A PEGADA DO SER
Emigrante
Um emigrante
É um abandono
De raiz.
Cão sem dono
Daí por diante,
Sempre em busca da matriz,
Aprende a amar
Como forma de abandonar,
Sempre com vergonha
Do próprio cariz,
Para onde quer que a fortuna o transponha.
Cão abandonado na perene procura,
Sempre a esmo,
Do dono dele mesmo,
A ele próprio se configura
Dele próprio numa eterna sepultura.
Admira
O pobre admira o rico.
O rico, não.
Aliás, se não busca da riqueza o pico,
Então,
É o palácio, o casarão,
O carrão de luxo,
A amante,
O lago com repuxo...
- A todo o instante,
Uma fuga demente
Para a frente.
E, por trás,
Uma indefinível tristeza
Que acorrentado o traz
Como enjaulada presa.
Até
Nascemos num comunitário patamar
E aí se fica
Até a vida findar,
Senão tudo se complica.
Ou não,
Que aquilo é que é a verdadeira complicação...
Recuperar
Recuperar o equilíbrio
Perante
As marés e as ondas do mar:
Da vida no meio do ludíbrio,
Uma constante
Diante de mim a apelar.
Ao movimento e à mudança
Subjaz
A ordem universal,
Capaz
De impor esta pujança
A todo o real.
Andamos cegos
Na confusão da vida diária.
É a condição humana, sempre refractária
Nos apegos.
Os eventos, porém,
Não são aleatórios.
Uma ordem imutável contêm
Escondida nos envoltórios.
Vagueamos na selva do mundo moderno
Isolados
Quando, afinal, clandestina,
Uma secreta ordem divina
(Que me não consta do caderno
De instruções)
Me embebe por todos os lados
Comigo aos encontrões.
Conjunto
Porque é que vão casar
Se se irão divorciar?
O casamento
Ou é uma forma de crescer
Em conjunto como parceiros,
Ou é um tormento
Que, ao fim, nem sequer
Nos deixa inteiros.
Viver e amar
Ou é crescimento espiritual
Ou não é nada.
Esta escolha singular
É fatal
Em toda a humanal
Jornada.
Dado
Todos tomamos
Como um dado adquirido
Aqueles de quem mais gostamos.
Daí que tantos os tenham perdido.
O amor nunca se conforma
Com tal norma.
Ou é constantemente adubado
Ou murcha, fanado.
Imita-o
O que a vida promete
E o que a vida dá
São coisas bem diferentes.
Nunca ela se repete,
Desde já,
Mas imita-o bem, entrementes:
Sempre o mesmo ciclo anual,
A convidar ao consórcio.
Quando, afinal,
Há sempre um lado outro no mesmo sinal...
- E quanta vez tudo finda num divórcio!
Tratar
Montar e brincar com os cavalos,
Mas que medida
Tão divertida!
Tratar do material, desarreá-los,
De tão diferente
É de pôr qualquer um doente.
O problema
É que em tudo a vida é assim
Do princípio até ao fim,
Não há como escapar ao dilema.
Mesmo quem fizer escravos
Não escapará deles à revolta,
Aos amargos travos
De que só se livra quando os puser à solta.
Nada disto a ninguém reduz
O peso do oiro que leva,
A moeda que reluz
Tem o reverso na treva.
Continuo
A formosura atrai.
Depois continuo à procura,
A ver se a beleza se descai
E mostra a entrevista figura,
Ou se dela nada
Mora atrás da máscara enganada.
E quantas vezes o vazio
É só o que desfio!
Felizes
A felicidade...
Que felizes fomos!
No momento nunca o sabemos, não é verdade?
Felizes nunca o somos.
No presente, é o imediatismo.
Só depois medimos a altura,
A partir da fundura
Do abismo.
Donos
Aos donos de tudo isto, eis
O que mais os aterra:
Erguendo-se, os oprimidos da terra
Lavram as suas próprias leis.
Nem se dão conta, os donos estúpidos,
De que, se deixarem de ser cúpidos,
Inauguram todo um campo aberto
Para a alegria lhes ficar mais perto.
E eis porque a felicidade
Deles perpetuamente se evade.
Simultaneamente.
Nosso velho eu
No passado viveu
E se perdeu.
E hoje, vivo,
Aqui o revivo
No presente esquivo.
Como um rio
Que após
Nascer num fio
Existe simultaneamente na foz.
Afinal
Sou outro e o mesmo
Quando no real,
Em busca de meu sinal,
Me ensimesmo.
Tragédia
A tragédia humana
É que nos encaramos como mercadoria.
Uns aos outros toda a semana
Nos utilizamos, dia após dia,
Como coisas
Em que nem um olhar poisas.
E o pior é que cada qual se utiliza,
Se apresenta, se vende
Como uma coisa que nada mais visa
Senão quanto lhe rende.
Reduzido a coisa
Como é que algum dia alguém repoisa?
Campos
Todas as realidades materiais
São momentos
De campos de força invisíveis.
Não são coisas reais,
Mas os efeitos perceptíveis
Daqueles ventos.
O visível, por muito que nos custe,
É o mero resultado daquele ajuste.
Ali atrás, afinal,
É que reside a realidade do real.
Untando
Às vezes, untando umas mãos,
Os mais pequenos fazem e calam.
Os grandes, então, é que escorregam dos corrimãos,
Se estatelam da escadaria que escalam,
Enquanto os criminosos, na alfombra,
Gozam, ignorados, a sombra.
Por muito que na História seja raro,
Também com isto deparo.
Manha
A manha da humildade no agir
E da louvaminha na palavra
Por parte de quem pedir
Sempre soaram a justa lavra
De reconhecimento
Do valimento
E do coração
De quem for o alvo da função.
- É a mais eficaz armadilha
Para lhe afundar ao barco a quilha.
Árvores
Como as árvores somos:
Por vezes urge podá-las,
Mutilá-las,
Para reverdecerem mais fortes,
Melhorarem os pomos...
- Para reencontrarmos os nortes.
Por vezes até aterra:
Dispara a mortandade duma guerra.
Serial
Não se relaciona bem
O assassino serial com ninguém.
Como o laço com o mundo está torto,
Só se liga bem com um morto.
Quando nele me concentro,
Reparo que está morto por dentro.
E é isto que fora dele representa
Em tudo o que tenta.
Dinheiro
O dinheiro não é só, não é,
Nem simplesmente dinheiro.
Sempre outra coisa qualquer
Dele germina no pé,
É sempre mais, nunca inteiro,
E, sem a gente o entender,
Marca-nos do dia a lavra
Com a última palavra.
É pena,
Que é uma palavra bem pequena.
É um além
Tão pouco
Que quem só a ele se atém,
Pouco menos é que um louco.
Aprendemos
O dinheiro fala
E, na medida em que o escute
E lhe obedeça aos ditames,
A vida se desentala
Seguindo recta o azimute
De escapar aos gravames.
Aprendemos nesta viagem
Da vida material a linguagem.
Demora a entender, demora,
Que o amor ficou de fora.
Realidades
Há realidades incríveis
Para qualquer tapado
Que as visa:
Andam por aí seres invisíveis
A caminhar lado a lado
Com quem precisa.
Crente ou descrente,
Esta é a condição de toda a gente.
Muitos há, porém,
Que com ela comunicam a bem.
Estes não precisam de fé:
É uma realidade com que convivem ao pé.
Os mais, contudo,
Nem com fé lá vão, a miúdo:
É a pior peste
Que na actual civilização contra nós investe.
Treda
Todos temos uma treda mão
A tentar estrangular-nos
E a outra, ao mesmo tempo, então,
A lutar por preservar-nos.
E assim somos, divididos,
Ora de pé, ora caídos.
Ao meio rachados,
Menos um só, mais dois mal colados.
Recusa
Aquele que é bom
Recusa acreditar que o é,
Tem o condão
De sempre duvidar do próprio pé.
Tal dúvida é o dom
Que o torna mesmo bom.
O mau
É que acredita que é bom, em suma.
O bom nunca encontra de passagem o definitivo vau,
Não acredita de vez, do que faz, em coisa nenhuma.
Passa o tempo a todos a perdoar
Menos a ele próprio, que ali não tem lugar.
Enfrentar
O corpo humano pode ser apreendido,
Não pode ser, porém,
Definitivamente compreendido.
É assim com toda a realidade também:
Até a partícula subatómica,
Por ínfima que seja, no-la destina
Esta sina
Trágico-cómica.
Temos de enfrentar este conflito
Até ao Infinito.
Criar
Quem quiser criar beleza
Não cria nada de jeito.
A beleza não é uma presa,
Requer preito.
E então cuidar dela a esmo?...
A beleza é, no jardim, um vaso
Que sabe cuidar, a prazo,
Dele mesmo.
Arroteiam
Indivíduos que arroteiam os caboucos do mundo
Estão presos.
Poucos têm o corajoso fundo
De se erguerem, tesos,
Arriscando pelos outros, desmedida,
A vida.
Comparados com eles não somos nada,
Agrilhoados em cada curva da jornada
À nossa fraqueza, indiferença,
Ao sombrio conformismo que nos vença.
E os que arroteiam os caboucos,
Nos outros a acreditar,
Loucos...
E os outros para o ar
A assobiar...
Estes tantos, tantos e eles tão poucos!
Combatente
O combatente, quando volta a casa,
Olha o espelho:
É um velho
Cuja idade nada abrasa.
Fechado,
Ensimesmado,
Nunca fala
Na guerra que doravante na vida se lhe entala.
- Ferida aberta que o coração lhe visa
E que até à morte nunca mais lhe cicatriza.
Somos
Eis quem somos, afinal:
O indivíduo que caminha,
A vida feita uma estrada real,
Tornando uma adivinha
A pegada
Fossilizada
Numa qualquer rocha ancestral
Que, desde há milhões de anos,
É tanto tua como minha
Em seus misteriosos arcanos.
Cada qual um caminheiro
Do mundo e do tempo inteiro.
Sempre
Morto de sede no deserto do Saara,
Da Antárctida na planura branca enregelado,
No floresta virgem da Amazónia de mosquitos picado,
Repara:
Até onde a vista alcança
Há sempre uma esperança.
E, se te chega ao derradeiro fim a caminhada,
Não é o fim: principia a Grande Jornada.
Crítica
Na crítica situação
A coisa mais insignificante
Conseguida
É que valorizamos então
Como a mais importante
Da vida.
- E é um outro mundo que nos abre o portão.
Monstros
A vida,
Já que é iminente sermos esmagados
Por monstros de lata mecanizados,
Não nos é de todo garantida.
Contudo, nada nos mais apraz
Que por garantido dar
Que amanhã iremos acordar
Em paz.
Inteiramente
Aquilo de que outrem precisa
É inteiramente diferente
Daquilo que, do alto da minha divisa,
Em meu pedestal assente,
Eu estarei disposto
A dar-lhe, a meu gosto.
Não admira
Como tão desencontrado o mundo gira.
Desnorteada
No meio das árvores perdemos a perspectiva,
A direcção.
A vida é mesmo isto: esquiva,
Desnorteada até mais não...
E nem a religião
Nos aviva
O norte que tomámos nas alturas,
Pela teia dos trilhos perdida nas figuras.
Exageros
Os exageros hiperbólicos mais perto
Andam por vezes da realidade
Do que decerto
A verdade.
É que a palavra
Que apenas evoca
Enfia também, dela na toca,
O fado do mistério que lavra.
Quem doutro modo o vai descortinar
Na escuridão de tal lugar?
Três
Vivemos a três refeições
Da anarquia.
Dos humanos quando os biliões
A fome sofrerem até àquela fasquia,
Não há mais travões
Sequer:
O colapso inteiro há-de ocorrer.
E não haverá fuga para nenhum quintal:
Será mundial...
Terceira Guerra?
- Que importará o modelo então, se tudo então nos ferra?
Traz
A poesia
É fantasia,
É.
Mas é mais verdadeira
Que a História inteira:
É quem a põe de pé
E ma traz para a minha beira,
Carregada com a romaria de fé
Na vida
Que sobre a humanidade ligeira
Toda peneira,
Desmedida.
Serve
De que serve a força
Não sendo exercida?
É a medida
Que a reforça
Por a termos contida.
E por deixar a vida
À solta,
A sonhar desenvolta
Tudo o que para além
Inatingível advém.
Estiver
Onde estiver o dinheiro
Está o poder,
Excepto onde estiver, pioneiro,
O verdadeiro
Ser.
É o que, fecundo,
Desestabiliza o mundo.
Depois
Depois de experimentar
Voar,
Todo o caminho pela terra
Tendeu para o pico da serra
E, quando este ocorreu,
Foi logo de olhos postos no céu.
Porque já lá estivemos
Não vemos a hora em que retornaremos.
Vingam-se
Os que foram muito magoados
Por vezes vingam-se magoando
Por todos os lados,
Até quem mais os ama, de vez em quando,
Mesmo sendo quem mais lhes presta cuidados.
Gente de saraiva,
Não de códão brando,
São apenas raiva,
Não respeitam sequer o bando.
Ou então, quando os atropeles,
O bando são eles.
Trata
Médico em tempo de guerra
Trata sintomas, nunca autorizado
A tratar a causa que a todos se aferra:
A própria guerra.
A menos que, com furor,
Aceite ser trancado
Por traidor.
Desilusão
Somos a eterna criança
Que nunca aprende a lidar
Com a desilusão que a alcança.
Sempre a julgar
Que uma maneira há-de haver
De atingir
O que quiser
Sem desistir
Nem sofrer o enguiço
Dum compromisso.
O crescimento é doloroso
E o tempo que leva!
E quão viscoso
Daquela treva!
Biliões
Quatro biliões de mulheres,
Todas vítimas conscientes,
A viverem na esperança doutros orientes,
Do golpe de magia que transmude
Desgraças e afazeres
No sonho que as ilude.
Sempre na mesma trilha de pegadas,
A domar o asco,
Por medo de serem abandonadas
Pelo carrasco.
Entre
A diferença
Entre a prática e a teoria
É que o académico nunca aprecia
A realidade que o vença.
É por isto
Que nenhum Galileu
É acolhido deles no céu
E tão crucificado é sempre Jesus Cristo.
E nunca chega a hora
De findar com tal demora.
A história inteira
É sempre eternamente esta peneira.
O terrenal chão
É mesmo do Paraíso a maldição.
Fácil
É mais fácil ceder,
É mais fácil largar a mão
Da borda da falésia
E esbarrondar-se no pedregoso chão
Do que trepar quenquer,
A mão rézia,
Antes de ir-me,
De volta à terra firme.
Em toda a encruzilhada da vida
Esta é a tentação e a medida.
Fatalmente
Tudo o que se do Céu disser
Não é nem há-de ser.
Não por não ser, mas por ser aquém
Do que o Céu for fatalmente para além.
Nem vale a pena imaginar
Que ser não tem ser nem tem lugar.
E é
O que, afinal, todo o ser mantém de pé.
Pinto
Todos sentimos a tremenda necessidade
Da religião:
Eu e a Infinidade
Em união.
Então,
Sem lugar onde me acoite
Das procelas,
Saio de noite
E pinto as estrelas.
Dívida
A dívida que tens hoje
Reclama teu amanhã
Que de ti foge,
Em virtude da prenda malsã
Que pretendes sem demora
Obter aqui, agora.
A dívida é uma droga,
Um pico rápido de prazer
Que ao fundo o porvir te afoga,
A perder de vista, a perder...
Limita-te as opções
Com o peso sobrecarregado
Das lesões
Do passado.
Partilhamos
Partilhamos uma ordem superior
Onde nada é predeterminado,
Um campo infindo de possibilidades em flor
Mudando a cada instante pelo prado,
De acordo com o que lhes dita
Nossa maneira de pensar e de sentir
Mais do roteiro a fita
De agir.
Hábito
O hábito incontrolado
Devém necessidade.
Não é nunca, porém, por outro lado,
Uma qualquer
Fatalidade
Que tenhamos de viver.
Ao invés, contudo, nas caminhadas,
Quantas vezes é a matriz das escolhas erradas!
Encrava
Há muito factor externo
A impedir meu crescimento,
Como um perno
Que me encrava o movimento.
É como se o rico dissesse:
“Larguem o campo ao abandono,
Que o camponês que aí falece
Deixa a terra sem dono
E vem, trabalhador ilegal,
Dar-me a mão-de-obra barata
Com que a minha riqueza, afinal,
Se me acumula, grata.”
Ou então:
“Temos de engordar a população
Para depois haver a quem vender
Medicamentos para emagrecer.”
Ou, pior ainda:
“Precisamos de desintegração familiar
Para a gente deprimida sobrevinda
No álcool e na droga insistir em escapar.”
E o rico, na venda, sempre a engordar:
Desgraça bem-vinda...
Convém-lhe a escola pública má
E a privada, muito cara,
Para mais jovens só entrarem acolá,
Nada aprenderem que importara,
De modo que, ganhar a vida,
Só como assassino ou traficante
Ou na escravatura escondida
Da empresa predominante.
Polícias corruptos,
Governantes inescrupulosos,
Indivíduos solitários degenerando em brutos,
Abandonados, desamparados, pedinchosos,
A aplaudir sem parar
A migalha de ajuda que lhes queiram dar...
- Pode o rico nem tomar disto consciência,
Esta é a lógica, porém, de sua procedência.
Tanto
A emoção (como o pensamento)
Afecta,
Tanto quanto de agir o evento,
O mundo que se projecta.
Emoção e pensamento:
Energia em movimento.
Saem de nós, irradiam
E contagiam,
Invisíveis embora,
O mundo que em redor mora.
Que investidor ecoa
O sofrimento duma pessoa?
Que banqueiro se preocupa e preza
De alguém a tristeza?
Quem perde o sono
Com os suicídios de adolescentes,
De infelizes, sem abono,
Nem futuros pendentes?
Os pensamentos viajam
Na forma como nos relacionamos,
Trajam
O gesto como trabalhamos,
Como consumimos,
Como partilhamos,
Como amamos...
- Como na vida todos os cimos
Celebramos.
Medo
O medo nos paralisa,
Travão que não cede um momento,
Num Universo que se realiza
Em perene movimento.
Não admira,
Quando mais cada um por parar se esforce,
Como a vida nos revira
E torce.
Confinados
O medo é do tempo que a tudo
Porá fim,
O que nos aterroriza a miúdo,
Confinados como vamos a nosso estreito confim.
Medo da perda afectiva,
Da rejeição,
Da velhice a que ninguém se esquiva,
Da doença, da lesão...
O medo se herda,
Para nosso desnorte,
E é sempre medo da perda
Onde principia a morte.
Governantes
Os governantes controlam a população
Com base no medo:
Quanto maior a aflição,
Maior o controlo tredo.
Do atemorizado o sentimento
É de vulnerabilidade,
Logo o salvador, num momento,
O persuade:
Defende ele a democracia,
Proclama a liberdade,
Cada povo seu destino decidiria
À vontade...
Para tal intervém com a força armada,
O exército sai à rua,
A repressão é generalizada.
Do modo como actua
O mais impressionante
É que as vozes da multidão
Aplaudirão
O aperto do próximo cabrestante
Que as âncoras da vida
Lhes furtam de seguida.
Crime
O crime organizado,
Na luta pelo poder,
Usa o medo como um dado
Em conta a ter.
Populações reféns,
Ameaças de bomba,
Sequestros de pessoas e bens,
- À dor do medo tudo tomba.
Na fuga ao tormento
Todos findarão,
Afinal, bem pior: no isolamento
E reclusão.
Esconde
O meu medo verdadeiro
Esconde no interior
Outro maior
E este outro ainda mais fundeiro.
Se eu entender o derradeiro
E o mudar,
Não há para mais medo lugar.
Tens medo de envelhecer?
Não, é que te recusem trabalho,
Ninguém te vá querer,
Carta fora do baralho.
E daí?
É que então já ninguém goste de ti.
E depois?
Votado ao esquecimento, teu desnorte
É de que findem os arrebóis:
- Temes é a morte!
Prazo
Somos mais que um corpo com prazo de validade.
Pensamento
É energia em movimento.
Emoção
É energia que me persuade
À movimentação.
O corpo físico é um pedaço de Universo
Que caminha, move e se transforma,
Terso,
Constantemente e por norma.
Ninguém está condenado,
Desta sorte,
Nem a ser separado,
Nem à morte.
Todos somos um no confim
Deste Universo sem fim.
Corpo
Se sou um corpo feito de matéria,
A emoção, o pensamento, a memória, o amor
E toda a mais frota sidérea
De meu interior
São, em resumo,
Menos que fumo?
Não são matéria.
Todavia existem
E persistem
Sobre a matéria em agir,
O que é demais para uma ilusão aérea,
Um mero nada, afinal, não subsistir.
Em meu íntimo me comovo
E logo
Meu corpo de matéria movo,
Em desafogo.
O que penso e memorizo,
O que sonho e me persuade
Transforma-se de juízo
Em realidade.
Sou o que sinto, o que penso,
O que recordo e comunico,
Sou o que amo e que dispenso
E nunca só por mim me fico,
Que sou de facto o mundo inteiro:
Nunca pensamos sozinhos,
Do infindo Universo me abeiro,
Em meu sonho as Galáxias fazem ninho.
Partículas
Meu imo as partículas subatómicas
Alinha em formações militares
Subliminares,
Modelando irracionais danças cómicas
Larvares.
Meu imo
Ilocal como inespacial
É o bordão de arrimo
De todo o mundo natural,
O estreito
Mundo da percepção
Que ajeito
A partir de meu imaterial
Coração.
Meu projecto espiritual
Modela, subtil,
Partículas mil
E o mundo já não é igual:
A cadeia de mil outras mil grava
E nada a deriva trava
Até ao horizonte final
Do Universo total.
O Cosmos é o campo da lavoira
Que meu imo agoira.
Transmitir
Transmitir informação mente a mente
Não requer o cérebro da gente.
A ilocalidade da consciência
Não tem de tempo ou espaço qualquer exigência.
Opera
Para além da matéria mera,
Mas sempre nesta a se reflectir,
Caminho fora ao ir.
Um mundo do outro diferente,
Um ao outro soldado, porém, permanentemente.
Confundo
Confundo quem sou com o que faço,
Defino-me com o traço
De dona de casa, soldador,
Engenheiro, doutor...
Ou então com o que tenho me confundo:
Sou rico ou pobre,
Devedor ou, do que me sobre,
Detenho um fundo...
Ora, não somos uma faceta
Única, irrepetível.
Somos, ao invés, mil caminhos para a meta
Inatingível,
Somos a fome e os bodos
De qualquer conteúdo,
Somos todos
E tudo.
Ninguém é aquilo que come,
Todos somos fome.
O restante
São iguarias
Que festejamos vida adiante
Todos os dias,
A inesgotável variedade
De sermos Humanidade.
Meta
A meta que desejo
É o meu revelador.
De ser estrela busco ensejo
Ou de ser realizador,
Quero salvar animais
Ou os meninos da rua...
- Tais desejos pessoais
Moldam o perfil de quem actua.
E eis como o pensamento
Molda a matéria a todo o momento.
Em mim e fora de mim
Todo o mundo se entretece assim.
E a manta que nunca tem final
Sou eu e o mundo num abraço total.
Eternamente
A esculpir o presente,
Sempre em frente, sempre em frente...
Tempo
Tempo fora, sou a estrela,
Sou a pedra, sou a flor,
Sou o corpo a me propor,
Navegante caravela.
E, a seguir,
Transmudo-me em algo mais,
Quando mergulhar no cais
Do Universo
Que sempre, sempre em frente há-de ir,
Feito de novo meu berço.
Assim é que eternamente
Perduro,
Perene semente
De futuro.
Realidade
Dia a dia reparamos
Na realidade em redor,
Fixamos
O evento maior,
Melhor,
Pior...
- Que cremos tão relevante
Que é de não perder adiante.
Armazenamo-los na filmoteca
Da memória,
Evocamo-los, a meio de qualquer seca,
A recuperar-lhes da fértil rega a glória.
Convencemo-nos de que são factos
Que deveras ocorreram.
Todavia, nunca o são,
Mas apenas uma minha projecção,
Pactos
Que advieram
Entre meus quadros de referência
E da realidade a evidência:
Vejo de acordo com meu mundo de crenças
E o que observo converte-se dele nas sentenças.
Projectei previamente
Aquilo que vejo à minha frente.
Da frente recolho o quadro
Em que, no fundo, a mim,
Por fim,
Me enquadro.
E não há como fugir
A esta forma de o mundo repartir.
Vestir
O facto é um sarilho
Que me escapa,
De o vestir sempre com o brilho
Da minha capa.
Na tarde chuvosa,
À saída dum centro comercial,
Um sem-abrigo a miséria escabrosa
Adormenta em pleno temporal.
Um desconhecido
Que a tiritar meio adormecido
O descobre,
Tira o casaco que tem vestido
E dele o cobre.
Dá uma corrida até casa, ali ao lado,
Sem ter reparado,
Da emoção com o impacto,
Que as chaves deixara no casaco.
Volta atrás e, encontrando o mísero a dormir,
Para o não acordar, o mínimo a bulir,
As chaves procura
Que esquecera na altura.
De repente repara que alguém
O olha espantado
Por cuidar ver um sem-abrigo a ser roubado.
Quando, porém,
Lhe tentou explicar
O que havia ocorrido,
O outro desembestou do lugar
A correr espavorido.
“Quem é capaz
De assaltar um sem-abrigo
Que é que me faz,
Se o lobrigo?”
Em casa comenta à esposa:
“Roubar a miséria no centro comercial!
Não há moral.
Neste mundo já ninguém repousa!”
A partir duma imagem
Enganou-se por completo
E nenhuma outra triagem
Lhe refaz o juízo desafecto.
O facto é um sarilho
Que me escapa,
De o revestir sempre com o brilho
Da minha capa.
Depende
O que eu vir
Depende da minha localização:
Se mudar, a seguir,
Terei outra visão.
Ninguém poderá dizer
Que vê o mesmo que o vizinho
Nem que é a única legítima a visão que tiver
Do dado
Aflorado
No caminho.
Corpo
Vivemos tão iludidos!
Meu corpo tão real e sólido
Perante os sentidos,
Por muito que me custe,
É um estólido
Embuste.
A nível das partículas,
De pequenas tão ridículas
Que as nem vemos,
Aparecemos e desaparecemos
Milhares de vezes a cada instante.
Apesar disto, temos o desplante
De encarar o corpo como sendo, de facto,
Um volume compacto.
Vemo-nos como filme em perpétuo movimento,
Quando somos fotogramas
Projectados segmento a segmento.
E entre as escamas
Da luz projectada
Somos a escuridão do nada.
Quando alguém no tempo me olhar,
No momento me congela,
Apesar de eu continuar
A renovar
Minha sequela.
Que quantidade de imagens armazeno
Na memória
Que não representam nem o campo nem o feno
Da minha história!
Iguais
Nas actividades que empreendo
A iguais emoções me rendo
Vezes e vezes seguidas.
São as medidas
Dos vícios e virtudes emocionais
Que empedram as minhas estradas reais:
Esforçam-me a passada
Ou tolhem-me a jornada.
Jovens
Os jovens carregam, a todos os instantes,
Imagens de violência,
Nos jogos de computador dominantes,
Nos filmes, na televisão,
Nas lutas pela excelência
Onde estudam, na competição,
No público transporte,
No estádio de futebol que lhes aponta um norte,
Nas festas aonde vão...
Findam viciados na adrenalina
Que, desde agora,
Vida fora
Os destina.
Como às vítimas de violência familiar,
Da guerra,
Do terrorista que as aterra,
Do traficante de droga que as dominar...
Exposição contínua e repetida
A um tremendo risco
Leva a adrenalina produzida
A saltar todas as baias do aprisco.
E vicia tanto
Como qualquer outra droga
Que nos afoga,
Entretanto.
Quão mais trepas pela adrenalina
Mais
Descais
Na serotonina.
Ora, esta é que nos forma o bem-estar,
Trava a impulsiva
E agressiva
Maneira de actuar.
Que admira que procuremos
Extremos
Onde descarregar
A raiva sem sentido
Definido
Em que vivemos?
Que admira que queiramos
Guardar na memória
Eventos em que cirandámos
Sem glória
Denegridos, humilhados,
Atemorizados?
É, do rastilho do vício,
O perene resquício.
Condição
Se da condição de vítima me despojar,
Adquiro um novo rosto,
Espelho proposto
Para outrem descobrir, a par,
Que sou mais que um corpo dorido,
Ferido,
Torturado,
Ofendido...
Na fundura do fundo
Mais profundo
Sou sempre um outro lado.
Sofre
Se meu corpo sofre uma perda,
Meu íntimo não a herda.
Minha energia interior
Mantém-se íntegra, superior
A qualquer destruição
Que ocorra no meu torrão.
O que eu era antes
Mantém-se após a refrega,
Apesar da ilusão que o nega,
Da vida com os novos implantes.
Poderei encarar alguém
Como vítima ou como luz
Que até nós do Cosmos advém
Por nosso íntimo que sempre a traduz.
A luz pode transformar-se
No que quer que seja
E, ao mudar-se,
Transmite o que almeja
Ao corpo, de imediato,
Para incarná-lo em acto.
É sempre assim,
No indivíduo, no país, no mundo:
Por trás do que vemos há outro confim
E é a energia dele que tudo torna fecundo.
Entrevistas
As imagens entrevistas em sonho,
Umas às outras se entrelaçando,
Vão criando
Um mundo outro de que já disponho,
Germinalmente despontando:
Do mundo a mudança presente
Principia na mente.
Afirma
Qualquer ajuda
Afirma a separação
Entre o superior que acuda
E o inferior em provação.
Aquele pode-me destruir
Se me negar a obedecer.
Se o bem vir,
Fui eu quem lhe deu o poder,
Com meu voto a deixá-lo vir
Até meu caminho me tolher.
Ao invés, confiança,
Cooperação:
Num mundo interligado
Nada se alcança
Em nenhum lado
Sem eu lhe dar a mão.
Aqui a sina
É que a ninguém ninguém domina.
Ninguém
Ninguém pode viver
Nem morrer
Sozinho,
Sem que lhe acuda
A nossa ajuda
Durante todo o caminho.
No meio da maior solidão
Estou sempre eu inteiro a dizer a alguém que não.
Vontade
O desejo, a intenção, o consentimento e a escolha:
Eis a vontade a decidir e ordenar o comportamento
E o que dele recolha
A cada momento.
E por trás de tudo, o empurrão por definir
Que me impele a agir:
Sou o mágico instrumento
Dum Universo em perene movimento.
Gratuito e fiel, eternamente me empurra...
- E a materialista mente
Que constantemente
O esmurra!
Enfrentar
Sem vontade,
Como enfrentar o medo,
O degredo
Que nos destrói a identidade?
Poderei ter lido mui bem meu personagem,
Ao pormenor captado
Meu passado,
Libertado emoções negativas nesta romagem...
Sem vontade, porém, com que a vida acometa
Nunca atingirei a minha meta.
Criativo
A imaginação,
Revelando novos mundos por trás dos véus,
É uma pequena repetição
Do acto criativo de Deus.
Mais importante que o conhecimento,
Inelutavelmente limitado,
O imaginário voa com o vento,
Sem fronteiras,
Até às leiras
Que houver a descobrir
Do outro lado.
É o ovo
A eclodir
Do mundo novo.
Proliferam
A imaginação,
Por não ter limites,
É uma perturbação
Para os que foram educados
A nunca ter palpites
Num mundo de significados
Fixos.
Por isso enchem tudo de crucifixos
Sem nunca haver ressuscitados.
E as chagas
Proliferam mundo fora como pragas.
Imaginário
O imaginário, como amor
De que na friagem da vida me enrolo,
Não tem baias em redor,
Escapa-nos inteiro ao controlo.
Não entra na bolsa de valor,
Ninguém o pode regular,
Nem vender, nem comprar...
Num mundo desenfreado
De mercado,
É deveras assustador.
...Ou, para quem lhe ficou ao lado,
Até que enfim libertador!
Andar
O que faz andar o mundo
É o dinheiro.
O que faz andar a gente
O desmente
Por inteiro.
Fecundo,
Só o amor gratuito
De que me inundo.
Por isso o quero muito, muito!
Tanto
Que quanto menos envolvido dinheiro,
Maior o encanto.
O mundo anda às avessas.
Como pode presumir
Vir-nos pedir
Meças?
Obtém
O assalariado
Que não obtém o dinheiro pretendido
Pelo trabalho vendido,
Finda desalentado,
Quebra-se-lhe a vontade.
É uma rebelião
Em germe, dele na interioridade.
E porque não?
O dinheiro tem casa, educação,
Médico, alimentação,
Diversão
E tempo livre à medida
Para desfrutar a vida.
O pobre não tem nada:
Corre o dia para o emprego,
Cumpre horário, num desassossego,
Retorna de vida esgotada.
Não sobra tempo nem energia
Para nada, em cada dia.
O tempo vale
O que lhe pagam por hora
De desempenho laboral,
Não demora.
Liberdade, vontade, criatividade
Foram, com o tempo roubado,
Habitar noutra cidade,
Na vida de algum outro lado.
Roubar o tempo de alguém
É condená-lo a labor alienado,
Como quem
Do alcance dele próprio vive de vez abandonado.
Desvanecer
Às vezes acreditamos
Que se poderá desvanecer da noite para o dia
Tudo aquilo que sonhamos,
Sentimos,
Pensamos,
Desejamos,
Como mera fantasia
De que nos imos,
Sem deixar rasto
Nos campos do mundo de nosso pasto.
Com a mão de veludo
A morte apagaria
Tudo.
Ignoramos que, mal afloram à mente,
As vivências irradiam no coração,
Expandem-se pelo Cosmos instantaneamente,
Feitas colectiva informação,
Minha espiga de milho
Que com todos compartilho.
Uma vez isto ocorrido, de verdade
Duro para a eternidade.
Crítico
Uma vez um número crítico atingido
Dos que repetem uma informação,
Uma consciência colectiva brota, no sentido
Da adesão,
Instantânea e sem requerer
Mais comunicação
Sequer.
Fará parte do património comum
Em que todos somos um.
E desta maneira eclode do ovo
A geração dum mundo novo.
Semente
Os que beberam no leite
A semente dum além
São o melhor de nós aceite
E que aí vem.
A luta não foi em vão.
A experiência adquirida
Permanece a germinar no chão
E, tarde ou cedo, rompe a cobertura erodida,
Invade
O reino da realidade.
É o sonho a atingir
Ser mesmo o porvir.
Primeiro
Primeiro criam o vírus de computador,
Depois a cura
Que uma fortuna assegura
Ao vendedor.
O laboratório cria primeiro a doença,
Depois a cura
Que à procura
Convença.
Que importa o dano?
Alguém ama mais o dinheiro
Que o rasteiro
Animal humano.
Por mais que alcance
À custa da humanidade,
A felicidade
Ficou-lhe de vez fora de alcance.
Íntimo
De vida todo o Universo palpita,
Do átomo mais pequeno
À mais longínqua estrela.
O íntimo dele o habita,
Pleno,
Frutificando em cada gabela.
A matéria toma forma
Quando um novo coração
A informa.
Quando deixa de bater
Um batimento qualquer,
Então,
A vida individual pára
E na mais vasta mergulha que a abarcara:
Todas as vidas numa,
Aquela que a todas, finalmente,
Assuma
E que na eterna mente
Resuma
E no misterioso coração
Onde palpita a cósmica palpitação.
Encara
Uma cultura materialista,
Assente na competência para ter,
Encara a entrega gratuita como falta de vista,
O desinteresse como não-ser.
Por isso pouco lhe importa o impacto
Que sobre outrem tiver qualquer facto.
Por isso dia após dia mais nos enterra
Numa surda-muda mundial guerra.
Mola
A estrutura social
É uma mola em espiral.
Se a ponta superior dos ricos
Se esticar demais,
Enquanto a inferior, dos pobres, nos picos
Fica presa dos silveirais,
Há um ponto de ruptura
Em que se estilhaça toda a estrutura:
É a Revolução Francesa, as Guerras Mundiais...
A mola só se aguenta
Se, quando a ponta rica um novo patim tenta,
Rodar a mola inteira,
De modo que a inferior de novo patamar se abeira.
Quando um por cento de abonados
Tem noventa e nove por cento da mundial riqueza,
É o canto de finados
Da humanidade ilesa.
Ou rapidamente a pobreza
Trepa os degraus retardados
Ou a mola social retesa
Quebra, de elos mundiais estilhaçados.
Imagem
A imagem que de nós temos
É uma imagem fabricada.
O que ao espelho vemos
É um pouco do corpo, mais nada.
Não vemos o que pensa, sente,
Do que se lembra, por que anseia...
Não vemos que laços imprime a mente
No mundo que nos rodeia.
O espelho mente,
Que nos representa
Apenas parcialmente,
De fora deixando o melhor da ementa.
No Todo, cada um de nós é parte
Da manta do Universo inteiro.
Nossa identidade, destarte,
Tem ali seu fio de trama verdadeiro.
Podemos por aqui recuperar, nesta medida,
A memória de nós próprios, em seguida.
Problema
Tendo um problema em mente,
A resposta vem a seguir:
“Gostaria de saber se há uma via diferente
De sair.”
E a via chegará,
Como se a mente atirasse a pergunta
À mente cósmica que nos rodeia sempre cá.
Toda e qualquer solução logo se junta,
Prenhe de inesperados,
Em sonhos ou acordados.
Vislumbramo-las tanto quanto
Os obstáculos foram eliminados
Que impediam a ligação a cada recanto
Da vontade do Universo
Com que então mudo converso.
Unidade
Ao criar,
Deixo de andar isolado,
Minha unidade ao afirmar
Com a fundura que em mim adivinha um Outro Lado.
Dando-lhe corpo quanto me invade,
Aí radica a minha liberdade.
Aí sou dono da escolha
E do destino.
É minha cura que eventualmente então recolha
E meu carácter que afino.
O bem-estar e o progresso
Estarão,
Por minha mão,
De regresso.
Uma comunidade saudável
Vive tanto disto em virtude
Como dum serviço de segurança fiável
Ou de saúde.
Queima
O artista,
Com a alegria
Secreta
De tudo quanto invista,
Queima tanta energia
Como um atleta.
Mas há sempre quem insista
E de lado o desquita
Como um parasita.
Entretanto, a chave do céu
Pende do pulso que é o seu.
Simples
É simples a vida
E muito complicada.
É simples querer um gelado, um prato de comida,
Uma boneca articulada...
É simples querer a fama.
Mantê-la um ano, uma vida inteira,
Que complicada derrama
Tudo então em nós peneira!
É simples querer alguém
De todo o coração
Mas que complicação
Se for casado também!
Pior ainda se por nada
Larga a família formada...
- É indubitavelmente contraditória
A costura de nossa história.
Tédio
Ninguém mostra gratidão
Por aquilo que possui,
É de tédio o chão
Do que frui.
Por esta falta de siso
Perde-se todo o paraíso.
É dele na falta
Que o inferno salta.
Segunda
A segunda oportunidade
Nem sempre a vida a oferece.
É o rosto da vaguidade
Que tanto a textura lhe entretece.
Tudo é arriscado.
Porém, se não corro o risco,
Que petisco
No fim da vida hei petiscado?
Ninguém é dono de nada,
A propriedade é uma ilusão,
Desde o bem material
De cada jornada
Ao bem espiritual
Que modela, afinal,
Cada íntimo torrão.
Quem perdeu
O que tinha por garantido
Já entendeu
De tudo qual o sentido
Que mais convence:
- Nada nos pertence.
Inferno
Quem a preza
Pura
Paga o inferno desta certeza:
- A beleza
Não dura,
Esvai-se presa
Do envelhecimento da formosura.
Inefavelmente
São inefavelmente míticas
As saudades dum instante.
As pegadas de outrora, entretanto, são fatídicas,
Nada lhes pode mudar o negro ou branco doravante.
E a vida aguarda conjunturas críticas
Para revelares o lado brilhante
Que depois consagres
Quando passas:
Ou milagres
Ou desgraças.
Busca
Na busca da felicidade
Estamos todos empatados:
Nenhum de nós, em profundidade,
É feliz dos quatro costados.
A vida trocou-nos os lados:
Não é a minha leira que hoje grade,
É a que me foi pelos eventos oferecida,
Onde da outra vou charruando a lida.
É sempre entre os dois planos
Que acerto perdas e danos.
Sacrifica
A luz que provém
De alguém
Que sacrifica o que é importante
Ao que importante for mais,
Porém...
O herói, o santo, os entes geniais
Que sacrificam vida adiante
Os bornais
Para calar a fome
Da Humanidade, em tantos recantos
De prantos
Onde ninguém come...
Os olhos,
Os faróis de encantos
Com que nos dinamitam os escolhos...
Tão poucos
E tanto daquilo deles em tantos,
Até parecem loucos!
Tessitura
Faz parte do ser humano
Em busca de sua outra parte,
O engano
E o descarte.
Ninguém tem culpa, portanto,
É da vida a tessitura do manto.
Acontece...
E é assim que a vida se merece.
Quase
Num mundo que, de raiz,
Nada tem que o consagre,
Um dia feliz
É quase um milagre.
De repente,
Uma pedrinha no lago
E a gente,
Num gesto vago,
Inconsciente,
Mudou de mundo: que é que trago
De antigamente,
Do vazio
De meu fastio?
De repente
Fiquei cheio,
Sem entender nada pelo meio.
Chocar
A vida é uma avarenta:
Dias, meses, anos a chocar um ovo
E nada aparenta
De novo.
De repente, abre uma porta
E uma avalanche entra pelo rombo aberto.
Num momento, nada importa;
No seguinte, eis-nos perto
De nem aguentar
O turbilhão a nos arrastar.
Solta
O desejo é uma emoção liberta,
Solta pelos espaços,
A vibrar, incerta,
Enchendo a vida com vontade de algo,
De abraços,
De traços,
Vontade dos muros que galgo,
De empurrar tudo para a frente,
Desmoronar montanhas
Por fora e por dentro da gente,
Quão mais tamanhas,
Melhor,
É querer premente
Um ror
De seja lá o que for...
- O desejo a que me grudo
É a fonte de tudo.
Difícil
O final
É sempre mais difícil que o princípio:
- Apagou-se o fanal.
Equipe-o
Embora muito bem,
O itinerário é fatal:
No fim, por algum lado,
Serei sempre um infortunado
Pedro-sem.
O absoluto
Consumado
Não é nunca meu produto.
Serei sempre, neste aqui-agora,
Um amputado
Que chora.
Trazer
O desejo
Pode afastar alguns, decerto,
Mas dá-me o ensejo
De quem me importa trazer para perto.
Pode contagiar, energia à solta,
Tudo e todos à minha volta.
O que é muito bom:
Fermenta a vida do que na vida for são.
Transacção
Numa transacção comercial
De contas escorreitas
Ambas as partes, no final,
Têm de ficar satisfeitas.
É o que nunca entendeu
O esclavagismo,
O colonialismo,
O terceiro-mundismo...
- Todo o que erguer o troféu
Da riqueza obscena
Ante a miséria extrema.
De tão medíocre e falhado,
Trata os mais como gado.
De tão vazio
Nem vê da navalha o fio
Que afia e planta
Nas mãos que, tarde ou cedo, virão cortar-lhe a garganta,
A ele, ao lar, à região, ao país,
A meio mundo que assim anda empinando o nariz.
Pássaro
O pássaro me emociona
Pela liberdade em movimento.
É o que me traz à tona
O sentimento.
O corpo dele?
Talvez me arrepie um pouco a pele...
Comparado com a promessa escondida naquela revoada,
Não é nada.
Próximo
Quando moramos numa cidade,
Fica para mais tarde conhecê-la.
Descobrimos, com a idade,
Que nunca iremos vê-la.
É assim que o próximo finda distante,
De tanto nos morar diante.
O próximo caminho
Como o próximo vizinho.
E podemo-lo até verificar
Dentro das paredes do lar...
Normal
É normal as minorias
Manifestarem-se todos os dias?
A jovem de sonho apaixonado
Fugir do príncipe encantado?
Sonharmos com um rendimento maior
Em vez de sonharmos com o amor?
Vendermos nosso tempo o tempo inteiro
Sem de volta o podermos comprar a nenhum parceiro?
- Toda a anormalidade é normal
Na nossa miopia universal.
Ir contra a natureza,
Contra a emoção de nossa íntima profundeza,
É normal a nossos olhos,
Embora aos céus oponham escolhos.
Alimentámos nosso inferno,
Milénios a construí-lo,
E, depois deste esforço superno,
Eis-nos vivendo da pior maneira,
De loucos num asilo
Nossa vida inteira.
Anormalidade
Quando a anormalidade se torna normal,
A normalidade mais primária
Devém, nos factos e afectos, afinal,
Extraordinária.
O normal estatístico
Pode ser, até de tão clubístico,
Tão anormal
Como uma doença terminal.
Encontro
O encontro da finitude humana,
Não divina,
Com a divina infinita profundidade
É a identidade
Que de qualquer fé emana,
A que qualquer fé inclina,
Por onde ela o Todo invade...
É-o em todas,
Por trás de quaisquer perfis ou modas.
Anonimato
No anonimato da economia, a toda a hora,
O homem é um bem de consumo
Para usar e deitar fora.
- A isto me resumo?
O excluído vindo das obras,
Está de fora:
Pior que um explorado, ele agora
São sobras.
Crítica
A razão só respeita
Quem a crítica lhe aceita.
Se a religião, a pretexto de santidade,
E a lei, a pretexto de autoridade,
Fugirem a este escrutínio,
É o declínio:
Tudo se transmuda numa receita...
- Tudo então levanta suspeita.
...E renasce o raciocínio!
Erros
Divino e humano verdadeiros
Não são rivais.
Entendê-los como tais,
Só por erros grosseiros.
Na vida em busca dos caminhos supernos,
São aliados eternos.
Só quem não quer ir a nenhum lado
Confunde o aguilhão com um vizinho danado.
Mal se mexa, ruma a uma ponte
Para o Infinito do horizonte.
Um é atracção,
O outro caminha-lhe na direcção.
Formam um todo,
Cara e coroa do mesmo engodo.
Profeta
O profeta toma aos ombros
O peso do mundo vário
Por entre os escombros...
- O profeta é solidário.
Pela dor que o toma
Neste calvário,
Encerram-no os mais numa desinfectada redoma.
- O profeta é solitário.
De qualquer profeta
O sumário
Tem esta sina discreta:
É um solidário solitário.
Esquecido
O mundo anda esquecido da própria alma.
Na Terra, grão de areia da praia do Universo,
Procuro a fresca sombra da palma,
Antes de mergulhar nas águas que sobre mim verso.
No colo do Cosmos vivemos, nos movemos e existimos,
Com as leis dele que nos ultrapassam,
Cruzados de energias que nos trespassam
Na fundura da união cósmica que mal pressentimos.
Crentes ou ateus,
Todos unidos
No que aqui nos revelam os sentidos,
Todos vivemos do corpo cósmico de Deus.
O Universo é vivo
E tão pejado de interioridade
Que nem dele me logro retirar, esquivo,
Nem por acabado o finalizo num arquivo,
Espantado perante dele a Imensidade.
Não ver nele o interior
É como em mim e nos outros só ver o corpo,
Sem pensar, nem sentir, nem sonhar, sem o amor
Que dia a dia vida fora encorpo,
Sem sermos todos, afinal, estes eus,
Réplicas finitas do infinito Deus.
O meu corpo não sou eu,
Ninguém o é, afinal.
Como é que olho para o céu
E não vejo nele o portal?
No corpo doutrem vejo a entrada
Para chegar-lhe ao coração.
No Cosmos, cada Galáxia é uma fachada
Do lar da Infinita Comunhão.
Tudo no Universo é uma estrada
De peregrinação
Para a festa final
Do Todo onde eu-nada serei mesmo Eu-Total.
Incumbe
A nós nos incumbe viver e lutar,
Reflectir e crer
E sobretudo manter
A coragem de continuar,
Apesar da certeza
De que até há três milhões de anos
Não houve na Terra humanos
E de que a nossa chama acesa
Não irá para sempre durar,
Presa
Do calendário estelar
Que a nós nos porá fim,
Como à Terra, ao Sol, à Galáxia, enfim...
Com o fim inelutável do planeta,
Nossos trabalhos, dores, esperanças,
De nossas obras toda a paleta,
Devirão inexistentes, triturados por cósmicas andanças
E contradanças.
Nenhuma consciência existirá então
Para preservar a recordação
De nossas efémeras iniciativas.
Vestígios do que foram vidas vivas
Serão apagados, sem haver mais palavras,
Das cósmicas lavras.
A constatação de que ocorreram revogada,
Ao fim, o que irá restar, é nada.
Mas imprimimos em partículas subatómicas,
Durante a vida inteira,
O pendor do nosso rumo,
Sonho incorporado em frágeis pontes na ladeira.
Não são explosões astronómicas,
É o sabor do nosso sumo,
Um vago rasto de fumo,
Uma alteração da matéria tão ligeira, tão ligeira...
Todavia, nenhuma explosão derradeira
Seria a mesma sem aquela fieira
Irrelevante de matéria desviada
Que um tudo-nada
Desvia do Universo a rota
E a torna mais afim de qualquer vindoira humana frota.
Meus filhos
Não terminam nos biológicos cadilhos:
São também, no Universo, para a eternidade,
Os deste pendor que o Todo desvia para a humanal
Cósmica fraternidade.
O sentido final
Da vida
Tem
Também
Esta colossalmente cósmica medida.
Bondade
Na bondade tudo se funda,
Afinal:
A bondade é sempre mais profunda
Que o mais profundo mal.
Pode parecer questão de fé
Mas não é:
É que a realidade encontrada
Subsiste sempre perante o nada.
É que isto,
O facto de que existo,
É um bem
Que se tem:
O mal é que tenta, a cada jornada,
Reduzir-me, em tudo, a nada.
Mesmo morto, porém, o mundo existe
E eu nele existo.
O mal insiste
Mas não tem armas contra isto.
Ditadura
A ditadura das verdades definitivas
É tão perigosa
Como a ditadura do relativismo
Que, no fundo, de verdade nenhuma goza.
Aquela matou Galileu e todas as forças vivas,
Esta mata-nos por dentro, sem esperança, num abismo.
Contudo, a verdade científica é provisória
E a ninguém incomoda que, tarde ou cedo, seja história,
Ultrapassada pela verdade seguinte,
Perseguida mais além, sem acinte.
É este o itinerário da verdade
Material
Ou espiritual
Que de saúde nos persuade.
Quer um quer outro desvio
Sangra-nos, deixando a humanidade por um fio.
Lugar
De Deus o amor
Que nos tem é anterior
A qualquer caminhada
Do homem, da vida na empreitada.
Deus eternamente nos precede
E só depois o lugar nos cede
Para darmos, na excelência,
Campo a qualquer correspondência.
Proclamam
A Terra e os Céus
Proclamam a magia
Dum Deus
Que por todo o lado se anuncia.
São os eventos do mundo e do Universo,
Da história humana,
(Mesmo quando desumana)
Lidos pela frente e pelo verso:
Ali na ciência
E nos saberes,
Aqui na vivência
Do íntimo de cada um e de todos os seres.
Do imo na derradeira profundidade
Assoma a divindade.
Aí a pressentimos e vislumbramos
Do Universo em todos os tramos
Que a tudo e todos num Todo unifica, afinal:
- O Universo inteiro é do Infindo um sinal.
Desgraça
A desgraça não tem de ser eterna,
Agora aqui para sempre em finca-pé.
Do amor de Deus a cachoeira terna
É que é.
Por dentro de cada desgraça,
À espera de ser entendida,
Aflora uma misteriosa graça.
- E a multidão sempre distraída!
Celebração
Celebração litúrgica
Que não seja uma energia
De mudar de vida, de mudar de via,
Deixou de ser demiúrgica,
Perdeu o fio
Num ritual vazio.
Murmura
Vento numa sepultura.
Centro
Quem se crê centro de Igreja,
Dono de religião,
Não tem espírito de Deus que se veja.
Crê que só ele, muito grave,
Tem a chave
Da salvação.
Perdeu-se pelo caminho.
Anda, então,
A caminhar sozinho
Pelo meio da multidão.
Nem Deus o acompanha,
Que ele O repele,
Crendo que O ganha.
Nem na própria pele
(Quanto mais
Na dos demais)
O apanha.
Criatura
Ser humano, de raiz no chão,
É ser criatura inacabada
Permanentemente em construção,
Em regime de liberdade condicionada.
Nem animal,
Nem anjo,
Sempre a carregar daquele o agreste
Sinal
Rumo à pureza deste
Em todo e qualquer terreno arranjo.
Nem animal,
Nem anjo...
Um pobre tolinho
Eternamente a caminho.
Falhados
Há muita esterilidade
Fecunda
E muita fecundidade
Estéril, que de falhados
Nos inunda.
Há do mundo os separados
Mal separados do mal
Que mundo fora abunda,
Real:
Não removem uma palha
Para nos livrar desta gralha.
Há, todavia, os que a removem e acendem:
É o porvir fecundo o que estes rendem.
Sejam no mais estéreis ou fecundos,
Das mãos deles é que brotam novos mundos.
Peça
Louco,
Deficiente,
Doente...
- Qualquer homem-pouco
Ainda é gente
Ou apenas sucata
Com alguma peça sobressalente
Que um útil uso ainda acata?
Que dignidade nele revela
Quem trata
Com amor este estorvo
Que família e comunidade despejam à janela,
De prenunciada morte feito corvo?
Há um outro sentido de humanidade
Que por aqui misterioso nos invade:
Quem trata vislumbra em cada um deles, lá no fundo,
A luzir, o Outro Mundo.
Tratou
Atingiu
O apogeu
Da dignidade humana
Quem do cavalo da grandeza desceu
E, com comiseração samaritana,
Tratou do despojado
Para a berma da vida atirado.
Quem cuida por amor, sem ganho,
Do de si próprio despido
Revela o tamanho
De quem socorre e do socorrido.
Atinjo
Não atinjo a humanidade
Senão doutrem pelo confim:
Outrem próximo de mim
Em alteridade
E outro de mim
Em proximidade.
União
Sem confusão:
Dialéctica tensão.
Permanente:
É assim que todos devimos gente.
Pretendem
Religiões
São públicas e comunitárias instituições
De fé.
Como a pretendem pôr de pé,
Caem no legalismo
E ritualismo
Que lhes envenenam a correcta
Vida concreta.
Pretendem substituir-se à liberdade de Deus
(Crendo ter na mão o telecomando dos céus)
E à consciência humana
(Donde a espiritualidade inteira emana).
Ritual e lei traçam o caminho:
Fora, tudo é terreno maninho.
Ora, o encontro de Deus connosco
Mal corre por declive tão tosco:
Raro me liberto num culto,
Antes me sepulto.
É servir os mais precisados
Com corações e actos desinteressados
Que, para cada um, da comunhão celeste
É o único teste.
Tudo o mais, ou são derivações
Ou é o cancro das funções.
Homem
O homem é um corpo espiritual
E um espírito corporal,
Anverso e reverso, na verdade,
Duma única realidade.
O corpo todos o vemos,
O espírito cada um o sente em si.
E os dois mundos aqui temos
Conjugados no mesmo frenesi.
Poderei
Não podendo eu determinar
Totalmente
Aquilo em que acreditar,
Poderei, pelo menos, recusar
Definitivamente
O que não puder de nenhum modo aceitar.
A ética provém, afinal,
De me indignar
Contra o mal.
A religião
É uma ponte
A ligar-me ao horizonte
De tudo o que é bom.
Por miúdo:
A fonte
É o Tudo.
Cientista
O cientista tropeça
Nesta realidade:
Por estranho que pareça,
A verdade
É que quanto mais simbólico, mais poético,
Mais o murro do patético,
Afinal,
Desvela o real.
Negaceia ali uma dimensão
Que nem da ciência a garra
Alguma vez, então,
Agarra.
O poeta
É que, para o longínquo alcance,
Dispõe da mágica seta
Que lance.
Ganância
A ganância duns poucos
Satisfazem-na, moucos,
Aniquilando o bem-estar
Dos mais, sem
A ninguém
Olhar.
Todo o mundo é uma manada de gado,
A ser abatido
Ou explorado,
Conforme o tipo de ganho pretendido.
Uma economia
Que promova ou sequer
Tolere
Uma tal patifaria
É apenas um legitimado
Crime organizado.
Perspectiva
Da perspectiva do pobre
Vemos claro como excluem
As actuais nações tanto povo que sobre
E quanto não intuem
Igrejas e religiões
Como são arrastadas, no meio de gozos,
Pelos interesses dos poderosos,
Sem dos pobres entenderem os guiões.
Vemos como o crente,
Então,
Devém um instrumento eficiente
De exclusão.
É a mais perfeita irreligião:
A permanente
A renascer, virente,
De dentro da religião.
Qualquer
Qualquer religião,
No que religião for,
É uma fraternidade de serviço, irmão a irmão,
Sem poder a se impor,
De qualquer consciência sem dominação.
É o serviço mormente aos sobrantes
Das sociedades dominantes.
De fora para dentro,
Da periferia ao centro,
Sempre em busca de replicar na Terra o que nos é comum:
O Deus múltiplo que é Um.
Pior
A pior traição
De qualquer religião
É perder a consciência
Da primordial evidência:
Todos somos, por igual,
Parte da comunidade total.
Não há hierarquias de comando,
Ninguém tem poder de mando.
Não somos um mais outro, mas um Nós,
A tentar unificar-se mais e mais após.
Uns dos outros somos servos voluntários:
Nem mercenários,
Nem proprietários.
Lugar
O lugar de encontro de Deus
Não são os céus,
Não é a sinagoga, a mesquita ou a igreja,
Nem nenhuma romaria que se almeja.
O lugar de encontro que me acuda
São os indivíduos que precisam de ajuda.
Do princípio ao fim Deus põe-nos a questão:
- Que fizeste ao teu irmão?
E nada mais justifica
Pessoa nem religião que se autentica.
Única
A única sabedoria verdadeira
Que nos resuma
É que não há verdade nenhuma
Inteira:
Tudo meras aproximações
De fulgurações...
Que é da fogueira?
Escapa-nos irremediavelmente,
Apesar de aqui mesmo à frente,
Mesmo, mesmo à beira.
Diálogo
Em diálogo ninguém,
Se tem autenticidade,
Detém
A verdade.
A verdade, porém,
Em todo e qualquer sentido,
Escapa-nos sempre além,
No horizonte do Infinito apetecido.
Dado este teor,
Ninguém da verdade pode ser defensor.
Somos todos peregrinos
Mutuamente a encorajar
E a ajudar
Na longa caminhada, desde meninos,
Rumo à realidade derradeira,
Que, do Insondável,
Interminável
Se abeira.
Mais
Além das ânsias que me consomem,
Tanjas as sinetas
Das descobertas que tanjas,
As pegadas findam sempre incompletas:
- O homem é mais que o homem!
Sou também
O que mora além
Das franjas:
Meu confim
Não tem mesmo deveras fim...
Vazio
Universalismo
De conceitos abstractos
É o vazio abismo
De nossos actos:
Vasculhando o centro
Em busca do conteúdo,
Abarca tudo
Porque não tem nada dentro.
Para melhor a mudança
Requer outra dança:
Partilha universal da experiência que para melhor resulta,
Embora para os bem-pensantes seja estulta.
Rejeitar
Podemos rejeitar tudo:
Religião, ideologia,
O conhecimento inteiro...
Contudo,
Não escapamos, nem um dia,
Ao aguilhão
Deste pregoeiro:
- Precisamos de amor e compaixão
Tanto ou mais do que de pão.
Futuro
A missão
De cada um, cada povo, cada região
É o futuro da humanidade integral,
Para a qual
Todos juntos devemos trabalhar,
Rumo à comunhão final,
Com os horizontes duma civilização singular:
Múltipla na unidade,
Una na multiplicidade.
Pactuar
Quem não pactuar com a desordem do mundo
Será sempre um inocente condenado,
Mas um fermento tão fecundo
Que findará ressuscitado.
É apenas isto
A lição de Cristo.
Morre um mundo velho
E um novo renasce
Das cinzas onde pasce
Cada vívido conselho.
E no corpo morre
O Profeta.
Mas do Além o socorre
Da luz a insurrecta
Seta
E o ressuscita
Para uma vida
De tal modo em corpo e alma renascida
Que é infinita.
Caminheiro
Como o caminheiro não tem caminho,
Que o caminho se faz
Caminhando sozinho
Com todos os mais,
Não há caminho para a paz,
A paz é o caminho.
Respostas
As perguntas são perenes.
Respostas pré-fabricadas
Já não confortam ninguém
Que se atém
Às caminhadas.
E as cerimónias solenes?
Que riso carnavalesco
O porte principesco
Tem vindo a despoletar
Em quem tende a reparar
Nas penas ali que penes!
Única alternativa segura:
- Andamos todos à procura...
Intelectual
Intelectual verdadeiro
Não permite que a mente se distraia
No lameiro,
Ao lado dos problemas,
Nem adormeça na praia,
Dos temas
Na raia
E na baia
Dos lemas.
Não se instala no atingido já,
Pergunta pelo ser que ser deverá
E pelo que sempre há-de faltar
Concretizar.
O limiar de seu emprego
É o desassossego
Pessoal e secular.
Manca
A teologia
Meramente intelectual
É fria
E manca, afinal.
Não inflama
Em nós nenhuma chama.
Por muita que se tenha à mão,
Que coração
A reclama?
É palha:
Qualquer aragem vai varrê-la em poalha.
Leva
O fundamentalismo,
Em qualquer fé,
Leva ao obscurantismo:
Não há mais razão de pé.
A razão critica a fé,
Para esta não cair no fundamentalismo,
A fé critica a razão
Para esta não cair num positivismo,
Sempre anão.
Ambas, ou não vivem ou vivem sob o império
Do mistério.
Sem mistério a desafiá-lo
O ser humano,
Sem daquele o abalo,
Mata a vida num imenso desengano.
Arrancar-me
Não pode
O mundo
Arrancar-me à raiz:
Deus me germinou de seu misterioso fundo
E, quando ramo seco daqui por fim me pode,
Retoma-me de novo na matriz.
Como o corpo mergulha na terra,
Meu espírito no Grande Espírito se encerra.
Todos
A realidade fundamental
É que todos somos “Nós”.
“Eles” não é deveras real,
Aprendemo-lo após.
Todos queremos o mesmo
Da vida.
Como é que o esquecemos, tão a esmo,
Em seguida?
Missa
Podem andar de fato e gravata,
Ir à missa aos domingos,
Mas, se alguém o interesse deles lhes empata,
Fecham o sorriso de flamingos
E, de adoráveis,
Tornam-se implacáveis:
Dão cabo de quenquer
Que o caminho lhes tolher.
Mais parceiro, menos parceiro
Que lhes importa
Se em causa lhes põe a montanha do dinheiro?
É bater-lhe na cara com a porta!
- E assim anda e andará o mundo inteiro...
A luta para a pessoa ocupar
O primeiro
Lugar
Há-de durar o tempo inteiro
Que durar
A humanidade.
É que nada nos pode tirar a liberdade
De ser humanos,
Velando por eliminar danos,
Ou de criar desumanidade.
Qualquer que seja a medida tomada,
Será sempre ambígua, à chegada.
Paga
Tudo se paga na vida
E paga muito?!
Não é uma versão
Comedida:
O melhor da vida é gratuito,
Todos os amores o são.
Ou então,
Bem pior,
Nada daquilo é amor,
É mera contrafacção.
Guerra
Só quem a guerra viveu
E a morte de frente viu
Dá valor à vida e, simultaneamente,
Sozinho vai sentir-se, na fundura, permanentemente.
É um sentimento singular
Impossível de partilhar
Senão com quem
Do inferno vem.
Falam
Todos falam de valores,
Há os indivíduos bons e os maus...
A maioria de nós, ponderados os pendores,
Sabe lá bem quem é,
Se é do pão, se dos varapaus!
Todos temos ladeiras de santos e de bestas
E nunca o vemos até
Ao momento de descobrir o pano
Das cestas:
Na crítica conjuntura,
Ante o proveito e o dano,
É que tudo se nos apura.
E até para nós próprios então
Acaba por ser uma revelação.
Somos
Somos todos uns heróis
Traidoramente canalhas,
Sábios acaso depois
E de tolos com as gralhas.
Neste arquipélago de recifes,
Vasculhando pelos cantos,
Somos deveras patifes
Santos.
Noção
Quem se exprime de maneira altiva
Tem uma noção de si
Inversamente proporcional
Ao zelo por quem viva
A servi-lo, toda a vida, ali,
Operacional.
Nem sequer se importa
Que a vida a este feche a porta.
Para ele só ele conta,
Tudo o mais fica por conta.
Divindades
As divindades que talhamos nas nossas cabeças
Estão dispostas a acreditar no que querem acreditar,
Peças
Fora do lugar,
Mormente quando qualquer delas estiver
Desesperada para sobreviver.
Daí o risco
E o abismo
De qualquer cisco
No que cismo.
Dificuldade
A primeira dificuldade é conceber
Um mundo, uma ideia
Diferentes do que já se conhecer
Da vida na teia.
Nossa criatividade é limitada
Pela cultura convencional,
Derivada
Da crença jamais questionada,
Inabalável e fatal.
E a dificuldade de acolher a mudança
Que pode ser avassaladora,
Que as mentes desentrança
A cada hora,
Que nos afugenta de nosso horto
De conforto,
Escaqueira hábitos mentais em confusão,
Abandona-nos a meio da desorientação.
Não é uma escolha,
É uma imposição:
Fico sem covão
Onde me acolha.
Derrubando paradigmas e convicções,
Afecta carreiras, meios de subsistência...
Daí a raiva, a resistência,
Até às perseguições.
A novidade afecta o meio,
O meio afecta a novidade.
É o enleio
De cada idade
No seio
Da humanidade.
Tempo
Com o tempo, a boa ideia sobrevive,
A má fica esquecida.
O génio que daqui derive
Tem a figura distorcida:
A galharia de árvore dele recordada
Foi muito, muito podada.
Quantos tropeções e quedas
Para, ao fim, quão poucas geniais moedas!
Caminho
O caminho do peregrino
Não é apenas o caminho,
É a seta amarela do destino,
A cada esquina da vida,
A apontar, no terreno maninho,
O trilho da ermida:
É o toque da simplicidade
No meu coração,
A bondade
A abrir-me ao desconhecido,
Enfrentando a escuridão,
Doravante destemido.
É achegar-me em primeira mão
Do vital sentido
De cada dia, na deslumbrante paisagem
Da viagem.
Resguardado
Respondo,
Mas não
Donde todos me vêem, de pé, no chão.
É a partir donde me escondo,
Resguardado no trovão.
Aí é que sou eu,
Embora sem nem sequer
De mim saber
Nem já ter nada de meu.
Dispõe
As únicas mãos,
Os únicos olhos
De que Deus dispõe para reparar a injustiça
Que as pegadas nos enliça
São nossas próprias demãos
A deflagrar os escolhos
Nos corrimãos
Da diuturna liça.
Deus atou-se de pés e mãos
Quando chegámos a estes chãos.
Doravante os dados
São os que por nossas mãos forem jogados.
Mar
Vida aquém e vida além da morte...
No mar da realidade,
A nossa sorte
Aqui à mão
É que entre ambas as ilhas, em profundidade,
Não há separação.
O pretenso corte
É uma ilusão.
Dois
Inevitavelmente
Vivemos sempre em dois lugares:
Neste mundo, viajantes do presente,
E nos nossos verdadeiros distantes lares.
Aqui tenho cada pé bem assente,
Agora vivencio no imo emoções aos milhares.
Sou, de algum modo, um pé de gente
Mas sou bem mais os fugazes luminares
Que, de repente,
Ligam aquilo de que me apercebo
Ao que, sob esta capa,
Nos escapa,
E afinal me dá tudo o que bebo
Da corrente que da lonjura recebo.
Sou, nos meus fundos,
Uma ponte entre dois mundos.
Somos bem mais que as criaturas insignificantes,
No tempo aprisionadas,
Que quaisquer preguiçosos governantes
Gostariam de encontrar, ao correr das jornadas.
Acesa
Depois de acesa, do mundo na liça,
Nem todo o mar
Logra apagar
A chama da justiça.
Revoluções, atentados, guerras...
Só delas escapa
Quem, ao primeiro bruxuleio no cume das serras,
Da justiça enverga a capa
E com ela vai lavrar as terras
Que tiver ao alcance.
Apenas então
Fará, com esta demão,
Que a fúria da justiça amanse.
Da ordem de trás, porém, os iníquos aproveitadores
É que então
Lhe trarão
À vida horrores.
Da história o crucificado
É a vítima deste lado.
Fica tudo igual
No final?
Não, que além cresce a justiça
E aqui, a iniquidade.
Ora, esta é que enguiça
O trilho da Humanidade.
Guia
As histórias sagradas
Sob a superfície se olhares,
Encontras um guia à espera, em tuas estradas,
Com quem te encontrares.
Por baixo desse manto
Desvenda-te então do mundo todo o encanto.
Da maravilha
Nunca mais tuas pegadas findarão a partilha.
Vestes
As vestes sacerdotais
São protecções peitorais
Que defendem o sacerdote
Do virote
Que Deus lança sobre os maiorais.
Não vai ele ouvir nem ver
O que lhe poderia comprometer
Algum dia
O poder:
A magia
Do que Deus afinal quer.
Não há pior inimigo
Do rebanho
Que o que do pascigo
Tira o ganho.
Centro
Sem rituais e cerimónias, sem liturgia,
O templo deixará de funcionar
Como centro de nossas vidas.
A via
Desata a calcorrear
Outras avenidas.
Os sacerdotes, então,
Nunca mais nos dominarão.
Entretanto, o animal selvagem
Nos ensinará
A viagem,
A Terra nos guiará,
Pejada de mensagem.
Das cinzas brotará, dadas as mãos, a magia
Dum novo dia.
Prever
Não há como prever, jamais,
Como nossos actos poderão beneficiar
Ou prejudicar
Os mais.
Pelo meio
O desafio
Interveio
Dum qualquer outro livre alvedrio.
Para além do mistério singular
Da natureza
Que tanto preza
Nossas pegadas enredar.
Não há, então, como prever, pois,
Assim,
Até ao fim,
O que virá depois.
Ficamo-nos, portanto, por um arremedo.
O que mais importa
É que não fecho a porta,
Nunca cedo:
Tento sempre vislumbrar, com mais precisão
E um pouco mais além,
Que chão
Aí vem.
É o caminho bendito
Do precário sucesso:
Prolongado ao infinito
E sempre do avesso.
Clero
O clero irá perder
Todo o poder
Se não houver
Templo.
Ninguém
Pode perder, porém,
O que nunca deveras teve.
É o que contemplo
No seu delírio breve
De pretender
Comandar o Céu na Terra,
Pretensão donde Deus fatalmente se desterra:
É que do espírito a interioridade
Jamais é o corpo que anima.
Se no homem isto é verdade,
Mais ainda no Cosmos, onde tudo se arrima
E sublima.
Deus na terra,
Se me deslumbra,
Nem no pináculo da serra,
Porém, sequer se vislumbra.
E assim será eternamente
Enquanto a temporalidade for presente.
Ai dos que chamam mal ao bem
E bem ao mal,
Que a luz por trevas têm
E as trevas, de luz por um fanal!...
Destinado
Todo o vivente
É destinado a sofrer.
Mais resplandecente,
Então é o dom precário de viver,
A dádiva conseguida
Da vida.
O mistério, em nós,
É muito mais profundo do que julgamos,
É a maior parte do que nos forma e ata os nós
Do que nos sustenta.
E é a beleza que vislumbramos,
Atenta,
No céu, na Terra
E em tudo o que em tudo se encerra.
Grande
É uma grande generosidade
Os filhos viverem convencidos
De que os pais
Sabem muito mais
Da vida, na verdade,
Do que eles, ignaros preteridos.
Nem imaginam que todos vivemos sob o império
Do mistério.
Cegueira
A necessidade de ser dos outros o dono...
Cegueira doente,
Lógica falhada que abono,
Incompetente?...
Da vida o objectivo real
É aceitar que o eu de cada qual
É um poço
Tão concreto
Como o nosso,
Em qualquer que seja o aspecto.
Que o eu
Que eu tenho
É o meu
Que mais ninguém pode ter de ganho.
Como o doutrem também
É o seu,
Inapropriável por mais ninguém.
Como é que o que é tão evidente
Custa tanto a ver a tanta gente?
Aparecem
Os mistérios do mundo aparecem a cada qual
Sob formas que os mais não logram ver.
Há vivências cujo sinal
Se não destina a partilhar-se com quenquer.
Temo-las por serem as certas para nós,
Os mais trepam por outros cipós.
Tudo pende do que vimos, tocámos, empreendemos,
Do que sofremos.
Isto é que abre portas e janelas.
Daí as diferentes
Sequelas
Entre as gentes.
Ses
A história humana
É uma história de ses feita:
Se em vez do que me deu na gana,
Outra fora a escolha eleita,
Bem outra fora a colheita
E outro o rio que ela emana.
E outro fora eu mesmo aqui,
Sem deixar de ser eu em si.
Escolha
O tempo à escolha exorta,
Sempre à beira
De nossa definitiva identidade.
Abrimos uma porta,
Transpomos a soleira
E mudamos para a eternidade.
Mil portas se nos abrem cada dia,
Por trás de cada uma, um mundo diferente.
Arrepia:
Eu poderia
Até nem ser gente!
Tesoiro
O nosso tesoiro está sempre connosco
E a nós se destina.
Quando a mim me embosco,
Descubro-lhe a mina:
Na fundura se me enrosco,
Leio a minha sina.
E, embora eu seja tosco,
Ela é divina!
De sábio meu vestígio fosco,
Afinal,
A tal
Me destina.