TERCEIRO  TROVÁRIO

 

 

 

DO  SER  AUSCULTANDO  O  FULGOR

 

 

 

 

 

 

Escolha aleatoriamente um número entre 284 e 430, inclusive.

Leia o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

284 - Do ser auscultando o fulgor

 

Do ser auscultando o fulgor,

O poema o capta aqui no metro certo,

Na rima que com ele rimar for,

De modo que o capturado pendor

Nos mostre que a lonjura anda, enfim, perto.

 

Apalpo do ser a estrutura,

Olho onde me acena

E o que ali apura

Que me salva ou condena.

 

No pendor correcto

Ao reparar, sinto

Que sobre mim, afinal, há sempre um tecto.

 

No poema não minto:

- Para um salto é um breve plinto.

 

 


285 - Invejar

 

Quem invejar toda a gente,

Este aqui, porque é bonito,

Aquele, porque é potente,

Não dispõe de requisito

Onde embeber a raiz

Quando queira ser feliz.

 

 

286 - Animais

 

Os sentimentos podem ser

Como animais dos mais selvagens.

Subestimamos em qualquer

Ferocidades, vis imagens,

Mas mal a jaula nós lhe abrimos

Logo nas garras nos ferimos.

 

 

287 - Aceitação

 

Na maioria das culturas

A aceitação do que é fatal

Saúde é boa que depuras,

Mas não assim na Ocidental:

 

Quando algo mau acontecer,

Cuidam que alguém tem de pagar

E logo atacam já quenquer,

Haja ou não haja que atacar.

 

Não há fronteiras ao poder,

Incha o balão de tal orgulho

Que o Ocidente anda a morrer,

Picado o grão deste gorgulho.

 

 

288 - Estranha

 

A morte é estranha no aspecto

De fazer vir ao de cima

Melhor e pior, directo,

Do que as pessoas anima.

 

Lança luz sobre a verdade,

Empresta à vida uma rara

Transparência que a invade

Ofuscantemente clara.

 

Ambiguidade e mentira

Só deste lado se mira.

 

 

289 - Maior

 

Teremos de compreender,

Enquanto somente humanos,

Que deveras há um poder

Maior que nossos enganos

E que, por onde quer que anda,

Tudo ele, tudo, comanda.

 

É de nos sentir amados

E com ele em ligação,

Nunca em porquês enredados.

Cedo ou tarde, após virão,

Separadamente ou juntas,

As respostas às perguntas.

 

 

290 - Catástrofes

 

As catástrofes obrigam

Todos a nos perguntarmos

Que laços à vida ligam,

Em que é importante pegarmos,

Como podemos marcar

Nossa diferença, a par.

 

Provocam a introspecção,

É sempre a oportunidade

De entender que fica à mão

Mudar, em qualquer idade,

Mudar o curso das vidas:

Nunca é tarde em tais medidas.

 

A pior coisa a fazer

Da vida é desperdiçá-la.

Tanto sonho a infância a ter,

(Como o riso alegra a sala!)

E o adulto a se atolar

Nos créditos a pagar!...

 

Esqueço que há mais na vida,

Esqueço-me de que posso

Ser o que queira, em seguida,

E que a idade, em vez dum fosso

Onde se atole meu lema,

É um salto além do problema.

 

 

291 - Esgota

 

Quando alguém é só dador,

Pode esgotar-se depressa;

Se é, porém, só receptor,

Esgota os mais peça a peça.

 

Cada qual sempre requer

A energia devolvida

Para equilíbrio manter

A adubar fecundo a vida.

 

 

292 - Cancro

 

Como é que teu cancro escolhes

Usar, a tua doença?

- É a pergunta onde recolhes

O amor à vida que vença:

Ficas a olhar, em tal hora,

Para o que fazer agora.

 

Vais sentir-te autorizado,

Ali apoiado ao vivo,

A ter o abismo enfrentado

Dum modo que é positivo.

Quem pergunta tal pergunta

Vê-te a doença que assunta,

 

Não verá nela o castigo

Pelo que hás feito de errado,

Antes porto sem abrigo

Com o cais dificultado,

Passível de treinamento

- E te incita a tal intento.

 

 

293 - Parte

 

Há sempre uma parte em mim

Que é tal qual uma criança

Na casa branca das fadas:

As regras não são, enfim,

Talhadas do que me alcança,

Nunca me são destinadas,

Que eu não sou como outra gente

Mas deveras diferente.

 

Ora, o que ando a descobrir

Pela doença e derrota

É que diferente a ir

Não irei nem sou na rota,

Meus problemas são problemas

Que dos demais serão temas,

 

Todos se terão batido

Com eles, séculos fora.

E o sentimento sentido

Que daí vem, não demora,

É duma nova humildade

Que à aceitação persuade

 

Das coisas tal como são,

De que está bem tudo ser

Comum neste comum chão.

E que agradável é haver

De ligação um sentido

Aos outros com que hei vivido,

 

Como se todos a parte

Fôramos dum ser total

A lidar com tais questões

E a crescer, crescer, destarte,

Através de rumo igual

Em quaisquer ocasiões!

Não ser diferente, à entrada,

É não segregar-me em nada.

 

 

294 - Ego

 

Jamais o vero sujeito

Um ego poderá ser:

Este é um objecto em meu peito,

Posso consciência ter

Dele, como posso recto

Vê-lo tal qualquer objecto.

 

Mesmo se algumas das partes

Dele forem inconscientes,

Todas podem, sem apartes,

À consciência advir presentes:

Um ego pode ser visto,

Conhecido, a partir disto.

 

Consequentemente um ego

Não é o vero observador,

Conhecedor em sossego,

Não é Testemunha-mor.

É apenas amontoado

De objectos, do que é mentado,

 

De ideias e de conceitos,

De símbolos e de imagens

Com que erradamente atreitos

Somos, após as triagens,

A nos identificarmos,

De nós sem mais nos cuidarmos.

 

Primeiro identificamo-nos

Com esses objectos todos

E depois como algo usamo-nos,

Óculos de olhar os modos

Que o mundo tem e, assim sendo,

Tudo vamos distorcendo.

 

 

295 - Cai

 

Perante a iluminação

Cai por terra o corpo-mente.

Assim é que os sinto então:

Um doutra cortado rente,

Separado, é uma ilusão

Que se esfuma de repente.

 

Vejo o corpo, é muito real

E, comparativamente,

Irreal sou eu, afinal.

Mas o iluminado sente

Que é mais vivo, no total,

Que o mero corpo presente,

 

Pareço quase acordar

E tudo o mais, como um sonho.

É o outro lado a mostrar

Que tudo de que disponho

Tem outra fundura a par:

- O além-raia que me imponho.

 

 

296 - Condenação

 

O pecado, toda a morte,

Condenação ou inferno

Nada mais é que o transporte

Dum ego frio onde hiberno,

 

Do amor-próprio operações,

Variações de ultra-estima,

De si gesto aos tropeções

Que de Deus nos elimina,

 

E acaba tudo no inferno,

O campo-santo do eterno.

 

O diabo vês sem véu:

- Olha aí teu próprio eu!

 

Mais inferno que um apego

Não há pelo eu surdo e cego,

 

Nenhum outro Paraíso

Do que um altruísmo liso.

 

Todo o inferno apenas arde

Dum ego inchado no alarde.

 

 

297 - Pequeno

 

Do pequeno ego dar cabo,

A renúncia de morrermos

Para o eu curto onde acabo,

Separado aí nos ermos,

Este eu de auto-contracção

Onde nem ar tenho à mão…

 

Se quisermos descobrir

Nossa identidade ao Todo,

Não nos vamos confundir

Dum ego-a-sós com o engodo:

Desfazer a confusão

Com ele é urgente missão.

 

Esta Queda pode ser

Invertida de repente,

Basta-me compreender

Que, no real existente,

Ela nunca, pelas eras,

Chega a acontecer deveras:

 

É que apenas Deus existe,

Eu separado é ilusão.

Mas há muito quem persiste,

É gradual a inversão.

Porém, há sempre esta via

De alcançar o que queria.

 

Quando apropriadamente

Seguida, o nosso caído

Estado agora presente

Rápido é reconvertido

Em estado iluminado,

Do inferno ao céu elevado.

 

É um voo do solitário

Ao Solitário sem véu,

Ou seja, o rumo primário,

O voo do eu ao Eu.

Seja qual for o caminho,

É o retorno ao vero Ninho.

 

 

298 - Outro

 

Onde quer que o outro exista,

Existe fatal o medo.

Se divido, ordeno em lista

E de terror me embebedo.

A inconsútil consciência

Perderá de vista a essência.

 

Sujeito perante objecto,

Um eu perante outro eu

São o contexto concreto

Que o medo desperta meu

Porque outrem existe agora

E magoa, não demora.

 

Do medo o ressentimento

Cresce logo, inevitável.

Se identificar-me tento

Com este eu tão vulnerável,

Então outros vão magoá-lo,

Irão feri-lo, insultá-lo.

 

Depois a existência do ego

É mantida por insultos

Emocionais que me lego,

Mil vergões em mim sepultos

Que o eu carrega consigo

Por estrutura de abrigo.

 

Colecciona activamente

As injúrias, as feridas,

A ressenti-las em mente,

Porque sem elas vividas

Tal ego, perdida a estrada,

Literalmente era nada.

 

 

299 - Busca

 

"Voltemos à realidade!"

Mas quem isto pontifica

O que busca de verdade

Só empírico-científica

Realidade justifica

E crê que isto escapa à crítica.

 

É o que, enfim, percepcionado

Pode ser pelos sentidos

Ou instrumento adequado,

São dados vistos, medidos.

 

Tudo o que estiver lá fora

Deste mundo tão estreito,

Qualquer alma, onde ela mora,

O espírito, o Deus do peito,

A ponta da eternidade,

Não tem cientificidade

 

E, portanto, como tal,

Tem rótulo de irreal.

 

A vida a estudar ciência

Para no fim concluir,

Pese-lhe embora a evidência,

Que este é um reino a se sumir,

De perda maior que o ganho,

De limitado e tacanho!

 

Nós somos de corpo e mente,

De matéria e também de alma

E de espírito em semente.

Lida a ciência e nos acalma

Com o corpo e a matéria.

Com a mente a prova é séria,

 

Fica-lhe pobre a abordagem.

Ignora após por inteiro

Das almas qualquer clivagem

E o espírito cimeiro

Fatal dela é ultrapassagem.

Enfim, ao campo da crença

Não há percepção que o vença.

 

 

300 - Surpresas

 

Os pessimistas só podem

Ter surpresas agradáveis.

Pessimismo defensivo

É o daqueles que sacodem

Esperas pouco fiáveis,

A se preparar ao vivo

Para a possibilidade

De fracasso que os invade.

 

Expectativas mui baixas

Em difíceis situações

Têm o objectivo esperto

De optimizar o que encaixas,

De te adaptar aos baldões

Do que mal te corra, incerto.

É uma táctica optimista

Que estimular tem em vista

 

Toda a força positiva

Da atitude negativa.

 

Muda o medo, de malsão,

Numa benéfica acção.

 

 

301 - Inimigo

 

Grande inimigo de quem

Esmagado é pelo acaso

Não é quão grave lhe advém

Uma conjuntura a prazo,

Mas o temor aziago

Imaginário que pago.

 

No medo mora o inimigo

Que a atribuir ando ao perigo.

 

 

302 - Medíocres

 

Os medíocres estão,

Obviamente, no poder.

Sempre estirveram, então,

Dum modo ou doutro qualquer.

 

A democracia em vista,

Tanto a que é parlamentar

Como a presidencialista,

Como a ditadura, a par,

 

Tudo é mediocracia,

Mediania apagada

Em que o génio se entibia

E a moral sai alquebrada.

 

Então, quem é superior

Na santidade ou no crime

Tarde ou cedo há-de supor

Que se, incómodo, elimine.

 

Será sempre escandaloso,

Marginal do mal ou bem.

- É sempre contra que entroso

Qualquer porvir que haja além.

 

 

303 - Futebol

 

Vais ao futebol, aos treinos,

Só pelo jogo, exercício?

Na distinção entre reinos

Só lucrarás benefício,

 

Enquanto o jogo for jogo

Como outro jogo qualquer.

Quando, porém, pegar fogo,

Uma obsessão devier,

 

Se mudar em religião,

For maneira de existir

E de pensar o teu chão,

Então passarás a ir

 

Ao compasso do rebanho

E, perdido no exercício,

Mísero serás um anho

Pronto para o sacrifício.

 

 

304 - Inexorável

 

Toda a história duma ideia

É história duma tragédia:

A da inexorável teia

Dos eventos sobre a nédia

 

Hecatombe dos projectos

Que o homem sonhou por tectos.

 

Nossos ancestrais sorriem

Dos que a ideia mais vigiem.

 

 

305 - Condena

 

Quando se condena alguém

Por divergir, em quem julga,

Da crença que ele sustém,

Cabe ver que é que promulga.

 

Quanto tal condenação

Terá de amor à verdade

E quanto carrega então

De amor só da potestade,

 

Só do poder de julgar

Ou defesa enganatória

De autoritário ditar

Ou culto da própria glória…

 

Se fizermos esta pausa,

Rápido repararemos

Que isto é o que está sempre em causa

E amor ao vero não vemos.

 

 

306 - Abalar

 

A verdade da doutrina

Pode não ser entendida

Por quem ante ela se inclina,

Mormente quando, em seguida,

 

Ela lhe abalar as crenças

Em que alicerça o poder.

Logo lhe troca as sentenças

E uma mentira prefere.

 

Esta é a trágica memória

Que dos ideais conta a história.

 

 

307 - Doutrina

 

Quem pretende defender

Doutrina de fé correcta

Nem fé defende sequer

Mas apenas a concreta

 

Doutrina cujo respeito

Lhe garante a segurança

E o poder que toma a peito

Ser uma meta que alcança.

 

Da vida neste desvio

Se atola o fluxo do rio.

 

 

308 - Incómoda

 

Ama o homem a verdade

Quando ela se manifesta,

Quer o manifesto agrade

Ou não, no que então lhe empresta.

 

Incómoda pontifica

E quem a proclama objecto

De abjecção vai ser, que implica

Ódios atrair do tecto.

 

E a verdade impessoal,

Sempre vaga e desossada,

É a mentira que então vale,

Dura, a tolher-nos a estrada.

 

 

309 - Impacto

 

A felicidade tem impacto vivo

Na saúde e pode positiva ser

Na esperança activa de viver que activo,

Aumentando firme o limiar que houver.

 

A felicidade ou a saúde tendem

A ter um impacto positivo então

Na capacidade de lidar que rendem

Ante os compromissos que na vida vão.

 

E ser responsável do que aqui me ocorre,

Se feliz, saudável, mais alegre corre.

 

Então eficaz vou lograr ser e firme

Sempre que eu entenda ao que é vital abrir-me.

 

 

310 - Fado

 

O fado de cada um

Vive implicado no todo,

Como o implica, de igual modo,

Como tecido comum.

 

E a todo o racional ente

É conforme à natureza

Tê-lo então como parente

Que se cuida e que se preza.

 

É uma outra parte de mim

Que ato ao nó de meu confim.

 

 

311 - Repara

 

Repara que cada um

Apenas vive o presente,

Bem menos que tempo algum,

Pequeno infinitamente.

 

O resto, ou já se viveu

Ou será futuro incerto.

De cada o instante de seu

É mínimo, visto ao perto.

 

Mínimo é o canto onde vive,

Mínima a maior das glórias

Póstumas que o tempo esquive

Ao desgaste das memórias.

 

É devido à sucessão

Apenas destes pigmeus

Que mal nascem, morrerão,

Sem se vislumbrar sem véus,

 

Bem longe de conhecer

Alguém que é morto há já muito.

E pouco importa sequer

Outro ser o nosso intuito.

 

 

312 - Imortais

 

Supõe imortais aqueles

Que se lembrarem de ti

Com memórias a que apeles

- Que te faz isto por si?

 

Se morto, de nada serve.

Mas, se vivo, a tal penhor

Que a memória te conserve

A que serve dar louvor?

 

Será que é mesmo a vanglória

O fito de tua história?

 

E que, num sopro de vento,

Se esvaia, ao fim, teu intento?

 

 

313 - Objectos

 

Quando os objectos pareçam

Os mais dignos de confiança,

Despoja-os, nem que te impeçam

Pelo valor que os entrança,

 

Arranca-lhes a roupagem

De que se orgulham, impantes.

Orgulho é mentida imagem

E, quando crês que garantes

 

Aplicar-te ao que é mais sério,

É que então te mistifica,

Fácil te impõe seu mistério

E ao fútil em ti se aplica.

 

 

314 - Insólito

 

Tudo é mutável deveras,

Também é tudo habitual,

Não há que temer esferas

De insólito, nem sinal.

Os dois lados existentes

Serão sempre equivalentes.

 

 

315 - Acabrunharão

 

Nem futuro nem passado

Te acabrunharão a sério,

É o presente que a teu lado

Exerce em ti todo o império.

 

Minga o agora ao infinito

Se o circunscreves em si.

Erra o intelecto o fito

Quando cai no frenesi

 

De acreditar-se incapaz

De a sós o enfrentar veraz.

 

 

316 - Externo

 

Se um dado externo te aflige,

Ele não é quem produz

A turvação que em ti vige,

Mas o juízo que luz,

 

Que emites dele a respeito:

De ti depende apagá-lo,

Tal como tomá-lo a peito.

Se o que te provoca abalo

 

É de espírito um estado,

Que te impede de alterar

De ver o modo enganado?

Se é por não executar

 

Um desígnio desejável,

Por que não dobrar esforços

A fim de o tornar viável,

Em vez de aflitos escorços?

 

E se algo mais forte o impede,

Não te aflijas, não é tua

A culpa do que não cede

E que a perda traz à rua.

 

 

317 - Temer

 

Aquele que teme a dor

Há-de temer algum dia

Algum evento maior

Dos que o mundo propicia.

 

É já, de alguma maneira,

Ante o mundo, uma impiedade.

E a quem do prazer se abeira

A injustiça o persuade:

 

Há-de colher sempre à testa

Impiedade manifesta.

 

Em qualquer das duas vias

Nunca feliz te haverias.

 

 

318 - Contra

 

Aquele que peca, peca

Contra si próprio também.

Quem injustiça faz peca,

A si logo a faz, porém:

Torna-se, no fundo vau,

A si mesmo um homem mau.

 

 

319 - Anda

 

Tudo anda em transformação,

Tu não findas de mudar,

De perecer em função.

Da mesma maneira, a par,

Assim é com o disperso

E todo inteiro Universo.

 

 

320 - Terra

 

Em breve nos cobrirá

A todos a terra chã,

Depois transformar-se-á

Sem fim, da noite à manhã.

 

E dela os novos aspectos

Transformar-se-ão sem fim

Em inescrutáveis tectos

E estes noutros, sempre assim…

 

Ao considerar as vagas

Encadeadas das mudanças,

Na indiferença te apagas

Por quanto mortal entranças.

 

 

321 - Implora

 

Um implora nestes termos:

- Por favor, esta mulher!

Outro evita actos enfermos:

- De a cobiçar vou-me abster.

 

- Finde esta importunidade! -

É a prece dum, na procela.

E outro: - Que a necessidade

Eu nem tenha do fim dela!

 

Um não quer perder o filho,

Outro nem tremer à ideia

Quer de perder tal cadilho

Numa vida dele cheia.

 

E são os mais desprendidos,

Por dentro mais libertados,

Que podem riscos vividos

Enfrentar mais denodados.

 

 

322 - País

 

O país velho, medievo,

Embrutecido pelo medo,

Perpetuado no coevo

Costume atávico do credo,

 

Pujante, em força, sobrevive,

Revoluções calcando aos pés

De pensamento a que se esquive

Ou de política de viés,

 

De científica aventura

À descoberta de horizontes,

Tal como um magma, na textura,

Potente e lento arrasa as pontes.

 

Ele é o senhor incontestado

De terras, rios, absoluto,

De aldeias, vilas, do povoado,

Lugares, quintas, seu reduto,

 

Das almas todas hesitantes

Entre o anúncio da bondade

Que é divinal por uns instantes

E a maldição da eternidade.

 

O velho reino é beliscado

Pela oratória do porvir

Na pele apenas que há tocado.

E continua parvo a ir

 

Sujeito a gosto a toda a algema

Duma ignorância que procura

Esconjurar o fim que tema

Pelo feitiço com que dura.

 

 

323 - Agir

 

Um homem contrariamente

Pode agir ao que a moral

Lhe impetra ao afecto e à mente,

Mas quanto à fundamental

Lei que o Cosmos implemente

E que é sempre universal,

 

Como ir contra nunca tem:

Livre ali não há ninguém.

 

 

324 - Livre

 

Na livre população

A esperança pesa mais

Do que o medo do papão.

Mas se à força a sujeitais

É o medo, pelo contrário,

O móbil do querer vário.

 

A primeira tem o culto

Da vida que se lhe oferta;

Foge a segunda ao insulto

De escapar a morte certa.

Uma por si quer viver,

Outra acata obedecer.

 

Uma é livre, a outra, escrava.

A guerra assenta em domínio,

Escravos tem quem a trava,

Não, nos súbditos, fascínio.

 

Fora tudo é quase igual?

- Inverso dentro é o sinal.

 

 

325 - Paz

 

Se a paz for de servidão,

De barbárie, solidão,

 

Nada lamentável faz

Mais um homem que esta paz.

 

Decerto entre pais e filhos

Mais disputas e sarilhos

 

Há-de haver, de azedos travos,

Que entre um senhor e os escravos,

 

Mas não importa à família

Que a autoridade, em quezília,

 

De escravos seja domínio,

Sem de amor qualquer fascínio.

 

Não é paz, é a servidão

Que quer o poder na mão

 

Dum único governante.

Não existe paz no instante

 

Que é de guerra mera ausência,

Mas apenas na excelência

 

Da concórdia, férteis calmas,

Colheitas da união de almas.

 

 

326 - Tornar-se

 

Os homens, logo que libertos

Do vão terror por leve paz,

Irão tornar-se, não despertos,

Nem em ninguém mais capaz,

 

Antes se tornam, pouco a pouco,

Noutros selvagens, barbaria,

Tal como outrora o mundo louco,

E o que eram torna cada dia.

 

Em vez de seres mais humanos,

Civilizados, bem morais,

É da moleza nos enganos

E na preguiça que os vês mais.

 

Já não procuram sobrepor-se

Estes àqueles por virtude

Mas pelo fausto e luxo que orce

A mais poeira que os ilude.

 

Dos pátrios usos se desgostam

E os estrangeiros adoptando,

Não são aquilo em que hoje apostam,

Breve em escravos vão mudando.

 

E sempre a guerra principia,

De mão em mão armas passando,

Em quem por dentro se traía

E a tudo vem contaminando.

 

 

327 - Mote

 

O mote dos que ambicionam

Qualquer poder absoluto

Foi que os dons sempre os abonam,

Mantendo bens e produto

Da cidade sempre em mente,

Mas vistos secretamente.

 

E, quanto mais tudo encobre

Pretexto de utilidade,

Mais perigoso é o que sobre:

Mais a escondida verdade

É que a implantar tenderão

Eles sempre a escravidão.

 

 

328 - Alcance

 

Tenho sempre a sensação

De que há qualquer coisa ali

Mesmo ao alcance da mão,

Mas que está, mal eu a vi,

Sempre a escapar de raspão…

- É a Vida: que frustração!

 

 

329 - Céu

 

Apesar de ameaçador,

Sempre é estranhamente belo

Aquele céu de terror.

Como um desastre, atropelo,

Horrendo embora no efeito,

Pode assumir um trejeito

 

Que vai desdobrar-se em cena

De inenarrável beleza!

Um hotel em chamas pena

Alanceia na surpresa,

Mas que comoção invade

Quem lhe observa a majestade!

 

É uma a medida humana,

Outra, o mundo a que se irmana.

 

 

330 - Preocupo

 

Se me preocupo mais

Com tua felicidade

Que com os feitos finais

De aprenderes a verdade,

Mais com paz podre a fruir

Que com planos de porvir,

 

Mais com tua vida a andar

Que com as que se perderem

Se o plano acaso falhar

- Actos que de mim vierem

São os que os da escuridão

Mentores aguardarão.

 

Como, ante o sol, o luar

De quem é sombra de amar:

 

A nossa força, em verdade,

É a nossa fragilidade.

 

 

331 - Criam

 

Hão-de ser sempre os tiranos

Que criam seu inimigo.

Como receiam os danos,

Dos que oprimem o perigo!

 

Saberão que, tarde ou cedo,

Das vítimas incontáveis

Uma se erguerá sem medo

Com gestos irreparáveis

 

A ripostar contra a sina

De escravo a que se destina.

 

 

332 - Crenças

 

Novas crenças enfatizam

A vivência pessoal,

O interior priorizam,

Do imo o encontro em cada qual:

Muitas vezes não são mais

Que de Deus alguns sinais.

 

Acolhem quem desconfia

Das grandes religiões,

Do tradicional a via,

Da moral os aleijões,

Tamanha pompa e riqueza

Onde o escândalo só reza.

 

As novas crenças ofertam

Fuga ao frio ritual,

Da lenda infantil despertam,

Querem cunho pessoal,

Melhor a si se entender

O imo fundo ao percorrer.

 

São um rumo iniciático

E à vida dão senso prático.

 

 

333 - Único

 

De único Deus todos falam,

Só pode tal Deus ser um.

O rumo por onde abalam,

Certo para qualquer um,

 

Então é deixar fluir

As múltiplas expressões

Da fé que cada sentir,

Sem violência nem pressões:

 

Cada, ao ser com todos Uno,

É que então de Deus é aluno.

 

 

334 - Sofrem

 

Apenas sofrem os vivos,

Eles só de culpa se enchem

E de remorsos furtivos,

De perguntas que os preenchem

Para as quais, quão mais se aposta,

Mais iludida é a resposta.

 

 

335 - Trabalho

 

Se vem o trabalho à mão

Sempre em primeiro lugar,

Logo de perto a ambição

O segue, sempre a trepar.

O que é um triste comentário

Duma vida por fadário.

O trabalho é parte enorme

Daquilo que então se for,

Que cremos que nos conforme.

Rompendo com este ardor,

Se propositadamente,

Sinto-me um sobrevivente

 

À deriva, solitário,

Sozinho num mar imenso

De falta do bem primário

Da teia a que não pertenço.

É o castigo de invertido

Ter, afinal, meu sentido.

 

Prémio de consolação

É que, ao fim, tenho razão.

 

 

336 - Imo

 

Bom para o imo é parar

Para olhar de vez em quando

Para quanto perdurar.

E o que vem deste comando

 

É que quão mais velhos somos

Tão mais atentos olhamos.

E assim mais de nós dispomos

Quão menos nos agitamos.

 

 

337 - Memórias

 

Tipo de recordação

Sempre de algum modo é a fé.

Tuas memórias então

De estima dignas até

Hão-de ser, mesmo se moem:

Não deixes que te magoem.

 

Com tempo verás que são

O que a teus pés gera o chão.

 

 

338 - Difícil

 

É difícil aterrar

Onde nunca alguém esteve

Nem nunca pensou estar.

A confusão não é breve

Nem leve é de colmatar

O vazio que se deve

Por dentro, brusco, ir cavar.

 

Apenas o tempo cura

Com novos laços e afectos

O desnorte que perdura

Em quem do lar perde os tectos.

 

 

339 - Indivíduo

 

O indivíduo vive só,

No elevador, no trabalho,

Na rua, do vento ao pó,

Nos estádios, no serralho…

Vivemos sós, na ilusão,

A meio da multidão.

 

 

340 - Frágil

 

Um eu frágil um autor

Não será da própria história,

Não tem metas nem fulgor,

Nem de objectos memória.

 

Dentro em si não intervém

E perpetua a miséria

Interior vida além

De seu labor negra féria.

 

Impulsivo, intolerante,

Exige de si demais

E dos outros adiante:

Não tem justeza jamais.

 

 

341 - Romance

 

És rico emocionalmente

Ou falta o pão da alegria?

O belo escreve contente

O romance permanente

Da vida que te anuncia.

 

Escreves com todo o alcance

De teu dia este romance?

 

 

342 - Desafios

 

Desafios geram medo,

Não, a emoção da aventura.

E a novidade é arremedo

Do pânico que a inaugura.

Escravos somos, moldados

De estímulos programados.

 

 

343 - Dentro

 

O teu maior inimigo

Não está fora de ti,

Dentro é que mora o perigo.

Tu podes tornar-te aí,

Sem nada te ser atroz,

O teu mais violento algoz.

 

 

344 - Vantagem

 

Podemos acelerar

Tudo no mundo exterior

Com vantagem, sem parar:

Transportes, computador,

 

Produção industrial,

O fluxo de informação…

- Nunca, porém, por igual,

Duma ideia a construção.

 

 

345 - Educação

 

A educação nos ensina

A gerir máquinas, casa,

Profissão que nos destina,

Indústrias que nos apraza,

- Mas nunca, em nenhum momento,

A gerir o pensamento.

 

 

346 - Reeditar

 

Reeditar os arquivos

Da memória é registar

Os belos eventos vivos

Sobre os velhos e em lugar.

Se estes forem negativos,

Logo os logro aligeirar.

Com tempo, irão positivos,

Como me convém, findar.

- Tais são os trilhos esquivos

Onde ao fim vou-me encontrar.

 

 

347 - Grave

 

A mais grave solidão

Não é onde me abandonam,

Como julgamos em vão

Contra os que de nós se adonam.

 

É aquela em que nós da mão

A nós nos abandonamos,

Pinha sem qualquer pinhão

Caída de vez dos ramos.

 

 

348 - Apagarmos

 

Apagarmos o passado

Não nos é jamais possível,

Apenas será credível

Reeditá-lo em todo o lado

 

Ou construirmos janelas

Que alicercem, no desvão,

Com as vistas paralelas,

Toda uma nova visão

 

Do mundo que houver em frente

E do que nele é presente.

 

 

349 - Maiores

 

Os maiores inimigos

Moram cá dentro de nós.

O mal sai do imo aos postigos

E é o que nos destrói a voz

 

E os outros vai destruir

Depois de nos atingir.

 

 

350 - Descobre

 

Descobre esperança

Na desolação

E conforto alcança

Na atribulação,

 

Nas perdas, coragem

E, com fantasia,

Do caos na imagem,

A sabedoria.

 

 

351 - Regada

 

Uma espiritualidade

Regada a serenidade

 

A paz social trará,

O amor estimulará,

 

O prazer todo enriquece,

- Cresce a vida como messe.

 

Porém, se tombar no abismo

De qualquer radicalismo,

 

Do autoritarismo extremo,

Será discórdia que temo,

 

Promove o ódio feroz,

- Gera a angústia mais atroz.

 

Entre ambas qual é que vale

É minha escolha final.

 

 

352 - Energia

 

A energia interior

É contínua, irrefreável.

Pensar não é de propor,

Que escolher não é viável:

Quer eu queira quer não queira,

Impõe-se de igual maneira.

 

Posso gerir pensamento

Mas jamais interrompê-lo.

Escapa-me, íntimo vento,

Impõe-me fatal seu selo.

 

 

353 - Extrair

 

Ter qualidade de vida

É utilizar ferramentas

Para da perda sofrida

Ganho extrair que fermentas,

 

Do perdão extrair força,

Dos calhaus do desespero,

Segurança que reforça

As leiras do que mais quero.

 

Extrair experiência

Dos vales negros do medo

E alegre, infinda potência,

Da dor terrena sem credo.

 

 

354 - Livros

 

Temos livros aos milhões

Da ciência mais precisa

Mas não rasgamos portões

De luz na parede lisa

 

De dois dos mais importantes

Fenómenos da existência:

A vida e a morte hiantes.

Vivemos, por excelência,

 

Por trás de quaisquer impérios,

Em redoma de mistérios.

 

Os enigmas do universo

Todos se escondem na história

Do ser humano, no verso,

Numa escondida memória:

 

Por trás de todos os credos

Somos caixa de segredos.

 

 

355 - Mendigam

 

Alguns que têm fortunas

Mendigam pão de alegrias.

Se à cultura os coadunas,

Jamais à calma os alias.

 

Tendo fama mundo fora,

São da solidão parceiros.

Falharam o alvo: demora

O lar onde eram inteiros.

 

 

356 - Palavras

 

Poderão contaminar

Só umas palavras a vida.

Vendo-se alguns rejeitar,

Paralisam em seguida.

 

Noutros estas rejeições

São trampolim de crescer:

Sofrendo embora aleijões,

Pode no exterior só ser,

 

Continuando no interior

Sem nunca os terem vencido.

Fruem por isso o vigor

Dum fogo nunca extinguido.

 

E tudo porque as palavras

Semeiam tudo o que lavras

 

E serão de joio ou trigo

Conforme de ódio ou de amigo.

 

 

357 - Materna

 

Os jovens como as crianças

Passarão mais de dez anos

A aprender, nas contradanças,

Da língua materna arcanos.

 

Nunca aprendem a falar

Deles mesmos propriamente

E muito menos, a par,

Consigo, interiormente.

 

Somos todos ignorantes

De nossos próprios instantes.

 

 

358 - Rouba

 

Aquele que é desonesto

Rouba a si próprio primeiro

Da tranquilidade o gesto,

Da serenidade o inteiro

Gosto a ceia repartida,

- O amor rouba pela vida.

 

 

359 - Alcance

 

Cada ser humano é um mundo

Para ser bem explorado,

História de agro fecundo

A lavrar-se em cada dado,

Um solo de húmus e rio

De cultivo ao desafio.

 

Por isso é tão fascinante

A visão de instante a instante.

 

 

360 - Caixa

 

Nossa individual história

É uma caixa de segredos

Arquivada na memória,

Da pessoa com os credos.

 

Uma personalidade

Não é por si só autora

De todo o evento que a grade

Na lenda que comemora.

 

Somos todos construídos

Tanto como construtores

De nossos rostos vividos,

Pegadas de mil autores.

 

 

361 - Vulgar

 

Quando pensas e registas

Qualquer vulgar pensamento,

Logo mudas tuas pistas,

Mesmo por fugaz momento.

 

Pensar sempre é transformar-se.

O problema a nos propor

É que, costure ou esgarce,

Pode ser para pior.

 

Nunca, porém, qualquer muda,

Por ser muda, pior é,

Senão, que ninguém se iluda,

Nem havia mundo ao pé.

 

 

362 - Píncaro

 

Muitos que o píncaro atingem

Intelectual, financeiro,

Não tocam, mesmo se fingem,

Nenhum píncaro altaneiro

 

Na qualidade de vida.

Têm tempo para engodos,

Não para quanto os convida

A fruir, do amor aos modos,

 

Nem para aqueles que amarem.

Perdem sempre a singeleza

Quando fundo se atolarem

No activismo que os despreza.

 

Mendigam, no pão da mesa,

Por um pouco de alegria,

Mendigos que o mundo preza

No luxo da moradia,

 

No belíssimo escritório…

- Que mendigas cada dia

Da emoção no consultório,

Quando a pressa se esvazia?

 

 

363 - Lazer

 

Temos a tecnologia

De lazer desenvolvida,

Como ninguém a veria

Outrora em nenhuma vida.

 

Porém, não desenvolvemos

Na mente e na educação

Como esconjurar os demos,

Como em nós próprios ter mão,

 

Como, enfim, nos transformarmos

De modo a irrigar qualquer

Emoção que suportarmos

Com a emoção do prazer.

 

 

364 - Postura

 

Toda a discriminação,

Comum no mundo actual,

É desumana tenção

De postura irracional.

 

A dor duma rejeição

Sempre é das mais destrutivas,

Induz auto-negação

Na existência que tu vivas:

 

Em ruptura ante os demais,

Desligado, nada és mais.

 

Depois disto fica à solta,

Mortífera, só revolta.

 

 

365 - Povos

 

Vivemos em povos livres,

Mas jamais tantos escravos

Houve com cuja dor vibres,

Servos do agro da emoção:

De ansiedade os pregam cravos

E de preocupação

 

Com o amanhã ignorado.

Prende-os a impulsividade,

O medo dissimulado,

Timidez, intolerância,

Fera irritabilidade,

Stresse, indómita ganância…

 

- Mal gerimos a vontade,

Escravos da liberdade.

 

 

366 - Crianças

 

As crianças raramente

Fruem duradoiramente

 

De brinquedos, roupa, objectos…

As vivências dos trajectos

 

São hoje sempre fugazes.

A qualidade que trazes

 

Pouco importa ao que consomem:

O prazer que dali tomem

 

Da quantidade é que houver,

Emoção pronta-a-comer.

 

Tudo a correr, não desfio

Contemplação, desafio,

 

Nem lugar a descoberta

- E a vida então não acerta.

 

 

367 - Contas

 

Alguns têm palacetes,

Contas bancárias, jardins,

Mas não têm nos bufetes

Como contemplar cetins

 

De flor prolongadamente,

Incapazes de no chão

Rebolar alegremente

Com crianças pela mão…

 

São, com dinheiro no banco,

Miseráveis. Quem é rico

Se com ele nunca abanco,

Dele bem longe me fico?

 

 

368 - Vive

 

Quem for mais contemplativo

E muito bem-humorado

Vive melhor e é mais vivo,

E mais vida tem logrado.

 

Ser alguém negativista

E mal-humorado não

Resolve o problema em vista,

Não nos muda a negridão,

 

Mas pode, de facto em vias,

Abreviar-nos os dias.

 

 

369 - Contemplas

 

Se tu contemplas o belo

Hás-de sempre ficar jovem,

Do tempo embora o atropelo

As rugas que em ti se movem

 

Sulque pelo rosto plácido.

Se não contemplas, bem podes

Cirurgia ao corpo flácido

Plástica fazer, que acodes

 

Ao que já não tem remédio:

Vais envelhecer então

Onde não deve haver tédio,

- No terreno da emoção.

 

 

370 - Admiradores

 

O vero mestre não quis

Admiradores servis

 

Que uma popularidade

Lhe aumentem em quanto grade.

 

Quer indivíduos que o amem,

Que em redor quentes se acamem.

 

Não quer, pois, a servidão,

Mas o humano coração.

 

 

371 - Registo

 

O registo da memória

Não vem da vontade humana,

É uma automática glória

Que involuntária dimana.

E não vai ser apagada,

Impositiva, à chegada.

 

 

372 - Encanta

 

Só não se encanta da vida

Quem tem vida sufocada,

De preocupações fendida,

Em activismo atolada,

 

E não logra discernir

Já nada além da cortina

Dos problemas que sentir,

Prisão onde se amofina.

 

 

373 - Gere

 

Se não gere nem aquieta

O seu pensamento, então

Seu cérebro toma à mão

Protegê-lo da maleita:

Desliga-o, na evocação,

Feito um oco sino e vão.

 

 

374 - Perdoar

 

Sem perdoar o papão

Do passado eclodirá

Do presente em todo o chão

E o porvir controlará.

A vingança sem abalo

Do inimigo é perdoá-lo.

 

Perdoar não é ignorar

Mas antes compreendê-lo.

Se o compreendes, a par,

Do perdão lhe impões o selo.

Se perdoas, dentro em ti

Morre ele e nasce outro ali.

 

Caso contrário, o inimigo

Dormirá sempre contigo.

 

 

375 - Nasceste

 

Tu nasceste vencedor.

Vencer não é não cair

No erro e falha: é enganador.

Vencer é ver o estertor

Da limitação e agir

 

Para corrigir a rota.

Vencer é não desistir

E atingir do cume a cota.

 

 

376 - Quenquer

 

Quenquer que só mundo físico

Tenha em saber rigoroso

Terá sempre um saber tísico,

Um saber sempre morboso:

 

Não sabe o sabor da reza

Nem o encanto da magia,

Perde ao poema a beleza,

Perde o canto à cotovia.

 

 

377 - Independente

 

Ninguém verificação

Independente requer

Do tempo que além fizer:

Se alguém disser que é Verão,

 

Aceitam o testemunho

Sem pôr quaisquer reticências.

Tudo o que tiver o cunho,

Nos sentidos, de evidências

 

Não requer prova a ninguém.

Um uso doutros sentidos

Quem descobrir, pois, além

Dos cinco dantes vividos,

 

Não sente a necessidade

De provar e de testar,

Feito cego a atravessar

Campo de minas na herdade.

 

E não terá paciência,

Com quem não tem tal emprego,

De responder-lhe à insistência

Para que volte a ser cego.

 

 

378 - Procuram

 

Procuram significado,

Sequiosos, para a vida,

Substituto malogrado

Da santidade perdida

Que metas erigiu tais

À geração de seus pais.

 

Procuram-no então na droga,

Política, misticismo,

Na seita de acaso em voga

Ou num qualquer messianismo…

Longe do leito do rio,

Ao fim tudo é mais vazio.

 

E às vezes uma palavra

Bastava para regar

E fertilizar a lavra,

Tal noutro tempo e lugar.

E eis que a santidade à vida

De novo ângulo convida.

 

 

379 - Certeza

 

Uma certeza absoluta

Fica reservada à Luz,

Não ao homem cuja luta

A falha mortal traduz.

 

Resta-lhe, enfim, a esperança

E agir em conformidade

Com a consciência que alcança

Dum vislumbre de verdade.

 

 

380 - Desatenção

 

Tudo tem muita importância:

De desatenção o instante

Faz que da sombra a ganância

Mais próxima fique, impante.

 

Cada pequena cedência,

Em si própria irrelevante,

Da Luz nos tapa a evidência,

Logo a apaga num instante.

 

 

381 - Medo

 

 

As pessoas assustadas

Não falam, têm demais

Medo nas ruas caladas,

 

Pedem protecções reais.

E, se falharem então

Protecções convencionais,

 

Correm à superstição

Ou confiam nos instintos,

Voltam à religião,

 

A organizada nos plintos

Ou as mais que houver à mão…

Se se lhes quebram os cintos,

 

É do abismo a escuridão!

 

 

382 - Inventa

 

O que inventa e mente horrores

Tenta que dele a palavra

Vívida seja de humores,

Dramática, que escalavra

O mais que seja possível,

Para o falso ser credível.

 

Aqueles que contemplaram

O vero rosto do mal

Sempre em geral acabaram

Reduzidos, afinal,

A falar banalidades

Com que a ninguém persuades.

 

A pomba nunca tem jeito

De à víbora impor respeito.

 

 

383 - Mudança

 

A mudança e a incerteza

A mente detesta mais

Que qualquer outra fraqueza.

 

Rejeita-se, em termos tais,

Frequentemente a esperança

E a ajuda, por mais reais,

 

Preferindo-se o que entrança

Em nós mágoa e dor finais

A uma provável mudança.

 

Tomamos, pois, por divisa

Quanto ao fim nos fossiliza.

 

 

384 - Guerra

 

A guerra sempre existiu,

Que a guerra emana dos povos,

Não do Estado que a feriu

Nem dos militares novos,

Nem do capital patrão,

Nem doutro interesse vão.

 

A guerra sempre começa

Com o cacete, a pedrada,

A garrafa em que tropeça

O pé incauto, a cabeçada,

Com a bomba incendiária

E outra intolerância vária.

 

A guerra sempre se acende

Com qualquer motim na rua,

E a minha rua o aprende

Sem cuidar se é falcatrua.

Não finda da guerra o pano

Até o derradeiro humano.

 

Porém, como a guerra eterna

Se nos mostra inevitável,

Também surge de luz terna

Um raio que é irrefragável,

Um raio que é o da esperança

De paz onde o porvir dança:

 

- É que escolho eu a vertente

Onde semeio a semente.

 

 

385 - Pior

 

O pior é ver o mal

E saber que homens honestos

Não fazem nada, afinal.

São desta agonia aprestos

Bem mais que qualquer derrota

Com que a vida se conota.

 

 

386 - Cegos

 

Cegos por irrelevantes

Medos, como atordoados

Pela riqueza e poder,

Defensores hesitantes

Da luz traem, enevoados

Por mil razões de não-ser,

 

Todas indignas e vis,

Sem muitos deles sequer

Se aperceberem, senis,

Da guerra que os envolver.

- E eis como, no abismo fundo

Nos vai resvalando o mundo.

 

 

387 - Momentos

 

Há momentos em que a história

Da humanidade é mudada.

Tenta o cristão da memória

Ter, no futuro, apagada

A integral sabedoria

Que a dele não firmaria.

 

Nesta luta vai banindo

Deste mundo toda a forma

De mistério que, luzindo,

Contrarie dele a norma,

Que não se adapte, extremosa,

Dele à fé religiosa.

 

Inchado então deste orgulho,

O pão fura de gorgulho.

 

Morremos a prazo à fome,

Não há fada que nos tome.

 

 

388 - Lutamos

 

Este mundo é para todos,

Sejam quais forem os deuses

Ou de Deus sem nenhuns modos.

Lutamos contra os reveses,

Contra quem os represente,

Não por aqui vir assente

 

Um deus outro e não o meu,

Mas por virem incendiar,

As terras despir ao léu,

O que tenhamos roubar…

- Nunca um imo se escraviza,

Só um falso deus tiraniza.

 

 

389 - Nem

 

Nem deuses nem deusas há,

Apenas as formas são

Que a humanidade dará,

No terror da escuridão,

Ao que não será capaz

De compreender assaz.

 

 

390 - Medo

 

O medo é a pior fatia,

À mercê da má fortuna

Logo nos colocaria.

Mesmo a fera atacaria

Quem com ele se coaduna,

Mas foge do corajoso:

- Cheira a quem é perigoso.

 

 

391 - Longe

 

Nunca compreenderemos

O que é ser outrem na pele.

Longe de que o aceitemos,

Fingimos que, mal apele,

Logo o entendemos de pronto,

Nunca ao limite há desconto.

 

Sobretudo com crianças,

De fraco não dou sinal.

A ignorância nestas franças

É, todavia, total.

Mas como é que, ante a fraqueza,

Vou dar de fraco a certeza?

 

Com todos a vida inteira

Ignoro, então, a fronteira.

 

Pago uma fatal factura:

O erro, assim, perene dura.

 

 

392 - Repetitiva

 

A maneira de viver

Repetitiva, sumária,

Pouco interessante ser

Há-de por ser tão primária.

 

É a cobertura do bolo

E jamais o bolo em si

Que leva as gentes a pô-lo

Na mesa, num frenesi,

 

E é o que mais leva a comê-lo:

-Tem mais sabor se for belo.

 

E à beleza quem a preza

Enche a vida de surpresa.

 

 

393 - Glória

 

A vida merecedora

De ser vivida o que a torna

Não é a glória que cantora

Musa ecoe, paga à jorna,

Dos guerreiros matadores,

Das pilhagens e das dores.

 

Antes é o gado cuidado

Mais os cultivados campos,

Filhos felizes ao lado

A chupar os figos lampos,

Em torno ao fogo a estalar,

Ao centro alumiando o lar.

 

Deus pode ser bem terrível

Vendo os filhos ameaçados.

Mas preferirá, credível,

Ver-nos construir, prendados,

Bem mais do que nos olhar

Mutuamente a nos matar.

 

 

394 - Quem

 

Quem és tu? Tens a certeza

De que és aquilo que pensas

E não somente o que reza

Outrem de ti nas sentenças?

 

Se outra coisa houveram dito,

Se doutrem foras criado,

Por igual e sem conflito

Não creras ser outro dado?

 

Ninguém de si sabe ao certo

Quão longe mora ou quão perto.

 

 

395 - Berço

 

O berço de nascimento

Mui pouca importância tem,

Que de nascer no momento

Sempre iguais os homens vêm

E sem nada para a vida,

Pobre ou rico, igual medida.

 

Todos somos bebés nus

E chorões como os demais,

Seja o filho dum lapuz,

Dum nababo que invejais…

 

E o fim, por igual, sumário

Tudo iguala no sudário.

 

Por que conta tanto, ao meio,

Da diferença o enleio?

 

 

396 - Nuvem

 

Quando a nuvem ameaça

Há-de vir a tempestade.

Mas não sabes quando a traça

Da chuva a vir nos invade,

Nem sequer a intensidade

Da fúria com que ela grassa.

 

Com o tempo assim vai ser

De nosso mundo interior,

Com as marés que há-de ter,

Ciclos de frio e calor.

Que final se lhe há-de impor

Ninguém nunca há-de saber.

 

 

397 - Estúpidos

 

Correrá estúpidos riscos

Quem só quer notoriedade.

Entre acção sem obeliscos

Mas eficaz de verdade

E a que apenas o engrandece

É sempre esta a que obedece.

 

Como todo soa a oco,

Não mais o quero ou convoco.

 

À margem fica da vida

Em tudo o que o mais convida.

 

 

398 - Arriscar

 

Quando gente e corações

Não têm mais a perder,

Terão todas as razões

De arriscar tudo em qualquer

Mudança que os realinhe,

Por pior que se adivinhe.

 

O desespero o que alcança

É a derradeira esperança.

 

 

399 - Faca

 

Quando é que a faca de peixe

É faca de peixe apenas?

Só quando nela não deixe

Gravadas as nossas penas,

As iniciais da família,

A história duma vigília...

 

- Doutro modo esconde tomos

Que escrevem o que nós somos.

 

 

400 - Dono

 

Ninguém é dono de nada,

A propriedade é ilusão,

De quaisquer bens na coutada,

Desde o corpo ao coração.

 

Quem perdeu alguma coisa

Que tinha por garantida

Aprende, se nela poisa,

Que nada é seu nesta vida.

 

 

401 - Humano

 

Pouco importa conhecer

Tudo de nós a respeito,

O ente humano não é feito

Só para sábio se ver,

 

Também para arar a terra,

A chuva aguardar que a cerra,

 

Plantar trigo em sementeira

Depois de gradar a jeira,

 

Colher o esperado grão

E cozer o próprio pão.

 

 

402 - Dualidade

 

Somos a dualidade

De quem deseja a alegria,

A paixão e a aventura

Com que a vida nos invade

E quem se escravizaria

À rotina que perdura,

 

À vida familiar,

Ao planeado e cumprido.

Sou caseiro e doidivanas

O mesmo corpo a habitar:

Vivo a lutar, incontido,

Em mim com todas as ganas.

 

 

403 - Emoção

 

Vive seu próprio desejo

Cada humano, é seu tesoiro,

Emoção de cujo ensejo

Fogem alguns com desdoiro,

Porém geralmente traz

O que importa perto atrás.

 

É uma emoção que meu imo

Escolheu e tão intensa

Que pode, em quanto me arrimo,

Contagiar sem pertença

Tudo e todos, com fervor,

Que me andarem em redor.

 

 

404 - Assusta

 

Quando mostra a vera face,

A dor assusta deveras,

Mas é sedutor enlace

Quando veste, pelas eras,

O traje do sacrifício

Ou de renúncia exercício.

 

Por mais que a gente a rejeite,

Encontra sempre maneira

De estar com ela, um enfeite

De a cortejar sempre à beira,

A levá-la, singular,

Nossa vida a partilhar.

 

 

405 - Imaginação

 

Nada de quanto estimula

A imaginação é mau.

Hoje em dia, quanto bula

Com a escola e a grande nau

 

De instituições sociais,

Parece andar apostado

Em matar sonhos vitais

À nascença, em todo o lado.

 

Pretendem que é de ajustar

Os miúdos ao real

Mas o que andam é a castrar

A fantasia, afinal.

 

As artes, literatura,

Filmes, banda desenhada

São ervas que da fundura

Erguem pedras da calçada,

 

Estalam todo o cimento

Que empareda o mundo inteiro.

- Não sou um caniço ao vento

Com que alguém brinque ligeiro!

 

 

406 - Divindade

 

Em todo o tempo e lugar

A divindade aqui mora:

Não há como a retirar

Da natura onde ande agora

Para enclausurá-la em redes

De livros nem de paredes.

 

 

407 - Questões

 

As questões fundamentais

Da vida jamais terão

Qualquer questão, dentre as tais,

Respondida em conclusão.

Mesmo assim, de pé tremente,

Podemos seguir em frente:

 

- O que mais nos gratifica

É a migalha que se bica.

 

 

408 - Aprisionados

 

Por que somos infelizes?

Porque aprisionados vamos

De nossa história às matrizes.

 

Todos nós acreditamos

Que o objectivo da vida

É um plano seguir dos ramos

 

Ao tronco e à raiz perdida.

Ninguém pergunta se é o seu

Ou se é doutrem a medida.

 

Juntam sob o próprio véu

Experiências e memórias,

Ideias dum qualquer céu

 

Que doutrem se fez de glórias.

E então ninguém aguenta:

Esmagado em tais vanglórias

 

Ninguém já seu sonho tenta.

 

 

409 - Estive

 

Já estive antes por aqui

E a fonte que em nenhum guia

Aparece que já li

Muito mais me importaria

Que tudo o mais que aqui vi.

Porque é linda, tem magia,

Por acaso a descobri

- E andou-me ligada um dia

À história que aqui vivi.

Tem, então, algo de mim,

É minha parente afim.

 

 

410 - Conversa

 

Anos de conversa meia

Sem ver a realidade

Por trás de qualquer ideia:

Só existe esta de verdade

Quando qualquer mão pragmática

Venha pôr a ideia em prática.

 

 

411 - Caminho

 

O caminho espiritual

É paciência de esperar

E não me decepcionar

Com o que encontro, afinal:

- Então me vem ensinar

A vida, nalgum sinal.

 

 

412 - Aventura

 

Todos somos diferentes,

Com qualidades, instintos,

De prazer próprias sementes

E de aventura elmo e cintos.

 

Porém a comunidade

Sempre acaba por impor

A colectiva verdade,

Modos de prazer e dor.

 

Ninguém pára a perguntar

Por que tem de ser assim…

Logo adoecemos a par:

- Nenhum eu sou eu em mim.

 

 

413 - Seguir

 

Gostar de seguir as leis

Não faz o comportamento,

Mas medo que o castigueis

Se for ao sabor do vento.

 

A forca foi abolida

Lá fora, na praça ali,

Mas cada qual tem-na erguida

Deste modo dentro em si.

 

 

414 - Maioria

 

Estará no Paraíso

Acaso e não reconhece,

Como, aliás, acontece

À maioria sem siso.

 

Procuram o sofrimento

Nos mais alegres lugares

Porque cuidam que o alento

Não merecem, de larvares.

 

E então à felicidade

Ninguém mais os persuade.

 

 

415 - Controlar

 

Tentar controlar o mundo

É estupidez rematada,

É crer seguro, no fundo,

O que não segura nada.

 

Acaba por nos deixar

Todos bem mal preparados

Para a vida que brotar

Pejada de inesperados.

 

Pois, quando menos se espera,

Um terramoto a montanha

Abate na Primavera:

Todos perdem, ninguém ganha.

 

Um raio mata a floresta

Que acaba de renascer

No Verão da grande festa

A ir na aldeia ocorrer.

 

Ou finda a vida dum homem

Num acidente de acaso,

E das mágoas que o consomem

Finda a conta, finda o prazo.

 

Tentar controlar o mundo

É estupidez rematada,

É crer seguro, no fundo,

O que não segura nada.

 

 

416 - Camponês

 

O camponês não entende

Deveras como é importante.

Um garfo à boca subtende,

Em qualquer lugar distante,

 

Que alguém só logra fazê-lo

Graças a gente de nada

Que trabalha, sua o pêlo,

Dia, noite e madrugada,

 

Rega a terra do suor

Daquele corpo cansado,

Cuida o gado com fervor,

Paciente com o fado.

 

São mais precisos ao mundo

Que quem mora na cidade

Mas comportam-se, no fundo,

Tal lixo que se degrade.

 

 

417 - Rumo

 

Muitas vezes o caminho

Do rumo à felicidade

Talvez queira outro cadinho

Que não as leiras da herdade

Dum juízo arrumadinho,

Da recta mentalidade

Do mundo alarve e mesquinho

Mas que aparenta verdade,

Sensatez a ser-nos ninho,

O mundo que nos rodeia

E que engana volta e meia.

 

Da felicidade a chave

Jaz na fundura enterrada

Do inconsciente onde grave

Os marcos de nossa estrada.

 

 

418 - Objecto

 

Se a verdade só respeitas,

Não respeitas grande coisa:

Dois e dois, quatro que ajeitas

Na pedra de tua loisa.

Muito pouco, com efeito,

Objecto é de teu respeito.

 

As normas, os sentimentos,

Os valores, as opções

São mui frágeis construções

E flutuantes intentos.

É tudo, afinal, mui prático

E nada de matemático.

 

O respeito não o temos

Pelo que está demonstrado

E que em conta só teremos

No que houvermos planeado.

O respeito é pelo gosto

Do que em meu imo é proposto.

 

 

419 - Anseiam

 

Onde nada for normal

Todos por normalidade

Anseiam, como essencial

Sentimento que os invade.

 

É o que ajuda toda a gente

A desempenhar a diária

Tarefa adequadamente:

Vão conferindo sumária,

 

Sã previsibilidade

A uma vida definida

Por incerta identidade,

Tão de imprevisto é tecida.

 

 

420 - Intérmina

 

Não deve demorar muito,

Muitos andam a voltar

Duma intérmina viagem

Onde, mesmo sem intuito,

Levados a procurar

Foram só falsa bagagem,

De que nem a melhor peça

A ninguém mesmo interessa.

 

Agora todos dão conta

De que tudo é falsidão.

Mas o retorno é com dor,

O tempo fora desconta:

É estrangeiro e perde a mão

O que da terra se for.

Vai levar tempo a encontrar

Os amigos do lugar

 

E os amigos que partiram,

O recanto onde as raízes

Se nos prendiam ao chão,

Cantos que outrora nos viram,

De meu tesoiro as matrizes

Que longe busquei em vão.

- Porém isto, haja o que houver,

Por fim há-de acontecer.

 

 

421 - Ensinar-te

 

Ao ensinar-te, aprendi,

Aprendi, mas de verdade:

Quando guia me assumi

É que o rumo consegui

Para minha identidade.

 

 

422 - Torcida

 

Uma torcida sem fé

Leva uma equipa a perder

Num jogo que iria até

Vitorioso acaso ser:

- Assim, no jogo da vida,

Será fé nossa medida.

 

 

423 - Difícil

 

O mais difícil momento

É de eu ver o bom combate

Mas sem voar dele ao vento,

Sem trocar o mau intento,

Sem me impor que o justo acate.

 

Ora, quando isto acontece,

O conhecimento volta-se

Contra o que o tem e o esquece.

A colheita desta messe

É que o diabo então solta-se.

 

 

424 - Espada

 

Antes de a mão manejar

A espada, localizar

 

Deverá seu inimigo

E saber, ante o perigo,

 

Como com menor abalo

Irá poder enfrentá-lo.

 

A espada dá o golpe apenas

Mas a mão, antes das cenas,

 

Está já vitoriosa

Ou perderá, desonrosa,

 

Ali de antemão vencida:

- Esta é sempre a lei da vida.

 

 

425 - Consciência

 

Com a consciência da morte

Ousaria muito mais,

Mais longe a tentar a sorte

Nos cotios mais banais:

 

Findaria a compreender

A verdade inquestionável:

- Não tenho nada a perder,

Já que a morte é inevitável.

 

 

426 - Ponto

 

Numa luta, o ponto forte

Em que me irei apoiar

Para a parede vergar

Àquilo que for meu norte

 

Será sempre o meu presente.

Sempre me apoio melhor

(Morando aí meu amor)

No que agora opero em frente,

 

No ágape que contiver

A partilha de meu pasmo:

A vontade de vencer

E vencer com entusiasmo.

 

 

427 - Treparei

 

Treparei sem nunca ao certo

Poder prever onde apoio

Pés nem mãos, longe nem perto.

Dana o discípulo o joio

 

De imitar passos do mestre

E nocivo torna o guia.

Quando cada qual se amestre,

Tem visão sua da via,

 

Maneira própria de ser,

De com as dificuldades

Com jeito seu conviver,

Tem glórias e necedades…

 

Ensinar mostra-te apenas

Que é viável, que é possível.

E aprender é tornar plenas

As vias do que é vivível.

 

 

428 - Pescar

 

Tentei pescar mas o peixe

Não mordeu no meu anzol.

o entusiasmo logo, em feixe,

Perdeu-se, que isto em mim bole,

Pequena coisa de nada,

Tal se fora toda a estrada.

 

De nadas a singeleza

Sem a menor importância

Dentro em nós mata a grandeza

De existir, a final ânsia.

Por causa da pequenez

Perdemo-nos no entremez.

 

Ora, como não sabemos

Que o entusiasmo é maior

E à vitória empresta extremos,

À poeira o vamos expor

Sem ver que, se ele findar,

A vida perde o lugar.

 

Culpo o mundo da derrota

Ignorando que fui eu

Quem deixou fugir a frota

Do mar vivo no escarcéu,

A força arrebatadora

Do entusiasmo que devora.

 

 

429 - Representa

 

Representa o inimigo

Sempre o nosso lado fraco:

De dor física o perigo,

Querer a glória a pataco,

Desejo de abandonar

Por valor em nada achar…

 

O inimigo entra na luta

Por saber que há-de atingir-nos

No ponto exacto em disputa

Onde o orgulho discernir-nos

Não permite, antes faz crer

Que invencível é quenquer.

 

Nós na luta a defender

O lado fraco andaremos

Enquanto o inimigo quer

O lado ignoto que temos

E que sempre em nós alcança

Nossa maior confiança.

 

E findamos derrotados

Por ocorrer o que não

Devia a quem tem cuidados:

Deixar sempre que o malsão

Inimigo, em minha jeira,

Da luta escolha a maneira.

 

 

430 - Campos

 

O mundo mudou deveras

Desde os campos de batalha,

Hoje o lugar das esperas

É dentro de nós que calha:

O bom combate é travado

Em nome dum sonho grado.

 

Quando ele explodiu em nós

Na juventude, tivemos

Muita coragem na voz

Mas luta não aprendemos.

Findámos por aprender

Após muito esforço haver.

 

Já não temos é coragem,

Então, para combater.

Contra nós muda a focagem:

Passamos então a ser,

Sem mais tecto nem abrigo,

Nosso pior inimigo.

 

Diremos que nossos sonhos

São difíceis, de infantis,

Eram fruto de medonhos

Sobre as vidas erros vis…

- E os sonhos matamos cedo

Do bom combate por medo.