DÉCIMO TERCEIRO TROVÁRIO
SOU TUDO NÃO SEI COMO NEM SEI QUANDO
Escolha aleatoriamente um número entre 1481 e 1592, inclusive.
Leia o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
1481 - Sou tudo não sei como nem sei quando
Sou tudo não sei como nem sei quando,
É o que o trovário me insinua
Em qualquer métrica vogando,
Nos poemas em que mando
Flechas de prata varejando a Lua.
Sou o ser
E sou o amor
E do dever
Sou o valor
E sou tudo amalgamado ao infinito,
No Infinito que viso
E não concito.
No trovário me encontro tendo siso
E me projecto para além de qualquer juízo.
1482 - Condenados
Estamos condenados ao significado,
Condenados a criar valores e julgamentos.
Não basta saber o que me dói aqui de lado,
Não basta a patologia ter um nome dado,
Mas também por que é que sofro tais tormentos.
Eu, por quê? E, sendo eu, que significa?
Que fiz de errado?
Como é que isto se me aplica?
- Vinculo à patologia um significado.
Para alcançá-lo,
Dependo primeiro da sociedade,
De histórias e sentidos com que daquilo falo.
E então nova doença junto, minha enfermidade
Lendo menos por mim e mais pela comunidade.
1483 - Encontrar
Terei de encontrar formas de melhor contactar
Minha psique profunda,
O germe íntimo de crescimento contínuo basilar,
Que é tão perto quanto logro chegar
Do Deus dentro de mim que dentro de mim me inunda.
Aprender a compreender isto e a segui-lo
É ouvir e obedecer
À vontade de Deus, firme e tranquilo.
Em nós entrar e contacto estabelecer
Com nossa parte mais profunda e verdadeira,
Alimentá-la, deixar que amadureça,
Investi-la do poder de sementeira,
Mesmo quando contra a mente racional tropeça,
É onde o verdadeiro dia começa.
1484 - Mutuamente
Todo e parte não são mutuamente exclusivos,
O místico sente dor, fome, riso e alegria…
Ser parte dum todo torna-nos mais vivos,
Não evapora a parte em becos esquivos,
Dá-lhe o fundamento, o significado que anuncia.
És um indivíduo e, contudo,
És parte da família, unidade mais vasta,
Que noutra maior, a comunidade, se engasta…
Já sentes isto tudo,
És parte de vários todos maiores que tu mesmo
E todos dão valor e significado à tua vida.
E assim é que em mim não me ensimesmo
E, ao ser parte íntima do Cosmos, isto convida
Ao sentido e valor maior que com o Todo lida.
1485 - Caminho
Ao meditar,
O cristão, budista, hindu, judeu ou muçulmano
Trilha um caminho de alma, ao se aventurar
Para o interior onde venha encontrar
A identidade suma com o Deus de que emano.
O reino dos céus mora dentro de ti
E a meditação é, desde o início,
A via régia de captar até o menor indício
Deste reino que mora aí.
Independentemente doutros efeitos
Benéficos e numerosos, em corrente a se impor,
A que findaremos afeitos,
Meditar aquece as mãos ao calor
De teu Deus interior.
1486 - Prática
Meditar é espiritual
Mais do que religioso.
Enquanto prática visceral
Não tem a ver com crenças, dogmas, ritual,
Mas com Deus, fundura do ser que gozo.
É despertar para o Eu verdadeiro,
Não orar pelo meu pequeno eu;
Disciplinar a consciência no mundo que é o meu,
Não impor morais de igreja em cada canteiro.
É do espírito que habita no coração
De todos nós, enfim,
Não do que nesta ou naquela igreja é feito ou não.
Tem a ver com o autêntico de mim,
Não com sinais da rota de chegar a tal confim.
1487 - Consciência
A consciência dominada por auto-contracção,
Pelo dualismo sujeito-objecto,
Do real será incapaz de percepção,
Da realidade como totalização,
Enquanto Identidade Suma, sumo tecto.
O pecado
É a auto-contracção,
O sentido do eu separado,
É o ego, não do que faz mas do que é no coração.
Isolado, distinto do Todo,
Sente o eu aguda privação, carência, fragmentação:
O eu nasce caído, o sofrimento é dele o modo.
A dor não lhe acontece, é-lhe inerente ao chão:
Eu, pecado e dor, vários nomes de igual nome são.
1488 - Interior
O espírito existe
E no interior de cada um pode ser encontrado.
A maioria, contudo, não logra dele o despiste
Porque num mundo persiste
De separação, dualidade, pecado.
Sofremos, pois, uma queda,
Vivemos num estado ilusório.
Da ilusão e queda há um portão que nos conceda
A libertação de tão triste envoltório.
Se a Via trilhar até ao termo,
Ganho um Renascimento, Iluminação,
Experiência directa do imo, já não enfermo,
Mas livre de pecado e dor:
Vivo na afeição,
Com misericórdia por todos, todo eu compaixão.
1489 - Identidade
Perceber não posso a identidade minha
Una com o Espírito, que a mente vive
Sempre obnubilada na voraz gavinha
Duma actividade e, absorto nesta vinha,
Nela me envolvi sem que o demais arquive.
É uma actividade contrair, focar
A minha consciência no meu eu pessoal.
Jamais fica aberta, em Deus centrada, a par,
Fica auto-centrada, contraída, irreal.
E é precisamente ao contracção manter,
Excluindo o resto, que encontrar não vou
Minha identidade ao vero Todo, ao Ser.
Minha natureza individual baqueou,
A queda sofreu e tal pecado sou.
1490 - Separado
Em pecado vivo, separado, alheio
Ao Todo, Universo, tal do mundo ao resto.
Estou exilado, separado, a meio
Do mundo lá fora que percebo cheio
Do que, a mim externo, é estranho, hostil apresto.
E o meu próprio ser não me parece unido,
Uno com o Todo, uno com quanto existe
Nem com o Infinito a que andarei fundido:
Membro decepado a se reunir resiste.
Pareço estar antes por inteiro armado
Contra tudo o mais a defender, letal,
Meu canto vazio, meu quintal fanado.
Sou um prisioneiro no torreão fatal,
Muralha isolada em corpo meu mortal.
1491 - Crença
Predomina a crença de que o mundo actual
Eurocêntrico é, patriarcal, sexista,
Todo a se embeber duma razão total,
E então, por contraste, vai querer a actual
Sempre igualitária e pluralista pista
Que nega a qualquer visão do mundo ser
Melhor que qualquer outra visão ao lado.
Liberal parece, que melhor quenquer
Nem mais elevado pode ser sagrado.
Porém, se melhor nada há-de ser, então
Como propugnar que melhor é uma via
Que não empecilhe o que é melhor versão?
Só uma integradora visão não adia
Toda a liberdade por que alguém porfia.
1492 - Ouvir
Preciso de ouvir esta interior voz minha,
Esta orientação que com fulgor impele.
Vou fortalecê-la, alimentá-la, linha
Para contactar contra o que em mim definha,
A fim de investi-la dum poder que apele.
Lograrei ouvi-la direcção a dar-me,
Linha de rumar que impetro em minha vida,
Expande-me o peito num viável carme,
Logro dimensão com invulgar medida.
Em germe primeiro e aprofundada após,
Há-de extravasar em atenção cuidada
Por qualquer problema que nos toque a nós,
Esta humanidade, a deusa aqui fanada,
E do eu separado livrar-me-ei de entrada.
1493 - Provas
São sempre experienciais
As provas que me baseiam.
A ciência como o mais
São só vivências finais
Que, no fundo, me rodeiam.
Da consciência não posso
Deveras desconfiar,
Que, ao desconfiar, emposso
Minha consciência a par.
Quer na prova exterior,
Quer na vivência em meu imo,
Tudo é da mente fulgor.
Pedra ou mística experiência,
Como o mais, tudo é vivência.
1494 - Miséria
A miséria humana já infeliz se encontra
No hiato cavado entre sujeito e objecto.
O ego nem sequer será sujeito em montra,
São séries de objectos, a favor e contra,
E uma identidade só deslindas, recto,
Começando a olhá-lo, testemunha externa:
Como testemunha, já não és um ego,
Olha-lo de fora e a quanto nele hiberna,
Não te identificas mais com dele o pego.
Como podes ver teu pensamento, imagem,
Então não são eles quem observa e que és,
Tua identidade muda nesta viagem.
Uno a todo o espaço que se te abre aos pés,
És uno com tudo, Deus de lés a lés.
1495 - Sofrimento
Dum eu o desejo o sofrimento causa
E, para acabá-lo, só acabando o eu.
Tal não significa, após de luz a pausa,
Que já não sintamos dor, angústia, a causa
Do medo de outrora que senti por meu.
Só não me ameaçam a existência agora,
Não me identifico já com eles nunca,
Não os energizo, nem perigo mora
Onde em mim não sinto disso a garra adunca.
Um eu separado já não há que ataquem
E o grande eu que é Tudo já não pode ser
De fora atacado: a que outro cais atraquem?
Um relaxamento o coração vai ter,
Já nada o afecta, verdadeiro ao ser.
1496 - Testemunha
Não é a Testemunha nunca igual ao ego
Nem a qualquer outro objecto que haja em mente,
Limita-se a olhar com imparcial sossego.
Mas a Testemunha, assim alheia a apego,
Separado ainda todo o objecto sente,
Subsiste uma forma de subtil dualismo.
Sendo já um enorme passo em frente dado,
Ainda não é definitivo fado:
Deve a Testemunha ser em tudo o abismo,
Dissolver-se em tudo é o testemunho adiado.
A dualidade aqui findou de vez,
Não-dual consciência atinge o fim visado:
Só, naquilo que olhas, é quem vê que vês,
Olhador e olhado o mesmo são de vez.
1497 - Transcendente
Ver o eu transcendente não o vê ninguém,
Que jamais consegue um olho a si se ver.
O que é requerido é eliminar alguém
Falsa identidade, pelo corpo além,
Com mente, moções ou ideais quaisquer.
O que conseguimos ver não pode ser
Um observador que observa o que haja em frente.
O que sei de mim meu eu não é qualquer,
Pois qualquer objecto é um outro, dele ausente.
Quando eu em meu imo este meu eu contacto,
O que quer que seja deixo então de ver,
No imo fico livre, desprendido, em acto.
O verdadeiro eu é uma abertura a haver,
Não sendo uma coisa, livre passo a ser.
1498 - Interna
Religião interna é a de não crer em nada,
Crítico é não crer em dogma algum que houver,
Antes experiências pessoais, de entrada,
Quer que nós tenhamos, o que à mente agrada,
O laboratório que nos tria o ser.
Por crenças, desejos, quer trocar vivências
Que verificadas por quenquer ser podem
Que execute em si, correcto, iguais valências
Que em meditação a qualquer um acodem.
Privada não é tal religião interna,
Como matemática se prova inteira
Na emoção que a vive e saboreia, terna.
É um saber interno a validar-se à leira
Do meditador que lhe quer ir na esteira.
1499 - Ansiedades
Quando percebemos que jamais seremos
Nossas ansiedades, já nos não ameaçam.
Presentes embora, à mão seguro os remos,
Já não me submergem, laços meus supremos
Com elas somente nunca mais se enlaçam.
Então a ansiedade é plenamente aceite,
Tal como ela for já espanejar-se pode,
Olho-a como a nuvem, bolha em céu de azeite
Que um sopro de vento ao discorrer sacode.
O que nos perturbe, uma emoção, memória,
É simplesmente algo com que troco acaso
Minha identidade, a me iludir sem glória.
Curo o que perturba ao desligar-me, a prazo,
De tal confusão que me acalcanha raso.
1500 - Cair
Vou deixar cair quanto não fora eu
Ao compreender que não sou eu aquilo:
Como o posso ver, será do mundo meu,
Mas jamais eu próprio que sou quem o leu,
Como observador, fora eu me a mim perfilo.
Como não sou eu, não há qualquer razão
De identificar-me ou me prender a tal,
Nem de submeter-me nunca a tal prisão,
Pois testemunhar é a transcender igual.
Já não se apodera de quenquer por trás
Porque reparamos nele ali de frente.
Por dentro liberto, ficarei em paz,
Mergulhei das ondas do mar bravo, ingente,
Às braças profundas donde nele atente.
1501 - Rotas
Não houve, em todas as vidas,
No tempo certos momentos
Que transtornam as medidas,
Alteram rotas batidas,
Tudo ruma a outros ventos?
Rota não imaginada,
Direcção que é fantasia,
Ou que custa a mais de entrada
Para crer que antes se via.
Podem vir da mão do acaso
Ou quando menos se espera
Ou no mais difícil prazo…
Dum passarinho são mera
Asa a abrir-nos à quimera.
1502 - Pardais
Os pardais que no caminho
Me trocam o rumo à vida
Têm destino sozinho:
Não mais retornam ao ninho,
De vez é a rota seguida.
Pode ser tique dum rosto,
Leitura duma palavra
- E a vida salta do posto,
Lavra agora noutra lavra.
É um instante inamovível,
Fixo num fatal momento,
Irremediável, terrível:
De nada me vale o intento
De escapar do fado ao vento.
1503 - Décadas
Muitos filhos com os pais
Durante décadas vivem,
Admiram-nos como tais,
Porém no mundo que arquivem
Não penetrarão jamais.
Não lhes conhecem os sonhos,
Angústias, páginas do imo,
O instante alegre, os tristonhos,
A história da base ao cimo.
Valorizarão os pais
Quando perderem o arrimo,
Quando os perderem, sem mais.
Descobri-los desejarem,
Só quando silenciarem.
1504 - Mestre
Mestre que não surpreende
Os discípulos em frente,
Que histórias não lhes acende
E os afectos lhes não prende,
Pode um saber excelente,
A eloquência brilhante
Ter que nunca brilhará
Nos solos que arar avante
Nas pessoas que tem lá.
Pode ser um transmissor
De informações à medida
De cada sede e sabor
Mas jamais será na lida,
Jamais, um mestre da vida.
1505 - Sistema
O sistema social
Pode entorpecer-nos tanto
De drogas quanto o estendal
Da química marginal
Do crime, furto e do pranto.
Pode controlar a nossa
Maneira de ser e agir,
De ver a cara e a bossa
Da vida que em nós bulir.
Não sejas, pois, previsível,
Surpreende a ti, aos mais,
A rotina supre, horrível.
Liberta, em dias que tais,
Teus criativos sinais.
1506 - Libertar
Nossa criatividade
Libertar impõe gerar
Na vida que nos invade
Uma aventura que agrade,
Maravilha lapidar.
Colhe possibilidades,
É ter prazer no que é novo,
Descobre novas idades,
Desafios choca em ovo.
E tudo quanto aprecio
Vem a reger minha sina
De fio então a pavio.
- Libertas-te de oiro a mina
Ou refechas-te em rotina?
1507 - Contra
A nossa maior vingança
Contra quem decepcionou
Entender-lhe é a frágil dança
Com que ante nós se aprestou
E perdoar-lhe o que alcança.
Se lhe perdoas, acabas
Por ficar livre de vez
De quem nunca menoscabas,
Por mais vil, por mais soez.
Se odeias, ele então dorme
Contigo e em teu abono
Nada mais terás conforme.
Ao te perturbar o sono
Acaba feito teu dono.
1508 - Trás
Por trás dum autoritário,
Um frágil sempre se esconde;
Dum agressivo primário,
Um infeliz que, sumário,
Nem voz tem que nos responde.
Surpreenda-os, então,
E os elogie também,
Perdoe-lhes o senão
Em nome do mais que têm.
Dentro dos mais complicados,
Na fundura que adivinho,
Há gestos inesperados
De criança, num cadinho
Que atenção quer e carinho.
1509 - Professor
Qualquer professor descobre,
Embora não veja a causa,
Que o jovem de hoje se encobre
Duma agitação que sobre,
Frenética, até sem pausa.
Vivem sem concentração,
Inquietos sempre demais,
Sem respeito ou comunhão
Com ninguém, com ninguém mais.
Curiosidade, se houver,
Têm-na tão transviada
Como o prazer de aprender.
- Finda a vida destroçada
Só dum pouco acelerada.
1510 - Mesa
Não duvides nem critiques
Apenas tempo a entreter
Em torno à mesa em que fiques
Praticando o que pratiques,
Em vez de agir e de ser.
Determina ser alegre,
Seguro, forte e não servo
Do conflito que te integre,
Dobra-lhe o músculo, o nervo.
Encanta-te pela vida,
Frui do belo iridescente,
Por sonhos luta em seguida.
E proclama, convincente,
Isto em palco a toda a gente.
1511 - Vítima
Todo o que vítima for
Duma ideia negativa
Vive do mar no furor,
De longe acena ao fulgor
Da tranquilidade esquiva,
Não lhe logrará sentir
O perfume divinal.
Quem controlado se vir
Por negativo estendal
É uma folha desprendida
Ao vento das circunstâncias,
Sem direcção assumida.
Não tem, prisioneiro de ânsias,
Âncora em quaisquer instâncias.
1512 - Emoção
A emoção pode gerar
A liberdade mais rica
Ou a prisão celular
Mais drástica a atazanar:
Prisão de emoção que fica
A pontificar cá dentro.
Muitos vivem na prisão,
Prisioneiros bem no centro
Da mente e do coração.
A emoção administrada
Deverá ser, que é premente
Bem conduzir pela estrada.
Mas impossível é assente
Domá-la completamente.
1513 - Manifesta
Um pensamento de morte
Manifesta, enfim, a vida,
Pois vivo pensa, de sorte
Que é vida que pensa a morte,
Não morte que pensa a vida.
Olhando, pois, de través,
É vida que se ensimesma,
Jamais, portanto, ao invés,
Morte pensando em si mesma.
Possível não é consciência
(Somos nós sempre a nos vermos)
Do que for inexistência.
Da contradição nos termos,
De razão muitos são ermos.
1514 - Administrar
Administrar a emoção
É ser livre de sentir,
Não ter algemada a mão
Por sentimentos que irão
Aprisioná-lo a seguir.
É capacitar o eu
Para dissipar o medo,
As ânsias com que tremeu
Reciclar em novo credo,
Superar a insegurança.
Veja que emoção esquiva
No peito lhe espeta a lança.
Domada a fronte impulsiva,
Então paciente viva.
1515 - Enfrenta
Não fujas de tua dor,
Enfrenta, encara, repensa.
Se tu foges, sofredor,
Torna-se ela em ti maior,
Monstro à espreita na despensa.
Ao enfrentá-la, porém,
Ela será superada,
Reciclada logo além
E, por fim, domesticada.
Irás dominá-la então,
Mesmo que doa é um doer
Com a rédea tida à mão
De quem impor-se-lhe quer
Como a uma fera qualquer.
1516 - Entendes
Quando tua pequenez
Entendes, entendes mais:
A dos outros toma vez,
Que à tua igual é na tez,
Tem de ti próprio os sinais.
Se, porém, num pedestal
Te colocas fácil é
Julgar do bem e do mal,
Outrem condenar até.
A grandeza de ser homem
É de se fazer pequeno:
Que em si doutrem gestos somem.
E entender que este é o terreno
Por detrás de cada aceno.
1517 - Sujidade
Todos são contraditórios:
Da sujidade exterior
Livram-se dos envoltórios;
À interior genuflexórios
Erguem de si em louvor.
Da alimentação se ocupam
Física correctamente,
Mas jamais se preocupam
Do que lhes ocupa a mente.
A qualidade de ideias
E de emoções que os invade
É deixada em mãos alheias.
Nutrem personalidade
Do acaso que acaso a grade.
1518 - Tímido
O tímido é sempre alguém
Que óptimo é para os demais
Mas não para si também.
A todos requer, porém,
Agradar, sem cuidar mais
Da vida que lhe convier.
As palavras policia,
Molda os gestos que tiver,
Perde o à-vontade em tal via.
Fala pouco, pensa muito,
Gasta demais energia,
De ansiedade que há no intuito.
Nunca mais tarde este guia
Consigo conversa um dia.
1519 - Reino
Do reino ideal a via
Há-de ser tão elevada
Que nunca dominaria
Nem os mais controlaria
O maior que tem lá entrada.
Há-de ser quem mais servir,
Quem mais der, o que emprestar
Coração e dom de ouvir
A quenquer que precisar.
E nunca, em contrapartida,
Cobra juros em retorno
De ninguém, todos convida.
O maior tem por adorno
Ser de toda a aldeia o forno.
1520 - Constantes
Os pais como os professores
Deveriam ser de sonhos
Os constantes vendedores.
Deviam nos interiores
Dos jovens, por mais bisonhos,
Plantar as belas sementes,
As mais ricas e diversas,
Para os tornar, entrementes,
Mesmo em condições adversas,
Livres intelectualmente
E a brilharem de emoção
Na noite mais renitente.
Quanto mais sonham no chão
Mais os jovens voarão.
1521 - Registado
Cada ideia, pensamento,
Ansiosa reacção,
De insegurança momento,
De solidão elemento,
Registado é logo então
Na memória imediata
E fará parte da manta
De retalhos que retrata
A história que a vida planta,
É um filme inteiro em seguida.
Diariamente, portanto,
Flores semeia da lida
Ou lixo recicla ao canto
Da memória o chão de encanto.
1522 - Alegrar
Muitos têm bons motivos
De se alegrar e são tristes,
Ansiosos e furtivos.
Às privações sempre esquivos,
Família têm que alistes,
Bons amigos e dinheiro,
Mas especialistas são
Em reclamar o ano inteiro.
Não governam a emoção,
São governados por ela.
A emoção insatisfeita
Quer muito e pouco dá dela,
A saudável muito ajeita
Do nada a que for sujeita.
1523 - Muro
Como é que em muro rachado
Pode haver qualquer beleza?
Além vê do que é mostrado:
Quem o quis alevantado,
Que sonhos prezou e preza,
Como há-de ele agora estar,
O que é que andará sentindo
Neste outro tempo e lugar,
Que brechas outras abrindo…
As fendas no muro vão
Falando discretamente
Num inaudível refrão.
À orelha que ali atente
Lendas contam brandamente.
1524 - Trabalhólicos
A energia inteira investem
Muitos na empresa e labor,
Trabalhólicos que vestem
Máquinas de que os revestem
Empreitadas de suor.
Na paz de espírito não
Investem nem no prazer
De viver, na relação
Que com íntimos houver.
Admirados socialmente,
Têm um teor de vida
Péssimo no que se sente.
Empobrecem na mentida
Ribalta da teia haurida.
1525 - Teatro
No teatro de nossa mente
Somos todos nós iguais,
Judeu não é nenhum ente,
Árabe, africana gente,
Nem de chinês há sinais…
Somos por igual humanos,
À única pertencentes
Espécie, sem mais enganos,
De que somos descendentes.
Há lonjuras culturais
Mas duma mente a cadeia
É igual à dos outros mais.
Discriminar não alteia,
Sopra os incêndios que ateia.
1526 - Regras
Aprendem informações,
Regras da língua e sociais
E de experiências noções,
Não de vivência aluviões
Que de imagens mil mentais
Serão sempre elaboradas:
Pôr-se doutrem no lugar,
Tolerâncias partilhadas,
Sabedoria a apurar…
Vai falir a educação
Na sociedade moderna
Por tal falta de atenção.
O mundo em egoísmo hiberna
E é dele a campa superna.
1527 - Qualidade
Sem qualidade de vida
Fica o rico miserável,
O forte bem frágil lida,
O famoso uma iludida
Farsa vive indisfarçável.
Não cuidamos com cuidado
De nossa vida o teor.
Quem é perito encartado
Da emoção e seu fulgor?
Há quem controle países
Mas de emoções doentias
Que lhe prendem as raízes.
De lesões há tais razias
Que algumas nem as verias!
1528 - Aprendemos
A prendemos a explorar
Átomos em pormenor,
Forças do Cosmos, a par,
E que o regem, singular,
Porém, o mundo interior
Explorar jamais sabemos.
Tal nenhuma geração,
Muita informação detemos,
Todavia pensar não
Sabemos nem transmudar
De repente, num momento,
A informação que chegar
Em novo conhecimento
Da vivência em que me invento.
1529 - Normal
O normal é ser ansioso,
Stressado, em desequilíbrio
E anormal, o quieto gozo,
Descontraído, gostoso,
Duma vida sem ludíbrio.
Temos privilegiado
O tratamento à doença
Pondo a prevenção de lado,
Sem lugar para sentença.
Ora, nada é tão injusto
Como gerar o doente
E depois tratá-lo a custo,
Lágrima a mentir, fervente,
De aliviá-lo após contente.
1530 - Breve
Vivemos como infindável
Toda a vida, todavia,
É tão breve e tão quebrável!
Entre a infância interminável
E a velhice é um parco dia.
Os anos que já viveste
Não passaram de repente,
Com rapidez tão agreste
Que é mais veloz do que a mente?
A vida é o raio de sol
De manhã mui sorrateiro
Que, logo após o arrebol,
Anoitecerá fagueiro
Sem vestígios de luzeiro.
1531 - Sábio
Ser sábio não quer dizer
Ser perfeito sem falhar,
Sem chorar nem nunca ter
Fragilidade a temer.
Antes aprender a usar
Há-de ser de cada dor
Como uma oportunidade
Para aprender e compor.
Cada erro o persuade
A corrigir cada rota,
O fracasso é ocasião
De mais coragem que anota.
Na vitória alegre é o chão,
Na derrota é reflexão.
1532 - Rotina
É a rotina sufocante:
Ergo-me do mesmo jeito,
Queixo-me deste constante
Problema que tenho diante,
Do modo a que estou afeito.
Cumprimento toda a gente,
Corrijo filhos, colegas,
Com jargões e cegarregas,
Ando a mesma rua em frente…
Valso a vida com passadas
De pernas sempre a tremer,
De cruamente engessadas.
Dá-te em troca antes prazer:
- Mata a rotina em quenquer.
1533 - Solidão
A solidão mina o lar,
Mina escolas, mina empresas…
Pareço próximo andar
Mas o que é físico, a par
Não tem do íntimo as finezas:
Pai que esconde ao filho a dor,
Filho que ao pai sonho esconde,
O giz que esconde o mentor,
E outros outrem, nem sei onde…
Falamos cada vez mais
Do mundo onde deambulamos,
Animais entre animais,
Mas do mundo, em quaisquer ramos,
Que somos tudo calamos.
1534 - Suicídio
Uns suicídio cometem
Por não terem a coragem
De abrir o ser que introjectem:
Os sonhos que lhes competem
São esmagados quando agem.
A esperança esfacelada,
O amor à vida perdido,
Fantasia espedaçada
Sofrem outros, num olvido.
Tudo por não partilharem
As histórias de viver,
Com medo de os criticarem.
Isolado então quenquer,
Findou-lhe por dentro o ser.
1535 - Precisa
A vida de qualidade
Precisa do ser humano,
Não do herói duma alta idade.
A parede que me invade
Tem de ir abaixo, é um engano.
A lonjura eliminada
Terá de ser entre todos
E a solidão, superada,
Que nos mentem seus engodos.
Útil para reflectir
É deveras a quenquer
(Pé na margem e, após, ir),
Nunca, porém, há-de ser
Útil para alguém viver.
1536 - Grau
O grau de sabedoria,
Maturidade de alguém,
A escola não o media,
Nem empresarial magia,
Nem cume social também.
É só da capacidade
De consigo dialogar,
Questionar qualquer verdade,
As emoções criticar
E então repensar a vida
E refazer os caminhos
Que entortaram na subida.
E só reconstruir os ninhos
Que celebrarem carinhos.
1537 - Humano
Cada humano deve ter
Momentos particulares
Consigo próprio, a se ver.
Deve-se treinar a ser
Seu próprio amigo entre os pares.
Lograr interiorizar-se,
Trilhar pelas trajectórias
De seu imo sem disfarce,
De íntima fala ter glórias.
Há quem fique deprimido
Se se encontra a sós, leveiro,
Ave de ninho perdido.
Dele próprio o dia inteiro
Acaba o pior companheiro.
1538 - Marca
É sempre o empreendedor
Que nos marca a diferença.
Ele ajuda, abre o pendor
Do caminho a nos propor,
Conquista-nos cada tença,
Aquilo vê que não anda
Diante dos olhos nunca,
Corrige o erro em cada banda,
Previne o que a rota junca
E motiva toda a gente,
Traz soluções que jamais
Alguém pôs à nossa frente…
É o empreendedor que amais
Mesmo em vós enquanto tais.
1539 - Tomba
Não é nunca o empreendedor
Infalível nem perfeito.
Tomba e se ergue sem pudor,
Não lamenta a falha e a dor,
Gosta de tomar a peito,
Poder entrar no despique.
A arena da mente dele
Vê que amarrada não fique,
A teimosia repele,
Que é sempre auto-suficiência.
Vai ser esponja a absorver,
Com modéstia e excelência,
Dele como de quenquer,
Toda a experiência que houver.
1540 - Pequena
Devemos rapidamente
Qualquer pequena mudança
Entender e ter presente
E tomar o inteligente
Ajuste que no-la alcança.
Não esperes que o amor
Morra para após tentar
Ressuscitar-lhe o calor
Quando o fogo se apagar.
Não esperes que teus filhos
Fiquem doentes para após
Ir tratá-los dos sarilhos.
Recicla da dor os pós
De que te sujaste a sós.
1541 - Perigo
Ao entrar no labirinto,
O perigo é crer que sabes,
Trepando de orgulho ao plinto
Onde doravante sinto
Que em aprendiz já não cabes.
Quem crê que sabe educar
Os próprios alunos, filhos,
Pode nem os conquistar
E vai perdê-los nos trilhos.
Quem crê que entende do amor
Poderá perder quem ama
Na trama já sem calor.
Quem se abandonou à fama
Dos possíveis perde a chama.
1542 - Família
A família de hoje em dia
Torna-se um grupo de estranhos.
O mesmo ar respiraria,
Igual comida comia
Mas já não cobra mais ganhos
De ouvir e dialogar.
Não vai tendo aprendizagem
Mútua de lições de andar,
Da vida em comum viagem.
Todos próximos estão
Decerto fisicamente,
Pisando o mesmo torrão,
Mas cada vez mais se sente
Que distam interiormente.
1543 - Contando
Alunos, filhos encante
Contando diariamente
O que quer que lá se implante,
No agro que lhe ofertam diante
À espera, surpreendente.
Elogie muito mais
E critique muito menos,
De afecto exalte os sinais,
De acerto os gomos pequenos.
Pergunte sonhos e medos,
Que ser para ser amigo
E da mão deles ser dedos.
Ao prazer de viver sigo
Abrindo aqui um postigo.
1544 - Problemas
Os jovens são ensinados
Problemas a resolver,
Matemática em tratados,
Mas duma existência os dados
Ninguém aborda sequer.
Enfrentam prova escolar
Mas não a prova da vida,
Rejeições que andam pelo ar,
Nenhuma angústia insolvida.
São ensinados a ver
Que entranhas o átomo tem,
Mas não o seu próprio ser.
Ignoram o mais além:
- O que são e deles vem.
1545 - Dominaram
Dominaram reis o mundo,
Mas não a própria emoção.
Vencem generais facundo
Combate, porém, no fundo
Perde a guerra o coração,
São de raiva prisioneiros,
De ódio, de angústia, de orgulho.
Se em ti não geres inteiros
Os afectos, o gorgulho
Mina teu barco sem leme,
Vais ser dirigido, absorto,
Por tufão ou calma estreme.
Se há bom vento, tens bom porto,
Se é tufão, és homem morto.
1546 - Corriqueiro
Corriqueiro esquecimento
É positivo clamor
Dum juízo em nós atento
A avisar que no momento
A luz rubra acende a cor.
Vivemos sem qualidade
E nem ouvimos o grito,
Protecção que nos dissuade
E não um problema aflito.
Bloqueia o cérebro arquivos
A tentar diminuir
A torrente sem motivos.
Mente célere a estrugir
Mata da vida o fluir.
1547 - Duvide
Tudo em que crer o controla.
Duvide de tudo aquilo
Em que crer e em que se atola,
Que o perturba e se lhe cola,
Pois dúvida marca o estilo
De toda a sabedoria.
De não conseguir duvide
Saltar o que o desafia,
O conflito que o agride.
Duvide, porque é mentira,
Do juízo negativo
Que qualquer prazer lhe tira.
E o que após lhe for esquivo
Não rouba à festa o motivo.
1548 - Critique
Cada ideia pessimista,
Preocupação demais,
Antecipatória lista
Que de negrume se vista
Critica como jamais.
Cada escuro pensamento
Deverá ser combatido.
Treina-te a todo o momento
Desta noite a não ser lido.
Pensamento que induz culpa,
Nocturna antecipação,
Nenhuma inércia desculpa.
Vive agora, amanhã não,
Mas planeia aqui teu chão.
1549 - Qualidades
A emoção nos determina
Qualidades do registo
A que a memória se inclina.
Quanto mais tensão se afina
Numa vivência, mais visto
O registo que vem dela.
Há vivências aos milhões
Que registamos na estela
De ano em ano de emoções.
Resgato frequentemente
O conteúdo emocional
Que é maior em minha mente.
De alegria ou perda aval
São de meu rosto o sinal.
1550 - Destruir
Bem podes com toda a força
Tentar anular conflitos,
Destruir quem te distorça
Tudo a que a vida te força,
Que êxito não têm tais fitos.
Dois modos de resolver
Conflitos, traumas, transtornos
É o que à mão sempre hás-de ter,
Teu fogo ao gerir nos fornos:
O filme rebobinar
Do inconsciente vivido
E construir indo, a par,
Janelas doutro sentido.
- Só então muda o que hás sofrido.
1551 - Autor
Autor sê de tua história,
Gere firme o pensamento,
A emoção orienta à glória,
Da incapacidade a escória
Critica, não é fermento.
Questiona a fragilidade,
Vê por ângulos diversos,
Da memória a identidade
Protege com gestos tersos.
Discriminação sofrida,
Crítica mal trabalhada,
Podem esgotar a vida.
Tu, com firme machadada,
Derruba o roble na estrada.
1552 - Sala
Qualquer personalidade
É uma enorme casa grande.
O casal se persuade
À sala comum que invade,
Ignora o mais que ali ande.
Conhecem comuns defeitos,
Mas não o imo em cada qual.
Discutem erros, trejeitos,
Não a aventura que abale.
Não trocam mágoas, conflitos,
Escondem dificuldades…
Se no amor tens olhos fitos
Mais que em prendas com que agrades,
A ti te dá, que persuades.
1553 - Precisar
Basta precisar de alguém,
Que alguém sofre frustrações
E, ao ter amigos, também,
Basta amar que, logo além,
Virão incompreensões.
Se laboras em equipa
E motivas as pessoas,
As disputas antecipa.
Não é a vida que atordoas,
Isto a muda em poesia:
Quão mais enterrado o oiro,
Mais preciosa a magia.
Pois se noutrem dor é agoiro,
Aprende-a, que é o teu tesoiro.
1554 - Tentar
Quão mais tentar esquecer
Uma perda ou rejeição,
Mais registada há-de ser
E em milhares ocorrer
De pensamentos então.
A maneira de filtrar
Não é jamais contestando:
Entender é criticar,
Doutros ângulos focando,
Do caso oportunidade
Tornar para se crescer,
Chuva em rega pela herdade.
Assim é que há-de não ser
Daquilo escravo quenquer.
1555 - Culpa
Controla a culpa o prazer
De viver e a liberdade.
Há quem perdoe a quenquer,
Mas a si, nem ver sequer.
Ora, em culpa, a utilidade
É reconhecer um erro,
Não martírio, depressão…
Ao negro antever, o ferro
Cravo na vida, ladrão.
Sofro antecipadamente
Com o que nunca ocorreu
Nem advirá certamente.
Doendo o que nunca doeu,
Eis como mato o que é meu.
1556 - Frustrados
Alguns jovens só conseguem
Entender que algo está mal
Quando frustrados perseguem
Os sonhos que já não peguem,
Enterrados no areal.
A crise familiar
Alguns só vão entender
Quando a comunhão ficar
Desfeita em todo e qualquer.
Um ruído no motor
Leva o carro a uma oficina,
Mas na vida que propor?
Ouvir teu corpo destinas
Só já desfeito das minas?
1557 - Famosos
Tentam os famosos seduzir
A felicidade.
Vão-se em vez dela os aplausos ouvir,
Autógrafos pela cidade,
Televisões a perseguir…
Mas a felicidade concerne
E se esconde
Lá onde
Das coisas simples mora o cerne.
Quem não usar bem a fama
Perde a singeleza de vida que tem à mão,
Angustia-se do cotio na confusa trama
E vive a pior solidão:
- Fica só no meio da multidão.
1558 - Personalidade
A personalidade é confeccionada
De forma bela
E plurifacetada.
Se és negativista, inseguro da passada,
Ou, ao invés, corajoso, a sonhar à janela,
Tal provém da história inscrita
Na tua memória:
O mundo que te visita
Vê-lo pelas janelas de tua história.
Contém milhares de arquivos
Com biliões de informações.
Não podes apagar da memória os motivos,
Nem as alegrias, nem os aleijões,
Podes, porém, reformar-lhe a página dos senões.
1559 - Oásis
Teremos de aproveitar
Quaisquer oportunidades
Que a vida nos ofertar.
Deveremos encontrar,
Cruzando nossas idades,
Os oásis nos desertos.
O perdedor só vê raios,
Quem ganha, de olhos abertos,
Vê da chuva os regos gaios,
E logo a oportunidade
De cultivar sementeiras.
A perda quem perde invade,
Quem ganha ocasiões cimeiras
Vê de novo para as jeiras.
1560 - Consolar
Aquele que é virtuoso
Não requer aprovação
Doutro qualquer, por seu gozo.
Porém, o imo sequioso
Como consolar então?
É verdade, todavia.
Há-de sempre haver alguém
Que de ti não gostaria,
Tudo embora faças bem.
E, quando tal ocorrer,
Embora negro de pez
Da injúria que te fizer,
Só podes servir, de vez,
Todo o bem tal como o crês.
1561 - Tentes
Não tentes ver, os teus pés
Trilham rotas de futuro
Que nunca podes nem crês
Conhecer alguma vez.
Deves percorrer no escuro
O caminho, sem olhar
Para trás, nem para a infância,
Antes deves confiar
De intuir na tua instância
Que te põe sempre a caminho.
Escapas à fantasia,
De expertos vês o cadinho
E os que correram a via
Tomas então por teu guia.
1562 - Iguais
Se todas as divindades
Se ocupam de iguais vivências,
São de prismas mil metades
Uns atrás doutros nas grades
Presos das experiências.
Em lugar de os deuses todos
Veres num Único apenas,
De mil cores nos engodos
A luz do céu pura acenas.
Porém, quando a branca luz
Toca do prisma um pedaço,
Mostra a fusão que transluz:
Do Deus Uno é o mero traço
Que inteiro jamais abraço.
1563 - Fora
Nunca são os adversários
Que vivem fora de nós,
Que em desafios sumários
Se confrontarão, primários,
Um momento logo após,
Nunca são os mais temíveis,
Não são os mais perigosos.
Os disfarçados, incríveis,
Travestidos de bondosos,
Antagonistas subtis,
Quantas vezes bem no centro,
Jamais dando os rostos vis,
Desmascaro-os quando eu entro,
Surpreendido, por mim dentro.
1564 - Mortos
Os mortos se libertam e as respostas
Obtêm para a dúvida que houver.
É quem fica que sofre com as crostas
Da ferida da perda, peso às costas
Da memória e remorso de quenquer
Por coisas que não disse e nunca fez.
Orar por quem liberto já se vê
Será do prisioneiro ir através
Até do ar livre os ventos ter ao pé.
Agora então oremos nós por eles,
Alerta aos mundos já que se cruzaram
Quanto tocá-los toca nossas peles.
E agora, que as premências mais se aclaram,
Oremos pelos vivos que ficaram.
1565 - Tudo
Só quem dá tudo por tudo
Atinge a glória que vive
Nas canções a que me grudo.
Por ele em mim tudo mudo,
Que alimenta quanto arquive
Qualquer geração vindoira.
Para alcançar tal vitória
A morte a muitos agoira.
Mas da morte a maior glória
É que revela que é porta:
Após tê-la atravessado,
Expõe aquilo que importa,
O que se encontra talhado
Para nós do outro lado.
1566 - Longe
Há tantos que longe o mundo
Vivem que o mundo exterior
Não é real nem profundo.
As histórias em que abundo
De mortes, raptos, horror,
Serão todas inventadas,
Um exagero grosseiro:
Não imaginam chagadas
As caras do mundo inteiro.
O mundo inteiro não querem
Que sofra transformação,
Mil argumentos desferem…
- Até o dia em que a lesão,
Ferindo-os, os joga ao chão.
1567 - Caminho
Caminho pelas ruas, olho as gentes,
Escolheram acaso as próprias vidas?
Ou como eu o destino umas sementes
Lançou que as escolheu, vagas, trementes,
E a todas, ao invés, lhes troca as lidas?
Sonhou dona de casa ser modelo,
O bancário sonhou músico ser,
De escritor o dentista sente o apelo,
A balconista artista se quis ver…
Único não serei, serei comum,
Trocados os caminhos por um triz
A mim e por igual a qualquer um.
Vivemos empatados, ninguém quis
A troca e ninguém já vai ser feliz.
1568 - Mais
Quem é que é o mais solitário?
É o que for bem sucedido,
Ganha elevado salário,
E confia, solidário,
Nele o baixo e o desmedido,
É o que tem família, férias,
Filhos a quem ele ajuda…
Mas vêm propostas sérias:
"Pago mais: de mundo muda?"
Já falar não pode ao lar
Nem aos colegas também,
Tal ninguém quer encarar…
Falar não pode a ninguém,
Só na escolha: ei-lo refém.
1569 - Parecer
Os homens tudo farão
Para parecer seguros,
Tal se o mundo têm à mão,
Se as vidas governarão
Dentro e fora de seus muros.
Mas logo atrás mora o medo
Da esposa: duma erecção
Não lograrem! É um segredo,
Que assim machos não serão.
Se, uns sapatos ao comprar,
Não servem, o que se imponha
É apenas atrás voltar.
Mas a erecção? É medonha:
Quem volta atrás da vergonha?
1570 - Dádiva
Uma dádiva, uma entrega
De alguma coisa que é tua:
Dar algo antes do que adrega
De pedir-se na refrega
Da vida que nos acua.
Tens assim o meu tesoiro,
Aquilo onde eu inscrevi
Sonhos com estrelas de oiro.
Teu tesoiro tenho aqui,
Onde em momentos de infância
Deste à vida o que ela empreste.
Tenho comigo a fragrância
Tua em tal sonho celeste,
De mim tens o que me deste.
1571 - Normal
É normal que os amorosos
Fujam de quem os encanta,
Lucros se visem faustosos
Do amor em lugar dos gozos,
Que vida se venda tanta
Sem podê-la ter de volta?
Contudo, é tanto cotio!
À natura o que a revolta,
Do íntimo o que trai o ousio,
É do normal o critério.
Procurámos nosso inferno
E construímos-lhe o império.
Viveremos, fim superno,
Todo o mal por dote eterno.
1572 - Aguardar
Posso aguardar um pouco mais…
Terei um sonho, mas vivido
Não tem de ser hoje jamais,
Já que aumentar os cabedais
Precisarei, tudo medido.
Tenho um emprego amaldiçoado,
Mas vendo tempo como todos.
Faço o que sempre hei detestado,
Mas como os mais e com bons modos.
Aturo gente insuportável
Como, afinal, faz toda a gente
E nunca tenho o indispensável…
- E assim futuro que me tente
Jamais terei à minha frente.
1573 - Intimidades
Há intimidades que ninguém partilha
E não podemos as marés temer
Dos oceanos em que, feitos ilha,
Nós mergulhamos, voluntária quilha,
Por nosso arbítrio, não doutro qualquer.
Confunde o medo em toda a gente o jogo,
O peito dói de o entender apenas:
Que nos amemos mas que todo o fogo
De possuir-nos não nos queime em penas.
Se eu amo alguém é porque o não possuo
Nem ele então me possuirá também,
Na entrega livres sem qualquer recuo.
É o que repito pelo tempo além
Até crer nisto e poder ser alguém.
1574 - Vai
O soldado vai à guerra,
Não vai matar o inimigo,
Vai morrer por dele a terra.
A mulher, quando se aferra,
Não é de alegre do abrigo,
É para o marido ver
O quanto ela se dedica,
Quão sofre para o bem ver.
E o marido que se aplica
Não é por realização,
Sofre antes pela família…
- A dor justifica o chão
Dum amor que, sem quezília,
É de alegria vigília.
1575 - Desejo
O desejo é sensação
Livre, solta pelo espaço,
Vibrando, preenchendo o chão
Com vontade de ter mão
Em algo que não abraço.
Vontade que para a frente
Tudo empurra e desmorona
Montanhas no abismo ingente,
Deixando o que busca à tona.
Desejo é fonte de tudo,
De sair, descobrir mundo,
Largar peso a que me grudo.
De amar sem pedir, jucundo,
Nada em troca ao ser fecundo.
1576 - Atear
São perucas, são dietas,
Horas no cabeleireiro,
No ginásio, bicicletas,
Usam roupas indiscretas
A atear o fogo inteiro.
E a centelha desejada,
Quando chega a altura certa
De ir para a cama ansiada,
Afinal, que é que desperta?
São uns minutos e pronto,
Nenhum postigo abre ao preso
Nenhum céu em nenhum ponto.
A centelha não tem peso
De manter o fogo aceso.
1577 - Aproxima
O desejo mais profundo,
O desejo mais real
É o que aproxima, no fundo,
De alguém que vai ser meu mundo.
A partir de encontro tal
As reacções a ocorrer
Começam então deveras,
Entra o jogo homem-mulher,
Mas milagre é das esferas
A atracção que os ajuntou,
Impossível de ser lida:
É o desejo em pleno voo.
Apaixonam-se por vida
E celebram-na em seguida.
1578 - Paixão
A paixão leva a pessoa
A não comer nem dormir,
A trabalhar hoje à toa,
A perder a paz que ecoa
De outrora, aqui sem porvir.
Muitos ficam assustados
Porque, quando ela aparece,
Derruba os muros herdados,
Abençoados em prece.
Ninguém desorganizar
Pretende jamais seu mundo
E há quem tente controlar
A ameaça: em pé, infecundo,
É ar gelado em que me inundo.
1579 - Entregam-se
Entregam-se sem pensar
Esperando na paixão
As soluções encontrar
Aos problemas a enfrentar.
Depõem no coração
Doutrem toda a iniciativa
E a responsabilidade
Da alegria que alguém viva,
Da inteira felicidade.
Do bem e do mal o culpam
E ou, eufóricos, celebram
Ou, deprimidos, inculpam.
À mais leve brisa quebram
E a negro a brancura zebram.
1580 - Casal
O casal homem-mulher
Ligado anda de energia
A que amor chama quenquer,
Mas o que ali há-de haver
Matéria-prima é que ardia
Com que o Cosmos se erigiu.
Jamais é manipulada,
Ela é que nos conduziu
Suavemente na estrada,
Nela mora a aprendizagem
Inteira do que há na vida.
Se a talhar à minha imagem,
Já que é selvagem na lida,
Ela vinga-se, traída.
1581 - Amarei
Passo a vida a me dizer
Que amarei acaso alguém
Quando apenas a sofrer
Ando, que em vez de acolher
O amor tal e qual me vem,
Em vez de aceitar-lhe a força,
Tento sempre diminuí-la,
Dando um jeito que a distorça
Para que caiba tranquila
No mundo em que eu imagino
Que vivo, em que nada minga.
Ando a enganar o destino,
Logo o amor em mim se vinga,
Sangro até ficar sem pinga.
1582 - Real
Por inteiro a realidade
É real e são sinais.
De compreender quanto se há-de
Sempre está na opacidade
Do que em frente mal olhais.
Basta olhar em derredor
Com atenção e respeito
Para deveras supor
Onde Deus leva com jeito
E então qual o melhor passo
A dar no instante a seguir,
Da luz ao seguir o traço.
Basta olhar sempre o porvir
Por trás do que eu perseguir.
1583 - Dados
Deus não joga aos dados nunca
Com este imenso Universo,
Tudo interligado o junca
Atado com garra adunca
E tem um sentido imerso.
Quase sempre embora oculto,
Vemos que à nossa missão
Na Terra prestamos culto
Se embebemos a função
Que temos de entusiasmo:
Aí fruo o suprassumo
Da luz de Deus com meu pasmo.
Se o viver, que é bom presumo,
Senão, é mudar de rumo.
1584 - Manifesta
Se uma pessoa é capaz
De amar de vez seu parceiro,
Sem condições, mas veraz,
Sem restrições de incapaz,
Manifesta por inteiro
O incrível amor de Deus.
O amor de Deus ao mostrar,
Ama o próximo sem véus.
Amando o próximo, a amar
A si mesmo acaba estando.
E, se alguém se ama, desgruda,
Tudo em rio o vai levando.
De quem ore "Deus acuda!"
Não preciso: tudo muda.
1585 - Causa
A História não mudará
Só por causa da política,
De conquistas que haverá,
De teorias tidas cá,
Nem de guerra alguma crítica,
Que tudo é repetição,
Do início dos tempos vemos
Isto, nação a nação.
A História que nunca temos
Mudará quando pudermos
Usar do amor a energia
Como usamos, nestes termos,
Sol, vento, mar que alumia,
- Quando o amor luz der ao dia.
1586 - Tento
Se tento conversar, andas cansada,
Dormimos e falamos amanhã.
E amanhã principia uma jornada
Com outra agenda séria, carregada:
Dormimos, que falar é coisa vã.
Assim ando perdendo minha vida,
Sempre aguardando o dia de te ter
A meu lado sem mente distraída,
Até que enfim descanse e vá descrer.
Então não peço nada, crio um mundo
Onde refugiar-me bem imerso,
Não tão longe que autónomo me fundo,
Nem perto, a parecer-te que, perverso,
Invadir tentarei teu universo.
1587 - Pára
Onde pára a mulher com quem casei,
Aquela que me dava sempre mimo,
Se estímulo e carinho precisei,
Apoio quando apoio foi de lei,
Luar de minha noite sempre ao cimo?
Seu corpo mora aqui, a olhar em roda,
A meu lado, perene, a vida inteira.
Dela o imo, porém, busca outra boda,
Pronto a partir em vida mais videira.
Adiar para amanhã marca o destino:
Ela teve entusiasmo pela vida,
De ideias cheia, alegre o canto fino…
Agora, bem depressa na descida,
Dona de casa é só de alma escorrida.
1588 - Falar
Ouço falar da liberdade em nome:
Quão mais defendem tal direito, mais
Escravos são duma paterna fome,
Dum casamento que o ar todo tome,
De interrompidos ideais finais…
Servos de vida que jamais escolhem,
Mas que escolheram decidir viver,
Que os convenceram que é dali que colhem
O que é melhor para o que vêm a ser.
Ei-los que seguem dia e noite iguais,
Toda a aventura é só palavra, imagem,
Televisão de só correr canais.
Qualquer mudança é de terror voragem,
Se abrem a porta, não terão coragem.
1589 - Viajar
A vida a viajar ninguém poder
Há-de algum dia aqui fisicamente,
Mas no espiritual plano há-de-o fazer,
Ir cada vez mais longe onde puder,
Da história pessoal fugir premente,
Daquilo que o forçaram a ser todos.
Contamos o vivido e despedimo-nos
Do que já fomos, para o mundo abrimo-nos,
Um mundo novo ignoto em mil e um modos.
À medida que espaços esvaziados
Forem sendo, escapamos do vazio
Preenchendo-os de eventos renovados.
Então mudo, o amor cresce e, com o ousio,
Com ele teço o mundo em novo fio.
1590 - Achas
Quando achas que és a derradeira
Das criaturas,
Tenta sentir-te bem, como a primeira.
Não acredites que, pioneira,
Estás tão mal como figuras.
Deixa que a Mãe-Terra te possua
Corpo e alma,
Entrega-te no lar como na rua,
Na agitação e na calma,
Nas banalidades da vida:
O filho à escola leva diligente,
Arruma a casa, arranja a comida…
Tudo acalma, adorando, quando a mente
Respira o presente.
1591 - Capaz
Capaz de viver é o homem
Sem religião erigida.
Bastam buscas que o consomem
Íntimas que dentro o tomem,
Para nortear a vida.
Deus é mãe além de pai,
Então é só reunir-se
E adorar o que à mãe vai
Conduzi-la a bem sentir-se:
É a dança, a música , o canto,
Água viva ou a paisagem,
Duma bela flor o encanto…
Sem metas nem um projecto,
- É o calor fruir dum tecto.
1592 - Deus-Pai
Deus-Pai anda interligado
Ao rigor e disciplina
Do culto mais do agir dado.
É Deus-Mãe que, doutro lado,
Perante o amor tudo inclina,
Tabus e proibições
Que bebemos com o leite,
Normativos das acções,
- Não há nada que respeite.
Se se intensifica a norma,
Então tanto mais pessoas
Buscam de escapar-lhe a forma.
Querem ser livres nas loas
Do imo às aparições boas.