Na democracia é igual,

Só que é a única a que é dado.

 

 

1433 – Repetir

 

Repetido em toda a parte,

Já ninguém vai duvidar:

Vive o público destarte,

Que repetir é provar.

 

Crê-se no que se deseja,

Desde então ninguém duvida.

Duvidar, se é o que se almeja,

É um bem mui raro na vida.

 

 

1434 – Crocodilo

 

Os egípcios adoravam

Crocodilo que os comia,

Hoje são carros que encravam

A esmagar-nos todo o dia.

 

 

1435 – Produz

 

Quem produz o necessáio

Tem falta dele na vida,

Quem não produz, perdulário,

Tem fartura garantida.

 

 

1436 – Roda

 

Verdadeira solidão

É, na roda que me cinja,

Viver simpático e chão

Entre quem só quer que finja.

 

 

1437 – Fácil

 

É mais fácil arrancar

Uns tostões a um avarento

Que um elogio escutar

Ao invejoso sedento.

 

 

1438 – Continua

 

Pouco lhe importa morrer

Se continua a jogar:

Não custa a vida perder

Mas os hábitos largar.

 

 

1439 – Ilusões

 

Pode ser pobre quenquer

Com ilusões, verifico.

Sem ilusões é que ser,

Só pode ser quem for rico.

 

 

1440 – Asilo

 

Ao asilo o mal te move

A dar a mão duma esmola:

Dor alheia não comove,

Desgraça alheia consola.

 

 

1441 – Negros

 

Dos negros a escravatura

Foi outrora celebrada

Como a mais bela figura

De os converter de assentada,

 

Pois liberta os pobres pretos

Das trevas da idolatria,

Dos paganismos concretos…

Tudo o mais é fantasia!

 

São escravos incontidos?

- Mas que mal-agradecidos!

 

 

1442 – Crime

 

Qual era o crime dos crimes

Em tempos de escravidão?

Contra a humanidade, não,

Nenhum há com que a encimes.

 

É contra o crime a revolta:

É fugir da condição

De escravo, da escravidão!

E a razão bem desenvolta:

 

Nada podia igualar

A tábua de salvação

Que é de escravo a condição

Que o iria libertar

 

Da perversidade chã

Da liberdade pagã!

 

- Já que isto de ser cristão

Não tem preço ou discussão!

 

 

1443 – Atira

 

A religião romana

Contra o aborto pré-natal

Se atira, crendo-se humana.

 

A indiferença é total,

O laxismo, escandaloso,

Ante o aborto pós-natal,

 

Com massacre numeroso,

Milhões de actos abortivos,

Às vezes no silencioso

 

Refechamento de arquivos,

Onde um número incontável

De homens e mulheres vivos,

 

Num dia-a-dia infindável,

São trucidados ao meio

Pela mão dum inefável

 

Poder: o poder sem freio.

 

E a religião romana

Contra o aborto pré-natal

Se atira, crendo-se humana…

- Que é que é verdade, afinal?

 

 

1444 – Caridade

 

Caridade tem recheio,

Por vezes, de estranhos ramos:

- Caridade é o melhor meio

De amar a quem não amamos.

 

 

1445 – Brincadeira

 

Brincadeira artesanal

Foi mesmo a traição de Judas,

A traição fundamental

É a do poder com que mudas.

 

Os silêncios ante os crimes,

Crimes contra a Humanidade

Com que, Roma, nos oprimes

- É que é traição de verdade.

 

Felizmente há mesmo a Igreja

Sempre pronta a dar conselho

Que de graça nos proteja,

- Proteja contra o Evangelho!

 

 

1446 – Templos

 

Nos templos não mora Deus,

Já que de templos não gosta,

Nem dos cultos ditos seus,

De ambições covil e aposta.

 

 

1447 – Sigilo

 

Se o poeta respondera

Ao que mais belo seria,

O sigilo quebraria:

- Perder tempo, que bom era!

 

 

1448 – Mimando

 

Mimando os gestos do mundo

A mentira da verdade

Capturamos desde o fundo:

Do mundo a futilidade.

 

 

1449 – Célebre

 

Muito é fácil ser modesto

Quando é célebre quenquer

E que vaidade no apresto

De modesto parecer!

 

 

1450 – Críticos

 

Os críticos são a praga

Que nunca pude entender.

 

Se a um cirurgião apaga

Quem bisturi nunca houver

Manejado ou colocado

Talas num osso qualquer,

Quem lhe houvera perdoado?

 

É o mesmo com qualquer arte.

Como então compreender

Que ponham isto de parte,

Riam do crítico ignaro

Quando o for da cirurgia,

E o dotem de sacro faro

Se no mais se pronuncia?

 

 

1451 – Arrepia

 

“Bem parecido…” – o que a impele

Arrepia-a com maleitas.

É que o belo rosto dele

Garante grandes colheitas?

 

 

1452 – Senhores

 

Quando os senhores se batem,

Por ditos e por cuidados,

Por mais que se desacatem,

Quem sofre são os criados.

 

 

1453 – Calças

 

Governo ou oposição,

Conta é o metro com que os meço:

Sempre as mesmas calças são,

Ou do direito ou do avesso.

 

 

1454 – Escapamos

 

Dos amigos nos proteja

Deus, já que dos inimigos

Escapamos, sem os céus,

Por nós mesmos aos perigos.

 

 

1455 – Fim

 

O fim da revolução:

Se o patrão é mau senhor,

Criado feito patrão

Sempre é cem vezes pior.

 

 

1456 – Retraça

 

Sempre da vida igual traço

Retraça à vida o remanso:

O pequeno deita o laço,

Fica o grande com o ganso.

 

 

1457 – Droga

 

Por que é que a televisão

Há-de ter de droga a essência

Em vez da estimulação

De abertura da consciência?

 

 

1458 – Rocha

 

Bem se tenta ter a fé

Na rocha que a vida informa!

- Basta um calo ter no pé.

Logo tudo se transforma.

 

 

1459 – Três

 

Três conseguem um segredo

Entre eles férreo manterem

Se entretanto e muito cedo

Houver dois que perecerem.

 

 

1460 – Será

 

Aquilo que auguro

Cada Primavera

Será que o futuro

Já não é o que era.

 

 

1461 – Contar

 

Podem alguns perguntar:

“Quem quer ter noventa anos?”

E eu respondo: “quem contar

Oitenta e nove de enganos!”

 

 

1462 – Suportar

 

Suportar a adversidade

Consegue um homem qualquer.

Se o carácter provar há-de,

Então dê-se-lhe poder.

 

 

1463 – Cedo

 

Perder a cabeça no engarrafamento

Não faz chegar mais cedo ao fito que é teu,

Antes ao parque de estacionamento

Do céu.

 

 

1464 – Cuidados

 

Se os cuidados matam mais

Do que o trabalho vos mata,

É que mais vos preocupais

Do que o trabalho se acata.

 

 

1465 – Assaltar-lhe

 

Quando um homem ladrões vir

A assaltar-lhe o barracão,

Socorro se então pedir

À polícia, tudo é vão,

 

Todo o agente anda ocupado.

“Tranque as portas” – lhe dirá –

0“Mal alguém fique folgado,

Logo o envio aonde está!”

 

Se um minuto após de novo

Lhes ligar então contando:

“Não venham cá, que eu aprovo,

Resolvi tudo matando

 

Os ladrões do barracão”,

Em menos de três minutos

Polícias acudirão,

Grupos especiais argutos,

 

Ambulâncias de emergência…

Prenderão, contra seu fito,

A quadrilha da ocorrência

Logo em flagrante delito.

 

O agente grita, irritado:

“Tinha dito que os matou!”

E você: “mas a seu lado

Alguém livre então achou?!”

 

 

1466 – Gritas

 

Gritas: “ganho o que mereço?”,

Com revoltado arreganho.

Com outro grito te meço:

“Mereces mesmo teu ganho?”

 

 

1467 – Amadores

 

Foram bons profissionais

Que o Titanic montaram,

E uns amadores, sem mais,

A Arca de Noé gizaram:

 

- Aquele é que se afundou,

Esta a terra fecundou.

 

 

1468 – Conscienciosos

 

Fica sabendo que os homens são

Conscienciosos para com quem

Não depender deles para o pão,

Nem lhes exija, nem for refém.

 

Mas no momento em que tu ficares

Comprometido e deles pendente

Tudo então finda: afectos e altares,

Como a amizade ou ser teu parente,

 

O teu valor, considerações…

- Tudo te enterram seus aleijões.

 

 

1469 – Rotação

 

Uma rotação completa

Em torno de imóvel eixo

É a revolução concreta:

Tudo ao fim por igual deixo.

 

 

1470 – Consciência

 

Quando um homem ante nós

Não vemos que é um ser humano,

Poucas restrições após

A consciência contrapôs

Aos maus tratos com que o dano.

 

Contra a humanidade o crime

Em que a humanidade é useira

É sempre aquilo que exprime,

É fruta desta fruteira.

 

É o que alimenta o racismo

E toda a xenofobia:

Outrem de macaco crismo,

Chimpanzé fora da via.

 

E durmo mui descansado,

A consciência de lado.

 

 

1471 – Propõem

 

Os que se propõem o mundo regenerar

Consideram dever deles comezinho

Descortinar

O que ocorre na casa do vizinho.

 

Se nada logram saber,

Não se inibem de adivinhar.

Doutro modo, como poderia quenquer

O mundo reformar?

 

De resto, quando alguém diversamente

Age do que age toda a gente,

 

Mesmo na vida íntima do lar,

A atenção de todos há-de concitar.

 

Em contrapartida, quem

As práticas em uso propugnar

A ninguém há-de importar,

A ninguém.

 

 

1472 – Novo

 

Há um novo despertador

Completamente

Silente.

Aumenta de luz e cor

Até que acorda qualquer um,

Mesmo o dorminhoco vela:

 

Tenho um:

- Chama-se janela!

 

 

1473 – Crendice

 

Importa ver mais além

Da crendice o risco singular:

Quem acredita em bruxas tem

Tendência para as queimar.

 

 

1474 – Saber

 

Os que cuidam saber tudo

São irritantes o suficiente

Para os que, como nós, a miúdo,

Sabem tudo realmente…

 

 

1475 – Algo

 

Se algo amar,

Dê-lhe liberdade.

Se voltar,

Sempre seu há-de então ser de verdade.

 

Se, contudo, simplesmente,

Se lhe sentar no sofá,

Tudo esbodegar constantemente,

Lhe comer a comida que houver lá,

 

Lhe utilizar o telefone

E lhe gastar o dinheiro,

Sem que nada melhor o abone

Como parceiro,

Então tudo conduz

À conclusão que lhe não cobiço:

 

- Ou deu-o à luz

Ou casou com isso!

 

 

1476 – Apenas

 

Apenas após abatida

A derradeira

Fruteira,

Apenas após, de seguida,

Envenenado

O último rio navegado,

Apenas após o derradeiro peixe

Apanhado

Na última praia que proliferá-lo deixe,

 

- Apenas então, sumido já tudo quanto se consome,

Descobriremos que o dinheiro não se come.

 

 

1477 – Multidão

 

No futebol, no atletismo,

A multidão grita, ruge e bebe:

Escapa temporariamente ao cataclismo

Das fábricas, dos matadoiros,

Do armazém, de aparar jardim e sebe,

Das garagens,

Do curtume dos coiros,

Das lavagens…

 

Amanhã estarão cativos

Mas agora ei-los livres e plenos,

Bêbedos de liberdade.

Não lembram, esquivos,

A escravatura das barracas nos terrenos,

A pobreza, a necessidade…

 

Não há escravidão de assistência

Social,

Nem urgência

De hospital

Nem há bichas de espera

Onde a morte desembaraçada opera.

 

A colectividade pode ficar segura

Até o pobre um dia aprender

A fabricar alguma bomba atómica em miniatura

Numa cave qualquer.

 

 

1478 – Problema

 

O problema com a bebida

É que, se ocorre algo de mau,

Bebe-se para esquecer.

Se o que é bom é que convida,

Então há-de ser

Para celebrar.

Quando, solitária a veiga e o calhau,

Nada ocorre no lugar,

Então tem de se beber

Para qualquer coisa acontecer.

 

- Uma vez o círculo fechado,

Não há fuga para nenhum lado.

 

 

1479 – Sangue

 

O problema de qualquer renovo

É aquilo a que se inclina:

O que chamam sangue novo

Não é normalmente mais que velha urina.

 

 

1480 – Obrigação

 

Quem não vê quão menor

É o sentido de obrigação que resta

Ao que recebe favor

Do que ao que o presta?

 

 

1481 – Educado

 

Que o sonho dum povo bem educado conceda

Três gerações ao que hoje grunhe de borco:

Não há como talhar fato de seda

Com orelha de porco.

 

 

1482 – Resoluções

 

Resoluções de Ano Novo,

De mistura com os preitos,

Nunca tu nem eu aprovo

Quando já somos perfeitos.

 

 

1483 – Família

 

Ter uma família, a pista

De bólim, peça por peça,

É ter, a ver quem resista,

Instalada na cabeça.

 

 

1484 – Sentido

 

Creio em dar e receber.

Se o sentido não alcanças:

Dou ordens como quenquer,

Recebem-nas as crianças…

 

 

1485 – Gato

 

Será que te não deleita

Que ao Mundo, de pólo a pólo,

Com relva, sol, vida afeita,

- Prefira o gato o teu colo?

 

 

1486 – Gagueje

 

Há quem gagueje a escrever,

Que escrever a gaguejar

É mais comum a quenquer,

Mais comum do que a falar.

 

 

1487 – Muitos

 

Muitos, quando lhes dá jeito,

Vão por nós algo fazer,

Mas aquilo a que ando atreito

É mesmo encontrar quenquer

Disposto a ajudar, após,

Quando nos der jeito a nós.

 

 

1488 – Dote

 

O amor não é comprado

Nem vendido,

Mas o dote é o pagamento adiantado

Dum marido.

 

 

1489 – Churrasco

 

Quando no churrasco actuas

Podes comer uns bocados

De salsichas quase cruas

Com os dedos bem passados!

 

 

1490 – Senso

 

O homem, sem lógica em mente,

Em qualquer hotel que apraza

Quer doméstico ambiente

E quer um hotel em casa.

 

 

1491 – Tigela

 

Tigela de gelatina,

Quando cai donde eu a encaixo,

Cai sempre, maldita sina,

Cai virada para baixo!

 

 

1492 – Menor

 

Quanto menor a importância

Que tiver na empresa em alta

Mais notória a intolerância

Para seu atraso ou falta.

 

 

1493 – Aumento

 

O aumento salarial

Leva-lhe a aumentar o imposto

Mas não aumenta, com tal,

O que ao fim lhe em casa é posto.

 

 

1494 – Apólice

 

A apólice de seguro

Cobre tudo, ao que parece,

Para me livrar de apuro,

Menos tudo o que acontece.

 

 

1495 – Sair

 

Se sai tarde da função,

Quem vai reparar em si?

Se sair cedo, o patrão

À porta a esperá-lo vi!

 

 

1496 – Terras

 

O bom das terras pequenas

É, se não lembro o que fiz,

Que alguém sempre, entre as empenas,

O lembrará de raiz.

 

 

1497 – Drogas

 

As drogas nelas contêm

Um escape às agonias.

Um outro rumo há, porém,:

O do trabalho que avias.

 

 

1498 – Simplicidade

 

Simplicidade, não,

Que repugna!

Alguém com despreocupação

Fruir dos próprios direitos,

Sem suor nem grande pugna,

Que pretensão!

O bom cidadão

Deve sofrer a grosseria

Dos conterrâneos dele eleitos,

Sujeitar-se a ver malograda a alegria,

A legítima expectativa,

Pelos defeitos

Da comitiva.

 

Aguarde a própria vez,

A ocasião

De tirar desforço de viés,

E lese então

Triunfalmente

A comodidade a toda a gente!

 

Que festa no mundo inteiro

Por tal ideal cimeiro!

 

 

1499 – Médico

 

É bom médico a doença

A quem mais damos ouvidos.

Ao saber e à bem-querença,

Ao nos sentirmos feridos,

Promessas sempre faremos,

- Mas à dor obedecemos.

 

 

1500 – Óptimo

 

Sou óptimo em discussão!

Perguntem a meus amigos,

Aos poucos que restarão.

Sou capaz, sem dar castigos,

De ganhar qualquer disputa

Sobre qualquer tema em luta.

 

As pessoas sabem disto,

Evitam-me, então, nas festas.

Vêem quanto além resisto

De qualquer polir de arestas.

 

Do respeito com que lidam

Até já nem me convidam!…

 

 

1501 – Conforta

 

No íntimo de cada qual

Há sempre uma zona obscura

Que se conforta ao sinal

De que no mundo perdura

Muito maior canalhice

Do que a que nele alguém visse.

 

E a pequenez devém grande

Na ilusão que nos comande.

 

 

1502 – Mentira

 

Duma mentira o segredo

É contar aos que nos fitem

Qualquer coisa, mesmo a medo,

Mas em que eles acreditem.

 

 

1503 – Irritada

 

Quando era nova ficava

Irritada cada vez

Que qualquer homem olhava

Para si, mesmo de viés.

 

Quando deixaram de olhar

Começou a sentir falta

Daquilo: de agora errar

Sempre fora da ribalta.

 

 

1504 – Repositório

 

Repositório de sandices,

Sacral embora como um adro,

Nenhum objecto ouve mais parvoíces

Do que um quadro.

 

 

1505 – Mesa

 

De mesa um empregado

Incapaz de sorrir contente

Deveria ter sido gerado

Cliente.

 

 

1506 – Feliz

 

Se feliz não for alguém,

Não é com cremes nem cirurgia

Que o problema que tem

Resolve algum dia.

 

 

1507 – Tipos

 

Dois tipos de homens preponderam

Quando as vinhas se enxofrem:

Os que a História geram

E os que a sofrem.

 

 

1508 – Dinheiro

 

O dinheiro fala e condiz

Com sonhos meus.

Mas tudo o que o meu diz

É adeus.

 

 

1509 – Crise

 

A crise do poder de alguém,

Da ideia de que é importante,

É deveras hilariante

Também.

 

O mundo não pára

Nem um segundo,

Nem quando Einstein findara,

Nem quando Hitler enterrou o mundo.

 

Tudo, pois, continua.

Que é isto de alguém ser mais,

De ter mais prédios na rua

De rostos especiais?…

 

Adiante, adiante…

- Muito pouco é realmente importante.

 

 

1510 – Barriga

 

Quem tem a barriga cheia

Não acorre a revoltar a rua

E quão mais cheia a barriga se lhe alteia

Menos com tal pendor ele pactua.

 

 

1511 – Prova

 

A prova maior

De extraterrestres inteligentes nalgum lugar

Termos de supor

É a de nunca tentarem connosco contactar.

 

 

1512 – Arqueólogo

 

Se ao arqueólogo a carreira

Definas,

Ela inteira

Jaz em ruínas.

 

 

1513 – Concurso

 

Um concurso é actividade

Em que a pública entidade

Obra pública atribui

A amigos e familiares,

De modo que tudo flui

Sem percalços nem azares,

Muito inteligentemente,

De forma legal e transparente…

 

 

1514 – Abdicam

 

De tudo abdicm os humanos

Por algo que é quase nada,

Da felicidade, do amor, dos desenganos,

Da alegria, da paz, da vida airada,

 

De romance, de excitação,

De serenidade, de saúde até…

De tudo abdicam pelo que apenas é

- Terem razão!

 

 

1515 – Infantil

 

Afinal andam ainda nossos credos

Ao nível infantil do jogo da apanha:

- Quem morrer com mais brinquedos,

Ganha!

 

 

1516 – Célebre

 

Célebre a ser se persuade

Quem mais procura carinho.

Depois, a celebridade

Faz dele um homem sozinho.

 

 

1517 – Publicidades

 

Quantas publicidades pecas

Vendem falsos luminares,

Farmacêuticos carecas

A impingir restauradores capilares!

 

 

1518 – Prostrados

 

Antes de ficarem prostrados pela morte,

Dêem-me uma oportunidade.

Quem ao defunto cuidou da sorte

Quando vivo, do lado aquém da eternidade?

Quem lhe deu de comer

E o tecto de o acolher?

 

Quantos dos chorões de agora

- Não estiveram apenas à espera desta hora?

Naquela altura,

Não tinham paciência

Nem lhe toleravam a figura:

O defunto, quando vivo, era uma indecência.

 

De repente transforma-se em cadáver, de repente,

E tudo são lágrimas imediatamente,

 

Panegíricos e lamentações,

Não há nada que não façam pelo morto, os bufões!

 

Pois bem, entrego-vos o defunto,

Divirtam-se com ele.

O cadáver dum ausente

Não é meu assunto:

Prefiro seguir-lhe o colear discreto de serpente

Depois de haver aqui largado a pele.

 

 

1519 – Terceiro

 

Sempre que alguém afirmar

Que quatro dois mais dois são

E um ignaro retrucar

Que dois e dois seis serão,

 

Há-de um terceiro surgir

Que, pela moderação,

Acaba por concluir

Que cinco, enfim, somarão…

 

 

1520 – Modos

 

Há dois modos de encontrar

Aquilo que se perdeu:

Por acaso e a preguejar.

 

Virando a casa do avesso,

O inferno levando ao céu,

Demora mas não esqueço,

 

É muito satisfatório:

Procurar desesperado

É um gosto premonitório

 

De intérmina expectativa

Ter em mim, tenso, criado

Que se alivia e se esquiva

 

Mui maravilhosamente

Quando algo que foi perdido

Encontrado é finalmente.

 

Isto até reforça a ideia

De que a vida que hei vivido

Controlo na densa teia.

 

Sei muito bem que é mentira.

Mas o gosto, quem mo tira?

 

 

1521 – Maioria

 

Quem não goste que o despertem há,

Maioria a preferir dormir.

Está o mundo do teor que está

De sonâmbulos tudo cheio ir.

 

 

1522 – Problema

 

O problema da verdade

É que a verdade é implacável,

Não dá tréguas quando invade,

Sempre ataca, interminável,

A mostrar a realidade

Por todo o lado fiável.

 

Apanhar tanta pancada

Pode ser uma maçada…

 

 

1523 – Guerra

 

Quando a guerra rebentar,

Ninguém dorme, o olhar desperto,

Ou dormirá no deserto,

De vez, quando ela acabar.

 

 

1524 – Espelho

 

Perante o espelho da vida,

Cospem na cara que foram

A escarradela vivida

Do que são os que se goram.

 

 

1525 – Cabeças

 

Uma regra do poder

Às cabeças é cortá-las

Antes de pensar quenquer,

Ou é tarde para as balas.

 

 

1526 – Polícias

 

Os polícias não são deus,

São dele representantes.

Igrejas e corifeus

Segunda linha são antes.

 

 

1527 – Mandam

 

Os que mandam nunca param

Nem dos absurdos diante:

A razão nos anteparam,

Nem consciência há doravante.

 

1528 – Homens

 

Num mundo de homens, o termo

Dum homem tem bem mais peso

Que o duma mulher enfermo.

E, se ela insiste no vezo

 

E ficar aborrecida

Por não crerem nunca nela,

Pois em menos caso é tida:

- É uma emotiva sequela!

 

 

1529 – Andam

 

Os jovens andam em grupos,

Os adultos era aos pares,

Os velhos, fora os apupos,

Sós andarão, singulares.

 

 

1530 – Jogos

 

Três jogos de futebol

Se um homem vir de seguida

Deve ser posto no rol

Oficial de morto em vida.

 

 

1531 – Queremos

 

Nós queremos é ser ricos,

Admirados e comer

Que nem porcos, sem fanicos,

Tais cobras esguios ser,

 

A pedir-nos ter crianças

Os autógrafos da fama,

Remédios ter com que alcanças

Calma e de espírito a chama,

 

Cantar músicas na moda,

Ser, para a imprensa, brilhante…

- Na falta disto é que a boda

De ser amado é bastante.

 

 

1532 – Comunica

 

A ideia de que Deus

Comunica connosco directamente

Viola a crença dos ateus

Praticamente,

 

Como quase todas as crenças religiosas,

Em todas as idades,

Mantidas, orgulhosas,

Em nossas comunidades.

 

 

Tanto mentem por mor do poder:

- Não escapa um Deus sequer!

 

 

1533 – Espontâneos

 

Espontâneos retomaram

Por tu qualquer tratamento

E mais ambos se ligaram

Como um sarmento a um sarmento.

 

Então, a partir dali,

Entendem-se totalmente,

Mais que um ao outro, entre si,:

Gesto em esboço é semente,

 

Nem vale a pena acabar,

E as palavras mais banais

Findar de pronunciar

Não é preciso jamais.

 

Um silêncio adorável,

Adoravelmente enchido

Principia a ser viável.

Deixaram, neste sentido,

 

De ser dois, gradualmente:

Já são um, sempre crescente.