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um número aleatório entre 1285 e 1394 inclusive.
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o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
1285 – Já nos trovários me encontro
Já nos trovários me encontro
Em todas as dimensões,
A tentar o reencontro
Para além do desencontro
Que encontro nos meus baldões.
Serão trovários de amor,
Das horas sabedoria,
Das profundezas o ardor,
A luz que houver na utopia.
E assim, por todos os lados
Junto no suor do canto
Os meus dispersos bocados,
Rumo lento a uma inteireza
Por que em mim tudo, enfim, reza.
1286 – Adquires |
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Os mais ricos materiais |
Adquires de construção, |
Mármores só pelo chão, |
De oiro brilhos nos beirais, |
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Quando pá e picareta |
Afinal te bastariam: |
Sete palmos cavariam |
Da terra que mais te afecta. |
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Casa de quinhentos pés |
Edificas sumptuosa |
Esquecido de quem és, |
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Esquecendo a tenebrosa |
Que ao fim te acolhe de viés: |
O caixão que é tua glosa. |
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1287 – Inimigo |
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Um amigo traiçoeiro |
Inimigo é mais danoso. |
A religião, primeiro, |
E a virtude após, cimeiro |
Dano sofrem tenebroso |
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Mais de hipócritas que o mal |
Que libertinos, infiéis, |
Lhes causarão, radical, |
Do atropelo nos papéis. |
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Quando aqueles dois esteios |
São de fraude envenenados, |
São da pior maldição meios: |
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Cruéis crimes praticados |
Vão ser deles abençoados. |
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1288 – Intrinsecamente |
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Não basta que as intenções |
Intrinsecamente boas |
Sejam, tal como as acções. |
É preciso que aos balcões |
Pareçam, a gerar loas. |
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Quando for deveras belo |
Todo o teu interior, |
Pelo teu exterior |
Trata então de parecê-lo. |
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É que doutro modo a inveja |
Irá logo enegrecê-lo, |
Ou maldade outra que seja, |
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E então nem anjos vão ver |
O belo que em ti houver. |
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1289 – Desdenha |
|
Nenhum general prudente |
Desdenha dele o inimigo, |
Mesmo se inferior o sente, |
E o médico inteligente |
Não menospreza o perigo |
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Da maleita que tratar, |
Por mais que seja ligeira. |
É o que deves invocar |
Ante a vida à tua beira. |
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Maior há-de ser a glória |
Aos que rasgam tais sentidos |
Quando logram a vitória, |
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E menos pesam sofridos |
Desaires, quando vencidos. |
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1290 – Apressa |
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Um homem esclarecido |
Não se apressa a condenar |
Um vício que é conhecido, |
A imperfeição, o bandido |
Obrigam-no a censurar, |
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Nunca, porém, se enfuria |
Contra aquele que é culpado: |
Suspeita que há luz do dia |
A espreitar em qualquer lado. |
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É sempre a infantilidade, |
A falta de educação, |
Bem como a perversidade |
|
Que naquela ocasião |
A pedra atiram do chão. |
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1291 – Milagre |
|
O milagre da vida só entendemos quando |
Deixamos que aconteça o inatendido aqui. |
O sol todos os dias um momento brando |
Oferta de mudar tudo o que for magoando, |
O calcanhar das horas que a sofrer me vi. |
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Procuramos fingir todos os dias, todos, |
Que nunca percebemos tal momento esquivo, |
Crer que hoje é igual a ontem, que amanhã, se vivo, |
Nada transformará de meu roteiro os modos. |
|
Mas quem presta atenção ao próprio dia acolhe |
Aquele instante mágico a aflorar discreto |
Por entre os mil e um nadas que no ecrã desfolhe. |
|
A força das estrelas, a irromper do tecto, |
Permite-nos milagres pela mão do afecto. |
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1292 – Brecha |
|
Um amor, de água represa, |
Se uma brecha ele encontrar |
Onde entre com inteireza, |
Aos poucos vai, com certeza, |
As paredes rebentar. |
|
Então chegará o momento |
Em que controlar ninguém |
Vai lograr tal movimento |
Que na correnteza advém. |
|
Se desmoronam paredes, |
O amor toma tudo ao colo, |
Pouco importa já o que vedes. |
|
- No aluvião do amor me enrolo, |
Amar é perder controlo. |
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1293 – Droga |
|
Amar é como a droga, no princípio vem |
O êxtase de euforia, de total entrega, |
E no dia seguinte só te mais convém |
Deste balsâmico ar. O vício não é bem, |
Que tudo sob controlo crês na hora cega. |
|
Durante dois minutos sorves o ar do céu, |
Esqueces por três horas, mas a pouco e pouco |
Ao amor te habituas e do que ele deu |
Dependes por inteiro e então ficas louco: |
|
Pensas nele três horas; livre dois minutos, |
Tal e qual um viciado eis-te em febril tremor, |
Pois quem amas, distante, ausente, põe-te em lutos. |
|
Como o adicto se humilha por lograr favor, |
Irás dispor-te a tudo para ter o amor. |
|
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1294 – Importa |
|
Que importa cem mil vezes eu amar na vida, |
Se sempre irei findar em conjuntura ignota? |
O amor pode levar à plenitude haurida |
Como a qualquer inferno sem qualquer guarida, |
Porém de algum lugar requer que eu tome nota. |
|
Aceitá-lo é preciso, que alimento nobre |
Será perene o amor para a vivência nossa. |
Se acaso o recusarmos é de fome, pobre, |
Que morre cada qual, sem que então nunca possa, |
|
Nos ramos carregados da fruteira viva, |
Coragem alcançar para estender a mão |
E os frutos recolher que a frança mostre esquiva. |
|
Quando em busca do amor partirmos, logo então |
Ao nosso encontro o amor nos vem erguer do chão. |
|
|
1295 – Trilhos |
|
Sempre que um homem seguir |
Com plena sinceridade |
Trilhos da fé por onde ir, |
É capaz de a Deus se unir: |
De milagres tudo invade. |
|
Sou católico, judeu, |
Sou maometano, budista: |
Tudo aponta o mesmo céu, |
Deus é o mesmo em qualquer lista. |
|
Embora tenha mil nomes, |
Conforme o tempo e o lugar, |
Igual pão nos mata as fomes. |
|
Escolhe, pois, tu, a par, |
O teu nome de O chamar. |
|
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1296 – Mudar |
|
Posso mudar a cidade, |
Não o poço do lugar. |
Mata a sede que o invade |
O amante, quando lhe agrade, |
Ergue ao lado a porta ao lar, |
|
Em redor do poço cria |
Os filhos que então tiver. |
Se um dos cônjuges desvia, |
Porém, num rumo qualquer, |
|
Não pode o poço segui-lo, |
Nesta terra enraizado, |
Contra os vendavais, tranquilo. |
|
O amor fica abandonado |
Guardando águas do passado. |
|
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1297 – Ensinaram-nos |
|
Ensinaram-nos cuidados |
Mais os mil e um impossíveis: |
Paixões de infância recados |
São meramente risíveis; |
|
Não desvies consagrados |
De seus mistérios incríveis; |
Milagres, não, são passados; |
Ninguém viagens temíveis |
|
Empreende sem saber, |
Afinal, aonde vai… |
- Quebra as regras, tu, quenquer, |
|
E o conceito que te esvai: |
Que mania de explicar |
E ser o que outro aprovar! |
|
|
1298 – Religião |
|
A religião é idolatria |
Quando o que faz é só tentar |
Ter Deus por conta, por magia, |
Tê-lo ao serviço, preso à guia |
Dos rituais que ela rezar. |
|
Nem que por tal venha imolar |
Em honra dele o que melhor |
O povo tenha em seu redor: |
Os filhos sãos de carne e luar. |
|
Apenas, pois, superstição |
Para suster a fera à trela |
É o que tem tal religião. |
|
Repare embora numa estrela, |
À mão só tem de sebo a vela. |
|
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1299 – Menos |
|
As religiões não são um bem, |
Bem menos, pois, de Deus invento. |
Antes são mal que o homem tem |
Sempre inventado, que refém |
Do medo vive, do tormento |
|
De quanto ignora e não domina |
Na natureza, mundo em volta. |
O medo cria um deus à solta |
E a religião que o elimina. |
|
Muito outro mal vem disto ao mundo: |
Ódios e guerras, fanatismos… |
Chacina os povos, infecundo, |
|
Pelo motor dos cataclismos: |
- Não seguem dele os dogmatismos. |
|
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1300 – Inimigo |
|
Da criatividade |
É o inimigo o medo. |
Se o medo nos invade |
Trancamo-nos na idade |
Da criança sem credo |
|
Que não vai desenhar |
Com medo de que todos |
A rir vão acabar |
Dela de quaisquer modos. |
Criar é correr riscos, |
Como a criança brinca: |
Cai, ergue e tira os ciscos… |
|
A vida apenas trinca |
A aposta que se finca. |
|
|
1301 – Dão |
|
É uma destas criaturas |
Que em troca só da soldada, |
Aos outros dão, sem usuras, |
O melhor que lhes apuras, |
O melhor de si, mais nada. |
|
Que se apegarão aos filhos, |
Aos filhos, sim, mas alheios, |
Que choram sobre os sarilhos, |
Sobre as tragédias sem freios. |
|
Que, por cima, se dedicam |
E, quando as mandam embora, |
Que sem serventia ficam, |
|
Ficam ali, com demora, |
Na escada a chorar lá fora. |
|
|
1302 – Mesmas |
|
Sempre ideias repetidas, |
As mesmas palavras, usos. |
Ao lado erguemos das vidas |
Outras vidas que, erigidas, |
Nos dominam, mal contusos. |
|
Iremos até à cova |
Com palavras, com palavras. |
Submetem quem se renova, |
Subjugam todas as lavras. |
|
Pesam toneladas, pesam, |
Na espessura de montanhas, |
Contêm-nos e nos lesam. |
|
Sonho e dor em pedra os ganhas, |
Vida a sério nunca a apanhas. |
|
|
1303 – Falamos |
|
Todos falamos do céu, |
Mas quantos passam no mundo |
Sem ter levantado o véu, |
Sem ter visto, entre o escarcéu, |
O real no que é no fundo? |
|
O nome nos bastaria |
Para lidarmos com ele. |
Ninguém repara no que ia |
Do termo por trás da pele. |
|
Afundamo-nos em restos, |
Em cenários, convenções, |
Palavras, de cinza aprestos. |
|
A mente são convenções |
- E o infindo eram guiões. |
|
|
1304 – Mundo |
|
Nosso mundo não é real, |
Todos vivemos num mundo |
Como o compreendo, afinal, |
Como o explico no sinal, |
Não temos outro mais fundo. |
|
Somos peixes num aquário |
A espreitar o distorcido |
Mundo de além do sumário |
Vidro que o filtra indevido. |
|
Sentimos que ao nosso lado |
Há uma vida outra qualquer |
Sempre à margem de meu fado. |
|
E vamos à cova ter |
Sem por ela dar sequer. |
|
|
1305 – Nunca |
|
Não é nunca individual |
Nossa sensibilidade, |
Antes sempre é universal, |
Desde aqui ao sideral |
Espaço da infinidade. |
|
Basta ferir com um toque |
O nervo que daqui vai |
À Via Láctea que evoque, |
Para transmudar num ai |
|
Noções de tempo e de espaço, |
Como do que trepa ou cai. |
Se de cor um pingo baço |
|
Pinga em água que o reparte |
Igual fica em toda a parte. |
|
|
1306 – Passado |
|
Nosso sonho é não morrer. |
Mesmo se nos esquecemos, |
Passado a vida há-de ter. |
E passado quando houver, |
Então nos agarraremos |
|
Com mais saudades à vida. |
A nossa resignação |
Horas custa, mui dorida, |
Fico de rastos no chão, |
|
De vez alheado e suspenso. |
Esta morte inevitável |
Como a não domo, então penso: |
|
Crio outra forma de vida… |
- É verdadeira ou mentida? |
|
|
1307 – Armas |
|
Que outra coisa armas na vida |
Senão esperar a morte? |
Preocupação desmedida, |
Debalde a arredo em seguida, |
Que a vida tem esta sorte: |
|
É uma constante absorção |
Na morte, sempre fatal. |
Para que nasci então, |
Para ver um bom sinal |
|
E jamais vê-lo depois? |
Para adivinhar um sonho |
E não ter mais arrebóis? |
|
Sinto um mistério medonho, |
Não desvendo o que ali ponho. |
|
|
1308 – Erro |
|
É um erro supor que o homem |
Ocupa um lugar marcado |
No Cosmos onde se somem |
Astros mil que se consomem: |
O homem mora em todo o lado, |
|
Vai ao interior da Terra, |
Trepa ao âmago do Céu, |
Alma que a tudo se aferra, |
Poço sem fundo nem véu, |
|
Obscuridade confusa, |
Às vezes hábito e lei, |
Outras, abjecção que abusa. |
|
|
Desço o poço que me sei, |
Meus mil contrastes serei. |
|
|
1309 – Extraio |
|
Extraio da vida o espanto: |
Ela, cada vez maior, |
Cresce de encanto em encanto. |
Na solidão, entretanto, |
Desaba inteira em fulgor. |
|
Damos o valor a coisas |
E a coisas o retiramos. |
À beira, se atento poisas, |
Vês o tropel de mil ramos |
|
Das florestas da magia |
Caótico e deslumbrado, |
Tombam milénios, se alia |
|
Das estrelas o tornado… |
- E é um assombro em todo o lado! |
|
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1310 – Resumo |
|
Resumo a vida em três linhas, |
Bastam-me dois ou três factos. |
Se era só tal, adivinhas, |
Não suavas estopinhas, |
Já não compensa teus actos. |
|
Vale a vida mais por sonho |
Do que pela realidade. |
Se à superfície me ponho |
É uma frustrada deidade. |
|
Maior é o que suspeitamos |
Que aquilo que conhecemos, |
Faz tonturas quando o olhamos. |
|
As cinco letras da morte |
De mistério têm recorte. |
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1311 – Ouvido |
|
Ponho meu ouvido à escuta, |
À escuta de encontro ao mundo. |
Ouço-me dentro em disputa, |
A surpreender na luta |
O fundamento mais fundo, |
|
O que é que, afinal, me ordena: |
Duas ou três meras normas |
De instinto a que me condena, |
De humano a que talho as formas, |
|
|
E além disto a vaga imensa |
Que não existe, mas clamas |
Que ela tudo o mais dispensa. |
|
- Quem és tu, feito de flamas, |
Quem és tu, como te chamas? |
|
|
1312 – Fale |
|
Fale a lógica, a razão, |
Fale o instinto, a consciência, |
Religioso é sempre o chão |
Que meus passos trilharão |
Ante o fulgor da esplendência. |
|
Mal poderei avançar |
Pelo mundo sem tremer: |
Mundo é Deus a permear, |
Permear tudo e quenquer. |
|
Tudo me é causa de espanto |
E pelo espanto pressinto |
Que, mais além, mais me encanto. |
|
Nas pontas dos pés me pinto, |
Que um sonho imenso me sinto. |
|
|
1313 – Trás |
|
Por trás de mim há uma aurora |
Sôfrega cada vez mais, |
Que me apavora, apavora, |
Frenética, sem demora, |
- Que me exige dor demais. |
|
A harmonia não existe, |
Existe apenas a dor, |
Nem a beleza subsiste, |
Dor nela é o que é de supor. |
|
Deus não existe, portanto, |
A dor é que exerce o império, |
A vida é instante de pranto. |
|
- Mas sou o instante sidéreo |
E ponho o pé no mistério. |
|
|
1314 – Multidão |
|
A multidão nos impele, |
Somos frente, na aparência, |
Dos mortos, a viva pele |
Que, onda a onda, assim revele |
Como empurram com violência. |
|
São esforço doloroso, |
Atrás das mãos, outras mãos, |
Os olhos, de olhar o gozo |
Para a luz abrindo chãos. |
|
Fora o silêncio o pior, |
Que esquecê-los é que é morte, |
Então o esforço é maior. |
|
Da cadeia infinda e forte |
Do elo final sou transporte. |
|
|
1315 – Esfrega |
|
Dia a dia lhe deformam |
As mãos e os olhos lhe aguam |
À mulher da esfrega. E tornam |
Os panos da esfrega, enformam |
Os braços que nela suam. |
|
Com esta molhada de ossos |
E no corpo alguns farrapos, |
Há um fio, dentre os destroços, |
De oiro a luzir entre os trapos. |
|
Teima em se mostrar à tona, |
No lava-loiça a fulgir, |
E a triste velhice abona. |
|
Teima até mesmo ao caixão: |
Reluz sempre lá um clarão. |
|
|
1316 – Chamas |
|
O que chamas de piedade, |
O que de bem apelidas, |
Quem o recebe, em verdade, |
Vê quanto lhe desagrade, |
Morde-te as mãos combalidas. |
|
Tu colas-te ao bem que fazes, |
Rebaixas o que recebe. |
Tudo o que trazes não trazes, |
Que por trás o mal o embebe. |
|
Quem dá pela perfeição, |
A virtude por supor, |
Rouba, afinal, não dá, não. |
|
Desgasta, à falta de amor, |
O que no outro há de melhor. |
|
|
1317 – Impulso |
|
À superfície vivemos |
Do oceano embravecido |
Deste Universo que temos. |
O impulso que nós sofremos |
Vem das camadas de olvido |
|
Mais informes e profundas: |
Todos os antepassados, |
Formas de vida fecundas, |
Seres até só esboçados, |
|
As figuras mutiladas, |
Árvores só de aparência: |
É a terra viva às camadas. |
|
É o Cosmos, por este lado, |
Completo sonho acabado. |
|
|
1318 – Veio |
|
Algum veio nos conduz |
E nos leva até à morte. |
Rodeia-nos como a luz, |
Impele-nos e produz |
O derradeiro transporte. |
|
Não a vemos, à danada, |
Mas ao lado de nós anda, |
Só ela nos talha e fada, |
Estou-lhe nas mãos, comanda. |
|
Desespera e extasia, |
Aturde-nos e escarnece. |
Não existe, que a veria, |
|
Mas se, ao fim, tudo me esquece, |
Só ela existe, parece. |
|
|
1319 – Andam |
|
Aqui não andam só os vivos, |
Os mortos andam na estrada. |
Os que se agitam, esquivos, |
Numa existência de arquivos |
São a terra povoada. |
|
Os mortos, porém, se impõem |
Tal como se vivos foram, |
Tudo ligam e interpõem |
E eternos cá se demoram. |
|
Sob a casa uma outra casa, |
Sob um grito um outro grito, |
Cada pedra, uma outra apraza. |
|
Repito os mortos, aflito, |
E os dias todos os fito. |
|
|
1320 – Entre |
|
Estou entre tuas mãos, |
Todavia não me importas. |
Importam teus corrimãos, |
Sou mesmo tuas demãos, |
És meu tecto e minhas portas. |
|
Porque tu, que não existes, |
És minha carne e meu osso, |
Não me livro de que enquistes |
Em tudo o que sou e posso. |
|
Não existes e dominas, |
Não existes e torturas |
E para ti tudo inclinas… |
|
Surdas são tuas figuras, |
Mudo, és tu que me inauguras. |
|
|
1321 – Mãos |
|
Estou em mãos que não vejo, |
Crias-me, mas não existes. |
Sei que estás aí, sem pejo, |
Vivo no secreto brejo, |
E que sou teu sempre insistes. |
|
Tanto faz esfacelar-me |
Contra este muro compacto |
Como quisto conservar-me |
Muito indiferente ao facto. |
|
Aí, vivo como a vida, |
Estás tu. Não me conheces |
Nem te conheço na lida. |
|
Não tens nome que confesses, |
Mas vou-te nas mãos refeces. |
|
|
1322 – Oceano |
|
O grande oceano, a torrente, |
Este mar de mãos fluídas |
Que aqui me envolve, fremente, |
Inesgotável, silente, |
Que medo em noites sumidas! |
|
Este deus faz o que quer, |
Não o que eu quero que faça, |
Não é imagem que eu lhe der |
Nem semelhanças me traça. |
|
Não me ouve, não, nem me atende, |
Não o posso desviar |
Da marcha, a preces que entende. |
|
E a justiça que empregar |
Sei lá bem, é singular. |
|
|
1323 – Árvores |
|
Nós somos árvores todos, |
Há que tempos que deitamos |
Por dentro flor de mil modos. |
Tivemos sempre os engodos |
De árvores que bracejamos |
|
Para o interior do tronco |
Rameiras e mais rameiras, |
Das ventanias ao ronco, |
Fora com cascas ligeiras. |
|
Foi por dentro que crescemos, |
Que só dentro há que crescer |
Até que à morte cheguemos. |
|
Mesmo as mais frustes que houver |
Enramam dentro em quenquer. |
|
|
1324 – Acuso |
|
De me haver comprometido |
Te acuso com o Universo, |
De me sentir compelido |
A não ser infame arguido, |
Ao remorso mal converso. |
|
E de me impedir o instinto, |
Criado tendo a consciência |
A ver se minto ou não minto |
À procura de evidência. |
|
E te acuso de sozinho, |
Com este peso, ao capricho, |
Me largares no caminho. |
|
Te acuso de ali no lixo |
Me não deixares ser bicho. |
|
|
1325 – igual |
|
Da profundeza, igual ânsia, |
Da funda dor, igual grito… |
Que fundura na constância |
De alicerces de pregnância |
A pregar-me ao infinito! |
|
Não és nada no real, |
Sombra de fumo anda viva |
Que em nós avança, fatal, |
Nada entrava e nos cativa. |
|
Tenho de te caminhar |
Por força, em cego destino, |
Que não entendo, ao calhar. |
|
Se não és, sina madrasta, |
Que é que magoa e me arrasta? |
|
|
1326 – Força |
|
A força cega me impele, |
Queira ou não queira, levado |
Para um fim que me compele |
Sou que a mim me eriça a pele, |
Que a não entendo, açulado. |
|
Caí-lhe nas mãos, caí, |
Na energia que me envolve, |
Cujo nome nunca li, |
Que a falar se não resolve. |
|
Há instantes em que me toca, |
Debato-me, ouço-lhe os passos, |
Se grito, como sufoca! |
|
Da vida e da morte os traços |
São da força infinda abraços. |
|
|
1327 – Responsáveis |
|
Responsáveis do porvir |
Somos nós, a humanidade, |
Sempre em frente tudo a ir, |
Não um messias por vir, |
Não um Deus que nos invade. |
|
Sem nossa contribuição |
Nenhum deus põe nada em curso, |
Que quem fez a criação |
Fê-la em nós tendo percurso. |
|
O porvir a nós pertence, |
Com toda apropriedade, |
Não a Deus, que não convence. |
|
A Deus também, mas no jeito |
De o talhar eu a preceito. |
|
|
1328 – Escravos |
|
Os escravos compreenderam |
Que em potências mundiais |
Não há coração, sorveram |
Os lucros que bem quiseram, |
Indemnes a gritos e ais. |
|
Passaram a agir políticos |
Cada vez mais violentos |
Para tentarem, graníticos, |
Quebrar de orgulho os intentos, |
|
À espera que o opressor |
Algum dia abrira os olhos. |
Sonham-no a se contrapor |
|
Da liberdade aos abrolhos, |
Mas quem tira ao povo escolhos? |
|
|
1329 – Avestruz |
|
Há muita avestruz que enterra |
A cabeça pela areia |
E foge de quanto a aterra, |
De novo aos templos se aferra |
De que há muito e bem se alheia. |
|
Retorna aos idos da infância, |
Religião emocional |
Sem história, desviância |
Intimista germinal. |
|
Crença descomprometida |
Só na aparência consola, |
Faz que tudo nos elida. |
|
Desumana sempre imola |
Quem se lhe droga na esmola. |
|
|
1330 – Sádicos |
|
Hábeis e sádicos há |
Que se aproveitam das crises |
Que sempre, sempre haverá |
Para o negócio que dá |
Do sangue dos infelizes, |
|
Mesmo que sob o disfarce |
Sacrílego de invocar |
Deus, nem que o nome se esgarce |
De vez no maldito altar. |
|
Têm logo conseguido |
Fortunas acumular, |
Impunes, de peito erguido. |
|
|
Vento em popa, novas seitas |
Singram no mar das maleitas. |
|
|
1331 – Ciclópica |
|
Na ciclópica mudança |
Que o mundo sofre hoje em dia, |
Muitos há que não alcança |
A aposta ali da esperança |
Que nos fraternizaria, |
|
E em vez de teimosamente |
Conformes agir com ela, |
Deixam-se, penosamente, |
Ir do desespero à trela. |
|
Convertem-se em assustados |
E perigosos profetas |
Da desgraça destes fados. |
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Estéreis, deles as setas |
Acabam de vez sem metas. |
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1332 – Sinais |
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Se já soubéramos ler |
Dos tempos os sinais graves! |
Dos saberes é o saber, |
A sabedoria a ter |
Que ao porvir oferta chaves. |
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Já veríamos que a História |
Anda animada por dentro, |
Desde tempos sem memória, |
Daquele sopro onde eu entro, |
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Salvador, libertador |
E de raiz solidária |
Que nada em causa há-de pôr, |
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Do poder nem teia vária |
Nem a morte perdulária. |
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1333 – Resistir |
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Resistir à tentação |
Da riqueza acumulada |
Do mundo Norte, patrão |
Do mais mundo em servidão |
Com a vida estrangulada… |
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Dinheiro escravizador, |
Em deus sempre disfarçado, |
Um diabo enganador |
Que trai quanto houver jurado, |
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Promete felicidade |
E mais produz infelizes, |
Diz vida e é insanidade. |
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De bem-estar tem matizes: |
- São da desgraça as matrizes! |
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1334 – Impôs |
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Este é o tempo em que o dinheiro |
Se impôs mesmo à maior parte |
Como absoluto e primeiro, |
Ele é mesmo o deus cimeiro |
A que presta culto aparte |
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Toda a gente, mesmo igrejas, |
Em particular as seitas |
Que se morderão de invejas, |
Afrontadas de despeitas, |
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Se outra ao lado sacar mais. |
Não vêem que é um deus-diabo |
Que satisfeito jamais |
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Das vidas, no menoscabo, |
Ficará de que der cabo. |
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1335 – Informação |
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Informação há que baste, |
Nosso défice é da prática |
Que o dia-a-dia desbaste |
No rumo que nele engaste |
A concepção emblemática. |
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Sabemos bem o caminho, |
Falta, porém, percorrê-lo, |
Desafio comezinho: |
- Sei o que devo, é fazê-lo! |
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Fazer a humanização, |
Sermos homens a valer, |
Erguidos de vez do chão. |
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- Do selvagem que é quenquer |
Talhar o homem e a mulher. |
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1336 – Trilhos |
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Como os mais trilhos históricos, |
A nossa humanização, |
Após uns trovões eufóricos, |
Tem recuos meteóricos, |
Desânimo, estagnação |
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E obstruções de todo o tipo |
Que não saberemos nunca |
Se é do que não antecipo, |
Se de quanto o chão nos junca. |
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Estão, porém, sempre aí, |
A gritar que o animal |
De que em segredo fugi |
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Às boas nunca, afinal, |
Cede ao homem o bornal. |
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1337 – Distraída |
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Distraída, inconsciente |
De nós vive a maior parte |
Da criação permanente |
Que somos humanamente, |
Inacabados destarte. |
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Somos de vez imperfeitos, |
Em perene desafio, |
De inadequados trejeitos |
No mais turbulento rio. |
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Daí recuos e atrasos, |
De todos nós para mal, |
Nunca cumprimos os prazos, |
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Que esquivo é nosso sinal |
No equilíbrio sideral! |
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1338 – Pobres |
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Os pobres do mundo, agora |
Perderam as ilusões |
Com que os ricos, vida fora, |
Oprimidos com demora |
Os prenderam nos porões. |
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Nem nas igrejas cristãs |
De moldes tradicionais |
Acreditam que amanhãs |
Possam amanhecer mais. |
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Das novas igrejas-seitas |
Alguns se deixam levar |
Sem do pego ter suspeitas… |
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- Mas, não há-de demorar, |
Até disto hão-de acordar. |
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1339 – Ricos |
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Ricos não salvam ninguém, |
Bem como a ninguém libertam. |
À rédea solta, porém, |
Empobrecem logo além |
Povos, gentes que despertam. |
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Não têm misericórdia |
Nem sentimentos humanos. |
São os monstros da discórdia |
Cujo projecto de enganos |
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É de explorar, sempre igual, |
Indivíduos sem defesa, |
Via deles natural: |
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- É matar que o rico preza, |
A nós como à natureza. |
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1340 – Gente |
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Que é que nos deve afligir? |
É ter gente de primeira, |
De segunda sem porvir, |
De quarta a se escapulir |
Atrás da que é de terceira. |
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É de haver mundos que tais. |
E condicionar projectos, |
Escolhas, vias reais |
A acabar com tais trajectos. |
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Porque tudo o que eu fizer, |
Se não contribuir a sério |
A um mundo outro que vier, |
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Cúmplice é do deus-minério: |
- Crime sou de seu império. |
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1341 – Idolatria |
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Por trás da desigualdade |
Sempre anda um ídolo-deus, |
Idolatria que invade, |
Anti-deus que a iniquidade |
Crê que é verdade dos céus. |
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Anti-deus que é semelhante |
Ao mítico deus-serpente |
No Éden a levar por diante |
Publicidade que mente. |
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Faz de nós gato-sapato, |
Deixando-nos nus, de rastos, |
Com mil coisas a recato, |
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Sem, à mesa, irmãos, por bastos |
Que sejam nossos repastos. |
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1342 – Doença |
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É doença a religião |
Do foro psíquico acaso, |
Diabólica possessão |
Que o primitivo cristão |
A nu punha, caso a caso. |
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Fanatismos religiosos |
Levam a comportamentos |
Desumanos tão gravosos |
Que do demo são fermentos. |
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Autocrucificações |
Assassinatos, razias… |
Obedecem a sermões |
|
Com tão demenciais manias |
Que reis do mundo os crerias! |
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1343 – Rojar-se |
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Não é de religião |
Que a humanidade precisa, |
Mesmo se, ao rojar-se ao chão |
Quando dói até mais não, |
Aquela dor suaviza. |
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Do que todos precisamos |
Será de misericórdia, |
Do perdão que nos não damos, |
Da inatingível concórdia, |
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De fraternidade em acto, |
Companhia solidária, |
Da comunhão onde acato, |
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- De amor, a pedra primária |
De qualquer vida diária. |
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1344 – Sector |
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Sector onde os excuídos, |
Do Sul tal como do Norte, |
Mais a cara, convencidos, |
Dão é nos ritos vividos |
Duma religião à sorte. |
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Não como protagonistas, |
Como meros figurantes |
Sem vez nem voz nas revistas |
Onde outros brilham impantes, |
|
Minoria espetalhona, |
Clero e outros sacerdotes |
Que ali vogam sempre à tona |
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E dali tiram os dotes: |
Poder e oiro aos pacotes. |
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1345 – Criou |
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Os deuses criou o medo, |
Criou as religiões. |
A miséria humana o credo |
Alimentou de bem cedo, |
Dele com os aleijões. |
|
Quanto mais experiência |
De insegurança, incerteza |
De amanhã quanto à vivência, |
À saúde e ao que se preza, |
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Como quanto ao bem-estar |
A que quenquer tem direito, |
Mais garantido há-de estar |
|
Que os templos e os santuários |
Pejados fiquem de otários. |
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1346 – Rua |
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Foi sair para a rua da poesia a festa, |
Foi tomar parte ali noutro qualquer combate. |
Não se assusta o poeta ao lhe pregar na testa |
A vida de rebelde o vão labéu que empesta, |
Que insurrecta é a poesia ou então é um dislate. |
|
Não se ofende o poeta, subversivo acaso |
O apodem no conjunto da rotina diária. |
É que a vida ultrapassa a conjuntura, a prazo, |
Novo código há sempre para uma alma viária. |
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Salta de todo o lado a sementeira viva, |
Exóticas são sempre mil ideias novas, |
Aguarda a vida inteira uma mudança esquiva. |
|
Com entusiasmo vivo, a saltitar nas covas, |
A insurreccional alva que me traga as novas. |
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1347 – Germes |
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Por que é que na mediania |
Dos homens a maior parte |
Se embaraça dia a dia, |
Insuportável razia |
Dos germes que nela acarte? |
|
Porque à personalidade |
Preferiram assustados, |
Uma impersonalidade |
Ante sofrimentos grados |
|
Que a Revelação impõe, |
Na infantil maga fragrância |
Que um mundo outro se propõe. |
|
Amar, solto na distância, |
Sem reservas, só na infância. |
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1348 – Arte |
|
Arte não se preocupa |
Com o homem, mas com a imagem. |
Ora, a imagem mais ocupa, |
Muito mais, quando se agrupa, |
Que o homem de que é mensagem. |
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Que o homem sendo maior, |
Só pode ser engendrada |
Num movimento de alvor, |
De parir a madrugada. |
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E que a mosca em elefante |
Transmude, na alacridade |
Do infindo entrevisto adiante. |
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Anda atrasada a verdade, |
Vai ser outra a Humanidade. |
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1349 – Antigo |
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Ao povo antigo o disciplina a idade, a História, |
O fogo velho amodorrado arde profundo, |
Nele a emoção jamais explode com a escória |
Das erupções dalgum vulcão de algo em memória, |
Nem a violência manifesta, já infecundo. |
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Numa morada a abarrotar, o sentimento |
De cada um dos habitantes dominado |
Terá de ser, como escondido do ódio o vento |
E até o amor será segredo bem guardado, |
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Senão a casa por inteiro é destruída. |
E doravante eis a parábola a viver: |
A inimizade, a inveja, a raiva reprimida, |
|
Tudo encerrado nele próprio tem de ser |
Ou o atacante e o atacado irão morrer. |
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1350 – Olhos |
|
Quando os olhos tu fechares |
Pela derradeira vez, |
Logo, sem tu reparares, |
Se abrem rumo a novos ares |
Sem que o pressintas talvez. |
|
Então teu primeiro instante |
Feito é de incredulidade, |
Qualquer que seja, perante |
Isto, a fé que te persuade. |
|
Duvida o mais firme crente; |
Na mais nocturna descrença |
Mora a espera impenitente. |
|
Fé comum é só o suor, |
E ante o Além é tudo actor. |
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1351 – Obriga |
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Quem se obriga à privação |
Para colher elogio |
Não merece nunca, não, |
O elogio que lhe dão, |
É um vaidoso, desconfio, |
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Pior que o pior dos devassos. |
O sábio jejua apenas |
Rumo a si mesmo a dar passos, |
Testemunha a sós das penas. |
|
Se te privas, não operes |
Por ser conforme a uma norma, |
Fuga ao castigo que esperes, |
|
Mérito que tudo informa… |
- Que isto sordidez conforma. |
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1352 – Mago |
|
Por um mago devotado |
Cem procuram o poder, |
São a intriga, o conjurado, |
Ditarão por todo o lado |
Como vestir, que comer, |
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Como arrotar e tossir, |
Como chorar, espirrar, |
Com que fórmula ganir |
E que mulher esposar… |
|
Fazem viver no terror |
Todos, grandes e pequenos, |
Por impiedade, impudor… |
|
- Todos reduzindo a menos, |
Seu tamanho inflam, serenos. |
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1353 – Tempo |
|
Seja lá o tempo o que for, |
A versão ajuizada |
De que é linear pendor, |
Certo e de fatal teor, |
Para o porvir caminhada |
|
De antanho pelo presente, |
É só fracção da verdade, |
Vê-o quem o experimente: |
Dum dia a velocidade |
|
Ora é um mês, ora é um minuto. |
Todo o tempo é variável, |
É o que corro quando o escuto. |
|
Nenhum tempo hoje é fiável, |
Que outros tempos cruza, instável. |
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1354 – Eficaz |
|
Como pode eficaz ser a maior mentira! |
Nunca o homem comum a suspeitar se atreve |
De que alguém do poder tenha um impulso de ira, |
Quantas pulsões horrendas nele próprio vira, |
Todo o negror que sente que traí-lo deve. |
|
Nem mesmo a diferença de ser muito mais |
Eficiente quem qualquer poder detém |
Ao realizar negruras, camuflar sinais, |
O leva a suspeitar, como afinal convém. |
|
É que, além da cegueira, não há quem capaz |
Se sinta de jurar pela inocência inteira |
Dele próprio em quanto vida fora faz. |
|
Pois somos todos nós, queira-se ou não se queira, |
Somos todos culpados de qualquer maneira. |
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1355 – Fardo |
|
De modo simples viver |
É tirar o fardo à vida, |
Relações empreender, |
Desembaraçado crer, |
Directo sempre e à medida, |
|
No vector de cada dia: |
Naquilo que consumimos, |
No labor que me anuncia, |
Nos laços de que fruímos, |
|
Pontes com a Natureza, |
No abraço ao Cosmos inteiro |
E ao que a Humanidade preza… |
|
- Fora, do simples me abeiro, |
Dentro, rico me joeiro. |
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1356 – Crime |
|
O crime de ser homem tem sanções impostas, |
Castigos tão horrendos que será loucura |
Pretender ver ali as divinais apostas, |
Qualquer plano sapiente além de quanto gostas, |
Em que a benevolência pela dor se apura. |
|
Nós somos engendrados (e quem tal consente?), |
Arremessado grito no Universo estranho, |
Com a sentença escrita nesta mão que mente, |
Impotente à partida para o meu desenho. |
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Ora um cancro devora minhas vãs entranhas, |
Um fanático corta-me a servil cabeça, |
Ora um louco atropela-me a imitar façanhas… |
|
- Não há comutação desta fatal sentença, |
Há mero adiamento até que o tempo vença. |
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1357 – Primitiva |
|
A mais primitiva luta, |
Luta pela identidade, |
No ser se centra em disputa, |
No ser fraco que desfruta, |
Na vulnerabilidade. |
|
Requer tempo, educação, |
Até o Eu compreender: |
- Não pode sobreviver |
Sem o Tu em comunhão |
|
E então o Eu colectivo, |
A tribo, a nação, o Estado, |
Mais requer do tempo esquivo |
|
Até descobrir, sumário, |
Como o Tu lhe é necessário. |
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1358 – Mora |
|
A mais simples relação |
Entre Eu e Tu mora além |
Da vontade e da razão |
E da determinação |
Dum homem, dela refém. |
|
Discernir não é bastante |
Porque a luz dum ilumina |
Apenas seu canto adiante; |
A doutro, deste outro é sina. |
|
Entre os dois fica um vazio |
Bem minado e traiçoeiro |
Sem qualquer condutor fio. |
|
Quem pode ser justiceiro |
Dum homem que nunca é inteiro? |
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1359 – Plenamente |
|
Eu e Tu bem conhecidos |
Como plenamente amados |
Podiam ser refundidos, |
Sempre em acordo mantidos |
E jamais divorciados. |
|
Jamais, porém, é completo |
Nem o saber nem o amor, |
Há um egoísmo secreto, |
Um mundo a nunca transpor |
|
Em que se defenderia |
Cada qual até morrer. |
O Bem derrubá-lo-ia, |
|
Mas é por isso que o Bem |
Só se encontrará no Além. |
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1360 – Condenado |
|
O homem, condenado à morte, |
Planta ainda macieiras |
Cujo fruto nunca a sorte |
Lhe permite que transporte |
Nem coma a mesas fagueiras. |
|
Ergue cidades gigantes |
Onde os outros viverão, |
Na Lua pés hesitantes |
Marcará, doutrem no chão. |
|
E mesmo até o hedonista |
É a vida que desafia |
Na loiraça que faz vista, |
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Já que amanhã será o dia |
Em que, velha, ela o esfria. |
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1361 – Viajando |
|
Viajando demorados |
E por lonjuras perdidas, |
Em beduínos tornados, |
Nas areias confinados, |
Sem embaraços as vidas, |
|
Somos sem continuidade, |
Sem nada a ser construído, |
Porque amanhã tudo invade |
A areia, lança-a no olvido. |
|
Tempos depois, as lembranças |
Que atam ao torrão natal, |
De vagas, são só tardanças. |
|
E da flauta do zagal, |
Mal ouvida, nem sinal. |
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1362 – Emigrantes |
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Há muitos emigrantes que humildosos chegam |
Como quem escapou de exterminar aos campos, |
Acolhem qualquer coisa, que a viver se apegam, |
Alegres desempenham as funções que adregam, |
Humilhantes embora, que são firmes grampos. |
|
Mas é bastante estranho que não baste a um homem |
Escapado à tortura ter acaso e à morte |
Para viver feliz, que logo mais consomem |
(Mal nova segurança vá tocar-lhe em sorte) |
|
Os votos da vaidade, da soberba, orgulho |
Que anulados julgáramos ter visto nele, |
Animais alarmados a aflorar do entulho. |
|
Desconsideração que ingratidão revele |
Vai ser o que então vai mais lhe marcar a pele. |
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1363 – Chispa |
|
Quem me dera ser perfume, |
Não aquele que te dou, |
Mas o que chispa no lume |
Que, quando andas, se presume |
Que pelo mundo passou! |
|
Em ti morar me evolando |
Quem me dera, quem me dera |
Ser a olorosa atmosfera |
Que em teu redor vai voando! |
|
Pouca a prenda é que te entrego |
Ante a grandeza que inspiras |
E a que tão pouco delego. |
|
Ai, quando em brisa deliras, |
Ser este ar que tu respiras! |
|
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1364 – Pena |
|
Para que serve a pena de viver a vida |
Para que serve a frágil, vulnerável teia, |
Quando a morte, afinal, a todos nós convida, |
Na maior solidão toda a ilusão delida |
Nos finda indiferente quando o forno ateia? |
|
No mundo é o mais terrível o interior dum homem |
Que nunca alguém consegue iluminar ao fundo: |
Que alegrias ou sonhos ou vil dor consomem |
Teu íntimo a meu lado a se aflorar no mundo? |
|
Deitado aqui ao lado sei lá bem que pensas, |
Nem agora nem nunca minha vida além, |
Foram embora as horas que dispendo imensas! |
|
E o pior é que a mim me não verei também, |
Como nem tu a ti, nem a ninguém, ninguém. |
|
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1365 – Nunca |
|
No mundo nunca existiu |
Verdade única, na qual |
Quenquer jamais se aqueceu, |
Mas cada qual discerniu |
A sua por sem igual. |
|
A cada qual, seu caminho, |
Cada qual, sua verdade: |
Por um naco de toucinho |
Se mata, morre e se invade… |
|
Lutarei contra quenquer |
Que tire a outrem a vida |
No muro-dogma que houver. |
|
Ninguém prende (quem duvida?) |
Os afectos que há na vida. |
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1366 – Ignoras |
|
Ignoras o teu tamanho |
De simplicidade e amor, |
O brilho com arreganho |
Dentro em ti, de luz o banho |
Que sempre, à hora do alvor, |
|
Te convida a te entregares |
Sem temor algum à vida. |
Até hoje a passeares |
Na escuridão suicida, |
|
Leviano mundo pequeno |
Onde cuidas protegido |
Andar! Não ouves o treno |
|
Com que a pisar-te procedes |
Aos encontrões às paredes. |
|
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1367 – Causa |
|
Quem põe em causa a certeza |
Do que estiver bem ou mal? |
Decerto ninguém o preza, |
Moramos na fortaleza |
Bem murada a pedra e cal, |
|
Seguros, não há janelas, |
Portas nem correntes de ar |
Para a vida e mais sequelas |
Que há lá fora a palpitar. |
|
Abomino a luz e o ar |
Que circulam livremente |
Com gente a agir e a pensar. |
|
- E a vida muda, arriscada, |
Sempre a borbotar do nada… |
|
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1368 – Centro |
|
O centro da vida mora, |
Mora na banalidade, |
Força dominante agora |
- São rituais de hora a hora, |
Leis da familiaridade, |
|
O agitar dos nascimentos, |
Questões de sobrevivência, |
A festa dos casamentos, |
A mezinha, a conveniência, |
|
Todo o alicerce primário, |
O problema da comida, |
A escolha do vestuário… |
|
- Humilde, o centro da vida |
Qualquer sumidade olvida. |
|
|
1369 – Humano |
|
Por muito bem que conheça |
Um ser humano qualquer, |
Sei lá bem onde começa |
Um acto em que ele tropeça, |
Que o incita a proceder, |
|
Lhe dá um rumo decisivo |
Que ninguém esperaria! |
Ninguém pode ver ao vivo |
Como lento se anuncia, |
|
Eis-me aqui sempre de fora, |
Por mais íntimo que seja |
Não moro nunca onde mora. |
|
É o que faz, mal isto adeja, |
Que até o moribundo o veja. |
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|
1370 – Vez |
|
Alguma vez, por acaso, |
Nos esquecemos dos pais, |
Por um momento, num prazo? |
Presentes são, caso a caso, |
Em hesitações demais: |
|
Obedeça ou desafie, |
As opiniões que temos, |
Aquelas em que confie, |
Onde é que as arranjaremos? |
|
Os pais, embora em confronto, |
Decidem o que fazemos. |
Embora ao engano pronto, |
|
Mesmo se em raiva os repeles, |
Ao fim, de facto, crês neles. |
|
|
1371 – Palavras |
|
Como todos os amantes |
Não sabiam que a tentar |
Andavam, pelas mutantes |
Palavras entusiasmantes, |
Prolongar e prolongar, |
|
No ignoto tempo futuro, |
A ilusão da liberdade, |
Corporal num amor puro, |
Mas que se evade, se evade, |
|
Que os sentidos enlevados |
Repõem a consciência |
Destes tempos apressados: |
|
Trabalho, perda, dolência, |
- São do mundo uma evidência. |
|
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1372 – Novas |
|
Há permanentemente novas realidades |
Para serem aceites: vai ser duro a muitos… |
É a perda de absolutos: segurança invades, |
Estremecem então mil personalidades: |
Que fazer, como agir, se os trilhos são fortuitos? |
|
Podemos de coragem nos encher um dia |
E o que tem de ser feito logo obrar então |
Para das estreuturas nos livrar que havia |
Velhas a reprimir-nos, criminosa mão, |
|
Se acreditar que há um paraíso ali podemos: |
Por liberdade morreremos em função |
Da vida eterna que há-de vir lá nos extremos. |
|
- Porém, é o compromisso que nos resta à mão |
E nobre é cultivar o sonho, o sonho vão… |
|
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1373 – Presos |
|
Os presos de consciência |
Têm a força divina: |
Do mundo toda a insolvência |
Carregarão na pendência, |
Seu ombro a tal se destina. |
|
Preferirão a prisão |
À mentirosa amnistia |
Que por livres os daria |
Se traírem o que são. |
|
Pode a pena ser bem grada, |
Declaram em tribunal: |
- Não se arrependem de nada! |
|
Tal decisão quem a doma? |
Fica além do que a não toma. |
|
|
1374 – Dezoito |
|
Temos aos dezoito anos uma ideia mística |
Loucamente do amor, sonho mui alto erguido, |
De impossibilidades feito, via autística |
Tal que em tela na vida nem na aurora artística |
Nada que o satisfaça pode ser haurido. |
|
Então é fabricado, da cabeça aos pés, |
Um ser imaginário, sem olhar ao mal: |
Acolhe-se a primeira, vista ali resvés, |
E logo se lhe encobre seu perfil real. |
|
Como ídolo encerrada na fechada cerca |
De nosso imaginário, adornada finda |
Com toda a qualidade, que nenhuma perca. |
|
Depois ajoelhamos perante ela, ainda |
Com a venda nos olhos, sempre a crê-la infinda. |
|
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1375 – Tóxico |
|
No amor da juventude o tóxico é seguro, |
O tempo escorre lento e a venda nunca cai. |
Então, num dia alegre, a agradecer o apuro |
De personificado haver o amor mais puro, |
Um com outro se casam e o fulgor se esvai. |
|
Vai cada qual provar que essencialmente estranho |
O cônjuge há-de ser em relação ao sonho, |
Quando comprometida a vida foi sem ganho |
E se querem amar no mundo real, medonho. |
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Então é que descobrem que em comum é nada |
Aquilo que ambos têm, que é um estranho o par, |
Acaso o bandoleiro que topou na estrada. |
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Nem sequer nisto acaso alguma vez cuidar, |
Que já tudo foi dito, cuidam em lugar. |
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1376 – Intensamente |
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Queria intensamente para mim a festa, |
Uma felicidade atrás da qual eu vira |
Todo o mundo a correr, a perseguir a fresta |
Que sempre se lhe fecha ante a suada testa, |
E crê que uma excepção para mim já se abrira. |
|
De antemão acolhia que tudo é perfeito, |
E nos primeiros tempos de qualquer consórcio |
Que fácil a tarefa a que a mulher com jeito |
Se amolda facilmente! Quem pensa em divórcio? |
|
À mulher, todavia, logo a avisa a força |
Que em breve recupera o império já perdido, |
O espelho nos estende que ideais distorça. |
|
A prazo a nossa imagem é que é lá talhada |
E é tão decepcionante vê-la tão fanada! |
|
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1377 – Finalmente |
|
É de revolta em revolta |
Que um povo se aperfeiçoa, |
Que fica a cultura solta, |
Que a justiça desenvolta |
Finalmente se apregoa… |
|
A liberdade de imprensa, |
De indústria e qualquer negócio, |
De ensino e de consciência |
Jamais serão fruto de ócio. |
|
Como a chuva de Verão |
Fecunda a leiva que invade |
E faz reflorir o chão, |
|
Sempre chega a liberdade |
Nas asas da tempestade. |
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1378 – Legiões |
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Legiões bem pensantes de instruídos entes, |
Policiados por usos, tais polidos seixos, |
Na maioria ocupam um lugar, decentes, |
Na sociedade, acaso com funções cogentes, |
E todavia vivem como bois entre eixos, |
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De animais à maneira que aguentam carga. |
De olhos semifechados entre seus antolhos, |
Avançarão às cegas, sem olhar à ilharga, |
Sem reflectir por si na crença que é de escolhos, |
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Que se lhes impingiu nos iniciais calções. |
E morrerão tão dóceis, indecisos, crentes, |
Nunca da indecisão terão sequer noções! |
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Sem nada terem visto que domina as gentes: |
O instinto, o amor, a morte, a desafiar presentes. |
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1379 – Infância |
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Como pode ser tenaz |
Qualquer fé numa criança! |
Um homem que a marca traz |
Da religião de trás, |
Da infância, jamais alcança |
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Livrar-se, no encolher de ombros, |
Tal se fora um trapo velho, |
Enrodilhado de escombros. |
É um terreno onde me engelho, |
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Milénios de servidão |
Consentida na lavoira |
Demora a libertação. |
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Dolorosa, o suor oira |
Quão mais a pele se encoira. |
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1380 – Oportunidade |
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Novo ambiente e novo exemplo |
A oportunidade agora |
Me dão, como em novo templo, |
De ver, quando me contemplo, |
O que, afinal, em mim mora. |
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Descarto fácil a crença |
Que alimentei em criança, |
Capa de minha pertença |
Que já calor não me alcança. |
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De início tudo parece |
Vida estranha e solitária |
Sem o apoio duma prece. |
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Fica a mão tremente e vária, |
Devém, sem bordão, precária. |
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1381 – Animam |
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Os dias eram mais frios, |
As noites, mais solitárias: |
O novo traz calafrios |
Que animam, sonham navios |
Em sensações tributárias. |
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Toda a vida se transforma |
Na aventura emocionante |
Quando se quebrou a norma: |
Tudo é novo a cada instante. |
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O bordão longe atirado, |
Capa dos ombros caída, |
São tal fardo suportado |
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E, doravante, na vida |
Nenhum mais terá guarida. |
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1382 – Vastidão |
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A vastidão impregnada, |
O coração a bater |
Alegre na luz doirada, |
A beleza inebriada |
Do vale aonde descer… |
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De temores degradantes |
Livre, tal de preconceitos, |
Seguir o trilho sem preitos |
Do inferno a fogos hiantes… |
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Da responsabilidade |
Descartado que transmuda |
Qualquer acto em gravidade… |
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Respiro livre, na muda |
Leveza que a mim se gruda. |
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1383 – Oriental |
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O rei oriental conhecer quis a história, |
Dum sábio recebeu quinhentos mil volumes. |
Do governo peado, sem ter tal memória, |
Pediu que os resumisse, a futurar a glória |
Que tal traria ao povo, ao reformar costumes. |
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Vinte anos transcorridos, volta o sábio fiel, |
A história agora tinha só cinquenta tomos. |
Velho demais o rei para ler tal papel, |
Novo resumo quer que tire ao galho os pomos. |
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E vinte anos após, o sábio só num texto |
O que o rei pretendia resumiu de seu. |
À morte, o rei de vida nem lá viu pretexto. |
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Só numa linha a história então o sábio leu: |
Nasceu, cresceu, amou, sofreu, gerou, morreu! |
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1384 – Desenhar |
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Asim como o tecelão |
Vai desenhar o tapete |
Sem de mais cuidar senão |
Dele a estética função, |
Assim à vida compete. |
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Ou então quem acredite |
Que da vontade não pendem |
Os actos que dele emite, |
Dum plano crê que dependem. |
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Em qualquer das conjunturas |
Não há séria utilidade |
Nem necessidade apuras. |
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A vida sendo vaidade, |
Escolho então o que agrade. |
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1385 – Malha |
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A felicidade importa |
Pouco como importa a dor. |
Cada qual delas transporta |
À vida a malha e recorta- |
-Lhe acaso algum pormenor. |
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Elaboro meu desenho |
Acima dos acidentes |
Da vida na qual me empenho, |
Pairo além de tais vertentes. |
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O que acontecer agora |
Aumenta a complexidade |
Do padrão que me demora. |
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Se o fim vem, o que me invade |
Belo é sempre: é Realidade. |
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1386 – Auxiliando |
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Os que perdem o tempo auxiliando os pobres |
Erram porque remédio procurar irão |
Para o que intolerável lhes seria, nobres, |
Se houveram de aguentá-lo. De finados dobres |
Nunca os pobres àquilo repicar farão, |
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Pois nunca os incomodam as malsãs mazelas |
(O pobre não quer quartos arejados, grandes), |
Que vivem habituados desde sempre a elas, |
Às privações, e comem, por castanhas, glandes, |
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O aposento espaçoso é sensação de frio |
E preferem dormir juntos ali num quarto, |
Que nunca ficam sós, da vida em todo o fio… |
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Um emprego seguro é o que melhor reparto |
Ao pobre que de ajuda sempre acaba farto. |
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1387 – Desejamos |
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Só quando somos pequenos |
Desejamos ser mais velhos, |
Até aos dez anos plenos |
São anos, meses amenos, |
Somamos vias e quelhos. |
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Já durante a adolescência |
Ao ano seguinte salto: |
“Farei dezoito à evidência |
Para o ano e não lhes falto.” |
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Depois, até aos setenta, |
É um ano de cada vez |
E é dia a dia aos noventa. |
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Aos cem, de novo bebés, |
De novo soma ano e mês. |
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1388 – Teme |
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Todos nós morremos, é seguro e certo, |
Mas ninguém a morte vê que é natural. |
Único que teme aquela sem, desperto, |
Ter escapatória com nenhum concerto, |
Somos um ser único em tolice tal. |
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Pois temer a morte é tal como ter medo |
Do nariz que temos dividindo a cara, |
Que ela é natural como este rosto ledo |
Com que eu me apresento rumo à manhã clara. |
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Para mais a vida tem tantos desgostos, |
Freimas e canseiras, ilusão fatal! |
Ante a morte alegres é de ter os rostos: |
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Como ter do ignoto o medo irracional, |
Se o que após eu vejo sou eu afinal? |
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1389 – Contenha-se |
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Quem uma política aqui vem testar, |
Contra a corrupção de funcionários tredos |
E dos camponeses a miséria e lar |
Onde a fome impera sem beber luar, |
Contenha-se um pouco, então, de braços quedos. |
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Pobre e triste, a aldeia forte é só do rio |
Que por ela corre procurando o mar: |
Só porque isto busca fecunda o plantio, |
Faz crescer as leivas, o sonho ao regar. |
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Porém nem o nota, pois anda ocupado |
O rio discreto naqueloutra coisa, |
Nem protesta nunca lá por ser usado… |
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Por querer chegar é que jamais repoisa, |
Vai dar vida a tudo que por ele poisa. |
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1390 – Alugam |
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Há muitos que alugam a vida ao futuro, |
Dedicam-se inteiros um fito a atingir |
Que viver em pleno permite, seguro, |
Felizes fará, por retirar de apuro, |
Aqueles que assim apostam no porvir. |
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Contudo, entretanto, nem olham à volta, |
Nem dos outros cuidam, nem do que os rodeia, |
Não tratam do amor abandonado à solta, |
De viver se esquecem numa vida meia. |
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O fito é carreira, um emprego, riqueza… |
Ficam obcecados, excluem o mais, |
E a vida não entra, que é o que se despreza. |
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Em vez de crescerem, mingarão, letais, |
Mesmo à dimensão de objectivos que tais. |
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1391 – Importa |
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Aquilo que importa mais numa existência |
Não há qualquer forma de o saber deveras, |
Que tarde demais me perturba a evidência. |
Agora a questão é definir, na essência, |
Em que é que eu confio, quais minhas esperas. |
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Tudo é decisão de emprestar confiança: |
Dou-a ao disfarçado rumo à perdição |
Ou antes ao anjo que jamais se alcança |
Mas que me acompanha as pegadas no chão? |
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Para tudo em vida noutrem confiei: |
Meus pais, professores, amigos, mulher… |
É questão de fé, no fim, tudo o que sei. |
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Do que creio vivo: quanto puder ver, |
Finda pela fé todo o mundo a viver. |
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1392 – Aceitação |
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A aceitação tem poder, |
Tem muito, que, ao aceitar, |
Toma balanço quenquer |
Para mudar o que houver |
Na conjuntura a mudar. |
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Este rumo ao acatar, |
Acato o facto certeiro |
De que o dado no lugar |
Afinal é passageiro. |
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A transitoriedade |
Me livra do fatalismo, |
Começo a ser de verdade. |
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Em troca de quanto cismo, |
Vou saindo já do abismo. |
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1393 – Tácticas |
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Apenas devo ficar, |
Quando estiver muito triste, |
E não soluções tentar |
Nem tácticas adoptar |
De baionetas em riste. |
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Ficar, pura e simplesmente, |
Que quanto mais a tristeza |
Dentro de mim sedimente |
Mais exprime o que ela preza. |
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Então mais a própria vida |
Se irá lenta apresentando, |
Mostrando a melhor saída. |
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Já não há mente só quando |
O afecto em mim for mandando. |
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1394 – Cáustico |
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Tal como em eras idas, já de antanho, |
Homem, vives no medo e no terror. |
Tudo é cáustico frio se não for |
Em festa já vivido como um ganho. |
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Na espiritualidade mais profunda, |
Porém, clima de festa só encontrado |
Pode ser, com saber bem mergulhado |
No espiritual recurso que fecunda. |
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Como é muito inviável, pois ninguém |
Acredita em si próprio facilmente, |
O Homem só material vivência tem |
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Mui básica e soturna, o que é somente, |
Em lugar dum palor quase divino, |
Em si um fim escravo do destino. |