O TRILHO IRREGULAR
Segunda
Os casados segunda vez,
Segunda vez se divorciam.
Não é fado este entremez
Que de tão má cara aviam.
Vem a maleita
De que usam a mesma receita:
Se igual passo dão,
Ao mesmo beco chegarão.
- É tão difícil mudar o rumo
A fim de a vida ganhar sumo?
Mulher
Qualquer mulher nasceu para ser magoada
Em todo o mundo e muito mais.
Quem mete pés à estrada
Para jamais ser assim, jamais?
O problema aqui
É que cada um tem de começar por si...
Ora, ninguém confessa
Que faz parte da peça.
Discernir
Discernir entre o bem e o mal...
Mas entre um e outro há tantas variáveis, tantas!
Tolhido em meu canto,
Sei lá bem, no fundo, afinal,
Em que lado te implantas
Ou me implanto.
Num mundo tão incerto,
Nem sequer andando sempre desperto.
O absoluto, mudo,
Escapa-nos sempre em tudo.
Assumir
Assumir riscos
Ajuda a triunfar.
Anos de esforço, fracasso, frustração
E só depois, enfim, alguns petiscos,
Como que a experimentar
Finalmente, a consumação,
Desde que tenha aprendido
A lição:
Correr o risco, sim, mas bem medido,
Senão...
Relação
Uma relação amorosa:
O momento mágico
Virando tantas vezes trágico,
Poesia feita prosa...
Esperar a ver se dura?
Não é hora de passividade:
Ou lutas por consolidá-la na realidade
Ou murcha de secura.
Se requer paciência, sê paciente,
Se requer acção, toma a iniciativa.
Fá-la funcionar, viva,
E, se for de a inventar, trata do que a invente.
Então terá feitiço:
Ora, o que queres é isso.
Fizeram
Fá-los arrepender-se
De tudo o que te fizeram
A ti mais a teus irmãos,
Até ao derradeiro que pelo mundo se disperse.
Que teu mundo verse
Os arrebóis que nasceram
Ao darem-se as mãos.
Mas que os inimigos nunca se apercebam
De que és tu,
Que nunca concebam,
Que lhes seja tabu,
Bêbados de quanto bebam,
Que a Força és tu.
Sê esperto,
Aprende a ganhar de dia para dia,
Sempre discretamente.
Apenas então o deserto
Em seara converto:
De repente
É energia.
Com tal arte
Nunca mais ninguém volta a dominar-te.
Ponderar
Na guerra, ponderar nos efeitos, só depois.
Porém, pensar depois não vale nada:
Um evento não são dois,
Nunca se refaz a caminhada.
O já feito, feito está
Irremediável,
Só a morte é acolá
Equiparável.
Mede, pois,
Que noites antecedem os arrebóis.
Invejado
Ser invejado, intrigado,
É o efeito inelutável
Do êxito na gesta alcançado.
E mais se inigualável
For o respeito e a admiração
Dos que o idolatram do coração.
Dos medíocres a intriga
Sempre com o valoroso briga.
O insigne apenas à sombra
Repousa ma alfombra.
Mal aflore à luz,
Logo tudo em tiroteio se traduz.
Daí que ao silêncio tão amiúde
Se grude.
Supérfluo
Tudo termina na morte,
É supérflua, pois, a vingança:
Esforço inútil, desta sorte,
Deveras nada alcança.
Um dia todos serão apenas ossos na poeira,
Eu, tu, o santo, o criminoso,
A realidade inteira
No abismo tenebroso.
Perante os céus,
Vingança, só de Deus.
Blasfémia
De blasfémia o pecado
É sempre paradoxal:
Que deus tão rebaixado
Se deixa turbar por humano palavreado,
Afinal?
Reverência não merecera, em nenhuma hora,
Se deveras fora
Tal.
Quem inventou tão enorme sandice
De espiritualidade nunca entendeu nada que se visse.
Derradeira
A derradeira esperança
Que nos garante a sobrevivência:
A crença que alcança
A íntima evidência,
Bem funda dentro de nós,
De que não estamos sós.
É o que, no risco extremo, abre a porta
A um Além que nos exorta,
Quer venha de dentro de mim,
Quer rompendo a fronteira sem fim:
O meu grito
Ecoa sempre no Infinito
E na resposta indubitavelmente Alguém
Então vem.
Fronteira
A longínqua fronteira escolhida,
Eis o meu alvo.
Todavia, não é possível salvar a vida
De quem não quer ser salvo.
A escolha é minha:
Ou acolho ou repudio a vinha,
Da vindima com o transporte
Que me couber em sorte.
Se acolho, então sim, depois,
Já não serei um, seremos sempre dois:
É que o caminho
É mais vivo do que eu próprio adivinho.
E, nas conjunturas-limite,
Personifica-se para que, calmo, O fite.
Cultura
Numa cultura consumista,
Fruto da ganância de multinacionais
Cuja pista
É o lucro, sem atender a nada mais,
A paisagem é miserável,
Dia a dia mais alienante,
Vazia de significado identificável
E logo, adiante,
Confirmando o rumo estólido,
Sem qualquer objectivo sólido.
É sempre em rebelião
Que nos vamos restituindo o chão.
É um diálogo impossível,
O único, porém, vivível.
Limite
No limite da exaustão,
Foca-te no passo à tua frente.
Na meta, não,
Que é por demais exigente.
Então,
Mesmo na falta de abrigo,
A meta virá lentamente ter contigo.
Nativo
O povo rapanui,
Nativo da Ilha de Páscoa,
Já pelo mar não flui,
Nem por terra acende qualquer áscua.
De vez extinto,
Nem uma imagem lhe pinto...
Construíram as estátuas moai.
Para rolarem cada uma,
Palmeira a palmeira toda a floresta cai,
Até
Que, de pé,
Não resta nenhuma.
Com as palmeiras findaram os ninhos
E as aves,
Findaram-lhes os barcos nos mares, ora maninhos,
E o pior dos entraves:
- Findou-lhes a comida
Que das aves e barcos era sortida.
Vida extinta, até à derradeira,
Após a extinção da palmeira...
Que lhes passou pela cabeça?
Ninguém protestou
Nem avisou
Daquele escolho onde a vida tropeça?
Ilha de Páscoa, planeta inteiro,
Quem nos abre os olhos para o escolho derradeiro?
Quem o evita,
Para que a história se não repita?
Nunca
Nunca queiras ser
Aquilo que não és.
E não porque outrem to impuser,
A requerer-te à classe alta os rapapés,
Ou do país dominante
À bota imperante...
Não.
Aquilo que sonhas
É o que ainda não és então,
O que de ti não disponhas
Ainda.
A lonjura de ti a ti,
Uma vez finda,
Aí és o que és, aí.
Sonha, pois, com força bastante,
Poderás obtê-lo adiante.
Contra ventos e marés,
Não aceites nunca ser quem não és.
Porto
O céu não é porto seguro
Para alguém
Que tem
Uma perícia que apuro e desapuro
Conforme de espírito o estado
Que lhe é dado.
Porto de abrigo,
Só para quem é o mesmo na calma e no perigo.
Queres
Queres a democracia?
Mas, se tens hoje a ditadura,
Fá-la-ás ditatorial.
Não há futurologia
Mais segura:
É um pesadelo fatal.
É que a meio duma canção
Não se pode mudar uma nota:
A primeira alteração
Logo outra requer
E, mal se anota,
Não há como não percorrer
A melodia
Inteira:
- E uma nova cantoria
Se abeira.
A nova nação independente
Do colonialismo
Repete, renitente,
Daquele o mesmo explorador abismo,
Apenas do mando o centro
Migrou de fora para dentro.
E tudo recomeça
Na sorte avessa.
Porque tudo tem a ver com tudo,
Ao mudar uma nota,
Tem de mudar todo o conteúdo
Da cantoria que nos talhar a rota.
Senão, é só fachada
E, por trás, a mesma estrada.
Na ponte
Para o horizonte
Não leva a nada.
Importa
Não deves escrever
Para a outrem agradar,
Nem sequer
Para te agradar a ti.
O que importa é te exprimires:
Tudo o que encontrares aí,
Na funda chávena de teu diário pires,
O mistério da lonjura a propalar
Da intimidade quente de teu lar
- É que és tu a ires.
Procurando
Se andas procurando a Lua,
Aprende
Que jamais a encontrarás.
Correr, porém, pela rua
Rende
Que ficas menos para trás.
Ao fim de três milhões de anos,
Afinal,
Levámos até lá os nossos planos:
- Começou a tornar-se real!
Contra
O problema do tecto
É que, quando nos cai em cima,
Logo a pergunta nos arrima:
- Viver contra nós próprios é correcto?
Tecto da família, da moral dominante,
Da ordem estabelecida,
Da regra por hábito cumprida,
De nossos usos e costumes,
Das crenças onde me implante...
Sou comido por tantos destes carnívoros cardumes
Que urge questionar:
- Não haverá
Para ser eu próprio nenhum lugar
Aqui ou acolá?
E vale eternamente a pena
Viver mascarado para sempre em cena?
Inimigos
Quando se vêem inimigos por todo o lado,
Nasce a lógica do extermínio
Para o domínio
Do conflito desatado.
Então nunca se vê doutrem o fascínio
Do avesso vislumbrado.
Ora, há sempre um pouco de lua
Deste outro lado da rua.
Nunca
Nunca perdoamos
Às boas
Pessoas
Que enganámos.
Isto é o inferno
Que a culpa
Nos inculca
Eterno.
Na vida e na morte,
Com menoscabo,
Assim damos cabo
Da sorte.
Todos
Somos todos aparentados,
Uns dos outros comungamos,
O mesmo ar respiramos,
De igual água dessedentados,
Da mesma terra comemos:
- Dentro uns dos outros vivemos...
O que não podemos é querer
A vida um dum outro viver,
A vida de quenquer...
Quem através dos outros vive
Já não vive, não, sobrevive.
É mais um que da própria vida
Por ele poluída
Se esquive.
Um morto-vivo de pé
É o que ele é.
Fantasma
De que mal ouvimos a débil asma.
Arrepia
O cemitério por onde talha a via.
Antes
A vida onde mergulho
É uma elevada meda
Armada com as canas salvas do entulho.
E das alturas antes da minha queda
Vem sempre o orgulho.
O degrau de segurança da humildade
Quando é que de vez nos persuade?
Pobres
Os pobres andam demasiado
Ocupados a trabalhar,
A manter-se, esquivos,
Meramente vivos,
Para algum, abnegado,
Se preocupar
Em se preservar
Após a morte,
Por muito que o conforte.
Como previsíveis
Fantasias,
Desaparecem aos milhões, invisíveis,
Todos os dias.
Que importa, na morte, a vaidade?
Apenas não é reconfortante...
Adiante,
Que a hora de laborar nos invade,
Agrade ou não agrade!
Queres
Queres o carro topo de gama,
O relógio de diamantes,
O palácio da fama...
- É o engano de todos os instantes.
Queres é respeito e admiração
E cuidas que virão com o dinheiro.
Ilusão
Por inteiro.
Quando vês o carro grande nunca pensas:
“Que grande é dele o dono!”
Ao invés, de ti ditas as sentenças:
“Se o tiver em meu abono,
Que grande dirão
Que sou eu, ao tê-lo à minha mão!”
Como tu, ninguém
Liga ao dono do carro que se tem.
O que todos querem é respeito
E é a humildade,
Não a vaidade,
Que lhe presta preito.
Valor
Não há maneira de aprender
O valor do dinheiro
Sem sentir o poder
Da falta dele, leveiro.
Ensina a distinguir
O imprescindível do desejável
E a saber gerir,
Maleável.
Aprendo a apreciar o que tenho,
A reparar o estragado,
A procurar as oportunidades com empenho,
O mundo saldado.
É a ferramenta
À sobrevivência atenta.
Maioria
A maioria pensa:
“Quando conseguir poupar,
Que espectacular!”
E, mal poupa, muda a sentença
Rumo a um novo patamar.
Vira a lauda
E continua a perseguir a própria cauda.
Nossa adaptabilidade
É maior do que o imaginário nos persuade.
Deve ser maior o nosso objectivo
Do que apenas o dinheiro vivo.
Aprende
Aprende a mudar de ideias,
A descartar velhas crenças,
A substituí-las, por inteiro ou a meias,
Pela verdade de novas sentenças.
É duro, mas imperativo.
Não te sintas mal por mudar de arquivo.
O poder de mudar de ideias, afinal,
Quando estamos errados na pendência,
É um sinal
De inteligência.
Ganhas
Quanto ganhas não determina
Quanto tens.
Quanto tens não determina
Em que bens
Teu apetite culmina.
Com menos aprender
A viver
É a maneira eficiente
De ganhar o controlo presente
Que hoje apuro
Sobre o meu futuro.
Prisão
O mundo que outros desenharam
Para o próprio benefício
É uma prisão para a maioria,
Onde desde sempre sangraram
O sacrifício
Que a vida lhes imporia...
- Escapar dela
Pela adequada saída
É que é a verdadeira sequela
Da vida.
Assegurar
O mundo é imprevisível,
Ninguém pode assegurar o dia vindoiro:
Não somos donos do destino,
Inextinguível
Agoiro
Em perene desatino.
Daí que, em momentos de crise,
Procuremos um letreiro:
“Por aqui deslize,
A escapar do atoleiro!”
Que alguém nos ajude,
Pois não vemos como não nos afogar no açude.
- Melhor, porém, para todos nós
É se, afinal, anoto
Que na matéria tenho sempre alguma voz
E voto.
Lavra
Quem lavra a história bendita ou maldita
Duma terra
É quem
Nela habita,
Mais ninguém,
Pois é quem do porvir os portões descerra,
Embora de tal se tenha esquecido
Ou se tenha do contrário convencido.
Não haverá nunca mais ninguém
A quem atribuí-lo, porém.
Em tuas mãos, em ti,
Está da terra inteira o bisturi.
Dinheiro
Com dinheiro compram a vontade,
Desde o camponês ao presidente.
Mas porque é que o dinheiro há-de
Ser o valor primo,
Tão contundente
Lá no cimo?
Seguindo-lhe a rota,
Atinjo a fonte da corrupção:
Uma social
E mundial
Organização
Cuja pedra angular conota:
Primeiro eu, segundo eu, terceiro eu...
E assim indefinidamente,
A talhar o inferno em frente
Em tudo em que, afinal, bem podia ser o céu.
Actos
Meus actos afectam o meio
E aqueles de que me rodeio.
Como os actos doutrem têm repercussão
Na lavra em que arroteio
Este meu chão.
Muitos só têm andado a receber
O impacto do que outrem quer
Sem que a este importe minimamente
Se afecta milhões ou toda a gente.
A crise mundial obriga-nos a tomar a rédea
Para mudar de rota
E de tudo o que importa tomar nota,
A fim de pôr fim à tragédia.
Que ninguém se conforme com a ideia
De que alguém decidiu por nós a teia
E não nos resta outra opção
Senão acatar ordens, desde então!
Ao invés, depois disto, o porvir
É só ir clarificando o caminho a seguir
E rasgá-lo em frente,
A bem de toda a gente.
Ninguém
Que ninguém fique à margem,
Feito Bela Adormecida,
Em que os mais o sarjem
Em sangueira desmedida!
Que ninguém esteja sem estar,
Ninguém escute sem ouvir,
Nem intervenha sem intervir
Em nenhum tempo nem lugar!
Findou a presença
Passiva, letárgica, incapacitada...
- A libertadora sentença
É que chegou a madrugada.
Encheu-nos
O mundo civilizado
Encheu-nos de obrigações:
As lesões
De nossa chaga do lado.
Não nos dão bem-estar
Nem aos demais.
A que título preservar
Tal caminho de sinais?
Importa outros descobrir
Por onde sem lesões possamos ir.
Onde não fruamos planetariamente em conjunto
É falido o rumo, podre o assunto.
Conjuntura
A conjuntura a mudar
Foi gerada
Doutrem por má decisão?
Então,
Poderás também modificar
Dos demais a vida transviada
Por tua acção.
O que opera num sentido vário
Opera também no contrário.
Vivemos num mundo interligado,
Cada qual parte dum todo
Integrado
Com relação entre si,
De tal modo
Que, onde um estiver,
Todos estão ali,
Todos e quenquer.
Doutro modo, do mundo a maquinaria
Operar não poderia.
Causaram-te um dano permanente,
Um dano permanente causaste contra alguém?
És um ser humano, como toda a gente,
Efeito dum outrora que até hoje vem.
Se alguém foi capaz de fazer mal,
Então alguém é capaz de o curar.
Nada é permanente, afinal,
No rumo de navegar:
É só rodar o leme
Para a aurora que no horizonte já treme.
Transformar
Transformar urgentemente o mundo
Requer
Mais que ampla participação social,
Mais que afastar do poder
Um governo infecundo,
Trocando-o por outro que, afinal,
É apenas de supor
Acaso um pouco melhor.
A meta apenas a alcança
Uma generalizada interior
Mudança.
Transformação
A impor
A contenção
De tudo o que for
Criminoso, mormente a generalização
Do anterior
Padrão
Que nos trouxe à beira do abismo
Dum mundial cataclismo.
E depois a mudança de consciência
Com nova maneira de pensar,
A remodelar
Todo o agir,
Para, a seguir,
Inovar toda a vivência.
Só tal
Gigantesco e lento
Fermento
Fermentará toda a massa mundial
Do nosso comportamento.
Gigantesca paciência
De que nem há memória,
Gigantesca persistência
E no fim, gradualmente,
Para toda a gente,
Mais e mais, um pouco de glória.
Escolher
Escolher novamente,
Corrigir,
Organizar diariamente
O meu ninho de agir
Com um ovo cuja pinta
Tem uma forma distinta
De bulir.
O modo de reordenar
Marca a diferença
Entre o que a viver hei-de estar
E o que desejar
Que vença.
Via
Escolher
É renunciar
Quanto eleger
Com que ficar.
Irei na via que me apetece,
A outra desaparece.
Ao mudar de direcção,
Mudo a história de rumo
Por minha mão.
Qualquer alternativa, porém,
Se mantém,
Não falece
Nem esquece
Quando da fruta o sumo,
Na via escolhida,
Trair, em resumo,
A esperança nela investida,
Poderei sempre retomar a utopia
Abandonada
E fazer dela nascer o dia
A cada nova jornada.
Creias
Não te creias infecundo,
Num deserto em que nem chuva recolhas.
Somos nós que vamos criando o mundo
Com nossas escolhas.
Sem nos apercebermos,
Andamos vivendo a história
Que outros escreveram para nós vivermos,
Deles mera vanglória.
Só mudamos
A partir do momento em que disto conta damos.
Fabricante
O fabricante de armas quer vender,
O que muito inimigo
Requer,
Muita zona de conflito,
A fim de cada qual buscar abrigo
Contra o mundial atrito
Comprando a pistola
A que a busca de segurança o imola.
A partir deste momento cumpre o guião
Que aquele prescreveu,
Não o seu,
Doravante tornado uma ilusão.
Vivemos num mundo unificado:
Tudo o que fere uma parte,
O todo fere,
Como, por outro lado,
O que benefício a um acarte
A todos o confere.
Quão mais rápido isto entendermos,
Mais rápido, para a maioria,
O desejado reajustamento tomaria
Termos.
Competir
Para competir terei de me separar:
Compito contra, não a par
E muito menos com.
Perderei o apreço, a admiração
E o respeito
Por aqueles a quem devia prestar preito.
Com aqueles que aprecio,
Com quem partilho afecto
Não entendo aquele desvio
Que no fim me apaga o calor deste tecto:
Custa-me a ver
Que não perco
Aquilo que lhes oferecer
E que não merco.
Há quem cuide que ao dar amor
O perde
E aguarde o favor
Que das dádivas herde.
É o princípio da corrupção
Proveniente da separação.
Tudo era
Muito diferente
Se se convencera
De que, ao dar a toda a gente,
O que der acolá
A si próprio também dá:
Dá um bem e recebe a alegria
Da festa que desencadearia,
Mais os afectos e laços
Dos abraços
Que são da felicidade
Sem idade
Os indeléveis traços.
Detém
Um por cento da humanidade
Detém noventa e nove por cento da riqueza.
Noventa e nove, por muito que desagrade,
Tem um por cento: é miséria, pior que pobreza.
O mais grave, porém,
É que aquele centésimo de ricos se mantém
A competir
Para que o centésimo de bens que os pobres sustém
Lhes extorquir.
- Quem nos retira a venda
Para impedir
A derradeira contenda?
Só a redescoberta da gratuita prenda,
Afinal,
Nos pode evitar o colapso final,
Com a planetária festa que nos renda.
Inviável
Donde vem o medo,
A insegurança
Que nos leva ao credo
De que é inviável qualquer mudança?
Perante o mundo em que tudo muda,
Que é que me mantém parado,
Ao que me gruda
Agrilhoado?
Sou cadáver adiado
De quanto vida além me iluda.
Dono
O facto de eu estar marcado,
Separado,
Só tem o enguiço
De eu acreditar nisso.
De facto, na verdade,
Nalgum recanto,
É sempre uma falsidade
Que só dura por enquanto.
Se me separo
Para me juntar a quem sofre,
Quando reparo,
Perdi a chave do cofre:
Quer me agrade
Ou não,
Não há unidade
A partir da separação.
O passado,
Por mais cogente,
Não é senhor de nosso estado,
Não é dono do presente.
Resta sempre uma franja,
Onde poderei cultivar a minha granja.
Moramos
Todos moramos aqui, no planeta.
Só de nós depende que a estadia
Completa
Seja leve e prazenteira, dia após dia,
Ou antes morosa
De tão dolorosa.
A festa que nos agrade,
Em vez da desilusão,
Advirá de cuidarmos da unidade
E não da separação.
Nossa consciente
Pessoal transmutação,
Em interligação
Do Cosmos com as forças,
Automaticamente
Beneficia todos por quem o mundo torças.
Sou vítima das circunstâncias.
E daí?
Tenho em mãos o bisturi
De mil outras mais instâncias.
Requerida
É requerida coragem
Para extinguir violência, dor,
Mentira, traição,
Agressão...
- Da triagem
De nosso interior.
Mais fácil é repetir
À exaustão
Histórias de denegrir
E purificá-las
Com eternas cabalas:
“Sou violento
Porque em criança
Fui batido a cem por cento
Como vulgar piso de dança”;
“Mulherengo sou,
Que de meu pai venho que tal me inculcou”...
Nada, porém, justifica
A perversão que teu gesto pontifica:
- Tua margem de liberdade
Para onde é que se te evade?
Livres
As livres nações,
Para controlarem milhões e milhões,
Criam medos
Que sejam da ordem os segredos.
“Viajem à vontade
Mas reparem no perigo
Do país que o fanático degrade,
Onde o terrorista encontre abrigo.”
“Ah! E lá fora tudo são doenças,
Vírus e parasitas
São as sentenças
Das visitas.”
“Temos liberdade de pensamento:
Até o racista sentimento,
A escolha discriminatória
São um momento
De nossa glória.
Geram ódios e divisões
Do país entre os cantões?
E então?
Pelo menos nunca articularão
Acções colectivas nem movimentos
Dos interesses implantados contra os fundamentos.”
Índio, negro, judeu,
Árabe, imigrante,
Qualquer minoria, até um vírus, lhes cai do céu
Para a aproveitarem no instante.
São o inimigo a vencer
Pelo governante que nos “tem de defender”.
Risco
Ante o risco de perder a vida
Todos ficam confinados
Do lar à parede comedida,
Em toda a volta barricados.
Não há mais outra paisagem,
Outro cheiro, outro sabor,
Outra forma de dançar numa viagem,
De amar e celebrar seja o que for.
Doutras formas de ver o mundo
Já não me inundo.
Ora, todos aprendemos
Conforme aquilo que vemos,
Sentimos
E fazemos.
Amar ou odiar
Se vem da fundura dos limos,
Também
Vem
Da luz dos cimos.
Daí que valorizo
Do mundo inteiro a cultura
Ou antes a ridicularizo.
Farei valer com desenvoltura
Os direitos humanos
Ou, ao invés, os piso.
Cuido da terra os danos
Como ser vivo em grande escala
Ou perco a vida a contaminá-la.
Do risco o medo
É o nosso eterno degredo.
Crianças
Desde muito cedo
As crianças aprendem o medo:
Podem ser raptadas,
Assassinadas,
Exploradas,
Utilizadas,
Enquanto até o lar se afoga,
Como vendedores de droga...
Terão de ter cuidado, de todos os modos,
Com tudo e todos.
Que caminho, então, sem abalo,
Para ao medo superá-lo?
É falar de nossos medos sem receio,
Enfrentemo-los,
Estudemo-los.
Ali, do mundo no meio,
Mostremo-los:
- Então o que se alcança
É a viabilidade da mudança.
Sou
Sou como sou por desejo de pertença,
Por escolha, lealdade:
Um afecto pela terra de nascença,
Pela mãe que me gera, idade a idade...
Desta raiz abraço o mundo
E dele me fecundo:
A nacionalidade
Cega
Nega
A universalidade,
Presa ao ninho de partida,
Sem mais voo de saída.
Mudar
Quero mudar e não mudo,
Mas me havia transformado...
- É que ao passado me grudo
Do outro lado.
Mudo na pele a aparência,
Mas a carne que há por baixo
Aceito mudar, em permanência,
Quando o meu canteiro sacho?
É fácil à superfície
O que lhe cobro,
Mas na fundura a imundície
Em que me redobro,
Isso requer outra intenção...
- E, no fundo, não é a minha, não!
Somos
Somos de nosso pensamento o reflexo
Vivo,
Como um povo é, conexo,
O do pensamento colectivo.
Ora, o pensamento que arvoramos
Fomos nós que, mais ou menos arbitrariamente,
O fabricámos
Para cada um e toda a gente.
Fica, pois, à nossa mão
Mantê-lo ou não:
Ou se justifica, fruto maduro, ou tem bicho
E é melhor deitá-lo ao lixo.
Ilusão
A ilusão de óptica comprova
Que me posso convencer do que não existe
Como realidade nova
Que despiste.
Não poderei basear
Meu conhecimento de coisas e pessoas
Em imagens que delas alcançar,
Pois nem sempre, por mais que sejam boas,
Serão verdade
Que persuade.
O mundo é ilusionista,
O real por trás da capa
Sempre me escapa,
Por mais que apure a vista
Ou qualquer outro sentido
Envolvido.
Por mais longe que lance
Minha linha de pesca,
A pescaria fresca
Que alcance
Mostra sempre a quanto mar alto,
Afinal, eu falto.
História
A história de mim que quero contar,
O perfil de mundo que vejo,
O que pretendo recriar,
O que projectar,
Para que fim tudo isto almejo?
É que, embora eu mal acredite,
O mundo vai seguindo clandestino o meu palpite.
Vícios
Os vícios emocionais
São muralhas
E nelas as falhas
São os portais
Que terei de transpor
Se algum dia quiser ser de mim senhor.
Senão, ao me repetir
Eternamente,
Deixei de ir
Em frente,
Nunca mais serei semente
De porvir.
Serei tronco caído na corrente,
A tolhê-la permanentemente,
Até a corrente me partir.
Em estilhas então irei seguir,
Mal serei gente.
Alcoólico
O alcoólico em recuperação,
Ao sair da reabilitação,
Os hábitos e amizades muda
Ou, se a eles se gruda,
A saída
É para uma recaída.
Nisto, como em tudo,
Nada muda se não mudo.
O homem novo
Requer renascimento a partir do ovo.
Hábitos
Maus hábitos pôr de lado,
Que difícil desafio!
O costume enraizado,
Ao findar-lhe o fio,
Finda a emoção
Que nos produziu
E o corpo protesta
Em vão
Contra o fim daquela festa.
Por este pendor inclinado
Não somos mais do que qualquer drogado.
Tendemo-nos
Tendemo-nos a fixar na imagem
De nossa carência emocional.
O ecologista que goza a romagem
Ao parque municipal
Pode tanto ouvir o violino
E relaxar
Como, ao invés, vigiar
O homem que passeia o cão sem destino,
A se assegurar
Que atrás não larga, em nenhum momento,
Qualquer excremento.
Tende a vigiar, por íntima compulsão,
O dono do cão.
Se a adrenalina tiver alta
E o cão defecar
Sem o dono as fezes apanhar,
Logo aquele salta
Enfurecido,
Interpelando o dono do cão,
Então,
Deveras tão enraivecido
Que até pode passar
Do insulto à agressão
Sem hesitar,
Tal é a paixão.
E depois guardará na cabeça
O porco cãozinho
Mais do dono a má peça
Dum mundo que é de porcaria um campo maninho.
Ei-lo no ponto
Acabado
Em que se sentirá pronto
A ficar indignado,
Em qualquer tempo e lugar
Em que de adrenalina vier a precisar.
E nem se dará conta
Do círculo vicioso,
Tamanho para ele próprio é o gozo
Que disto apronta!
E o violino
É que acolá
Continuará
Sem atingir o destino...
O outro lado
Cada vez finda menos abordado.
Todos
Todos coleccionamos
O que nos fez mal.
Ignoramos,
Afinal,
Que tudo podemos reformular
A partir dum contrário lugar:
Reordenemos a memória daqui para a frente
De modo a produzir emoção diferente.
Basta centrá-la no pendor
Que, no meio do mal, nos serviu melhor.
No mínimo, ali aprendemos
O que definitivamente não queremos.
Seja qual for do resto o tom,
Isto, pelo menos, é bom.
Relembra
Relembra o momento da grande humilhação:
- Que baque no coração!
Relembra o momento do amor intenso:
- Que baque no coração, quando o repenso!
Por ambas as vias
É o coração que atrofias
Ou irradias.
Uma emoção
O oprime,
Outra o expande.
Aquela que o desanime
Leva a que mais lento ande,
Diminui-lhe a pressão,
O encéfalo é menos irrigado,
Como resultado.
Ao invés,
No coração apaixonado,
Tudo flui, da cabeça aos pés.
A cara rosada,
O olhar brilhante,
O corpo que relaxa na empreitada
Mais empolgante.
Quem quer andar deprimido
Em tempo de escolhas de sentido?
Em tempo de escolhas decisivas
Quem quer o cérebro irrigado por umas gotas esquivas?
Imagem
Se a imagem da memória,
Em vez de posição debilitada
Me der a de força,
A glória
De entrada
É que me esforça,
A varrer o que me impede o desenvolvimento
Para o enfrentamento
Do presente
Com o adequado para ir em frente.
Mensagens
Ouvimos
O coração
De verdade?
As mensagens que emitimos,
À força de repetição,
Devêm realidade,
Para o bem ou para o mal,
Com peso igual.
Que porvir
Então decidir?
Logra
Quem não logra evocar
Nem um momento feliz,
Terá de imaginar
O que quer e o que quis.
Ao pai tirano
Imagina que o abraças
E o congraças
Sem dano.
Ele não o merece
Sequer.
É por ti, o filho, que o irás fazer
E acontece.
É que o observador
Determina aquilo que for
Observado.
O sentimento evocado
É que irá curar
Ou causar dano.
Crer é criar
E à caravela da vida armará de novo pano.
Aprisionado
Aprisionado no passado
Não poderei ver a luz.
Só desligado,
O novo estado
Me conduz,
Com nova sintonia,
A vislumbrar a luz do dia.
Ao palor da madrugada,
Inauguro então nova jornada.
Mas terei de ajudar a liberdade
Ou a passada mantém-me atrás da grade:
Revejo antigas ligações
Com traumáticas imagens,
Retenho o que importar em meus balcões
E o resto deito fora nas triagens.
Reordenar
Reordenar o trauma que me lesionou
Requer meu sonho:
Nele me proponho
Levantar voo
Para a ilha
Do mundo de maravilha.
O trauma me bloqueou
E fiquei aí atado,
Prisioneiro do passado.
A memória continua lá
Mas não acedo a ela.
Repito erros para aqui, para acolá,
Obcecado com a sequela.
É urgente a libertação,
Alterar a sintonia,
Sonhar a nova emoção
Onde apenas noite havia,
Trocando-a por aquela onde tudo refulgia.
Entre passado e futuro
Que diferença haveria
Se tudo inauguro
A pensar, sentir e agir
Da mesma maneira a seguir?
Sonhemos outro mundo,
Que assim já o vislumbramos, lindo,
A vir vindo,
Lá do fundo!
Sonhemos
Sonhemos, que a imagem que nos vem à mente
Apura permanentemente
Inesperadas ligações
Que redundam noutras emoções.
É uma oportunidade
De desvendar qualquer nova possibilidade
De resolver convenientemente
O desafio do presente.
Prisioneiro duma imagem
Ou lembrança,
Nenhuma nova ligação na viagem
Se alcança,
Só a contínua repetição,
O eterno senão.
Canteiro
Sonhemo-nos melhores
Num mundo melhor,
Seja cada imagem um canteiro de flores
A ressumar amor.
Cada uma vai-se reflectir
Na comunidade, a seguir.
A curto ou longo prazo,
Cada escolha a um mundo novo vai dar azo.
Poderoso
O poderoso sabe que na política,
Quanto mais alguém precisa,
Mais convém ter mão somítica,
Que maior concessão o carente lhe disponibiliza.
Aproveita-se da miséria
Para reafirmar o poder que lhe paga a féria.
Enfraquecem a vontade duma pessoa
Que se compra e vende, mercadoria à toa.
Apenas o emocionalmente doente
Vota no partido que o despreza,
Que lhe espezinha os direitos, indiferente,
Como de caça a uma presa.
Que é que leva, equivocado,
Ao voto menos indicado?
O mesmo que a um cônjuge buscar
Que nos irá maltratar, anular, dominar.
O mesmo que nos leva a repetir
Histórias dolorosas
Sem nunca mais redimir
As estradas pedregosas.
Quando compactuamos com o sofrimento
Como é que há-de mudar o vento?
Equidade
Porque nunca tem
De equidade sinal,
Ninguém pode estar bem
Se o vizinho estiver mal.
Mundo norte, mundo sul,
Um só deles monopoliza da vida o azul?...
Mundo leste, mundo oeste,
Em qual há direito humano que preste?
Depois há guerra, há terrorismo...
- Como é que não vi a tempo o abismo?
O cataclismo pode vir de muitas fontes.
Oxalá que a principal,
Entre todos os fatídicos horizontes,
Não tenha humano sinal.
País
Sonhemos,
A dormir ou acordados,
Com o país que é sempre belo!
Despertemos,
Por uma vez bem despertados,
Do pesadelo!
Ponhamo-lo a correr,
A caminho de vir a ser.
Mobilizamos
Quando memória e desejo convergem,
Aí mobilizamos a vontade.
Só quando quem é e o que quer nalguém emergem,
No rumo certo correr há-de.
Quando alguém cuida que o motor
É o dinheiro,
Cuida dele com fervor
O dia inteiro.
Lista aquilo de que precisas:
É com dinheiro que o obténs?
Para ser feliz, do que visas
Que é que compras a vinténs?
Repara no que te importa
E nenhum dinheiro compra nem suporta.
Se o dinheiro tivera tanto poder
Como se pretende ele ter,
Qualquer milionário poderia
Exorcizar da morte a hora e o dia.
O dinheiro não muda o Sol nem a Lua,
Nem a soalheira ou a invernia
Da tua rua...
Nem sequer da trajectória da Terra a correria
Pode travar. Só por fantasia...
Pode mudar horários de trabalho,
Negociatas celebrar com a nação,
Espalhar drogas a retalho
Ou esmagá-las a malho,
Acabar com a vida numa explosão...
- Mas por dinheiro ninguém vai saber
A hora destinada para morrer:
Pode comprar a vontade do cidadão,
A do Universo, não.
Planetária
Sofremos efeitos devastadores
Por ausência
De planetária consciência.
Demoram os fervores
Efeitos a surtir,
Das mobilizações
De milhões,
Mundo fora a reagir.
Em vez de unificado,
No mundo vive cada qual para seu lado.
Continuamos a insistir
Em ver-nos como separados,
Mal lembrados
Do tempo comum
Em que todos éramos um.
O Universo é um todo indivisível
De que partilhamos,
Totalidade mal discernível
Que nos abarca, ramos
Interligados com ela
Como em árvore que abranjo da minha janela.
Nosso coração bate, converso,
Em uníssono com o do Universo.
Crise
Enfrentamos uma crise mundial
Devido ao egoísmo extremo.
Quando não trabalhamos para todos, afinal,
É um cancro o que temo:
A célula rara,
No corpo individual
Como no social,
Se não une, separa.
Curvar-se
Apenas a vontade enfraquecida
Poderia escolher a obediência
Como essência
Da verdadeira forma de vida.
Curvar-se com fervor
À ordem dum superior.
O carrasco do extermínio,
Sendo embora um ser humano
Incapaz de qualquer dano,
Declarará, no escrutínio,
Que o que fez foi do domínio,
Sem réplica a contrapor,
Duma ordem superior.
A estrutura de poder
Tem base piramidal:
Opera se mantiver
Obediência total:
O de baixo é que suporta
Quem estiver lá por cima.
Se um dia trancar a porta,
Se esbarronda ao chão a rima.
Sem tal colaboração
Nenhuma organização
Opera correctamente,
Tomba em frente.
Nem político partido,
Instituição religiosa,
Nem quadrilha criminosa...
O motor que há permitido
A cúpula no poder
É só quem a sustiver.
É nosso gesto passivo
De tudo deixar correr
Que aquilo mantém no activo.
Temos nas mãos o poder
De a tudo vir contrapor
O melhor:
É só o melhor escolher.
Contra
Para alguém contra vontade
Agir, mais tarde ou mais cedo,
Só quando o persuade
O medo.
É nesta medida
Que chega a matar
Para a própria vida
Salvar.
A quadrilha criminosa
De traficantes de droga, terroristas ou banqueiros
Goza do poder que goza
Por serem todos no medo pioneiros
E parceiros.
Denunciar ou não,
Roubar ou não,
Matar ou não...
- Por trás de tudo a se esconder,
É apenas a questão
De ser ou não ser.
E cada um tem então
De escolher,
Mesmo que o preço contra a vida encurralada
Seja a morte que lhe é dada.
Droga
A droga arruína vidas.
Mas então o modelo económico
Que leva uns a vendê-la às escondidas
E outros a consumi-la
É um mero chiste cómico
Para contar na vila?
Há uma crise alimentar
Mas quase metade da comida
É desperdiçada a engordar
Meio mundo para além da medida
Ou a despejar na lixeira
O que outro meio mundo não come,
À beira
De morrer de forme.
Se sou um dos noventa e nove
Que suporta o centésimo que é rico,
Que credo
Me tolhe e me demove,
Tão hirto que por aqui me fico?
- É o medo, é tudo por medo.
E, paralisado,
Então é que não chego a nenhum lado.
Dentro
O mal que me vem de fora
De dentro de mim me vem,
Pela mão que mora
Além.
Faço parte do todo.
Deste modo,
Dentro e fora não convêm,
Sou eu que me firo a mim,
Por este pendor, assim,
Por mais que seja alheia
A mão que me esfaqueia.
Ainda por cima busco
O castigo que julgo merecer,
Brusco,
Pela mão de quenquer:
Há quem se empenhe em estabelecer
Afectos que o farão sofrer,
A fim de pagar, sem demora,
A culpa, agora.
O argumento justificativo é a conformidade
Sentida.
E assim arruína com tranquilidade
A vida.
Apontar
Apontar culpados
É um entretenimento universal.
Ignoramos,
Desviados,
As culpas que carregamos,
Da estrada
Real
A desviar-nos a pegada.
Levam-nos a escolher
O pior futuro,
Desde o lar a promover
À presidência nacional que inauguro.
O resultado
É um modelo de vida enganado
Em que ninguém detém
A chave que convém.
São os meninos de rua,
As prostitutas com fome,
A criança seminua,
A baleia a extinguir-se que inda se consome,
O aquecimento global,
A destruição ecológica...
- A lógica
Do mal.
Sente-se impotente
Cada qual.
Um passo à frente,
Não demora,
Joga a culpa fora,
Para cima de toda a gente.
Quando, no fundo, é por mim
Que tudo principia ou não, por fim.
Outro
Do outro lado,
O desprotegido,
O abandonado,
O sub-humano escondido,
O que vê o filho morrer desnutrido,
O que findou sem trabalho,
Sem salário,
De saúde sem um negalho,
De educação sem horário,
Nem calendário
À mão,
Sem alimentação...
Não existem para ninguém,
Passam-nos ao lado,
Não valem um vintém
Furado.
Quem os vai convencer, urgentemente,
De que merecem tratamento diferente?
Culpas
Há culpas herdadas
Que se instalaram culturalmente
Tão fundo no inconsciente
Que, sem nos apercebermos de suas dedadas,
Nos controlam a todo o momento
O nosso comportamento.
Viver é o maior castigo,
Nem procuro melhor existência,
Dada a imaginária evidência
Da culpa que abrigo.
Entretanto, ninguém faz ideia do porquê
De tudo ser tão mau como é.
Ninguém cometeu o pecado
Que ao inferno nos há condenado.
Todos poderíamos daqui sair...
- Ninguém acredita, todavia, nem quando o vir.
Atirou
Quem atirou a primeira pedra?
Ninguém agride o que considera seu.
Só quem cresceu
E medra
Alheio a um grupo social
O ataca como rival.
Só quem se concebe
Como separado,
Desamparado,
Desterrado,
Recebe
Os irmãos como inimigos
E desata a matá-los,
De consciência sem abalos,
Que são verdadeiros perigos.
Só o mutilado
Tem fúria de mutilar,
Embora o vá evocar
Como negro fado.
É o posto de lado
Que do esquecimento se rebela,
Finalmente acordado
Na escassez da gamela.
Corpos separados,
Bons e maus,
Inocentes e culpados:
Eis como germinam os varapaus.
A energia suprema, todavia, nos habita,
Uma só alma,
Uma só mente que nos solicita,
Um só impulso da fundura do coração,
Um som de calma,
Em uníssono uma vibração...
- Todos somos um no Universo que no seio nos acarte,
Um único Todo de que fazemos parte.
Que nada,
Portanto, aparte
O que é uma única fornada
De pão que o Infinito nos reparte.
Tira
Tira o seres culpado de tua cabeça
Porque és mesmo é responsável.
Explica a atitude em que a vida te tropeça,
Mostra tudo quanto ainda for viável.
Se andar tudo equivocado,
Pede desculpa e clarifica o teu lado.
Repara o mal que fizeste
Até onde for exequível.
Reintegra-te sem culpa, para que preste,
Na comunidade disponível.
E canta liberto a festa
Que o atesta.
Peça
Peça de encaixe
Do Universo,
Se eliminar o que me rebaixe,
Elimino-o do Todo, pelo infindo disperso.
Continuarão os criminosos,
Políticos corruptos,
Negociantes vorazes...
Mas abri a porta a que, fogosos,
Saltem de mim ininterruptos
Caudais de energia capazes
De virar do avesso
O mundo escuro que atravesso.
A ideia do não-merecimento
É um obstáculo a travar
O colectivo bem-estar,
Momento a momento.
Se digno me não considerar,
A implantação irei tolerar
De escolas, partidos, tribunais anedóticos,
De governos, organismos, chefes despóticos,
De pais, irmãos, maridos,
Esposas, vizinhos mantidos
De nós a abusar,
Nós, as vítimas por todo o lugar
Espalhadas
Para serem exploradas.
Se há vítima, há culpado:
E eis o mundo separado.
Quando para nós apenas unido
O mundo alguma vez
Fez
Algum sentido.
Condenamos
Condenamos o acto violento.
Não reparamos, com olhar atento,
Se o primeiro lesionado
Não foi o violento agora visado.
Os gangues juvenis
De bairros marginais
Cresceram entre as misérias mais vis,
Sem atenção, nem amor, nem ocasionais
Gestos de acolhimento,
Sem oportunidades de desenvolvimento.
Às vezes até lhes mataram
Quem mais amaram...
Depois vem a frustração, o ressentimento, a ira,
O ódio que de todos transpira.
Permitimos que se repita
A lei de causa-efeito
Sem que nada reflicta
Que a tomámos deveras a peito.
Será o efeito, algum dia, de tolher
Sem a causa remover?
A não ser quem quiser, anos e anos,
Enfrentar os mesmos danos...
Diferença
A diferença entre quem me agride
E eu que o não agredi...
A fome que contra ele colide
Não agride ali?
A precariedade
Só é uma agressão
Quando me invade
O meu torrão?
A doença,
A carência,
A violação...
- Que sentença
Sobre ele dita delas a premência
E sobre mim, não?
Disto não sou o responsável efectivo
A nível individual
Mas somo-lo todos a nível colectivo
Por omissão total.
Permitimos um sistema
Que não emprega mas acumula,
- É o lema
Que o regula.
Não é para ninguém desenvolver
Um projecto de vida
Qualquer
À própria medida.
Gera distâncias brutais
Dos elevados tronos
Aos arraiais
De crianças, jovens e velhos, animais
De que aqueles são os donos.
Se ainda não saí à rua
Contra a comum infecção,
É que a pua
Ainda não feriu meu coração.
Vivo separado,
Isolado,
Sem deitar a nada a mão.
Até ao dia
Em que farei parte da maioria
E o meu alheamento
No isolamento
Qualquer mão solidária de mim desvia...
Perdão
Perdão não é desculpar,
Ignorar,
Fingir que não ocorreu.
Quem o crime cometeu,
Por ele paga.
Por este motivo ninguém o afaga.
Não lhe vou
É conceder
O poder
De determinar quem sou.
Fui por seu acto afectado
Mas não sou eternamente
Defraudado,
Violado,
Roubado,
Abandonado inocente,
Mutilado,
Sequestrado,
Humilhado ante toda a gente,
Magoado...
- Outro sou, seguindo em frente.
Sou eu,
Livre, enfim, em todo o sonho que é meu.
Jogar
Tudo aquilo que de nós se lança,
Tarde ou cedo nos alcança.
Se sinto não ser amado,
Para quê jogá-lo em redor, para todo o lado?
Para quê jogar ao céu
Pensamentos de violência num escarcéu?
Porquê dar novamente de caras
Do ódio com as escaras?
Porque não erradicá-lo,
Deixando então de vez de apontá-lo?
Do mundo a violência
Não derivará de nossa existência
Com uma e outra sequela
Das imagens dela?
Como outra coisa cobrar do mundo
Se é disto que o inundo?
É que, mesmo mentalmente,
Esta é a semente
Que mundo fora
Espalho a toda a hora,
Infatigavelmente.
Que outro porvir
De tal sementeira poderá provir?
Evitando
Como matar a violência sem violência?
Evitando repeti-la.
Trocando-a pela existência
Que o consenso nos perfila.
A prática indesejada
Não se expandirá mais em nossa estrada.
Não lhe apagamos o traço
Por completo,
Mas o fermento com que a fornada amasso
Terá, não tarda, todo o bolo repleto.
Unir
Unir palavra e pensamento
É criar mundo além o que incremento.
Imaginar,
No fundo,
É criar
Um novo mundo.
Seja lá vítima quem outra coisa for,
Eu por mim sou um criador!
- Oh! Meu Deus,
Mas que longe estão os Céus!
Importa
Que importa quão profundo
Foi teu sofrimento?
Chegaste até aqui, neste momento,
Facundo.
O passado
Já passou. De seguida,
Denodado,
Podes retomar a tua vida.
Termos
A ti próprio te dirige
Em termos de aprovação,
Sem juízo que te aflige,
Te abata raso no chão,
Sem tua vulnerabilidade,
Endémica fragilidade.
Releva o que conservar te importa,
Te dignifica, engrandece
E abre a porta
Ao caminho que te apetece.
Escuridão
Sê o espelho
Onde outrem se reconheça, renasça, se liberte.
A escuridão que iluminaste no quelho
Abriu caminho à luz que com todos finalmente o mundo acarte.
A luz que em ti teve efeito
Abriu a um rio o leito
Onde os bodos
Poderão algum dia ser de todos.
Lembra-te
Quando vires um deficiente,
Lembra-te de que utilizas aparelhos
Como ele, frequentemente.
Não nos diminui, à toa,
Não nos torna mais novos nem mais velhos,
Nem mais nem menos pessoa.
No fundo, sejam quais forem os sinais,
Somos todos iguais.
Gente
Toda a gente consumida
Por ninharias.
Uns, de engripados há dias,
Outros, de fartos da lida
Dos políticos,
Ou de sobrecarregados de trabalho,
Sob o vergalho
De patrões somíticos...
Não reparam que estão vivos?!
Cada dia é glorioso,
Da formosura dele ao ficarmos cativos,
Numa entrega cheia de fervores
De fé,
Por lograrmos andar de pé
E sem dores.
O mais, em juízo sumário,
É definitivamente secundário.
Feita
A vida é feita de riscos.
Uns aceitam-nos e continuam a viver,
Outros escondem-se nos apriscos,
Num mesmo canto a permanecer.
Aqueles abrem portas de amanhã,
As de hoje acaso perdendo.
Estes acordam cada manhã
O sonho perdido remordendo.
Queiras ou não queiras, terás de escolher,
A cada momento,
Ora o sol que o dia seguro te acender,
Ora o vento.
Nuas
Com as mãos nuas amasso
E modelo à vontade
Cada pedaço
De barro que me agrade.
Fazemo-lo frequentemente
Com cada indivíduo, ao calhar,
E com cada criança inocente,
Em particular.
Sem entre ambos os mundos diferença
Medir que nos convença.
Que espanta que, depois
Destes irresponsáveis impulsos,
As algemas nos prendam os dois
Pulsos?
Os de fora,
Mas mais os da desgraça
Que mundo fora grassa
E por dentro de nós demora.
Tenta
Vê o que queres
E tenta ir além
Do que de ti próprio esperes.
Melhora permanentemente, que nada te retém,
Treina, interminável,
Propondo-te um objectivo nas alturas,
Viável
Mas dificílimo de atingir.
É a missão que procuras
Seguir:
Que em ti concites
Ir além de teus próprios limites.
Quem pouco deseja
Acaba por o conseguir:
Falhou a vida infinda que quenquer almeja.
Repetir
Vivemos na roda infernal
De repetir o mesmo erro,
Geração a geração,
Afinal.
Na mesma prisão
Sempre eu com os mais me encerro.
Nem uma guerra mundial
Sempre iminente
Gritará um berro
Suficiente?
Só a morte
Nos acordará
De vivermos ao deus-dará?
Maldita sorte!
Demasiado
O mundo é demasiado grande,
O amor, demasiado perigoso,
Deus não liga ao que míope lhe demande,
Por mais que me faça de miúdo amoroso...
Resta-me apenas a saída:
Pôr-me na mão dele para toda a vida.
Venha o que vier,
Seja o que Deus quiser.
Atinge
Incho e encorpo
Com as palmas?
Mas quantas vezes quem toca no corpo
Não atinge as almas
E quem atinge as almas
Não toca no corpo!
Mais valia
Não me fiar destas ondas na maresia.
Itinerário
Poderei sempre escolher
Entre uma vítima do mundo
Ser
Ou um aventureiro moiro,
Ali-babá de itinerário fecundo
Em busca do tesoiro.
É tudo questão de que olhar
À vida deitar.
Cheirar
Forte,
Declina
O que, a cada esquina,
Te cheirar a morte.
A vida ensina
Que a sorte
É por demais esquiva,
Daí que apenas o forte
Sobreviva.
E não há, para o desnorte,
Alternativa.
Vendes
Um corpo com alma dentro
Ou alma com corpo fora?
Qual o centro
Onde cada mora?
Vendes-te por tuta e meia
E no fim queres a mancheia?
Ou não te vendes e sofres
O vazio de teus cofres?
Quando os enches,
Esvazias-te ou te preenches?
A escolha é sempre tua
De qual o rumo na rua.
Encontro
Há muito quem me paga
Para eu fazer o que ele quer.
Nenhum me afaga
Sequer,
Ao impor-me a triaga,
Antes me apaga.
Ora, encontro vero,
É o de eu fazer o que da fundura quero.
Experiências
As experiências mais importantes
São as que nos levam ao extremo.
Só nelas aprendemos, relevantes,
Onde mora nosso demo.
E requerem-nos toda a coragem
Para seguir viagem.
Tal é com qualquer guerra
Ou revolução
Que nos aterra
No chão,
Ou com um natural cataclismo
Que nos mergulha no abismo.
Aí atingimos o nosso limite.
Só quem pisou tal fronteira
De seu próprio mistério se abeira,
Aí, onde o toiro da vida cite.
A partir de então pode prevenir
A desgraça:
Vislumbra por onde o porvir
Passa.
Antecipa-se e abre-lhe a porta
Antes que a terra inteira seja morta.
Importante
Não é tão importante assim
Que saiba tudo acerca de mim.
Até porque, no fim,
Nada saberei deveras, enfim...
Não é só buscar sabedoria,
É também arar a terra,
Aguardar a chuva e a acalmia,
Plantar trigo, colher lenha na serra,
Ceifar o grão,
Cozer o pão...
Somos sempre dois lados
Interligados:
Quando se tocam,
Sempre se chocam.
Se de algum houver falta de respeito,
Destroem-se um ao outro a eito.
Simples
A vida de coisas simples é feita.
Andamos todos cansados
De tantos anos em busca duma colheita
Do que ninguém de boa fé
Sabe o que é,
Mas a que, cegos, nos jogam os fados.
Melhor é voltar ao início,
Disto eliminando o lixo do resquício,
Reencontrar o equilíbrio
Sem de mais acasos o ludíbrio.
Comentários
Comentários não matam,
Fazem parte da vida
De qualquer entidade bem sucedida.
Melhor se sentem os que os acatam
De maneira desprendida
E aos ombros nunca os acartam,
Antes, se inócuos, os descartam,
Ignorando-os de seguida.
Fico
É quando eu não sou ninguém
Que fico apenas um sonho.
Porém,
De nenhum corpo lhe disponho.
Então, basta uma faísca
E do mapa estoutro mundo todo o actual mundo risca.
Cataclismo?
Claro, se então é nele que cismo...
Temer
Não temer a dor
É bom
Porque para meu interior
Em mim tudo iluminar,
Do corpo marcar o tom,
Só se o corpo eu dominar.
Ora, sem dor
A me fustigar,
Nunca tal terá lugar.
Depois, com a dor bem fisgada,
Então já ganhei toda a jogada.
Procura
O sofrimento é amigo
E este é o perigo:
À procura de desquite,
Poderei torná-lo meu abrigo.
O sofrimento, porém, tem um limite.
Então,
Esta é a salvação:
Não poderei enquistar-me
Naquilo que definitivamente me desarme.
Momento
O momento de parar...
O enguiço
É que muito pouca gente sabe decifrar
Isso.
Desde o marido turbulento
Que inferniza o lar,
Ao ditador bolorento
Que tomba da cadeira ao sentar,
Ao país que no topo toma assento
E os mais desata a subjugar,
Ao mundo rico a cobrar do pobre o emolumento
Até de inanição o ameaçar...
Depois,
Sem o momento de parar,
Estoiram das bombas os arrebóis:
Muito perder para pouco ganhar.
Morrem as gerações, muda cada era,
E o momento de parar sempre em sala de espera.
Cabo
Para quê os ateus?
Não são precisos
Para dar cabo de Deus,
Bastam os juízos
Das religiões,
De todas em todas as ocasiões:
De Deus se apoderaram
E o transformaram
Num boneco de trapos
Coberto de nossos farrapos.
O dogma mais sublime
É o mais refinado crime,
A vender o Inefável
Como produto transaccionável.
Não é uma fresta
Por onde espreitar a Grande Festa.
Não é a flecha na ponte
A apontar do Infinito o horizonte,
Como deveria,
Se a Deus servia.
É a seta derrubada a apontar o chão
Onde ali finda a peregrinação:
Todos de joelhos
A adorar um montão de velhos
Que há muito deixaram de ser porta-vozes
Para se tornarem de Deus nos algozes.
Não vale a pena ter ilusão:
Toda e qualquer institucionalização,
Mais tarde ou mais cedo,
Perverte o credo
Naquele aleijão.
Não vale a pena atirar pedras duma à outra,
Que em todas se encontra,
Só muda a cor da podridão.
Não há reforma que valha
À fruta que os dentes nos talha:
É a excomunhão,
A guerra de religião,
O Estado confessional,
Islâmico ou não,
(Já foi cristão
Até aprendermos, pelo sangue, a não cair em tal),
É a perseguição,
A Inquisição,
É a mordaça fatal
Na boca de quem recuse adoração
Ao imperadorzinho feito deus, afinal,
Em todo e qualquer nível de qualquer organização
Religiosa.
É o poder, na forma mais gloriosa,
A matar o coração.
É o pecado,
Afinal,
Por todo o lado
Consagrado,
No cômputo total,
Como sagrado:
A terra fornecida como céus,
A mascarada de Deus.
Para isto
Não preciso de ateus,
Nem Jesus Cristo
De fiéis tão incréus.
Basta a religiosa trapaça
Que mundo fora grassa.
É o que é predominante,
Por muito que nos incomode,
E nada a conversão nos garante,
Nada nos acode.
Até alguém ter a coragem
De cortar a energia ao motor
Deste horror
E de lhe parar de vez a viagem.
Instituir, não:
Só enquanto durar o primitivo fogo sagrado,
Depois, extinção
Para o germe poder brotar das cinzas renovado.
Hierarquia, só a de servir:
A de poder, não,
Que não há como não reproduzir,
No poder, a escravidão.
Perdemos a eficácia?
Evidentemente.
É que a fé só se vive na audácia
Da infinitamente
Humilde semente.
Por muito que nos custe,
Não pode haver com o pecado qualquer ajuste.
Ou somos fermento
Ou enganámo-nos na estrada,
A todo o momento,
Do Espírito na jornada.
Deus é o Outro infinitamente
E assim será eternamente.
Petrificá-lo
Numa qualquer conquista humana,
Qualquer que seja, religiosa ou profana,
É mistificá-lo
Dentro de quenquer que então se engana.
Deus, em qualquer dimensão
Que seja da terra,
Nunca se encerra.
Toda a religião
Tem tal pretensão
Num ou noutro domínio
(Dogma, teologia, crença, tradição,
Rito...)
E, qualquer que seja o fascínio
Com que aí substitui o desmentido do Infinito,
Torna-se a irrisão
Justa dos ateus.
Estes, quando ética e humanamente exigentes,
É que acabam por ser os verdadeiros crentes.
Só lhes falta Deus.
O que, aliás,
Não lhes faz
Falta nenhuma,
Como a ninguém que integral se assuma:
É assim qualquer amor cimeiro,
- Gratuito por inteiro.
Fruto
Uma religião sem mundo
Gera um mundo sem religião.
Caímos todos no fundo
Dum vulcão.
O ateísmo generalizado
É o fruto duma fé
Que não caiu de pé,
Resvalou de lado.
No fundo do abismo
Escavo ancestrais fósseis
Dóceis
Ou na fuga cismo?
Para a tumba vou
Ou para o voo?
O meu guia
É um cadáver ambulante
Ou a magia
Da eternidade num instante
Que me surpreende à esquina de cada dia?
Graça
A graça de Deus
Actua em crentes e ateus,
A ninguém discrimina,
A todos ilumina.
Em qualquer religião ou sem ela,
Por tudo e todos vela.
A bispos, padres, monges ou leigos,
Por igual fornece os taleigos.
A cada qual pertence acolher ou recusar
Os dons com que o dotar.
Quem não estiver atento ao multiforme caminho,
Crendo que é o único da verdade adivinho
E dela, portanto, monopolista,
A influência do Espírito perdeu de vista.
Anda definitivamente enganado
E a arrastar o mundo inteiro atrelado.
O povo de Deus, ante arautos tais,
Não escuta do Espírito os apelos reais.
Mania
Quem tem a mania de deter a verdade,
Tomba no abismo
Do facilitismo:
Para quê buscar outra, se o não persuade?
Não tem mais nenhuma urgência,
Tudo é negligência.
A doença derradeira
É de vez:
Finda vítima de ideológica cegueira
E surdez.
Missão
Missão de qualquer de nós,
Ao recriar um mundo novo do velho que até hoje se fez,
É dar voz a quem não tem voz,
Dar a vez a quem não tem vez.
Pôr no centro a periferia
Que até hoje mal vivia.
Este é o ovo
Que, bem acalentado, nos trará um Mundo Novo.
No País, em cada continente, no mundo:
Quanto mais longe e vasto, mais fecundo.
Criado
O domingo foi criado para o homem,
Não o homem para o domingo.
Sem a festa, não vingo,
Que os afazeres me consomem.
Nunca, pois, o inverso,
Sagração do perverso.
É o mesmo, porém, em tudo.
Na economia pública e privada
Em que é permanente o cortejo de entrudo
Da humanidade escravizada.
No direito
Em que à norma se presta preito
Em detrimento da equidade
Que a nenhum juiz persuade.
Na religião
Em que o rito,
Em lugar de impelir pela amplidão,
Cria, no incumpridor, o precito.
E assim é por todo o lado...
A inversão do primado
Humano
A todos nos leva ao engano,
Gorando o ninho
Donde nasceriam asas para o caminho.
Amigo
Um amigo lá de casa
Questiona-me se me instalo no dinheiro
Ou no poder.
É quem
Me abrasa
E me arrasa
Por bem
Também,
Que eterno caminheiro
Me quer.
O meu perigo
É não reconhecer neste amigo
O meu amigo verdadeiro.
Ferida
Uma religião enlameada,
Ferida de espinhos,
Por se ter jogado à estrada,
Em busca da pegada
Enjeitada
Dos caminhos,
É bem melhor que a doente,
De tão fechada,
Acomodada
E agarrada
À própria estéril semente.
A procura de segurança
É fatal:
Mata, afinal,
O que a mal alcança.
Devemos ter medo
De continuar encerrados
Numa falsa protecção,
Enquanto lá fora (é segredo...)
À faminta multidão
Sem credo
Ninguém ouve os brados.
Notícia
Morre enregelado
Um idoso sem-abrigo?
Não é notícia em nenhum lado.
Mas a bolsa em perigo
Caiu dois pontos?
“Aqui d’el-rei!” – grita a comunicação.
Ficam logo os exércitos prontos
A conter a sublevação.
E continuam a acreditar
Que isto não é uma exclusão
Elementar.
Tal e qual como num lar
Ninguém ligar
À basilar falta de pão.
Concorrência
Concorrência de corta-pescoço,
Competitividade
Com a lei do mais forte a roer o osso
Da identidade
De cada qual...
O mais forte engole o mais fraco
Sem sinal
De que valha um pataco.
Tanto quanto de pés e mãos nos ata,
Esta economia mata.
Nos países ricos
Tudo aquilo é por lei proibido,
Desde que bastaram uns salpicos
Para o rumo ir no sentido
De gorar todos os ovos
Do porvir dos povos.
Oligopólios, monopólios,
Não.
Aplicam-se-lhes os santos óleos
Da extrema-unção.
O mais estranho, porém,
É ninguém ter ido com isto mundo além.
As antigas colónias, todo o mundo dos pobres,
Não conta com gestos nobres
Tudo ali se sacrifica
Do lucro ao deus que se multiplica,
Cortando o pescoço aos povos escravos
Para contar de lucro mais uns avos.
99% da riqueza mundial
É apropriada por 1% da humanidade total.
E o estrangulamento continua,
Sem a agulha mudar a tropeada de rua.
Agora cortamos o pescoço ao mundo pobre.
Amanhã ele aprende, num gesto nobre,
Connosco, a vir, logo após,
Cortar-nos o pescoço a nós.
Não aprendemos com a Revolução Francesa,
Com as duas Guerras Mundiais...
A Humanidade preza
As estupidezes mais abismais!
Vem aí a Terceira Guerra Mundial, disfarçadamente,
Lenta, lentamente...
Será mesmo preciso
O colapso total
Para alguém, afinal,
Ganhar juízo?
Alguém...
Quando, se calhar,
Já nem restar
Ninguém!
Enquanto
Enquanto a economia
Ficar nas prioridades à frente,
Como hoje em dia,
Das pessoas,
As pessoas não são gente,
São peças razoavelmente
Boas
Para produzir
(A seguir
Aos domésticos animais,
Muito atrás da maquinaria,
Ainda mais
Dos robôs geniais
Da era que se inicia...).
E as pessoas são indispensáveis
Para consumir,
Portanto devem ser manipuláveis
O mais que alguém conseguir.
Com a economia à frente
Que resta da gente?
Esvaziados de conteúdo,
Tiram-nos tudo...
De repente
Explodem bombas,
Prolifera o terrorismo...
Da paz as pombas
Despejadas no abismo,
A germinal
Guerra mundial
Anda espalhada por aí.
Ninguém a quer ver,
De olhos distraídos à procura de alibi.
E nem sequer
Se denuncia
A perversão de valores daquela hierarquia...
Ninguém a combate?
Seremos mesmo
Carne para abate
Pelo mundo a esmo?
Abstracto
Quanto mais abstracto for um ideal,
Mais eterno se mantém
E, por igual,
Mais inútil também.
O sonho,
Ou na realidade
O ponho
Ou é mera insanidade.
Orlada
A humanidade
Dos humanos
É toda orlada de insanidade
E de enganos.
Como tolher a contabilidade dos danos?
Era bom, era
Que racionais fôramos nalguma era!
Não diviso
Quando, sem chicote
A aguilhoar-nos o trote,
Ganharemos juízo.
Desenvolvimento
Desenvolvimento sustentável
Sem paixão por uma humanidade solidária,
Indefinidamente aproximável,
Que cuide da renovação planetária
De mil e um avisados modos,
Como casa comum de todos,
Estiola, logo na infância,
Ante os dedos da ganância.
Quem a paixão incendeia
A afugentar a alcateia?
Alcateia que lá fora
Mora
E a que mora cá dentro
De cada qual no escondido centro.
Surpresas
Com Deus
Converso
Neste inseguro tom:
Uma habitual prontidão
Para as surpresas do Universo
Que são as mensagens crípticas dos Céus
E que vêm cada dia
Virar-me sempre para outra via.
Passagem
Verdadeiro salvador
É o que souber fazer do diferendo
Entre sexos, povos, culturas, religiões...
- Lugares de passagem dum teor
Para outro que mal estou vendo,
Num porvir de colaborações
Onde não há vencido nem vencedor.
É que, melhor
Que tais celebrações,
É que cada um ali é um ganhador.
E é porque a nossa razão
Ainda é muito pobre de razões
Que não atingimos já a cumeeira do Verão
No cume das estações.
Muralhas
Muralhas ideológicas erigidas
Para defender
Uma fé qualquer
Podem ser eficazes, com tais medidas,
Mas matam, a prazo, a fé que se tiver.
Só o diálogo livre e libertador com o mundo
Pode ser de vez fecundo.
Chefias
Chefias que ignoram a historicidade
De modalidades e organizações religiosas
Confundem fidelidade
Com idolatrias dogmáticas tenebrosas,
Sem vislumbrarem o anacronismo
Dos mortos que os mortos enterram no abismo.
Os vivos, porém, andam cá por fora
A passear com Deus a toda a hora.
Como o pior cego
É o que não quer ver,
Aqueles caíram no pego,
Andam por aí de todo mortos antes de morrer.
Berma
Ai dos que já têm tudo
E não olham, na berma da estrada,
Para os que não têm nada!
São mascarados de entrudo,
De arca a ser-lhes, tarde ou cedo, esvaziada:
Na hora da morte
Qual a sorte
De tal arca encoirada?
Para o lado de lá não levam nada,
Senão o amor, amizade,
A solidariedade
Que, afinal, não viveram na terrena jornada.
Continuarão a ser aquele sortudo
Que quer tudo...
Só que aí não terão nada!
O inferno nem precisa doutras vias:
Como aguentar o vazio de mãos vazias?
Problema
O problema de qualquer religião
É que se apropriou dum naco dos Céus
E só pensa na lição
Que tem a dar de Deus,
De tal modo empertigada
Que não tem de acolher nem aprender nada.
Ignoram o mundo
E o que nele Deus esboça.
Assim, quanto ao que é humano, todas caem no fundo
Da fossa.
Os mercenários predominantes no activo
São Deus em negativo.
É o pecado
Que prolifera por todo o lado,
A esmo.
Atirá-lo sobre os outros nem vale a pena.
Mais vale, com uma consciência dia a dia mais plena,
Atirá-lo sobre si mesmo.
Rotina
Quando a celebração se degrada
Em rotina esvaziada,
O ritualismo vazio
É um litúrgico fastio.
Então só de mim sou dono
No abandono.
Os ancestrais
Bonzos rituais
Quanto mais insistem
Mais no cancro persistem.
Só atinge espiritual saúde
Quem deles se não ilude.
É do açaimo deles quando me liberto
Que Deus em mim aflora, em meu íntimo desperto,
Para ser partilha de vida
Com quem a vida não agrida.
- Chega de morte,
Deus é Deus doutra sorte!
Excede
De deus tanto mais sabemos
Quanto mais nos dermos conta
De que excede quanto vemos,
Todo o conhecimento de ponta.
E assim será eternamente.
Nunca será prisioneiro, afeito
Obedientemente
A qualquer nosso conceito.
Porque se eternizam
Instituições,
Legislações,
Tradições...
- Que, em nome de Deus,
Apenas nos infernizam,
Em lugar de nos vislumbrarem os Céus?
Prioridade
A família não é da escola o complemento,
A escola é que é complemento da família.
Quando esta prioridade não implemento,
Quebro do lar toda a mobília.
E nada adianta
Toda a manta
De especialistas
Que pela escola se implanta.
Apenas aumentam farmacêuticas listas
Que nem curam sequer uma dor de garganta.
Abriu
Jesus abriu um caminho,
Não acabou com a história humana.
É o cadinho
Donde qualquer religião emana
E com que cada uma sistematicamente se engana,
Perdida em litúrgico terreno maninho.
Cristianismo de múltiplas igrejas,
Judaísmo de tantas sensibilidades,
Muçulmanismo de correntes e de invejas,
Budismo de contratantes espiritualidades,
Hinduísmo de tantos deuses
Aflorados em mil enfiteuses...
- Todos acabam com a história, enfim,
Quando julgam que detêm e pretendem fornecer a chave do fim.
Ora, cada história individual,
Do íntimo iluminada,
É um laboratório pessoal
De conversão permanentemente inacabada,
A tecer externos
Laços fraternos.
Podemos diariamente nascer de novo,
Da vida em cada covo.
O mais, quando para isto tiver préstimo,
Virá por acréscimo.
Enriquecimento
A diferença,
Factor
De enriquecimento da comunidade,
No pendor
Que mais convença:
A solidariedade.
Construir comunidades
Sem barreiras,
Com iguais oportunidades
Para cada um, nas divergentes fileiras.
Comunidade activa:
Todos com uma presença
Positiva
Perante a diferença.
E, no fim, a maravilha
De haver mil pontes para cada ilha.
Canse
Que ninguém canse no caminho,
Com a tentação da pegada definitiva,
Perante a insondável infinidade que adivinho
No horizonte humano por que viva.
Há sempre novas fronteiras a transpor,
Mais portas para abrir.
Ninguém é nem será nunca senhor
Do porvir.
Filhos
Filhos de Deus sendo todos,
Todos somos chamados a fazer do mundo
Uma família de famílias
De povos, culturas e modos,
Num fermento fecundo,
Através de vigílias,
Quezílias,
Até inventar novas mobílias
Para a casa do Homem de cujo sonho tanto abundo.
Somos já o que seremos em tais chãos:
- Todos irmãos.
Servir-se
Menoridade
Do entendimento
É a incapacidade
De servir-se dele, a todo o momento,
Sem doutrem a mão
Duma orientação.
Tudo por falta de coragem
E decisão.
Segue por teu pé tua viagem!
Tua preguiça
É que tua vida te enguiça.
Não alimentes o infantilismo
Do obscurantismo
De quem alimente
Tua vida inteira como um dependente.
Ouve todos,
Ausculta o teu coração
E, da riqueza de todos os bodos,
Escolhe e segue a tua própria orientação.
Tornar-se
A felicidade
É tão individual
Que nenhum conselho persuade,
É mesmo com cada qual:
Cada qual deve, pois, de raiz,
Tornar-se feliz.
Solitariamente
Com toda a gente.
Turismo
Turismo dos santuários:
Visitar os armários
Onde selaram os cadáveres da religião,
Em lugar da peregrinação
A um qualquer de esperança alimento,
A fontes de encorajamento.
Como andamos distraídos
Do passado com os ossos corroídos!
Em todos os sentidos,
Em todos,
Sem bodos,
Mal nutridos.
Problema
O problema do admirador
É de quando ele admira tanto
Que, a boca aberta de espanto,
Se esquece de ser seguidor.
Jesus Cristo
É a milenária maior vítima disto:
Tudo é incenso,
O resto dispenso...
Para quê o Calvário?
Já tenho comigo o Santo Sudário!
Suportam
Os pobres suportam a injustiça
E também lutam contra ela.
Promessas ilusórias, desculpas, pretextos – tudo enguiça
E cerra cada janela.
Não esperam de braços cruzados
A ajuda, o plano assistencial ou a solução
Que nunca chegam ou chegam para pô-los anestesiados,
Ou para, domesticados,
Os ter à mão.
Os pobres com outras vistas
Querem ser protagonistas.
Organizam-se, estudam, trabalham, reivindicam,
A solidariedade entre os doridos
Praticam
De que andamos tão esquecidos
Ou que o mundo tanto quer
Esquecer.
Lutam contra as causas estruturais,
Desigualdade, desemprego,
Falta de terra, de morada para os casais,
A recusa do sossego
Dos direitos laborais
E sociais...
Enfrentam os efeitos destrutivos de cada caseiro
Império do dinheiro:
Deslocamentos
Violentos,
Migrações
De partidos corações,
Tráfico de gente,
Droga, guerra, violência permanente...
Os pobres não trabalham com ideias,
Trabalham com realidade,
Os pés na lama e as mãos cheias
Da carne e sangue de cada atrocidade.
Cheiram a bairro de lata,
À espezinhada prostituta,
Ao povo do desempata,
À luta!
Nenhuma
Nenhuma família sem casa,
Nenhum camponês sem terra,
Nenhuma brancura de asa
Sem a leveza do sol que o ar lhe descerra!
Nenhum trabalhador sem direitos,
Ninguém sem a dignidade do trabalho,
Todos afeitos
E atreitos
A cerrar as mãos a cada golpe do malho!
Mundialmente
Temos mundialmente de crescer
Numa solidariedade
Que permita a qualquer povo, a qualquer
Que se não degrade,
Tornar-se o artífice fino
Do próprio destino.
Uma liberalidade
Que coloque bens e serviços
Ao serviço de quem o mundo grade,
De modo que fermente a liberdade
Sem mais ser tolhido por enguiços
De feitiços.
A função comunitária da propriedade,
O destino universal dos bens,
Eis a anterior realidade
Ante a privada propriedade
Que há-de libertar os até hoje reféns.
Uma economia que tal não respeite
Não pode ser economia aceite.
Apropriar-me só tem um sentido
Ou não tem sentido nenhum:
É para melhor por mim ser servido
O bem comum.
Caminhos
Os Apóstolos sempre foram depravados
Pela vontade de poder.
Nunca entenderam os caminhos trilhados
Por Jesus, a Palestina ao percorrer.
Nem depois de ressuscitado
Entenderam o legado.
Tanto assim
Que hoje andamos bem mais onde eles nos quiseram
E não onde Jesus apontou o fim
Aos que o pretenderam.
Tudo é pompa de poder e domínio,
Não da fraternidade o fascínio.
Até um Estado a Igreja quer...
- Não há mesmo maneira de aprender!
Mataram
Do poder as ambições,
Do dinheiro e do prestígio
Mataram as igrejas e as religiões,
No inferno tombadas quando se creram no fastígio.
Apenas a vida ao dar
As pode ressuscitar.
Retornar da morte à vida,
Só dando o coração
E a mão
Aos afogados na maré batida
Da solidão,
Do desânimo ante o mundial destempero,
Do desespero.
Porvir
O porvir da humanidade vem de resolver
Apenas este assunto:
Aprendermos a viver
Em conjunto.
O que jamais é possível
Entre o rico e o miserável com um letal desnível.
No lar, na comunidade e no País, primeiro,
E, ao mesmo tempo, no planeta inteiro,
Ou o mundo é comum
Ou não vai haver mundo nenhum.
Perdeu-se
Uma Igreja que se quer salvar
Perdeu-se de Cristo:
Isolamento e proselitismo é o lugar
Disto.
Quando cada uma pretende ser a única via,
Fechou do Céu a portaria.
Quando seu dogma é o único salutar,
Então Deus, o inefável, perdeu o lugar.
Entende-o qualquer patego...
- Nas igrejas, porém, que desassossego!
Em todas as religiões é o mesmo:
Transformam o mundo num torresmo.
Sem verem que a vívida espiritualidade
É exactamente o contrário de tal brutalidade.
Quem é que de todas na chefia
Põe tantos castrados de sabedoria?
Quem é que não vê que, ao institucionalizar,
Anda a montar
As proibidas tendas do Monte Tabor,
Em lugar
De descer a montanha
Com os olhos a arder, do fulgor
Do Outro Mundo, em revelação tamanha
Que de vez a vida inteira lhe apanha?
Qualquer religião
É apenas isto.
E o culminar de Cristo
É apenas que todas rumam à ressurreição.
Quem o não entendeu
Ainda nem tocou no Céu.
Anda por aí perdido
À procura de sentido,
Quando, afinal, o tem ali sempre à mão...
- Mas anda tudo sempre tão distraído!
Irmã
Sinagoga, igreja, mesquita,
Cada qual mãe e mestra,
Nenhuma a irmã que me desquita,
Antes me adestra
A defender-lhe a parede humana
Com que a si própria e a todo o mundo engana.
Nenhuma caminha
Com a humanidade, antes sozinha.
Tem sempre muito a dizer...
Do que tem,
Porém,
A aprender
Não há ninguém
Que a logre convencer.
Para reencontrar
Das águas vivas a torrente,
Só se de escutar
Desenvolver uma nova frente
Permanente.
O diálogo fica sempre em falta,
Obrigatoriamente,
Em quem pretenda colocar Deus na ribalta,
Pois Deus fala pelo Universo e toda a gente,
Inesgotavelmente.
Deus transcende,
Sempre mais além:
Nada de vez o apreende,
Nada o contém
Nem retém.
Quem julga que dele guarda o depósito
Em Escrituras e tradições
Perdeu a chave do multímodo compósito:
Do eterno a colheita do fermento
No afloramento
De Deus na história de cada um, do mundo e das multidões.
É que os céus e a Terra
Clamam permanentemente a glória de Deus
A quem deles se não desterra
Pretendendo que guardou no bolso os Céus.
Fraternidade
Sem práticas
De fraternidade irrestrita,
Vêm aí dores ciáticas
Nas pegadas de cada visita.
E então
O mundo inteiro se dana:
Não há salvação
Para a aventura humana.
Negar
De Deus nada podemos dizer
Sem negar o dito,
Que quem no dito se prender
Impede o salto para o Infinito.
O mistério é inabarcável.
Deus não cabe na ilusão
Do conceito do que for aproximável
Nos gérmenes do eterno em nosso chão.
São vestígios duma passagem
Que as artes mal apontam, na nossa intérmina viagem.
Quem na passagem passa,
Porém,
Infinitamente nos ultrapassa,
Caminhada além.
Por isso é que dogmas, Tradição,
Escrituras,
Tomados como de Deus revelação
Em formas puras
Intocáveis, definitivas,
São novos ídolos que arquivas,
Pejados de alienação:
Deus, deste crente,
Continua de vez ausente,
Mais ainda se isto for a religião
Integral da instituição.
É tudo, inadvertidamente,
Mas absolutamente,
Uma traição.
E é o ateísmo mais traiçoeiro:
Com isto Deus peneiro
E jogo fora de meu coração,
Tudo em nome duma religião,
Acaso bem-intencionada
Mas definitivamente mal formada.
Tudo, ao invés, são setas no caminho
A indicar, na infindável treva luminosa,
O que na lonjura do Infinito adivinho
E me provoca a gostosa
Caminhada infatigável,
Sempre, da vida na prosa,
Viável.
Deus, pois,
Livra-me de Deus,
Que de ti todos os conceitos, nomes, religiões,
Instituições...
- São ateus
A pretender prender nas mãos os arrebóis.
Esta idolatria
É que, história além,
Abate os deuses, em nome da magia
Duma nova utopia
Que um novo falso deus instaurará também.
Repetidamente
O mesmo muro a vedar-nos de ir em frente.
Servir
Não podemos servir a dois senhores: a Deus e ao dinheiro.
Mas o rico é das religiões sempre o parceiro...
O rico é o sinal
Da bênção de Deus,
O pobre é o mal,
Abandonado dos céus?
Não há maneira de entendermos nada:
Quem em nós manda, se for o dinheiro,
Já temos dono, de entrada.
Seremos o escravo prisioneiro,
A escravizar os mais que vejo,
Duma assentada,
Ao meu desejo.
Se quero ser livre e ajudar
A libertar o oprimido,
Continuo a precisar
Do dinheiro deste mundo,
Porém, o sentido
É o outro que é fecundo:
O dinheiro é dono
Ou instrumento?
Se dele me abono
Como de equidade fermento,
Não irei criar
Sistemas para dominar.
Pô-lo-ei ao serviço,
Quebrando do pobre todo o enguiço,
No indivíduo, região ou país,
Irei até à raiz.
Aí é que o mundo caminha de verdade
Rumo à liberdade.
Defeito
A Igreja, como qualquer religião,
Tem o defeito pecador
De olhar demasiado para o próprio torrão,
Como se de luz própria tivera o fulgor.
Nenhuma, porém,
O tem.
Cada uma tem de recolhê-lo na fonte
Melhor
Que lhe couber no horizonte.
Todas são mistério da Lua
Que só reflecte a luz do Sol.
Quando assim nenhuma actua,
Não nos traz nenhum arrebol.
Baralhados na escuridão,
Todos nos matamos, uns dos outros à mão.
Quando qualquer uma apenas se refira a si,
Nenhuma luz brota dali.
Inevitável,
Então,
É a imparável
Divisão.
Cada qual defende,
De armas na mão,
O torrão
Que pretende.
Perdeu de vez o fito
De caminhar terra além
No rumo que diz que tem
Do Infinito.
Escutar
Temos de escutar do mundo as vozes.
A voz dos pobres,
Cujas fomes atrozes
Repicam do sino os dobres,
Morta a dignidade
Na miséria que os degrade.
A voz das vítimas dos conflitos
Que tantas vezes são
Os gritos
Aflitos
De confrontos de religião.
A voz dos jovens sem esperança,
Desanimados
Da vida e resignados
Ao sonho que não se alcança,
A viverem o tormento
Sem horizonte do momento.
Todo o grito
É a semente disfarçada
Duma estrada
Para o Infinito.
Permanente
É permanente a tentação
De ao Espírito resistir,
Que ele perturba, revolve, faz trilhar o chão,
Incita a Igreja e qualquer religião
A avançar, a prosseguir...
Quão mais fácil e confortável
É acomodarmo-nos numa posição
Estática, inalterável!
Ora, fiel,
Só quem desiste de o regular,
Domesticar,
Preso a cordel
Ao seu próprio umbigo,
Como escravo amigo.
Quem apostar na defesa
Bloqueia do Espírito qualquer proeza:
Ele é criatividade,
Novidade
E cura
Por mil águas inesperadas de frescura.
Acordo
Basta o acordo no pão, vinho e nos untos
A dar ao faminto em frente.
Podemos todos avançar juntos
Sem renunciar
Nem ninguém repudiar
A crença diferente.
A crença é apenas,
No bastidor das cenas,
O que motiva o coração de cada um
A juntar-se ao projecto fraternal comum.
Diário
Todos somos responsáveis
Pelo diário de más notícias.
Porque não as agradáveis
Provirem de nossas blandícias?
Só sevícias, só sevícias?!
A nossa vida interior
Semeia sempre a semente
Do que vai ser o mundo exterior:
Se eu mudar profundamente,
Posso mudar toda a gente
E arrastar o mundo inteiro
Para a frente,
No meu sendeiro.
Porque não para melhor?
É só a tal me propor...
Minha
A minha religião é a melhor para mim.
Os outros têm outros modos.
Assim,
A minha não é a melhor para todos.
Aliás, então,
Nem é preciso terem qualquer religião.
Basta a si serem fiéis,
Ao próprio imo atando os próprios cordéis.
Diálogo
O diálogo não bastaria
Para nos salvar,
Que a raiz não erradicaria
De nosso desejo de dominar.
Sem ele, porém, o caminho
É o abismo de que me avizinho.
Se quiser deveras uma saída,
Não há outro trilho para a mundial ida.
Miúdo
Pede o miúdo mendigo:
“Não dê nada a Nossa Senhora,
Que já tem muito ao abrigo.
Eu é que preciso agora...”
Do Santuário, porém, todos preferem o cofre.
Ora, o miúdo é que sofre...
Dos Céus o teste
Há-de ser perpetuamente este:
O que fizeste ao mais pequeno,
A mim o fizeste;
Ele é que é Deus no terreno.
Como ninguém olha para ele,
Afinal que crente
Vai ao Santuário?
Arrepia-se-me a pele,
De repente:
Todos olham para o sacrário,
Ninguém olha para a gente...
Ora,
Deus mora
No fundo do coração inocente
Que bate, mesmo impotente,
Até no fundo do fulgor
Do pior
Sicário.
Do Santuário
Qual é, afinal, o melhor
Fadário?
À procura dos Céus,
Vamos até aos extremos.
Depois passamos por Deus
E não o vemos!
Pára
Religião que religa
Não pára em nenhuma porta,
Senão tudo com tudo briga,
Horta a horta.
Une a minha casa aos Céus
Que são o Outro totalmente,
O eterno indizível Deus
Nunca dominado à frente.
Une-me a mim na fundura
De meu mundo interior,
A me orientar no que apura
De calor.
Une-me aos demais humanos
No altruísmo benfazejo,
No remedeio dos danos
Mal os vejo.
Une-me ao Cosmos inteiro,
À natureza que apraza
O fado de que me abeiro,
Minha casa.
Muda
O mundo tem de mudar?
Então muda tu, muda,
Que o mundo muda a par.
Já tem quem lhe acuda...
Um dia uma guerra qualquer
Há-de haver
E verás
Que ninguém vai aparecer...
Que paz!
Escuta
Pára,
Escuta a voz
No interior do coração:
Diz-nos ela a verdade rara
Sobre nós
E sobre a vida – a comunhão.
Antes de perguntar
Quem disparou a seta
Ou quem é o ferido,
Vai-o curar.
Que o tempo não comprometa
O sentido,
Que, com o alarde,
Não fique demasiado tarde.
Violência
A violência do oprimido
Contra a violência do opressor
É o mundo da violência revivido,
É o comércio de armas no esplendor.
Corrompe e desgraça
De ambos a humanidade.
Ali não grassa,
Viva,
Nenhuma novidade,
Nenhuma alternativa.
É urgente quebrar o padrão.
Doutro modo, aliás,
Então,
Não haverá nunca paz.
Consentir
Nenhum crente
Pode consentir na idolatria,
Todo o dia
Em todo o mundo renascente,
Do poder, da finança, da economia,
Da política, da técnica, da religião...
- Tudo deuses de ocasião!
E, quanto mais ateus,
Mais os homens incensam dali um qualquer deus...
Tamanha é a inconsciência
Que nem dão conta de tão idolátrica dependência!
Primeiro
Ou a religião
É o primeiro grito
Contra a miséria, a opressão,
Ou denuncio-a, contrito,
Por, em busca do louvor,
Ignorar o amor:
- Ignorar a indignação.
Temer
A sabedoria
A quem provoca temor?
Àquele a quem o sabor
Faz temer que haja outra via...
Os caminhos caminhados
Já não são do amor lavrados:
Enterram-nos o coração
No seco chão.
Contudo, há sempre uma aurora
Que na contra-encosta mora.
Quanto orvalho a rorejar!...
- Toca a apressar, a apressar!
Pergunte
Para que a vida regale
O mais que puder
Nalgum lugar,
Que ninguém se instale:
Pergunte pelo que deve ser
E que é que falta realizar.
E ponha-se a caminho,
Não importa
Se depressa ou devagarinho:
- Abra uma porta!
Arruma
Pensamento estabelecido
Não é uma fortaleza
De defesa
(Que o por ele protegido
Tanto preza),
É o convite ao pensamento demitido.
Que ninguém admita
Que outrem pense, investigue, escolha
Por si, na bendita
Tradição que tudo arrolha
Na garrafeira
E arruma, a criar pó, da vida na prateleira.
Não se demita
Quenquer
De pensar,
De o caminho investigar,
- De viver!
Vedes
Vedes o mundo e perguntais:
Porquê?
Para trás olhais
A ver o que é que dali se vê.
Eu sonho para a frente
Com o que nunca existiu, então,
E pergunto, de repente:
- Porque não?
Poder
O poder que tem
Quem se reconverte permanentemente
E tal se projecta, coerente,
Vida além!
Sem nem reparar é, fecundo,
Semente
De mundo.
Estado
Arder e iluminar,
Com o estado actual do mundo
Jamais se conformar
Em tudo o que tiver de infecundo...
- Então de lar
A proliferar
O Cosmos inundo.
Manipulada
Sendo a religião o maior bem,
Manipulada para humilhar
E torturar
É o maior mal também.
Urge então defender
Homem e mulher
Contra a prepotência desumana
Que dela emana.
O pior pecado
Que nos mata por dentro
É o que anda dissimulado
Aqui no centro.
Quando
Quando o mundo corre para o abismo,
Quando o país corre para o abismo,
Quando o vizinho nele já está caindo,
Cismo:
A indiferença com que na vida vou indo,
Da vida pela estrada,
A abstenção na hora de votar na urna selada,
Não são aquilo de que as crismo,
São esfiado cobertor na noite gelada.
Se tenho um meio de fazer nascer o sol,
Como é que isto comigo não bole?
Continuaremos
Continuaremos a ser os que vêem, chorando,
Atrás dos cortinados espreitando,
Mas, perante a desgraça desatada,
Não fazem nada?
No ajuste de contas,
Quando chegar a nossa vez,
Não admira que ninguém ate as soltas pontas
Do nosso entremez.
Quem mexe um dedo por gente de tal jaez?
Baixa
Há tanta gente
Que baixa a cabeça e vai à sua vida
Enquanto crianças, em frente,
Olham para eles, a vista sentida,
Por trás do malfadado
Arame farpado!
Que é preciso para a gente boa
Deixar de ir à toa
E praticar, então,
Qualquer boa acção?
Fará
Não sei o que fará de alguém uma boa
Pessoa.
Sei que, se olharmos todos para o lado
Ante o crime descarado,
Então, embora com a melhor boa fé,
Nenhum de nós o é.
Levou uma vez ao holocausto.
Será que o mundo não ficou de vez daquilo exausto?
Abaixo
Como é que alguém
Pode deitar abaixo um filho,
Empurrá-lo para um caminho que ele não quer
(Mas “tanto que lhe convém!”),
E depois, mesmo sem sinal de sarilho,
Virar-se contra ele por se não ter
Conformado?!
Que amor mais atraiçoado!
É só poder e domínio,
Não há ternura
Nem fascínio.
Tudo é uma infecção que supura.
Qual amor!
Entramos nos domínios do terror...
Vazia
A tua estrada vazia de ti
Como a manténs!
Os nadas que vagueiam por aí
São bem piores que os zés-ninguéns.
Estes um dia acordam
E então
Pode ser que mordam...
Aqueles, não!
Acreditar
Difícil é acreditar apenas,
Confiar numa crença,
Sem nunca saber.
Até que, minhas horas finalmente plenas,
Tarde demais vem a sentença
E acabei já por morrer.
É, porém, a única via
Até que um dia, até que um dia...
Menos
Mundo além, menos de nós são pobres,
Menos têm fome,
Menos crianças morrem, da vida nos alfobres,
Mais homens e mulheres sabem ler
E escrever
Da vida que os consome.
Cada vez mais toma forma
Dos direitos da mulher
E de toda e qualquer
Minoria
A norma
Que os respeita a cada dia.
Há esperança
E progresso
Nesta histórica ponta de lança
Onde hoje no mundo ingresso.
Então porquê tanta raiva,
Tanto descontentamento
A enregelar-nos, fustigante saraiva,
Com em nenhum outro momento?
Tanta desesperança
Entre quem mais tudo alcança?
O idoso que inútil se sentir
Três vezes mais prematuro irá morrer
Que o que útil se vir
Os demais a socorrer.
É para cada qual o aviso
De precisar de ser preciso.
Dentro de cada um só se abrem os portais
Se servir os mais.
Se acender uma luminária para alguém,
Ela ilumina, do lume no cadinho,
Também
O meu próprio caminho.
Trabalhar dos outros em prol
É o píncaro mais alto da vida humana:
Dali dimana
Da vida feliz todo o rol.
Quem der a prioridade
A fazer aos mais o bem
Aumenta a probabilidade
De sentir-se feliz também.
Quanto mais nos unimos
Ao resto da humanidade
Melhor nos sentimos
Em toda a profundidade.
Não há falta de bens materiais,
Há gente demais
Que não faz falta,
Que dos males da vida já teve alta:
Inútil, desnecessário, desunido,
Como é que isto para alguém fará sentido?
Sentir-se supérfluo, descartável
É um golpe rude:
Um isolamento social inevitável,
Dor emocional, se nada mude.
Todos temos algo de valor
A partilhar.
Cada dia terei de me propor:
- Que irei dar?
A irmandade
E a unidade
Globais
São compromissos pessoais.
Tudo se resume
Em tornar isto um costume.
O que nos une não é uma ideologia
Nem uma religião,
É crer que cada um tem a função
De contribuir para um mundo de magia
E que esta identidade
É intrínseca a cada personalidade.
Não se contentar
Com a segurança física e material
É revelar
A fome universal
De ser necessário,
Tendo cada qual o mundo inteiro por destinatário.
Trabalhemos juntos,
Numa unidade em que ninguém se consome,
Todos e quaisquer assuntos
Que saciem esta fome.
Tímidas
Há verdades tão tímidas, tão frágeis
Que só se nos revelam após nos termos afastado,
Ágeis,
De nossa rotina habitual e passado
Uns dias em contemplação.
A maravilha,
Então,
É que até o negro chão
Brilha.
Provar
Que leis quebrarias,
Que costumes,
Para provar que a ninguém pertencias
Senão aos lumes
Que em ti próprio acendes,
Únicos a que te rendes,
Únicos onde vislumbras as vias
Que encherias
Do que aprendes
E rendes
Todos os dias,
Quando os pedregulhos fendes
Que te tolhem do Infinito os guias?
Todos
Todos estamos vencidos,
Todos estamos maculados.
Quem pode ser juiz dos pecados
Cometidos?
Todos os juízes são culpados:
Ou condenam e são todos condenados,
Ou absolvem e somos todos absolvidos.
Redor
Os que vivem no alto deserto
Nunca viram o mar,
Mas sabem que existe, que é certo.
Podem confiar,
Ao redor do lume das toscas fráguas,
Nos que viram grandes águas.
Delas separado,
Nalguma medida
Sentes-te abandonado
Da fonte de vida?
Bate à porta deserta:
- Ser-te-á aberta.
Contas
Ser especial,
Quando com os mais em comunhão
Total,
Que bênção então!
Mas também que isolamento
Isto de ser único, afinal!
E, portanto, que tormento,
Que maldição!
E quantos o pretendemos
Sem deitar contas ao que pagaremos!
Sacerdote
Um sacerdote professaria
Ter transposto a porta da sabedoria
Mas depois não tem a coragem
De tal viagem?
O pior, após,
É que esconde a chave do resto de nós.
Pavoneia-se por todo o lado
Com o peito inchado?
Cuidado com quem se exibe!
É o perigo
Que nos inibe
De algum dia atingirmos o pascigo.
Mesmo que ele nos acoite,
Todo ele é noite.
Ora, só à luz da madrugada
Deita o rebanho pés à estrada.
Terrível
Uns aos outros temos de nos ajudar,
Que o terrível evento
Pode ocorrer a qualquer momento.
Temos de ir
Pelo menos dele a par,
Se o não lográmos de véspera prevenir.
Se não for de mãos dadas,
Amanhã nem restarão sepulturas caiadas.
Castigo
Somos formados
Por actos e desejos de pais e avós.
O castigo por não vivermos criticamente reconciliados
Com o que nos deram, nesta teia de cipós,
E por não assumirmos a responsabilidade
Pelo nosso próprio percurso
É o de ficarmos obrigados,
Idade a idade,
A repetir dos erros deles o curso.
Ora, o erro, de ano em ano agravado,
É, no fim, de tragédias um fado.
Connosco
O mundo que aí vem
Está connosco neste momento,
Ou jamais será um evento
Além.
É só dar-lhe a mão
Em cada pendor de crescimento
E cada botão
Acabará por florir mil perfumes ao vento.
Eternamente
Dará fruto
A semente,
Minuto a minuto,
Pela mão de toda a gente.
Encontrar
Temos de encontrar maneira
De mostrar
O caminho até o lugar
Onde nunca esteve qualquer alma parceira
E de cuja existência ela pode duvidar,
Pondo em causa a vida inteira.
É que podemos sempre perder o caminho
Em terreno maninho.
E então, nos passos que damos,
Jamais nos encontramos.
Consegue
Há sempre entre nós alguém
Que não consegue ver,
Que não consegue deixar pelo mundo além
A beleza viver.
Quem?
Andam dentro de mim e de ti a se esconder...
Quando me distraio
É de mim que demoníaco saio,
De inferno a feder,
Cambaio,
De luz todo e qualquer
Raio
Sob o alqueire a esconder.
Temos de ser mesmo vigilantes
Ou matamos os instantes.
Rumo
É bom ir devagar
Quando a certeza não temos
De que rumo trilhar
Para chegar
Aonde nem sabemos.
Esta é a funda sina
Que a vida nos destina.
Tudo é eternamente interrogação
Nos meandros do nosso torrão.
Enquanto
Enquanto houver
Irmãos e irmãs homens a viver na miséria,
De fome a morrer,
Nenhuma Páscoa será séria.
É que a Terra Prometida
É de dentro deles que nos convida.
Abandonados para trás,
Perdemos da plenitude o fio
E da paz:
- Do Infinito perdemos o bilhete do navio.
Não há ressurreição
Que germine de semelhante chão.
Urgente
É urgente garantir
A quenquer que se nos dirigir,
Seja lá dele qual for a ânsia,
Que a morte não tem nenhuma importância.
Tudo é vida,
Antes e de seguida:
A esta é que importa
Franquear de vez a porta.
Cegue
Que teu resplendor
Não cegue o teu seguidor,
Não transforme em mito
Em teu olhar o que fito!
Dar-nos-ás a vida eterna
Quando lograrmos transpor esta poterna.
Só então meu passo
Poderá recobrir do teu algum pedaço.
Espantos
Para a criança
O mundo é uma torre
De espantos e de magia.
Por isso nele se lança,
O percorre
E desafia.
Será ingenuidade
Inexperiente?
Ou a visão do mundo que a invade
É coerente
Com uma intuição,
Uma imaginação
Mais precisa
Do que quanto a nossa visa?
O nosso arrebatamento
Que já nos morreu
Mereceu
Mesmo o definitivo enterramento?
Desafio
O nosso maior desafio é descobrir
O que as pedras querem, Universo além,
Em que é que se desejam transformar,
E, a seguir,
Obedecer aos desejos que têm
O melhor que pudermos, de nosso lugar.
Este é o segredo mais vastamente esquivo
Que guardamos em nosso íntimo arquivo.
Caminha
Caminha dentro de ti mesmo,
Segue os sinais
Que, a esmo,
Te evitam os tremedais.
Encontrarás a escada
Que te leva do Reino à entrada.
Aí, de era em era,
Estarão à tua espera.
Será sempre assim,
Do princípio dos tempos até ao fim.
Habitam
Recebemos mensagens
De seres que habitam bem no fundo de nós,
Que falam uma língua de imagens,
Só deles voz.
Os sonhos que tive
Andam ainda dentro de mim,
Indicam o caminho que me vive:
Tudo o que fiz trouxe-me a este confim.
Não posso falhar, então,
Senão quanto aprendi foi em vão.
Déspotas
Os déspotas deste mundo
Temem os que insistem em narrar
As próprias histórias até ao fim,
Querem controlar
De como as contamos o pano de fundo.
Assim,
Deles o flanco para sofrerem abalos
É que fazer aquilo não devemos deixá-los.