DÉCIMO  QUARTO  TROVÁRIO

 

 

SEI  QUE  A  ALEGRIA  POR  AQUI  ME  VAI  TALHANDO

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha aleatoriamente um número entre 1593 e 1695, inclusive.

Leia o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1593 - Sei que a alegria por aqui me vai talhando

 

Sei que a alegria por aqui me vai talhando

Em toda e qualquer forma de poema,

Regular, irregular, sempre rimando,

No gozo da ironia chasqueando

Da vida sobre o tema.

 

É bom humor ou sarcasmo,

Uma irónica anedota,

É da estupidez o pasmo,

Do pedantismo a chacota…

 

Tudo é bom pretexto de alegria

Depois da suada freima

Do dia-a-dia.

 

As achas do poema a lareira queima,

É de festa a minha teima.

 

 


1594 - Beber

 

Vejamos a sério, vejamos

Que beber de forma sistemática

É a única coisa em que não melhoramos

Com a prática.

 

 

1595 - Orador

 

Dum bom orador a pedra angular

A erigir

É parar de falar

Antes de os ouvintes pararem de ouvir.

 

 

1596 - Copo

 

Mal se concebe:

Um copo é tão pequeno, ali ao centro!

Como é que um homem bebe, bebe,

E não logra sair-lhe de dentro?

 

 

1597 - Amaste

 

Nunca amaste deveras ninguém,

Pois, se tal houvera ocorrido,

Compreenderias que o amor nunca advém

Como um qualquer rasquido

Que se pode varrer à mão

E ultrapassar como incómoda constipação.

 

 

1598 - Inflação

 

Inflação, reparando bem,

É lograr viver este mês com o ordenado

Do mês que vem,

Sonhando com os preços do mês passado.

 

 

1599 - Noite

 

À noite, ao abrir tudo

Para a casa arejar,

"Não abras!" - grita um miúdo -

"Senão o escuro vai entrar!..."

 

 

1600 - Divergem

 

Divergem os pareceres

Conforme o ângulo em que te pões:

Os homens casam com mulheres,

As mulheres, com situações.

 

 

1601 - Apostar

 

Pensar que o futuro é cor-de-rosa

É tão natural

Como a fantasia sexual.

Apostar na esperança ditosa

Ante a incerteza das escuras matas

É tão natural

Em nossa espécie racional

Como andar com duas patas.

 

 

1602 - Sardinha

 

A fé na cura pela cabeça

Duma sardinha morta do lixo do prédio

Converte-a bem depressa

Num poderoso remédio.

 

 

1603 - Feliz

 

Minha vida não tem conteúdo,

Fim, direcção, significado por aí além…

Mas sou feliz, apesar de tudo.

Não entendo: que é que andarei a fazer bem?

 

 

1604 - Prática

 

É simples entender as ideias,

Levá-las à prática, não.

Teu cabedal não gastes às mancheias

Para ter um piano à mão,

 

Se ao fim te vais queixar, desanimado:

"Tocar piano não funciona!

Toquei-o por todo o lado

E é pior a guinchar que uma marafona."

 

 

1605 - Deixam

 

Os que deixam de dar importância

Ao pó que a criada não limpou,

Às batatas que a cozinheira não cozinhou,

À fuligem que o detergente não retirou,

Notam que a vida ganha relevância,

 

Que é bem mais agradável cada jornada

Que quando se sentiam constantemente

Preocupados ou irritados com um nada

Que lhes abolorecia cada semente.

 

 

1606 - Estimular

 

Para estimular a disposição optimista

Que promova a sociabilidade,

Que facilite a tomada de decisões

E a solução criativa tenha em vista

De problemas com que o dia-a-dia nos invade,

Mais benéficas serão as emoções

De encontrar cinco euros controláveis na pública via

Que ganhar cinco incontáveis milhões

Na lotaria.

 

 

1607 - Lunáticos

 

Onde o optimismo mais floresce e não é pouco

É de lunáticos no asilo pacato,

Mas é preferível ser um optimista louco

Que um pessimista cordato.

 

 

1608 - Lotaria

 

As probabilidades com que acertamos

Na lotaria baixíssimas serão.

Porém, se não jogamos,

São nulas então.

 

 

1609 - Burro

 

Qualquer burro que carrega um dignitário,

Ante as homenagens sofre a tentação

De cuidar ser ele o alvo primário

Da adoração.

 

 

1610 - Políticos

 

Aos políticos de outrora

Bastava adular os reis.

De aprender têm os de agora

A seduzir os fiéis.

 

Vão divertir, fascinar,

Nos votantes esperança

Terão, enfim, de criar

Ou seu fito não se alcança.

 

Na porcaria geral,

Iguais moscas, afinal.

 

 

1611 - Abatido

 

No mais difícil dia te demoras

Quando comentas, abatido e sem alarde:

- São apenas duas horas…

A esta hora já costuma ser mais tarde.

 

 

1612 - Repara

 

A vida, paciente, repara alguns reveses

Mas depois, quando demais, é um par de estalos:

Deus dá-nos dentes duas vezes;

À terceira, temos de pagá-los.

 

 

1613 - Negócio

 

A vida é um negócio pouco chão,

Nada leveiro:

Requer ocupação

A tempo inteiro.

 

 

1614 - Ricaço

 

Como é que o ricaço há-de ter, paciente,

Tempo, disponibilidade,

Para o filho?

O cifrão é absorvente!

A amantíssima, a garantir a paridade,

Para polir da imagem o brilho,

Finda tanto mais absorvida

Quanto do cifrão a medida.

 

Então, o filho deste consórcio

Acaba sempre pedindo o divórcio.

 

E aqueles tanto menos o desenlace entendem

Quanto mais os cifrões lhes rendem.

 

 

1615 - Velho

 

Velho, sou duma era, má ou boa,

Que acabou, findo o prestígio.

Já me não sinto pessoa,

Sinto-me vestígio.

 

 

1616 - Esperteza

 

A esperteza é contrária à inteligência

E os espertos é que herdarão a terra.

Aliás, herdaram-na já decerto, é uma evidência:

Para matá-la e a nós, ao fim, o que a todos,

Desiludidos dos engodos,

Mais nos aterra.

 

 

1617 - Déspota

 

Nenhum déspota gosta de novidades

Que não sejam pensadas nem programadas

Por ele próprio, a sumidade das sumidades.

Dele nas lógicas arrevesadas,

Qualquer evento fora do vulgar

Pode ameaçá-lo

E há-de exame atento, no mínimo, implicar.

O Estado é a lã de seu regalo,

Temos de o cardar,

Não vá nele picar

Algum persistente calo

Que a vida colectiva ande a infectar

E traga abalo

Fora de tempo e de lugar.

 

Segundo o critério sem engano,

Obviamente, do tirano.

 

 

1618 - Lei

 

A lei é menos importante

Que um primo bem colocado.

Naquilo que adiante,

Nosso triste fado

É que a lei serve para o parente e amigo

Bem colocado pôr a bom abrigo

O mal colocado amigo e parente.

Sabe-o bem e amarga-o toda a gente.

 

Não é aqui apenas,

É mundo fora, em todas as arenas.

 

 

1619 - Partido

 

Vai um partido, outro vem

E o buraco em minha rua

Eterno ali continua

Tal e qual sempre também.

 

Tal buraco é, de evidência,

Um precioso buraco:

Serve a comprar a pataco

Do eleitor a consciência.

 

Faz parte do sonho meu

Vê-lo tapado, é-me interno:

Tem por isso algo de eterno,

Quase um pouquinho de céu.

 

É um buraco que é sagrado:

- Ninguém nunca lhe há tocado!

 

 

1620 - Alternativa

 

Não podendo demolir

A grande obra em seu teor,

Há quem corra a destruir,

Em alternativa, o autor.

 

 

1621 - Malícia

 

Mais forte que a fé que remove montanhas

É a malícia feminina que derruba reis,

Imperadores e arromba quaisquer manhas

De cofres e de anéis.

 

Mais que a paz, mais que a guerra,

Este é o verdadeiro poder sobre a terra.

 

 

1622 - Destruir

 

O Homem acorrenta a criação ao infrene impulso

De tudo agora destruir da terra aos céus.

Não foi o homem que do Paraíso foi expulso,

Foi Deus.

 

 

1623 - Revela

 

Um cão revela o que deveras importa

Na vida:

Coragem, dedicação, lealdade,

Alegria, simplicidade.

E abandona fora da porta,

Esquecida,

A lista do que não tem importância:

Não liga nada à elegância,

Carros de luxo, roupas de marca, mansões…

Símbolo de estatuto, que são tais questões?

Um pau qualquer, atirado de repente,

Serve perfeitamente.

 

Um cão avalia quenquer

Não pela cor da pele que tiver,

 

Religião ou classe social maior ou menor,

Mas pelo que no íntimo cada qual for.

 

Que lhe importa se é rico ou pobre,

Estúpido ou inteligente?

O que para ele sobre

É que é pertinente:

- Gosta, fiel,

De quem gostar dele.

 

É tão simples, afinal,

E nós, homens, tão sábios e sofisticados

(E tão mentalmente aleijados)

Sempre com esta dificuldade real

Em perceber o que conta em cada jornada

E o que não conta para nada!

 

 

1624 - Liberdade

 

A liberdade que temos

Pode ser perigosa, ao deslumbrar-nos.

Se não nos precavemos,

Ainda acaba tudo por matar-nos.

 

 

1625 - Coscuvilhice

 

A coscuvilhice dos vizinhos

É o combustível que faz andar

As cidades pequenas, quando aos ninhos

Andam todos, feitos miúdos, por todo o lugar.

 

E, se toda a gente falar,

Vão aparecer

Em teu lar

Para te ver.

 

E, afinal,

Que mal há nisso, que mal?

 

 

1626 - Aguardam

 

Talvez tenhas conseguido o que querias,

Mas não implica que as vias estejam certas.

Aguardam que sejas inteligente, aprendas teorias,

Descubras veredas espertas.

 

E, enquanto aprendes teu ofício,

Impedem que te comportes bem,

Impõem que fales baixo, em teu benefício,

Não corras pela casa além…

 

Entretanto, o lar é o lugar de treino

Para a boa esposa,

O bom casamento,

Como ocorreu da mãe com o reino,

Da avó com o elemento

De que hoje a progénie goza.

 

Nunca ninguém te perguntou

Se querias algo mais,

Algo diferente.

Quando questionaste, alguém te mandou

Calar pretensões tais,

Já tudo foi previsto à tua frente.

 

Lê um livro, rapariga,

Para o discutires de modo inteligente,

Mas não inteligente demais,

Não vá o rapaz que regular te liga

Cuidar

Que mais inteligente do que ele hás-de acabar!

 

É teu dever inefável,

Ao casar,

Construir um lar

Agradável.

 

É a soma de todas as femininas ambições

Da traição.

- Que admira que no coração os tições

Ateiem contra tudo aquilo a contradição?

 

 

1627 - Filhos

 

Os filhos, sinto orgulho deles,

Por eles fico feliz.

Crescem, porém, de tão imbeles

De raiz,

Muito mais depressa do que poderia

Prever

Algum dia

Que viria a acontecer.

 

Num minuto esfregas sujinhas caras,

Com jeitos comedidos,

No instante seguinte contigo deparas

De noiva a comprar vestidos!

 

E mal de espanto a boca destapas

Já te andam eles a dar-te nela as papas.

 

 

1628 - Mutuamente

 

Recordem, quando mutuamente se desencantam

E tudo forem fitas,

Que passarinhos apaixonados nem sempre cantam

As melodias mais bonitas.

 

 

1629 - Trucidados

 

Trucidados da vida nos rolos,

O que importa é preservar o crítico elo:

- Se o amor não nos transforma em tolos,

Que mais poderá fazê-lo?

 

 

1630 - Despejar

 

Quantos de despejar precisam

Os próprios problemas, de topo a topo,

Mais do que visam

Que o criado lhes despeje uísque no copo!

 

 

1631 - Atinge

 

Que homem há que não perca o juízo

E a mão desarme

Quando a mulher o atinge com o sorriso

De anda-aqui-buscar-me?

 

 

1632 - Encantamentos

 

- Uma mulher como tu, a mente sem mito,

Crê de encantamentos nos avanços?

- Se acredito?!

Eu lanço-os!...

 

 

1633 - Objecto

 

Um objecto que é louvado

Não é tornado por isto

Pior ou melhor um bocado,

É-lhe só mudado o isco.

 

 

1634 - Fugir

 

Há quem seja tão, tão rico,

Buscando fugir do oblívio,

Que já nem vê nenhum pico

Aonde encontrar alívio.

 

 

1635 - Estranha

 

Que estranha a tua conduta!

Para teus concidadãos

Não terás nenhum louvor

Mas só para quem te escuta

E que brotar destes chãos,

Que for o teu sucessor

Que não viste nem verás,

Que és da geração de trás.

 

É como se te afligiras

Por quem já te precedeu

Não cantar dele nas liras

Lisonjas em louvor teu!

 

 

1636 - Virá

 

Virá cada qual ao mundo,

Deveras, a bem dizer,

Seja infecundo ou fecundo,

No fundo para morrer.

 

 

1637 - Teia

 

Num mundo aprisionado

Numa teia de crendices e superstições,

Qualquer sinal de alarme arrepiado

É verdade acolhida sem questões

E ditada, evidentemente,

Por um poder transcendente.

 

E ai de quem duvide:

Não há mais quem o acolha nem convide.

 

 

1638 - Mestre

 

Um mestre a representar,

Todo o dia faz de conta

Que é um grande senhor, sem par,

Quando não passa da tonta

 

Criaturinha mais reles.

Mais reles do que qualquer

Destes plebeus cujas peles

De viés nem vê sequer.

 

Sempre a classe dominante

É a deste sapo gigante.

 

 

1639 - Maleita

 

A maleita das cidades

É que estão de preguiçosos

Pejadas quando as invades.

A trabalhar, nulidades,

Parasitas buliçosos,

 

Entretêm-se a inventar

Mentiras de quem calhar.

 

Não te rales, não te rales.

Perante tais nulidades

Tu vales sempre o que vales

E eis porque lhes não agrades.

 

 

1640 - Reino

 

O nosso é o reino onde a inveja

Já deixou de ser pecado

E é virtude que se almeja

E de cultivo esmerado

Nos salões de gente de alta

Onde só juízo falta.

 

 

1641 - Defende

 

Cada qual doutrem a causa

Defende enquanto ele crer

Que assim firma, nesta pausa,

Vantagem que dela aufere.

 

 

1642 - Escravos

 

Aos escravos, não aos livres, é que se pensa

Dar a todo o momento

Recompensa

Por bom comportamento.

 

 

1643 - Rir

 

Rir de alguém nunca é de rir,

Que de alguém rir não convém,

O que bem me há-de convir

É bem me rir com alguém.

 

1644 - Apresenta

 

Quase sempre a natureza

Se apresenta em seu melhor,

De estonteante beleza,

- Sem pessoas em redor.

 

 

1645 - Custo

 

Há quem use avaliar

Doutro homem o valor

Pelo custo a que trepar

O carro que ele use expor.

 

 

1646 - Fúteis

 

Sejamos nós quem sejamos,

Não logramos resistir,

Quando ante os mais nos mostramos,

Fúteis a nos exibir.

 

 

1647 - Divórcio

 

"O divórcio duma actriz

E dum cantor baladeiro?!

 

Como se os negócios vis

Valeram sequer o argueiro

De quem tem olhos subtis!"

- Funga o vozeirão arteiro

De quem, com gestos servis,

 

Se inteira obsessivamente

Da história em toda a revista

Em que tenha lauda assente

E a que deita mão, na pista

De maior coscuvilhice

- Que enjeita ante quem o visse!

 

 

1648 - Errado

 

É mais fácil perdoar

Ao errado ou de errar perto

Que àquele que haja de estar

Certo.

 

 

1649 - Pagar

 

Todos andamos a pagar com dinheiro

Mais ou menos desonestamente,

Despesas falsas com um fingido parceiro

Dum qualquer negócio corrente

E, lavrada a lauda a nosso gosto,

Escapamos da vida ao imposto.

 

Do ladrão o apresto

É apenas mais abertamente desonesto.

 

Se honesto eu for nesta vigília,

Concluo que o ladrão também faz parte da família.

 

 

1650 - Fartei-me

 

Eu adoro estar casado:

Tempo imenso fui solteiro

E fartei-me de acabado

As frases ter por inteiro!

 

 

1651 - Quinze

 

Afirmam que todos têm

Quinze minutos de fama.

O primeiro, espero bem,

Dos meus este é que me aclama

E que os mais catorze à frente

Passem muito lentamente…

 

 

1652 - Filme

 

Nenhum bom filme decerto

Longo é demais para ver,

Nenhum mau filme anda perto

De curto o bastante ser.

 

 

1653 - Meca

 

Numa meca de cinema,

Divórcio equitativo

É cada parte de gema

Receber, negócio esquivo,

A bem medida metade

De toda a publicidade.

 

 

1654 - Quanto

 

Toda a gente deveria

Ficar rica e bem famosa,

Fazer quanto sonharia,

Para descobrir, na prosa,

Que, finalmente, essa não

É jamais a solução.

 

 

1655 - Resume-se

 

A vida devia ter

Sempre um pouco de loucura,

Senão resume-se a ser

Quintas-feiras sem mistura,

Sem atrás nem adiante

Fim-de-semana constante.

 

 

1656 - Óculos

 

Com meus óculos de sol

Sou mesmo artista afamado.

Sem eles, sou gordo e mole,

De anos muitos embotado.

 

 

1657 - Aluno

 

O aluno do liceu é canibal,

Alimenta-se do coração partido das donzelas,

Enquanto elas ficam a assistir ao que é fatal.

E depois ele encolhe os ombros às sequelas,

Exibindo um sorriso ensanguentado

De apologia ao que se houver passado.

 

 

1658 - Melhor

 

A melhor das decisões

Num casamento talvez

Se baseie no que expões,

Não enquanto sincero és,

 

Mas enquanto somas baixas

Que a verdade causaria

A comparar ao que encaixas

De salvamentos por dia

 

Provenientes da instância

Que resulta da ignorância.

 

 

1659 - Vento

 

Se te ama, podes-lhe dar

Vento em saco de papel,

Que ele o vai apreciar

Tal tu dentro em tua pele.

 

 

1660 - Compra

 

Compra a um homem-papagaio

Na loja da passarada

Um cliente e, como ensaio,

Treina-o na língua falada.

 

Mas, após uma semana,

Ele nem um termo diz.

Torna à loja que o engana

A devolvê-lo, infeliz.

 

Mas o lojista sugere:

"Arranje-lhe um bom espelho,

Que, ao olhar-se como quer,

Logo fala, é o que aconselho."

 

Compra-lhe o espelho o cliente,

Mas recusa-se a falar,

Do modo mais renitente,

O homem-papagaio alvar.

 

Uma semana mais tarde

Torna à loja o comprador.

Diz-lhe o dono com alarde:

"Dê-lhe música, senhor,

 

Que ela obriga a que ele fale!"

Uma semana depois,

Num jeito que os fundo abale,

Conversam de novo os dois:

 

"Ele para o espelho olhou

E tocou a campainha,

Uns termos lá murmurou…

Do poleiro que o sustinha

 

Tombou, finalmente, morto."

E o comprador já definha,

Vergado o pescoço torto,

Da má sorte que detinha.

 

"Que é que o homem-papagaio

Disse, afinal?" - quis saber

O lojista, já cambaio.

O cliente, a entristecer,

 

Conta o que ele mal entende

Que ouviu da voz dolorida:

"Mas essa loja não vende

Para pássaros comida?!"

 

 

1661 - Excepção

 

Claro que vosso filho

A todos é superior!

Ora, como nisto são todos tais quais,

Por que é que de excepção o brilho

Nele mais que nos mais

Hei-de supor?

 

 

1662 - Antecipado

 

Costumas fazer velório

Antes de algo te morrer,

Sofres na carne o mortório

De antecipado te haver:

Os problemas que te ulceram

Ainda nem aconteceram!

 

 

1663 - Cérebro

 

Nosso cérebro juízo

Do que nós próprios tem mais,

Fecha as janelas, preciso,

Das memórias e do mais

 

Quando é de pensarmos menos,

De menos força gastarmos.

Ante ela, somos pequenos,

Basta um pouco exagerarmos!

 

 

1664 - Ficando

 

Mesmo quando houvera paz,

Paz não terá quem comanda.

Ficando o inimigo atrás,

É o amigo que então anda

 

A lutar, que mais não seja

Para ter dele o favor.

Quem não tem coroa veja

Como alegre é seu pendor:

Não é motivo de inveja,

Ninguém lhe busca o calor.

 

De vez pode ter a paz

Que quem manda nunca traz.

 

 

1665 - Padre

 

Não há mente mais daninha

Que a duma boa mulher,

Só dum padre a que maninha

É do amor que não tiver.

 

 

1666 - Lágrima

 

A lágrima que a mulher

Derrama, por mais profundo

Que seja o grito que clama,

Bem pouco nos marca o mundo.

 

 

1667 - Azar

 

Para mim a vida é um gozo

Singular:

Não sou supersticioso,

Dá-me azar.

 

 

1668 - Resposta

 

Se um lar precisa de ajuda,

A resposta é divertir-se:

Larga as queixas, tudo muda

Na montanha-russa ao ir-se.

 

 

1669 - Atender

 

Tempo maior de atenção

Não existe: sou capaz

De atender sem medição

Quem de entreter-me é capaz.

 

 

1670 - Ementa

 

A ementa de antigamente

Opções duas tinha a par,

Sem terceira haver presente:

- Era pegar ou largar!

 

 

1671 - Comer

 

Não se pode com verdade

Dizer que se vive bem

Se a par comer bem não há-de

Confirmar-se então também.

 

 

1672 - Vegetais

 

Se os vegetais na dieta

São deveras essenciais,

De cenoura o bolo enceta,

Pão de curgetes completa

De cabaça em tartes reais.

 

Se ficas um pipo ao fim,

Se calhar é mesmo assim…

 

 

1673 - Cuidado

 

Cuidado, solerte,

Com aquilo por que oras distraído:

- Pode vir a ser-te

Concedido!

 

 

1674 - Tenta

 

Tenta viver sem nunca

Chamares, na ocasião

Da flor que a vida junca,

Do príncipe a atenção.

 

 

1675 - Confunde-os

 

Se com ciência ofuscá-los

Não consegues, outras vias

Então lhes trarão abalos:

Confunde-os com ninharias.

 

 

1676 - Ouriço

 

Os que a mim me aborreceram

Não são de ouriço arremedo

Cujo picos só se ergueram

Quando ele tem muito medo?

 

 

1677 - Fome

 

A temperar o alimento

Com os mais sápidos tratos,

Fome é o melhor condimento

Para os mais grosseiros pratos.

 

 

1678 - Olho

 

Como não ter por blasfemo

Falar mal do imperador,

Se o olho que o Deus supremo

Tal se fora ainda maior?

 

 

1679 - Findar

 

Nunca aos homens (não às mulheres) agrada

Uma guerra findar qualquer:

- Fixos na jogada,

Querem-na vencer.

 

 

1680 - Sonhar

 

Sonhar é mui confortável

Desde que nunca façamos

Aquilo com que sonhamos.

 

Então o risco é evitável:

Não sofremos frustrações,

Difíceis desilusões.

 

E, quando ficamos velhos,

Podemos sempre culpar

Outrem (nossos pais, o lar,

 

Os filhos de maus conselhos…)

Por não termos realizado

O sonho que foi sonhado.

 

 

1681 - Falam

 

Como se souberam tudo

Todos falam, tal é o mundo.

Se ouso perguntar, agudo,

Não sabem nada, no fundo.

 

 

1682 - Mascaradas

 

As mascaradas do sexo:

Quantas caraças encontro,

Usadas em cada anexo,

A escapar a um vero encontro!

 

 

1683 - Estúpidos

 

Os estúpidos merecem

Bilhete de identidade

Exclusivo, que abastecem

De loucos a humanidade!

 

 

1684 - Finge

 

Apenas quem é mendigo

Nunca finge andar contente.

Ao invés, se dou-lhe abrigo,

Faz de triste eternamente.

 

 

1685 - Gravata

 

Gravata é distanciamento,

É poder de escravidão.

Útil será, de momento,

Para chegar ao serão,

Tirá-la, na sensação

De que fico ali em pé

Livre de nem sei o quê.

 

Engravatamos o dia,

Nem vemos que é que anuncia.

 

 

1686 - Enricar

 

Quando a miséria sacodem,

Povos a enricar se aplicam.

Quão ser mais felizes podem

Mais desinfelizes ficam:

 

Acorrem aos hospitais

E às romarias, jamais.

 

Quão mais cresce a economia

Mais se lhes vai a alegria.

 

Mais vive da moeda o mundo,

Mais lhe morre o que é jucundo.

 

- Como é que nem mesmo a custo

Advém o equilíbrio justo?

 

 

1687 - Escândalo

 

Quando o marido arranjou

Uma amante desejável,

Um escândalo estalou,

Ela perdeu peso, instável,

Partiu copos, sem maneiras,

E, por semanas inteiras,

Nenhum vizinho dormia

Dela com a gritaria.

 

Por estranho que pareça,

Foi o tempo mais feliz:

Lutou, ergueu a cabeça,

Buscou aquilo que quis,

Sentiu-se viva e capaz

De reagir ao desafio

Do modo mais eficaz:

- Viveu, por fim, sem fastio!

 

 

1688 - Tragédias

 

Quando uma comunidade

Tragédias tem de enfrentar,

Se o suicídio a invade,

Depressões vão acabar,

Paranóias e psicoses

Já de ninguém são algozes.

 

Porém, quando ultrapassado

O problema, são normais

Os números de tal fado,

Retornam os tremedais.

Ser louco serei então

Só de tal se há condição.

 

 

1689 - Arrastar

 

Homem que ande a arrastar asa

À mulher deste e daquele

Merece na própria casa

Quem lho faça igual a ele.

 

 

1690 - Mudar

 

Há quem queira mudar tudo

E ao mesmo tempo deseja

Tudo igual e, neste Entrudo,

Só Carnaval lhe viceja.

 

 

1691 - Tipos

 

Há dois tipos de idiota:

Um não faz, de ameaçado,

Outro aposta em sua quota

De ameaçar, por seu lado.

 

 

1692 - Cuidei

 

Num mundo cuidei viver

Com Deus em todo o lugar

Entre homens até me ver

Que o nunca deixam entrar.

 

 

1693 - Usos

 

Melhor nos usos da espada

É quem for mesmo de pedra:

Com a lâmina embainhada

Logra provar que o que integra

Nenhum fogo, nenhum gelo

Nunca poderão vencê-lo.

 

 

1694 - Feliz

 

Tenho sido feliz sozinho

E tenho sido infeliz sem ti, todavia.

Se me podes tornar infeliz, adivinho,

Também feliz me podes tornar cada dia.

 

 

1695 - Sempre

 

Sempre o forte compreende,

Enquanto o frágil condena.

A falha para que tende

Conhece o forte com pena;

O frágil só mal responde

E atrás da falha se esconde.