TERCEIRO TROVÁRIO
DO SER AUSCULTANDO O FULGOR
Escolha aleatoriamente um número entre 284 e 430, inclusive.
Leia o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
284 - Do ser auscultando o fulgor
Do ser auscultando o fulgor,
O poema o capta aqui no metro certo,
Na rima que com ele rimar for,
De modo que o capturado pendor
Nos mostre que a lonjura anda, enfim, perto.
Apalpo do ser a estrutura,
Olho onde me acena
E o que ali apura
Que me salva ou condena.
No pendor correcto
Ao reparar, sinto
Que sobre mim, afinal, há sempre um tecto.
No poema não minto:
- Para um salto é um breve plinto.
285 - Invejar
Quem invejar toda a gente,
Este aqui, porque é bonito,
Aquele, porque é potente,
Não dispõe de requisito
Onde embeber a raiz
Quando queira ser feliz.
286 - Animais
Os sentimentos podem ser
Como animais dos mais selvagens.
Subestimamos em qualquer
Ferocidades, vis imagens,
Mas mal a jaula nós lhe abrimos
Logo nas garras nos ferimos.
287 - Aceitação
Na maioria das culturas
A aceitação do que é fatal
Saúde é boa que depuras,
Mas não assim na Ocidental:
Quando algo mau acontecer,
Cuidam que alguém tem de pagar
E logo atacam já quenquer,
Haja ou não haja que atacar.
Não há fronteiras ao poder,
Incha o balão de tal orgulho
Que o Ocidente anda a morrer,
Picado o grão deste gorgulho.
288 - Estranha
A morte é estranha no aspecto
De fazer vir ao de cima
Melhor e pior, directo,
Do que as pessoas anima.
Lança luz sobre a verdade,
Empresta à vida uma rara
Transparência que a invade
Ofuscantemente clara.
Ambiguidade e mentira
Só deste lado se mira.
289 - Maior
Teremos de compreender,
Enquanto somente humanos,
Que deveras há um poder
Maior que nossos enganos
E que, por onde quer que anda,
Tudo ele, tudo, comanda.
É de nos sentir amados
E com ele em ligação,
Nunca em porquês enredados.
Cedo ou tarde, após virão,
Separadamente ou juntas,
As respostas às perguntas.
290 - Catástrofes
As catástrofes obrigam
Todos a nos perguntarmos
Que laços à vida ligam,
Em que é importante pegarmos,
Como podemos marcar
Nossa diferença, a par.
Provocam a introspecção,
É sempre a oportunidade
De entender que fica à mão
Mudar, em qualquer idade,
Mudar o curso das vidas:
Nunca é tarde em tais medidas.
A pior coisa a fazer
Da vida é desperdiçá-la.
Tanto sonho a infância a ter,
(Como o riso alegra a sala!)
E o adulto a se atolar
Nos créditos a pagar!...
Esqueço que há mais na vida,
Esqueço-me de que posso
Ser o que queira, em seguida,
E que a idade, em vez dum fosso
Onde se atole meu lema,
É um salto além do problema.
291 - Esgota
Quando alguém é só dador,
Pode esgotar-se depressa;
Se é, porém, só receptor,
Esgota os mais peça a peça.
Cada qual sempre requer
A energia devolvida
Para equilíbrio manter
A adubar fecundo a vida.
292 - Cancro
Como é que teu cancro escolhes
Usar, a tua doença?
- É a pergunta onde recolhes
O amor à vida que vença:
Ficas a olhar, em tal hora,
Para o que fazer agora.
Vais sentir-te autorizado,
Ali apoiado ao vivo,
A ter o abismo enfrentado
Dum modo que é positivo.
Quem pergunta tal pergunta
Vê-te a doença que assunta,
Não verá nela o castigo
Pelo que hás feito de errado,
Antes porto sem abrigo
Com o cais dificultado,
Passível de treinamento
- E te incita a tal intento.
293 - Parte
Há sempre uma parte em mim
Que é tal qual uma criança
Na casa branca das fadas:
As regras não são, enfim,
Talhadas do que me alcança,
Nunca me são destinadas,
Que eu não sou como outra gente
Mas deveras diferente.
Ora, o que ando a descobrir
Pela doença e derrota
É que diferente a ir
Não irei nem sou na rota,
Meus problemas são problemas
Que dos demais serão temas,
Todos se terão batido
Com eles, séculos fora.
E o sentimento sentido
Que daí vem, não demora,
É duma nova humildade
Que à aceitação persuade
Das coisas tal como são,
De que está bem tudo ser
Comum neste comum chão.
E que agradável é haver
De ligação um sentido
Aos outros com que hei vivido,
Como se todos a parte
Fôramos dum ser total
A lidar com tais questões
E a crescer, crescer, destarte,
Através de rumo igual
Em quaisquer ocasiões!
Não ser diferente, à entrada,
É não segregar-me em nada.
294 - Ego
Jamais o vero sujeito
Um ego poderá ser:
Este é um objecto em meu peito,
Posso consciência ter
Dele, como posso recto
Vê-lo tal qualquer objecto.
Mesmo se algumas das partes
Dele forem inconscientes,
Todas podem, sem apartes,
À consciência advir presentes:
Um ego pode ser visto,
Conhecido, a partir disto.
Consequentemente um ego
Não é o vero observador,
Conhecedor em sossego,
Não é Testemunha-mor.
É apenas amontoado
De objectos, do que é mentado,
De ideias e de conceitos,
De símbolos e de imagens
Com que erradamente atreitos
Somos, após as triagens,
A nos identificarmos,
De nós sem mais nos cuidarmos.
Primeiro identificamo-nos
Com esses objectos todos
E depois como algo usamo-nos,
Óculos de olhar os modos
Que o mundo tem e, assim sendo,
Tudo vamos distorcendo.
295 - Cai
Perante a iluminação
Cai por terra o corpo-mente.
Assim é que os sinto então:
Um doutra cortado rente,
Separado, é uma ilusão
Que se esfuma de repente.
Vejo o corpo, é muito real
E, comparativamente,
Irreal sou eu, afinal.
Mas o iluminado sente
Que é mais vivo, no total,
Que o mero corpo presente,
Pareço quase acordar
E tudo o mais, como um sonho.
É o outro lado a mostrar
Que tudo de que disponho
Tem outra fundura a par:
- O além-raia que me imponho.
296 - Condenação
O pecado, toda a morte,
Condenação ou inferno
Nada mais é que o transporte
Dum ego frio onde hiberno,
Do amor-próprio operações,
Variações de ultra-estima,
De si gesto aos tropeções
Que de Deus nos elimina,
E acaba tudo no inferno,
O campo-santo do eterno.
O diabo vês sem véu:
- Olha aí teu próprio eu!
Mais inferno que um apego
Não há pelo eu surdo e cego,
Nenhum outro Paraíso
Do que um altruísmo liso.
Todo o inferno apenas arde
Dum ego inchado no alarde.
297 - Pequeno
Do pequeno ego dar cabo,
A renúncia de morrermos
Para o eu curto onde acabo,
Separado aí nos ermos,
Este eu de auto-contracção
Onde nem ar tenho à mão…
Se quisermos descobrir
Nossa identidade ao Todo,
Não nos vamos confundir
Dum ego-a-sós com o engodo:
Desfazer a confusão
Com ele é urgente missão.
Esta Queda pode ser
Invertida de repente,
Basta-me compreender
Que, no real existente,
Ela nunca, pelas eras,
Chega a acontecer deveras:
É que apenas Deus existe,
Eu separado é ilusão.
Mas há muito quem persiste,
É gradual a inversão.
Porém, há sempre esta via
De alcançar o que queria.
Quando apropriadamente
Seguida, o nosso caído
Estado agora presente
Rápido é reconvertido
Em estado iluminado,
Do inferno ao céu elevado.
É um voo do solitário
Ao Solitário sem véu,
Ou seja, o rumo primário,
O voo do eu ao Eu.
Seja qual for o caminho,
É o retorno ao vero Ninho.
298 - Outro
Onde quer que o outro exista,
Existe fatal o medo.
Se divido, ordeno em lista
E de terror me embebedo.
A inconsútil consciência
Perderá de vista a essência.
Sujeito perante objecto,
Um eu perante outro eu
São o contexto concreto
Que o medo desperta meu
Porque outrem existe agora
E magoa, não demora.
Do medo o ressentimento
Cresce logo, inevitável.
Se identificar-me tento
Com este eu tão vulnerável,
Então outros vão magoá-lo,
Irão feri-lo, insultá-lo.
Depois a existência do ego
É mantida por insultos
Emocionais que me lego,
Mil vergões em mim sepultos
Que o eu carrega consigo
Por estrutura de abrigo.
Colecciona activamente
As injúrias, as feridas,
A ressenti-las em mente,
Porque sem elas vividas
Tal ego, perdida a estrada,
Literalmente era nada.
299 - Busca
"Voltemos à realidade!"
Mas quem isto pontifica
O que busca de verdade
Só empírico-científica
Realidade justifica
E crê que isto escapa à crítica.
É o que, enfim, percepcionado
Pode ser pelos sentidos
Ou instrumento adequado,
São dados vistos, medidos.
Tudo o que estiver lá fora
Deste mundo tão estreito,
Qualquer alma, onde ela mora,
O espírito, o Deus do peito,
A ponta da eternidade,
Não tem cientificidade
E, portanto, como tal,
Tem rótulo de irreal.
A vida a estudar ciência
Para no fim concluir,
Pese-lhe embora a evidência,
Que este é um reino a se sumir,
De perda maior que o ganho,
De limitado e tacanho!
Nós somos de corpo e mente,
De matéria e também de alma
E de espírito em semente.
Lida a ciência e nos acalma
Com o corpo e a matéria.
Com a mente a prova é séria,
Fica-lhe pobre a abordagem.
Ignora após por inteiro
Das almas qualquer clivagem
E o espírito cimeiro
Fatal dela é ultrapassagem.
Enfim, ao campo da crença
Não há percepção que o vença.
300 - Surpresas
Os pessimistas só podem
Ter surpresas agradáveis.
Pessimismo defensivo
É o daqueles que sacodem
Esperas pouco fiáveis,
A se preparar ao vivo
Para a possibilidade
De fracasso que os invade.
Expectativas mui baixas
Em difíceis situações
Têm o objectivo esperto
De optimizar o que encaixas,
De te adaptar aos baldões
Do que mal te corra, incerto.
É uma táctica optimista
Que estimular tem em vista
Toda a força positiva
Da atitude negativa.
Muda o medo, de malsão,
Numa benéfica acção.
301 - Inimigo
Grande inimigo de quem
Esmagado é pelo acaso
Não é quão grave lhe advém
Uma conjuntura a prazo,
Mas o temor aziago
Imaginário que pago.
No medo mora o inimigo
Que a atribuir ando ao perigo.
302 - Medíocres
Os medíocres estão,
Obviamente, no poder.
Sempre estirveram, então,
Dum modo ou doutro qualquer.
A democracia em vista,
Tanto a que é parlamentar
Como a presidencialista,
Como a ditadura, a par,
Tudo é mediocracia,
Mediania apagada
Em que o génio se entibia
E a moral sai alquebrada.
Então, quem é superior
Na santidade ou no crime
Tarde ou cedo há-de supor
Que se, incómodo, elimine.
Será sempre escandaloso,
Marginal do mal ou bem.
- É sempre contra que entroso
Qualquer porvir que haja além.
303 - Futebol
Vais ao futebol, aos treinos,
Só pelo jogo, exercício?
Na distinção entre reinos
Só lucrarás benefício,
Enquanto o jogo for jogo
Como outro jogo qualquer.
Quando, porém, pegar fogo,
Uma obsessão devier,
Se mudar em religião,
For maneira de existir
E de pensar o teu chão,
Então passarás a ir
Ao compasso do rebanho
E, perdido no exercício,
Mísero serás um anho
Pronto para o sacrifício.
304 - Inexorável
Toda a história duma ideia
É história duma tragédia:
A da inexorável teia
Dos eventos sobre a nédia
Hecatombe dos projectos
Que o homem sonhou por tectos.
Nossos ancestrais sorriem
Dos que a ideia mais vigiem.
305 - Condena
Quando se condena alguém
Por divergir, em quem julga,
Da crença que ele sustém,
Cabe ver que é que promulga.
Quanto tal condenação
Terá de amor à verdade
E quanto carrega então
De amor só da potestade,
Só do poder de julgar
Ou defesa enganatória
De autoritário ditar
Ou culto da própria glória…
Se fizermos esta pausa,
Rápido repararemos
Que isto é o que está sempre em causa
E amor ao vero não vemos.
306 - Abalar
A verdade da doutrina
Pode não ser entendida
Por quem ante ela se inclina,
Mormente quando, em seguida,
Ela lhe abalar as crenças
Em que alicerça o poder.
Logo lhe troca as sentenças
E uma mentira prefere.
Esta é a trágica memória
Que dos ideais conta a história.
307 - Doutrina
Quem pretende defender
Doutrina de fé correcta
Nem fé defende sequer
Mas apenas a concreta
Doutrina cujo respeito
Lhe garante a segurança
E o poder que toma a peito
Ser uma meta que alcança.
Da vida neste desvio
Se atola o fluxo do rio.
308 - Incómoda
Ama o homem a verdade
Quando ela se manifesta,
Quer o manifesto agrade
Ou não, no que então lhe empresta.
Incómoda pontifica
E quem a proclama objecto
De abjecção vai ser, que implica
Ódios atrair do tecto.
E a verdade impessoal,
Sempre vaga e desossada,
É a mentira que então vale,
Dura, a tolher-nos a estrada.
309 - Impacto
A felicidade tem impacto vivo
Na saúde e pode positiva ser
Na esperança activa de viver que activo,
Aumentando firme o limiar que houver.
A felicidade ou a saúde tendem
A ter um impacto positivo então
Na capacidade de lidar que rendem
Ante os compromissos que na vida vão.
E ser responsável do que aqui me ocorre,
Se feliz, saudável, mais alegre corre.
Então eficaz vou lograr ser e firme
Sempre que eu entenda ao que é vital abrir-me.
310 - Fado
O fado de cada um
Vive implicado no todo,
Como o implica, de igual modo,
Como tecido comum.
E a todo o racional ente
É conforme à natureza
Tê-lo então como parente
Que se cuida e que se preza.
É uma outra parte de mim
Que ato ao nó de meu confim.
311 - Repara
Repara que cada um
Apenas vive o presente,
Bem menos que tempo algum,
Pequeno infinitamente.
O resto, ou já se viveu
Ou será futuro incerto.
De cada o instante de seu
É mínimo, visto ao perto.
Mínimo é o canto onde vive,
Mínima a maior das glórias
Póstumas que o tempo esquive
Ao desgaste das memórias.
É devido à sucessão
Apenas destes pigmeus
Que mal nascem, morrerão,
Sem se vislumbrar sem véus,
Bem longe de conhecer
Alguém que é morto há já muito.
E pouco importa sequer
Outro ser o nosso intuito.
312 - Imortais
Supõe imortais aqueles
Que se lembrarem de ti
Com memórias a que apeles
- Que te faz isto por si?
Se morto, de nada serve.
Mas, se vivo, a tal penhor
Que a memória te conserve
A que serve dar louvor?
Será que é mesmo a vanglória
O fito de tua história?
E que, num sopro de vento,
Se esvaia, ao fim, teu intento?
313 - Objectos
Quando os objectos pareçam
Os mais dignos de confiança,
Despoja-os, nem que te impeçam
Pelo valor que os entrança,
Arranca-lhes a roupagem
De que se orgulham, impantes.
Orgulho é mentida imagem
E, quando crês que garantes
Aplicar-te ao que é mais sério,
É que então te mistifica,
Fácil te impõe seu mistério
E ao fútil em ti se aplica.
314 - Insólito
Tudo é mutável deveras,
Também é tudo habitual,
Não há que temer esferas
De insólito, nem sinal.
Os dois lados existentes
Serão sempre equivalentes.
315 - Acabrunharão
Nem futuro nem passado
Te acabrunharão a sério,
É o presente que a teu lado
Exerce em ti todo o império.
Minga o agora ao infinito
Se o circunscreves em si.
Erra o intelecto o fito
Quando cai no frenesi
De acreditar-se incapaz
De a sós o enfrentar veraz.
316 - Externo
Se um dado externo te aflige,
Ele não é quem produz
A turvação que em ti vige,
Mas o juízo que luz,
Que emites dele a respeito:
De ti depende apagá-lo,
Tal como tomá-lo a peito.
Se o que te provoca abalo
É de espírito um estado,
Que te impede de alterar
De ver o modo enganado?
Se é por não executar
Um desígnio desejável,
Por que não dobrar esforços
A fim de o tornar viável,
Em vez de aflitos escorços?
E se algo mais forte o impede,
Não te aflijas, não é tua
A culpa do que não cede
E que a perda traz à rua.
317 - Temer
Aquele que teme a dor
Há-de temer algum dia
Algum evento maior
Dos que o mundo propicia.
É já, de alguma maneira,
Ante o mundo, uma impiedade.
E a quem do prazer se abeira
A injustiça o persuade:
Há-de colher sempre à testa
Impiedade manifesta.
Em qualquer das duas vias
Nunca feliz te haverias.
318 - Contra
Aquele que peca, peca
Contra si próprio também.
Quem injustiça faz peca,
A si logo a faz, porém:
Torna-se, no fundo vau,
A si mesmo um homem mau.
319 - Anda
Tudo anda em transformação,
Tu não findas de mudar,
De perecer em função.
Da mesma maneira, a par,
Assim é com o disperso
E todo inteiro Universo.
320 - Terra
Em breve nos cobrirá
A todos a terra chã,
Depois transformar-se-á
Sem fim, da noite à manhã.
E dela os novos aspectos
Transformar-se-ão sem fim
Em inescrutáveis tectos
E estes noutros, sempre assim…
Ao considerar as vagas
Encadeadas das mudanças,
Na indiferença te apagas
Por quanto mortal entranças.
321 - Implora
Um implora nestes termos:
- Por favor, esta mulher!
Outro evita actos enfermos:
- De a cobiçar vou-me abster.
- Finde esta importunidade! -
É a prece dum, na procela.
E outro: - Que a necessidade
Eu nem tenha do fim dela!
Um não quer perder o filho,
Outro nem tremer à ideia
Quer de perder tal cadilho
Numa vida dele cheia.
E são os mais desprendidos,
Por dentro mais libertados,
Que podem riscos vividos
Enfrentar mais denodados.
322 - País
O país velho, medievo,
Embrutecido pelo medo,
Perpetuado no coevo
Costume atávico do credo,
Pujante, em força, sobrevive,
Revoluções calcando aos pés
De pensamento a que se esquive
Ou de política de viés,
De científica aventura
À descoberta de horizontes,
Tal como um magma, na textura,
Potente e lento arrasa as pontes.
Ele é o senhor incontestado
De terras, rios, absoluto,
De aldeias, vilas, do povoado,
Lugares, quintas, seu reduto,
Das almas todas hesitantes
Entre o anúncio da bondade
Que é divinal por uns instantes
E a maldição da eternidade.
O velho reino é beliscado
Pela oratória do porvir
Na pele apenas que há tocado.
E continua parvo a ir
Sujeito a gosto a toda a algema
Duma ignorância que procura
Esconjurar o fim que tema
Pelo feitiço com que dura.
323 - Agir
Um homem contrariamente
Pode agir ao que a moral
Lhe impetra ao afecto e à mente,
Mas quanto à fundamental
Lei que o Cosmos implemente
E que é sempre universal,
Como ir contra nunca tem:
Livre ali não há ninguém.
324 - Livre
Na livre população
A esperança pesa mais
Do que o medo do papão.
Mas se à força a sujeitais
É o medo, pelo contrário,
O móbil do querer vário.
A primeira tem o culto
Da vida que se lhe oferta;
Foge a segunda ao insulto
De escapar a morte certa.
Uma por si quer viver,
Outra acata obedecer.
Uma é livre, a outra, escrava.
A guerra assenta em domínio,
Escravos tem quem a trava,
Não, nos súbditos, fascínio.
Fora tudo é quase igual?
- Inverso dentro é o sinal.
325 - Paz
Se a paz for de servidão,
De barbárie, solidão,
Nada lamentável faz
Mais um homem que esta paz.
Decerto entre pais e filhos
Mais disputas e sarilhos
Há-de haver, de azedos travos,
Que entre um senhor e os escravos,
Mas não importa à família
Que a autoridade, em quezília,
De escravos seja domínio,
Sem de amor qualquer fascínio.
Não é paz, é a servidão
Que quer o poder na mão
Dum único governante.
Não existe paz no instante
Que é de guerra mera ausência,
Mas apenas na excelência
Da concórdia, férteis calmas,
Colheitas da união de almas.
326 - Tornar-se
Os homens, logo que libertos
Do vão terror por leve paz,
Irão tornar-se, não despertos,
Nem em ninguém mais capaz,
Antes se tornam, pouco a pouco,
Noutros selvagens, barbaria,
Tal como outrora o mundo louco,
E o que eram torna cada dia.
Em vez de seres mais humanos,
Civilizados, bem morais,
É da moleza nos enganos
E na preguiça que os vês mais.
Já não procuram sobrepor-se
Estes àqueles por virtude
Mas pelo fausto e luxo que orce
A mais poeira que os ilude.
Dos pátrios usos se desgostam
E os estrangeiros adoptando,
Não são aquilo em que hoje apostam,
Breve em escravos vão mudando.
E sempre a guerra principia,
De mão em mão armas passando,
Em quem por dentro se traía
E a tudo vem contaminando.
327 - Mote
O mote dos que ambicionam
Qualquer poder absoluto
Foi que os dons sempre os abonam,
Mantendo bens e produto
Da cidade sempre em mente,
Mas vistos secretamente.
E, quanto mais tudo encobre
Pretexto de utilidade,
Mais perigoso é o que sobre:
Mais a escondida verdade
É que a implantar tenderão
Eles sempre a escravidão.
328 - Alcance
Tenho sempre a sensação
De que há qualquer coisa ali
Mesmo ao alcance da mão,
Mas que está, mal eu a vi,
Sempre a escapar de raspão…
- É a Vida: que frustração!
329 - Céu
Apesar de ameaçador,
Sempre é estranhamente belo
Aquele céu de terror.
Como um desastre, atropelo,
Horrendo embora no efeito,
Pode assumir um trejeito
Que vai desdobrar-se em cena
De inenarrável beleza!
Um hotel em chamas pena
Alanceia na surpresa,
Mas que comoção invade
Quem lhe observa a majestade!
É uma a medida humana,
Outra, o mundo a que se irmana.
330 - Preocupo
Se me preocupo mais
Com tua felicidade
Que com os feitos finais
De aprenderes a verdade,
Mais com paz podre a fruir
Que com planos de porvir,
Mais com tua vida a andar
Que com as que se perderem
Se o plano acaso falhar
- Actos que de mim vierem
São os que os da escuridão
Mentores aguardarão.
Como, ante o sol, o luar
De quem é sombra de amar:
A nossa força, em verdade,
É a nossa fragilidade.
331 - Criam
Hão-de ser sempre os tiranos
Que criam seu inimigo.
Como receiam os danos,
Dos que oprimem o perigo!
Saberão que, tarde ou cedo,
Das vítimas incontáveis
Uma se erguerá sem medo
Com gestos irreparáveis
A ripostar contra a sina
De escravo a que se destina.
332 - Crenças
Novas crenças enfatizam
A vivência pessoal,
O interior priorizam,
Do imo o encontro em cada qual:
Muitas vezes não são mais
Que de Deus alguns sinais.
Acolhem quem desconfia
Das grandes religiões,
Do tradicional a via,
Da moral os aleijões,
Tamanha pompa e riqueza
Onde o escândalo só reza.
As novas crenças ofertam
Fuga ao frio ritual,
Da lenda infantil despertam,
Querem cunho pessoal,
Melhor a si se entender
O imo fundo ao percorrer.
São um rumo iniciático
E à vida dão senso prático.
333 - Único
De único Deus todos falam,
Só pode tal Deus ser um.
O rumo por onde abalam,
Certo para qualquer um,
Então é deixar fluir
As múltiplas expressões
Da fé que cada sentir,
Sem violência nem pressões:
Cada, ao ser com todos Uno,
É que então de Deus é aluno.
334 - Sofrem
Apenas sofrem os vivos,
Eles só de culpa se enchem
E de remorsos furtivos,
De perguntas que os preenchem
Para as quais, quão mais se aposta,
Mais iludida é a resposta.
335 - Trabalho
Se vem o trabalho à mão
Sempre em primeiro lugar,
Logo de perto a ambição
O segue, sempre a trepar.
O que é um triste comentário
Duma vida por fadário.
O trabalho é parte enorme
Daquilo que então se for,
Que cremos que nos conforme.
Rompendo com este ardor,
Se propositadamente,
Sinto-me um sobrevivente
À deriva, solitário,
Sozinho num mar imenso
De falta do bem primário
Da teia a que não pertenço.
É o castigo de invertido
Ter, afinal, meu sentido.
Prémio de consolação
É que, ao fim, tenho razão.
336 - Imo
Bom para o imo é parar
Para olhar de vez em quando
Para quanto perdurar.
E o que vem deste comando
É que quão mais velhos somos
Tão mais atentos olhamos.
E assim mais de nós dispomos
Quão menos nos agitamos.
337 - Memórias
Tipo de recordação
Sempre de algum modo é a fé.
Tuas memórias então
De estima dignas até
Hão-de ser, mesmo se moem:
Não deixes que te magoem.
Com tempo verás que são
O que a teus pés gera o chão.
338 - Difícil
É difícil aterrar
Onde nunca alguém esteve
Nem nunca pensou estar.
A confusão não é breve
Nem leve é de colmatar
O vazio que se deve
Por dentro, brusco, ir cavar.
Apenas o tempo cura
Com novos laços e afectos
O desnorte que perdura
Em quem do lar perde os tectos.
339 - Indivíduo
O indivíduo vive só,
No elevador, no trabalho,
Na rua, do vento ao pó,
Nos estádios, no serralho…
Vivemos sós, na ilusão,
A meio da multidão.
340 - Frágil
Um eu frágil um autor
Não será da própria história,
Não tem metas nem fulgor,
Nem de objectos memória.
Dentro em si não intervém
E perpetua a miséria
Interior vida além
De seu labor negra féria.
Impulsivo, intolerante,
Exige de si demais
E dos outros adiante:
Não tem justeza jamais.
341 - Romance
És rico emocionalmente
Ou falta o pão da alegria?
O belo escreve contente
O romance permanente
Da vida que te anuncia.
Escreves com todo o alcance
De teu dia este romance?
342 - Desafios
Desafios geram medo,
Não, a emoção da aventura.
E a novidade é arremedo
Do pânico que a inaugura.
Escravos somos, moldados
De estímulos programados.
343 - Dentro
O teu maior inimigo
Não está fora de ti,
Dentro é que mora o perigo.
Tu podes tornar-te aí,
Sem nada te ser atroz,
O teu mais violento algoz.
344 - Vantagem
Podemos acelerar
Tudo no mundo exterior
Com vantagem, sem parar:
Transportes, computador,
Produção industrial,
O fluxo de informação…
- Nunca, porém, por igual,
Duma ideia a construção.
345 - Educação
A educação nos ensina
A gerir máquinas, casa,
Profissão que nos destina,
Indústrias que nos apraza,
- Mas nunca, em nenhum momento,
A gerir o pensamento.
346 - Reeditar
Reeditar os arquivos
Da memória é registar
Os belos eventos vivos
Sobre os velhos e em lugar.
Se estes forem negativos,
Logo os logro aligeirar.
Com tempo, irão positivos,
Como me convém, findar.
- Tais são os trilhos esquivos
Onde ao fim vou-me encontrar.
347 - Grave
A mais grave solidão
Não é onde me abandonam,
Como julgamos em vão
Contra os que de nós se adonam.
É aquela em que nós da mão
A nós nos abandonamos,
Pinha sem qualquer pinhão
Caída de vez dos ramos.
348 - Apagarmos
Apagarmos o passado
Não nos é jamais possível,
Apenas será credível
Reeditá-lo em todo o lado
Ou construirmos janelas
Que alicercem, no desvão,
Com as vistas paralelas,
Toda uma nova visão
Do mundo que houver em frente
E do que nele é presente.
349 - Maiores
Os maiores inimigos
Moram cá dentro de nós.
O mal sai do imo aos postigos
E é o que nos destrói a voz
E os outros vai destruir
Depois de nos atingir.
350 - Descobre
Descobre esperança
Na desolação
E conforto alcança
Na atribulação,
Nas perdas, coragem
E, com fantasia,
Do caos na imagem,
A sabedoria.
351 - Regada
Uma espiritualidade
Regada a serenidade
A paz social trará,
O amor estimulará,
O prazer todo enriquece,
- Cresce a vida como messe.
Porém, se tombar no abismo
De qualquer radicalismo,
Do autoritarismo extremo,
Será discórdia que temo,
Promove o ódio feroz,
- Gera a angústia mais atroz.
Entre ambas qual é que vale
É minha escolha final.
352 - Energia
A energia interior
É contínua, irrefreável.
Pensar não é de propor,
Que escolher não é viável:
Quer eu queira quer não queira,
Impõe-se de igual maneira.
Posso gerir pensamento
Mas jamais interrompê-lo.
Escapa-me, íntimo vento,
Impõe-me fatal seu selo.
353 - Extrair
Ter qualidade de vida
É utilizar ferramentas
Para da perda sofrida
Ganho extrair que fermentas,
Do perdão extrair força,
Dos calhaus do desespero,
Segurança que reforça
As leiras do que mais quero.
Extrair experiência
Dos vales negros do medo
E alegre, infinda potência,
Da dor terrena sem credo.
354 - Livros
Temos livros aos milhões
Da ciência mais precisa
Mas não rasgamos portões
De luz na parede lisa
De dois dos mais importantes
Fenómenos da existência:
A vida e a morte hiantes.
Vivemos, por excelência,
Por trás de quaisquer impérios,
Em redoma de mistérios.
Os enigmas do universo
Todos se escondem na história
Do ser humano, no verso,
Numa escondida memória:
Por trás de todos os credos
Somos caixa de segredos.
355 - Mendigam
Alguns que têm fortunas
Mendigam pão de alegrias.
Se à cultura os coadunas,
Jamais à calma os alias.
Tendo fama mundo fora,
São da solidão parceiros.
Falharam o alvo: demora
O lar onde eram inteiros.
356 - Palavras
Poderão contaminar
Só umas palavras a vida.
Vendo-se alguns rejeitar,
Paralisam em seguida.
Noutros estas rejeições
São trampolim de crescer:
Sofrendo embora aleijões,
Pode no exterior só ser,
Continuando no interior
Sem nunca os terem vencido.
Fruem por isso o vigor
Dum fogo nunca extinguido.
E tudo porque as palavras
Semeiam tudo o que lavras
E serão de joio ou trigo
Conforme de ódio ou de amigo.
357 - Materna
Os jovens como as crianças
Passarão mais de dez anos
A aprender, nas contradanças,
Da língua materna arcanos.
Nunca aprendem a falar
Deles mesmos propriamente
E muito menos, a par,
Consigo, interiormente.
Somos todos ignorantes
De nossos próprios instantes.
358 - Rouba
Aquele que é desonesto
Rouba a si próprio primeiro
Da tranquilidade o gesto,
Da serenidade o inteiro
Gosto a ceia repartida,
- O amor rouba pela vida.
359 - Alcance
Cada ser humano é um mundo
Para ser bem explorado,
História de agro fecundo
A lavrar-se em cada dado,
Um solo de húmus e rio
De cultivo ao desafio.
Por isso é tão fascinante
A visão de instante a instante.
360 - Caixa
Nossa individual história
É uma caixa de segredos
Arquivada na memória,
Da pessoa com os credos.
Uma personalidade
Não é por si só autora
De todo o evento que a grade
Na lenda que comemora.
Somos todos construídos
Tanto como construtores
De nossos rostos vividos,
Pegadas de mil autores.
361 - Vulgar
Quando pensas e registas
Qualquer vulgar pensamento,
Logo mudas tuas pistas,
Mesmo por fugaz momento.
Pensar sempre é transformar-se.
O problema a nos propor
É que, costure ou esgarce,
Pode ser para pior.
Nunca, porém, qualquer muda,
Por ser muda, pior é,
Senão, que ninguém se iluda,
Nem havia mundo ao pé.
362 - Píncaro
Muitos que o píncaro atingem
Intelectual, financeiro,
Não tocam, mesmo se fingem,
Nenhum píncaro altaneiro
Na qualidade de vida.
Têm tempo para engodos,
Não para quanto os convida
A fruir, do amor aos modos,
Nem para aqueles que amarem.
Perdem sempre a singeleza
Quando fundo se atolarem
No activismo que os despreza.
Mendigam, no pão da mesa,
Por um pouco de alegria,
Mendigos que o mundo preza
No luxo da moradia,
No belíssimo escritório…
- Que mendigas cada dia
Da emoção no consultório,
Quando a pressa se esvazia?
363 - Lazer
Temos a tecnologia
De lazer desenvolvida,
Como ninguém a veria
Outrora em nenhuma vida.
Porém, não desenvolvemos
Na mente e na educação
Como esconjurar os demos,
Como em nós próprios ter mão,
Como, enfim, nos transformarmos
De modo a irrigar qualquer
Emoção que suportarmos
Com a emoção do prazer.
364 - Postura
Toda a discriminação,
Comum no mundo actual,
É desumana tenção
De postura irracional.
A dor duma rejeição
Sempre é das mais destrutivas,
Induz auto-negação
Na existência que tu vivas:
Em ruptura ante os demais,
Desligado, nada és mais.
Depois disto fica à solta,
Mortífera, só revolta.
365 - Povos
Vivemos em povos livres,
Mas jamais tantos escravos
Houve com cuja dor vibres,
Servos do agro da emoção:
De ansiedade os pregam cravos
E de preocupação
Com o amanhã ignorado.
Prende-os a impulsividade,
O medo dissimulado,
Timidez, intolerância,
Fera irritabilidade,
Stresse, indómita ganância…
- Mal gerimos a vontade,
Escravos da liberdade.
366 - Crianças
As crianças raramente
Fruem duradoiramente
De brinquedos, roupa, objectos…
As vivências dos trajectos
São hoje sempre fugazes.
A qualidade que trazes
Pouco importa ao que consomem:
O prazer que dali tomem
Da quantidade é que houver,
Emoção pronta-a-comer.
Tudo a correr, não desfio
Contemplação, desafio,
Nem lugar a descoberta
- E a vida então não acerta.
367 - Contas
Alguns têm palacetes,
Contas bancárias, jardins,
Mas não têm nos bufetes
Como contemplar cetins
De flor prolongadamente,
Incapazes de no chão
Rebolar alegremente
Com crianças pela mão…
São, com dinheiro no banco,
Miseráveis. Quem é rico
Se com ele nunca abanco,
Dele bem longe me fico?
368 - Vive
Quem for mais contemplativo
E muito bem-humorado
Vive melhor e é mais vivo,
E mais vida tem logrado.
Ser alguém negativista
E mal-humorado não
Resolve o problema em vista,
Não nos muda a negridão,
Mas pode, de facto em vias,
Abreviar-nos os dias.
369 - Contemplas
Se tu contemplas o belo
Hás-de sempre ficar jovem,
Do tempo embora o atropelo
As rugas que em ti se movem
Sulque pelo rosto plácido.
Se não contemplas, bem podes
Cirurgia ao corpo flácido
Plástica fazer, que acodes
Ao que já não tem remédio:
Vais envelhecer então
Onde não deve haver tédio,
- No terreno da emoção.
370 - Admiradores
O vero mestre não quis
Admiradores servis
Que uma popularidade
Lhe aumentem em quanto grade.
Quer indivíduos que o amem,
Que em redor quentes se acamem.
Não quer, pois, a servidão,
Mas o humano coração.
371 - Registo
O registo da memória
Não vem da vontade humana,
É uma automática glória
Que involuntária dimana.
E não vai ser apagada,
Impositiva, à chegada.
372 - Encanta
Só não se encanta da vida
Quem tem vida sufocada,
De preocupações fendida,
Em activismo atolada,
E não logra discernir
Já nada além da cortina
Dos problemas que sentir,
Prisão onde se amofina.
373 - Gere
Se não gere nem aquieta
O seu pensamento, então
Seu cérebro toma à mão
Protegê-lo da maleita:
Desliga-o, na evocação,
Feito um oco sino e vão.
374 - Perdoar
Sem perdoar o papão
Do passado eclodirá
Do presente em todo o chão
E o porvir controlará.
A vingança sem abalo
Do inimigo é perdoá-lo.
Perdoar não é ignorar
Mas antes compreendê-lo.
Se o compreendes, a par,
Do perdão lhe impões o selo.
Se perdoas, dentro em ti
Morre ele e nasce outro ali.
Caso contrário, o inimigo
Dormirá sempre contigo.
375 - Nasceste
Tu nasceste vencedor.
Vencer não é não cair
No erro e falha: é enganador.
Vencer é ver o estertor
Da limitação e agir
Para corrigir a rota.
Vencer é não desistir
E atingir do cume a cota.
376 - Quenquer
Quenquer que só mundo físico
Tenha em saber rigoroso
Terá sempre um saber tísico,
Um saber sempre morboso:
Não sabe o sabor da reza
Nem o encanto da magia,
Perde ao poema a beleza,
Perde o canto à cotovia.
377 - Independente
Ninguém verificação
Independente requer
Do tempo que além fizer:
Se alguém disser que é Verão,
Aceitam o testemunho
Sem pôr quaisquer reticências.
Tudo o que tiver o cunho,
Nos sentidos, de evidências
Não requer prova a ninguém.
Um uso doutros sentidos
Quem descobrir, pois, além
Dos cinco dantes vividos,
Não sente a necessidade
De provar e de testar,
Feito cego a atravessar
Campo de minas na herdade.
E não terá paciência,
Com quem não tem tal emprego,
De responder-lhe à insistência
Para que volte a ser cego.
378 - Procuram
Procuram significado,
Sequiosos, para a vida,
Substituto malogrado
Da santidade perdida
Que metas erigiu tais
À geração de seus pais.
Procuram-no então na droga,
Política, misticismo,
Na seita de acaso em voga
Ou num qualquer messianismo…
Longe do leito do rio,
Ao fim tudo é mais vazio.
E às vezes uma palavra
Bastava para regar
E fertilizar a lavra,
Tal noutro tempo e lugar.
E eis que a santidade à vida
De novo ângulo convida.
379 - Certeza
Uma certeza absoluta
Fica reservada à Luz,
Não ao homem cuja luta
A falha mortal traduz.
Resta-lhe, enfim, a esperança
E agir em conformidade
Com a consciência que alcança
Dum vislumbre de verdade.
380 - Desatenção
Tudo tem muita importância:
De desatenção o instante
Faz que da sombra a ganância
Mais próxima fique, impante.
Cada pequena cedência,
Em si própria irrelevante,
Da Luz nos tapa a evidência,
Logo a apaga num instante.
381 - Medo
As pessoas assustadas
Não falam, têm demais
Medo nas ruas caladas,
Pedem protecções reais.
E, se falharem então
Protecções convencionais,
Correm à superstição
Ou confiam nos instintos,
Voltam à religião,
A organizada nos plintos
Ou as mais que houver à mão…
Se se lhes quebram os cintos,
É do abismo a escuridão!
382 - Inventa
O que inventa e mente horrores
Tenta que dele a palavra
Vívida seja de humores,
Dramática, que escalavra
O mais que seja possível,
Para o falso ser credível.
Aqueles que contemplaram
O vero rosto do mal
Sempre em geral acabaram
Reduzidos, afinal,
A falar banalidades
Com que a ninguém persuades.
A pomba nunca tem jeito
De à víbora impor respeito.
383 - Mudança
A mudança e a incerteza
A mente detesta mais
Que qualquer outra fraqueza.
Rejeita-se, em termos tais,
Frequentemente a esperança
E a ajuda, por mais reais,
Preferindo-se o que entrança
Em nós mágoa e dor finais
A uma provável mudança.
Tomamos, pois, por divisa
Quanto ao fim nos fossiliza.
384 - Guerra
A guerra sempre existiu,
Que a guerra emana dos povos,
Não do Estado que a feriu
Nem dos militares novos,
Nem do capital patrão,
Nem doutro interesse vão.
A guerra sempre começa
Com o cacete, a pedrada,
A garrafa em que tropeça
O pé incauto, a cabeçada,
Com a bomba incendiária
E outra intolerância vária.
A guerra sempre se acende
Com qualquer motim na rua,
E a minha rua o aprende
Sem cuidar se é falcatrua.
Não finda da guerra o pano
Até o derradeiro humano.
Porém, como a guerra eterna
Se nos mostra inevitável,
Também surge de luz terna
Um raio que é irrefragável,
Um raio que é o da esperança
De paz onde o porvir dança:
- É que escolho eu a vertente
Onde semeio a semente.
385 - Pior
O pior é ver o mal
E saber que homens honestos
Não fazem nada, afinal.
São desta agonia aprestos
Bem mais que qualquer derrota
Com que a vida se conota.
386 - Cegos
Cegos por irrelevantes
Medos, como atordoados
Pela riqueza e poder,
Defensores hesitantes
Da luz traem, enevoados
Por mil razões de não-ser,
Todas indignas e vis,
Sem muitos deles sequer
Se aperceberem, senis,
Da guerra que os envolver.
- E eis como, no abismo fundo
Nos vai resvalando o mundo.
387 - Momentos
Há momentos em que a história
Da humanidade é mudada.
Tenta o cristão da memória
Ter, no futuro, apagada
A integral sabedoria
Que a dele não firmaria.
Nesta luta vai banindo
Deste mundo toda a forma
De mistério que, luzindo,
Contrarie dele a norma,
Que não se adapte, extremosa,
Dele à fé religiosa.
Inchado então deste orgulho,
O pão fura de gorgulho.
Morremos a prazo à fome,
Não há fada que nos tome.
388 - Lutamos
Este mundo é para todos,
Sejam quais forem os deuses
Ou de Deus sem nenhuns modos.
Lutamos contra os reveses,
Contra quem os represente,
Não por aqui vir assente
Um deus outro e não o meu,
Mas por virem incendiar,
As terras despir ao léu,
O que tenhamos roubar…
- Nunca um imo se escraviza,
Só um falso deus tiraniza.
389 - Nem
Nem deuses nem deusas há,
Apenas as formas são
Que a humanidade dará,
No terror da escuridão,
Ao que não será capaz
De compreender assaz.
390 - Medo
O medo é a pior fatia,
À mercê da má fortuna
Logo nos colocaria.
Mesmo a fera atacaria
Quem com ele se coaduna,
Mas foge do corajoso:
- Cheira a quem é perigoso.
391 - Longe
Nunca compreenderemos
O que é ser outrem na pele.
Longe de que o aceitemos,
Fingimos que, mal apele,
Logo o entendemos de pronto,
Nunca ao limite há desconto.
Sobretudo com crianças,
De fraco não dou sinal.
A ignorância nestas franças
É, todavia, total.
Mas como é que, ante a fraqueza,
Vou dar de fraco a certeza?
Com todos a vida inteira
Ignoro, então, a fronteira.
Pago uma fatal factura:
O erro, assim, perene dura.
392 - Repetitiva
A maneira de viver
Repetitiva, sumária,
Pouco interessante ser
Há-de por ser tão primária.
É a cobertura do bolo
E jamais o bolo em si
Que leva as gentes a pô-lo
Na mesa, num frenesi,
E é o que mais leva a comê-lo:
-Tem mais sabor se for belo.
E à beleza quem a preza
Enche a vida de surpresa.
393 - Glória
A vida merecedora
De ser vivida o que a torna
Não é a glória que cantora
Musa ecoe, paga à jorna,
Dos guerreiros matadores,
Das pilhagens e das dores.
Antes é o gado cuidado
Mais os cultivados campos,
Filhos felizes ao lado
A chupar os figos lampos,
Em torno ao fogo a estalar,
Ao centro alumiando o lar.
Deus pode ser bem terrível
Vendo os filhos ameaçados.
Mas preferirá, credível,
Ver-nos construir, prendados,
Bem mais do que nos olhar
Mutuamente a nos matar.
394 - Quem
Quem és tu? Tens a certeza
De que és aquilo que pensas
E não somente o que reza
Outrem de ti nas sentenças?
Se outra coisa houveram dito,
Se doutrem foras criado,
Por igual e sem conflito
Não creras ser outro dado?
Ninguém de si sabe ao certo
Quão longe mora ou quão perto.
395 - Berço
O berço de nascimento
Mui pouca importância tem,
Que de nascer no momento
Sempre iguais os homens vêm
E sem nada para a vida,
Pobre ou rico, igual medida.
Todos somos bebés nus
E chorões como os demais,
Seja o filho dum lapuz,
Dum nababo que invejais…
E o fim, por igual, sumário
Tudo iguala no sudário.
Por que conta tanto, ao meio,
Da diferença o enleio?
396 - Nuvem
Quando a nuvem ameaça
Há-de vir a tempestade.
Mas não sabes quando a traça
Da chuva a vir nos invade,
Nem sequer a intensidade
Da fúria com que ela grassa.
Com o tempo assim vai ser
De nosso mundo interior,
Com as marés que há-de ter,
Ciclos de frio e calor.
Que final se lhe há-de impor
Ninguém nunca há-de saber.
397 - Estúpidos
Correrá estúpidos riscos
Quem só quer notoriedade.
Entre acção sem obeliscos
Mas eficaz de verdade
E a que apenas o engrandece
É sempre esta a que obedece.
Como todo soa a oco,
Não mais o quero ou convoco.
À margem fica da vida
Em tudo o que o mais convida.
398 - Arriscar
Quando gente e corações
Não têm mais a perder,
Terão todas as razões
De arriscar tudo em qualquer
Mudança que os realinhe,
Por pior que se adivinhe.
O desespero o que alcança
É a derradeira esperança.
399 - Faca
Quando é que a faca de peixe
É faca de peixe apenas?
Só quando nela não deixe
Gravadas as nossas penas,
As iniciais da família,
A história duma vigília...
- Doutro modo esconde tomos
Que escrevem o que nós somos.
400 - Dono
Ninguém é dono de nada,
A propriedade é ilusão,
De quaisquer bens na coutada,
Desde o corpo ao coração.
Quem perdeu alguma coisa
Que tinha por garantida
Aprende, se nela poisa,
Que nada é seu nesta vida.
401 - Humano
Pouco importa conhecer
Tudo de nós a respeito,
O ente humano não é feito
Só para sábio se ver,
Também para arar a terra,
A chuva aguardar que a cerra,
Plantar trigo em sementeira
Depois de gradar a jeira,
Colher o esperado grão
E cozer o próprio pão.
402 - Dualidade
Somos a dualidade
De quem deseja a alegria,
A paixão e a aventura
Com que a vida nos invade
E quem se escravizaria
À rotina que perdura,
À vida familiar,
Ao planeado e cumprido.
Sou caseiro e doidivanas
O mesmo corpo a habitar:
Vivo a lutar, incontido,
Em mim com todas as ganas.
403 - Emoção
Vive seu próprio desejo
Cada humano, é seu tesoiro,
Emoção de cujo ensejo
Fogem alguns com desdoiro,
Porém geralmente traz
O que importa perto atrás.
É uma emoção que meu imo
Escolheu e tão intensa
Que pode, em quanto me arrimo,
Contagiar sem pertença
Tudo e todos, com fervor,
Que me andarem em redor.
404 - Assusta
Quando mostra a vera face,
A dor assusta deveras,
Mas é sedutor enlace
Quando veste, pelas eras,
O traje do sacrifício
Ou de renúncia exercício.
Por mais que a gente a rejeite,
Encontra sempre maneira
De estar com ela, um enfeite
De a cortejar sempre à beira,
A levá-la, singular,
Nossa vida a partilhar.
405 - Imaginação
Nada de quanto estimula
A imaginação é mau.
Hoje em dia, quanto bula
Com a escola e a grande nau
De instituições sociais,
Parece andar apostado
Em matar sonhos vitais
À nascença, em todo o lado.
Pretendem que é de ajustar
Os miúdos ao real
Mas o que andam é a castrar
A fantasia, afinal.
As artes, literatura,
Filmes, banda desenhada
São ervas que da fundura
Erguem pedras da calçada,
Estalam todo o cimento
Que empareda o mundo inteiro.
- Não sou um caniço ao vento
Com que alguém brinque ligeiro!
406 - Divindade
Em todo o tempo e lugar
A divindade aqui mora:
Não há como a retirar
Da natura onde ande agora
Para enclausurá-la em redes
De livros nem de paredes.
407 - Questões
As questões fundamentais
Da vida jamais terão
Qualquer questão, dentre as tais,
Respondida em conclusão.
Mesmo assim, de pé tremente,
Podemos seguir em frente:
- O que mais nos gratifica
É a migalha que se bica.
408 - Aprisionados
Por que somos infelizes?
Porque aprisionados vamos
De nossa história às matrizes.
Todos nós acreditamos
Que o objectivo da vida
É um plano seguir dos ramos
Ao tronco e à raiz perdida.
Ninguém pergunta se é o seu
Ou se é doutrem a medida.
Juntam sob o próprio véu
Experiências e memórias,
Ideias dum qualquer céu
Que doutrem se fez de glórias.
E então ninguém aguenta:
Esmagado em tais vanglórias
Ninguém já seu sonho tenta.
409 - Estive
Já estive antes por aqui
E a fonte que em nenhum guia
Aparece que já li
Muito mais me importaria
Que tudo o mais que aqui vi.
Porque é linda, tem magia,
Por acaso a descobri
- E andou-me ligada um dia
À história que aqui vivi.
Tem, então, algo de mim,
É minha parente afim.
410 - Conversa
Anos de conversa meia
Sem ver a realidade
Por trás de qualquer ideia:
Só existe esta de verdade
Quando qualquer mão pragmática
Venha pôr a ideia em prática.
411 - Caminho
O caminho espiritual
É paciência de esperar
E não me decepcionar
Com o que encontro, afinal:
- Então me vem ensinar
A vida, nalgum sinal.
412 - Aventura
Todos somos diferentes,
Com qualidades, instintos,
De prazer próprias sementes
E de aventura elmo e cintos.
Porém a comunidade
Sempre acaba por impor
A colectiva verdade,
Modos de prazer e dor.
Ninguém pára a perguntar
Por que tem de ser assim…
Logo adoecemos a par:
- Nenhum eu sou eu em mim.
413 - Seguir
Gostar de seguir as leis
Não faz o comportamento,
Mas medo que o castigueis
Se for ao sabor do vento.
A forca foi abolida
Lá fora, na praça ali,
Mas cada qual tem-na erguida
Deste modo dentro em si.
414 - Maioria
Estará no Paraíso
Acaso e não reconhece,
Como, aliás, acontece
À maioria sem siso.
Procuram o sofrimento
Nos mais alegres lugares
Porque cuidam que o alento
Não merecem, de larvares.
E então à felicidade
Ninguém mais os persuade.
415 - Controlar
Tentar controlar o mundo
É estupidez rematada,
É crer seguro, no fundo,
O que não segura nada.
Acaba por nos deixar
Todos bem mal preparados
Para a vida que brotar
Pejada de inesperados.
Pois, quando menos se espera,
Um terramoto a montanha
Abate na Primavera:
Todos perdem, ninguém ganha.
Um raio mata a floresta
Que acaba de renascer
No Verão da grande festa
A ir na aldeia ocorrer.
Ou finda a vida dum homem
Num acidente de acaso,
E das mágoas que o consomem
Finda a conta, finda o prazo.
Tentar controlar o mundo
É estupidez rematada,
É crer seguro, no fundo,
O que não segura nada.
416 - Camponês
O camponês não entende
Deveras como é importante.
Um garfo à boca subtende,
Em qualquer lugar distante,
Que alguém só logra fazê-lo
Graças a gente de nada
Que trabalha, sua o pêlo,
Dia, noite e madrugada,
Rega a terra do suor
Daquele corpo cansado,
Cuida o gado com fervor,
Paciente com o fado.
São mais precisos ao mundo
Que quem mora na cidade
Mas comportam-se, no fundo,
Tal lixo que se degrade.
417 - Rumo
Muitas vezes o caminho
Do rumo à felicidade
Talvez queira outro cadinho
Que não as leiras da herdade
Dum juízo arrumadinho,
Da recta mentalidade
Do mundo alarve e mesquinho
Mas que aparenta verdade,
Sensatez a ser-nos ninho,
O mundo que nos rodeia
E que engana volta e meia.
Da felicidade a chave
Jaz na fundura enterrada
Do inconsciente onde grave
Os marcos de nossa estrada.
418 - Objecto
Se a verdade só respeitas,
Não respeitas grande coisa:
Dois e dois, quatro que ajeitas
Na pedra de tua loisa.
Muito pouco, com efeito,
Objecto é de teu respeito.
As normas, os sentimentos,
Os valores, as opções
São mui frágeis construções
E flutuantes intentos.
É tudo, afinal, mui prático
E nada de matemático.
O respeito não o temos
Pelo que está demonstrado
E que em conta só teremos
No que houvermos planeado.
O respeito é pelo gosto
Do que em meu imo é proposto.
419 - Anseiam
Onde nada for normal
Todos por normalidade
Anseiam, como essencial
Sentimento que os invade.
É o que ajuda toda a gente
A desempenhar a diária
Tarefa adequadamente:
Vão conferindo sumária,
Sã previsibilidade
A uma vida definida
Por incerta identidade,
Tão de imprevisto é tecida.
420 - Intérmina
Não deve demorar muito,
Muitos andam a voltar
Duma intérmina viagem
Onde, mesmo sem intuito,
Levados a procurar
Foram só falsa bagagem,
De que nem a melhor peça
A ninguém mesmo interessa.
Agora todos dão conta
De que tudo é falsidão.
Mas o retorno é com dor,
O tempo fora desconta:
É estrangeiro e perde a mão
O que da terra se for.
Vai levar tempo a encontrar
Os amigos do lugar
E os amigos que partiram,
O recanto onde as raízes
Se nos prendiam ao chão,
Cantos que outrora nos viram,
De meu tesoiro as matrizes
Que longe busquei em vão.
- Porém isto, haja o que houver,
Por fim há-de acontecer.
421 - Ensinar-te
Ao ensinar-te, aprendi,
Aprendi, mas de verdade:
Quando guia me assumi
É que o rumo consegui
Para minha identidade.
422 - Torcida
Uma torcida sem fé
Leva uma equipa a perder
Num jogo que iria até
Vitorioso acaso ser:
- Assim, no jogo da vida,
Será fé nossa medida.
423 - Difícil
O mais difícil momento
É de eu ver o bom combate
Mas sem voar dele ao vento,
Sem trocar o mau intento,
Sem me impor que o justo acate.
Ora, quando isto acontece,
O conhecimento volta-se
Contra o que o tem e o esquece.
A colheita desta messe
É que o diabo então solta-se.
424 - Espada
Antes de a mão manejar
A espada, localizar
Deverá seu inimigo
E saber, ante o perigo,
Como com menor abalo
Irá poder enfrentá-lo.
A espada dá o golpe apenas
Mas a mão, antes das cenas,
Está já vitoriosa
Ou perderá, desonrosa,
Ali de antemão vencida:
- Esta é sempre a lei da vida.
425 - Consciência
Com a consciência da morte
Ousaria muito mais,
Mais longe a tentar a sorte
Nos cotios mais banais:
Findaria a compreender
A verdade inquestionável:
- Não tenho nada a perder,
Já que a morte é inevitável.
426 - Ponto
Numa luta, o ponto forte
Em que me irei apoiar
Para a parede vergar
Àquilo que for meu norte
Será sempre o meu presente.
Sempre me apoio melhor
(Morando aí meu amor)
No que agora opero em frente,
No ágape que contiver
A partilha de meu pasmo:
A vontade de vencer
E vencer com entusiasmo.
427 - Treparei
Treparei sem nunca ao certo
Poder prever onde apoio
Pés nem mãos, longe nem perto.
Dana o discípulo o joio
De imitar passos do mestre
E nocivo torna o guia.
Quando cada qual se amestre,
Tem visão sua da via,
Maneira própria de ser,
De com as dificuldades
Com jeito seu conviver,
Tem glórias e necedades…
Ensinar mostra-te apenas
Que é viável, que é possível.
E aprender é tornar plenas
As vias do que é vivível.
428 - Pescar
Tentei pescar mas o peixe
Não mordeu no meu anzol.
o entusiasmo logo, em feixe,
Perdeu-se, que isto em mim bole,
Pequena coisa de nada,
Tal se fora toda a estrada.
De nadas a singeleza
Sem a menor importância
Dentro em nós mata a grandeza
De existir, a final ânsia.
Por causa da pequenez
Perdemo-nos no entremez.
Ora, como não sabemos
Que o entusiasmo é maior
E à vitória empresta extremos,
À poeira o vamos expor
Sem ver que, se ele findar,
A vida perde o lugar.
Culpo o mundo da derrota
Ignorando que fui eu
Quem deixou fugir a frota
Do mar vivo no escarcéu,
A força arrebatadora
Do entusiasmo que devora.
429 - Representa
Representa o inimigo
Sempre o nosso lado fraco:
De dor física o perigo,
Querer a glória a pataco,
Desejo de abandonar
Por valor em nada achar…
O inimigo entra na luta
Por saber que há-de atingir-nos
No ponto exacto em disputa
Onde o orgulho discernir-nos
Não permite, antes faz crer
Que invencível é quenquer.
Nós na luta a defender
O lado fraco andaremos
Enquanto o inimigo quer
O lado ignoto que temos
E que sempre em nós alcança
Nossa maior confiança.
E findamos derrotados
Por ocorrer o que não
Devia a quem tem cuidados:
Deixar sempre que o malsão
Inimigo, em minha jeira,
Da luta escolha a maneira.
430 - Campos
O mundo mudou deveras
Desde os campos de batalha,
Hoje o lugar das esperas
É dentro de nós que calha:
O bom combate é travado
Em nome dum sonho grado.
Quando ele explodiu em nós
Na juventude, tivemos
Muita coragem na voz
Mas luta não aprendemos.
Findámos por aprender
Após muito esforço haver.
Já não temos é coragem,
Então, para combater.
Contra nós muda a focagem:
Passamos então a ser,
Sem mais tecto nem abrigo,
Nosso pior inimigo.
Diremos que nossos sonhos
São difíceis, de infantis,
Eram fruto de medonhos
Sobre as vidas erros vis…
- E os sonhos matamos cedo
Do bom combate por medo.