DÉCIMO TROVÁRIO
DEVER E SER MISTERIOSOS SE ENTRELAÇAM
Escolha aleatoriamente um número entre 1207 e 1332 inclusive.
Leia o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
1207 - Dever e ser misteriosos se entrelaçam
Dever e ser misteriosos se entrelaçam
No poema de métrica incerta
Em que as rimas abraçam
Os dois pendores que laçam,
No nó das palavras, a verdade entreaberta.
O verso dilui a fronteira
Entre os dois pendores da montanha,
Dever e ser amparam à beira
Os alcantis onde a vida se nos ganha.
Os dois alevantados
São minha coluna estruturante
Olhando o horizonte por todos os lados.
O poema tem-me diante,
Nele me inauguro: sou o instante.
1208 - Parar
Para compreender
O que uma paisagem
Nos tiver a dizer
Urge parar de vez a viagem,
Frequentá-la longamente,
Fruí-la em todos os estados
O que implica, coerente,
Que pratiquemos, com mil cuidados,
A escuta, a atenção,
Porventura mesmo, alheia à norma,
Uma certa forma
De meditação.
Apenas então, ante as luzes que se acendam,
Os segredos se desvendam.
Na paisagem como na vida
É igual a medida.
1209 - Partem
Os que primeiro partem deixam a lembrança
No tecido da memória e da vida.
A memória não se apaga nunca do que entrança,
Ainda que o tema de origem se esbata, mancha delida.
Mesmo que os contornos do desenho pareçam
Deformar-se e com o tempo desapareçam,
O que foi sempre será,
Que a memória uns dos outros somos que aqui está.
Os desaparecidos
Vivem através de nós,
Mesmo esquecidos,
Que o eco deles fala pela nossa voz,
Pelos nossos gestos,
Por todos os nossos inesperados.
Eles são os nossos mais ignorados
Aprestos.
1210 - Relógio
Tu tens o relógio, eu terei o tempo, todavia.
Há tesoiros que a vida só revela com calma,
Mensagens lentas como o nascer do dia
Que só logramos compreender num jeito de alma,
Se tempo aprendermos sábios a criar,
Nossos ritmos ao nos ritmar.
A vida emite grande parte das mensagens,
As mais belas porventura,
As mais misteriosas, fluidas como aragens,
Numa frequência tão subtil e pura
Do diapasão
Que as não logro captar na precipitação.
1211 - Relevas
Importa pôr as grandes pedras
Em primeiro lugar em tua vida,
Senão, em seguida,
Não medras
E a vida terás mal sucedida.
Se relevas primeiro o cascalho, a areia fina
Dos mil pequenos sarilhos,
Enches a vida de pecadilhos,
Não terás tempo, em tua sina,
Bastante
Para a pedra angular a ser erigida,
Fundante,
Em tua vida.
1212 - Abandone
Abandone os falsos sonhos, divindade malsã,
Acabe com a inútil pressão
Sobre o próprio e alheio coração,
Não fale neles como para efectuar amanhã.
Pare de infernizar todos em redor
Com projectos assim
Que nunca irão chegar ao fim
E em todos tolhem o amor.
Goste de si tal qual é na realidade,
Em frente vá, rumo ao que ora lhe agrade.
Fazer o que faz com consciência,
Com prazer, com alegria,
Com a clareza da evidência
E a festa da fantasia,
Partilhar
Do grande e do pequeno
A magia,
Do irrelevante registar o aceno,
- Eis como encontrar
As pepitas do oiro que não fana
Uma vida humana.
1213 - Atitude
A atitude de acolhimento
Ilumina o facto de algumas manhãs
Serem um tormento,
Algumas jornadas, intérminas e malsãs.
Não é de me propor
Que amanhã será melhor
Mas antes que a vida também
É assim, um evento pelém,
E urge saber como agir e tomar tento
Naquele momento.
Manhas de tédio,
Dias de aborrimento
Têm função de remédio,
Farão, por mais que me queime o fogo,
Parte do jogo.
Põem em relevo o quotidiano,
Revelam que o dia anterior
Foi dia de sorte, sem rival num ano,
Uma pepita de valor.
Importa aprender e acreditar
Na inteligência e generosidade da vida
E em si próprio, a par,
Em igual medida.
1214 - Cheque
Quando, graças à reforma,
Há um cheque de disponibilidade
De tempo
Apto a doirar qualquer passatempo,
Ocorre, em norma,
Já não haver vontade
Nem alento, quando se fala
De correr a aproveitá-la,
À festa doravante aberta
Às alegrias duma descoberta.
Por que não agarras a oportunidade?
É que erigiste um sonho durante anos
Que bem útil te foi porventura:
Aguardando melhores dias entre os danos,
Ele te empurrou por pesados quotidianos
Com mão segura.
Na realidade, porém, quando agora em concreto
Se plasma,
Tal sonho não era, afinal, um projecto,
Era um fantasma
Que, fiel, nem por isso
Te deixou de prestar oportuno serviço.
1215 - Liga
A nossa identidade
É o que nos liga ao sentido.
Onde encontrá-lo, porém, de realidade
Vestido?
É no que fazemos e somos,
Em nossas relações,
No que atribuímos à natureza e dela aos pomos,
À experiência de vida na estranheza dos saguões.
É o que ao tempo emprestamos
Em cada dia que cruzamos.
Quando a vida profissional findou,
As turbulências que nos abanavam,
A mente nos colonizavam
E os pensamentos,
Deixam nítido o lugar que vagou
Doravante aberto aos ventos.
A grande tentação é preencher o vazio,
Que o vazio é difícil de encarar,
Atormenta, de tão frio
De suportar.
A reacção
Da maioria,
Então,
É procurar bem depressa,
Em correria,
Que fazer no tempo livre de vida tão avessa.
Na ilusão,
O resultado final
É cada qual
Acabar derrubado no meio do chão.
Perdida a identidade, perdeu de vez o sentido
Tudo quanto for vivido.
1216 - Surpresas
O poder de apreciar
Surpresas agradáveis como prendas,
Não adquiridas por trabalhar,
É saúde mental que referendas.
Os que dão conta das graças do mundo
Para ser agradecidos,
Têm um pendor mais fecundo
E mais felizes se comprazem,
Da vida pelos becos perdidos,
Do que os que o não fazem.
Presenteados pelo mundo ao se sentirem,
Predispostos se sentem a lhe retribuírem.
É o que às vidas empresta
Um rumo de festa.
1217 - Menino
Ama teu menino interior,
Acompanha-o, trabalha com ele,
Mas repara que é uma parte menor
De ti, no fundo da pele.
Ao lado, teu eu adulto
Sabe controlar as conjunturas
E organizar o que não for
Estulto
Para escapar às agruras
E garantir vida melhor.
Quando tua criança te instigar,
Indiscreta,
Para a teus instintos primitivos te entregar,
Deita fora a chupeta:
Sem hesitação,
É não!
1218 - Rotina
A rotina estrutura a vida,
A estrutura confere perspectiva,
A perspectiva abre um horizonte à medida
Perante nós, onde se efectiva
A segurança:
- E que calma nos alcança!
1219 - Sabedoria
"Seja o que Deus quiser!",
- A sabedoria popular
Oferta ali, para quenquer,
Ao rumo da vida a pedra angular.
A vida se esvai
No sangue que o medo sua,
Mas Jesus não se retrai,
No rumo da pedra angular firme continua:
"Retira de mim este cálice, Pai,
Porém não se cumpra minha vontade mas a tua".
Agrade ou não agrade,
A paz definitiva e derradeira
É tornar-me no que Deus queira,
Transparente cristal de Deus:
"Seja feita a Vossa vontade"
- Meta cimeira -
"Assim na terra como nos céus."
Quem o conseguir
Não há lama que lhe toque
Nem dor que o logre ferir:
Na iniquidade e injúria
Leva a alegria a reboque
E a festa dele nunca sofre de penúria.
1220 - Experimental
A ciência
Jamais logrará provar
Uma consciência,
Nem a de quem viver,
Nem a de quem morto ficar,
Que experimental não há uma única sequer.
Não há percepção directa
Do mundo consciente que noutrem houver:
Apenas o acto que cometa
Poderei ver,
Ouvir-lhe a fala da boca,
Conferir-lhe a atitude que me toca…
Disto apenas me apercebo.
Depois, de tal infiro que é consciente
Porque se comporta de maneira
Consistente
Com o que percebo
E recebo
Como sendo consciência,
Quando me inteira
A minha própria, por minha interior vivência,
Daquilo que é e do que produz
Quando, viva, vivo me traduz.
A verdade
É que a única consciência que tenho
A certeza de existir na realidade
É a minha própria em meu íntimo desenho.
A todas as mais
Nenhum processo
Lhes abre nem abrirá jamais
Directo acesso.
1221 - Sentados
Luz e sombra, longo e curto, preto e branco
Só podem ser conhecidos
Um ao outro em relação,
Sentados no mesmo banco
De descodificação
De razões e de sentidos.
Ambos mutuamente a postos,
Simétricas respirações,
Afinal não há opostos,
Apenas há relações.
1222 - Bastarão
Quando te sentes iludido,
De dúvidas pejado,
Nem livros mil que hajas lido
Te bastarão ao cuidado.
Quando houveres alcançado
O entendimento,
Uma palavra, sem mais,
Nesse momento,
Já é demais.
1223 - Cuido
Às vezes cuido que a vida
Não tem valor nem relevância,
É, bem medida,
Uma insignificância.
Vou morrer e, a seguir,
A humanidade na ribalta
Não irá sentir
A minha falta.
A humanidade vai morrer
E o Universo não
Irá sentir sequer
Falta desta ridícula dimensão.
O Universo morrer vai
E a eternidade
Não soltará nenhum ai
Por uma falta mesmo desta enormidade.
Não passamos duma irrelevância,
Menos que poeira
Que se perde na voraz ganância
Da temporal soleira.
Outras vezes cuido, afinal,
Que todos nascemos com uma missão,
Todos desempenhamos um papel fundamental,
Dum grande esquema parte, onde temos um quinhão.
Pode ser um minúsculo papel,
Parecer uma missão irrisória,
Uma vida perdida na babel
Irracional da história,
Mas, feitas as contas,
Tão minúscula migalha
Poderá revelar-se crucial quando apontas
Os pontos que tecem o quente colo
Que calha
Vir a sazonar o imenso cósmico bolo.
Somos minúsculas borboletas
Cujo frágil bater de asas
Talvez tenha o estranho poder de atingir metas
Muito para além de nossas casas:
O poder de gerar, daqui do inofensivo berço,
Longínquas tempestades no Universo.
1224 - Criança
Uma criança entra nesta biblioteca,
Em todos estes livros repara
Redigidos em línguas que não acometa,
Colecção misteriosa e preclara.
Sabe que aos livros os escreveu alguém,
Que mensagens ignotas revelam,
Embora não saiba quem
Os escreveu,
Nem que sabedorias emparcelam
De seu.
Suspeita que a biblioteca foi organizada
Segundo uma ordem qualquer
Mas tal ordem suspeitada
Bem misteriosa finda a parecer.
Somos esta criança
Que na dúvida faminta e peca
Se balança
E o Universo, esta biblioteca.
Leis e forças e constantes
O Universo contém,
Criadas, gritantes,
Por alguém,
Com misteriosos objectivos
E segundo uma ordem, após,
Incompreensível, em tais arquivos,
Para nós.
Compreendemos vagamente as leis,
Captamos da ordem as linhas gerais
Que tudo organizam nas funções e papéis,
Percebemos, superficiais,
Que átomos e constelações
Se movem de certa forma e não aos baldões.
Tal como a criança,
Ignoramos os pormenores,
Uma pálida ideia apenas nos alcança
Do propósito disto, em quaisquer pendores.
Uma certeza, porém, nos é dada
Por tal constatação:
Esta biblioteca foi organizada
Com alguma intenção.
Mesmo que os livros não consigamos
Ler
Nem jamais venhamos
Os autores a conhecer,
O facto é que estas obras mensagens contêm
E a biblioteca que temos em frente
Está organizada também
Segundo uma ordem inteligente.
Assim,
Pelo infindo disperso,
É, enfim,
O Universo.
1225 - Olham
Físicos e matemáticos
Olham para o Universo
Como um engenheiro, os dedos práticos,
Olha para um televisor,
No anverso e no reverso,
Ou para um computador.
Apenas vêem os átomos e a matéria,
As forças e as leis que as regem,
E tudo isto, se virmos bem a pantalha sidérea,
É apenas harduere em que os astros vicejem.
Mas qual a mensagem que tem
Este enorme televisor?
Qual o programa que contém
O gigantesco computador?
O Universo detém
Um programa,
Dispõe dum softuere
Que mal vislumbramos pela rama,
Contém
Uma dimensão qualquer
Que nos conclama
As mentes
E está muito para além
Da soma das respectivas partes componentes.
O Universo é muito mais que o harduere
Que o constitui,
É um gigantesco programa de softuere
E o harduere apenas existe e flui
Ante nós e nos chama
Para viabilizar este programa.
Tal como um ser humano
Que é feito de células e tecidos
E órgãos e sangue e nervos:
É o harduere de que me ufano.
Mas o ser humano em todos os sentidos
É bem mais do que estes servos.
É uma estrutura rica
Que detém consciência,
Que ri, que chora, ataca ou se fica,
Que pensa, que sofre e tem paciência,
Que canta, emurchece ou viceja,
Que sonha e que deseja…
Somos muito, muito mais
Que a mera soma das partes
Que nos constituem, os varais
Que nos amparam nossas artes.
Nosso corpo é o harduere
Por onde corre a evidência
Do softuere
Da nossa consciência,
De toda a íntima, complexa, inextricável vivência.
Tal é também a realidade
Mais funda, na profundidade
Da existência:
O Universo é o harduere
Dentro de cujos mantéus
Corre o incomensurável softuere
De Deus.
1226 - Opostos
Tudo são opostos definidos
E os opostos são a mesma coisa,
Os dois extremos unidos
Por fio invisível na tela duma só loisa
- Intuem-no, misteriosas e puras,
De Oriente e Ocidente as Sacras Escrituras.
E as Teorias da Relatividade
Vivem assentes
Em que energia e massa são a mesma realidade
Em estados diferentes.
Na física quântica a matéria
Ao mesmo tempo é onda e partícula,
Contradição sidérea
Na germinal radícula.
Na Relatividade, espaço e tempo estão ligados
Por mútua correlação,
O Universo move-se em todos os lados
Pelo dinamismo dos opostos em função.
Os extremos, afinal,
São a diferente expressão
Da mesma unidade radical
Neles em acção.
Energia-massa, onda-partícula, tempo-espaço,
O Universo movimenta-se, todo a postos,
Pela imensidão do abraço
Da dialéctica dos opostos.
Mística e ciência,
Uma igual, pois, evidência.
1227 - Bailado
O universo é uno,
Não estático, porém, mas dinâmico.
Quando ao bailado me reúno
Do cósmico forno cerâmico,
A matéria começa a pulsar
Bailando ao ritmo da dança,
Transformando a realidade e a vida, a par,
Num enorme processo cíclico que ela própria afiança.
É o ritmo dos electrões
Dos núcleos em torno,
Dos átomos oscilações,
Das moléculas o movimento no sideral forno,
E são os planetas a girar,
O Cosmos a pulsar.
Em tudo há ritmo, sincronismo,
Em tudo há simetria.
A ordem emerge do abismo
Do caos como um bailarino rodopia.
Da Malásia nos rios
Milhares de pirilampos no ar
Em uníssono emitem luz
Obedecendo, frios,
A um sincronismo singular,
Secreto, que em magia se traduz.
A todo o instante,
De nosso corpo ao longo,
O fluxo eléctrico baila para trás e para diante,
De cada órgão ao gongo,
Ao ritmo de sinfonias silenciosas
Cujo compasso é marcado
Por milhares de células prestimosas,
Invisíveis no labor abnegado.
A toda a hora, o intestino
Digere num bailado
De compasso ladino,
Um estranho ritmo ondulado.
Os espermatozóides abanam as caudas
Ao mesmo tempo e na mesma direcção,
Na coreografia respeitando as laudas
Dalguma misteriosa canção.
Até o ciclo menstrual
Se sincroniza de modo inexplicável
Quando as mulheres se juntam no mesmo local
Longamente habitável.
Há na vida sincronia,
Sincronia na respiração,
No coração,
Na circulação
Que a vida nos denuncia.
Também
A matéria não-viva dança,
Porém,
Ao toque da mesma música que tudo alcança.
Os pêndulos de relógio de sala
Colocados lado a lado
Acabam oscilando em simultâneo e nada abala
O estranho resultado.
Geradores colocados em paralelo,
Embora de início dessincronizados,
Automáticos sincronizam, elo a elo,
Da rotação os ritmos desabalados
E da natureza tão estranha batida métrica
É que permite operar a rede eléctrica.
O átomo do césio oscila,
Pêndulo entre dois níveis de energia,
E tal oscilação
É ritmada com tal precisão
Que perfila
Dos relógios atómicos a fasquia
De haver menos dum segundo de enganos
Em vinte milhões de anos.
A Lua roda no eixo
Ao ritmo com que a Terra orbita
E esta bizarra sincronia, milenarmente sem desleixo,
É que concita,
No desenlace,
A ter para nós sempre virada a mesma face.
As moléculas de água que pelos vaus
Se movem livremente,
Quando a temperatura desce a zero graus
Juntam-se em movimento sincronizado,
De repente,
E tal movimento inesperado
É que, sem atropelo,
Permite a formação do gelo.
Alguns átomos, próximo do zero absoluto,
Como um único se comportam,
Triliões envoltos no mesmo produto,
Um gigantesco bailado
Sincronizado.
Tudo é uma dinâmica unidade,
Daqui à infinita imensidade.
Como é que as almas não se espantam
Quando em uníssono os átomos cantam?
1228 - Criminosos
Os criminosos não têm amigos,
Têm promotores, negociantes,
Receptadores, abrigos,
Fornecedores e patrões.
Tanto de todos podem ser denunciantes,
Quando o impõem as ocasiões,
Como, a par,
Em nenhum deles podem confiar.
O criminoso é dele próprio o pior
E cimeiro
Castigador
Pioneiro.
1229 - Adolescente
Um adolescente compara
A própria privação
Com a criança que morta se lhe depara
De fome no chão.
É que protestou contra os pais, na ocasião:
Só lhe iam ofertar
De prenda, no lar,
Um automóvel em segunda mão…
Não há maior ingrato, mais parasita,
Que o que não reconhece a fartura garantida
Que habita
Dele na vida.
1230 - Vitória
O segredo da vitória nesta vida
É entendermos que a crise do Planeta
É tão grave que não é delida
Pela meta
De nos limitarmos a decidir
Que eventualmente fazer
De nossa própria vida aquando dum vago porvir
Que aí vier.
A única pegada que findará por colher frutos
Num rumo fecundo
Serão nossos contributos
Para a cura do mundo.
1231 - Ensina
Forte, forte
É quem me ensina ao mesmo tempo a viver
Com norte
E a morrer:
Se deveras me ensimesmo,
Reparo que é o mesmo.
1232 - Sofremos
Sofremos toda a dor e sacrifício
Para nos tornarmos no que já somos.
O esforço é meramente para livrar-nos do resquício
Enganoso de que limitados, circunscritos
Pelas mágoas desta vida é que de nós dispomos,
Fatais proscritos.
Agora é impossível existir sem esforço.
Alcançada, porém, a maior profundidade atingível
Para além do presente espiritual escorço
Fazer esforço será impossível.
1233 - Trabalho
O trabalho que em nós próprios operamos,
Quer psicológico, quer espiritual,
Não é para aplacarmos, dele ao sinal,
As ondas do mar da vida em que vogamos,
Mas antes, em lugar,
É para aprendermos a sarfar.
A coacção da vida faz que aprenda e que responda
A andar na crista da onda.
1234 - Cumpra
Que se cumpra o plano do amor
E da luz!
Que se cumpra quanto me ensinou da vida a dor
A viver com o não-sei,
Com o que em mim traduz
A noite como lei,
Com não tentar
O fluxo da vida controlar,
Com permitir que as coisas vão
Tal como são,
Com encontrar paz
Entre os transtornos e desilusões
Da vida, por ser capaz
De deixá-la ser, sejam quais forem as convulsões!
1235 - Confiar
Confiar em Deus,
Se ao ego deveras renunciámos,
É acolher a vontade dos céus:
A queixar-nos já não andamos
De que a vida nos gradam
Charruas que não agradam.
Ora, ao invés, agradecemos a Deus as coisas boas
Que nos acontecem
E não Lhe cantamos loas
Pelas que más nos parecem:
Aí é que finalmente me enterro
No erro.
Então,
De todo,
Minha religião não é religião,
É a mentira dum engodo.
1236 - Aceitaremos
Faremos o melhor que pudermos
E aceitaremos o que daí resultar.
Não há forma de o predizermos
Nem vale a pena insistir.
De nada serve ansiar
Por um desfecho em particular
E sentir
Aversão por outro qualquer:
Isto apenas, a todo o momento,
Há-de conduzir
Quenquer
Ao sofrimento.
A vida, mesmo a pior,
No fundo é boa
E vejam só a cor
Do roseiral
Como de qualquer mal
Destoa!
1237 - Vezes
Por vezes, a vida, simplesmente,
Não faz sentido nenhum,
Por mais que tentemos, açodadamente,
Atribuir-lhe um.
Por vezes,
Tudo o que podemos empreender
É ajudar-nos mutuamente, corteses,
Sem juízos de valor emitir nem defender.
Ensina claramente a vida
Que ela não é justa,
Não premeia bons comportamentos à medida,
Bem e mal ocorrem de quenquer à custa.
Não há lógica nenhuma:
É só abandonar-nos ao indecifrável, em suma.
1238 - Agarrar-me
Quando sinto que principio
A agarrar-me a alguma coisa,
Lembro-me então de abdicar dela,
Até que nem um fio
Em mim repoisa
Da lançada aos ares mágica estrela.
Lembro-me de comigo próprio ser gentil,
De acolher em paz ficar sem saber,
Sempre neste enigma subtil
Dum esforço sem esforço qualquer,
Da escolha sem escolha,
Da motivação sem motivo,
De recolher sem qualquer recolha:
- O esforço sem o apego ao objectivo.
Quando do apego me despego
É que prossigo
Em mim livre comigo
E então livre me entrego:
Não preciso mais de abrigo.
1239 - Deixo
Deixo emergir quanto queira emergir,
Ira, medo, raiva, tristeza,
Quanto parece inundar-me dentro e depois sair
Num jorro, com presteza.
Volto a estar simplesmente
Com o que é à minha frente.
Se é assim que sou,
Então
É assim que sou,
Sem mais juízo nem confusão.
Sinto-o
Como de mim aceitação,
Não como instinto
Nem resignação.
Vigilante, desperto,
Não me minto,
Embora nunca saiba por inteiro, seguro,
Quando o apuro,
Se estou certo.
Mas não cismo:
Abro-me ao meu abismo
E a partir dali é que me inauguro.
1240 - Ganhe
Que minha vontade de viver seja forte
E ganhe o mais tempo possível!
Por tal norte,
É trabalhar com a exigível
Clareza e concentração,
Convergência e dedicação,
E com o esforço certo
A que o longe fique perto.
Contudo, simultaneamente,
Terei de permanecer desligado
Inteiramente,
Qualquer que ele seja,
Do resultado
Que se almeja.
O seguro abrigo
Que alcanço
Dita-me a sentença:
A dor não é um castigo,
Nem a morte, um falhanço,
Nem a vida, uma recompensa.
Olho-as e aceito-as, quando reais,
Tão neutras e benemerentes como tudo o mais.
1241 - Testemunha
Se não me inclino
Ante o que me atropele,
Serei a testemunha do destino,
Não a vítima dele.
Limito-me a reparar
Com atenção despojada
E a calma e a alegria vão acompanhar
Minha marcha por aquela estrada.
Tudo me acontece, mas as marcas com que fico
O imo não logram atingir com que me identifico.
1242 - Concreto
O crente mítico não interpreta
Alegoricamente o mito,
Interpreta-o à letra:
- É o concreto que fito.
Nisto se engana,
Fundamentalista,
E a todos nos dana
A vida que tiver em vista.
1243 - Religiões
As religiões, enquanto exotéricas,
Variam entre si tremendamente.
Enquanto esotéricas,
Ao invés,
Para o profundo, autêntico crente,
Por todo o mundo, de lés a lés,
São idênticas praticamente.
No acerto e no erro,
Na perda e no ganho,
São de charrua o mesmo ferro
Para o mesmo amanho.
1244 - Descobertas
Em terapia como no restante
As descobertas realmente decisivas
São simples e óbvias o bastante.
Difícil, de esquivas,
É aplicá-las à vida quotidiana,
Dia a dia, semana a semana,
Até que os velhos hábitos findem desaprendidos
E por outros mais conformes substituídos.
Quem procura,
Em norma, encontra.
Depois, a cura
É que no ramerrão remará contra.
Nossa preguiça,
Nossa inconstância
É o que tudo enguiça
- E nunca mais crescemos da infância.
1245 - Causas
Quão menos compreendidas
As veras causas duma patologia,
Mais esta se transmuda, nas ermidas,
Numa enfermidade prenhe de magia,
Rodeada de metáforas e mitos
Infundados e esquisitos.
Mais tende a ser tratada
Por fracos de personalidade como provocada
Ou por faltas morais que houver cometido
O dela afligido.
Mais é confundida
De alma com uma enfermidade,
Defeito de individualidade,
Doença moral culposamente vivida.
Descoberta a verdade, apenas a verdade
Libertadora
É que ao mútuo respeito sozinha nos persuade
Que tanto demora.
1246 - Rédeas
Por mais que tomar as rédeas importe,
Ainda apenas é metade da equação.
Além de aprender o norte,
Assumir controlo e responsabilidade de acção,
Todos temos de aprender
Quando e como abdicar, renunciar,
Ir com a maré sem se mexer
E não resistir nem lutar
Contra qualquer indómito mar.
Primeiro, ser;
Depois, no contexto onde marear,
Fazer.
1247 - Medo
O outro lado da vontade de viver,
O inevitável lado sombrio,
É de não viver o medo frio,
O medo de morrer.
Agarrarmo-nos à vida significa,
Afinal, a seguir,
Ou implica
Termos medo de nos deixar ir.
1248 - Chamam
O Espírito existe,
Existe Deus, por trás dos dados fortuitos,
A Realidade íntima que por ela própria subsiste:
Chamam múltiplo (os dados são muitos)
Ao que é, em sentido algum,
Realmente Um.
1249 - Percepcionamos
Neste nosso próprio ser
Não percepcionamos o Verdadeiro,
(Em qualquer
Inteiro),
Mas ele está
Realmente lá.
Naquilo que persiste
Do próprio ser como núcleo subtil meu,
O Todo que existe
Dele próprio tem ali o Eu.
Uma subtil essência invisível,
Sem frente nem reverso,
É o Espírito discernível
De todo o Universo.
Isso é o Verdadeiro,
É o Eu com que me enfeitiço,
E eu e tu e nós, de que me abeiro,
Todos nós somos Isso.
1250 - Angústia
O que fizermos para a angústia dissipar
Apenas reforça a ilusão
De sermos tal angústia em particular.
Deste modo, a questão
É que tentar a uma angústia escapar
É apenas uma forma de a perpetuar.
Ao invés, olha de frente a fera,
Aceita-a, em ti a acolhe.
Verás desvanecer-se-lhe o ferrão de quimera
E, doendo embora,
Tua energia já de ti não recolhe,
Não demora.
1251 - Lado
Preciso de aprender
A não querer ir a lado nenhum.
Rachar lenha basta a quenquer,
Carrear água pesadamente
É um bom desjejum
De muita gente.
Sem tentar atingir mais,
Sem por mais ansiar,
Sem nenhum propósito desejar,
Que tudo é demais.
Viver apenas a seguir,
Peça a peça,
- Permitir
Que tudo aconteça.
1252 - Perfeito
Se logramos que em geral tudo nos saia bem,
É quanto basta.
Da busca do perfeito apenas vem
De problemas toda a casta.
Se tentáramos obrar tudo perfeito,
Bem pouco seria feito.
Despenderíamos o tempo inteiro em pormenores,
Perderíamos de vista
A paisagem global.
Ora, o significado das coisas não se avista
Num trilho para os valores
Letal.
Em findar tudo perfeito menos me empenho
E mais em ver como ajudar
Que simplesmente bem tudo acabe por ficar.
Mais na aceitação
Aguço meu engenho
E no perdão.
1253 - Concentra-te
No que dizes,
Concentra-te tanto na maneira
Como no conteúdo que avalizes.
Muitas vezes cada um de nós se inteira
De quão correcto e fundamentado o conteúdo
Está,
Mas ambos um ao outro gritamos tudo
De forma tão má,
Desagradável, zangada,
Defensiva, provocatória,
Que nada virá de bom, nada,
De tão virulenta história.
Depois não conseguimos entender
Porque o outro reage ao comentário
Pelo tom e não pelo conteúdo.
E é só compreender
O calvário
Que estraçalha tudo:
Os tons defensivos interagem nas agressões
Numa espiral descendente, negativa, de reacções.
Ou alguém a quebra de vez
Ou a vida ficará por um talvez.
1254 - Causas
Afirmar, dentre as causas, uma causa só,
Crer que a personalidade gera culpada a doença,
Não tem dó
Da
pequenez de nossa presença:
Apesar de podermos ir controlando
A maneira como respondemos
Ao que nos advém, de quando em quando,
Controlar nunca podemos,
Do grão miúdo ao graúdo
Da messe,
Tudo
O que nos acontece.
Esta ilusão,
De tão agressiva,
Por não termos o controlo do situação,
É definitivamente destrutiva.
Doutro modo, nem a fatídica sorte
Nos imporia
Por destino a morte,
Antes seria
Um raso
Gesto meu, no acaso
Dalgum distraído dia.
1255 - Agentes
Podemos usar as nossas crises
Como agentes de cura.
Seja como for que ajuízes,
Há sempre em tua vida alguma altura
Em que te fere o ressentimento.
Tenha sido ou não fermento
De qualquer mazela,
A verdade
É que é útil ter em conta tal possibilidade
E, na sequela,
Tentar-te curar:
Desenvolver a compaixão,
Praticar
O perdão.
Mesmo sem qualquer motivo,
Ficarás a ganhar
E um mal furtivo
Veio, afinal, a te aumentar.
1256 - Valiosa
A mais valiosa qualidade
De nosso optimismo
É dele a enorme e provada utilidade
Na hora de enfrentar a adversidade
Quando na vida me abismo.
1257 - Segredo
Nenhum pessimista descobriu
O segredo das estrelas
Nem navegou por ignoto rio
Nem pelo mar das caravelas,
Nem abriu, sem engano,
Qualquer nova porta ao espírito humano.
1258 - Probabilidade
O doente convencido
De que o remédio lhe alivia a doença
Da maior probabilidade fica investido
De estimular a defesa natural que lhe pertença
E de a ele próprio a facultar
Para se curar.
- A convicção
É cura gratuita e sempre à mão.
1259 - Teorias
Aqueles que as teorias próprias do bem e do mal
Esquecem,
Concentrando-se na realidade factual
Que conhecem,
Melhor encontram o bem
Que os que, mal afeitos,
Pela lente deformada o mundo vêem
Dos próprios preconceitos.
1260 - Morangos
Não há uma objectiva comprovação
De os morangos serem bons ou maus.
Para quem deles gosta, bons serão,
Para quem não gosta, não.
Porém, quem gosta, saltando os vaus,
Goza um prazer
Que os outros jamais hão-de ter.
Para o graúdo,
Como no miúdo,
Estes,
Presos do preconceito nos atoleiros,
Jamais em nada voarão celestes
Nem altaneiros.
1261 - Desfruta
O que desfruta de algum sentido de controlo
Da conjuntura,
Que crê que o lugar de condutor ocupa nalgum solo,
Embora fantasia pura,
Enfrenta mais positivo o problema
Que o que cuida que não controla a decisão
Ou que ela jamais influirá no lema
Da questão.
É o que divide os mundos
Entre os inférteis e os fecundos.
1262 - Peneirados
Todos somos optimistas,
Não tanto por irmos ser felizes,
Mas porque o fomos, ao que consta das listas
Peneiradas, com o tempo, dos negros matizes.
"Lembras-te de como nos divertimos
O ano passado?"
- Comenta a criança, quando nos rimos
E felizes nos sentimos
Em qualquer outro lado.
Da vida no monte calvo
A felicidade está nas recordações
Que estão a salvo
Do vale da memória nos férteis saguões.
A felicidade, em norma,
É também da memória uma aprazível forma.
1263 - Esquecimento
Muita ferida
O esquecimento cura
Na vida!
Esquecer depura,
Alivia a tristeza lerda
De alguém querido
Pela perda,
Com o vácuo de sentido;
Ajuda a perdoar ofensas,
A recuperar o entusiasmo,
Após cumpridas as sentenças
Que nos traça
O sarcasmo
Da desgraça.
Distanciar-me dum ontem penoso
Facilita o restabelecimento
Da paz interior de que já não gozo,
Anima-me a virar a página, jucundo,
E abrir o rosto ao vento,
A abraçar de novo o mundo.
A quem for marcado
Por fracasso ou infortúnio inesquecível
O desafio é por um pendor inesperado
Explicá-lo, torná-lo inteligível,
Uma perspectiva mais distante,
Menos pessoal, mais ampla, muito ao longe adiante.
É aceitar que o sofrimento,
A humilhação indevida
São um inevitável elemento
Da vida.
1264 - Doloroso
Os que permanecem parados
No doloroso ontem da própria autobiografia
Vivem aprisionados
No medo e no rancor,
Ao pelourinho que os feria
Acorrentados,
Obcecados,
Em todo e qualquer ramo e teor
Da quotidiana lida,
Pelos malvados
Que lhes molestaram a vida,
O que adrede
Os impede
De fecharem a ferida.
De culpa e ressentimento a mistura
Amarra-os ao entravante lastro
De manter a identidade de vítima pura,
Fita
De nastro
Cuja atadura
Paralisa e debilita.
Aquele que faz
Com o passado
A paz,
Por mais que haja sido malfadado,
Liberta-se, recompõe-se e controla
Melhor o destino que diariamente o atola.
Até melhora a saúde,
Ao fortificar o imunológico sistema
A que nem alude,
Por lema.
1265 - Ontem
O optimista
O ontem com benevolência
Passa em revista,
Aceita sem ressentimento a evidência
Da inalterabilidade da vida
Já vivida,
Reconcilia-se, pacífico, com qualquer
Conflito que não pôde resolver,
Com os erros em que baqueou
E não rectificou,
Com as oportunidades mil havidas
De vez perdidas.
Em paz, humildemente,
Vai em frente.
1266 - Regra
Para o optimista a boa sorte
É de regra e perdura.
Para o pessimista é fugaz norte,
Casualidade insegura.
Este apura a morte,
Aquele vida apura.
1267 - Restringir
Quão mais optimista alguém for mais tende
A restringir ou arrumar
Do fracasso o efeito que o ofende
E a evitar
Generalizações ou fatalismos, à partida,
Que não permitem qualquer saída.
Para o pessimista, ao invés,
Os golpes anoitecem a totalidade
Da própria personalidade
De vez,
Pelo que os efeitos negativos totais,
Previsíveis e verificáveis,
São gerais
E insuperáveis.
Qual dos dois
Quererá quenquer,
Pois,
Vir a ser?
1268 - Culpa
O optimista não se sobrecarrega
Com a culpa do ocorrido,
Avalia o peso do gesto que emprega
E a falha doutrem, no mesmo sentido.
Cataloga o percalço
Como fruto de erro reparável,
A partir do qual, na despistagem,
É viável
Correr no encalço
Duma aprendizagem.
O pessimista, ao contrário,
Por inteiro se acusa
Do ocorrido
E, atrabiliário,
Recusa
Reparar o desacerto havido,
Não lhe desvenda nenhuma possibilidade
Nem, então,
De aprender a oportunidade
Com a situação.
Aquele retira do amanho
Da vida todo o ganho.
Neste, o desperdício
Transforma-se, fatal, num vício.
1269 - Conjuntura
Ante a conjuntura favorável
O optimista julga que a merece
Ou é digno da recompensa,
Cuida que a tornou viável,
Que o bom momento que acontece
Lhe faz parte da tença.
O pessimista não se cuida merecedor
De nada positivo,
Não se atribui nenhum valor,
À própria capacidade esquivo.
Um da vitória inaugura a rota,
O outro, a da derrota.
1270 - Comparo
Quando comparo um mau evento
Com um anterior
Evento pior,
Melhor me sinto que quando tento
De outrem recorrer a memórias mais felizes
Para avaliar de hoje os matizes.
E quando comparamos nossas penas
Às doutros prejudicados,
Sentimo-las maiores ou mais pequenas,
Conforme a maior ou menor sorte dos equiparados.
É tudo, pois, definitivamente relativo
No destino esquivo.
Cabe-me, então, a estratégia escolher
Que melhor me souber.
1271 - Predispõe
Optimista é quem espera
Que tudo lhe corra bem
E, como tal pondera,
A tal se predispõe também.
Pessimista é quem espera
Que tudo lhe corra mal
E, como tal pondera,
Também se predispõe a tal.
Qual escolhes, pois,
Ser dos dois?
1272 - Insatisfação
Em qualquer comunidade,
Fonte perene de pessimismo
É a insatisfação prolongada que invade
Qualquer basilar necessidade,
Que enguiça
A liberdade,
A segurança e a justiça.
Quando isto em causa é posto
Sem aguardável saída,
Transtorna-se qualquer humano rosto
E do fojo salta a fera, de seguida.
1273 - Caldo
As democracias são
Do optimismo um bom caldo de cultura.
Regimes sem instituição
Nem lei que reja a autoridade,
Em que o poder se configura
Num indivíduo ou minoria da cidade,
Com a arbitrariedade e autoritarismo
Fomentam o derrotismo.
Democracia é Primavera,
Dos frutos sempre a alimentar a espera.
1274 - Crónico
O crónico desnível
Entre aspirações e oportunidades
Redunda em frequentes frustrações,
Desarmadas ociosidades,
Derrotismo ingerível.
As comunidades
Que valorizam e facilitam, sem papões,
O controlo pelos cidadãos
Sobre o próprio futuro
E fomentam neles a ideia de que não são vãos
Os desejos de alcançar
As próprias metas pelo seguro,
A motivação e a esperança vão motivar.
Quando este valor cultural
Coincide com a oportunidade,
Todos vão entender o objectivo, afinal,
Que a cada qual mais agrade
Na perspectiva realista
De ser optimista.
1275 - Dor
A dor, por mais forte que seja,
Devém logo mais suportável
Quando se entreveja
Que no futuro a cura é viável.
Tolerável é
A pior calamidade
Quando se crê
Que findará de verdade.
A angústia mais penosa
Alivia-se mal exista
A tranquilidade gozosa
Ao alcance da vista.
1276 - Moderadamente
Quem o estado de espírito mantém
Moderadamente alegre
Alta probabilidade tem
De que o optimismo também
Nele integre.
O estado de alma positivo
Estimula memórias agradáveis
E bloqueia as desagradáveis,
Ignoradas em arquivo.
Os tristes tendem, de preferência,
A evocar, nocturnos, a negativa
Experiência,
Obliterando a soalheira e positiva.
Quanto ao futuro, quem alegre for
Prevê eventos favoráveis,
Ir-se-á propor
Dentre os beneficiários deles mais prováveis.
O desalentado
Tem a propensão
De augurar infortúnio em todo o lado,
Prevendo, então,
Que, por mais que apele,
Será vítima dele.
Ora, conforme os votos expressos,
Assim, luminosos ou negros, os sucessos.
1277 - Trocar
Trocar emoções e pensamentos,
Dar e receber afecto,
Aceitar e ser aceite em todos os momentos
São aventuras cujo prospecto
Estimula festivos
Estados de espírito positivos.
1278 - Momentos
Os momentos de alegria moderada
Têm um impacto relevante
Nas decisões que tomamos,
Na criatividade que empregamos
A resolver as armadilhas da estrada,
Na memória vigilante,
Na capacidade para aprender,
Na motivação para embarcar
Num novo galeão qualquer
E na forma de com outrem nos ligar.
Ao invés, o que nos destina
Uma felicidade intensa e repentina
Não melhora obrigatoriamente
A nossa disposição
Para da vida olhar a corrente
De forma positiva em cada mouchão.
1279 - Várias
Quem desempenha com gosto
Várias actividades diferentes
Independentes,
Aposto
Que desfruta mais da vida em geral
E melhor suporta contratempos por igual.
Uma ocupação estimulante
Pode atenuar
O golpe desconcertante
Dum fracasso familiar
Ou semelhante.
Como o investidor reparte por várias capelas
O capital com que lida,
É bom diversificar as parcelas
De plenitude em nossa vida.
1280 - Positivo
"Eis que nos salvámos
Do acidente
Porque sou bom condutor"
- É mais positivo ter em mente
Do que: "não nos matámos
Por milagre, neste horror!"
No momento de julgar
A conjuntura que nos afecta
É preferível explicar
Com o que minimiza a seta
Do infortúnio ou facilita
Comparações vantajosos
Entre o que causou nossa desdita
E as doutrem mais tenebrosas.
Ao avaliar a sentença
Já não há desespero que nos vença.
1281 - Inelutavelmente
Se a juventude soubesse,
Se a velhice pudesse…
Mas nem a juventude sabe,
Nem a velhice pode.
Em nosso mundo nada cabe
Do que a tal acode:
Vivemos inelutavelmente às avessas
E por portas travessas.
Embora, curiosamente,
Seja isto
Que melhor a vida apimente
Quando resisto,
Quando insisto
- E sigo em frente!
1282 - Hóspedes
Somos, na esmagadora maioria,
Hóspedes indesejáveis da terra.
Só vivemos pela morte e agonia
Que a outrem impomos, em sina de guerra.
As plantas, concordamos,
Também estão vivas
Até que, cativas,
As matamos.
Tal é toda a natureza
E chamar-lhe cadeia de alimentação
Parece de inócua beleza
Mas é uma ilusão.
Que revelação nos persuade
Ou será bastante desmedida
Para explicar a terrível crueldade
Da vida?
1283 - Maneira
Cada homem vê e ouve
De maneira diferente
O que lhe coube
Em frente.
Portanto, não denigra mas antes louve
O consequente:
Cada homem vê e ouve
Um mundo diferente.
1284 - Lugar
"Teu lugar não era aqui,
Nem frente a juiz nem carrasco.
É lá fora que te vi,
Da montanha no penhasco,
Nas cidades,
Nos campos, nas herdades…"
Nosso lugar é, porém,
Aquele onde nós estamos,
Por mais que a ferir venha alguém.
Às vezes reparamos
Que custa muito, muito além
Do que, à primeira, julgamos.
É, porém, minha alba plena
A única que não me aliena.
A doutrem é sempre a dele,
Não a da luz que me impele.
1285 - Delicado
Que é que andamos a fazer?
- Nada, nada, nada!
E é isto que é muito difícil de empreender,
Delicado e até às vezes, para quenquer,
Perigoso mais que um assassino na estrada.
1286 - Cruzar
É muito instrutivo
Cruzar um campo de batalha.
Nada mais excitante que um exército ao vivo,
Em desfile animado, ritmado na calha.
Podemos não gostar, pacíficos,
De guerra nem querela,
Mas são, desfilando, tão magníficos
Os exércitos, uma epifania tão bela
Que nos arrebata e acorda
Entusiasmos esquecidos,
Energias adormecidas: pela borda
Tomba quem em vê-los persiste
E ninguém lhes resiste,
Momentos volvidos!
A meio do campo de batalha, a perder de vista,
Restam apenas cadáveres, carros de guerra partidos,
Braços e pernas decepados em aterradora lista,
Destroços fumegantes, carvões ardidos…
Toda a glória dos estandartes,
Toda a beleza das marchas,
Toda a energia evocada do desfile pelas artes,
Tudo, no fim,
Escarchas
Assim.
É isto a guerra.
Convém destapar-lhe o rosto,
O que aterra
Da bela
Sentinela
Por trás do posto.
1287 - Acorrentado
Desde o momento
Do nascimento
Vive o homem acorrentado ao que o fada,
Viatura em movimento:
A paragem final não pode ser alterada,
Apenas o modo como a viagem é feita.
Pode escolher:
Ou caminhar erecto é a postura eleita
Ou lamuriar-se prefere
Enquanto
É pelo pó sempre arrastado, entretanto.
Em qualquer caso, o pó que nos elida
É sempre o pó de estrelas da vida.
1288 - Parte
Em toda a gente há uma parte que quer morrer,
Pequeno caldeirão de autodestrutividade
Perenemente e ferver
Sob a superfície, mesmo a que mais agrade.
Ignoramo-lo cá dos cimos,
Até que acaso explodimos,
Então, por todos os lados,
Em fanicos retalhados.
E apenas o de antemão prevenido
Pode recoser os retalhos do tecido.
1289 - Sozinhos
Temos tantas, tantas oportunidades
E depois a vida toma conta de nós
E eis-nos vivendo inesperadas soledades,
Solitários para sempre após.
Ninguém foge
Ao nó do que lhe é vivível:
Tornei-me no que sou hoje
E não há recuo possível.
Queira ou não queira, pagarei sempre a portagem
Da minha viagem.
1290 - Apagar
Não podemos apagar o passado,
Nem matá-lo,
Nem vale a pena, por outro lado,
Insistir
Em desejar que deixe de existir,
Que não lhe trará qualquer abalo.
Nem podemos afastar o presente
Persistente, persistente.
Nem mudar o que estiver para vir
Com o alvedrio do que lhe queira imprimir.
Vivemos no ciclo do tempo fechados
Por todos os lados,
Dele girando por dentro
Em torno dum centro
De dias passados.
Por vezes, estes dias passados são bastante fortes,
Bastante voluntariosos,
Para nos arrastarem para todos os nortes
Por mais que, no meio do enguiço,
Furiosos,
Lutemos contra isso.
1291 - Terra
A terra está na mão dos homens há milhões de anos.
Eles têm-na preparado, alimentado,
Abusado dela e amaldiçoado
Em seus arcanos,
Mas ela sobrevive, indiferente e destemida:
- Enterra-os e dá-lhes vida.
1292 - Ilude
Ninguém quer recomeçar.
É mentiroso
Quem o contrário afirmar
Ou a ele próprio se ilude, tenebroso.
Todos querem ir embora
Quando tudo dá para o torto,
Ir noutra direcção na hora
E sem bagagem, sem bagagem, peso morto.
São os que o logram sortudos gritantes:
Vão livrar-se das dependências
Destes fardos irritantes
Da culpa e das consequências.
1293 - Medo
Jamais conseguirei explicar
Nem a ti nem a ninguém
Como um medo se logra implantar
E viver dentro de nós pela vida além,
A forma como nos diz
Como pensar e como agir de raiz,
O que dizer
E aquilo a que nem me irei atrever.
Por mais, todavia, que o medo diga,
Em ti a ruim semente nunca espiga,
A não ser quando o enfrentes ao postigo
E contra ele tu próprio de vez percas o abrigo.
1294 - Apontam
Fi-lo contra gerações de tradição.
Muitos me apontam ainda a dedo e fazem troça,
Ou resmungam e praguejarão
Pelo escritório, pela fábrica, pela roça…
Porque não trilhei o caminho
Com que a maioria se sente confortável,
Onde arma o próprio ninho,
Que compreende e, portanto, se lhe torna estimável.
É que o que não compreendem, em suma,
Assustá-los costuma.
Entretanto, por que não
Trilhar meu caminho
Se em mim sinto da razão
O fundo dedo adivinho?
1295 - Dano
Se o dano causado reparar quiser,
É de agir depressa.
Se há uma racha qualquer,
A tendência é que a alargar começa,
Se não houver cuidado.
Se persistir tempo demais,
A racha em fractura se há mudado,
- Já nada trava os vendavais!
1296 - Mortais
Os mortais não reparam nas valências
Dos poderes que detêm,
Usam-nos com a maior das negligências
Neles próprios e com os outros também.
Tanto desperdício
E queixam-se de não deixar na terra nenhum resquício!
1297 - Réstea
A insensatez,
Uma réstea de loucura,
É parte do encanto que vês
Nos indivíduos, nas histórias de aventura.
Portanto, usa tudo,
Explora fundo,
Absorve o máximo do escudo
Cascudo
Do mundo.
Aí é que enraízas, entrementes,
E melhor preservas e prezas
As tuas sementes
E as tuas defesas.
1298 - Curioso
É curioso como alguns vêem
O sinal
Que outros nem sequer lêem,
De lhes parecer tão banal.
A rotina
Encegueira-nos a sina.
1299 - Resmunguem
Por mais que resmunguem e reclamem,
Adoram aquela vida,
Cuidam do barco como mães que amem
Um primogénito, de cotio por entre a lida.
Vendem o que pescam a preço justo,
Ninguém diz que não merecem confiança,
Amam o trabalho feito a custo,
A tradição, a reputação que lhes alcança.
Mas, no fundo, encontra-se o lucro, no fundo:
Se não houvera que ganhar a vida,
Era apenas passatempo jucundo
Aquela freima desmedida.
1300 - Garrafa
Perante a garrafa meia cheia da vida,
Uns vêem-na prenhe de possibilidades
E reconfortam-se à medida,
Outros vêem-na curta de oportunidades
E entristecem-se em seguida.
O facto é igual.
A resposta,
Em contrapolo diametral,
É oposta.
Aquele tende à sorte que lhe calha
De vencer,
Este talha
A de perder.
1301 - Caminho
O destino
Leva-nos a determinados pontos
Ao longo dum caminho clandestino.
Cabe-te a ti, nos confrontos,
Decidir o que fazer aqui e agora,
O brilho
Da hora,
A escolha afinal do trilho.
A escolha pelo contexto condicionada
É a nossa inelutável estrada.
1302 - Cave
Mãos ocupadas mantêm
A mente absorvida
E o problema que tanto perturba tem
De ser relegado para a cave escondida.
Pensa no que ocorrer
E no que operar
Enquanto a mão te estiver
A trabalhar.
É bem mais eficiente
Que ficar a remoer, ausente.
Então a luz, inesperada,
Ilumina gratuita, de repente,
Tua estrada.
1303 - Precisava
Mal a conhecia
Mas precisava de a ter
E pouco lhe importaria
Se o fogo se extinguiria
Num momento qualquer.
Aborrece-o descobrir que pode ser manipulado
Com tanta facilidade
Pelo desejo desatado
Que o invade.
Olha para trás
E constata, frustrado,
Como é incapaz.
A vida é assim:
Embora me envergonhe,
Nunca sou eu em mim,
Por mais que o sonhe.
1304 - Dentes
A terra tem dentes comedores,
Tritura cada inimigo até aos ossos,
Absorve os invasores
E obriga a que se tornem dos nossos.
O fado
Mais estranho e maior
É que o derrotado
Acaba sempre vencedor.
1305 - Sensatos
Quantos descuram
Os fados
Que espreitam!
Todos procuram,
Os afortunados encontram, os afortunados,
E apenas os sensatos aceitam.
1306 - Desejos
O que tem lhe basta.
Quisera talvez mais, mas sabia
Que os desejos são de tal casta
Que, por mais fundos e sedutores que alguém os conferia,
Quando embora melhor os aprontas,
Não pagam as contas.
Sabia também
Que algumas ambições, de vez o trilho delas consumado,
Traziam, porém,
Como fatídica sequela,
Na etiqueta da lapela,
Um preço por demais elevado.
O mais prudente
É bastar-nos o tesoiro remendado
E desfalcado
Do presente.
1307 - Exterior
Tinha a própria casa e tudo para além
Era-lhe exterior ao domínio
E por isso, normalmente, também
Exterior da própria mente ao escrutínio.
Preferia, conseguintemente,
Não precisar de ninguém
E, certamente,
Nada requerer
Que não pudera ter.
Sabia que a dependência e a ansiedade
Por algo mais que o próprio chão
Leva à infelicidade
E à insatisfação.
Sabedoria
É bastar-me a luz do sol de cada dia.
1308 - Gritara
Quando finalizam as esculturas,
Os poemas, dos violinos o volátil voo,
É como se gritara das alturas:
- É isto que eu sou!
Pelo menos, de mim,
Hoje é assim.
E é isto que, em qualquer leira,
Torna qualquer arte verdadeira.
1309 - Felicidade
Ninguém para sempre é feliz.
A felicidade é ponto de exclamação,
Não é frase nem palavra com tempo de raiz.
E o píncaro da emoção
Apenas o pode beber
Quem primeiro intensamente sofrer.
1310 - Entregarmos
Se nos entregarmos à dor,
O pior
É que teremos já esbanjado
Todo e qualquer
De antemão viabilizado
Prazer.
1311 - Ocorrências
Quando não podemos falar
De ocorrências que são verdadeiras,
Vemo-las crescer, proliferar,
Distorcer-se e ganhar
Gavinhas de videiras,
Mais importância, a seguir,
Do que devíamos permitir.
E o resultado
É que cada qual se atrofia
Pelas mordaças do passado
Cada vez mais cada dia.
1312 - Coro
O coro das vozes esquecidas
Dos crimes em aberto
Jamais resolvidos,
A mansão dos horrores de todos nas vidas,
Nossa maior vergonha nos dias perdidos…
Cada crime daqueles é uma pedra atirada
A um lago sem fundo.
A ondulação estende-se amaldiçoada
Pelo tempo, pelas pessoas, pelo mundo:
Família, amigos, vizinhos…
E a onda envenenada escapa entre os dedos dos ancinhos.
Como podemos chamar-nos uma cidade,
Um país,
Quando tanta onda nos invade,
Nos corrói os perfis,
Quando tantas e tantas vozes
Findam esquecidas, pelos crimes mais atrozes?
1313 - Fácil
Se uma tarefa determinada
Fácil fora,
Já por alguém acabada
Teria sido a qualquer hora.
Se doutrem seguir a pegada somente,
Os problemas acabarei por perder
Que realmente
Vale a pena resolver.
Pela preparação
A excelência brota. E persuade
Pela dedicação,
Determinação
E tenacidade.
Se de vista perder
Destes atributos um qualquer,
Não ultrapassarei a normalidade.
De vez em quando, na vida,
Há o momento da grande decisão,
Um dilema nos convida,
Chão,
A decidir,
Singular,
Ir
Ou ficar.
E a determinar para sempre viver
Com a decisão que tomado se houver.
Por nós próprios examinar
Sempre tudo deveremos:
Nem tudo ao que parece
Se há-de assemelhar,
Nem ao que outrem diz, nem ao que cremos.
É mais fácil conviver
Com uma solução
Se tomado a houver
Com base numa ponderação
Séria, com tudo pesado,
O certo e o errado.
Quem morre a maior parte das vezes,
Do aperto no abismo,
É o que mostra nos reveses
O maior nervosismo.
A pior decisão
Possível, a vir,
É o alçapão
De desistir.
1314 - Praticar
Não podemos praticar o bem
Sem sermos maus de vez em quando
Com aquele para quem
O bem estivermos praticando:
Quando se desvia, o mau
Não requer pão mas varapau.
Sendo para ele mau então
É que serei deveras bom.
1315 - Queria
A vida é mesmo assim:
Quando ela pretendia reabilitar-me,
Eu só queria afastar-me
O mais rápido possível;
Mas, quando desistiu de mim
Por eu ser impossível,
Senti brilhar nela uma estrela
E só queria estar junto dela.
Só vislumbramos o tesoiro
Dele após a falta,
Quando já lhe demos fim.
Deste desdoiro
Jamais teremos alta,
A vida é mesmo assim…
1316 - Vingança
A vingança é estranha, tudo medido:
Queremos a satisfação
De saber que há ocorrido,
Mas sem ouvir a entoação
Das palavras em voz alta.
Porque então teríamos de admitir
Que queríamos conferir a prova em falta,
O que a rebaixar-nos iria conduzir:
Tornar-nos-ia pesados
De enganos,
Menos civilizados,
- Demasiado humanos.
1317 - Palavra
A palavra é um instrumento
Muito poderoso.
Um insulto não tem de ser gritado ao vento
Para sangrarmos do golpe venenoso,
Uma jura não tem de ser murmurada
Para acreditarmos nela.
Basta mantermos uma ideia refechada
De nossa mente na entretela
Para alterar o cadinho
Dos actos de tudo e todos
Que nos cruzem o caminho
E assim configurar da vida os bodos.
1318 - Miséria
A pior miséria humana
Mora no deserto da emoção.
O homem sonha a felicidade a que se irmana
E no sonho a iguala,
Mas nunca sabe, não,
Conquistá-la.
Procuram os poderosos
Dominá-la,
Cercam-na de exércitos tenebrosos,
Encurralam-na com armas,
Com as vitórias a concitam.
Todavia, do poder os karmas
Nunca a debitam.
Jamais de paço soberano qualquer ala
Logrou controlá-la.
E quem é mais feliz
Nunca do poder teve o matiz.
1319 - Magnatas
Os magnatas, à felicidade,
Tentam comprá-la.
Constroem impérios de ferocidade,
Erguem fortunas de enorme escala,
Compram jóias às rodadas,
São montras endinheiradas.
A felicidade, porém,
Não se deixa comprar.
Dum mercado é refém
Onde não há dinheiro a usar.
Da felicidade os traços
Dão-nos febres:
Há miseráveis morando em paços
E ricos dela, em casebres.
1320 - Cientista
O cientista a felicidade
Tentou compreender,
Investigou-lhe a verdade,
A estatística a ter,
Mas a lógica do mensurável
Não é a lógica da emoção.
A mente é uma instância inapelável
Para medir o coração.
E o cientista que se quis
Preso da medida à rigidez
Acaba infeliz
De vez.
1321 - Buscam
Buscam os intelectuais
A felicidade na filosofia
Mas não a encontram jamais
Em tal via.
Não há mistério maior
Para a mente que a emoção,
Nenhum sonhador
Lhe encontra o guia de condução.
Os que amam as ideias
Desprezando a emoção
Esbanjam às mancheias
O encanto pela vida que terão.
1322 - Jovens
Os jovens hão-de querer
O desacato
Da alegria de viver
No imediato.
Espectáculos e festas,
Drogas e enfrentar perigos…
Ignoram as arestas
Escondidas nos pascigos.
Ora,
A felicidade não mora
No prazer imediato
Nem se mostra a quem ignora
O inseguro
Efeito do próprio acto
No futuro.
1323 - Muitos
Muitos falham a conquista
Da felicidade que têm em vista.
Querem o perfume da flor,
Mas não sujar a mão de no canteiro a dispor,
No pódio querem o lugar,
Não a labuta de treinar…
Temos de aprender a navegar
Nas águas turbulentas da emoção
Se queremos de qualidade um lugar,
Da vida no desnorteante cachão.
1324 - Acolhe
O mundo da emoção
Não acolhe o acto heróico:
Doravante salto ao chão,
De manhã, alegre, estóico;
Doravante levanto a palma
De ser uma pessoa calma;
Doravante serei feliz,
De auto-estima em meu cariz…
É um engano:
No calor imprevisto da próxima hora
Todo o plano
Se evapora.
1325 - Planeta
No planeta da emoção
Tudo é treino, educação.
Quenquer terá de treinar
Para ao fim feliz ficar.
Apenas então
Supera a perda, a frustração.
Caso contrário, o coração,
Instável, finda incapaz
De contemplação
Do belo que há no mais fugaz
Evento da rotina
Por onde cada dia germina.
1326 - Simples
A vida é bela
Mas não é simples vivê-la.
Às vezes é como um jardim
E, de repente, muda a paisagem
Do princípio ao fim
E é uma árida aragem,
Como dum deserto,
A rondar ali por perto,
Ou então é íngreme sanha
Do alcantil duma montanha…
Independentemente dos penhascos a saltar,
Cada qual tem a força de os escalar.
Muitos, porém, desconhecem
De que força se entretecem.
1327 - Topo
Todos querem ir ao topo,
Uns ao topo da fama,
Ao da carreira é doutros o escopo,
Da profissão domar a trama,
Para outrem é a académica hierarquia
E outros mais, do poder financeiro a magia…
Os mais sábios, porém,
Visam da qualidade a cumeeira,
O cume de sentido que à vida mais convém,
O patamar da tranquilidade cimeira.
A ti cabe escolher,
Sem indulto,
O que mais te convier,
O do sábio ou o do estulto.
1328 - Contínuos
Nossos contínuos subterfúgios
E falsidades
São mais arriscados e com menos refúgios
Que as verdades
Ditas enérgica e honestamente.
Senão,
Do inimigo o intuito em mente
Finda consumado por nossa mão.
Quando menos reparemos,
A nós próprios nos destruiremos.
1329 - Oculto
O oculto apenas é real
Para quem tenha o poder
Crucial
De o apreender.
Alguns afortunados o poder
Ainda têm de decisão
De querer ou não se aperceber
De qualquer sua manifestação.
Fora disto, opaco e disperso,
É o grande silêncio do Universo.
1330 - Questão
No fundo,
Para os que nisto meditam,
É tudo questão de fé:
O mundo
É como é,
No que nele vai tomando pé,
Por mor do que os homens acreditam
Até
Que o mundo é.
1331 - Deuses
Não é pior
Dos homens o mais vil
Que o melhor
Dos deuses mil:
Todo o mal, perversidade,
Que o homem haja feito, da história na viagem,
Sempre foi de deuses por vontade
Construídos dele à própria imagem.
1332 - Complemente
A beleza
Sem nada que lhe complemente a aurora,
Bem pouco demora:
Acaba, a quem a preza,
Por devir bem maçadora.
E de vésperas a reza
Dela é derradeira hora.