DÉCIMO  SEGUNDO  TROVÁRIO

 

 

DOS  CUMES  O  LONGE  ABERTO

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha um número aleatório entre 1201 e 1284 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1201 – Dos cumes o longe aberto

 

Dos cumes o longe aberto

Ameio neste canto

Em metro incerto,

A coberto

Do sonho e da utopia: do encantamento do encanto.

 

Uso a rima

Em metro que troca o passo

A arremedar de baixo e de cima

O descabido compasso.

 

Na lonjura mora o sonho,

Tanto o de dentro como o de fora,

É o porvir onde inteiro me deponho.

 

Muito mais que neste agora onde me cito

É ali que habito.

 

 

 

1202 – Acompanha

 

A poesia o sangue me acelera,

Abre as janelas do mistério repentinas,

Descobre o mundo no vector da Primavera

Acompanha o coração

Nas desoladas campinas

Do amor e da solidão.

 

- Senão, na carne de cada dia,

Para que serve a poesia?

 

 

1203 – Onda

 

A onda é que nos leva

No mar, na vida.

Prisioneiros da treva,

Não podemos compreender nem julgar,

Apenas, a respiração sustida,

Deixar-nos levar.

 

Que bom, no fundo,

Verificar

Que não trago às costas o mundo!

 

 

1204 – Mergulhados

 

Vivemos mergulhados na substância

Do Universo

Que, em derradeira instância,

É a substância divina

De que verso

E converso,

Nunca terso,

Como sina.

 

Tergiverso, tergiverso,

Mas onde poderia ela estar

Senão aqui neste lugar?

 

Ou então de vez não está!

- Mas então quem me chama dacolá?…

 

 

1205 – Conta

 

Dou-me conta, horrorizado,

De que a vida inteira a enganar-me

Terei andado,

Cuidando que havia sempre um novo carme,

O carme seguinte,

A escrever, para o teatro continuar.

 

E não passo dum títere, dum pedinte,

Dum palhaço de rosto alvar,

Doente, doente,

Como toda a demais gente.

 

E nem sequer

Um esforço vivificante e sensato

Operarei qualquer

Para o espírito confortar

Neste estado sinistro e final,

Neste desacato,

Neste desespero mortal,

Aflito,

De quem nunca encontra o lugar

No meio do mar

Do infinito.

 

 

1206 – Última

 

Ninguém obtém

A última realidade.

Ninguém

Atinge a fronteira

Derradeira

Da cidade.

 

Continuamos a viver,

Rolando em todas as rodas,

À espera de um dia qualquer

Atingi-la duma vez por todas.

 

A nossa sorte,

Porém,

Então,

É se a detém

Ou não

A gadanha da morte.

 

 

1207 – Corremos

 

Quando corremos de carro na lonjura,

Alongando-nos do lar,

Do amigo, do familiar,

Que vão diminuindo de tamanho na planura,

Até deles a mancha se dissipar

Tanto quanto se distancia,

Que sentimento nos angustia?

 

É o mundo a pesar,

Grande em demasia,

A fundir-se na imensidão dos céus,

- É o adeus.

 

Contudo, queiramo-lo ou não,

Corremos à próxima aventura

Com a frenética loucura

Do apelo do céu, do apelo do chão.

 

 

1208 – Deserto

 

Através do deserto adusto

Persegue-me o árabe vulto

Branco-preto, branco-preto,

De que, a custo,

Tento fugir inulto

Em busca de tecto.

Ele, porém, sempre me apanha

Mal a soleira da porta o pé me ganha.

 

Através do deserto da vida

O espectro nos persegue

E de nós se apodera, de seguida,

Antes que, conciso,

Adregue

O paraíso.

É a morte que, morta,

Nos surpreende

Do Éden à porta?

 

Ou dela o medo é que nos rende,

Vergados,

Do ignoto ao temor por que somos apanhados?

 

Ansiamos a vida inteira,

A suspirar, a gemer,

A sofrer

Qualquer canseira,

Pela reminiscência

Duma eventual felicidade perdida,

Porventura do ventre materno a vivência,

Que apenas, com sorte,

Poderá ser reproduzida

Na morte.

 

Quem quer, quem quer,

Porém,

Morrer,

Saltando, confiante, para o Além?

 

 

1209 – Morremos

 

Morremos albergando em nós

Miríades de tribos e de amantes,

De sabores que provámos dos avós,

De corpos como rios hiantes

De sabedoria

Onde mergulhámos e nadámos

Na correnteza que fluía,

De personalidades a que trepámos

Como árvores de fruta

Que entre si a pequenada disputa,

De medos em cujas grutas, nos extremos,

Nos escondemos.

 

A natureza,

O Cosmos inteiro nos marca,

Não é da parca

A destreza.

 

Em lugar de apenas inscrevermos

O nome num mapa,

Como os ricos na frontaria dos ermos

Prédios donde a vida escapa,

 

Somos colectivas histórias,

Livros colectivos,

Não somos escravos mas vivas memórias,

Os mortos são do infinito arquivos

Perenemente vivos.

 

Numa terra assim

Não há mapas: há o Todo em mim.

 

 

1210 – Ovo

 

Todo o homem é um ovo, todo o homem.

Existimos,

A forma, porém, ainda não atingimos

Que é nosso destino

Que as pegadas nos tomem

E domem.

 

Somos um potencial clandestino,

Puro estar-para-ser:

Criatura caída,

Ovo a se esbarrondar.

Nosso dever

É recolocar cada fragmento, à medida,

No requerido lugar:

- E o Infinito começa a transparecer.

 

 

1211 – Agradável

 

Que agradável o escuro,

Que excitante não saber

O que há-de vir a ocorrer

A seguir, por trás do muro!

 

Obriga a ficar alerta

(E que mal haverá nisto?),

Bem acordado, a orelha desperta,

Atento ao que existo.

 

Desnudo,

Absorvo

Pelo miúdo,

Pronto, expectante e torvo.

E, secreto, mudo

Para tudo o que vier, para tudo!

 

 

1212 – Pertencer-te

 

Ao pertencer-te a ti

Sinto pertencer a todos os mais.

Dados os eventos,

O meu verdadeiro lugar aqui,

No mundo, em todos os locais,

Fica algures além de meus segmentos,

Além de mim,

Inefável.

E, enfim,

Se for também por mim dentro,

É igualmente ilocalizável,

Mesmo quando mais e mais em mim me adentro.

 

Pequeno hiato de que convém que te assegures

Entre o ser e o não-ser,

Pela primeira vez na vida

Vejo este nenhures,

Onde abundo

Sem qualquer

Medida,

Como o centro exacto do mundo.

 

 

1213 – Permanece

 

Quem permanece no limite

Da convenção mundana

Não é notado nem que grite,

Ao caminho vulgar se irmana.

 

Quem os limites transgredir,

Porém,

Uma multidão de curiosos há-de atrair

E à espreita os tem.

 

Até por isto é difícil a casca do ovo

Quebrar dum mundo novo.

 

 

1214 – Maioria

 

A maioria olha em frente

Permanentemente

E nem fala.

Ao fim e ao cabo, para toda a gente,

É questão de esperar em grande escala.

 

Passamos a vida a esperar:

Pelo padeiro, pelo canalizador,

Pelo médico, pelo enfermeiro,

Pelo moço de fretes do lugar,

Ou então pelo ferrador,

Pelo carniceiro,

Se calhar, pela casa de loucos,

Até pela prisão, uns poucos…

 

Depois, depois é a morte:

Por trás de toda a espera, espera-nos esta sorte.

 

- Boa ou má, boa ou má,

Que é que, afinal, aqui nos aguardará?

 

 

1215 – Alternativa

 

Nada está bem, nada está bem!

Todos agarram cegamente

A primeira alternativa que lhes advém.

Orgias e bacanais,

Um comunismo demente,

Drogas, corridas irracionais,

Religião, vegetarianismo,

Encegueirado misticismo…

 

E, de repente, tudo desaparece:

Todos tiveram de encontrar afazeres

Enquanto esperavam pela morte.

 

 

Poderes

Escolher o que te apetece

É a sorte

Que, afinal, nunca ao fim te favorece.

 

 

1216 – Destino

 

O destino não é uma guita

A percorrer infindavelmente,

É de elástico um bocado:

Quanto mais o percorres, acredita,

Mais violentamente

Para trás és repuxado,

Para o ponto de partida.

 

Ou te agarras, firme, ou, de seguida,

Acabas com o círculo fechado.

 

 

1217 – Símbolos

 

Os símbolos próprios escolher

Conforme o desenvolvimento individual

É o itinerário de quenquer

Apontando o horizonte final.

 

Lembrando sempre, porém,

Que o símbolo para nós o equivalente tem,

 

Nas fórmulas populares como nas eruditas,

Das maiorias e das minorias restritas.

 

Apenas assim continua qualquer um ligado

A todos os outros, de todo e qualquer lado,

 

De todo e qualquer horizonte

Partilhado

Nesta ponte.

 

 

1218 – Detesto

 

Detesto as sotainas, as fardas, as bandeiras

Quando falsificadas

E, pior, se comluiadas.

O que me afasta de capelinhas, de igrejas,

Não são tanto os erros e as asneiras,

É delas a intolrância.

 

Não oponhamos mal ao mal,

Da prepotência fanática com invejas,

Do poder corrupto com ânsia.

 

Que haja para todos a liberdade fundamental

De pensar

E de exprimir

E de organizar

E que o primeiro templo

A erigir

Seja dar daquilo o exemplo.

Para abalar

Qualquer poder colossal,

Basta que dele o adversário

Adquira o direito primário

De proclamar

O que dele julgar.

 

Com tempo, a razão

Semeada

Acaba germinando pelo chão

As campinas da madrugada.

 

 

1219 – Sistema

 

Aquele para quem o sistema do poder,

A razão de Estado,

Uma força temporal qualquer,

Os políticos poderios,

As autoridades de todo o lado,

Intelectuais,

Sacrais

E todas as mais

Que tais,

- Tudo são vazios,

Tudo são desvios

Que não pesam nem um grama

Perante um movimento que se apresta

Da consciência humana

Honesta,

Aquele que tudo aquilo a isto reduz

É a luz

Do alvor tranquilo

Cuja argumentação devém logo

Perturbadora como fogo.

 

 

1220 – Indiscutível

 

Dever indiscutível, única felicidade

Que não desilude

É tender para a verdade

Com todas as forças a que me grude

E conformar cegamente

A ela minha conduta.

Mais ou menos brevemente,

Por mais que a aparência o discuta,

Descobrimos, comezinho,

Que era o único caminho.

 

 

1221 – Germes

 

Dos homens a violência

É como da natureza a grande ventania,

Incha, engrossa dela com a turbulência,

Depois acalma e se desfia,

Deixando os germes, na cidade,

De toda a actividade.

E o vergel deles nasce

Onde o porvir pasce.

 

 

1222 – Paz

 

Temos mais necessidade

De paz interior

Que de verdade.

Uma fé qualquer

Alimenta melhor

Que qualquer ciência que houver.

 

Bela é a missão de quem alcança

Ser tal mensageiro de esperança.

 

 

1223 – Artística

 

Quando uma forma artística caduca,

Arte nenhuma desaparece com ela,

Antes retruca

Com forma nova mais bela.

 

O dogma da religião não conta,

O sentimento religioso persiste

E é quando a morte àquele apronta

Que deveras revigorado

Existe

Com um sentido renovado

Onde a vida

A sério então convida.

 

 

1224 – Primeira

 

A causa primeira fica fora do alcance

De qualquer nossa pesquisa.

O homem, por mais que avance,

Jamais além-fronteiras desliza.

 

Ser relativo e finito

Num lugar limitado do Universo,

Jamais converso

(Mesmo se o discuto)

Com o Infinito,

Com o Absoluto.

 

Inventei palavras para exprimir

O que ele não é

E mais não lograrei progredir:

Vítima de minha linguagem, de boa-fé,

Os termos jamais correspondem, em quem a visa,

A nenhuma realidade precisa.

 

Microscópico elemento

Do imenso Todo que me encape

É natural, no que tento,

Que o conjunto me escape.

 

 

1225 – Linha

 

Durante meia vida julgamos

Que a vida é uma linha recta

Cujo extremo apostamos

Que se enterra como seta,

 

A perder de vista,

Nos extremos do horizonte.

Depois, pouco a pouco, a prevista

Para o infinito ponte

 

Descobrimos que é linha cortada,

Que mil pontas se aproximam,

A mantê-le encurvada,

E se juntam e a moldam e a limam…

 

O círculo vai fechar-se,

Começo a ficar velho,

Evoluo apenas em meu meio, sem disfarce,

Não há mais linha para o meu artelho

Que mo não esgarce.

 

Pela derradeira vez reparo:

O fim da linha

Onde paro

- É uma adivinha.

 

 

1226 – Acato

 

Não acato mas também não me revolto:

Sinto-me tão nada na ordem universal!…

Habituei-me a ser parcela

Dum universo desenvolto,

A qual cumpre, obediente e fatal,

O destino humilde dela.

 

Ligo-me ao passado

E ao porvir,

Antevejo-me prolongado

Por todo aquele que há-de vir

(Apesar de por mim hoje ignorado)

Que, depois de mim,

Meu projecto retomará, rumando ao fim.

 

Enquanto eu, do outro lado,

Serei já corpo animado do Universo, assim

Encaminhado

Da infinidade ao derradeiro confim.

 

 

1227 – Germine

 

Não há boa semente

Que de vez se perca,

Nenhuma ideia que germine numa mente

Que não desabroche um dia em qualquer cerca,

Nenhuma faúlha de luz adquirida

Que se extinga, de morte ferida.

Quem sabe? Uma ideia que divulgámos

É porventura o ponto de partida

Da descoberta de inesperados ramos

Que o futuro tornarão

Mais livre e chão.

 

Para ter feito bom trabalho

Basta ter dado

Toda a vida, galho a galho,

Ao pomar humanizado.

 

Quando plantei o melhor

O mais que me foi viável,

Ir-me embora poder-me-ei propor

E entregar,

Confiante e fiável,

A outrem então meu lugar.

 

 

1228 – Sinto

 

Sinto em mim o divino, a Perfeição,

Que não podem ser mera secreção

Impossível

De meu cérebro imperfeito e perecível.

 

Sinto em mim uma vida ideal

De que não encontro ponto de origem

Em nenhuma parte real

De meu corpo na vertigem.

 

Em mim há o teor de dois laços:

Ao mundo material

Meus abraços,

Através de membros e órgãos dos sentidos;

Ao mundo íntimo, espiritual,

Onde os traços

São vividos e jamais medidos.

 

A morte desagrega

O primeiro patamar das relações.

Ao segundo, não o nega

Afasta-no-lo das visões.

 

A fé na sobrevivência

É aqui que aposta, nesta entrega,

Com temor e com prudência.

 

 

1229 – Impotente

 

Como a beleza é plenitude,

Sempre o porvir desafia,

Lendo nele o presente que se hipertrofia,

Impotente, sem saúde,

Ou olhando-o distendido

Como dela o horizonte esmaecido.

 

De qualquer modo,

Esquiva, fugidia,

Jamais se entrega de todo.

 

A beleza do infinito

Em nós

É sempre este maldito

Apelo sem voz

Dum grito.

 

 

1230 – Aguilhão

 

Há quem diga que a pobreza

É o maior aguilhão do artista.

É quem nunca lhe sentiu na carne a fereza

Imprevista.

 

A pobreza rebaixa,

Expõe a humilhações sem fim,

Depena as asas, corrói as almas onde encaixa

Assim como um cancro, assim.

 

Não é a riqueza que importa,

Incerta,

Mas o que é requerido para abrir a porta

E mantê-la aberta.

 

 

1231 – Títeres

 

É como se fôramos títeres nas mãos

Duma força ignota que nos impele

A agir deste modo ou daquele.

Para justificar minhas demãos,

 

Por vezes uso a razão

E, quando dela é inviável o respeito,

Actuo do mesmo jeito,

Queira-o ela ou não.

 

- Quem, quem manda em mim

De além de meu confim?

 

 

1232 – Inextricável

 

A vida é inextricável confusão,

Dum lado a outro os homens correm apressados,

Impelidos por misterioso vulcão

Que desconhecem, desnorteados.

 

De tudo aquilo lhes escapa o objectivo:

A impressão que prevaleça

É de se apressarem, num formigueiro vivo,

Apenas por amor à pressa…

 

- Que sentido, que sentido

Por trás do empurrão desmedido?

 

 

1233 – Calculo

 

Quantas vezes, ao agir,

Não calculo prós nem contras,

Benefícios que dali podem advir,

Perdas que omiti-lo expõe nas montras!

 

Sou todo eu, por inteiro,

Irresistivelmente impelido,

Não actuo com parte de mim, meeiro,

Mas globalmente incluído.

 

A força que me domina

Nada tem de comum com a razão:

Para obter aquilo a que o imo se inclina,

A razão apenas aponta rotas que o atingirão.

 

 

1234 – Mergulha

 

No verdadeiro escritor, músico, pintor,

Há uma energia que o mergulha inteiro no labor,

 

A ponto de obrigá-lo a subordinar

A vida à fatal Arte que praticar.

 

Sucumbindo a um poder de que nem se apercebe,

Devém mero joguete do instinto que o concebe

 

E pelos dedos lhe escorre a vida

Sem por ele até ser vivida.

 

 

1235 – Viajante

 

O país que o viajante da vida

Tem de atravessar,

Como é vasto, árido, escarpado na subida

Até o peregrino a realidade acatar!

 

É ilusão cuidar que a juventude é feliz,

Ilusão dos que a perdem.

Miseráveis, os jovens bebem do ideal falsos perfis

Que todos de todos herdem.

 

Uma vez em contacto com o real,

Ei-los magoados e contundidos:

São a vítima fatal

E terminal,

Em múltiplos sentidos,

Da conspiração mundial

Dos que por todos são tidos,

Afinal,

Como os únicos entendidos.

 

 

1236 – Américas

 

As Américas ei-las aqui,

Ao alcance da mão do mundo novo.

Toda a vida aspirei aos ideais com frenesi

Que outros, com palavras e escritos,

No ninho de meu imo puseram como um ovo,

Em mim chocaram, convictos,

E nunca segui

O desejo, não,

De meu próprio coração.

 

Minha conduta foi orientada

Pela Estrela Polar do que julgava

Dever fazer

E não pela encosta escarpada

A que aspirava

O vulcão em fogo do imo de meu ser.

 

Agora de lado ponho tudo

Com impaciência.

Vivi constantemente desnudo,

No futuro,

De mim na total ausência,

E o presente mais puro,

Por mor de tais credos,

Sempre, sempre me escapou por entre os dedos.

 

Meus ideais?

Deles o mais linear desenho,

O de quem nasce, trabalha, casa, procria e morre,

Tem deles, perfeito, todos os sinais.

Que mais

Pode merecer-me igual empenho,

Mesmo se por aqui nem todo o mundo corre?

 

 

1237 – Sofrimento

 

Sofrimento, desilusões, melancolia

Não são para nos contrariar

Nem a dignidade aniquilar

Ou a mais-valia,

São para amadurecer a forja do dia

E nos transformar.

 

 

1238 – Escutar

 

Escutar o pulsar da terra,

Participar na vida do todo

E, na pressão do dia mesquinho que nos ferra,

Jamais obliterar o engodo:

Não, não somos deuses por nós criados

Mas filhos e parte integrante

Da Terra que nos dita os fados

E do Todo Cósmico, nosso abismo hiante.

 

 

1239 – Imperecibilidade

 

A imperecibilidade em quanto vive

O núcleo do imo de cada qual

É dela ciente. E nela estive

Sempre, visceral

Filho de Deus, a repousar sem temor

No seio da eternidade.

 

Ao invés, o que temos de desamor,

De mau, doente, corrupto, de vaidade,

Contradiz aquela sorte

E crê na morte.

 

 

1240 – Alterando

 

Alterando me venho lentamente, sem grande pena,

Sinto-me abandonando os anos da juventude

E amadurando rumo aos anos em que, serena,

A vida se aprende a ver como um breve talude

Bordejando um curto caminho

E eu, como um caminheiro

Cujos trilhos e desaparição final,

Adivinho,

Não provocarão no mundo inteiro,

No mundo real,

Nenhuma emoção

De monta

Nem qualquer preocupação

A ter em conta.

 

Mantendo em mira um horizonte para a vida,

Um sonho ligeiro ainda mal acalentado,

Já imprescindível me não julgo em qualquer ida

E, pelo itinerário além,

Não raro eis-me por aqui abandonado

Ao lazer

Que impunemente me retém

E a deixar de fazer,

Sem repeso ficar e sem desdém,

Dum dia a caminhada,

Para sobre as ervas me estender,

Assobiar um verso duma música entoada

A alegrar-me, enfim, do presente agora amado

Sem qualquer pensamento reservado.

 

 

1241 – Olho

 

Cada vez mais, cada vez,

Das coisas a profundeza

Olho com maior avidez.

Escuto o vento a ramalhar

Das árvores nas copas acordes de singeleza,

Ribeiros bramando nas gargantas

Ao luar,

Correntes

Silentes

A espraiar-se entre as plantas

Da planura…

 

Tudo isto entendo que é de Deus a voz

E compreender tal

Linguagem obscura

E primordial,

A beleza dos Avós

Ancestral me depura:

 

- Seria, conciso,

Reencontrar o Paraíso.

 

 

1242 – Natureza

 

Amar a natureza como alguém,

Escutá-la como parceira,

Em viagem

Afincadamente para além,

Companheira

Que fala uma linguagem

Estrangeira,

Leva-me a melancolia,

Embora não curada,

A ficar enobrecida pela magia

E purificada.

 

Meu ouvido e meu olhar se afiam,

Aprendo a compreender tonalidades delicadas

E como se diferenciam,

Anseio por escutar cada vez mais perto e claro

O pulsar das caminhadas.

 

Talvez um dia atinja o dom estranho e raro

De o exprimir num poema,

Para que também outros dele se aproximem

E o visitem com a compreensão extrema

Das fontes que redimem,

Do refrigério, purificação, ingenuidade

De nossa visceral eternidade.

 

 

1243 – Aguarda

 

Indeciso e teimoso como uma criança,

Aguardo sempre a vida em pleno

Que sobre mim rebente em tempestade

E em bonança,

Que de mísero e pequeno

Me torne tão sábio e rico quanto me agrade,

Que sobre enormes asas

Me eleve à felicidade

Por cima do coruchéu da mais alta das casas.

 

Sapiente e sóbria, a vida

Silencia e deixa-me errar,

Nem furacões nem estrelas à medida,

Limita-se a aguardar

Que eu devenha humilde e paciente,

De teimosia quebrada.

De meu orgulho ante a comédia que represente

Daquele que deslinda a tabuada

De cor e baralhada,

Desvia os olhos, como convém,

E aguarda, enternecida,

Que rencontre a mãe

A criança perdida.

 

 

1244 – Custa

 

Da matéria tem nascido,

À custa de gritos, de fibras estraçalhadas,

O frágil espírito inestimável,

Através das idades, comedido

E vulnerável,

Através da dor aflorando

Em múltiplas cumeadas.

 

O mundo espiritual,

Firme e brando,

É já tão vasto como o material.

 

A dor, nossa fatal sorte,

É da vida a Primavera:

Para entrar na vida, para entrar na morte,

Há sempre gritos a pontuar cada era.

 

A dor ara os humildes, nos tugúrios e favelas,

E deles ara o céu cheio de estrelas.

 

 

1245 – Alimenta

 

De que se alimenta o infinito?

De pobres espezinhados,

Revolvidos grito a grito,

De eterno assim cozinhados.

 

Germinam eternidades

Deste húmus amalgamado,

Protoplasma, leite de espiritualidades

A erguer mundos por todo o lado.

 

Na vala comum, estes corpos de fadiga,

Cansados de sofrer,

São da terra a viga,

As árvores, o pão, a seara a colher,

São a seiva do planeta

A voar para a ignota meta.

 

No infinito,

Nos céus,

É deste grito

Que se sustenta Deus.

 

 

1246 – Informação

 

Sem informação nada somos.

Informados, porém,

De qualquer recanto do mundo colheremos pomos,

Como a tartaruga de casa às costas:

De nada nem ninguém,

Nas tuas apostas,

Findarás refém.

 

Se aprendes a pintar,

Pintarás em qualquer lugar.

O escultor, o músico, o pintor

Não precisam de licença:

Basta-lhes o alvor

Que dentro deles madrugar numa presença.

 

O mundo que inauguro

Deve caminhar dentro da cabeça.

É o único trilho seguro:

- Começa!

 

 

1247 – Céu

 

Vai crescendo o céu dentro de nós,

Se lho permitirmos,

Mas presente anda sempre nos cipós

Que nos atam ao cerne da vida,

Se bem lhe conferirmos

A medida.

 

 

1248 – Carta

 

Não destruir a carta que Deus escreve

Na minha vida, por ela fora,

A casa que em mim eleve

Com aplicação e demora,

O vaso em que o oleiro divino

Me quer modelar por destino,

 

Não destruir nada

Da pegada

Dele

Através da minha jornada,

De sua caminhada

Por dentro de minha pele.

 

 

1249 – Metros

 

A dez metros morrer afogado

Ou a dez centímetros não faz diferença

Nenhuma:

Morre-se num e noutro lado,

Igual é a sentença

Da espuma.

 

O que importa na vida

É encontrar o rumo certo

Para a lida

E pouco importa quão longe fica ou quão perto.

Errá-lo,

Fique embora à mão,

É sempre matá-lo

Então.

 

E não há mais saída

Para a viagem perdida.

 

 

1250 – Trocas

 

Trocas uma fortuna piramidal

Por uma bolsa furada com alguns tostões,

Trocas uma vivenda no areal

Por uma barraca entre o lixo dos ladrões,

Trocas o automóvel automatizado

Por um bilhete de metro usado…

 

Eis o argumento interno,

A trama do pecado,

Eis como constróis o inferno:

Perdes a inteira alegria

Para lograr dela a fracção

Pequena

Que logo ali te enganaria

Com a passageira deserção

Terrena.

 

Que dirias tu, que dirias

De quem assim percorre os dias?

 

O problema é que não vês

Que és assim tal qual. Que o és!

 

 

1251 – Poeticamente

 

Viver poeticamente é viver em potência,

A poesia aponta o défice da humana frustração.

Não tem de tal consciência

Aquele que viver uma vida imaginária.

A final opção

É preservar a luminária

Que aponte na escuridão

O caminho em dormência

Que as pegadas algum dia trilharão.

 

Aí é que vislumbro, esquiva e vária,

Minha final evidência.

 

 

1252 – Película

 

Nunca reparaste

Que a tua vida inteira

É uma película delgada e sinuosa

Que mal suporta quanto baste

O peso dos loucos, da vida na feira

Mentirosa?

 

É uma passagem mera

A que um vento caprichoso

Qualquer te obriga,

Mero meio reflector que mal tolera,

Nebuloso,

De teu perfil plástico a liga.

Massa fina ocasional,

É controlada por fermentos,

Fatal,

Que ficam além do frenesi,

Que estão além de teus tormentos,

- Que moram para além de ti.

 

 

1253 – Lei

 

Será que o mundo é mesmo assim,

É lei geral que haja em nós

Algo mais forte e maior,

Mais afim

Que nossa voz,

Mais luminoso e sombrio,

Com mais pavor

E desafio

Do que nós mesmos, por fim?

 

Algo sobre que exercer

Tão pouco poder?

 

Poderemos apenas espalhar

Milhões e milhões de sementes

Sem metas que futurar

Até que uma delas, entrementes,

Floresça

E, como floresta de cipós,

Cresça, cresça, cresça

Muito acima de nós?

 

- Nada em mim de tal sina gosta

Mas é sim toda a resposta.

 

 

1254 – Sinto

 

Como sinto um pensamento

Ao adquirir vida em mim

Também sinto outro elemento

Que em mim vive, em meu confim,

Quando, ao contemplar dados que me abalam,

Os pensamentos se calam.

 

Algo existe obscuro em mim

Por detrás do pensamento,

Algo que não pode ser avaliado

Com ele, do mesmo lado.

 

Há uma vida

Que lavra por minhas lavras,

Que jamais pode fluir exprimida

Nas palavras

E que, ainda  assim,

É a minha vida,

Sou mesmo eu dentro de mim.

 

 

1255 – Designamos

 

Quando designamos alguma coisa,

Desvalorizamo-la singularmente:

A palavra que nela poisa

Mente.

 

Nos abismos cremos

Ter megulhado profundamente

Mas, quando à tona voltemos,

A gota de água na pálida ponta

De nossos dedos

Já não dá conta,

Nada parece

O mar dos medos

Donde provém e que ali fenece.

 

Sonhamos ter descoberto

Maravilhosos tesoiros numa mina,

Mas, quando à luz do dia olhamos de perto,

O que a vista descortina

São pedras falsas, de vidro cacos…

 

Mesmo assim, no fundo desvão

Quando a profundeza espreitamos dos buracos,

O tesoiro brilha imutável na escuridão.

 

 

1256 – Caminhar

 

Caminhar indo ao encontro

De não sei quê, não sei quando,

Rumo ao fim, no desencontro

De ver o que fica além?…

Além do fim não há nada,

Porém,

Ou então ando

Num fim que já não é fim

Mas, enfim,

Qualquer outra nova estrada.

 

Caminhamos, todavia,

Sempre na ponte sem guarda

Ao encontro da noite vazia

Onde nada nem ninguém nos aguarda.

Andamos sem rota certa

Rumo ao fim, para atingi-lo:

A procura é porta aberta,

Mas chegar põe-me intranquilo.

 

Sem este fim que nos foge

Já ninguém caminharia,

Nenhum caminho se abria

Ao dia de hoje.

 

Mas o fim é anulação,

Condenação do caminho:

O fim dissolve-o no chão,

Todo o chão fica maninho.

 

Na eterna tergiversação,

Ponto de interrogação

Inultrapassável me adivinho.

 

 

1257 – Moramos

 

Nenhuma realidade é minha,

Nenhuma me pertence,

Todos moramos noutro lado que ninguém adivinha

Mas nos vence,

Mais além de onde estamos,

Somos uma realidade desconforme

Com a palavra eu, com a palavra nós.

Olhamos

O abismo enorme

E corremos após.

 

A realidade de nosso imo

De nós vive fora

E não é nossa,

É um cimo

Que a toda a hora

Nos escapa e nos remoça.

 

Não é una, é plural

E nós somos pluralidade tal

Que se dispersa

Pelo infinito fora imersa.

 

O eu é real

Mas não sou eu

Nem tu nem ele,

O eu não é meu nem teu,

É o infindo que me impele.

 

 

1258 – Princípio

 

Desde o princípio caio em mim

E continuo a cair,

Desde o princípio meu fim,

Sempre a ir.

 

Sempre vou,

Em meu apego,

Nunca chego

Onde sou.

 

Sempre eu

Sempre noutra parte,

Não há gineceu

Que me acarte

Nem de mim me aparte:

A par,

O outro eu

E o mesmo lugar.

 

 

1259 – Poeta

 

Poeta não é quem as coisas nomeia

Mas quem lhes dilui os nomes,

Quem descobre que nenhuma de nomes é cheia

E que dela não é o nome por que a tomes.

 

A linguagem é a crítica do paraíso,

Dos nomes próprios abolição;

Da linguagem a crítica com siso

Que anuncia

O vácuo do desvão

É a poesia:

Os nomes contraem-se ressumando essência

Até à evaporação,

Até à transparência.

 

No primeiro caso,

O mundo

Devém linguagem; no segundo,

A linguagem, a prazo,

Devém mundo.

 

Graças ao poeta,

O mundo sem nomes permanece.

Por instantes entrevemos a meta

Mesmo ao pé:

- Vislumbramos o mundo tal como é

E logo desaparece.

 

 

1260 – Chegarei

 

Nunca chego,

Nunca chegarei ao fim,

Não há de nenhum fim o aconchego,

Tudo é perpétuo recomeçar.

 

O que digo, enfim,

É um contínuo calar

Aquilo que vou falar

E onde nunca acabo:

Digo sempre outra coisa, outro de mim,

Ao fim e ao cabo.

 

Dizer que, mal é dito, se evapora,

Nunca diz o que quero,

Nunca nem agora,

Pouco importa o que me esmero.

Ao escrever, caminho rumo ao sentido.

Ao lê-lo, apago-o,

Anulo o caminho percorrido.

E que é que trago? E que é que trago?

 

 

1261 – Procura

 

A procura do sentido

Culmina na aparição

Duma realidade que do sentido mora além,

Que o desagrega, destrói, condena ao olvido.

Transitamos da procura à abolição

Para que a realidade brote que nos convém,

A qual, por sua vez,

Se dilui no fim do entremez.

 

Em tal itinerário

Se joga a dita

E a desdita

De nosso destino vário.

 

 

1262 – Toco

 

Toco o presente,

Mergulho a mão no aqui-agora

E é como se a enterrara no ar complacente,

Tocara sombras, reflexos da demora.

 

Superfície das coisas admirável,

Simultaneamente

Impenetrável

E inconsistente!

 

A realidade é feminina:

Oferta e recusa o que destina.

 

É apenas o ensejo

De alimentar o desejo?

 

 

1263 – Espelha

 

A humana escrita

Espelha a escrita do Universo,

É dela a tradução que o explicita

E por igual é a metáfora dum verso:

Diz algo por inteiro diferente

E diz o mesmo realmente.

 

No píncaro da convergência

O jogo do semelhante e diferente se anula

Para esplender em evidência,

Isolado, o que o cumula:

- A identidade.

 

Miragem, porém, é do inatingível uno,

Ilusão da imobilidade:

A identidade está vazia

E a tal novamente me coaduno.

 

Sendo mera cristalização,

Dela nas entranhas transparentes

Recomeça o movimento da analogia,

A inequívoca função.

 

E a humana escrita cerra em mim os dentes

E de novo tudo principia.

 

 

1264 – Sinto-me

 

Apesar de me não mover

Sinto-me de mim

A me desprender:

Estou e não estou onde estou,

Portanto, assim.

 

Que estranho este meu corpo onde vou,

Este meu corpo ser meu,

Pensar o que penso,

Ouvir o que oiço!

Ando longe de mim,

No céu

Denso

Onde retoiço,

Por aqui, neste confim,

Por este caminho que invento

No que escrevo

E que é diluído logo ao vento

Mal a lê-lo me atrevo.

 

Ando por este aqui

Que não fica lá fora

Mas também não cá dentro.

Ando por onde me vi,

Agora,

Muito embora

Saiba que, afinal, ali não entro.

Ando por este chão

Desigual e poeirento

Como se caminhara a solidão

Por dentro de mim, ao relento.

 

Mas este dentro de mim é lá fora,

Vejo-o, com abalo,

Vejo-o na hora

E vejo-me nele a caminhá-lo.

 

Contra quanto pretendeu

A miragem de outrora,

Eu

É um cá-dentro-lá-fora.

 

 

1265 – Caminho

 

O caminho da poética

É uma abolição da escrita:

No fim de contas, a estética

Confronta-nos com a realidade inefável jamais dita.

 

A realidade que a poesia vislumbra

E que ameia por trás da linguagem,

Visível apenas quando deslumbra,

Ao anular a palavra, a poética triagem,

Tal realidade é intolerável

E enlouquecedora.

 

Sem a visão dela, porém,

Nem o homem é homem viável

Nem a linguagem é linguagem onde alguém

Mora.

 

A poesia nos alimenta

E aniquila,

Dá-noa a palavra que sustenta

E condena ao silêncio onde o nada se perfila.

 

É a percepção momentânea

Do mundo desmedido,

Coetânea

Da revelação do sentido

Que nele enfileira por fim os mil ramos

Que entretecermos,

É a percepção do mundo que um dia abandonámos

E aonde retornamos ao morrermos.

 

 

1266 – Quadro

 

Nenhum quadro conta

Porque não discorre.

A pintura nos confronta

Com o imutável, imóvel, definitivo,

Onde qualquer movimento vivo

Morre.

 

Escrever e falar

É indicar um caminho:

Inventar, imaginar

Trajectórias que adivinho.

 

O sentido é o que emitem as palavras

E corre para além delas,

O que por entre as malhas escorre para as lavras

E que os termos prendem, olhar a  prender estrelas.

 

O sentido não mora

No texto

Mas sim do lado de fora,

Dele no contexto:

A palavra, a toda a hora,

É, no fundo, afinal, mero pretexto.

As palavras que escrevo

Andam à procura do seu sentido

E nisto consiste o que lhes devo:

Este é todo o sentido por elas atingido.

 

 

1267 – Aperto

 

Na felicidade pouco acrescento

A meu crescimento.

 

Na infelicidade, no desgosto

É que me aumento,

Quando então aposto.

Dos apertos no momento

É que quenquer

Desata a crescer,

Quando a bolha da vida,

Constrangida,

O espremer.

 

 

1268 – Passado

 

Sem presente nem futuro,

O passado se repete

E repete com demora.

Contra quanto me compete,

É o mais que eu inauguro

Agora.

 

De que me queixo,

Se, afinal,

É sempre tal e qual

Que aqui me deixo?

 

 

1269 – Despojem

 

Despojem de fantasia

Dos homens e das mulheres

A maioria

E avançar não lograrão

Nesta vida dos teres e haveres,

Da confusão,

Que o que o mundo lhes aprofunda

Então

É fatalmente uma qualquer rota infecunda.

 

Ora, ninguém deveras lida

Com a não-vida.

 

 

1270 – Perde

 

Quem

Perde um ente querido

Ou um bem

Deixa de tomar sentido

Na matéria e passa além:

Para ele próprio há-de olhar

E, quão mais fundo grito

Soltar,

Mais depois há-de olhar o Infinito.

 

 

1271 – Culpado

 

Quem para a própria vida

Procura um culpado qualquer

Quer dele ver elidida

A responsabilidade de viver.

 

Quem da respnsabilidade

Se exime

Nenhum motivo para evoluir há-de

Ter a que se arrime.

 

Não anda mais para a frente

De verdade,

Gerando intérmina ansiedade:

- É um doente.

 

 

1272 – Trepar

 

O segredo

Para trepar ao céu

É o desapego.

Quem não tem nada de seu,

Nada material,

Prende o foco da atenção

Vital

No que material não for:

É a vivência do imo, é o espiritual.

E abre-lhe então o íntimo portão

Maior, cada vez maior.

 

Quem nada tem,

Quem se não prender a nada,

É quem preparado para trepar vive também:

Vai perder a densidade,

Jornada a jornada,

Irá devir transparente.

 

Então é que a divindade

Nele mais e mais é residente.

 

 

1273 – Controlo

 

A vida coloca-te problemas

Para te ajudar a evoluir.

Que fazes tu dos dilemas?

Tentas no controlo prosseguir,

 

Perdes tempo a arquitectar

Estratégias de afastar

 

Do desafio os abalos,

Tudo só para evitá-los.

 

Quem evita os problemas que intui

Não evolui.

 

Da perda tens de enfrentar

Todo o teu eterno medo:

Se nada é teu, se calhar,

Por quê votar-te ao degredo?

 

Se tudo acolhes emprestado pela vida,

Nunca então perderás nada,

Não há de que te defendas em seguida

E o controlo não te agrada.

 

Ficas livre de voar

Leveiro, pelo ar.

 

 

1274 – Fluidez

 

Para a vida poder fluir

E teu caminho te ir aflorando

Importa parar de controlar

E, a seguir,

Observar

A vida caminhando,

Dela com os sinais, por trás do disfarce,

A apresentar-se.

 

Mas para parar de controlar

Há que aprender a perder.

A perda é o teu autêntico lugar

De Ser.

 

À fluidez da vida

Directamente ligada,

Eis a felicidade prometida

À porta de entrada.

 

Aqui moram os enganos:

Todos cuidam que para serem felizes

Têm de ter,

Têm de ganhar,

E, ao invés, colhem danos

De inúmeros deslizes com mil matizes

Que os irão prender

A par.

 

Para te encontrares deveras

E com o que és te conectares

Tens de aprender a perder.

Quando nada esperas,

Então podes em paz te acolher

Sendo tu próprio em todos os lugares.

 

 

1275 – Ferida

 

Todo o homem tem direito

A ser feliz,

A ferida no peito,

Curada cicatriz.

 

Quem não evolui,

Quem não muda

A partir da própria dor,

Apenas sofre, não flui,

À dor se gruda,

Padece dum desvalor.

Padece dum sofrimento

Que não leva a lado algum,

Vitimiza-se em tormento,

Ferida aberta em jejum

E que jamais cicatriza,

Mais dor atrai e enfatiza.

 

Todo o sofrimento

Terá de ser trabalhado

Tendo em vista o envolvimento

De quem aposta em ser mudado.

 

 

1276 – Escolhas

 

Não escolhas nem trilho nem caminho,

Nem mesmo terra batida,

Nem sequer a direcção.

O vinho

Da vida

Quer outra fermentação.

 

Escolhe as plantações

Onde há-de germinar

A semente de todas as ilusões.

Onde queres estar,

Por onde passar,

Que perfume sentir,

Por onde andar,

Que terreno pisar?…

 

Ao apostar na sementeira

Já escolheste por onde ir:

De ti se abeira

O que desejas,

É decerto o melhor rumo.

Mesmo que não vejas

Caminho nem trilho, haverá sumo.

 

Passeia na escolhida plantação

E hás-de chegar,

Então,

Ao teu lugar,

Enraizado no chão.

 

 

1277 – Culpes

 

Não culpes os outros de tua vida,

Que toda a dor que te ocorreu

Foi por tua energia inconsciente atraída,

Por tua maneira de ser, por cada gesto teu.

 

Quando alguém não gostar

Do que lhe andar a ocorrer,

Mude então o que estiver

A emanar.

 

E tudo volta ao lugar,

Como à vida convier.

 

 

1278 – Apegues

 

Cuida de que tudo o que vais conseguindo

Fique à disposição,

Caso tenhas de perder.

Não te apegues, não,

Nem às migalhas, sequer,

De que vais fruindo.

 

O Cosmos é sábio,

Entrega-lhe o porvir,

Não tenha tua mão nem teu lábio

De controlar o amanhã.

Do pensamento construtivo é de seguir

A esteira chã

Que te fez crescer,

Para continuares crescendo.

Não te apegues a qualquer

Ponto mau de tua vida

Para justificares, descrendo,

A escuridão

Mentida

De tua estagnação.

 

 

1279 – Única

 

A única razão

Para mudares o mundo

Ou o que quer que seja

É protagonizares uma afirmação

De quem tu és, no fundo,

Que patente se veja.

 

 

1280 – Algo

 

Mais que algo que tens,

O poder é o que és:

Tens e és o poder de criar.

Se a tal te aténs,

Tua vida acabas, de vez,

De transformar.

 

 

1281 – Recrias

 

De descoberta não é a vida itinerário,

Mas de criação.

Não aprendes quem és, no rumo vário,

Antes o recrias, com quantos contigo vão.

 

Relembras, afinal, quanto sempre soubeste,

Escolhes que parte de teu ser

Pretendes agora viver,

Que parte doravante pelo mundo fora investe.

 

O mais, na viagem,

É o deslumbramento da paisagem.

 

 

1282 – Medidas

 

O que pensas, dizes e fazes

É aquilo em que te tornas.

Os poderes são eficazes:

O mundo transtornas

Ou elevas com medidas capazes

Conforme o que creres:

- Daqui provém o que fizeres.

 

Se o mundo anda morto

É que teu crer é torto.

 

 

1283 – Matriz

 

De nossa matriz a realidade imaginada

É por nós criada.

 

Somos nós que criamos e somos criados,

Nossa matriz são os campos de energia integrada

Por todos nós gerados.

 

É deste campode forças o poder,

Quando a intensidade lhe aumenta

Em dada altura ou num lugar qualquer,

Que permite localizar-lhe os efeitos

De acalmia ou de tormenta

A que somos atreitos.

 

Podemos não vê-lo, mas senti-lo

Ninguém lhe escapa, mesmo em sigilo.

 

 

1284 – Limites

 

Podes viver, dormir tranquilo,

Terás sempre a tua parte.

Não há limites para aquilo

Em que podes vir a tornar-te.

 

Tal é a força de teu imo

Que te abarca do sopé a todo o cimo.