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um número aleatório entre 1201 e 1284 inclusive.
Descubra
o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
1201 – Dos cumes o longe aberto
Dos cumes o longe aberto
Ameio neste canto
Em metro incerto,
A coberto
Do sonho e da utopia: do encantamento do encanto.
Uso a rima
Em metro que troca o passo
A arremedar de baixo e de cima
O descabido compasso.
Na lonjura mora o sonho,
Tanto o de dentro como o de fora,
É o porvir onde inteiro me deponho.
Muito mais que neste agora onde me cito
É ali que habito.
1202 – Acompanha |
|
A poesia o sangue me acelera, |
Abre as janelas do mistério repentinas, |
Descobre o mundo no vector da Primavera |
Acompanha o coração |
Nas desoladas campinas |
Do amor e da solidão. |
|
- Senão, na carne de cada dia, |
Para que serve a poesia? |
|
|
1203 – Onda |
|
A onda é que nos leva |
No mar, na vida. |
Prisioneiros da treva, |
Não podemos compreender nem julgar, |
Apenas, a respiração sustida, |
Deixar-nos levar. |
|
Que bom, no fundo, |
Verificar |
Que não trago às costas o mundo! |
|
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1204 – Mergulhados |
|
Vivemos mergulhados na substância |
Do Universo |
Que, em derradeira instância, |
É a substância divina |
De que verso |
E converso, |
Nunca terso, |
Como sina. |
|
Tergiverso, tergiverso, |
Mas onde poderia ela estar |
Senão aqui neste lugar? |
|
Ou então de vez não está! |
- Mas então quem me chama dacolá?… |
|
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1205 – Conta |
|
Dou-me conta, horrorizado, |
De que a vida inteira a enganar-me |
Terei andado, |
Cuidando que havia sempre um novo carme, |
O carme seguinte, |
A escrever, para o teatro continuar. |
E não passo dum títere, dum pedinte, |
Dum palhaço de rosto alvar, |
Doente, doente, |
Como toda a demais gente. |
|
E nem sequer |
Um esforço vivificante e sensato |
Operarei qualquer |
Para o espírito confortar |
Neste estado sinistro e final, |
Neste desacato, |
Neste desespero mortal, |
Aflito, |
De quem nunca encontra o lugar |
No meio do mar |
Do infinito. |
|
|
1206 – Última |
|
Ninguém obtém |
A última realidade. |
Ninguém |
Atinge a fronteira |
Derradeira |
Da cidade. |
|
Continuamos a viver, |
Rolando em todas as rodas, |
À espera de um dia qualquer |
Atingi-la duma vez por todas. |
|
A nossa sorte, |
Porém, |
Então, |
É se a detém |
Ou não |
A gadanha da morte. |
|
|
1207 – Corremos |
|
Quando corremos de carro na lonjura, |
Alongando-nos do lar, |
Do amigo, do familiar, |
Que vão diminuindo de tamanho na planura, |
Até deles a mancha se dissipar |
Tanto quanto se distancia, |
Que sentimento nos angustia? |
|
É o mundo a pesar, |
Grande em demasia, |
A fundir-se na imensidão dos céus, |
- É o adeus. |
|
Contudo, queiramo-lo ou não, |
Corremos à próxima aventura |
Com a frenética loucura |
Do apelo do céu, do apelo do chão. |
|
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1208 – Deserto |
|
Através do deserto adusto |
Persegue-me o árabe vulto |
Branco-preto, branco-preto, |
De que, a custo, |
Tento fugir inulto |
Em busca de tecto. |
Ele, porém, sempre me apanha |
Mal a soleira da porta o pé me ganha. |
|
Através do deserto da vida |
O espectro nos persegue |
E de nós se apodera, de seguida, |
Antes que, conciso, |
Adregue |
O paraíso. |
É a morte que, morta, |
Nos surpreende |
Do Éden à porta? |
|
Ou dela o medo é que nos rende, |
Vergados, |
Do ignoto ao temor por que somos apanhados? |
|
Ansiamos a vida inteira, |
A suspirar, a gemer, |
A sofrer |
Qualquer canseira, |
Pela reminiscência |
Duma eventual felicidade perdida, |
Porventura do ventre materno a vivência, |
Que apenas, com sorte, |
Poderá ser reproduzida |
Na morte. |
|
Quem quer, quem quer, |
Porém, |
Morrer, |
Saltando, confiante, para o Além? |
|
|
1209 – Morremos |
|
Morremos albergando em nós |
Miríades de tribos e de amantes, |
De sabores que provámos dos avós, |
De corpos como rios hiantes |
De sabedoria |
Onde mergulhámos e nadámos |
Na correnteza que fluía, |
De personalidades a que trepámos |
Como árvores de fruta |
Que entre si a pequenada disputa, |
De medos em cujas grutas, nos extremos, |
Nos escondemos. |
|
A natureza, |
O Cosmos inteiro nos marca, |
Não é da parca |
A destreza. |
|
Em lugar de apenas inscrevermos |
O nome num mapa, |
Como os ricos na frontaria dos ermos |
Prédios donde a vida escapa, |
|
Somos colectivas histórias, |
Livros colectivos, |
Não somos escravos mas vivas memórias, |
Os mortos são do infinito arquivos |
Perenemente vivos. |
|
Numa terra assim |
Não há mapas: há o Todo em mim. |
|
|
1210 – Ovo |
|
Todo o homem é um ovo, todo o homem. |
Existimos, |
A forma, porém, ainda não atingimos |
Que é nosso destino |
Que as pegadas nos tomem |
E domem. |
|
Somos um potencial clandestino, |
Puro estar-para-ser: |
Criatura caída, |
Ovo a se esbarrondar. |
Nosso dever |
É recolocar cada fragmento, à medida, |
No requerido lugar: |
- E o Infinito começa a transparecer. |
|
|
1211 – Agradável |
|
Que agradável o escuro, |
Que excitante não saber |
O que há-de vir a ocorrer |
A seguir, por trás do muro! |
|
Obriga a ficar alerta |
(E que mal haverá nisto?), |
Bem acordado, a orelha desperta, |
Atento ao que existo. |
|
Desnudo, |
Absorvo |
Pelo miúdo, |
Pronto, expectante e torvo. |
E, secreto, mudo |
Para tudo o que vier, para tudo! |
|
|
1212 – Pertencer-te |
|
Ao pertencer-te a ti |
Sinto pertencer a todos os mais. |
Dados os eventos, |
O meu verdadeiro lugar aqui, |
No mundo, em todos os locais, |
Fica algures além de meus segmentos, |
Além de mim, |
Inefável. |
E, enfim, |
Se for também por mim dentro, |
É igualmente ilocalizável, |
Mesmo quando mais e mais em mim me adentro. |
|
Pequeno hiato de que convém que te assegures |
Entre o ser e o não-ser, |
Pela primeira vez na vida |
Vejo este nenhures, |
Onde abundo |
Sem qualquer |
Medida, |
Como o centro exacto do mundo. |
|
|
1213 – Permanece |
|
Quem permanece no limite |
Da convenção mundana |
Não é notado nem que grite, |
Ao caminho vulgar se irmana. |
|
Quem os limites transgredir, |
Porém, |
Uma multidão de curiosos há-de atrair |
E à espreita os tem. |
|
Até por isto é difícil a casca do ovo |
Quebrar dum mundo novo. |
|
|
1214 – Maioria |
|
A maioria olha em frente |
Permanentemente |
E nem fala. |
Ao fim e ao cabo, para toda a gente, |
É questão de esperar em grande escala. |
|
Passamos a vida a esperar: |
Pelo padeiro, pelo canalizador, |
Pelo médico, pelo enfermeiro, |
Pelo moço de fretes do lugar, |
Ou então pelo ferrador, |
Pelo carniceiro, |
Se calhar, pela casa de loucos, |
Até pela prisão, uns poucos… |
|
Depois, depois é a morte: |
Por trás de toda a espera, espera-nos esta sorte. |
|
- Boa ou má, boa ou má, |
Que é que, afinal, aqui nos aguardará? |
|
|
1215 – Alternativa |
|
Nada está bem, nada está bem! |
Todos agarram cegamente |
A primeira alternativa que lhes advém. |
Orgias e bacanais, |
Um comunismo demente, |
Drogas, corridas irracionais, |
Religião, vegetarianismo, |
Encegueirado misticismo… |
|
E, de repente, tudo desaparece: |
Todos tiveram de encontrar afazeres |
Enquanto esperavam pela morte. |
|
|
Poderes |
Escolher o que te apetece |
É a sorte |
Que, afinal, nunca ao fim te favorece. |
|
|
1216 – Destino |
|
O destino não é uma guita |
A percorrer infindavelmente, |
É de elástico um bocado: |
Quanto mais o percorres, acredita, |
Mais violentamente |
Para trás és repuxado, |
Para o ponto de partida. |
|
Ou te agarras, firme, ou, de seguida, |
Acabas com o círculo fechado. |
|
|
1217 – Símbolos |
|
Os símbolos próprios escolher |
Conforme o desenvolvimento individual |
É o itinerário de quenquer |
Apontando o horizonte final. |
|
Lembrando sempre, porém, |
Que o símbolo para nós o equivalente tem, |
|
Nas fórmulas populares como nas eruditas, |
Das maiorias e das minorias restritas. |
|
Apenas assim continua qualquer um ligado |
A todos os outros, de todo e qualquer lado, |
|
De todo e qualquer horizonte |
Partilhado |
Nesta ponte. |
|
|
1218 – Detesto |
|
Detesto as sotainas, as fardas, as bandeiras |
Quando falsificadas |
E, pior, se comluiadas. |
O que me afasta de capelinhas, de igrejas, |
Não são tanto os erros e as asneiras, |
É delas a intolrância. |
|
Não oponhamos mal ao mal, |
Da prepotência fanática com invejas, |
Do poder corrupto com ânsia. |
|
Que haja para todos a liberdade fundamental |
De pensar |
E de exprimir |
E de organizar |
E que o primeiro templo |
A erigir |
Seja dar daquilo o exemplo. |
Para abalar |
Qualquer poder colossal, |
Basta que dele o adversário |
Adquira o direito primário |
De proclamar |
O que dele julgar. |
|
Com tempo, a razão |
Semeada |
Acaba germinando pelo chão |
As campinas da madrugada. |
|
|
1219 – Sistema |
|
Aquele para quem o sistema do poder, |
A razão de Estado, |
Uma força temporal qualquer, |
Os políticos poderios, |
As autoridades de todo o lado, |
Intelectuais, |
Sacrais |
E todas as mais |
Que tais, |
- Tudo são vazios, |
Tudo são desvios |
Que não pesam nem um grama |
Perante um movimento que se apresta |
Da consciência humana |
Honesta, |
Aquele que tudo aquilo a isto reduz |
É a luz |
Do alvor tranquilo |
Cuja argumentação devém logo |
Perturbadora como fogo. |
|
|
1220 – Indiscutível |
|
Dever indiscutível, única felicidade |
Que não desilude |
É tender para a verdade |
Com todas as forças a que me grude |
E conformar cegamente |
A ela minha conduta. |
Mais ou menos brevemente, |
Por mais que a aparência o discuta, |
Descobrimos, comezinho, |
Que era o único caminho. |
|
|
1221 – Germes |
|
Dos homens a violência |
É como da natureza a grande ventania, |
Incha, engrossa dela com a turbulência, |
Depois acalma e se desfia, |
Deixando os germes, na cidade, |
De toda a actividade. |
E o vergel deles nasce |
Onde o porvir pasce. |
|
|
1222 – Paz |
|
Temos mais necessidade |
De paz interior |
Que de verdade. |
Uma fé qualquer |
Alimenta melhor |
Que qualquer ciência que houver. |
|
Bela é a missão de quem alcança |
Ser tal mensageiro de esperança. |
|
|
1223 – Artística |
|
Quando uma forma artística caduca, |
Arte nenhuma desaparece com ela, |
Antes retruca |
Com forma nova mais bela. |
|
O dogma da religião não conta, |
O sentimento religioso persiste |
E é quando a morte àquele apronta |
Que deveras revigorado |
Existe |
Com um sentido renovado |
Onde a vida |
A sério então convida. |
|
|
1224 – Primeira |
|
A causa primeira fica fora do alcance |
De qualquer nossa pesquisa. |
O homem, por mais que avance, |
Jamais além-fronteiras desliza. |
|
Ser relativo e finito |
Num lugar limitado do Universo, |
Jamais converso |
(Mesmo se o discuto) |
Com o Infinito, |
Com o Absoluto. |
|
Inventei palavras para exprimir |
O que ele não é |
E mais não lograrei progredir: |
Vítima de minha linguagem, de boa-fé, |
Os termos jamais correspondem, em quem a visa, |
A nenhuma realidade precisa. |
|
Microscópico elemento |
Do imenso Todo que me encape |
É natural, no que tento, |
Que o conjunto me escape. |
|
1225 – Linha |
|
Durante meia vida julgamos |
Que a vida é uma linha recta |
Cujo extremo apostamos |
Que se enterra como seta, |
|
A perder de vista, |
Nos extremos do horizonte. |
Depois, pouco a pouco, a prevista |
Para o infinito ponte |
|
Descobrimos que é linha cortada, |
Que mil pontas se aproximam, |
A mantê-le encurvada, |
E se juntam e a moldam e a limam… |
|
O círculo vai fechar-se, |
Começo a ficar velho, |
Evoluo apenas em meu meio, sem disfarce, |
Não há mais linha para o meu artelho |
Que mo não esgarce. |
|
Pela derradeira vez reparo: |
O fim da linha |
Onde paro |
- É uma adivinha. |
|
|
1226 – Acato |
|
Não acato mas também não me revolto: |
Sinto-me tão nada na ordem universal!… |
Habituei-me a ser parcela |
Dum universo desenvolto, |
A qual cumpre, obediente e fatal, |
O destino humilde dela. |
|
Ligo-me ao passado |
E ao porvir, |
Antevejo-me prolongado |
Por todo aquele que há-de vir |
(Apesar de por mim hoje ignorado) |
Que, depois de mim, |
Meu projecto retomará, rumando ao fim. |
|
Enquanto eu, do outro lado, |
Serei já corpo animado do Universo, assim |
Encaminhado |
Da infinidade ao derradeiro confim. |
|
|
1227 – Germine |
|
Não há boa semente |
Que de vez se perca, |
Nenhuma ideia que germine numa mente |
Que não desabroche um dia em qualquer cerca, |
Nenhuma faúlha de luz adquirida |
Que se extinga, de morte ferida. |
Quem sabe? Uma ideia que divulgámos |
É porventura o ponto de partida |
Da descoberta de inesperados ramos |
Que o futuro tornarão |
Mais livre e chão. |
|
Para ter feito bom trabalho |
Basta ter dado |
Toda a vida, galho a galho, |
Ao pomar humanizado. |
|
Quando plantei o melhor |
O mais que me foi viável, |
Ir-me embora poder-me-ei propor |
E entregar, |
Confiante e fiável, |
A outrem então meu lugar. |
|
|
1228 – Sinto |
|
Sinto em mim o divino, a Perfeição, |
Que não podem ser mera secreção |
Impossível |
De meu cérebro imperfeito e perecível. |
|
Sinto em mim uma vida ideal |
De que não encontro ponto de origem |
Em nenhuma parte real |
De meu corpo na vertigem. |
|
Em mim há o teor de dois laços: |
Ao mundo material |
Meus abraços, |
Através de membros e órgãos dos sentidos; |
Ao mundo íntimo, espiritual, |
Onde os traços |
São vividos e jamais medidos. |
|
A morte desagrega |
O primeiro patamar das relações. |
Ao segundo, não o nega |
Afasta-no-lo das visões. |
|
A fé na sobrevivência |
É aqui que aposta, nesta entrega, |
Com temor e com prudência. |
|
|
1229 – Impotente |
|
Como a beleza é plenitude, |
Sempre o porvir desafia, |
Lendo nele o presente que se hipertrofia, |
Impotente, sem saúde, |
Ou olhando-o distendido |
Como dela o horizonte esmaecido. |
|
De qualquer modo, |
Esquiva, fugidia, |
Jamais se entrega de todo. |
|
A beleza do infinito |
Em nós |
É sempre este maldito |
Apelo sem voz |
Dum grito. |
|
|
1230 – Aguilhão |
|
Há quem diga que a pobreza |
É o maior aguilhão do artista. |
É quem nunca lhe sentiu na carne a fereza |
Imprevista. |
|
A pobreza rebaixa, |
Expõe a humilhações sem fim, |
Depena as asas, corrói as almas onde encaixa |
Assim como um cancro, assim. |
|
Não é a riqueza que importa, |
Incerta, |
Mas o que é requerido para abrir a porta |
E mantê-la aberta. |
|
|
1231 – Títeres |
|
É como se fôramos títeres nas mãos |
Duma força ignota que nos impele |
A agir deste modo ou daquele. |
Para justificar minhas demãos, |
|
Por vezes uso a razão |
E, quando dela é inviável o respeito, |
Actuo do mesmo jeito, |
Queira-o ela ou não. |
|
- Quem, quem manda em mim |
De além de meu confim? |
|
|
1232 – Inextricável |
|
A vida é inextricável confusão, |
Dum lado a outro os homens correm apressados, |
Impelidos por misterioso vulcão |
Que desconhecem, desnorteados. |
|
De tudo aquilo lhes escapa o objectivo: |
A impressão que prevaleça |
É de se apressarem, num formigueiro vivo, |
Apenas por amor à pressa… |
|
- Que sentido, que sentido |
Por trás do empurrão desmedido? |
|
1233 – Calculo |
|
Quantas vezes, ao agir, |
Não calculo prós nem contras, |
Benefícios que dali podem advir, |
Perdas que omiti-lo expõe nas montras! |
|
Sou todo eu, por inteiro, |
Irresistivelmente impelido, |
Não actuo com parte de mim, meeiro, |
Mas globalmente incluído. |
|
A força que me domina |
Nada tem de comum com a razão: |
Para obter aquilo a que o imo se inclina, |
A razão apenas aponta rotas que o atingirão. |
|
|
1234 – Mergulha |
|
No verdadeiro escritor, músico, pintor, |
Há uma energia que o mergulha inteiro no labor, |
|
A ponto de obrigá-lo a subordinar |
A vida à fatal Arte que praticar. |
|
Sucumbindo a um poder de que nem se apercebe, |
Devém mero joguete do instinto que o concebe |
|
E pelos dedos lhe escorre a vida |
Sem por ele até ser vivida. |
|
|
1235 – Viajante |
|
O país que o viajante da vida |
Tem de atravessar, |
Como é vasto, árido, escarpado na subida |
Até o peregrino a realidade acatar! |
|
É ilusão cuidar que a juventude é feliz, |
Ilusão dos que a perdem. |
Miseráveis, os jovens bebem do ideal falsos perfis |
Que todos de todos herdem. |
|
Uma vez em contacto com o real, |
Ei-los magoados e contundidos: |
São a vítima fatal |
E terminal, |
Em múltiplos sentidos, |
Da conspiração mundial |
Dos que por todos são tidos, |
Afinal, |
Como os únicos entendidos. |
|
|
1236 – Américas |
|
As Américas ei-las aqui, |
Ao alcance da mão do mundo novo. |
Toda a vida aspirei aos ideais com frenesi |
Que outros, com palavras e escritos, |
No ninho de meu imo puseram como um ovo, |
Em mim chocaram, convictos, |
E nunca segui |
O desejo, não, |
De meu próprio coração. |
|
Minha conduta foi orientada |
Pela Estrela Polar do que julgava |
Dever fazer |
E não pela encosta escarpada |
A que aspirava |
O vulcão em fogo do imo de meu ser. |
|
Agora de lado ponho tudo |
Com impaciência. |
Vivi constantemente desnudo, |
No futuro, |
De mim na total ausência, |
E o presente mais puro, |
Por mor de tais credos, |
Sempre, sempre me escapou por entre os dedos. |
|
Meus ideais? |
Deles o mais linear desenho, |
O de quem nasce, trabalha, casa, procria e morre, |
Tem deles, perfeito, todos os sinais. |
Que mais |
Pode merecer-me igual empenho, |
Mesmo se por aqui nem todo o mundo corre? |
|
|
1237 – Sofrimento |
|
Sofrimento, desilusões, melancolia |
Não são para nos contrariar |
Nem a dignidade aniquilar |
Ou a mais-valia, |
São para amadurecer a forja do dia |
E nos transformar. |
|
|
1238 – Escutar |
|
Escutar o pulsar da terra, |
Participar na vida do todo |
E, na pressão do dia mesquinho que nos ferra, |
Jamais obliterar o engodo: |
Não, não somos deuses por nós criados |
Mas filhos e parte integrante |
Da Terra que nos dita os fados |
E do Todo Cósmico, nosso abismo hiante. |
|
|
1239 – Imperecibilidade |
|
A imperecibilidade em quanto vive |
O núcleo do imo de cada qual |
É dela ciente. E nela estive |
Sempre, visceral |
Filho de Deus, a repousar sem temor |
No seio da eternidade. |
|
Ao invés, o que temos de desamor, |
De mau, doente, corrupto, de vaidade, |
Contradiz aquela sorte |
E crê na morte. |
|
|
1240 – Alterando |
|
Alterando me venho lentamente, sem grande pena, |
Sinto-me abandonando os anos da juventude |
E amadurando rumo aos anos em que, serena, |
A vida se aprende a ver como um breve talude |
Bordejando um curto caminho |
E eu, como um caminheiro |
Cujos trilhos e desaparição final, |
Adivinho, |
Não provocarão no mundo inteiro, |
No mundo real, |
Nenhuma emoção |
De monta |
Nem qualquer preocupação |
A ter em conta. |
|
Mantendo em mira um horizonte para a vida, |
Um sonho ligeiro ainda mal acalentado, |
Já imprescindível me não julgo em qualquer ida |
E, pelo itinerário além, |
Não raro eis-me por aqui abandonado |
Ao lazer |
Que impunemente me retém |
E a deixar de fazer, |
Sem repeso ficar e sem desdém, |
Dum dia a caminhada, |
Para sobre as ervas me estender, |
Assobiar um verso duma música entoada |
A alegrar-me, enfim, do presente agora amado |
Sem qualquer pensamento reservado. |
|
|
1241 – Olho |
|
Cada vez mais, cada vez, |
Das coisas a profundeza |
Olho com maior avidez. |
Escuto o vento a ramalhar |
Das árvores nas copas acordes de singeleza, |
Ribeiros bramando nas gargantas |
Ao luar, |
Correntes |
Silentes |
A espraiar-se entre as plantas |
Da planura… |
|
Tudo isto entendo que é de Deus a voz |
E compreender tal |
Linguagem obscura |
E primordial, |
A beleza dos Avós |
Ancestral me depura: |
|
- Seria, conciso, |
Reencontrar o Paraíso. |
|
|
1242 – Natureza |
|
Amar a natureza como alguém, |
Escutá-la como parceira, |
Em viagem |
Afincadamente para além, |
Companheira |
Que fala uma linguagem |
Estrangeira, |
Leva-me a melancolia, |
Embora não curada, |
A ficar enobrecida pela magia |
E purificada. |
|
Meu ouvido e meu olhar se afiam, |
Aprendo a compreender tonalidades delicadas |
E como se diferenciam, |
Anseio por escutar cada vez mais perto e claro |
O pulsar das caminhadas. |
|
Talvez um dia atinja o dom estranho e raro |
De o exprimir num poema, |
Para que também outros dele se aproximem |
E o visitem com a compreensão extrema |
Das fontes que redimem, |
Do refrigério, purificação, ingenuidade |
De nossa visceral eternidade. |
|
|
1243 – Aguarda |
|
Indeciso e teimoso como uma criança, |
Aguardo sempre a vida em pleno |
Que sobre mim rebente em tempestade |
E em bonança, |
Que de mísero e pequeno |
Me torne tão sábio e rico quanto me agrade, |
Que sobre enormes asas |
Me eleve à felicidade |
Por cima do coruchéu da mais alta das casas. |
|
Sapiente e sóbria, a vida |
Silencia e deixa-me errar, |
Nem furacões nem estrelas à medida, |
Limita-se a aguardar |
Que eu devenha humilde e paciente, |
De teimosia quebrada. |
De meu orgulho ante a comédia que represente |
Daquele que deslinda a tabuada |
De cor e baralhada, |
Desvia os olhos, como convém, |
E aguarda, enternecida, |
Que rencontre a mãe |
A criança perdida. |
|
|
1244 – Custa |
|
Da matéria tem nascido, |
À custa de gritos, de fibras estraçalhadas, |
O frágil espírito inestimável, |
Através das idades, comedido |
E vulnerável, |
Através da dor aflorando |
Em múltiplas cumeadas. |
|
O mundo espiritual, |
Firme e brando, |
É já tão vasto como o material. |
|
A dor, nossa fatal sorte, |
É da vida a Primavera: |
Para entrar na vida, para entrar na morte, |
Há sempre gritos a pontuar cada era. |
|
A dor ara os humildes, nos tugúrios e favelas, |
E deles ara o céu cheio de estrelas. |
|
|
1245 – Alimenta |
|
De que se alimenta o infinito? |
De pobres espezinhados, |
Revolvidos grito a grito, |
De eterno assim cozinhados. |
|
Germinam eternidades |
Deste húmus amalgamado, |
Protoplasma, leite de espiritualidades |
A erguer mundos por todo o lado. |
|
Na vala comum, estes corpos de fadiga, |
Cansados de sofrer, |
São da terra a viga, |
As árvores, o pão, a seara a colher, |
São a seiva do planeta |
A voar para a ignota meta. |
|
No infinito, |
Nos céus, |
É deste grito |
Que se sustenta Deus. |
|
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1246 – Informação |
|
Sem informação nada somos. |
Informados, porém, |
De qualquer recanto do mundo colheremos pomos, |
Como a tartaruga de casa às costas: |
De nada nem ninguém, |
Nas tuas apostas, |
Findarás refém. |
|
Se aprendes a pintar, |
Pintarás em qualquer lugar. |
O escultor, o músico, o pintor |
Não precisam de licença: |
Basta-lhes o alvor |
Que dentro deles madrugar numa presença. |
|
O mundo que inauguro |
Deve caminhar dentro da cabeça. |
É o único trilho seguro: |
- Começa! |
|
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1247 – Céu |
|
Vai crescendo o céu dentro de nós, |
Se lho permitirmos, |
Mas presente anda sempre nos cipós |
Que nos atam ao cerne da vida, |
Se bem lhe conferirmos |
A medida. |
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1248 – Carta |
|
Não destruir a carta que Deus escreve |
Na minha vida, por ela fora, |
A casa que em mim eleve |
Com aplicação e demora, |
O vaso em que o oleiro divino |
Me quer modelar por destino, |
|
Não destruir nada |
Da pegada |
Dele |
Através da minha jornada, |
De sua caminhada |
Por dentro de minha pele. |
|
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1249 – Metros |
|
A dez metros morrer afogado |
Ou a dez centímetros não faz diferença |
Nenhuma: |
Morre-se num e noutro lado, |
Igual é a sentença |
Da espuma. |
|
O que importa na vida |
É encontrar o rumo certo |
Para a lida |
E pouco importa quão longe fica ou quão perto. |
Errá-lo, |
Fique embora à mão, |
É sempre matá-lo |
Então. |
|
E não há mais saída |
Para a viagem perdida. |
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1250 – Trocas |
|
Trocas uma fortuna piramidal |
Por uma bolsa furada com alguns tostões, |
Trocas uma vivenda no areal |
Por uma barraca entre o lixo dos ladrões, |
Trocas o automóvel automatizado |
Por um bilhete de metro usado… |
|
Eis o argumento interno, |
A trama do pecado, |
Eis como constróis o inferno: |
Perdes a inteira alegria |
Para lograr dela a fracção |
Pequena |
Que logo ali te enganaria |
Com a passageira deserção |
Terrena. |
|
Que dirias tu, que dirias |
De quem assim percorre os dias? |
|
O problema é que não vês |
Que és assim tal qual. Que o és! |
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1251 – Poeticamente |
|
Viver poeticamente é viver em potência, |
A poesia aponta o défice da humana frustração. |
Não tem de tal consciência |
Aquele que viver uma vida imaginária. |
A final opção |
É preservar a luminária |
Que aponte na escuridão |
O caminho em dormência |
Que as pegadas algum dia trilharão. |
|
Aí é que vislumbro, esquiva e vária, |
Minha final evidência. |
|
|
1252 – Película |
|
Nunca reparaste |
Que a tua vida inteira |
É uma película delgada e sinuosa |
Que mal suporta quanto baste |
O peso dos loucos, da vida na feira |
Mentirosa? |
|
É uma passagem mera |
A que um vento caprichoso |
Qualquer te obriga, |
Mero meio reflector que mal tolera, |
Nebuloso, |
De teu perfil plástico a liga. |
Massa fina ocasional, |
É controlada por fermentos, |
Fatal, |
Que ficam além do frenesi, |
Que estão além de teus tormentos, |
- Que moram para além de ti. |
|
|
1253 – Lei |
|
Será que o mundo é mesmo assim, |
É lei geral que haja em nós |
Algo mais forte e maior, |
Mais afim |
Que nossa voz, |
Mais luminoso e sombrio, |
Com mais pavor |
E desafio |
Do que nós mesmos, por fim? |
|
Algo sobre que exercer |
Tão pouco poder? |
|
Poderemos apenas espalhar |
Milhões e milhões de sementes |
Sem metas que futurar |
Até que uma delas, entrementes, |
Floresça |
E, como floresta de cipós, |
Cresça, cresça, cresça |
Muito acima de nós? |
|
- Nada em mim de tal sina gosta |
Mas é sim toda a resposta. |
|
|
1254 – Sinto |
|
Como sinto um pensamento |
Ao adquirir vida em mim |
Também sinto outro elemento |
Que em mim vive, em meu confim, |
Quando, ao contemplar dados que me abalam, |
Os pensamentos se calam. |
|
Algo existe obscuro em mim |
Por detrás do pensamento, |
Algo que não pode ser avaliado |
Com ele, do mesmo lado. |
|
Há uma vida |
Que lavra por minhas lavras, |
Que jamais pode fluir exprimida |
Nas palavras |
E que, ainda assim, |
É a minha vida, |
Sou mesmo eu dentro de mim. |
|
|
1255 – Designamos |
|
Quando designamos alguma coisa, |
Desvalorizamo-la singularmente: |
A palavra que nela poisa |
Mente. |
|
Nos abismos cremos |
Ter megulhado profundamente |
Mas, quando à tona voltemos, |
A gota de água na pálida ponta |
De nossos dedos |
Já não dá conta, |
Nada parece |
O mar dos medos |
Donde provém e que ali fenece. |
|
Sonhamos ter descoberto |
Maravilhosos tesoiros numa mina, |
Mas, quando à luz do dia olhamos de perto, |
O que a vista descortina |
São pedras falsas, de vidro cacos… |
|
Mesmo assim, no fundo desvão |
Quando a profundeza espreitamos dos buracos, |
O tesoiro brilha imutável na escuridão. |
|
|
1256 – Caminhar |
|
Caminhar indo ao encontro |
De não sei quê, não sei quando, |
Rumo ao fim, no desencontro |
De ver o que fica além?… |
Além do fim não há nada, |
Porém, |
Ou então ando |
Num fim que já não é fim |
Mas, enfim, |
Qualquer outra nova estrada. |
|
Caminhamos, todavia, |
Sempre na ponte sem guarda |
Ao encontro da noite vazia |
Onde nada nem ninguém nos aguarda. |
Andamos sem rota certa |
Rumo ao fim, para atingi-lo: |
A procura é porta aberta, |
Mas chegar põe-me intranquilo. |
|
Sem este fim que nos foge |
Já ninguém caminharia, |
Nenhum caminho se abria |
Ao dia de hoje. |
|
Mas o fim é anulação, |
Condenação do caminho: |
O fim dissolve-o no chão, |
Todo o chão fica maninho. |
|
Na eterna tergiversação, |
Ponto de interrogação |
Inultrapassável me adivinho. |
|
|
1257 – Moramos |
|
Nenhuma realidade é minha, |
Nenhuma me pertence, |
Todos moramos noutro lado que ninguém adivinha |
Mas nos vence, |
Mais além de onde estamos, |
Somos uma realidade desconforme |
Com a palavra eu, com a palavra nós. |
Olhamos |
O abismo enorme |
E corremos após. |
|
A realidade de nosso imo |
De nós vive fora |
E não é nossa, |
É um cimo |
Que a toda a hora |
Nos escapa e nos remoça. |
|
Não é una, é plural |
E nós somos pluralidade tal |
Que se dispersa |
Pelo infinito fora imersa. |
|
O eu é real |
Mas não sou eu |
Nem tu nem ele, |
O eu não é meu nem teu, |
É o infindo que me impele. |
|
|
1258 – Princípio |
|
Desde o princípio caio em mim |
E continuo a cair, |
Desde o princípio meu fim, |
Sempre a ir. |
|
Sempre vou, |
Em meu apego, |
Nunca chego |
Onde sou. |
|
Sempre eu |
Sempre noutra parte, |
Não há gineceu |
Que me acarte |
Nem de mim me aparte: |
A par, |
O outro eu |
E o mesmo lugar. |
|
|
1259 – Poeta |
|
Poeta não é quem as coisas nomeia |
Mas quem lhes dilui os nomes, |
Quem descobre que nenhuma de nomes é cheia |
E que dela não é o nome por que a tomes. |
|
A linguagem é a crítica do paraíso, |
Dos nomes próprios abolição; |
Da linguagem a crítica com siso |
Que anuncia |
O vácuo do desvão |
É a poesia: |
Os nomes contraem-se ressumando essência |
Até à evaporação, |
Até à transparência. |
|
No primeiro caso, |
O mundo |
Devém linguagem; no segundo, |
A linguagem, a prazo, |
Devém mundo. |
|
Graças ao poeta, |
O mundo sem nomes permanece. |
Por instantes entrevemos a meta |
Mesmo ao pé: |
- Vislumbramos o mundo tal como é |
E logo desaparece. |
|
|
1260 – Chegarei |
|
Nunca chego, |
Nunca chegarei ao fim, |
Não há de nenhum fim o aconchego, |
Tudo é perpétuo recomeçar. |
|
O que digo, enfim, |
É um contínuo calar |
Aquilo que vou falar |
E onde nunca acabo: |
Digo sempre outra coisa, outro de mim, |
Ao fim e ao cabo. |
|
Dizer que, mal é dito, se evapora, |
Nunca diz o que quero, |
Nunca nem agora, |
Pouco importa o que me esmero. |
Ao escrever, caminho rumo ao sentido. |
Ao lê-lo, apago-o, |
Anulo o caminho percorrido. |
E que é que trago? E que é que trago? |
|
|
1261 – Procura |
|
A procura do sentido |
Culmina na aparição |
Duma realidade que do sentido mora além, |
Que o desagrega, destrói, condena ao olvido. |
Transitamos da procura à abolição |
Para que a realidade brote que nos convém, |
A qual, por sua vez, |
Se dilui no fim do entremez. |
|
Em tal itinerário |
Se joga a dita |
E a desdita |
De nosso destino vário. |
|
|
1262 – Toco |
|
Toco o presente, |
Mergulho a mão no aqui-agora |
E é como se a enterrara no ar complacente, |
Tocara sombras, reflexos da demora. |
|
Superfície das coisas admirável, |
Simultaneamente |
Impenetrável |
E inconsistente! |
|
A realidade é feminina: |
Oferta e recusa o que destina. |
|
É apenas o ensejo |
De alimentar o desejo? |
|
|
1263 – Espelha |
|
A humana escrita |
Espelha a escrita do Universo, |
É dela a tradução que o explicita |
E por igual é a metáfora dum verso: |
Diz algo por inteiro diferente |
E diz o mesmo realmente. |
|
No píncaro da convergência |
O jogo do semelhante e diferente se anula |
Para esplender em evidência, |
Isolado, o que o cumula: |
- A identidade. |
|
Miragem, porém, é do inatingível uno, |
Ilusão da imobilidade: |
A identidade está vazia |
E a tal novamente me coaduno. |
|
Sendo mera cristalização, |
Dela nas entranhas transparentes |
Recomeça o movimento da analogia, |
A inequívoca função. |
|
E a humana escrita cerra em mim os dentes |
E de novo tudo principia. |
|
|
1264 – Sinto-me |
|
Apesar de me não mover |
Sinto-me de mim |
A me desprender: |
Estou e não estou onde estou, |
Portanto, assim. |
|
Que estranho este meu corpo onde vou, |
Este meu corpo ser meu, |
Pensar o que penso, |
Ouvir o que oiço! |
Ando longe de mim, |
No céu |
Denso |
Onde retoiço, |
Por aqui, neste confim, |
Por este caminho que invento |
No que escrevo |
E que é diluído logo ao vento |
Mal a lê-lo me atrevo. |
|
Ando por este aqui |
Que não fica lá fora |
Mas também não cá dentro. |
Ando por onde me vi, |
Agora, |
Muito embora |
Saiba que, afinal, ali não entro. |
Ando por este chão |
Desigual e poeirento |
Como se caminhara a solidão |
Por dentro de mim, ao relento. |
|
Mas este dentro de mim é lá fora, |
Vejo-o, com abalo, |
Vejo-o na hora |
E vejo-me nele a caminhá-lo. |
|
Contra quanto pretendeu |
A miragem de outrora, |
Eu |
É um cá-dentro-lá-fora. |
|
|
1265 – Caminho |
|
O caminho da poética |
É uma abolição da escrita: |
No fim de contas, a estética |
Confronta-nos com a realidade inefável jamais dita. |
|
A realidade que a poesia vislumbra |
E que ameia por trás da linguagem, |
Visível apenas quando deslumbra, |
Ao anular a palavra, a poética triagem, |
Tal realidade é intolerável |
E enlouquecedora. |
|
Sem a visão dela, porém, |
Nem o homem é homem viável |
Nem a linguagem é linguagem onde alguém |
Mora. |
|
A poesia nos alimenta |
E aniquila, |
Dá-noa a palavra que sustenta |
E condena ao silêncio onde o nada se perfila. |
|
É a percepção momentânea |
Do mundo desmedido, |
Coetânea |
Da revelação do sentido |
Que nele enfileira por fim os mil ramos |
Que entretecermos, |
É a percepção do mundo que um dia abandonámos |
E aonde retornamos ao morrermos. |
|
|
1266 – Quadro |
|
Nenhum quadro conta |
Porque não discorre. |
A pintura nos confronta |
Com o imutável, imóvel, definitivo, |
Onde qualquer movimento vivo |
Morre. |
|
Escrever e falar |
É indicar um caminho: |
Inventar, imaginar |
Trajectórias que adivinho. |
|
O sentido é o que emitem as palavras |
E corre para além delas, |
O que por entre as malhas escorre para as lavras |
E que os termos prendem, olhar a prender estrelas. |
|
O sentido não mora |
No texto |
Mas sim do lado de fora, |
Dele no contexto: |
A palavra, a toda a hora, |
É, no fundo, afinal, mero pretexto. |
As palavras que escrevo |
Andam à procura do seu sentido |
E nisto consiste o que lhes devo: |
Este é todo o sentido por elas atingido. |
|
|
1267 – Aperto |
|
Na felicidade pouco acrescento |
A meu crescimento. |
|
Na infelicidade, no desgosto |
É que me aumento, |
Quando então aposto. |
Dos apertos no momento |
É que quenquer |
Desata a crescer, |
Quando a bolha da vida, |
Constrangida, |
O espremer. |
|
|
1268 – Passado |
|
Sem presente nem futuro, |
O passado se repete |
E repete com demora. |
Contra quanto me compete, |
É o mais que eu inauguro |
Agora. |
|
De que me queixo, |
Se, afinal, |
É sempre tal e qual |
Que aqui me deixo? |
|
|
1269 – Despojem |
|
Despojem de fantasia |
Dos homens e das mulheres |
A maioria |
E avançar não lograrão |
Nesta vida dos teres e haveres, |
Da confusão, |
Que o que o mundo lhes aprofunda |
Então |
É fatalmente uma qualquer rota infecunda. |
|
Ora, ninguém deveras lida |
Com a não-vida. |
|
|
1270 – Perde |
|
Quem |
Perde um ente querido |
Ou um bem |
Deixa de tomar sentido |
Na matéria e passa além: |
Para ele próprio há-de olhar |
E, quão mais fundo grito |
Soltar, |
Mais depois há-de olhar o Infinito. |
|
|
1271 – Culpado |
|
Quem para a própria vida |
Procura um culpado qualquer |
Quer dele ver elidida |
A responsabilidade de viver. |
|
Quem da respnsabilidade |
Se exime |
Nenhum motivo para evoluir há-de |
Ter a que se arrime. |
|
Não anda mais para a frente |
De verdade, |
Gerando intérmina ansiedade: |
- É um doente. |
|
|
1272 – Trepar |
|
O segredo |
Para trepar ao céu |
É o desapego. |
Quem não tem nada de seu, |
Nada material, |
Prende o foco da atenção |
Vital |
No que material não for: |
É a vivência do imo, é o espiritual. |
E abre-lhe então o íntimo portão |
Maior, cada vez maior. |
|
Quem nada tem, |
Quem se não prender a nada, |
É quem preparado para trepar vive também: |
Vai perder a densidade, |
Jornada a jornada, |
Irá devir transparente. |
|
Então é que a divindade |
Nele mais e mais é residente. |
|
|
1273 – Controlo |
|
A vida coloca-te problemas |
Para te ajudar a evoluir. |
Que fazes tu dos dilemas? |
Tentas no controlo prosseguir, |
|
Perdes tempo a arquitectar |
Estratégias de afastar |
|
Do desafio os abalos, |
Tudo só para evitá-los. |
|
Quem evita os problemas que intui |
Não evolui. |
|
Da perda tens de enfrentar |
Todo o teu eterno medo: |
Se nada é teu, se calhar, |
Por quê votar-te ao degredo? |
|
Se tudo acolhes emprestado pela vida, |
Nunca então perderás nada, |
Não há de que te defendas em seguida |
E o controlo não te agrada. |
|
Ficas livre de voar |
Leveiro, pelo ar. |
|
|
1274 – Fluidez |
|
Para a vida poder fluir |
E teu caminho te ir aflorando |
Importa parar de controlar |
E, a seguir, |
Observar |
A vida caminhando, |
Dela com os sinais, por trás do disfarce, |
A apresentar-se. |
|
Mas para parar de controlar |
Há que aprender a perder. |
A perda é o teu autêntico lugar |
De Ser. |
|
À fluidez da vida |
Directamente ligada, |
Eis a felicidade prometida |
À porta de entrada. |
|
Aqui moram os enganos: |
Todos cuidam que para serem felizes |
Têm de ter, |
Têm de ganhar, |
E, ao invés, colhem danos |
De inúmeros deslizes com mil matizes |
Que os irão prender |
A par. |
|
Para te encontrares deveras |
E com o que és te conectares |
Tens de aprender a perder. |
Quando nada esperas, |
Então podes em paz te acolher |
Sendo tu próprio em todos os lugares. |
|
|
1275 – Ferida |
|
Todo o homem tem direito |
A ser feliz, |
A ferida no peito, |
Curada cicatriz. |
|
Quem não evolui, |
Quem não muda |
A partir da própria dor, |
Apenas sofre, não flui, |
À dor se gruda, |
Padece dum desvalor. |
Padece dum sofrimento |
Que não leva a lado algum, |
Vitimiza-se em tormento, |
Ferida aberta em jejum |
E que jamais cicatriza, |
Mais dor atrai e enfatiza. |
|
Todo o sofrimento |
Terá de ser trabalhado |
Tendo em vista o envolvimento |
De quem aposta em ser mudado. |
|
|
1276 – Escolhas |
|
Não escolhas nem trilho nem caminho, |
Nem mesmo terra batida, |
Nem sequer a direcção. |
O vinho |
Da vida |
Quer outra fermentação. |
|
Escolhe as plantações |
Onde há-de germinar |
A semente de todas as ilusões. |
Onde queres estar, |
Por onde passar, |
Que perfume sentir, |
Por onde andar, |
Que terreno pisar?… |
|
Ao apostar na sementeira |
Já escolheste por onde ir: |
De ti se abeira |
O que desejas, |
É decerto o melhor rumo. |
Mesmo que não vejas |
Caminho nem trilho, haverá sumo. |
|
Passeia na escolhida plantação |
E hás-de chegar, |
Então, |
Ao teu lugar, |
Enraizado no chão. |
|
|
1277 – Culpes |
|
Não culpes os outros de tua vida, |
Que toda a dor que te ocorreu |
Foi por tua energia inconsciente atraída, |
Por tua maneira de ser, por cada gesto teu. |
|
Quando alguém não gostar |
Do que lhe andar a ocorrer, |
Mude então o que estiver |
A emanar. |
|
E tudo volta ao lugar, |
Como à vida convier. |
|
|
1278 – Apegues |
|
Cuida de que tudo o que vais conseguindo |
Fique à disposição, |
Caso tenhas de perder. |
Não te apegues, não, |
Nem às migalhas, sequer, |
De que vais fruindo. |
|
O Cosmos é sábio, |
Entrega-lhe o porvir, |
Não tenha tua mão nem teu lábio |
De controlar o amanhã. |
Do pensamento construtivo é de seguir |
A esteira chã |
Que te fez crescer, |
Para continuares crescendo. |
Não te apegues a qualquer |
Ponto mau de tua vida |
Para justificares, descrendo, |
A escuridão |
Mentida |
De tua estagnação. |
|
|
1279 – Única |
|
A única razão |
Para mudares o mundo |
Ou o que quer que seja |
É protagonizares uma afirmação |
De quem tu és, no fundo, |
Que patente se veja. |
|
|
1280 – Algo |
|
Mais que algo que tens, |
O poder é o que és: |
Tens e és o poder de criar. |
Se a tal te aténs, |
Tua vida acabas, de vez, |
De transformar. |
|
1281 – Recrias |
|
De descoberta não é a vida itinerário, |
Mas de criação. |
Não aprendes quem és, no rumo vário, |
Antes o recrias, com quantos contigo vão. |
|
Relembras, afinal, quanto sempre soubeste, |
Escolhes que parte de teu ser |
Pretendes agora viver, |
Que parte doravante pelo mundo fora investe. |
|
O mais, na viagem, |
É o deslumbramento da paisagem. |
|
|
1282 – Medidas |
|
O que pensas, dizes e fazes |
É aquilo em que te tornas. |
Os poderes são eficazes: |
O mundo transtornas |
Ou elevas com medidas capazes |
Conforme o que creres: |
- Daqui provém o que fizeres. |
|
Se o mundo anda morto |
É que teu crer é torto. |
|
|
1283 – Matriz |
|
De nossa matriz a realidade imaginada |
É por nós criada. |
|
Somos nós que criamos e somos criados, |
Nossa matriz são os campos de energia integrada |
Por todos nós gerados. |
|
É deste campode forças o poder, |
Quando a intensidade lhe aumenta |
Em dada altura ou num lugar qualquer, |
Que permite localizar-lhe os efeitos |
De acalmia ou de tormenta |
A que somos atreitos. |
|
Podemos não vê-lo, mas senti-lo |
Ninguém lhe escapa, mesmo em sigilo. |
|
|
1284 – Limites |
|
Podes viver, dormir tranquilo, |
Terás sempre a tua parte. |
Não há limites para aquilo |
Em que podes vir a tornar-te. |
|
Tal é a força de teu imo |
Que te abarca do sopé a todo o cimo. |