DÉCIMO  TROVÁRIO

 

 

DEVER  E  SER  MISTERIOSOS  SE  ENTRELAÇAM

 

 

 

 

 

Escolha aleatoriamente um número entre 1207 e 1332 inclusive.

Leia o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1207 - Dever e ser misteriosos se entrelaçam

 

Dever e ser misteriosos se entrelaçam

No poema de métrica incerta

Em que as rimas abraçam

Os dois pendores que laçam,

No nó das palavras, a verdade entreaberta.

 

O verso dilui a fronteira

Entre os dois pendores da montanha,

Dever e ser amparam à beira

Os alcantis onde a vida se nos ganha.

 

Os dois alevantados

São minha coluna estruturante

Olhando o horizonte por todos os lados.

 

O poema tem-me diante,

Nele me inauguro: sou o instante.

 

 


1208 - Parar

 

Para compreender

O que uma paisagem

Nos tiver a dizer

Urge parar de vez a viagem,

 

Frequentá-la longamente,

Fruí-la em todos os estados

O que implica, coerente,

Que pratiquemos, com mil cuidados,

 

A escuta, a atenção,

Porventura mesmo, alheia à norma,

Uma certa forma

De meditação.

 

Apenas então, ante as luzes que se acendam,

Os segredos se desvendam.

 

Na paisagem como na vida

É igual a medida.

 

 

1209 - Partem

 

Os que primeiro partem deixam a lembrança

No tecido da memória e da vida.

A memória não se apaga nunca do que entrança,

Ainda que o tema de origem se esbata, mancha delida.

 

Mesmo que os contornos do desenho pareçam

Deformar-se e com o tempo desapareçam,

 

O que foi sempre será,

Que a memória uns dos outros somos que aqui está.

 

Os desaparecidos

Vivem através de nós,

Mesmo esquecidos,

Que o eco deles fala pela nossa voz,

 

Pelos nossos gestos,

Por todos os nossos inesperados.

Eles são os nossos mais ignorados

Aprestos.

 

 

1210 - Relógio

 

Tu tens o relógio, eu terei o tempo, todavia.

Há tesoiros que a vida só revela com calma,

Mensagens lentas como o nascer do dia

Que só logramos compreender num jeito de alma,

Se tempo aprendermos sábios a criar,

Nossos ritmos ao nos ritmar.

 

A vida emite grande parte das mensagens,

As mais belas porventura,

As mais misteriosas, fluidas como aragens,

Numa frequência tão subtil e pura

Do diapasão

Que as não logro captar na precipitação.

 

 

1211 - Relevas

 

Importa pôr as grandes pedras

Em primeiro lugar em tua vida,

Senão, em seguida,

Não medras

E a vida terás mal sucedida.

 

Se relevas primeiro o cascalho, a areia fina

Dos mil pequenos sarilhos,

Enches a vida de pecadilhos,

Não terás tempo, em tua sina,

Bastante

Para a pedra angular a ser erigida,

Fundante,

Em tua vida.

 

 

1212 - Abandone

 

Abandone os falsos sonhos, divindade malsã,

Acabe com a inútil pressão

Sobre o próprio e alheio coração,

Não fale neles como para efectuar amanhã.

 

Pare de infernizar todos em redor

Com projectos assim

Que nunca irão chegar ao fim

E em todos tolhem o amor.

 

Goste de si tal qual é na realidade,

Em frente vá, rumo ao que ora lhe agrade.

 

Fazer o que faz com consciência,

Com prazer, com alegria,

Com a clareza da evidência

E a festa da fantasia,

Partilhar

Do grande e do pequeno

A magia,

Do irrelevante registar o aceno,

- Eis como encontrar

As pepitas do oiro que não fana

Uma vida humana.

 

 

1213 - Atitude

 

A atitude de acolhimento

Ilumina o facto de algumas manhãs

Serem um tormento,

Algumas jornadas, intérminas e malsãs.

 

Não é de me propor

Que amanhã será melhor

 

Mas antes que a vida também

É assim, um evento pelém,

 

E urge saber como agir e tomar tento

Naquele momento.

 

Manhas de tédio,

Dias de aborrimento

Têm função de remédio,

Farão, por mais que me queime o fogo,

Parte do jogo.

 

Põem em relevo o quotidiano,

Revelam que o dia anterior

Foi dia de sorte, sem rival num ano,

Uma pepita de valor.

 

Importa aprender e acreditar

Na inteligência e generosidade da vida

E em si próprio, a par,

Em igual medida.

 

 

1214 - Cheque

 

Quando, graças à reforma,

Há um cheque de disponibilidade

De tempo

Apto a doirar qualquer passatempo,

Ocorre, em norma,

Já não haver vontade

Nem alento, quando se fala

De correr a aproveitá-la,

À festa doravante aberta

Às alegrias duma descoberta.

 

Por que não agarras a oportunidade?

É que erigiste um sonho durante anos

Que bem útil te foi porventura:

Aguardando melhores dias entre os danos,

Ele te empurrou por pesados quotidianos

Com mão segura.

 

Na realidade, porém, quando agora em concreto

Se plasma,

Tal sonho não era, afinal, um projecto,

Era um fantasma

Que, fiel, nem por isso

Te deixou de prestar oportuno serviço.

 

 

1215 - Liga

 

A nossa identidade

É o que nos liga ao sentido.

Onde encontrá-lo, porém, de realidade

Vestido?

 

É no que fazemos e somos,

Em nossas relações,

No que atribuímos à natureza e dela aos pomos,

À experiência de vida na estranheza dos saguões.

É o que ao tempo emprestamos

Em cada dia que cruzamos.

 

Quando a vida profissional findou,

As turbulências que nos abanavam,

A mente nos colonizavam

E os pensamentos,

Deixam nítido o lugar que vagou

Doravante aberto aos ventos.

 

A grande tentação é preencher o vazio,

Que o vazio é difícil de encarar,

Atormenta, de tão frio

De suportar.

 

A reacção

Da maioria,

Então,

É procurar bem depressa,

Em correria,

Que fazer no tempo livre de vida tão avessa.

 

Na ilusão,

O resultado final

É cada qual

Acabar derrubado no meio do chão.

 

Perdida a identidade, perdeu de vez o sentido

Tudo quanto for vivido.

 

 

1216 - Surpresas

 

O poder de apreciar

Surpresas agradáveis como prendas,

Não adquiridas por trabalhar,

É saúde mental que referendas.

 

Os que dão conta das graças do mundo

Para ser agradecidos,

Têm um pendor mais fecundo

E mais felizes se comprazem,

Da vida pelos becos perdidos,

Do que os que o não fazem.

 

Presenteados pelo mundo ao se sentirem,

Predispostos se sentem a lhe retribuírem.

 

É o que às vidas empresta

Um rumo de festa.

 

 

1217 - Menino

 

Ama teu menino interior,

Acompanha-o, trabalha com ele,

Mas repara que é uma parte menor

De ti, no fundo da pele.

 

Ao lado, teu eu adulto

Sabe controlar as conjunturas

E organizar o que não for

Estulto

Para escapar às agruras

E garantir vida melhor.

 

Quando tua criança te instigar,

Indiscreta,

Para a teus instintos primitivos te entregar,

Deita fora a chupeta:

Sem hesitação,

É não!

 

 

1218 - Rotina

 

A rotina estrutura a vida,

A estrutura confere perspectiva,

A perspectiva abre um horizonte à medida

Perante nós, onde se efectiva

A segurança:

- E que calma nos alcança!

 

 

1219 - Sabedoria

 

"Seja o que Deus quiser!",

- A sabedoria popular

Oferta ali, para quenquer,

Ao rumo da vida a pedra angular.

 

A vida se esvai

No sangue que o medo sua,

Mas Jesus não se retrai,

No rumo da pedra angular firme continua:

"Retira de mim este cálice, Pai,

Porém não se cumpra minha vontade mas a tua".

 

Agrade ou não agrade,

A paz definitiva e derradeira

É tornar-me no que Deus queira,

Transparente cristal de Deus:

"Seja feita a Vossa vontade"

- Meta cimeira -

"Assim na terra como nos céus."

 

Quem o conseguir

Não há lama que lhe toque

Nem dor que o logre ferir:

 

Na iniquidade e injúria

Leva a alegria a reboque

E a festa dele nunca sofre de penúria.

 

 

1220 - Experimental

 

A ciência

Jamais logrará provar

Uma consciência,

Nem a de quem viver,

Nem a de quem morto ficar,

Que experimental não há uma única sequer.

 

Não há percepção directa

Do mundo consciente que noutrem houver:

Apenas o acto que cometa

Poderei ver,

Ouvir-lhe a fala da boca,

Conferir-lhe a atitude que me toca…

 

Disto apenas me apercebo.

Depois, de tal infiro que é consciente

Porque se comporta de maneira

Consistente

Com o que percebo

E recebo

Como sendo consciência,

Quando me inteira

A minha própria, por minha interior vivência,

Daquilo que é e do que produz

Quando, viva, vivo me traduz.

 

A verdade

É que a única consciência que tenho

A certeza de existir na realidade

É a minha própria em meu íntimo desenho.

 

A todas as mais

Nenhum processo

Lhes abre nem abrirá jamais

Directo acesso.

 

 

1221 - Sentados

 

Luz e sombra, longo e curto, preto e branco

Só podem ser conhecidos

Um ao outro em relação,

Sentados no mesmo banco

De descodificação

De razões e de sentidos.

 

Ambos mutuamente a postos,

Simétricas respirações,

Afinal não há opostos,

Apenas há relações.

 

 

1222 - Bastarão

 

Quando te sentes iludido,

De dúvidas pejado,

Nem livros mil que hajas lido

Te bastarão ao cuidado.

 

Quando houveres alcançado

O entendimento,

Uma palavra, sem mais,

Nesse momento,

Já é demais.

 

 

1223 - Cuido

 

Às vezes cuido que a vida

Não tem valor nem relevância,

É, bem medida,

Uma insignificância.

 

Vou morrer e, a seguir,

A humanidade na ribalta

Não irá sentir

A minha falta.

 

A humanidade vai morrer

E o Universo não

Irá sentir sequer

Falta desta ridícula dimensão.

 

O Universo morrer vai

E a eternidade

Não soltará nenhum ai

Por uma falta mesmo desta enormidade.

 

Não passamos duma irrelevância,

Menos que poeira

Que se perde na voraz ganância

Da temporal soleira.

 

Outras vezes cuido, afinal,

Que todos nascemos com uma missão,

Todos desempenhamos um papel fundamental,

Dum grande esquema parte, onde temos um quinhão.

 

Pode ser um minúsculo papel,

Parecer uma missão irrisória,

Uma vida perdida na babel

Irracional da história,

 

Mas, feitas as contas,

Tão minúscula migalha

Poderá revelar-se crucial quando apontas

Os pontos que tecem o quente colo

Que calha

Vir a sazonar o imenso cósmico bolo.

 

Somos minúsculas borboletas

Cujo frágil bater de asas

Talvez tenha o estranho poder de atingir metas

Muito para além de nossas casas:

O poder de gerar, daqui do inofensivo berço,

Longínquas tempestades no Universo.

 

 

1224 - Criança

 

Uma criança entra nesta biblioteca,

Em todos estes livros repara

Redigidos em línguas que não acometa,

Colecção misteriosa e preclara.

 

Sabe que aos livros os escreveu alguém,

Que mensagens ignotas revelam,

Embora não saiba quem

Os escreveu,

Nem que sabedorias emparcelam

De seu.

 

Suspeita que a biblioteca foi organizada

Segundo uma ordem qualquer

Mas tal ordem suspeitada

Bem misteriosa finda a parecer.

 

Somos esta criança

Que na dúvida faminta e peca

Se balança

E o Universo, esta biblioteca.

 

Leis e forças e constantes

O Universo contém,

Criadas, gritantes,

Por alguém,

 

Com misteriosos objectivos

E segundo uma ordem, após,

Incompreensível, em tais arquivos,

Para nós.

 

Compreendemos vagamente as leis,

Captamos da ordem as linhas gerais

Que tudo organizam nas funções e papéis,

Percebemos, superficiais,

Que átomos e constelações

Se movem de certa forma e não aos baldões.

 

Tal como a criança,

Ignoramos os pormenores,

Uma pálida ideia apenas nos alcança

Do propósito disto, em quaisquer pendores.

 

Uma certeza, porém, nos é dada

Por tal constatação:

Esta biblioteca foi organizada

Com alguma intenção.

 

Mesmo que os livros não consigamos

Ler

Nem jamais venhamos

Os autores a conhecer,

O facto é que estas obras mensagens contêm

E a biblioteca que temos em frente

Está organizada também

Segundo uma ordem inteligente.

 

Assim,

Pelo infindo disperso,

É, enfim,

O Universo.

 

 

1225 - Olham

 

Físicos e matemáticos

Olham para o Universo

Como um engenheiro, os dedos práticos,

Olha para um televisor,

No anverso e no reverso,

Ou para um computador.

 

Apenas vêem os átomos e a matéria,

As forças e as leis que as regem,

E tudo isto, se virmos bem a pantalha sidérea,

É apenas harduere em que os astros vicejem.

 

Mas qual a mensagem que tem

Este enorme televisor?

Qual o programa que contém

O gigantesco computador?

 

O Universo detém

Um programa,

Dispõe dum softuere

Que mal vislumbramos pela rama,

Contém

Uma dimensão qualquer

Que nos conclama

As mentes

E está muito para além

Da soma das respectivas partes componentes.

 

O Universo é muito mais que o harduere

Que o constitui,

É um gigantesco programa de softuere

E o harduere apenas existe e flui

Ante nós e nos chama

Para viabilizar este programa.

 

Tal como um ser humano

Que é feito de células e tecidos

E órgãos e sangue e nervos:

É o harduere de que me ufano.

Mas o ser humano em todos os sentidos

É bem mais do que estes servos.

 

É uma estrutura rica

Que detém consciência,

Que ri, que chora, ataca ou se fica,

Que pensa, que sofre e tem paciência,

Que canta, emurchece ou viceja,

Que sonha e que deseja…

 

Somos muito, muito mais

Que a mera soma das partes

Que nos constituem, os varais

Que nos amparam nossas artes.

 

Nosso corpo é o harduere

Por onde corre a evidência

Do softuere

Da nossa consciência,

De toda a íntima, complexa, inextricável vivência.

 

Tal é também a realidade

Mais funda, na profundidade

Da existência:

O Universo é o harduere

Dentro de cujos mantéus

Corre o incomensurável softuere

De Deus.

 

 

1226 - Opostos

 

Tudo são opostos definidos

E os opostos são a mesma coisa,

Os dois extremos unidos

Por fio invisível na tela duma só loisa

- Intuem-no, misteriosas e puras,

De Oriente e Ocidente as Sacras Escrituras.

 

E as Teorias da Relatividade

Vivem assentes

Em que energia e massa são a mesma realidade

Em estados diferentes.

 

Na física quântica a matéria

Ao mesmo tempo é onda e partícula,

Contradição sidérea

Na germinal radícula.

 

Na Relatividade, espaço e tempo estão ligados

Por mútua correlação,

O Universo move-se em todos os lados

Pelo dinamismo dos opostos em função.

 

Os extremos, afinal,

São a diferente expressão

Da mesma unidade radical

Neles em acção.

 

Energia-massa, onda-partícula, tempo-espaço,

O Universo movimenta-se, todo a postos,

Pela imensidão do abraço

Da dialéctica dos opostos.

 

Mística e ciência,

Uma igual, pois, evidência.

 

 

1227 - Bailado

 

O universo é uno,

Não estático, porém, mas dinâmico.

Quando ao bailado me reúno

Do cósmico forno cerâmico,

 

A matéria começa a pulsar

Bailando ao ritmo da dança,

Transformando a realidade e a vida, a par,

Num enorme processo cíclico que ela própria afiança.

 

É o ritmo dos electrões

Dos núcleos em torno,

Dos átomos oscilações,

Das moléculas o movimento no sideral forno,

E são os planetas a girar,

O Cosmos a pulsar.

 

Em tudo há ritmo, sincronismo,

Em tudo há simetria.

A ordem emerge do abismo

Do caos como um bailarino rodopia.

 

Da Malásia nos rios

Milhares de pirilampos no ar

Em uníssono emitem luz

Obedecendo, frios,

A um sincronismo singular,

Secreto, que em magia se traduz.

 

A todo o instante,

De nosso corpo ao longo,

O fluxo eléctrico baila para trás e para diante,

De cada órgão ao gongo,

Ao ritmo de sinfonias silenciosas

Cujo compasso é marcado

Por milhares de células prestimosas,

Invisíveis no labor abnegado.

 

A toda a hora, o intestino

Digere num bailado

De compasso ladino,

Um estranho ritmo ondulado.

 

Os espermatozóides abanam as caudas

Ao mesmo tempo e na mesma direcção,

Na coreografia respeitando as laudas

Dalguma misteriosa canção.

 

Até o ciclo menstrual

Se sincroniza de modo inexplicável

Quando as mulheres se juntam no mesmo local

Longamente habitável.

 

Há na vida sincronia,

Sincronia na respiração,

No coração,

Na circulação

Que a vida nos denuncia.

 

Também

A matéria não-viva dança,

Porém,

Ao toque da mesma música que tudo alcança.

 

Os pêndulos de relógio de sala

Colocados lado a lado

Acabam oscilando em simultâneo e nada abala

O estranho resultado.

 

Geradores colocados em paralelo,

Embora de início dessincronizados,

Automáticos sincronizam, elo a elo,

Da rotação os ritmos desabalados

E da natureza tão estranha batida métrica

É que permite operar a rede eléctrica.

 

O átomo do césio oscila,

Pêndulo entre dois níveis de energia,

E tal oscilação

É ritmada com tal precisão

Que perfila

Dos relógios atómicos a fasquia

De haver menos dum segundo de enganos

Em vinte milhões de anos.

 

A Lua roda no eixo

Ao ritmo com que a Terra orbita

E esta bizarra sincronia, milenarmente sem desleixo,

É que concita,

No desenlace,

A ter para nós sempre virada a mesma face.

 

As moléculas de água que pelos vaus

Se movem livremente,

Quando a temperatura desce a zero graus

Juntam-se em movimento sincronizado,

De repente,

E tal movimento inesperado

É que, sem atropelo,

Permite a formação do gelo.

 

Alguns átomos, próximo do zero absoluto,

Como um único se comportam,

Triliões envoltos no mesmo produto,

Um gigantesco bailado

Sincronizado.

 

Tudo é uma dinâmica unidade,

Daqui à infinita imensidade.

 

Como é que as almas não se espantam

Quando em uníssono os átomos cantam?

 

 

1228 - Criminosos

 

Os criminosos não têm amigos,

Têm promotores, negociantes,

Receptadores, abrigos,

Fornecedores e patrões.

Tanto de todos podem ser denunciantes,

Quando o impõem as ocasiões,

Como, a par,

Em nenhum deles podem confiar.

 

O criminoso é dele próprio o pior

E cimeiro

Castigador

Pioneiro.

 

 

1229 - Adolescente

 

Um adolescente compara

A própria privação

Com a criança que morta se lhe depara

De fome no chão.

 

É que protestou contra os pais, na ocasião:

Só lhe iam ofertar

De prenda, no lar,

Um automóvel em segunda mão…

 

Não há maior ingrato, mais parasita,

Que o que não reconhece a fartura garantida

Que habita

Dele na vida.

 

 

1230 - Vitória

 

O segredo da vitória nesta vida

É entendermos que a crise do Planeta

É tão grave que não é delida

Pela meta

 

De nos limitarmos a decidir

Que eventualmente fazer

De nossa própria vida aquando dum vago porvir

Que aí vier.

 

A única pegada que findará por colher frutos

Num rumo fecundo

Serão nossos contributos

Para a cura do mundo.

 

 

1231 - Ensina

 

Forte, forte

É quem me ensina ao mesmo tempo a viver

Com norte

E a morrer:

Se deveras me ensimesmo,

Reparo que é o mesmo.

 

 

1232 - Sofremos

 

Sofremos toda a dor e sacrifício

Para nos tornarmos no que já somos.

O esforço é meramente para livrar-nos do resquício

Enganoso de que limitados, circunscritos

Pelas mágoas desta vida é que de nós dispomos,

Fatais proscritos.

 

Agora é impossível existir sem esforço.

Alcançada, porém, a maior profundidade atingível

Para além do presente espiritual escorço

Fazer esforço será impossível.

 

 

1233 - Trabalho

 

O trabalho que em nós próprios operamos,

Quer psicológico, quer espiritual,

Não é para aplacarmos, dele ao sinal,

As ondas do mar da vida em que vogamos,

Mas antes, em lugar,

É para aprendermos a sarfar.

 

A coacção da vida faz que aprenda e que responda

A andar na crista da onda.

 

 

1234 - Cumpra

 

Que se cumpra o plano do amor

E da luz!

Que se cumpra quanto me ensinou da vida a dor

A viver com o não-sei,

Com o que em mim traduz

A noite como lei,

Com não tentar

O fluxo da vida controlar,

Com permitir que as coisas vão

Tal como são,

 

Com encontrar paz

Entre os transtornos e desilusões

Da vida, por ser capaz

De deixá-la ser, sejam quais forem as convulsões!

 

 

1235 - Confiar

 

Confiar em Deus,

Se ao ego deveras renunciámos,

É acolher a vontade dos céus:

A queixar-nos já não andamos

De que a vida nos gradam

Charruas que não agradam.

 

Ora, ao invés, agradecemos a Deus as coisas boas

Que nos acontecem

E não Lhe cantamos loas

Pelas que más nos parecem:

Aí é que finalmente me enterro

No erro.

 

Então,

De todo,

Minha religião não é religião,

É a mentira dum engodo.

 

 

1236 - Aceitaremos

 

Faremos o melhor que pudermos

E aceitaremos o que daí resultar.

Não há forma de o predizermos

Nem vale a pena insistir.

De nada serve ansiar

Por um desfecho em particular

E sentir

Aversão por outro qualquer:

Isto apenas, a todo o momento,

Há-de conduzir

Quenquer

Ao sofrimento.

 

A vida, mesmo a pior,

No fundo é boa

E vejam só a cor

Do roseiral

Como de qualquer mal

Destoa!

 

 

1237 - Vezes

 

Por vezes, a vida, simplesmente,

Não faz sentido nenhum,

Por mais que tentemos, açodadamente,

Atribuir-lhe um.

 

Por vezes,

Tudo o que podemos empreender

É ajudar-nos mutuamente, corteses,

Sem juízos de valor emitir nem defender.

 

Ensina claramente a vida

Que ela não é justa,

Não premeia bons comportamentos à medida,

Bem e mal ocorrem de quenquer à custa.

 

Não há lógica nenhuma:

É só abandonar-nos ao indecifrável, em suma.

 

 

1238 - Agarrar-me

 

Quando sinto que principio

A agarrar-me a alguma coisa,

Lembro-me então de abdicar dela,

Até que nem um fio

Em mim repoisa

Da lançada aos ares mágica estrela.

 

Lembro-me de comigo próprio ser gentil,

De acolher em paz ficar sem saber,

Sempre neste enigma subtil

Dum esforço sem esforço qualquer,

 

Da escolha sem escolha,

Da motivação sem motivo,

De recolher sem qualquer recolha:

- O esforço sem o apego ao objectivo.

 

Quando do apego me despego

É que prossigo

Em mim livre comigo

E então livre me entrego:

Não preciso mais de abrigo.

 

 

1239 - Deixo

 

Deixo emergir quanto queira emergir,

Ira, medo, raiva, tristeza,

Quanto parece inundar-me dentro e depois sair

Num jorro, com presteza.

 

Volto a estar simplesmente

Com o que é à minha frente.

 

Se é assim que sou,

Então

É assim que sou,

Sem mais juízo nem confusão.

 

Sinto-o

Como de mim aceitação,

Não como instinto

Nem resignação.

 

Vigilante, desperto,

Não me minto,

Embora nunca saiba por inteiro, seguro,

Quando o apuro,

Se estou certo.

 

Mas não cismo:

Abro-me ao meu abismo

E a partir dali é que me inauguro.

 

 

1240 - Ganhe

 

Que minha vontade de viver seja forte

E ganhe o mais tempo possível!

Por tal norte,

É trabalhar com a exigível

Clareza e concentração,

Convergência e dedicação,

 

E com o esforço certo

A que o longe fique perto.

 

Contudo, simultaneamente,

Terei de permanecer desligado

Inteiramente,

Qualquer que ele seja,

Do resultado

Que se almeja.

 

O seguro abrigo

Que alcanço

Dita-me a sentença:

A dor não é um castigo,

Nem a morte, um falhanço,

Nem a vida, uma recompensa.

 

Olho-as e aceito-as, quando reais,

Tão neutras e benemerentes como tudo o mais.

 

 

1241 - Testemunha

 

Se não me inclino

Ante o que me atropele,

Serei a testemunha do destino,

Não a vítima dele.

 

Limito-me a reparar

Com atenção despojada

E a calma e a alegria vão acompanhar

Minha marcha por aquela estrada.

 

Tudo me acontece, mas as marcas com que fico

O imo não logram atingir com que me identifico.

 

 

1242 - Concreto

 

O crente mítico não interpreta

Alegoricamente o mito,

Interpreta-o à letra:

- É o concreto que fito.

 

Nisto se engana,

Fundamentalista,

E a todos nos dana

A vida que tiver em vista.

 

 

1243 - Religiões

 

As religiões, enquanto exotéricas,

Variam entre si tremendamente.

Enquanto esotéricas,

Ao invés,

Para o profundo, autêntico crente,

Por todo o mundo, de lés a lés,

 

São idênticas praticamente.

No acerto e no erro,

Na perda e no ganho,

São de charrua o mesmo ferro

Para o mesmo amanho.

 

 

1244 - Descobertas

 

Em terapia como no restante

As descobertas realmente decisivas

São simples e óbvias o bastante.

Difícil, de esquivas,

 

É aplicá-las à vida quotidiana,

Dia a dia, semana a semana,

 

Até que os velhos hábitos findem desaprendidos

E por outros mais conformes substituídos.

 

Quem procura,

Em norma, encontra.

Depois, a cura

É que no ramerrão remará contra.

 

Nossa preguiça,

Nossa inconstância

É o que tudo enguiça

- E nunca mais crescemos da infância.

 

 

1245 - Causas

 

Quão menos compreendidas

As veras causas duma patologia,

Mais esta se transmuda, nas ermidas,

Numa enfermidade prenhe de magia,

Rodeada de metáforas e mitos

Infundados e esquisitos.

 

Mais tende a ser tratada

Por fracos de personalidade como provocada

 

Ou por faltas morais que houver cometido

O dela afligido.

 

Mais é confundida

De alma com uma enfermidade,

Defeito de individualidade,

Doença moral culposamente vivida.

 

Descoberta a verdade, apenas a verdade

Libertadora

É que ao mútuo respeito sozinha nos persuade

Que tanto demora.

 

 

1246 - Rédeas

 

Por mais que tomar as rédeas importe,

Ainda apenas é metade da equação.

Além de aprender o norte,

Assumir controlo e responsabilidade de acção,

 

Todos temos de aprender

Quando e como abdicar, renunciar,

Ir com a maré sem se mexer

E não resistir nem lutar

Contra qualquer indómito mar.

 

Primeiro, ser;

Depois, no contexto onde marear,

Fazer.

 

 

1247 - Medo

 

O outro lado da vontade de viver,

O inevitável lado sombrio,

É de não viver o medo frio,

O medo de morrer.

 

Agarrarmo-nos à vida significa,

Afinal, a seguir,

Ou implica

Termos medo de nos deixar ir.

 

 

1248 - Chamam

 

O Espírito existe,

Existe Deus, por trás dos dados fortuitos,

A Realidade íntima que por ela própria subsiste:

Chamam múltiplo (os dados são muitos)

Ao que é, em sentido algum,

Realmente Um.

 

 

1249 - Percepcionamos

 

Neste nosso próprio ser

Não percepcionamos o Verdadeiro,

(Em qualquer

Inteiro),

Mas ele está

Realmente lá.

 

Naquilo que persiste

Do próprio ser como núcleo subtil meu,

O Todo que existe

Dele próprio tem ali o Eu.

 

Uma subtil essência invisível,

Sem frente nem reverso,

É o Espírito discernível

De todo o Universo.

 

Isso é o Verdadeiro,

É o Eu com que me enfeitiço,

E eu e tu e nós, de que me abeiro,

Todos nós somos Isso.

 

 

1250 - Angústia

 

O que fizermos para a angústia dissipar

Apenas reforça a ilusão

De sermos tal angústia em particular.

Deste modo, a questão

É que tentar a uma angústia escapar

É apenas uma forma de a perpetuar.

 

Ao invés, olha de frente a fera,

Aceita-a, em ti a acolhe.

Verás desvanecer-se-lhe o ferrão de quimera

E, doendo embora,

Tua energia já de ti não recolhe,

Não demora.

 

 

1251 - Lado

 

Preciso de aprender

A não querer ir a lado nenhum.

Rachar lenha basta a quenquer,

Carrear água pesadamente

É um bom desjejum

De muita gente.

 

Sem tentar atingir mais,

Sem por mais ansiar,

Sem nenhum propósito desejar,

Que tudo é demais.

 

Viver apenas a seguir,

Peça a peça,

- Permitir

Que tudo aconteça.

 

 

1252 - Perfeito

 

Se logramos que em geral tudo nos saia bem,

É quanto basta.

Da busca do perfeito apenas vem

De problemas toda a casta.

Se tentáramos obrar tudo perfeito,

Bem pouco seria feito.

 

Despenderíamos o tempo inteiro em pormenores,

Perderíamos de vista

A paisagem global.

Ora, o significado das coisas não se avista

Num trilho para os valores

Letal.

 

Em findar tudo perfeito menos me empenho

E mais em ver como ajudar

Que simplesmente bem tudo acabe por ficar.

Mais na aceitação

Aguço meu engenho

E no perdão.

 

 

1253 - Concentra-te

 

No que dizes,

Concentra-te tanto na maneira

Como no conteúdo que avalizes.

Muitas vezes cada um de nós se inteira

De quão correcto e fundamentado o conteúdo

Está,

Mas ambos um ao outro gritamos tudo

De forma tão má,

Desagradável, zangada,

Defensiva, provocatória,

Que nada virá de bom, nada,

De tão virulenta história.

 

Depois não conseguimos entender

Porque o outro reage ao comentário

Pelo tom e não pelo conteúdo.

E é só compreender

O calvário

Que estraçalha tudo:

Os tons defensivos interagem nas agressões

Numa espiral descendente, negativa, de reacções.

 

Ou alguém a quebra de vez

Ou a vida ficará por um talvez.

 

 

1254 - Causas

 

Afirmar, dentre as causas, uma causa só,

Crer que a personalidade gera culpada a doença,

Não tem dó

Da pequenez de nossa presença:

Apesar de podermos ir controlando

A maneira como respondemos

Ao que nos advém, de quando em quando,

Controlar nunca podemos,

 

Do grão miúdo ao graúdo

Da messe,

Tudo

O que nos acontece.

 

Esta ilusão,

De tão agressiva,

Por não termos o controlo do situação,

É definitivamente destrutiva.

 

Doutro modo, nem a fatídica sorte

Nos imporia

Por destino a morte,

Antes seria

Um raso

Gesto meu, no acaso

Dalgum distraído dia.

 

 

1255 - Agentes

 

Podemos usar as nossas crises

Como agentes de cura.

Seja como for que ajuízes,

Há sempre em tua vida alguma altura

Em que te fere o ressentimento.

 

Tenha sido ou não fermento

De qualquer mazela,

A verdade

É que é útil ter em conta tal possibilidade

E, na sequela,

Tentar-te curar:

Desenvolver a compaixão,

Praticar

O perdão.

 

Mesmo sem qualquer motivo,

Ficarás a ganhar

E um mal furtivo

Veio, afinal, a te aumentar.

 

 

1256 - Valiosa

 

A mais valiosa qualidade

De nosso optimismo

É dele a enorme e provada utilidade

Na hora de enfrentar a adversidade

Quando na vida me abismo.

 

 

1257 - Segredo

 

Nenhum pessimista descobriu

O segredo das estrelas

Nem navegou por ignoto rio

Nem pelo mar das caravelas,

Nem abriu, sem engano,

Qualquer nova porta ao espírito humano.

 

 

1258 - Probabilidade

 

O doente convencido

De que o remédio lhe alivia a doença

Da maior probabilidade fica investido

De estimular a defesa natural que lhe pertença

E de a ele próprio a facultar

Para se curar.

 

- A convicção

É cura gratuita e sempre à mão.

 

 

1259 - Teorias

 

Aqueles que as teorias próprias do bem e do mal

Esquecem,

Concentrando-se na realidade factual

Que conhecem,

Melhor encontram o bem

Que os que, mal afeitos,

Pela lente deformada o mundo vêem

Dos próprios preconceitos.

 

 

1260 - Morangos

 

Não há uma objectiva comprovação

De os morangos serem bons ou maus.

Para quem deles gosta, bons serão,

Para quem não gosta, não.

Porém, quem gosta, saltando os vaus,

Goza um prazer

Que os outros jamais hão-de ter.

 

Para o graúdo,

Como no miúdo,

Estes,

Presos do preconceito nos atoleiros,

Jamais em nada voarão celestes

Nem altaneiros.

 

 

1261 - Desfruta

 

O que desfruta de algum sentido de controlo

Da conjuntura,

Que crê que o lugar de condutor ocupa nalgum solo,

Embora fantasia pura,

 

Enfrenta mais positivo o problema

Que o que cuida que não controla a decisão

Ou que ela jamais influirá no lema

Da questão.

 

É o que divide os mundos

Entre os inférteis e os fecundos.

 

 

1262 - Peneirados

 

Todos somos optimistas,

Não tanto por irmos ser felizes,

Mas porque o fomos, ao que consta das listas

Peneiradas, com o tempo, dos negros matizes.

 

"Lembras-te de como nos divertimos

O ano passado?"

- Comenta a criança, quando nos rimos

E felizes nos sentimos

Em qualquer outro lado.

 

Da vida no monte calvo

A felicidade está nas recordações

Que estão a salvo

Do vale da memória nos férteis saguões.

 

A felicidade, em norma,

É também da memória uma aprazível forma.

 

 

1263 - Esquecimento

 

Muita ferida

O esquecimento cura

Na vida!

 

Esquecer depura,

Alivia a tristeza lerda

De alguém querido

Pela perda,

Com o vácuo de sentido;

Ajuda a perdoar ofensas,

A recuperar o entusiasmo,

Após cumpridas as sentenças

Que nos traça

O sarcasmo

Da desgraça.

 

Distanciar-me dum ontem penoso

Facilita o restabelecimento

Da paz interior de que já não gozo,

Anima-me a virar a página, jucundo,

E abrir o rosto ao vento,

A abraçar de novo o mundo.

 

A quem for marcado

Por fracasso ou infortúnio inesquecível

O desafio é por um pendor inesperado

Explicá-lo, torná-lo inteligível,

Uma perspectiva mais distante,

Menos pessoal, mais ampla, muito ao longe adiante.

 

É aceitar que o sofrimento,

A humilhação indevida

São um inevitável elemento

Da vida.

 

 

1264 - Doloroso

 

Os que permanecem parados

No doloroso ontem da própria autobiografia

Vivem aprisionados

No medo e no rancor,

Ao pelourinho que os feria

Acorrentados,

Obcecados,

Em todo e qualquer ramo e teor

Da quotidiana lida,

Pelos malvados

Que lhes molestaram a vida,

O que adrede

Os impede

De fecharem a ferida.

 

De culpa e ressentimento a mistura

Amarra-os ao entravante lastro

De manter a identidade de vítima pura,

Fita

De nastro

Cuja atadura

Paralisa e debilita.

 

Aquele que faz

Com o passado

A paz,

Por mais que haja sido malfadado,

Liberta-se, recompõe-se e controla

Melhor o destino que diariamente o atola.

 

Até melhora a saúde,

Ao fortificar o imunológico sistema

A que nem alude,

Por lema.

 

 

1265 - Ontem

 

O optimista

O ontem com benevolência

Passa em revista,

Aceita sem ressentimento a evidência

Da inalterabilidade da vida

Já vivida,

 

Reconcilia-se, pacífico, com qualquer

Conflito que não pôde resolver,

 

Com os erros em que baqueou

E não rectificou,

 

Com as oportunidades mil havidas

De vez perdidas.

 

Em paz, humildemente,

Vai em frente.

 

 

1266 - Regra

 

Para o optimista a boa sorte

É de regra e perdura.

Para o pessimista é fugaz norte,

Casualidade insegura.

Este apura a morte,

Aquele vida apura.

 

 

1267 - Restringir

 

Quão mais optimista alguém for mais tende

A restringir ou arrumar

Do fracasso o efeito que o ofende

E a evitar

Generalizações ou fatalismos, à partida,

Que não permitem qualquer saída.

 

Para o pessimista, ao invés,

Os golpes anoitecem a totalidade

Da própria personalidade

De vez,

Pelo que os efeitos negativos totais,

Previsíveis e verificáveis,

São gerais

E insuperáveis.

 

Qual dos dois

Quererá quenquer,

Pois,

Vir a ser?

 

 

1268 - Culpa

 

O optimista não se sobrecarrega

Com a culpa do ocorrido,

Avalia o peso do gesto que emprega

E a falha doutrem, no mesmo sentido.

 

Cataloga o percalço

Como fruto de erro reparável,

A partir do qual, na despistagem,

É viável

Correr no encalço

Duma aprendizagem.

 

O pessimista, ao contrário,

Por inteiro se acusa

Do ocorrido

E, atrabiliário,

Recusa

Reparar o desacerto havido,

Não lhe desvenda nenhuma possibilidade

Nem, então,

De aprender a oportunidade

Com a situação.

 

Aquele retira do amanho

Da vida todo o ganho.

 

Neste, o desperdício

Transforma-se, fatal, num vício.

 

 

1269 - Conjuntura

 

Ante a conjuntura favorável

O optimista julga que a merece

Ou é digno da recompensa,

Cuida que a tornou viável,

Que o bom momento que acontece

Lhe faz parte da tença.

 

O pessimista não se cuida merecedor

De nada positivo,

Não se atribui nenhum valor,

À própria capacidade esquivo.

 

Um da vitória inaugura a rota,

O outro, a da derrota.

 

 

1270 - Comparo

 

Quando comparo um mau evento

Com um anterior

Evento pior,

Melhor me sinto que quando tento

De outrem recorrer a memórias mais felizes

Para avaliar de hoje os matizes.

 

E quando comparamos nossas penas

Às doutros prejudicados,

Sentimo-las maiores ou mais pequenas,

Conforme a maior ou menor sorte dos equiparados.

 

É tudo, pois, definitivamente relativo

No destino esquivo.

 

Cabe-me, então, a estratégia escolher

Que melhor me souber.

 

 

1271 - Predispõe

 

Optimista é quem espera

Que tudo lhe corra bem

E, como tal pondera,

A tal se predispõe também.

 

Pessimista é quem espera

Que tudo lhe corra mal

E, como tal pondera,

Também se predispõe a tal.

 

Qual escolhes, pois,

Ser dos dois?

 

 

1272 - Insatisfação

 

Em qualquer comunidade,

Fonte perene de pessimismo

É a insatisfação prolongada que invade

Qualquer basilar necessidade,

Que enguiça

A liberdade,

A segurança e a justiça.

 

Quando isto em causa é posto

Sem aguardável saída,

Transtorna-se qualquer humano rosto

E do fojo salta a fera, de seguida.

 

 

1273 - Caldo

 

As democracias são

Do optimismo um bom caldo de cultura.

Regimes sem instituição

Nem lei que reja a autoridade,

Em que o poder se configura

Num indivíduo ou minoria da cidade,

Com a arbitrariedade e autoritarismo

Fomentam o derrotismo.

 

Democracia é Primavera,

Dos frutos sempre a alimentar a espera.

 

 

1274 - Crónico

 

O crónico desnível

Entre aspirações e oportunidades

Redunda em frequentes frustrações,

Desarmadas ociosidades,

Derrotismo ingerível.

 

As comunidades

Que valorizam e facilitam, sem papões,

O controlo pelos cidadãos

Sobre o próprio futuro

E fomentam neles a ideia de que não são vãos

Os desejos de alcançar

As próprias metas pelo seguro,

A motivação e a esperança vão motivar.

 

Quando este valor cultural

Coincide com a oportunidade,

Todos vão entender o objectivo, afinal,

Que a cada qual mais agrade

Na perspectiva realista

De ser optimista.

 

 

1275 - Dor

 

A dor, por mais forte que seja,

Devém logo mais suportável

Quando se entreveja

Que no futuro a cura é viável.

 

Tolerável é

A pior calamidade

Quando se crê

Que findará de verdade.

 

A angústia mais penosa

Alivia-se mal exista

A tranquilidade gozosa

Ao alcance da vista.

 

 

1276 - Moderadamente

 

Quem o estado de espírito mantém

Moderadamente alegre

Alta probabilidade tem

De que o optimismo também

Nele integre.

 

O estado de alma positivo

Estimula memórias agradáveis

E bloqueia as desagradáveis,

Ignoradas em arquivo.

 

Os tristes tendem, de preferência,

A evocar, nocturnos, a negativa

Experiência,

Obliterando a soalheira e positiva.

 

Quanto ao futuro, quem alegre for

Prevê eventos favoráveis,

Ir-se-á propor

Dentre os beneficiários deles mais prováveis.

 

O desalentado

Tem a propensão

De augurar infortúnio em todo o lado,

Prevendo, então,

Que, por mais que apele,

Será vítima dele.

 

Ora, conforme os votos expressos,

Assim, luminosos ou negros, os sucessos.

 

 

1277 - Trocar

 

Trocar emoções e pensamentos,

Dar e receber afecto,

Aceitar e ser aceite em todos os momentos

São aventuras cujo prospecto

Estimula festivos

Estados de espírito positivos.

 

 

1278 - Momentos

 

Os momentos de alegria moderada

Têm um impacto relevante

Nas decisões que tomamos,

Na criatividade que empregamos

A resolver as armadilhas da estrada,

Na memória vigilante,

Na capacidade para aprender,

Na motivação para embarcar

Num novo galeão qualquer

E na forma de com outrem nos ligar.

 

Ao invés, o que nos destina

Uma felicidade intensa e repentina

 

Não melhora obrigatoriamente

A nossa disposição

Para da vida olhar a corrente

De forma positiva em cada mouchão.

 

 

1279 - Várias

 

Quem desempenha com gosto

Várias actividades diferentes

Independentes,

Aposto

Que desfruta mais da vida em geral

E melhor suporta contratempos por igual.

 

Uma ocupação estimulante

Pode atenuar

O golpe desconcertante

Dum fracasso familiar

Ou semelhante.

Como o investidor reparte por várias capelas

O capital com que lida,

É bom diversificar as parcelas

De plenitude em nossa vida.

 

 

1280 - Positivo

 

"Eis que nos salvámos

Do acidente

Porque sou bom condutor"

- É mais positivo ter em mente

Do que: "não nos matámos

Por milagre, neste horror!"

 

No momento de julgar

A conjuntura que nos afecta

É preferível explicar

Com o que minimiza a seta

Do infortúnio ou facilita

Comparações vantajosos

Entre o que causou nossa desdita

E as doutrem mais tenebrosas.

 

Ao avaliar a sentença

Já não há desespero que nos vença.

 

 

1281 - Inelutavelmente

 

Se a juventude soubesse,

Se a velhice pudesse…

 

Mas nem a juventude sabe,

Nem a velhice pode.

Em nosso mundo nada cabe

Do que a tal acode:

Vivemos inelutavelmente às avessas

E por portas travessas.

 

Embora, curiosamente,

Seja isto

Que melhor a vida apimente

Quando resisto,

Quando insisto

- E sigo em frente!

 

 

1282 - Hóspedes

 

Somos, na esmagadora maioria,

Hóspedes indesejáveis da terra.

Só vivemos pela morte e agonia

Que a outrem impomos, em sina de guerra.

 

As plantas, concordamos,

Também estão vivas

Até que, cativas,

As matamos.

 

Tal é toda a natureza

E chamar-lhe cadeia de alimentação

Parece de inócua beleza

Mas é uma ilusão.

 

Que revelação nos persuade

Ou será bastante desmedida

Para explicar a terrível crueldade

Da vida?

 

 

1283 - Maneira

 

Cada homem vê e ouve

De maneira diferente

O que lhe coube

Em frente.

Portanto, não denigra mas antes louve

O consequente:

Cada homem vê e ouve

Um mundo diferente.

 

 

1284 - Lugar

 

"Teu lugar não era aqui,

Nem frente a juiz nem carrasco.

É lá fora que te vi,

Da montanha no penhasco,

Nas cidades,

Nos campos, nas herdades…"

 

Nosso lugar é, porém,

Aquele onde nós estamos,

Por mais que a ferir venha alguém.

Às vezes reparamos

Que custa muito, muito além

Do que, à primeira, julgamos.

 

É, porém, minha alba plena

A única que não me aliena.

 

A doutrem é sempre a dele,

Não a da luz que me impele.

 

 

1285 - Delicado

 

Que é que andamos a fazer?

- Nada, nada, nada!

E é isto que é muito difícil de empreender,

Delicado e até às vezes, para quenquer,

Perigoso mais que um assassino na estrada.

 

 

1286 - Cruzar

 

É muito instrutivo

Cruzar um campo de batalha.

Nada mais excitante que um exército ao vivo,

Em desfile animado, ritmado na calha.

 

Podemos não gostar, pacíficos,

De guerra nem querela,

Mas são, desfilando, tão magníficos

Os exércitos, uma epifania tão bela

 

Que nos arrebata e acorda

Entusiasmos esquecidos,

Energias adormecidas: pela borda

Tomba quem em vê-los persiste

E ninguém lhes resiste,

Momentos volvidos!

 

A meio do campo de batalha, a perder de vista,

Restam apenas cadáveres, carros de guerra partidos,

Braços e pernas decepados em aterradora lista,

Destroços fumegantes, carvões ardidos…

 

Toda a glória dos estandartes,

Toda a beleza das marchas,

Toda a energia evocada do desfile pelas artes,

Tudo, no fim,

Escarchas

Assim.

 

É isto a guerra.

Convém destapar-lhe o rosto,

O que aterra

Da bela

Sentinela

Por trás do posto.

 

 

1287 - Acorrentado

 

Desde o momento

Do nascimento

Vive o homem acorrentado ao que o fada,

Viatura em movimento:

A paragem final não pode ser alterada,

Apenas o modo como a viagem é feita.

 

Pode escolher:

Ou caminhar erecto é a postura eleita

Ou lamuriar-se prefere

Enquanto

É pelo pó sempre arrastado, entretanto.

 

Em qualquer caso, o pó que nos elida

É sempre o pó de estrelas da vida.

 

 

1288 - Parte

 

Em toda a gente há uma parte que quer morrer,

Pequeno caldeirão de autodestrutividade

Perenemente e ferver

Sob a superfície, mesmo a que mais agrade.

 

Ignoramo-lo cá dos cimos,

Até que acaso explodimos,

 

Então, por todos os lados,

Em fanicos retalhados.

 

E apenas o de antemão prevenido

Pode recoser os retalhos do tecido.

 

 

1289 - Sozinhos

 

Temos tantas, tantas oportunidades

E depois a vida toma conta de nós

E eis-nos vivendo inesperadas soledades,

Solitários para sempre após.

 

Ninguém foge

Ao nó do que lhe é vivível:

Tornei-me no que sou hoje

E não há recuo possível.

 

Queira ou não queira, pagarei sempre a portagem

Da minha viagem.

 

 

1290 - Apagar

 

Não podemos apagar o passado,

Nem matá-lo,

Nem vale a pena, por outro lado,

Insistir

Em desejar que deixe de existir,

Que não lhe trará qualquer abalo.

 

Nem podemos afastar o presente

Persistente, persistente.

 

Nem mudar o que estiver para vir

Com o alvedrio do que lhe queira imprimir.

 

Vivemos no ciclo do tempo fechados

Por todos os lados,

Dele girando por dentro

Em torno dum centro

De dias passados.

 

Por vezes, estes dias passados são bastante fortes,

Bastante voluntariosos,

Para nos arrastarem para todos os nortes

Por mais que, no meio do enguiço,

Furiosos,

Lutemos contra isso.

 

 

1291 - Terra

 

A terra está na mão dos homens há milhões de anos.

Eles têm-na preparado, alimentado,

Abusado dela e amaldiçoado

Em seus arcanos,

Mas ela sobrevive, indiferente e destemida:

- Enterra-os e dá-lhes vida.

 

 

1292 - Ilude

 

Ninguém quer recomeçar.

É mentiroso

Quem o contrário afirmar

Ou a ele próprio se ilude, tenebroso.

 

Todos querem ir embora

Quando tudo dá para o torto,

Ir noutra direcção na hora

E sem bagagem, sem bagagem, peso morto.

 

São os que o logram sortudos gritantes:

Vão livrar-se das dependências

Destes fardos irritantes

Da culpa e das consequências.

 

 

1293 - Medo

 

Jamais conseguirei explicar

Nem a ti nem a ninguém

Como um medo se logra implantar

E viver dentro de nós pela vida além,

 

A forma como nos diz

Como pensar e como agir de raiz,

 

O que dizer

E aquilo a que nem me irei atrever.

 

Por mais, todavia, que o medo diga,

Em ti a ruim semente nunca espiga,

 

A não ser quando o enfrentes ao postigo

E contra ele tu próprio de vez percas o abrigo.

 

 

1294 - Apontam

 

Fi-lo contra gerações de tradição.

Muitos me apontam ainda a dedo e fazem troça,

Ou resmungam e praguejarão

Pelo escritório, pela fábrica, pela roça…

 

Porque não trilhei o caminho

Com que a maioria se sente confortável,

Onde arma o próprio ninho,

Que compreende e, portanto, se lhe torna estimável.

 

É que o que não compreendem, em suma,

Assustá-los costuma.

 

Entretanto, por que não

Trilhar meu caminho

Se em mim sinto da razão

O fundo dedo adivinho?

 

 

1295 - Dano

 

Se o dano causado reparar quiser,

É de agir depressa.

Se há uma racha qualquer,

A tendência é que a alargar começa,

 

Se não houver cuidado.

Se persistir tempo demais,

A racha em fractura se há mudado,

- Já nada trava os vendavais!

 

 

1296 - Mortais

 

Os mortais não reparam nas valências

Dos poderes que detêm,

Usam-nos com a maior das negligências

Neles próprios e com os outros também.

Tanto desperdício

E queixam-se de não deixar na terra nenhum resquício!

 

 

1297 - Réstea

 

A insensatez,

Uma réstea de loucura,

É parte do encanto que vês

Nos indivíduos, nas histórias de aventura.

 

Portanto, usa tudo,

Explora fundo,

Absorve o máximo do escudo

Cascudo

Do mundo.

 

Aí é que enraízas, entrementes,

E melhor preservas e prezas

As tuas sementes

E as tuas defesas.

 

 

1298 - Curioso

 

É curioso como alguns vêem

O sinal

Que outros nem sequer lêem,

De lhes parecer tão banal.

 

A rotina

Encegueira-nos a sina.

 

 

1299 - Resmunguem

 

Por mais que resmunguem e reclamem,

Adoram aquela vida,

Cuidam do barco como mães que amem

Um primogénito, de cotio por entre a lida.

 

Vendem o que pescam a preço justo,

Ninguém diz que não merecem confiança,

Amam o trabalho feito a custo,

A tradição, a reputação que lhes alcança.

 

Mas, no fundo, encontra-se o lucro, no fundo:

Se não houvera que ganhar a vida,

Era apenas passatempo jucundo

Aquela freima desmedida.

 

 

1300 - Garrafa

 

Perante a garrafa meia cheia da vida,

Uns vêem-na prenhe de possibilidades

E reconfortam-se à medida,

Outros vêem-na curta de oportunidades

E entristecem-se em seguida.

 

O facto é igual.

A resposta,

Em contrapolo diametral,

É oposta.

 

Aquele tende à sorte que lhe calha

De vencer,

Este talha

A de perder.

 

 

1301 - Caminho

 

O destino

Leva-nos a determinados pontos

Ao longo dum caminho clandestino.

Cabe-te a ti, nos confrontos,

 

Decidir o que fazer aqui e agora,

O brilho

Da hora,

A escolha afinal do trilho.

 

A escolha pelo contexto condicionada

É a nossa inelutável estrada.

 

 

1302 - Cave

 

Mãos ocupadas mantêm

A mente absorvida

E o problema que tanto perturba tem

De ser relegado para a cave escondida.

 

Pensa no que ocorrer

E no que operar

Enquanto a mão te estiver

A trabalhar.

 

É bem mais eficiente

Que ficar a remoer, ausente.

 

Então a luz, inesperada,

Ilumina gratuita, de repente,

Tua estrada.

 

 

1303 - Precisava

 

Mal a conhecia

Mas precisava de a ter

E pouco lhe importaria

Se o fogo se extinguiria

Num momento qualquer.

 

Aborrece-o descobrir que pode ser manipulado

Com tanta facilidade

Pelo desejo desatado

Que o invade.

 

Olha para trás

E constata, frustrado,

Como é incapaz.

 

A vida é assim:

Embora me envergonhe,

Nunca sou eu em mim,

Por mais que o sonhe.

 

 

1304 - Dentes

 

A terra tem dentes comedores,

Tritura cada inimigo até aos ossos,

Absorve os invasores

E obriga a que se tornem dos nossos.

 

O fado

Mais estranho e maior

É que o derrotado

Acaba sempre vencedor.

 

 

1305 - Sensatos

 

Quantos descuram

Os fados

Que espreitam!

Todos procuram,

Os afortunados encontram, os afortunados,

E apenas os sensatos aceitam.

 

 

1306 - Desejos

 

O que tem lhe basta.

Quisera talvez mais, mas sabia

Que os desejos são de tal casta

Que, por mais fundos e sedutores que alguém os conferia,

Quando embora melhor os aprontas,

Não pagam as contas.

 

 

Sabia também

Que algumas ambições, de vez o trilho delas consumado,

Traziam, porém,

Como fatídica sequela,

Na etiqueta da lapela,

Um preço por demais elevado.

 

O mais prudente

É bastar-nos o tesoiro remendado

E desfalcado

Do presente.

 

 

1307 - Exterior

 

Tinha a própria casa e tudo para além

Era-lhe exterior ao domínio

E por isso, normalmente, também

Exterior da própria mente ao escrutínio.

 

Preferia, conseguintemente,

Não precisar de ninguém

E, certamente,

Nada requerer

Que não pudera ter.

 

Sabia que a dependência e a ansiedade

Por algo mais que o próprio chão

Leva à infelicidade

E à insatisfação.

 

Sabedoria

É bastar-me a luz do sol de cada dia.

 

 

1308 - Gritara

 

Quando finalizam as esculturas,

Os poemas, dos violinos o volátil voo,

É como se gritara das alturas:

- É isto que eu sou!

 

Pelo menos, de mim,

Hoje é assim.

 

E é isto que, em qualquer leira,

Torna qualquer arte verdadeira.

 

 

1309 - Felicidade

 

Ninguém para sempre é feliz.

A felicidade é ponto de exclamação,

Não é frase nem palavra com tempo de raiz.

E o píncaro da emoção

Apenas o pode beber

Quem primeiro intensamente sofrer.

 

 

1310 - Entregarmos

 

Se nos entregarmos à dor,

O pior

É que teremos já esbanjado

Todo e qualquer

De antemão viabilizado

Prazer.

 

 

1311 - Ocorrências

 

Quando não podemos falar

De ocorrências que são verdadeiras,

Vemo-las crescer, proliferar,

Distorcer-se e ganhar

Gavinhas de videiras,

Mais importância, a seguir,

Do que devíamos permitir.

 

E o resultado

É que cada qual se atrofia

Pelas mordaças do passado

Cada vez mais cada dia.

 

 

1312 - Coro

 

O coro das vozes esquecidas

Dos crimes em aberto

Jamais resolvidos,

A mansão dos horrores de todos nas vidas,

Nossa maior vergonha nos dias perdidos…

 

Cada crime daqueles é uma pedra atirada

A um lago sem fundo.

A ondulação estende-se amaldiçoada

Pelo tempo, pelas pessoas, pelo mundo:

Família, amigos, vizinhos…

E a onda envenenada escapa entre os dedos dos ancinhos.

 

Como podemos chamar-nos uma cidade,

Um país,

Quando tanta onda nos invade,

Nos corrói os perfis,

Quando tantas e tantas vozes

Findam esquecidas, pelos crimes mais atrozes?

 

 

1313 - Fácil

 

Se uma tarefa determinada

Fácil fora,

Já por alguém acabada

Teria sido a qualquer hora.

 

Se doutrem seguir a pegada somente,

Os problemas acabarei por perder

Que realmente

Vale a pena resolver.

 

Pela preparação

A excelência brota. E persuade

Pela dedicação,

Determinação

E tenacidade.

Se de vista perder

Destes atributos um qualquer,

Não ultrapassarei a normalidade.

 

De vez em quando, na vida,

Há o momento da grande decisão,

Um dilema nos convida,

Chão,

A decidir,

Singular,

Ir

Ou ficar.

E a determinar para sempre viver

Com a decisão que tomado se houver.

 

Por nós próprios examinar

Sempre tudo deveremos:

Nem tudo ao que parece

Se há-de assemelhar,

Nem ao que outrem diz, nem ao que cremos.

 

É mais fácil conviver

Com uma solução

Se tomado a houver

Com base numa ponderação

Séria, com tudo pesado,

O certo e o errado.

 

Quem morre a maior parte das vezes,

Do aperto no abismo,

É o que mostra nos reveses

O maior nervosismo.

 

A pior decisão

 

Possível, a vir,

É o alçapão

De desistir.

 

 

1314 - Praticar

 

Não podemos praticar o bem

Sem sermos maus de vez em quando

Com aquele para quem

O bem estivermos praticando:

Quando se desvia, o mau

Não requer pão mas varapau.

 

Sendo para ele mau então

É que serei deveras bom.

 

 

1315 - Queria

 

A vida é mesmo assim:

Quando ela pretendia reabilitar-me,

Eu só queria afastar-me

O mais rápido possível;

Mas, quando desistiu de mim

Por eu ser impossível,

Senti brilhar nela uma estrela

E só queria estar junto dela.

 

Só vislumbramos o tesoiro

Dele após a falta,

Quando já lhe demos fim.

Deste desdoiro

Jamais teremos alta,

A vida é mesmo assim…

 

 

1316 - Vingança

 

A vingança é estranha, tudo medido:

Queremos a satisfação

De saber que há ocorrido,

Mas sem ouvir a entoação

Das palavras em voz alta.

Porque então teríamos de admitir

Que queríamos conferir a prova em falta,

O que a rebaixar-nos iria conduzir:

 

Tornar-nos-ia pesados

De enganos,

Menos civilizados,

- Demasiado humanos.

 

 

1317 - Palavra

 

A palavra é um instrumento

Muito poderoso.

Um insulto não tem de ser gritado ao vento

Para sangrarmos do golpe venenoso,

 

Uma jura não tem de ser murmurada

Para acreditarmos nela.

Basta mantermos uma ideia refechada

De nossa mente na entretela

 

Para alterar o cadinho

Dos actos de tudo e todos

Que nos cruzem o caminho

E assim configurar da vida os bodos.

 

 

1318 - Miséria

 

A pior miséria humana

Mora no deserto da emoção.

O homem sonha a felicidade a que se irmana

E no sonho a iguala,

Mas nunca sabe, não,

Conquistá-la.

 

Procuram os poderosos

Dominá-la,

Cercam-na de exércitos tenebrosos,

Encurralam-na com armas,

Com as vitórias a concitam.

Todavia, do poder os karmas

Nunca a debitam.

 

Jamais de paço soberano qualquer ala

Logrou controlá-la.

 

E quem é mais feliz

Nunca do poder teve o matiz.

 

 

1319 - Magnatas

 

Os magnatas, à felicidade,

Tentam comprá-la.

Constroem impérios de ferocidade,

Erguem fortunas de enorme escala,

Compram jóias às rodadas,

São montras endinheiradas.

 

A felicidade, porém,

Não se deixa comprar.

Dum mercado é refém

Onde não há dinheiro a usar.

 

Da felicidade os traços

Dão-nos febres:

Há miseráveis morando em paços

E ricos dela, em casebres.

 

 

1320 - Cientista

 

O cientista a felicidade

Tentou compreender,

Investigou-lhe a verdade,

A estatística a ter,

 

Mas a lógica do mensurável

Não é a lógica da emoção.

A mente é uma instância inapelável

Para medir o coração.

 

E o cientista que se quis

Preso da medida à rigidez

Acaba infeliz

De vez.

 

 

1321 - Buscam

 

Buscam os intelectuais

A felicidade na filosofia

Mas não a encontram jamais

Em tal via.

 

Não há mistério maior

Para a mente que a emoção,

Nenhum sonhador

Lhe encontra o guia de condução.

 

Os que amam as ideias

Desprezando a emoção

Esbanjam às mancheias

O encanto pela vida que terão.

 

 

1322 - Jovens

 

Os jovens hão-de querer

O desacato

Da alegria de viver

No imediato.

 

Espectáculos e festas,

Drogas e enfrentar perigos…

Ignoram as arestas

Escondidas nos pascigos.

 

Ora,

A felicidade não mora

No prazer imediato

Nem se mostra a quem ignora

O inseguro

Efeito do próprio acto

No futuro.

 

 

1323 - Muitos

 

Muitos falham a conquista

Da felicidade que têm em vista.

 

Querem o perfume da flor,

Mas não sujar a mão de no canteiro a dispor,

 

No pódio querem o lugar,

Não a labuta de treinar…

 

Temos de aprender a navegar

Nas águas turbulentas da emoção

Se queremos de qualidade um lugar,

Da vida no desnorteante cachão.

 

 

1324 - Acolhe

 

O mundo da emoção

Não acolhe o acto heróico:

Doravante salto ao chão,

De manhã, alegre, estóico;

Doravante levanto a palma

De ser uma pessoa calma;

Doravante serei feliz,

De auto-estima em meu cariz…

 

É um engano:

No calor imprevisto da próxima hora

Todo o plano

Se evapora.

 

 

1325 - Planeta

 

No planeta da emoção

Tudo é treino, educação.

 

Quenquer terá de treinar

Para ao fim feliz ficar.

 

Apenas então

Supera a perda, a frustração.

 

Caso contrário, o coração,

Instável, finda incapaz

De contemplação

Do belo que há no mais fugaz

Evento da rotina

Por onde cada dia germina.

 

 

1326 - Simples

 

A vida é bela

Mas não é simples vivê-la.

 

Às vezes é como um jardim

E, de repente, muda a paisagem

Do princípio ao fim

E é uma árida aragem,

Como dum deserto,

A rondar ali por perto,

Ou então é íngreme sanha

Do alcantil duma montanha…

 

Independentemente dos penhascos a saltar,

Cada qual tem a força de os escalar.

 

Muitos, porém, desconhecem

De que força se entretecem.

 

 

1327 - Topo

 

Todos querem ir ao topo,

Uns ao topo da fama,

Ao da carreira é doutros o escopo,

Da profissão domar a trama,

Para outrem é a académica hierarquia

E outros mais, do poder financeiro a magia…

 

Os mais sábios, porém,

Visam da qualidade a cumeeira,

O cume de sentido que à vida mais convém,

O patamar da tranquilidade cimeira.

 

A ti cabe escolher,

Sem indulto,

O que mais te convier,

O do sábio ou o do estulto.

 

 

1328 - Contínuos

 

Nossos contínuos subterfúgios

E falsidades

São mais arriscados e com menos refúgios

Que as verdades

Ditas enérgica e honestamente.

 

Senão,

Do inimigo o intuito em mente

Finda consumado por nossa mão.

 

Quando menos reparemos,

A nós próprios nos destruiremos.

 

 

1329 - Oculto

 

O oculto apenas é real

Para quem tenha o poder

Crucial

De o apreender.

 

Alguns afortunados o poder

Ainda têm de decisão

De querer ou não se aperceber

De qualquer sua manifestação.

 

Fora disto, opaco e disperso,

É o grande silêncio do Universo.

 

 

1330 - Questão

 

No fundo,

Para os que nisto meditam,

É tudo questão de fé:

O mundo

É como é,

No que nele vai tomando pé,

Por mor do que os homens acreditam

Até

Que o mundo é.

 

 

1331 - Deuses

 

Não é pior

Dos homens o mais vil

Que o melhor

Dos deuses mil:

 

Todo o mal, perversidade,

Que o homem haja feito, da história na viagem,

Sempre foi de deuses por vontade

Construídos dele à própria imagem.

 

 

1332 - Complemente

 

A beleza

Sem nada que lhe complemente a aurora,

Bem pouco demora:

Acaba, a quem a preza,

Por devir bem maçadora.

E de vésperas a reza

Dela é derradeira hora.