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um número aleatório entre 1395 e 1533 inclusive.
Descubra
o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
1395 – Tudo, ao rir, é reencontro
Tudo, ao rir, é reencontro
No canto em todos os modos:
Quadra da rima ao encontro,
Métrica do desencontro,
Trovas de os misturar todos.
No bom-humor, na ironia,
Vamos rindo dos trejeitos,
No sarcasmo que zurzia
O impudor de falsos peitos.
Canto aqui todos os temas
No ritmo todo e na rima
De qualquer dos mais poemas.
A festa é que prefigura
A nossa vera figura.
1396 – Valido |
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Tal qual o sexo é a Segurança Social: |
Quando conseguimos algo é de perguntar |
Se terá valido a pena, afinal, |
Tanto esperar… |
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1397 – Senso |
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Que têm bom senso os demais |
Só julgamos quando são, |
Sem mais, |
De nossa opinião. |
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1398 – Cosméticos |
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A melhor das maquilhagens |
Para a mulher é a paixão, |
Mas em cosméticos são |
Bem mais fáceis as triagens. |
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1399 – Pedido |
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Três termos os homens deixam |
Em pânico, num momento, |
E muitos deles se queixam: |
- Pedido de casamento. |
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1400 – Ferrar |
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Não queiras ferrar quenquer |
Sem ver como te apresentes. |
Se tu não podes morder, |
Então não mostres os dentes. |
1401 – Chega |
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O dinheiro que eu tiver |
Chega até ao fim da vida, |
A não ser |
Que compre algo de seguida. |
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1402 – Dinheiro |
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Correr do dinheiro atrás |
É ser um louco tenaz. |
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Guardá-lo seguro à vista |
É ser um capitalista. |
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Gastá-lo em quaisquer enxergas |
É ser um estoira-vergas. |
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Se se não busca um quinhão, |
É carência de ambição. |
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Se sem labor o concita, |
É decerto um parasita. |
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Se o houver acumulado |
Após anos de trabalho, |
Então é um degenerado, |
Da vida nem colhe um galho. |
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Assim é, pois, o dinheiro |
Nosso fiel e vil parceiro. |
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1403 – Mudas |
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Alguém com mudas de humor |
Constantes sem ter por quê, |
A quem o ature é um horror. |
- E se esse tal for você?… |
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1404 – Mãe |
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A mãe ensina em verdade |
O contorcionismo ao moço? |
“Olha para a sujidade |
Que tens atrás do pescoço!” |
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Ou antes é hipocrisia? |
“Se te disse uma vez, disse |
Um milhão! Ora a mania!
|
Não exageres… Que chatice!” |
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1405 – Diferenças |
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Entre chamar a atenção |
Porque há louça
por lavar |
E chamar “grande calão!” |
A quem dela não
tratar |
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Há diferenças que rendem: |
Ser sarcástico, escarninho, |
São atitudes que ofendem, |
Breve um lar
fica maninho. |
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Enquanto, por outra via, |
Vai alvorecer o dia. |
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1406 – Privacidade |
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Da privacidade a lei |
É que a própria muitos prezam |
Mas à doutrem, ao que sei, |
Ninguém liga e todos lesam. |
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1407 – Trepa |
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Futebol é de operário, |
O ténis, de director, |
Golfe é de administrador: |
Quão mais alguém trepa, vário, |
Na hierarquia que engrolas, |
Mais pequenas são as bolas. |
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1408 – Diabo |
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O diabo, à falsa fé, |
Diz aos que ao alto chegaram |
Que dêem um pontapé |
Ao banco donde treparam: |
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Aquele que fez fortuna |
De amigo graças à mão, |
Livre-se dele, que enfuna |
A vela só os que se vão. |
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1409 – Cisco |
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Vejo este cisco num olho, |
Não vejo a montanha erguida |
Nem o prado onde me acolho… |
- Que faço, que faço à vida? |
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1410 – Sapato |
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Sapato novo incomoda, |
Não é a vida diferente: |
Apanha-nos contra a moda, |
Desprevenidos, em frente |
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Nos obriga a caminhar |
Rumando ao desconhecido |
Quando nem se precisar, |
Nem se quiser tal sentido. |
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E criamos moda nova |
Que logo outra vez se inova, |
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Sempre nestes desacatos |
De eternos novos sapatos. |
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1411 – Estranho |
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É estranho que dois mil anos |
Corram até que alguém veja |
Que Jesus com seus arcanos |
Deve ser parte da Igreja! |
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1412 – Rejeição |
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Do que torna a vida estulta |
Não há rejeição mais grada |
Que do psiquiatra a consulta |
Decisiva cancelada. |
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1413 – Perfeccionista |
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Ser perfeccionista acode |
A quem nunca à vida é afeito: |
Só na gramática pode |
Algo ser mais que perfeito. |
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1414- Trono |
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Um trono com baionetas |
Podemos sempre erigir, |
Sentar nas pontas concretas |
Ninguém vai é conseguir. |
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1415 – Fácil |
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Ao Homem, se desagrade, |
Bem posso amá-lo inteirinho: |
Mais fácil é a Humanidade |
De amar do que é o meu vizinho. |
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1416 – Três |
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Há três coisas bem reais: |
Deus, a estupidez e o riso. |
Daqueles não sei jamais; |
Deste o mais ter, que bom siso! |
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1417 – Educar |
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Vivemos todos aflitos: |
Como atarmos os cadilhos? |
Só os pais são os peritos |
Em educar mal os filhos. |
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1418 – Mestre |
|
Se um mestre uma obra vende, |
Seu maior prazer final, |
Após ver quanto ela rende, |
É reavê-la, afinal, |
Por sete vezes o preço |
Por que a vendeu no começo. |
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1419 – Jardim |
|
A família portuguesa |
Vai ao jardim zoológico |
O espanto da natureza |
Saborear pedagógico. |
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Grita o mais novo: “olha um trigue!” |
E ao mais velho, sob o toldo, |
Isto faz que logo brigue: |
“Não é um trigue, é um leopoldo!” |
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A mãe abana a cabeça: |
“Pior a ementa que o cimento!” |
O pai, ao lado, tropeça |
De encontro ao gradeamento |
|
E quase uma perna quebra: |
“Quem sai aos seus, c’um carago, |
É que não é de genebra!” |
- E bebe o vinho dum trago. |
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1420 – Doença |
|
Se um em quatro cidadãos |
Sofre de doença mental, |
Se tens três amigos sãos, |
Então tu é que és o tal!… |
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1421 – Amigos |
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Os amigos são tal qual |
Como são sempre os melões: |
Provo cinquenta e, ao final, |
Acho um bom e sem senões. |
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1422 – Elevada |
|
Que elevada opinião |
Temos nós da experiência |
Que nos mata a sedução |
E da ilusão a inocência! |
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1423 – Prazo |
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A longo prazo, uma vida |
É doença terminal: |
Se existe, logo em seguida |
Há-de morrer, afinal. |
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1424 – Dom |
|
Só posso, de meu lugar, |
De santidade saber, |
Por ter o dom de pecar, |
- Por ter o dom e o prazer… |
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1425 – Curso |
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Do mundo o curso é faculdade |
De muito louca, estranha via: |
Vai muito mais pela vaidade |
Que por gentil sabedoria. |
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1426 – Tempo |
|
O tempo que é requerido |
Ao fim governamental |
Dum projecto é tal e qual |
O que nele há já corrido. |
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1427 – Paraíso |
|
Um paraíso que não |
Posso deixar mais, eterno, |
Nao é um paraíso então, |
É mais depressa um inferno. |
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1428 – Turista |
|
O turista, em maioria, |
Bem maior tempo reparte |
De olhos postados no guia |
Do que em obras-primas de arte. |
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1429 – Alta |
|
As mulheres de alta roda |
Quando compram jóias, roupa, |
Mais que equipamento em moda |
A que nenhuma se poupa, |
Antes é a profissional |
Ferramenta instrumental |
Que pretendem garantir |
Por com as mais competir. |
|
E todo o mundo trabalha |
Para que o bem-estar delas |
Floresça febril, sem falha, |
Nas compras por atacado, |
Satisfeito, sem sequelas |
Que curem o alucinado |
Mundo assim delas drogado. |
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1430 – Maneiras |
|
As boas maneiras são |
Admitir que toda a gente |
É tão delicada, tão, |
Que tem permanentemente |
De se manejar com luvas |
E na tempestade, então, |
Há que a proteger das chuvas. |
|
Porém, o respeito humano |
Tem diversa natureza. |
Ninguém chama por engano |
Mentiroso a alguém que preza. |
|
Mas poupar-lhe os sentimentos |
E alimentar-lhe a vaidade |
É perder, após momentos, |
O que nele tomo a peito, |
O que fundo nele agrade, |
O que é digno de respeito. |
|
Resta, ao fim deste capricho, |
Um monte apenas de lixo. |
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1431 – Segunda |
|
A segunda força armada, |
De inferioridade certa, |
Certa de ser derrotada, |
À dispensa é porta aberta. |
|
Como não são dispensadas, |
Resta o sentido jucundo: |
- Qualquer das forças armadas |
É sempre a melhor do mundo! |
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1432 – Riqueza |
|
No Estado policial |
A riqueza é um dom sagrado, |
Na democracia é igual, |
Só que é a única a que é dado. |
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1433 – Repetir |
|
Repetido em toda a parte, |
Já ninguém vai duvidar: |
Vive o público destarte, |
Que repetir é provar. |
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Crê-se no que se deseja, |
Desde então ninguém duvida. |
Duvidar, se é o que se almeja, |
É um bem mui raro na vida. |
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1434 – Crocodilo |
|
Os egípcios adoravam |
Crocodilo que os comia, |
Hoje são carros que encravam |
A esmagar-nos todo o dia. |
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1435 – Produz |
|
Quem produz o necessáio |
Tem falta dele na vida, |
Quem não produz, perdulário, |
Tem fartura garantida. |
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1436 – Roda |
|
Verdadeira solidão |
É, na roda que me cinja, |
Viver simpático e chão |
Entre quem só quer que finja. |
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1437 – Fácil |
|
É mais fácil arrancar |
Uns tostões a um avarento |
Que um elogio escutar |
Ao invejoso sedento. |
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1438 – Continua |
|
Pouco lhe importa morrer |
Se continua a jogar: |
Não custa a vida perder |
Mas os hábitos largar. |
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1439 – Ilusões |
|
Pode ser pobre quenquer |
Com ilusões, verifico. |
Sem ilusões é que ser, |
Só pode ser quem for rico. |
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1440 – Asilo |
|
Ao asilo o mal te move |
A dar a mão duma esmola: |
Dor alheia não comove, |
Desgraça alheia consola. |
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1441 – Negros |
|
Dos negros a escravatura |
Foi outrora celebrada |
Como a mais bela figura |
De os converter de assentada, |
|
Pois liberta os pobres pretos |
Das trevas da idolatria, |
Dos paganismos concretos… |
Tudo o mais é fantasia! |
|
São escravos incontidos? |
- Mas que mal-agradecidos! |
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1442 – Crime |
|
Qual era o crime dos crimes |
Em tempos de escravidão? |
Contra a humanidade, não, |
Nenhum há com que a encimes. |
|
É contra o crime a revolta: |
É fugir da condição |
De escravo, da escravidão! |
E a razão bem desenvolta: |
|
Nada podia igualar |
A tábua de salvação |
Que é de escravo a condição |
Que o iria libertar |
|
Da perversidade chã |
Da liberdade pagã! |
|
- Já que isto de ser cristão |
Não tem preço ou discussão! |
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1443 – Atira |
|
A religião romana |
Contra o aborto pré-natal |
Se atira, crendo-se humana. |
|
A indiferença é total, |
O laxismo, escandaloso, |
Ante o aborto pós-natal, |
|
Com massacre numeroso, |
Milhões de actos abortivos, |
Às vezes no silencioso |
|
Refechamento de arquivos, |
Onde um número incontável |
De homens e mulheres vivos, |
|
Num dia-a-dia infindável, |
São trucidados ao meio |
Pela mão dum inefável |
|
Poder: o poder sem freio. |
|
E a religião romana |
Contra o aborto pré-natal |
Se atira, crendo-se humana… |
- Que é que é verdade, afinal? |
|
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1444 – Caridade |
|
Caridade tem recheio, |
Por vezes, de estranhos ramos: |
- Caridade é o melhor meio |
De amar a quem não amamos. |
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1445 – Brincadeira |
|
Brincadeira artesanal |
Foi mesmo a traição de Judas, |
A traição fundamental |
É a do poder com que mudas. |
|
Os silêncios ante os crimes, |
Crimes contra a Humanidade |
Com que, Roma, nos oprimes |
- É que é traição de verdade. |
|
Felizmente há mesmo a Igreja |
Sempre pronta a dar conselho |
Que de graça nos proteja, |
- Proteja contra o Evangelho! |
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1446 – Templos |
|
Nos templos não mora Deus, |
Já que de templos não gosta, |
Nem dos cultos ditos seus, |
De ambições covil e aposta. |
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1447 – Sigilo |
|
Se o poeta respondera |
Ao que mais belo seria, |
O sigilo quebraria: |
- Perder tempo, que bom era! |
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1448 – Mimando |
|
Mimando os gestos do mundo |
A mentira da verdade |
Capturamos desde o fundo: |
Do mundo a futilidade. |
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1449 – Célebre |
|
Muito é fácil ser modesto |
Quando é célebre quenquer |
E que vaidade no apresto |
De modesto parecer! |
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1450 – Críticos |
|
Os críticos são a praga |
Que nunca pude entender. |
|
Se a um cirurgião apaga |
Quem bisturi nunca houver |
Manejado ou colocado |
Talas num osso qualquer, |
Quem lhe houvera perdoado? |
|
É o mesmo com qualquer arte. |
Como então compreender |
Que ponham isto de parte, |
Riam do crítico ignaro |
Quando o for da cirurgia, |
E o dotem de sacro faro |
Se no mais se pronuncia? |
|
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1451 – Arrepia |
|
“Bem parecido…” – o que a impele |
Arrepia-a com maleitas. |
É que o belo rosto dele |
Garante grandes colheitas? |
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1452 – Senhores |
|
Quando os senhores se batem, |
Por ditos e por cuidados, |
Por mais que se desacatem, |
Quem sofre são os criados. |
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1453 – Calças |
|
Governo ou oposição, |
Conta é o metro com que os meço: |
Sempre as mesmas calças são, |
Ou do direito ou do avesso. |
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1454 – Escapamos |
|
Dos amigos nos proteja |
Deus, já que dos inimigos |
Escapamos, sem os céus, |
Por nós mesmos aos perigos. |
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1455 – Fim |
|
O fim da revolução: |
Se o patrão é mau senhor, |
Criado feito patrão |
Sempre é cem vezes pior. |
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1456 – Retraça |
|
Sempre da vida igual traço |
Retraça à vida o remanso: |
O pequeno deita o laço, |
Fica o grande com o ganso. |
|
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1457 – Droga |
|
Por que é que a televisão |
Há-de ter de droga a essência |
Em vez da estimulação |
De abertura da consciência? |
|
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1458 – Rocha |
|
Bem se tenta ter a fé |
Na rocha que a vida informa! |
- Basta um calo ter no pé. |
Logo tudo se transforma. |
|
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1459 – Três |
|
Três conseguem um segredo |
Entre eles férreo manterem |
Se entretanto e muito cedo |
Houver dois que perecerem. |
|
|
1460 – Será |
|
Aquilo que auguro |
Cada Primavera |
Será que o futuro |
Já não é o que era. |
|
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1461 – Contar |
|
Podem alguns perguntar: |
“Quem quer ter noventa anos?” |
E eu respondo: “quem contar |
Oitenta e nove de enganos!” |
|
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1462 – Suportar |
|
Suportar a adversidade |
Consegue um homem qualquer. |
Se o carácter provar há-de, |
Então dê-se-lhe poder. |
|
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1463 – Cedo |
|
Perder a cabeça no engarrafamento |
Não faz chegar mais cedo ao fito que é teu, |
Antes ao parque de estacionamento |
Do céu. |
|
|
1464 – Cuidados |
|
Se os cuidados matam mais |
Do que o trabalho vos mata, |
É que mais vos preocupais |
Do que o trabalho se acata. |
|
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1465 – Assaltar-lhe |
|
Quando um homem ladrões vir |
A assaltar-lhe o barracão, |
Socorro se então pedir |
À polícia, tudo é vão, |
|
Todo o agente anda ocupado. |
“Tranque as portas” – lhe dirá – |
0“Mal alguém fique folgado, |
Logo o envio aonde está!” |
|
Se um minuto após de novo |
Lhes ligar então contando: |
“Não venham cá, que eu aprovo, |
Resolvi tudo matando |
|
Os ladrões do barracão”, |
Em menos de três minutos |
Polícias acudirão, |
Grupos especiais argutos, |
|
Ambulâncias de emergência… |
Prenderão, contra seu fito, |
A quadrilha da ocorrência |
Logo em flagrante delito. |
|
O agente grita, irritado: |
“Tinha dito que os matou!” |
E você: “mas a seu lado |
Alguém livre então achou?!” |
|
|
1466 – Gritas |
|
Gritas: “ganho o que mereço?”, |
Com revoltado arreganho. |
Com outro grito te meço: |
“Mereces mesmo teu ganho?” |
|
|
1467 – Amadores |
|
Foram bons profissionais |
Que o Titanic montaram, |
E uns amadores, sem mais, |
A Arca de Noé gizaram: |
|
- Aquele é que se afundou, |
Esta a terra fecundou. |
|
|
1468 – Conscienciosos |
|
Fica sabendo que os homens são |
Conscienciosos para com quem |
Não depender deles para o pão, |
Nem lhes exija, nem for refém. |
|
Mas no momento em que tu ficares |
Comprometido e deles pendente |
Tudo então finda: afectos e altares, |
Como a amizade ou ser teu parente, |
|
O teu valor, considerações… |
- Tudo te enterram seus aleijões. |
|
|
1469 – Rotação |
|
Uma rotação completa |
Em torno de imóvel eixo |
É a revolução concreta: |
Tudo ao fim por igual deixo. |
|
|
1470 – Consciência |
|
Quando um homem ante nós |
Não vemos que é um ser humano, |
Poucas restrições após |
A consciência contrapôs |
Aos maus tratos com que o dano. |
|
Contra a humanidade o crime |
Em que a humanidade é useira |
É sempre aquilo que exprime, |
É fruta desta fruteira. |
|
É o que alimenta o racismo |
E toda a xenofobia: |
Outrem de macaco crismo, |
Chimpanzé fora da via. |
|
E durmo mui descansado, |
A consciência de lado. |
|
|
1471 – Propõem |
|
Os que se propõem o mundo regenerar |
Consideram dever deles comezinho |
Descortinar |
O que ocorre na casa do vizinho. |
|
Se nada logram saber, |
Não se inibem de adivinhar. |
Doutro modo, como poderia quenquer |
O mundo reformar? |
|
De resto, quando alguém diversamente |
Age do que age toda a gente, |
|
Mesmo na vida íntima do lar, |
A atenção de todos há-de concitar. |
|
Em contrapartida, quem |
As práticas em uso propugnar |
A ninguém há-de importar, |
A ninguém. |
|
|
1472 – Novo |
|
Há um novo despertador |
Completamente |
Silente. |
Aumenta de luz e cor |
Até que acorda qualquer um, |
Mesmo o dorminhoco vela: |
|
Tenho um: |
- Chama-se janela! |
|
|
1473 – Crendice |
|
Importa ver mais além |
Da crendice o risco singular: |
Quem acredita em bruxas tem |
Tendência para as queimar. |
|
|
1474 – Saber |
|
Os que cuidam saber tudo |
São irritantes o suficiente |
Para os que, como nós, a miúdo, |
Sabem tudo realmente… |
|
|
1475 – Algo |
|
Se algo amar, |
Dê-lhe liberdade. |
Se voltar, |
Sempre seu há-de então ser de verdade. |
|
Se, contudo, simplesmente, |
Se lhe sentar no sofá, |
Tudo esbodegar constantemente, |
Lhe comer a comida que houver lá, |
|
Lhe utilizar o telefone |
E lhe gastar o dinheiro, |
Sem que nada melhor o abone |
Como parceiro, |
Então tudo conduz |
À conclusão que lhe não cobiço: |
|
- Ou deu-o à luz |
Ou casou com isso! |
|
|
1476 – Apenas |
|
Apenas após abatida |
A derradeira |
Fruteira, |
Apenas após, de seguida, |
Envenenado |
O último rio navegado, |
Apenas após o derradeiro peixe |
Apanhado |
Na última praia que proliferá-lo deixe, |
|
- Apenas então, sumido já tudo quanto se consome, |
Descobriremos que o dinheiro não se come. |
|
|
1477 – Multidão |
|
No futebol, no atletismo, |
A multidão grita, ruge e bebe: |
Escapa temporariamente ao cataclismo |
Das fábricas, dos matadoiros, |
Do armazém, de aparar jardim e sebe, |
Das garagens, |
Do curtume dos coiros, |
Das lavagens… |
|
Amanhã estarão cativos |
Mas agora ei-los livres e plenos, |
Bêbedos de liberdade. |
Não lembram, esquivos, |
A escravatura das barracas nos terrenos, |
A pobreza, a necessidade… |
|
Não há escravidão de assistência |
Social, |
Nem urgência |
De hospital |
Nem há bichas de espera |
Onde a morte desembaraçada opera. |
|
A colectividade pode ficar segura |
Até o pobre um dia aprender |
A fabricar alguma bomba atómica em miniatura |
Numa cave qualquer. |
|
|
1478 – Problema |
|
O problema com a bebida |
É que, se ocorre algo de mau, |
Bebe-se para esquecer. |
Se o que é bom é que convida, |
Então há-de ser |
Para celebrar. |
Quando, solitária a veiga e o calhau, |
Nada ocorre no lugar, |
Então tem de se beber |
Para qualquer coisa acontecer. |
|
- Uma vez o círculo fechado, |
Não há fuga para nenhum lado. |
|
|
1479 – Sangue |
|
O problema de qualquer renovo |
É aquilo a que se inclina: |
O que chamam sangue novo |
Não é normalmente mais que velha urina. |
|
|
1480 – Obrigação |
|
Quem não vê quão menor |
É o sentido de obrigação que resta |
Ao que recebe favor |
Do que ao que o presta? |
|
|
1481 – Educado |
|
Que o sonho dum povo bem educado conceda |
Três gerações ao que hoje grunhe de borco: |
Não há como talhar fato de seda |
Com orelha de porco. |
|
|
1482 – Resoluções |
|
Resoluções de Ano Novo, |
De mistura com os preitos, |
Nunca tu nem eu aprovo |
Quando já somos perfeitos. |
|
|
1483 – Família |
|
Ter uma família, a pista |
De bólim, peça por peça, |
É ter, a ver quem resista, |
Instalada na cabeça. |
|
|
1484 – Sentido |
|
Creio em dar e receber. |
Se o sentido não alcanças: |
Dou ordens como quenquer, |
Recebem-nas as crianças… |
|
|
1485 – Gato |
|
Será que te não deleita |
Que ao Mundo, de pólo a pólo, |
Com relva, sol, vida afeita, |
- Prefira o gato o teu colo? |
|
|
1486 – Gagueje |
|
Há quem gagueje a escrever, |
Que escrever a gaguejar |
É mais comum a quenquer, |
Mais comum do que a falar. |
|
|
1487 – Muitos |
|
Muitos, quando lhes dá jeito, |
Vão por nós algo fazer, |
Mas aquilo a que ando atreito |
É mesmo encontrar quenquer |
Disposto a ajudar, após, |
Quando nos der jeito a nós. |
|
|
1488 – Dote |
|
O amor não é comprado |
Nem vendido, |
Mas o dote é o pagamento adiantado |
Dum marido. |
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1489 – Churrasco |
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Quando no churrasco actuas |
Podes comer uns bocados |
De salsichas quase cruas |
Com os dedos bem passados! |
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1490 – Senso |
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O homem, sem lógica em mente, |
Em qualquer hotel que apraza |
Quer doméstico ambiente |
E quer um hotel em casa. |
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1491 – Tigela |
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Tigela de gelatina, |
Quando cai donde eu a encaixo, |
Cai sempre, maldita sina, |
Cai virada para baixo! |
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1492 – Menor |
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Quanto menor a importância |
Que tiver na empresa em alta |
Mais notória a intolerância |
Para seu atraso ou falta. |
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1493 – Aumento |
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O aumento salarial |
Leva-lhe a aumentar o imposto |
Mas não aumenta, com tal, |
O que ao fim lhe em casa é posto. |
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1494 – Apólice |
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A apólice de seguro |
Cobre tudo, ao que parece, |
Para me livrar de apuro, |
Menos tudo o que acontece. |
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1495 – Sair |
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Se sai tarde da função, |
Quem vai reparar em si? |
Se sair cedo, o patrão |
À porta a esperá-lo vi! |
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1496 – Terras |
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O bom das terras pequenas |
É, se não lembro o que fiz, |
Que alguém sempre, entre as empenas, |
O lembrará de raiz. |
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1497 – Drogas |
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As drogas nelas contêm |
Um escape às agonias. |
Um outro rumo há, porém,: |
O do trabalho que avias. |
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1498 – Simplicidade |
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Simplicidade, não, |
Que repugna! |
Alguém com despreocupação |
Fruir dos próprios direitos, |
Sem suor nem grande pugna, |
Que pretensão! |
O bom cidadão |
Deve sofrer a grosseria |
Dos conterrâneos dele eleitos, |
Sujeitar-se a ver malograda a alegria, |
A legítima expectativa, |
Pelos defeitos |
Da comitiva. |
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Aguarde a própria vez, |
A ocasião |
De tirar desforço de viés, |
E lese então |
Triunfalmente |
A comodidade a toda a gente! |
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Que festa no mundo inteiro |
Por tal ideal cimeiro! |
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1499 – Médico |
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É bom médico a doença |
A quem mais damos ouvidos. |
Ao saber e à bem-querença, |
Ao nos sentirmos feridos, |
Promessas sempre faremos, |
- Mas à dor obedecemos. |
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1500 – Óptimo |
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Sou óptimo em discussão! |
Perguntem a meus amigos, |
Aos poucos que restarão. |
Sou capaz, sem dar castigos, |
De ganhar qualquer disputa |
Sobre qualquer tema em luta. |
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As pessoas sabem disto, |
Evitam-me, então, nas festas. |
Vêem quanto além resisto |
De qualquer polir de arestas. |
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Do respeito com que lidam |
Até já nem me convidam!… |
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1501 – Conforta |
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No íntimo de cada qual |
Há sempre uma zona obscura |
Que se conforta ao sinal |
De que no mundo perdura |
Muito maior canalhice |
Do que a que nele alguém visse. |
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E a pequenez devém grande |
Na ilusão que nos comande. |
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1502 – Mentira |
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Duma mentira o segredo |
É contar aos que nos fitem |
Qualquer coisa, mesmo a medo, |
Mas em que eles acreditem. |
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1503 – Irritada |
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Quando era nova ficava |
Irritada cada vez |
Que qualquer homem olhava |
Para si, mesmo de viés. |
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Quando deixaram de olhar |
Começou a sentir falta |
Daquilo: de agora errar |
Sempre fora da ribalta. |
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1504 – Repositório |
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Repositório de sandices, |
Sacral embora como um adro, |
Nenhum objecto ouve mais parvoíces |
Do que um quadro. |
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1505 – Mesa |
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De mesa um empregado |
Incapaz de sorrir contente |
Deveria ter sido gerado |
Cliente. |
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1506 – Feliz |
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Se feliz não for alguém, |
Não é com cremes nem cirurgia |
Que o problema que tem |
Resolve algum dia. |
1507 – Tipos |
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Dois tipos de homens preponderam |
Quando as vinhas se enxofrem: |
Os que a História geram |
E os que a sofrem. |
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1508 – Dinheiro |
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O dinheiro fala e condiz |
Com sonhos meus. |
Mas tudo o que o meu diz |
É adeus. |
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1509 – Crise |
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A crise do poder de alguém, |
Da ideia de que é importante, |
É deveras hilariante |
Também. |
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O mundo não pára |
Nem um segundo, |
Nem quando Einstein findara, |
Nem quando Hitler enterrou o mundo. |
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Tudo, pois, continua. |
Que é isto de alguém ser mais, |
De ter mais prédios na rua |
De rostos especiais?… |
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Adiante, adiante… |
- Muito pouco é realmente importante. |
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1510 – Barriga |
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Quem tem a barriga cheia |
Não acorre a revoltar a rua |
E quão mais cheia a barriga se lhe alteia |
Menos com tal pendor ele pactua. |
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1511 – Prova |
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A prova maior |
De extraterrestres inteligentes nalgum lugar |
Termos de supor |
É a de nunca tentarem connosco contactar. |
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1512 – Arqueólogo |
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Se ao arqueólogo a carreira |
Definas, |
Ela inteira |
Jaz em ruínas. |
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1513 – Concurso |
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Um concurso é actividade |
Em que a pública entidade |
Obra pública atribui |
A amigos e familiares, |
De modo que tudo flui |
Sem percalços nem azares, |
Muito inteligentemente, |
De forma legal e transparente… |
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1514 – Abdicam |
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De tudo abdicm os humanos |
Por algo que é quase nada, |
Da felicidade, do amor, dos desenganos, |
Da alegria, da paz, da vida airada, |
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De romance, de excitação, |
De serenidade, de saúde até… |
De tudo abdicam pelo que apenas é |
- Terem razão! |
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1515 – Infantil |
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Afinal andam ainda nossos credos |
Ao nível infantil do jogo da apanha: |
- Quem morrer com mais brinquedos, |
Ganha! |
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1516 – Célebre |
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Célebre a ser se persuade |
Quem mais procura carinho. |
Depois, a celebridade |
Faz dele um homem sozinho. |
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1517 – Publicidades |
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Quantas publicidades pecas |
Vendem falsos luminares, |
Farmacêuticos carecas |
A impingir restauradores capilares! |
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1518 – Prostrados |
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Antes de ficarem prostrados pela morte, |
Dêem-me uma oportunidade. |
Quem ao defunto cuidou da sorte |
Quando vivo, do lado aquém da eternidade? |
Quem lhe deu de comer |
E o tecto de o acolher? |
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Quantos dos chorões de agora |
- Não estiveram apenas à espera desta hora? |
Naquela altura, |
Não tinham paciência |
Nem lhe toleravam a figura: |
O defunto, quando vivo, era uma indecência. |
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De repente transforma-se em cadáver, de repente, |
E tudo são lágrimas imediatamente, |
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Panegíricos e lamentações, |
Não há nada que não façam pelo morto, os bufões! |
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Pois bem, entrego-vos o defunto, |
Divirtam-se com ele. |
O cadáver dum ausente |
Não é meu assunto: |
Prefiro seguir-lhe o colear discreto de serpente |
Depois de haver aqui largado a pele. |
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1519 – Terceiro |
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Sempre que alguém afirmar |
Que quatro dois mais dois são |
E um ignaro retrucar |
Que dois e dois seis serão, |
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Há-de um terceiro surgir |
Que, pela moderação, |
Acaba por concluir |
Que cinco, enfim, somarão… |
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1520 – Modos |
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Há dois modos de encontrar |
Aquilo que se perdeu: |
Por acaso e a preguejar. |
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Virando a casa do avesso, |
O inferno levando ao céu, |
Demora mas não esqueço, |
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É muito satisfatório: |
Procurar desesperado |
É um gosto premonitório |
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De intérmina expectativa |
Ter em mim, tenso, criado |
Que se alivia e se esquiva |
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Mui maravilhosamente |
Quando algo que foi perdido |
Encontrado é finalmente. |
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Isto até reforça a ideia |
De que a vida que hei vivido |
Controlo na densa teia. |
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Sei muito bem que é mentira. |
Mas o gosto, quem mo tira? |
1521 – Maioria |
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Quem não goste que o despertem há, |
Maioria a preferir dormir. |
Está o mundo do teor que está |
De sonâmbulos tudo cheio ir. |
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1522 – Problema |
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O problema da verdade |
É que a verdade é implacável, |
Não dá tréguas quando invade, |
Sempre ataca, interminável, |
A mostrar a realidade |
Por todo o lado fiável. |
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Apanhar tanta pancada |
Pode ser uma maçada… |
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1523 – Guerra |
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Quando a guerra rebentar, |
Ninguém dorme, o olhar desperto, |
Ou dormirá no deserto, |
De vez, quando ela acabar. |
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1524 – Espelho |
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Perante o espelho da vida, |
Cospem na cara que foram |
A escarradela vivida |
Do que são os que se goram. |
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1525 – Cabeças |
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Uma regra do poder |
Às cabeças é cortá-las |
Antes de pensar quenquer, |
Ou é tarde para as balas. |
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1526 – Polícias |
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Os polícias não são deus, |
São dele representantes. |
Igrejas e corifeus |
Segunda linha são antes. |
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1527 – Mandam |
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Os que mandam nunca param |
Nem dos absurdos diante: |
A razão nos anteparam, |
Nem consciência há doravante. |
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1528 – Homens |
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Num mundo de homens, o termo |
Dum homem tem bem mais peso |
Que o duma mulher enfermo. |
E, se ela insiste no vezo |
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E ficar aborrecida |
Por não crerem nunca nela, |
Pois em menos caso é tida: |
- É uma emotiva sequela! |
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1529 – Andam |
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Os jovens andam em grupos, |
Os adultos era aos pares, |
Os velhos, fora os apupos, |
Sós andarão, singulares. |
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1530 – Jogos |
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Três jogos de futebol |
Se um homem vir de seguida |
Deve ser posto no rol |
Oficial de morto em vida. |
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1531 – Queremos |
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Nós queremos é ser ricos, |
Admirados e comer |
Que nem porcos, sem fanicos, |
Tais cobras esguios ser, |
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A pedir-nos ter crianças |
Os autógrafos da fama, |
Remédios ter com que alcanças |
Calma e de espírito a chama, |
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Cantar músicas na moda, |
Ser, para a imprensa, brilhante… |
- Na falta disto é que a boda |
De ser amado é bastante. |
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1532 – Comunica |
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A ideia de que Deus |
Comunica connosco directamente |
Viola a crença dos ateus |
Praticamente, |
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Como quase todas as crenças religiosas, |
Em todas as idades, |
Mantidas, orgulhosas, |
Em nossas comunidades. |
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Tanto mentem por mor do poder: |
- Não escapa um Deus sequer! |
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1533 – Espontâneos |
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Espontâneos retomaram |
Por tu qualquer tratamento |
E mais ambos se ligaram |
Como um sarmento a um sarmento. |
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Então, a partir dali, |
Entendem-se totalmente, |
Mais que um ao outro, entre si,: |
Gesto em esboço é semente, |
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Nem vale a pena acabar, |
E as palavras mais banais |
Findar de pronunciar |
Não é preciso jamais. |
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Um silêncio adorável, |
Adoravelmente enchido |
Principia a ser viável. |
Deixaram, neste sentido, |
|
De ser dois, gradualmente: |
Já são um, sempre crescente. |