A  PEGADA  DO  SER

 

 

 

 

 

Emigrante

 

Um emigrante

É um abandono

De raiz.

Cão sem dono

Daí por diante,

Sempre em busca da matriz,

 

Aprende a amar

Como forma de abandonar,

Sempre com vergonha

Do próprio cariz,

Para onde quer que a fortuna o transponha.

 

Cão abandonado na perene procura,

Sempre a esmo,

Do dono dele mesmo,

A ele próprio se configura

Dele próprio numa eterna sepultura.

 

 

Admira

 

O pobre admira o rico.

O rico, não.

Aliás, se não busca da riqueza o pico,

Então,

É o palácio, o casarão,

O carrão de luxo,

A amante,

O lago com repuxo...

- A todo o instante,

Uma fuga demente

Para a frente.

 

E, por trás,

Uma indefinível tristeza

Que acorrentado o traz

Como enjaulada presa.

 

 

Até

 

Nascemos num comunitário patamar

E aí se fica

Até a vida findar,

Senão tudo se complica.

 

Ou não,

Que aquilo é que é a verdadeira complicação...

 

 

Recuperar

 

Recuperar o equilíbrio

Perante

As marés e as ondas do mar:

Da vida no meio do ludíbrio,

Uma constante

Diante de mim a apelar.

 

Ao movimento e à mudança

Subjaz

A ordem universal,

Capaz

De impor esta pujança

A todo o real.

 

Andamos cegos

Na confusão da vida diária.

É a condição humana, sempre refractária

Nos apegos.

 

Os eventos, porém,

Não são aleatórios.

Uma ordem imutável contêm

Escondida nos envoltórios.

 

Vagueamos na selva do mundo moderno

Isolados

Quando, afinal, clandestina,

Uma secreta ordem divina

(Que me não consta do caderno

De instruções)

Me embebe por todos os lados

Comigo aos encontrões.

 

 

Conjunto

 

Porque é que vão casar

Se se irão divorciar?

 

O casamento

Ou é uma forma de crescer

Em conjunto como parceiros,

Ou é um tormento

Que, ao fim, nem sequer

Nos deixa inteiros.

 

Viver e amar

Ou é crescimento espiritual

Ou não é nada.

Esta escolha singular

É fatal

Em toda a humanal

Jornada.

 

 

Dado

 

Todos tomamos

Como um dado adquirido

Aqueles de quem mais gostamos.

Daí que tantos os tenham perdido.

 

O amor nunca se conforma

Com tal norma.

 

Ou é constantemente adubado

Ou murcha, fanado.

 

 

Imita-o

 

O que a vida promete

E o que a vida dá

São coisas bem diferentes.

Nunca ela se repete,

Desde já,

Mas imita-o bem, entrementes:

 

Sempre o mesmo ciclo anual,

A convidar ao consórcio.

Quando, afinal,

Há sempre um lado outro no mesmo sinal...

- E quanta vez tudo finda num divórcio!

 

 

Tratar

 

Montar e brincar com os cavalos,

Mas que medida

Tão divertida!

Tratar do material, desarreá-los,

De tão diferente

É de pôr qualquer um doente.

 

O problema

É que em tudo a vida é assim

Do princípio até ao fim,

Não há como escapar ao dilema.

 

Mesmo quem fizer escravos

Não escapará deles à revolta,

Aos amargos travos

De que só se livra quando os puser à solta.

 

Nada disto a ninguém reduz

O peso do oiro que leva,

A moeda que reluz

Tem o reverso na treva.

 

 

Continuo

 

A formosura atrai.

Depois continuo à procura,

A ver se a beleza se descai

E mostra a entrevista figura,

Ou se dela nada

Mora atrás da máscara enganada.

 

E quantas vezes o vazio

É só o que desfio!

 

 

Felizes

 

A felicidade...

Que felizes fomos!

No momento nunca o sabemos, não é verdade?

Felizes nunca o somos.

 

No presente, é o imediatismo.

Só depois medimos a altura,

A partir da fundura

Do abismo.

 

 

Donos

 

Aos donos de tudo isto, eis

O que mais os aterra:

Erguendo-se, os oprimidos da terra

Lavram as suas próprias leis.

 

Nem se dão conta, os donos estúpidos,

De que, se deixarem de ser cúpidos,

 

Inauguram todo um campo aberto

Para a alegria lhes ficar mais perto.

 

E eis porque a felicidade

Deles perpetuamente se evade.

 

 

Simultaneamente.

 

Nosso velho eu

No passado viveu

E se perdeu.

 

E hoje, vivo,

Aqui o revivo

No presente esquivo.

 

Como um rio

Que após

Nascer num fio

Existe simultaneamente na foz.

 

Afinal

Sou outro e o mesmo

Quando no real,

Em busca de meu sinal,

Me ensimesmo.

 

 

Tragédia

 

A tragédia humana

É que nos encaramos como mercadoria.

Uns aos outros toda a semana

Nos utilizamos, dia após dia,

Como coisas

Em que nem um olhar poisas.

 

E o pior é que cada qual se utiliza,

Se apresenta, se vende

Como uma coisa que nada mais visa

Senão quanto lhe rende.

 

Reduzido a coisa

Como é que algum dia alguém repoisa?

 

 

Campos

 

Todas as realidades materiais

São momentos

De campos de força invisíveis.

Não são coisas reais,

Mas os efeitos perceptíveis

Daqueles ventos.

 

O visível, por muito que nos custe,

É o mero resultado daquele ajuste.

 

Ali atrás, afinal,

É que reside a realidade do real.

 

 

Untando

 

Às vezes, untando umas mãos,

Os mais pequenos fazem e calam.

Os grandes, então, é que escorregam dos corrimãos,

Se estatelam da escadaria que escalam,

Enquanto os criminosos, na alfombra,

Gozam, ignorados, a sombra.

 

Por muito que na História seja raro,

Também com isto deparo.

 

 

Manha

 

A manha da humildade no agir

E da louvaminha na palavra

Por parte de quem pedir

Sempre soaram a justa lavra

De reconhecimento

Do valimento

 

E do coração

De quem for o alvo da função.

 

- É a mais eficaz armadilha

Para lhe afundar ao barco a quilha.

 

 

Árvores

 

Como as árvores somos:

Por vezes urge podá-las,

Mutilá-las,

Para reverdecerem mais fortes,

Melhorarem os pomos...

- Para reencontrarmos os nortes.

 

Por vezes até aterra:

Dispara a mortandade duma guerra.

 

 

Serial

 

Não se relaciona bem

O assassino serial com ninguém.

 

Como o laço com o mundo está torto,

Só se liga bem com um morto.

 

Quando nele me concentro,

Reparo que está morto por dentro.

 

E é isto que fora dele representa

Em tudo o que tenta.

 

 

Dinheiro

 

O dinheiro não é só, não é,

Nem simplesmente dinheiro.

Sempre outra coisa qualquer

Dele germina no pé,

É sempre mais, nunca inteiro,

E, sem a gente o entender,

 

Marca-nos do dia a lavra

Com a última palavra.

 

É pena,

Que é uma palavra bem pequena.

 

É um além

Tão pouco

Que quem só a ele se atém,

Pouco menos é que um louco.

 

 

Aprendemos

 

O dinheiro fala

E, na medida em que o escute

E lhe obedeça aos ditames,

A vida se desentala

Seguindo recta o azimute

De escapar aos gravames.

 

Aprendemos nesta viagem

Da vida material a linguagem.

 

Demora a entender, demora,

Que o amor ficou de fora.

 

 

Realidades

 

Há realidades incríveis

Para qualquer tapado

Que as visa:

Andam por aí seres invisíveis

A caminhar lado a lado

Com quem precisa.

 

Crente ou descrente,

Esta é a condição de toda a gente.

 

Muitos há, porém,

Que com ela comunicam a bem.

 

Estes não precisam de fé:

É uma realidade com que convivem ao pé.

 

Os mais, contudo,

Nem com fé lá vão, a miúdo:

 

É a pior peste

Que na actual civilização contra nós investe.

 

 

Treda

 

Todos temos uma treda mão

A tentar estrangular-nos

E a outra, ao mesmo tempo, então,

A lutar por preservar-nos.

 

E assim somos, divididos,

Ora de pé, ora caídos.

 

Ao meio rachados,

Menos um só, mais dois mal colados.

 

 

Recusa

 

Aquele que é bom

Recusa acreditar que o é,

Tem o condão

De sempre duvidar do próprio pé.

Tal dúvida é o dom

Que o torna mesmo bom.

 

O mau

É que acredita que é bom, em suma.

O bom nunca encontra de passagem o definitivo vau,

Não acredita de vez, do que faz, em coisa nenhuma.

 

Passa o tempo a todos a perdoar

Menos a ele próprio, que ali não tem lugar.

 

 

Enfrentar

 

O corpo humano pode ser apreendido,

Não pode ser, porém,

Definitivamente compreendido.

É assim com toda a realidade também:

 

Até a partícula subatómica,

Por ínfima que seja, no-la destina

Esta sina

Trágico-cómica.

 

Temos de enfrentar este conflito

Até ao Infinito.

 

 

Criar

 

Quem quiser criar beleza

Não cria nada de jeito.

A beleza não é uma presa,

Requer preito.

 

E então cuidar dela a esmo?...

A beleza é, no jardim, um vaso

Que sabe cuidar, a prazo,

Dele mesmo.

 

 

Arroteiam

 

Indivíduos que arroteiam os caboucos do mundo

Estão presos.

Poucos têm o corajoso fundo

De se erguerem, tesos,

Arriscando pelos outros, desmedida,

A vida.

 

Comparados com eles não somos nada,

Agrilhoados em cada curva da jornada

 

À nossa fraqueza, indiferença,

Ao sombrio conformismo que nos vença.

 

E os que arroteiam os caboucos,

Nos outros a acreditar,

Loucos...

 

E os outros para o ar

A assobiar...

 

Estes tantos, tantos e eles tão poucos!

 

 

Combatente

 

O combatente, quando volta a casa,

Olha o espelho:

É um velho

Cuja idade nada abrasa.

 

Fechado,

Ensimesmado,

 

Nunca fala

Na guerra que doravante na vida se lhe entala.

 

- Ferida aberta que o coração lhe visa

E que até à morte nunca mais lhe cicatriza.

 

 

Somos

 

Eis quem somos, afinal:

O indivíduo que caminha,

A vida feita uma estrada real,

Tornando uma adivinha

A pegada

Fossilizada

Numa qualquer rocha ancestral

Que, desde há milhões de anos,

É tanto tua como minha

Em seus misteriosos arcanos.

 

Cada qual um caminheiro

Do mundo e do tempo inteiro.

 

 

Sempre

 

Morto de sede no deserto do Saara,

Da Antárctida na planura branca enregelado,

No floresta virgem da Amazónia de mosquitos picado,

Repara:

Até onde a vista alcança

Há sempre uma esperança.

 

E, se te chega ao derradeiro fim a caminhada,

Não é o fim: principia a Grande Jornada.

 

 

Crítica

 

Na crítica situação

A coisa mais insignificante

Conseguida

É que valorizamos então

Como a mais importante

Da vida.

- E é um outro mundo que nos abre o portão.

 

 

Monstros

 

A vida,

Já que é iminente sermos esmagados

Por monstros de lata mecanizados,

Não nos é de todo garantida.

 

Contudo, nada nos mais apraz

Que por garantido dar

Que amanhã iremos acordar

Em paz.

 

 

Inteiramente

 

Aquilo de que outrem precisa

É inteiramente diferente

Daquilo que, do alto da minha divisa,

Em meu pedestal assente,

Eu estarei disposto

A dar-lhe, a meu gosto.

 

Não admira

Como tão desencontrado o mundo gira.

 

 

Desnorteada

 

No meio das árvores perdemos a perspectiva,

A direcção.

A vida é mesmo isto: esquiva,

Desnorteada até mais não...

E nem a religião

Nos aviva

O norte que tomámos nas alturas,

Pela teia dos trilhos perdida nas figuras.

 

 

Exageros

 

Os exageros hiperbólicos mais perto

Andam por vezes da realidade

Do que decerto

A verdade.

 

É que a palavra

Que apenas evoca

Enfia também, dela na toca,

O fado do mistério que lavra.

 

Quem doutro modo o vai descortinar

Na escuridão de tal lugar?

 

 

Três

 

Vivemos a três refeições

Da anarquia.

Dos humanos quando os biliões

A fome sofrerem até àquela fasquia,

Não há mais travões

Sequer:

O colapso inteiro há-de ocorrer.

 

E não haverá fuga para nenhum quintal:

Será mundial...

 

Terceira Guerra?

- Que importará o modelo então, se tudo então nos ferra?

 

 

Traz

 

A poesia

É fantasia,

É.

 

Mas é mais verdadeira

Que a História inteira:

É quem a põe de pé

E ma traz para a minha beira,

Carregada com a romaria de fé

Na vida

Que sobre a humanidade ligeira

Toda peneira,

Desmedida.

 

 

Serve

 

De que serve a força

Não sendo exercida?

É a medida

Que a reforça

Por a termos contida.

E por deixar a vida

À solta,

A sonhar desenvolta

Tudo o que para além

Inatingível advém.

 

 

Estiver

 

Onde estiver o dinheiro

Está o poder,

Excepto onde estiver, pioneiro,

O verdadeiro

Ser.

É o que, fecundo,

Desestabiliza o mundo.

 

 

Depois

 

Depois de experimentar

Voar,

 

Todo o caminho pela terra

Tendeu para o pico da serra

 

E, quando este ocorreu,

Foi logo de olhos postos no céu.

 

Porque já lá estivemos

Não vemos a hora em que retornaremos.

 

 

Vingam-se

 

Os que foram muito magoados

Por vezes vingam-se magoando

Por todos os lados,

Até quem mais os ama, de vez em quando,

Mesmo sendo quem mais lhes presta cuidados.

 

Gente de saraiva,

Não de códão brando,

São apenas raiva,

Não respeitam sequer o bando.

 

Ou então, quando os atropeles,

O bando são eles.

 

 

Trata

 

Médico em tempo de guerra

Trata sintomas, nunca autorizado

A tratar a causa que a todos se aferra:

A própria guerra.

 

A menos que, com furor,

Aceite ser trancado

Por traidor.

 

 

Desilusão

 

Somos a eterna criança

Que nunca aprende a lidar

Com a desilusão que a alcança.

 

Sempre a julgar

Que uma maneira há-de haver

De atingir

O que quiser

Sem desistir

Nem sofrer o enguiço

Dum compromisso.

 

O crescimento é doloroso

E o tempo que leva!

E quão viscoso

Daquela treva!

 

 

Biliões

 

Quatro biliões de mulheres,

Todas vítimas conscientes,

A viverem na esperança doutros orientes,

Do golpe de magia que transmude

Desgraças e afazeres

No sonho que as ilude.

 

Sempre na mesma trilha de pegadas,

A domar o asco,

Por medo de serem abandonadas

Pelo carrasco.

 

 

Entre

 

A diferença

Entre a prática e a teoria

É que o académico nunca aprecia

A realidade que o vença.

 

É por isto

Que nenhum Galileu

É acolhido deles no céu

E tão crucificado é sempre Jesus Cristo.

 

E nunca chega a hora

De findar com tal demora.

 

A história inteira

É sempre eternamente esta peneira.

 

O terrenal chão

É mesmo do Paraíso a maldição.

 

 

Fácil

 

É mais fácil ceder,

É mais fácil largar a mão

Da borda da falésia

E esbarrondar-se no pedregoso chão

Do que trepar quenquer,

A mão rézia,

Antes de ir-me,

De volta à terra firme.

 

Em toda a encruzilhada da vida

Esta é a tentação e a medida.

 

 

Fatalmente

 

Tudo o que se do Céu disser

Não é nem há-de ser.

 

Não por não ser, mas por ser aquém

Do que o Céu for fatalmente para além.

 

Nem vale a pena imaginar

Que ser não tem ser nem tem lugar.

 

E é

O que, afinal, todo o ser mantém de pé.

 

 

Pinto

 

Todos sentimos a tremenda necessidade

Da religião:

Eu e a Infinidade

Em união.

 

Então,

Sem lugar onde me acoite

Das procelas,

Saio de noite

E pinto as estrelas.

 

 

Dívida

 

A dívida que tens hoje

Reclama teu amanhã

Que de ti foge,

Em virtude da prenda malsã

Que pretendes sem demora

Obter aqui, agora.

 

A dívida é uma droga,

Um pico rápido de prazer

Que ao fundo o porvir te afoga,

A perder de vista, a perder...

 

Limita-te as opções

Com o peso sobrecarregado

Das lesões

Do passado.

 

 

Partilhamos

 

Partilhamos uma ordem superior

Onde nada é predeterminado,

Um campo infindo de possibilidades em flor

Mudando a cada instante pelo prado,

De acordo com o que lhes dita

Nossa maneira de pensar e de sentir

Mais do roteiro a fita

De agir.

 

 

Hábito

 

O hábito incontrolado

Devém necessidade.

Não é nunca, porém, por outro lado,

Uma qualquer

Fatalidade

Que tenhamos de viver.

 

Ao invés, contudo, nas caminhadas,

Quantas vezes é a matriz das escolhas erradas!

 

 

Encrava

 

Há muito factor externo

A impedir meu crescimento,

Como um perno

Que me encrava o movimento.

 

É como se o rico dissesse:

“Larguem o campo ao abandono,

Que o camponês que aí falece

Deixa a terra sem dono

 

E vem, trabalhador ilegal,

Dar-me a mão-de-obra barata

Com que a minha riqueza, afinal,

Se me acumula, grata.”

 

Ou então:

“Temos de engordar a população

Para depois haver a quem vender

Medicamentos para emagrecer.”

 

Ou, pior ainda:

“Precisamos de desintegração familiar

Para a gente deprimida sobrevinda

No álcool e na droga insistir em escapar.”

E o rico, na venda, sempre a engordar:

Desgraça bem-vinda...

 

 Convém-lhe a escola pública má

E a privada, muito cara,

Para mais jovens só entrarem acolá,

Nada aprenderem que importara,

De modo que, ganhar a vida,

Só como assassino ou traficante

Ou na escravatura escondida

Da empresa predominante.

 

Polícias corruptos,

Governantes inescrupulosos,

Indivíduos solitários degenerando em brutos,

Abandonados, desamparados, pedinchosos,

A aplaudir sem parar

A migalha de ajuda que lhes queiram dar...

 

- Pode o rico nem tomar disto consciência,

Esta é a lógica, porém, de sua procedência.

 

 

Tanto

 

A emoção (como o pensamento)

Afecta,

Tanto quanto de agir o evento,

O mundo que se projecta.

 

Emoção e pensamento:

Energia em movimento.

 

Saem de nós, irradiam

E contagiam,

 

Invisíveis embora,

O mundo que em redor mora.

 

Que investidor ecoa

O sofrimento duma pessoa?

 

Que banqueiro se preocupa e preza

De alguém a tristeza?

 

Quem perde o sono

Com os suicídios de adolescentes,

De infelizes, sem abono,

Nem futuros pendentes?

 

Os pensamentos viajam

Na forma como nos relacionamos,

Trajam

O gesto como trabalhamos,

Como consumimos,

Como partilhamos,

Como amamos...

 

- Como na vida todos os cimos

Celebramos.

 

 

Medo

 

O medo nos paralisa,

Travão que não cede um momento,

Num Universo que se realiza

Em perene movimento.

 

Não admira,

Quando mais cada um por parar se esforce,

Como a vida nos revira

E torce.

 

 

Confinados

 

O medo é do tempo que a tudo

Porá fim,

O que nos aterroriza a miúdo,

Confinados como vamos a nosso estreito confim.

 

Medo da perda afectiva,

Da rejeição,

Da velhice a que ninguém se esquiva,

Da doença, da lesão...

 

O medo se herda,

Para nosso desnorte,

E é sempre medo da perda

Onde principia a morte.

 

 

Governantes

 

Os governantes controlam a população

Com base no medo:

Quanto maior a aflição,

Maior o controlo tredo.

 

Do atemorizado o sentimento

É de vulnerabilidade,

Logo o salvador, num momento,

O persuade:

 

Defende ele a democracia,

Proclama a liberdade,

Cada povo seu destino decidiria

À vontade...

 

Para tal intervém com a força armada,

O exército sai à rua,

A repressão é generalizada.

Do modo como actua

 

O mais impressionante

É que as vozes da multidão

Aplaudirão

O aperto do próximo cabrestante

 

Que as âncoras da vida

Lhes furtam de seguida.

 

 

Crime

 

O crime organizado,

Na luta pelo poder,

Usa o medo como um dado

Em conta a ter.

 

Populações reféns,

Ameaças de bomba,

Sequestros de pessoas e bens,

- À dor do medo tudo tomba.

 

Na fuga ao tormento

Todos findarão,

Afinal, bem pior: no isolamento

E reclusão.

 

 

Esconde

 

O meu medo verdadeiro

Esconde no interior

Outro maior

E este outro ainda mais fundeiro.

 

Se eu entender o derradeiro

E o mudar,

Não há para mais medo lugar.

 

Tens medo de envelhecer?

Não, é que te recusem trabalho,

Ninguém te vá querer,

Carta fora do baralho.

 

E daí?

É que então já ninguém goste de ti.

 

E depois?

Votado ao esquecimento, teu desnorte

É de que findem os arrebóis:

- Temes é a morte!

 

 

Prazo

 

Somos mais que um corpo com prazo de validade.

Pensamento

É energia em movimento.

Emoção

É energia que me persuade

À movimentação.

 

O corpo físico é um pedaço de Universo

Que caminha, move e se transforma,

Terso,

Constantemente e por norma.

 

Ninguém está condenado,

Desta sorte,

Nem a ser separado,

Nem à morte.

 

Todos somos um no confim

Deste Universo sem fim.

 

 

Corpo

 

Se sou um corpo feito de matéria,

A emoção, o pensamento, a memória, o amor

E toda a mais frota sidérea

De meu interior

São, em resumo,

Menos que fumo?

 

Não são matéria.

Todavia existem

E persistem

Sobre a matéria em agir,

O que é demais para uma ilusão aérea,

Um mero nada, afinal, não subsistir.

 

Em meu íntimo me comovo

E logo

Meu corpo de matéria movo,

Em desafogo.

 

O que penso e memorizo,

O que sonho e me persuade

Transforma-se de juízo

Em realidade.

 

Sou o que sinto, o que penso,

O que recordo e comunico,

Sou o que amo e que dispenso

E nunca só por mim me fico,

Que sou de facto o mundo inteiro:

 

Nunca pensamos sozinhos,

Do infindo Universo me abeiro,

Em meu sonho as Galáxias fazem ninho.

 

 

Partículas

 

Meu imo as partículas subatómicas

Alinha em formações militares

Subliminares,

Modelando irracionais danças cómicas

Larvares.

 

Meu imo

Ilocal como inespacial

É o bordão de arrimo

De todo o mundo natural,

O estreito

Mundo da percepção

Que ajeito

A partir de meu imaterial

Coração.

 

Meu projecto espiritual

Modela, subtil,

Partículas mil

E o mundo já não é igual:

 

A cadeia de mil outras mil grava

E nada a deriva trava

Até ao horizonte final

Do Universo total.

 

O Cosmos é o campo da lavoira

Que meu imo agoira.

 

 

Transmitir

 

Transmitir informação mente a mente

Não requer o cérebro da gente.

 

A ilocalidade da consciência

Não tem de tempo ou espaço qualquer exigência.

 

Opera

Para além da matéria mera,

 

Mas sempre nesta a se reflectir,

Caminho fora ao ir.

 

Um mundo do outro diferente,

Um ao outro soldado, porém, permanentemente.

 

 

Confundo

 

Confundo quem sou com o que faço,

Defino-me com o traço

 

De dona de casa, soldador,

Engenheiro, doutor...

 

Ou então com o que tenho me confundo:

Sou rico ou pobre,

Devedor ou, do que me sobre,

Detenho um fundo...

 

Ora, não somos uma faceta

Única, irrepetível.

Somos, ao invés, mil caminhos para a meta

Inatingível,

Somos a fome e os bodos

De qualquer conteúdo,

Somos todos

E tudo.

 

Ninguém é aquilo que come,

Todos somos fome.

 

O restante

São iguarias

Que festejamos vida adiante

Todos os dias,

A inesgotável variedade

De sermos Humanidade.

 

 

Meta

 

A meta que desejo

É o meu revelador.

De ser estrela busco ensejo

Ou de ser realizador,

 

Quero salvar animais

Ou os meninos da rua...

- Tais desejos pessoais

Moldam o perfil de quem actua.

 

E eis como o pensamento

Molda a matéria a todo o momento.

 

Em mim e fora de mim

Todo o mundo se entretece assim.

 

E a manta que nunca tem final

Sou eu e o mundo num abraço total.

 

Eternamente

A esculpir o presente,

Sempre em frente, sempre em frente...

 

 

Tempo

 

Tempo fora, sou a estrela,

Sou a pedra, sou a flor,

Sou o corpo a me propor,

Navegante caravela.

 

E, a seguir,

Transmudo-me em algo mais,

Quando mergulhar no cais

Do Universo

Que sempre, sempre em frente há-de ir,

Feito de novo meu berço.

 

Assim é que eternamente

Perduro,

Perene semente

De futuro.

 

 

Realidade

 

Dia a dia reparamos

Na realidade em redor,

Fixamos

O evento maior,

Melhor,

Pior...

- Que cremos tão relevante

Que é de não perder adiante.

 

Armazenamo-los na filmoteca

Da memória,

Evocamo-los, a meio de qualquer seca,

A recuperar-lhes da fértil rega a glória.

 

Convencemo-nos de que são factos

Que deveras ocorreram.

Todavia, nunca o são,

Mas apenas uma minha projecção,

Pactos

Que advieram

Entre meus quadros de referência

E da realidade a evidência:

 

Vejo de acordo com meu mundo de crenças

E o que observo converte-se dele nas sentenças.

 

Projectei previamente

Aquilo que vejo à minha frente.

 

Da frente recolho o quadro

Em que, no fundo, a mim,

Por fim,

Me enquadro.

 

E não há como fugir

A esta forma de o mundo repartir.

 

 

Vestir

 

O facto é um sarilho

Que me escapa,

De o vestir sempre com o brilho

Da minha capa.

 

Na tarde chuvosa,

À saída dum centro comercial,

Um sem-abrigo a miséria escabrosa

Adormenta em pleno temporal.

 

Um desconhecido

Que a tiritar meio adormecido

O descobre,

Tira o casaco que tem vestido

E dele o cobre.

 

Dá uma corrida até casa, ali ao lado,

Sem ter reparado,

Da emoção com o impacto,

Que as chaves deixara no casaco.

 

Volta atrás e, encontrando o mísero a dormir,

Para o não acordar, o mínimo a bulir,

 

As chaves procura

Que esquecera na altura.

 

De repente repara que alguém

O olha espantado

Por cuidar ver um sem-abrigo a ser roubado.

 

Quando, porém,

Lhe tentou explicar

O que havia ocorrido,

O outro desembestou do lugar

A correr espavorido.

 

“Quem é capaz

De assaltar um sem-abrigo

Que é que me faz,

Se o lobrigo?”

 

Em casa comenta à esposa:

“Roubar a miséria no centro comercial!

Não há moral.

Neste mundo já ninguém repousa!”

 

A partir duma imagem

Enganou-se por completo

E nenhuma outra triagem

Lhe refaz o juízo desafecto.

 

O facto é um sarilho

Que me escapa,

De o revestir sempre com o brilho

Da minha capa.

 

 

Depende

 

O que eu vir

Depende da minha localização:

Se mudar, a seguir,

Terei outra visão.

 

Ninguém poderá dizer

Que vê o mesmo que o vizinho

Nem que é a única legítima a visão que tiver

Do dado

Aflorado

No caminho.

 

 

Corpo

 

Vivemos tão iludidos!

Meu corpo tão real e sólido

Perante os sentidos,

Por muito que me custe,

É um estólido

Embuste.

 

A nível das partículas,

De pequenas tão ridículas

 

Que as nem vemos,

Aparecemos e desaparecemos

 

Milhares de vezes a cada instante.

Apesar disto, temos o desplante

 

De encarar o corpo como sendo, de facto,

Um volume compacto.

 

Vemo-nos como filme em perpétuo movimento,

Quando somos fotogramas

Projectados segmento a segmento.

E entre as escamas

Da luz projectada

Somos a escuridão do nada.

 

Quando alguém no tempo me olhar,

No momento me congela,

Apesar de eu continuar

A renovar

Minha sequela.

 

Que quantidade de imagens armazeno

Na memória

Que não representam nem o campo nem o feno

Da minha história!

 

 

Iguais

 

Nas actividades que empreendo

A iguais emoções me rendo

 

Vezes e vezes seguidas.

São as medidas

 

Dos vícios e virtudes emocionais

Que empedram as minhas estradas reais:

 

Esforçam-me a passada

Ou tolhem-me a jornada.

 

 

Jovens

 

Os jovens carregam, a todos os instantes,

Imagens de violência,

Nos jogos de computador dominantes,

Nos filmes, na televisão,

Nas lutas pela excelência

Onde estudam, na competição,

No público transporte,

No estádio de futebol que lhes aponta um norte,

Nas festas aonde vão...

 

Findam viciados na adrenalina

Que, desde agora,

Vida fora

Os destina.

 

Como às vítimas de violência familiar,

Da guerra,

Do terrorista que as aterra,

Do traficante de droga que as dominar...

 

Exposição contínua e repetida

A um tremendo risco

Leva a adrenalina produzida

A saltar todas as baias do aprisco.

 

E vicia tanto

Como qualquer outra droga

Que nos afoga,

Entretanto.

 

Quão mais trepas pela adrenalina

Mais

Descais

Na serotonina.

 

Ora, esta é que nos forma o bem-estar,

Trava a impulsiva

E agressiva

Maneira de actuar.

 

Que admira que procuremos

Extremos

Onde descarregar

A raiva sem sentido

Definido

Em que vivemos?

 

Que admira que queiramos

Guardar na memória

Eventos em que cirandámos

Sem glória

Denegridos, humilhados,

Atemorizados?

 

É, do rastilho do vício,

O perene resquício.

 

 

Condição

 

Se da condição de vítima me despojar,

Adquiro um novo rosto,

Espelho proposto

Para outrem descobrir, a par,

Que sou mais que um corpo dorido,

Ferido,

Torturado,

Ofendido...

Na fundura do fundo

Mais profundo

Sou sempre um outro lado.

 

 

Sofre

 

Se meu corpo sofre uma perda,

Meu íntimo não a herda.

 

Minha energia interior

Mantém-se íntegra, superior

 

A qualquer destruição

Que ocorra no meu torrão.

 

O que eu era antes

Mantém-se após a refrega,

Apesar da ilusão que o nega,

Da vida com os novos implantes.

 

Poderei encarar alguém

Como vítima ou como luz

Que até nós do Cosmos advém

Por nosso íntimo que sempre a traduz.

 

A luz pode transformar-se

No que quer que seja

E, ao mudar-se,

Transmite o que almeja

 

Ao corpo, de imediato,

Para incarná-lo em acto.

 

É sempre assim,

No indivíduo, no país, no mundo:

Por trás do que vemos há outro confim

E é a energia dele que tudo torna fecundo.

 

 

Entrevistas

 

As imagens entrevistas em sonho,

Umas às outras se entrelaçando,

Vão criando

Um mundo outro de que já disponho,

Germinalmente despontando:

Do mundo a mudança presente

Principia na mente.

 

 

Afirma

 

Qualquer ajuda

Afirma a separação

Entre o superior que acuda

E o inferior em provação.

 

Aquele pode-me destruir

Se me negar a obedecer.

Se o bem vir,

Fui eu quem lhe deu o poder,

Com meu voto a deixá-lo vir

Até meu caminho me tolher.

 

Ao invés, confiança,

Cooperação:

Num mundo interligado

Nada se alcança

Em nenhum lado

Sem eu lhe dar a mão.

Aqui a sina

É que a ninguém ninguém domina.

 

 

Ninguém

 

Ninguém pode viver

Nem morrer

Sozinho,

Sem que lhe acuda

A nossa ajuda

Durante todo o caminho.

No meio da maior solidão

Estou sempre eu inteiro a dizer a alguém que não.

 

 

Vontade

 

O desejo, a intenção, o consentimento e a escolha:

Eis a vontade a decidir e ordenar o comportamento

E o que dele recolha

A cada momento.

 

E por trás de tudo, o empurrão por definir

Que me impele a agir:

 

Sou o mágico instrumento

Dum Universo em perene movimento.

 

Gratuito e fiel, eternamente me empurra...

- E a materialista mente

Que constantemente

O esmurra!

 

 

Enfrentar

 

Sem vontade,

Como enfrentar o medo,

O degredo

Que nos destrói a identidade?

 

Poderei ter lido mui bem meu personagem,

Ao pormenor captado

Meu passado,

Libertado emoções negativas nesta romagem...

 

Sem vontade, porém, com que a vida acometa

Nunca atingirei a minha meta.

 

 

Criativo

 

A imaginação,

Revelando novos mundos por trás dos véus,

É uma pequena repetição

Do acto criativo de Deus.

 

Mais importante que o conhecimento,

Inelutavelmente limitado,

O imaginário voa com o vento,

Sem fronteiras,

Até às leiras

Que houver a descobrir

Do outro lado.

 

É o ovo

A eclodir

Do mundo novo.

 

 

Proliferam

 

A imaginação,

Por não ter limites,

É uma perturbação

Para os que foram educados

A nunca ter palpites

Num mundo de significados

Fixos.

 

Por isso enchem tudo de crucifixos

Sem nunca haver ressuscitados.

 

E as chagas

Proliferam mundo fora como pragas.

 

 

Imaginário

 

O imaginário, como amor

De que na friagem da vida me enrolo,

Não tem baias em redor,

Escapa-nos inteiro ao controlo.

 

Não entra na bolsa de valor,

Ninguém o pode regular,

Nem vender, nem comprar...

 

Num mundo desenfreado

De mercado,

É deveras assustador.

 

...Ou, para quem lhe ficou ao lado,

Até que enfim libertador!

 

 

Andar

 

O que faz andar o mundo

É o dinheiro.

O que faz andar a gente

O desmente

Por inteiro.

 

Fecundo,

Só o amor gratuito

De que me inundo.

Por isso o quero muito, muito!

 

Tanto

Que quanto menos envolvido dinheiro,

Maior o encanto.

 

O mundo anda às avessas.

Como pode presumir

Vir-nos pedir

Meças?

 

 

Obtém

 

O assalariado

Que não obtém o dinheiro pretendido

Pelo trabalho vendido,

Finda desalentado,

Quebra-se-lhe a vontade.

É uma rebelião

Em germe, dele na interioridade.

 

E porque não?

O dinheiro tem casa, educação,

Médico, alimentação,

Diversão

E tempo livre à medida

Para desfrutar a vida.

 

O pobre não tem nada:

Corre o dia para o emprego,

Cumpre horário, num desassossego,

Retorna de vida esgotada.

Não sobra tempo nem energia

Para nada, em cada dia.

 

O tempo vale

O que lhe pagam por hora

De desempenho laboral,

Não demora.

 

Liberdade, vontade, criatividade

Foram, com o tempo roubado,

Habitar noutra cidade,

Na vida de algum outro lado.

 

Roubar o tempo de alguém

É condená-lo a labor alienado,

Como quem

Do alcance dele próprio vive de vez abandonado.

 

 

Desvanecer

 

Às vezes acreditamos

Que se poderá desvanecer da noite para o dia

Tudo aquilo que sonhamos,

Sentimos,

Pensamos,

Desejamos,

Como mera fantasia

De que nos imos,

Sem deixar rasto

Nos campos do mundo de nosso pasto.

Com a mão de veludo

A morte apagaria

Tudo.

 

Ignoramos que, mal afloram à mente,

As vivências irradiam no coração,

Expandem-se pelo Cosmos instantaneamente,

Feitas colectiva informação,

Minha espiga de milho

Que com todos compartilho.

 

Uma vez isto ocorrido, de verdade

Duro para a eternidade.

 

 

Crítico

 

Uma vez um número crítico atingido

Dos que repetem uma informação,

Uma consciência colectiva brota, no sentido

Da adesão,

Instantânea e sem requerer

Mais comunicação

Sequer.

 

Fará parte do património comum

Em que todos somos um.

 

E desta maneira eclode do ovo

A geração dum mundo novo.

 

 

Semente

 

Os que beberam no leite

A semente dum além

São o melhor de nós aceite

E que aí vem.

 

A luta não foi em vão.

A experiência adquirida

Permanece a germinar no chão

E, tarde ou cedo, rompe a cobertura erodida,

Invade

O reino da realidade.

 

É o sonho a atingir

Ser mesmo o porvir.

 

 

Primeiro

 

Primeiro criam o vírus de computador,

Depois a cura

Que uma fortuna assegura

Ao vendedor.

 

O laboratório cria primeiro a doença,

Depois a cura

Que à procura

Convença.

 

Que importa o dano?

Alguém ama mais o dinheiro

Que o rasteiro

Animal humano.

 

Por mais que alcance

À custa da humanidade,

A felicidade

Ficou-lhe de vez fora de alcance.

 

 

Íntimo

 

De vida todo o Universo palpita,

Do átomo mais pequeno

À mais longínqua estrela.

O íntimo dele o habita,

Pleno,

Frutificando em cada gabela.

 

A matéria toma forma

Quando um novo coração

A informa.

Quando deixa de bater

Um batimento qualquer,

Então,

A vida individual pára

E na mais vasta mergulha que a abarcara:

 

Todas as vidas numa,

Aquela que a todas, finalmente,

Assuma

E que na eterna mente

Resuma

E no misterioso coração

Onde palpita a cósmica palpitação.

 

 

Encara

 

Uma cultura materialista,

Assente na competência para ter,

Encara a entrega gratuita como falta de vista,

O desinteresse como não-ser.

 

Por isso pouco lhe importa o impacto

Que sobre outrem tiver qualquer facto.

 

Por isso dia após dia mais nos enterra

Numa surda-muda mundial guerra.

 

 

Mola

 

A estrutura social

É uma mola em espiral.

 

Se a ponta superior dos ricos

Se esticar demais,

Enquanto a inferior, dos pobres, nos picos

Fica presa dos silveirais,

 

Há um ponto de ruptura

Em que se estilhaça toda a estrutura:

É a Revolução Francesa, as Guerras Mundiais...

 

A mola só se aguenta

Se, quando a ponta rica um novo patim tenta,

 

Rodar a mola inteira,

De modo que a inferior de novo patamar se abeira.

 

Quando um por cento de abonados

Tem noventa e nove por cento da mundial riqueza,

É o canto de finados

Da humanidade ilesa.

 

Ou rapidamente a pobreza

Trepa os degraus retardados

Ou a mola social retesa

Quebra, de elos mundiais estilhaçados.

 

 

Imagem

 

A imagem que de nós temos

É uma imagem fabricada.

O que ao espelho vemos

É um pouco do corpo, mais nada.

 

Não vemos o que pensa, sente,

Do que se lembra, por que anseia...

Não vemos que laços imprime a mente

No mundo que nos rodeia.

 

O espelho mente,

Que nos representa

Apenas parcialmente,

De fora deixando o melhor da ementa.

 

No Todo, cada um de nós é parte

Da manta do Universo inteiro.

Nossa identidade, destarte,

Tem ali seu fio de trama verdadeiro.

 

Podemos por aqui recuperar, nesta medida,

A memória de nós próprios, em seguida.

 

 

Problema

 

Tendo um problema em mente,

A resposta vem a seguir:

“Gostaria de saber se há uma via diferente

De sair.”

 

E a via chegará,

Como se a mente atirasse a pergunta

À mente cósmica que nos rodeia sempre cá.

Toda e qualquer solução logo se junta,

Prenhe de inesperados,

Em sonhos ou acordados.

 

Vislumbramo-las tanto quanto

Os obstáculos foram eliminados

Que impediam a ligação a cada recanto

Da vontade do Universo

Com que então mudo converso.

 

 

Unidade

 

Ao criar,

Deixo de andar isolado,

Minha unidade ao afirmar

Com a fundura que em mim adivinha um Outro Lado.

 

Dando-lhe corpo quanto me invade,

Aí radica a minha liberdade.

 

Aí sou dono da escolha

E do destino.

É minha cura que eventualmente então recolha

E meu carácter que afino.

 

O bem-estar e o progresso

Estarão,

Por minha mão,

De regresso.

 

Uma comunidade saudável

Vive tanto disto em virtude

Como dum serviço de segurança fiável

Ou de saúde.

 

 

Queima

 

O artista,

Com a alegria

Secreta

De tudo quanto invista,

Queima tanta energia

Como um atleta.

 

Mas há sempre quem insista

E de lado o desquita

Como um parasita.

 

Entretanto, a chave do céu

Pende do pulso que é o seu.

 

 

Simples

 

É simples a vida

E muito complicada.

É simples querer um gelado, um prato de comida,

Uma boneca articulada...

 

É simples querer a fama.

Mantê-la um ano, uma vida inteira,

Que complicada derrama

Tudo então em nós peneira!

 

É simples querer alguém

De todo o coração

Mas que complicação

Se for casado também!

 

Pior ainda se por nada

Larga a família formada...

 

- É indubitavelmente contraditória

A costura de nossa história.

 

 

Tédio

 

Ninguém mostra gratidão

Por aquilo que possui,

É de tédio o chão

Do que frui.

 

Por esta falta de siso

Perde-se todo o paraíso.

 

É dele na falta

Que o inferno salta.

 

 

Segunda

 

A segunda oportunidade

Nem sempre a vida a oferece.

É o rosto da vaguidade

Que tanto a textura lhe entretece.

 

Tudo é arriscado.

Porém, se não corro o risco,

Que petisco

No fim da vida hei petiscado?

 

Ninguém é dono de nada,

A propriedade é uma ilusão,

Desde o bem material

De cada jornada

Ao bem espiritual

Que modela, afinal,

Cada íntimo torrão.

 

Quem perdeu

O que tinha por garantido

Já entendeu

De tudo qual o sentido

Que mais convence:

- Nada nos pertence.

 

 

Inferno

 

Quem a preza

Pura

Paga o inferno desta certeza:

- A beleza

Não dura,

Esvai-se presa

Do envelhecimento da formosura.

 

 

Inefavelmente

 

São inefavelmente míticas

As saudades dum instante.

As pegadas de outrora, entretanto, são fatídicas,

Nada lhes pode mudar o negro ou branco doravante.

E a vida aguarda conjunturas críticas

Para revelares o lado brilhante

 

Que depois consagres

Quando passas:

Ou milagres

Ou desgraças.

 

 

Busca

 

Na busca da felicidade

Estamos todos empatados:

Nenhum de nós, em profundidade,

É feliz dos quatro costados.

A vida trocou-nos os lados:

Não é a minha leira que hoje grade,

 

É a que me foi pelos eventos oferecida,

Onde da outra vou charruando a lida.

 

É sempre entre os dois planos

Que acerto perdas e danos.

 

 

Sacrifica

 

A luz que provém

De alguém

Que sacrifica o que é importante

Ao que importante for mais,

Porém...

 

O herói, o santo, os entes geniais

Que sacrificam vida adiante

Os bornais

Para calar a fome

Da Humanidade, em tantos recantos

De prantos

Onde ninguém come...

 

Os olhos,

Os faróis de encantos

Com que nos dinamitam os escolhos...

 

Tão poucos

E tanto daquilo deles em tantos,

Até parecem loucos!

 

 

Tessitura

 

Faz parte do ser humano

Em busca de sua outra parte,

O engano

E o descarte.

 

Ninguém tem culpa, portanto,

É da vida a tessitura do manto.

 

Acontece...

E é assim que a vida se merece.

 

 

Quase

 

Num mundo que, de raiz,

Nada tem que o consagre,

Um dia feliz

É quase um milagre.

 

De repente,

Uma pedrinha no lago

E a gente,

Num gesto vago,

Inconsciente,

Mudou de mundo: que é que trago

De antigamente,

Do vazio

De meu fastio?

 

De repente

Fiquei cheio,

Sem entender nada pelo meio.

 

 

Chocar

 

A vida é uma avarenta:

Dias, meses, anos a chocar um ovo

E nada aparenta

De novo.

 

De repente, abre uma porta

E uma avalanche entra pelo rombo aberto.

Num momento, nada importa;

No seguinte, eis-nos perto

De nem aguentar

O turbilhão a nos arrastar.

 

 

Solta

 

O desejo é uma emoção liberta,

Solta pelos espaços,

A vibrar, incerta,

Enchendo a vida com vontade de algo,

De abraços,

De traços,

Vontade dos muros que galgo,

De empurrar tudo para a frente,

Desmoronar montanhas

Por fora e por dentro da gente,

Quão mais tamanhas,

Melhor,

É querer premente

Um ror

De seja lá o que for...

 

- O desejo a que me grudo

É a fonte de tudo.

 

 

Difícil

 

O final

É sempre mais difícil que o princípio:

- Apagou-se o fanal.

 

Equipe-o

Embora muito bem,

O itinerário é fatal:

No fim, por algum lado,

Serei sempre um infortunado

Pedro-sem.

 

O absoluto

Consumado

Não é nunca meu produto.

Serei sempre, neste aqui-agora,

Um amputado

Que chora.

 

 

Trazer

 

O desejo

Pode afastar alguns, decerto,

Mas dá-me o ensejo

De quem me importa trazer para perto.

Pode contagiar, energia à solta,

Tudo e todos à minha volta.

 

O que é muito bom:

Fermenta a vida do que na vida for são.

 

 

Transacção

 

Numa transacção comercial

De contas escorreitas

Ambas as partes, no final,

Têm de ficar satisfeitas.

 

É o que nunca entendeu

O esclavagismo,

O colonialismo,

O terceiro-mundismo...

- Todo o que erguer o troféu

Da riqueza obscena

Ante a miséria extrema.

 

De tão medíocre e falhado,

Trata os mais como gado.

 

De tão vazio

Nem vê da navalha o fio

 

Que afia e planta

Nas mãos que, tarde ou cedo, virão cortar-lhe a garganta,

 

A ele, ao lar, à região, ao país,

A meio mundo que assim anda empinando o nariz.

 

 

Pássaro

 

O pássaro me emociona

Pela liberdade em movimento.

É o que me traz à tona

O sentimento.

 

O corpo dele?

Talvez me arrepie um pouco a pele...

 

Comparado com a promessa escondida naquela revoada,

Não é nada.

 

 

Próximo

 

Quando moramos numa cidade,

Fica para mais tarde conhecê-la.

Descobrimos, com a idade,

Que nunca iremos vê-la.

 

É assim que o próximo finda distante,

De tanto nos morar diante.

 

O próximo caminho

Como o próximo vizinho.

 

E podemo-lo até verificar

Dentro das paredes do lar...

 

 

Normal

 

É normal as minorias

Manifestarem-se todos os dias?

 

A jovem de sonho apaixonado

Fugir do príncipe encantado?

 

Sonharmos com um rendimento maior

Em vez de sonharmos com o amor?

 

Vendermos nosso tempo o tempo inteiro

Sem de volta o podermos comprar a nenhum parceiro?

 

- Toda a anormalidade é normal

Na nossa miopia universal.

 

Ir contra a natureza,

Contra a emoção de nossa íntima profundeza,

 

É normal a nossos olhos,

Embora aos céus oponham escolhos.

 

Alimentámos nosso inferno,

Milénios a construí-lo,

E, depois deste esforço superno,

Eis-nos vivendo da pior maneira,

De loucos num asilo

Nossa vida inteira.

 

 

Anormalidade

 

Quando a anormalidade se torna normal,

A normalidade mais primária

Devém, nos factos e afectos, afinal,

Extraordinária.

 

O normal estatístico

Pode ser, até de tão clubístico,

 

Tão anormal

Como uma doença terminal.

 

 

Encontro

 

O encontro da finitude humana,

Não divina,

Com a divina infinita profundidade

É a identidade

Que de qualquer fé emana,

A que qualquer fé inclina,

Por onde ela o Todo invade...

 

É-o em todas,

Por trás de quaisquer perfis ou modas.

 

 

Anonimato

 

No anonimato da economia, a toda a hora,

O homem é um bem de consumo

Para usar e deitar fora.

- A isto me resumo?

 

O excluído vindo das obras,

Está de fora:

Pior que um explorado, ele agora

São sobras.

 

 

Crítica

 

A razão só respeita

Quem a crítica lhe aceita.

 

Se a religião, a pretexto de santidade,

E a lei, a pretexto de autoridade,

 

Fugirem a este escrutínio,

É o declínio:

Tudo se transmuda numa receita...

- Tudo então levanta suspeita.

...E renasce o raciocínio!

 

 

Erros

 

Divino e humano verdadeiros

Não são rivais.

Entendê-los como tais,

Só por erros grosseiros.

Na vida em busca dos caminhos supernos,

São aliados eternos.

 

Só quem não quer ir a nenhum lado

Confunde o aguilhão com um vizinho danado.

 

Mal se mexa, ruma a uma ponte

Para o Infinito do horizonte.

 

Um é atracção,

O outro caminha-lhe na direcção.

 

Formam um todo,

Cara e coroa do mesmo engodo.

 

 

Profeta

 

O profeta toma aos ombros

O peso do mundo vário

Por entre os escombros...

- O profeta é solidário.

 

Pela dor que o toma

Neste calvário,

Encerram-no os mais numa desinfectada redoma.

- O profeta é solitário.

 

De qualquer profeta

O sumário

Tem esta sina discreta:

É um solidário solitário.

 

 

Esquecido

 

O mundo anda esquecido da própria alma.

Na Terra, grão de areia da praia do Universo,

Procuro a fresca sombra da palma,

Antes de mergulhar nas águas que sobre mim verso.

 

No colo do Cosmos vivemos, nos movemos e existimos,

Com as leis dele que nos ultrapassam,

Cruzados de energias que nos trespassam

Na fundura da união cósmica que mal pressentimos.

 

Crentes ou ateus,

Todos unidos

No que aqui nos revelam os sentidos,

Todos vivemos do corpo cósmico de Deus.

 

O Universo é vivo

E tão pejado de interioridade

Que nem dele me logro retirar, esquivo,

Nem por acabado o finalizo num arquivo,

Espantado perante dele a Imensidade.

 

Não ver nele o interior

É como em mim e nos outros só ver o corpo,

Sem pensar, nem sentir, nem sonhar, sem o amor

Que dia a dia vida fora encorpo,

Sem sermos todos, afinal, estes eus,

Réplicas finitas do infinito Deus.

 

O meu corpo não sou eu,

Ninguém o é, afinal.

Como é que olho para o céu

E não vejo nele o portal?

 

No corpo doutrem vejo a entrada

Para chegar-lhe ao coração.

No Cosmos, cada Galáxia é uma fachada

Do lar da Infinita Comunhão.

Tudo no Universo é uma estrada

De peregrinação

 

Para a festa final

Do Todo onde eu-nada serei mesmo Eu-Total.

 

 

Incumbe

 

A nós nos incumbe viver e lutar,

Reflectir e crer

E sobretudo manter

A coragem de continuar,

 

Apesar da certeza

De que até há três milhões de anos

Não houve na Terra humanos

E de que a nossa chama acesa

Não irá para sempre durar,

Presa

Do calendário estelar

Que a nós nos porá fim,

Como à Terra, ao Sol, à Galáxia, enfim...

 

Com o fim inelutável do planeta,

Nossos trabalhos, dores, esperanças,

De nossas obras toda a paleta,

Devirão inexistentes, triturados por cósmicas andanças

E contradanças.

 

Nenhuma consciência existirá então

Para preservar a recordação

 

De nossas efémeras iniciativas.

Vestígios do que foram vidas vivas

 

Serão apagados, sem haver mais palavras,

Das cósmicas lavras.

 

A constatação de que ocorreram revogada,

Ao fim, o que irá restar, é nada.

 

Mas imprimimos em partículas subatómicas,

Durante a vida inteira,

O pendor do nosso rumo,

Sonho incorporado em frágeis pontes na ladeira.

Não são explosões astronómicas,

É o sabor do nosso sumo,

Um vago rasto de fumo,

Uma alteração da matéria tão ligeira, tão ligeira...

 

Todavia, nenhuma explosão derradeira

Seria a mesma sem aquela fieira

Irrelevante de matéria desviada

Que um tudo-nada

Desvia do Universo a rota

E a torna mais afim de qualquer vindoira humana frota.

 

Meus filhos

Não terminam nos biológicos cadilhos:

São também, no Universo, para a eternidade,

Os deste pendor que o Todo desvia para a humanal

Cósmica fraternidade.

 

O sentido final

Da vida

Tem

Também

Esta colossalmente cósmica medida.

 

 

Bondade

 

Na bondade tudo se funda,

Afinal:

A bondade é sempre mais profunda

Que o mais profundo mal.

 

Pode parecer questão de fé

Mas não é:

 

É que a realidade encontrada

Subsiste sempre perante o nada.

 

É que isto,

O facto de que existo,

É um bem

Que se tem:

O mal é que tenta, a cada jornada,

Reduzir-me, em tudo, a nada.

 

Mesmo morto, porém, o mundo existe

E eu nele existo.

O mal insiste

Mas não tem armas contra isto.

 

 

Ditadura

 

A ditadura das verdades definitivas

É tão perigosa

Como a ditadura do relativismo

Que, no fundo, de verdade nenhuma goza.

Aquela matou Galileu e todas as forças vivas,

Esta mata-nos por dentro, sem esperança, num abismo.

 

Contudo, a verdade científica é provisória

E a ninguém incomoda que, tarde ou cedo, seja história,

 

Ultrapassada pela verdade seguinte,

Perseguida mais além, sem acinte.

 

É este o itinerário da verdade

Material

Ou espiritual

Que de saúde nos persuade.

 

Quer um quer outro desvio

Sangra-nos, deixando a humanidade por um fio.

 

 

Lugar

 

De Deus o amor

Que nos tem é anterior

 

A qualquer caminhada

Do homem, da vida na empreitada.

 

Deus eternamente nos precede

E só depois o lugar nos cede

 

Para darmos, na excelência,

Campo a qualquer correspondência.

 

 

Proclamam

 

A Terra e os Céus

Proclamam a magia

Dum Deus

Que por todo o lado se anuncia.

 

São os eventos do mundo e do Universo,

Da história humana,

(Mesmo quando desumana)

Lidos pela frente e pelo verso:

Ali na ciência

E nos saberes,

Aqui na vivência

Do íntimo de cada um e de todos os seres.

Do imo na derradeira profundidade

Assoma a divindade.

 

Aí a pressentimos e vislumbramos

Do Universo em todos os tramos

 

Que a tudo e todos num Todo unifica, afinal:

- O Universo inteiro é do Infindo um sinal.

 

 

Desgraça

 

A desgraça não tem de ser eterna,

Agora aqui para sempre em finca-pé.

Do amor de Deus a cachoeira terna

É que é.

 

Por dentro de cada desgraça,

À espera de ser entendida,

Aflora uma misteriosa graça.

- E a multidão sempre distraída!

 

 

Celebração

 

Celebração litúrgica

Que não seja uma energia

De mudar de vida, de mudar de via,

Deixou de ser demiúrgica,

 

Perdeu o fio

Num ritual vazio.

 

Murmura

Vento numa sepultura.

 

 

Centro

 

Quem se crê centro de Igreja,

Dono de religião,

Não tem espírito de Deus que se veja.

Crê que só ele, muito grave,

Tem a chave

Da salvação.

 

Perdeu-se pelo caminho.

Anda, então,

A caminhar sozinho

Pelo meio da multidão.

 

Nem Deus o acompanha,

Que ele O repele,

Crendo que O ganha.

Nem na própria pele

(Quanto mais

Na dos demais)

O apanha.

 

 

Criatura

 

Ser humano, de raiz no chão,

É ser criatura inacabada

Permanentemente em construção,

Em regime de liberdade condicionada.

 

Nem animal,

Nem anjo,

Sempre a carregar daquele o agreste

Sinal

Rumo à pureza deste

Em todo e qualquer terreno arranjo.

 

Nem animal,

Nem anjo...

 

Um pobre tolinho

Eternamente a caminho.

 

 

Falhados

 

Há muita esterilidade

Fecunda

E muita fecundidade

Estéril, que de falhados

Nos inunda.

Há do mundo os separados

Mal separados do mal

Que mundo fora abunda,

Real:

Não removem uma palha

Para nos livrar desta gralha.

 

Há, todavia, os que a removem e acendem:

É o porvir fecundo o que estes rendem.

 

Sejam no mais estéreis ou fecundos,

Das mãos deles é que brotam novos mundos.

 

 

Peça

 

Louco,

Deficiente,

Doente...

- Qualquer homem-pouco

Ainda é gente

Ou apenas sucata

Com alguma peça sobressalente

Que um útil uso ainda acata?

 

Que dignidade nele revela

Quem trata

Com amor este estorvo

Que família e comunidade despejam à janela,

De prenunciada morte feito corvo?

 

Há um outro sentido de humanidade

Que por aqui misterioso nos invade:

 

Quem trata vislumbra em cada um deles, lá no fundo,

A luzir, o Outro Mundo.

 

 

Tratou

 

Atingiu

O apogeu

Da dignidade humana

Quem do cavalo da grandeza desceu

E, com comiseração samaritana,

Tratou do despojado

Para a berma da vida atirado.

 

Quem cuida por amor, sem ganho,

Do de si próprio despido

Revela o tamanho

De quem socorre e do socorrido.

 

 

Atinjo

 

Não atinjo a humanidade

Senão doutrem pelo confim:

Outrem próximo de mim

Em alteridade

E outro de mim

Em proximidade.

 

União

Sem confusão:

Dialéctica tensão.

 

Permanente:

É assim que todos devimos gente.

 

 

Pretendem

 

Religiões

São públicas e comunitárias instituições

 

De fé.

Como a pretendem pôr de pé,

 

Caem no legalismo

E ritualismo

 

Que lhes envenenam a correcta

Vida concreta.

 

Pretendem substituir-se à liberdade de Deus

(Crendo ter na mão o telecomando dos céus)

 

E à consciência humana

(Donde a espiritualidade inteira emana).

 

Ritual e lei traçam o caminho:

Fora, tudo é terreno maninho.

 

Ora, o encontro de Deus connosco

Mal corre por declive tão tosco:

 

Raro me liberto num culto,

Antes me sepulto.

 

É servir os mais precisados

Com corações e actos desinteressados

 

Que, para cada um, da comunhão celeste

É o único teste.

 

Tudo o mais, ou são derivações

Ou é o cancro das funções.

 

 

Homem

 

O homem é um corpo espiritual

E um espírito corporal,

 

Anverso e reverso, na verdade,

Duma única realidade.

 

O corpo todos o vemos,

O espírito cada um o sente em si.

E os dois mundos aqui temos

Conjugados no mesmo frenesi.

 

 

Poderei

 

Não podendo eu determinar

Totalmente

Aquilo em que acreditar,

Poderei, pelo menos, recusar

Definitivamente

O que não puder de nenhum modo aceitar.

 

A ética provém, afinal,

De me indignar

Contra o mal.

 

A religião

É uma ponte

A ligar-me ao horizonte

De tudo o que é bom.

 

Por miúdo:

A fonte

É o Tudo.

 

 

Cientista

 

O cientista tropeça

Nesta realidade:

Por estranho que pareça,

A verdade

É que quanto mais simbólico, mais poético,

Mais o murro do patético,

Afinal,

Desvela o real.

 

Negaceia ali uma dimensão

Que nem da ciência a garra

Alguma vez, então,

Agarra.

 

O poeta

É que, para o longínquo alcance,

Dispõe da mágica seta

Que lance.

 

 

Ganância

 

A ganância duns poucos

Satisfazem-na, moucos,

Aniquilando o bem-estar

Dos mais, sem

A ninguém

Olhar.

 

Todo o mundo é uma manada de gado,

A ser abatido

Ou explorado,

Conforme o tipo de ganho pretendido.

 

Uma economia

Que promova ou sequer

Tolere

Uma tal patifaria

É apenas um legitimado

Crime organizado.

 

 

Perspectiva

 

Da perspectiva do pobre

Vemos claro como excluem

As actuais nações tanto povo que sobre

E quanto não intuem

Igrejas e religiões

Como são arrastadas, no meio de gozos,

Pelos interesses dos poderosos,

Sem dos pobres entenderem os guiões.

 

Vemos como o crente,

Então,

Devém um instrumento eficiente

De exclusão.

 

É a mais perfeita irreligião:

A permanente

A renascer, virente,

De dentro da religião.

 

 

Qualquer

 

Qualquer religião,

No que religião for,

É uma fraternidade de serviço, irmão a irmão,

Sem poder a se impor,

De qualquer consciência sem dominação.

 

É o serviço mormente aos sobrantes

Das sociedades dominantes.

 

De fora para dentro,

Da periferia ao centro,

 

Sempre em busca de replicar na Terra o que nos é comum:

O Deus múltiplo que é Um.

 

 

Pior

 

A pior traição

De qualquer religião

 

É perder a consciência

Da primordial evidência:

 

Todos somos, por igual,

Parte da comunidade total.

 

Não há hierarquias de comando,

Ninguém tem poder de mando.

 

Não somos um mais outro, mas um Nós,

A tentar unificar-se mais e mais após.

 

Uns dos outros somos servos voluntários:

Nem mercenários,

Nem proprietários.

 

 

Lugar

 

O lugar de encontro de Deus

Não são os céus,

 

Não é a sinagoga, a mesquita ou a igreja,

Nem nenhuma romaria que se almeja.

 

O lugar de encontro que me acuda

São os indivíduos que precisam de ajuda.

 

Do princípio ao fim Deus põe-nos a questão:

- Que fizeste ao teu irmão?

 

E nada mais justifica

Pessoa nem religião que se autentica.

 

 

Única

 

A única sabedoria verdadeira

Que nos resuma

É que não há verdade nenhuma

Inteira:

 

Tudo meras aproximações

De fulgurações...

 

Que é da fogueira?

 

Escapa-nos irremediavelmente,

Apesar de aqui mesmo à frente,

Mesmo, mesmo à beira.

 

 

Diálogo

 

Em diálogo ninguém,

Se tem autenticidade,

Detém

A verdade.

 

A verdade, porém,

Em todo e qualquer sentido,

Escapa-nos sempre além,

No horizonte do Infinito apetecido.

 

Dado este teor,

Ninguém da verdade pode ser defensor.

 

Somos todos peregrinos

Mutuamente a encorajar

E a ajudar

Na longa caminhada, desde meninos,

 

Rumo à realidade derradeira,

Que, do Insondável,

Interminável

Se abeira.

 

 

Mais

 

Além das ânsias que me consomem,

Tanjas as sinetas

Das descobertas que tanjas,

As pegadas findam sempre incompletas:

- O homem é mais que o homem!

 

Sou também

O que mora além

Das franjas:

Meu confim

Não tem mesmo deveras fim...

 

 

Vazio

 

Universalismo

De conceitos abstractos

É o vazio abismo

De nossos actos:

 

Vasculhando o centro

Em busca do conteúdo,

Abarca tudo

Porque não tem nada dentro.

 

Para melhor a mudança

Requer outra dança:

 

Partilha universal da experiência que para melhor resulta,

Embora para os bem-pensantes seja estulta.

 

 

Rejeitar

 

Podemos rejeitar tudo:

Religião, ideologia,

O conhecimento inteiro...

Contudo,

Não escapamos, nem um dia,

Ao aguilhão

Deste pregoeiro:

- Precisamos de amor e compaixão

Tanto ou mais do que de pão.

 

 

Futuro

 

A missão

De cada um, cada povo, cada região

É o futuro da humanidade integral,

Para a qual

Todos juntos devemos trabalhar,

Rumo à comunhão final,

Com os horizontes duma civilização singular:

Múltipla na unidade,

Una na multiplicidade.

 

 

Pactuar

 

Quem não pactuar com a desordem do mundo

Será sempre um inocente condenado,

Mas um fermento tão fecundo

Que findará ressuscitado.

 

É apenas isto

A lição de Cristo.

 

Morre um mundo velho

E um novo renasce

Das cinzas onde pasce

Cada vívido conselho.

 

E no corpo morre

O Profeta.

Mas do Além o socorre

Da luz a insurrecta

Seta

E o ressuscita

Para uma vida

De tal modo em corpo e alma renascida

Que é infinita.

 

 

Caminheiro

 

Como o caminheiro não tem caminho,

Que o caminho se faz

Caminhando sozinho

Com todos os mais,

Não há caminho para a paz,

A paz é o caminho.

 

 

Respostas

 

As perguntas são perenes.

Respostas pré-fabricadas

Já não confortam ninguém

Que se atém

Às caminhadas.

 

E as cerimónias solenes?

Que riso carnavalesco

O porte principesco

Tem vindo a despoletar

Em quem tende a reparar

Nas penas ali que penes!

 

Única alternativa segura:

- Andamos todos à procura...

 

 

Intelectual

 

Intelectual verdadeiro

Não permite que a mente se distraia

No lameiro,

Ao lado dos problemas,

Nem adormeça na praia,

Dos temas

Na raia

E na baia

Dos lemas.

 

Não se instala no atingido já,

Pergunta pelo ser que ser deverá

 

E pelo que sempre há-de faltar

Concretizar.

 

O limiar de seu emprego

É o desassossego

Pessoal e secular.

 

 

Manca

 

A teologia

Meramente intelectual

É fria

E manca, afinal.

 

Não inflama

Em nós nenhuma chama.

 

Por muita que se tenha à mão,

Que coração

A reclama?

 

É palha:

Qualquer aragem vai varrê-la em poalha.

 

 

Leva

 

O fundamentalismo,

Em qualquer fé,

Leva ao obscurantismo:

Não há mais razão de pé.

 

A razão critica a fé,

Para esta não cair no fundamentalismo,

A fé critica a razão

Para esta não cair num positivismo,

Sempre anão.

Ambas, ou não vivem ou vivem sob o império

Do mistério.

 

Sem mistério a desafiá-lo

O ser humano,

Sem daquele o abalo,

Mata a vida num imenso desengano.

 

 

Arrancar-me

 

Não pode

O mundo

Arrancar-me à raiz:

Deus me germinou de seu misterioso fundo

E, quando ramo seco daqui por fim me pode,

Retoma-me de novo na matriz.

 

Como o corpo mergulha na terra,

Meu espírito no Grande Espírito se encerra.

 

 

Todos

 

A realidade fundamental

É que todos somos “Nós”.

“Eles” não é deveras real,

Aprendemo-lo após.

 

Todos queremos o mesmo

Da vida.

Como é que o esquecemos, tão a esmo,

Em seguida?

 

 

Missa

 

Podem andar de fato e gravata,

Ir à missa aos domingos,

Mas, se alguém o interesse deles lhes empata,

Fecham o sorriso de flamingos

E, de adoráveis,

Tornam-se implacáveis:

Dão cabo de quenquer

Que o caminho lhes tolher.

 

Mais parceiro, menos parceiro

Que lhes importa

Se em causa lhes põe a montanha do dinheiro?

É bater-lhe na cara com a porta!

- E assim anda e andará o mundo inteiro...

 

A luta para a pessoa ocupar

O primeiro

Lugar

Há-de durar o tempo inteiro

Que durar

A humanidade.

 

É que nada nos pode tirar a liberdade

De ser humanos,

Velando por eliminar danos,

Ou de criar desumanidade.

 

Qualquer que seja a medida tomada,

Será sempre ambígua, à chegada.

 

 

Paga

 

Tudo se paga na vida

E paga muito?!

Não é uma versão

Comedida:

O melhor da vida é gratuito,

Todos os amores o são.

 

Ou então,

Bem pior,

Nada daquilo é amor,

É mera contrafacção.

 

 

Guerra

 

Só quem a guerra viveu

E a morte de frente viu

 

Dá valor à vida e, simultaneamente,

Sozinho vai sentir-se, na fundura, permanentemente.

 

É um sentimento singular

Impossível de partilhar

 

Senão com quem

Do inferno vem.

 

 

Falam

 

Todos falam de valores,

Há os indivíduos bons e os maus...

A maioria de nós, ponderados os pendores,

Sabe lá bem quem é,

Se é do pão, se dos varapaus!

Todos temos ladeiras de santos e de bestas

E nunca o vemos até

Ao momento de descobrir o pano

Das cestas:

Na crítica conjuntura,

Ante o proveito e o dano,

É que tudo se nos apura.

 

E até para nós próprios então

Acaba por ser uma revelação.

 

 

Somos

 

Somos todos uns heróis

Traidoramente canalhas,

Sábios acaso depois

E de tolos com as gralhas.

 

Neste arquipélago de recifes,

Vasculhando pelos cantos,

Somos deveras patifes

Santos.

 

 

Noção

 

Quem se exprime de maneira altiva

Tem uma noção de si

Inversamente proporcional

Ao zelo por quem viva

A servi-lo, toda a vida, ali,

Operacional.

 

Nem sequer se importa

Que a vida a este feche a porta.

 

Para ele só ele conta,

Tudo o mais fica por conta.

 

 

Divindades

 

As divindades que talhamos nas nossas cabeças

Estão dispostas a acreditar no que querem acreditar,

Peças

Fora do lugar,

Mormente quando qualquer delas estiver

Desesperada para sobreviver.

 

Daí o risco

E o abismo

De qualquer cisco

No que cismo.

 

 

Dificuldade

 

A primeira dificuldade é conceber

Um mundo, uma ideia

Diferentes do que já se conhecer

Da vida na teia.

 

Nossa criatividade é limitada

Pela cultura convencional,

Derivada

Da crença jamais questionada,

Inabalável e fatal.

 

E a dificuldade de acolher a mudança

Que pode ser avassaladora,

Que as mentes desentrança

A cada hora,

Que nos afugenta de nosso horto

De conforto,

Escaqueira hábitos mentais em confusão,

Abandona-nos a meio da desorientação.

 

Não é uma escolha,

É uma imposição:

Fico sem covão

Onde me acolha.

 

Derrubando paradigmas e convicções,

Afecta carreiras, meios de subsistência...

Daí a raiva, a resistência,

Até às perseguições.

 

A novidade afecta o meio,

O meio afecta a novidade.

É o enleio

De cada idade

No seio

Da humanidade.

 

 

Tempo

 

Com o tempo, a boa ideia sobrevive,

A má fica esquecida.

O génio que daqui derive

Tem a figura distorcida:

A galharia de árvore dele recordada

Foi muito, muito podada.

Quantos tropeções e quedas

Para, ao fim, quão poucas geniais moedas!

 

 

Caminho

 

O caminho do peregrino

Não é apenas o caminho,

É a seta amarela do destino,

A cada esquina da vida,

A apontar, no terreno maninho,

O trilho da ermida:

 

É o toque da simplicidade

No meu coração,

A bondade

A abrir-me ao desconhecido,

Enfrentando a escuridão,

Doravante destemido.

 

É achegar-me em primeira mão

Do vital sentido

De cada dia, na deslumbrante paisagem

Da viagem.

 

 

Resguardado

 

Respondo,

Mas não

Donde todos me vêem, de pé, no chão.

É a partir donde me escondo,

Resguardado no trovão.

 

Aí é que sou eu,

Embora sem nem sequer

De mim saber

Nem já ter nada de meu.

 

 

Dispõe

 

As únicas mãos,

Os únicos olhos

De que Deus dispõe para reparar a injustiça

Que as pegadas nos enliça

São nossas próprias demãos

A deflagrar os escolhos

Nos corrimãos

Da diuturna liça.

 

Deus atou-se de pés e mãos

Quando chegámos a estes chãos.

 

Doravante os dados

São os que por nossas mãos forem jogados.

 

 

Mar

 

Vida aquém e vida além da morte...

No mar da realidade,

A nossa sorte

Aqui à mão

É que entre ambas as ilhas, em profundidade,

Não há separação.

 

O pretenso corte

É uma ilusão.

 

 

Dois

 

Inevitavelmente

Vivemos sempre em dois lugares:

Neste mundo, viajantes do presente,

E nos nossos verdadeiros distantes lares.

 

Aqui tenho cada pé bem assente,

Agora vivencio no imo emoções aos milhares.

 

Sou, de algum modo, um pé de gente

Mas sou bem mais os fugazes luminares

Que, de repente,

Ligam aquilo de que me apercebo

Ao que, sob esta capa,

Nos escapa,

E afinal me dá tudo o que bebo

Da corrente que da lonjura recebo.

Sou, nos meus fundos,

Uma ponte entre dois mundos.

 

Somos bem mais que as criaturas insignificantes,

No tempo aprisionadas,

Que quaisquer preguiçosos governantes

Gostariam de encontrar, ao correr das jornadas.

 

 

Acesa

 

Depois de acesa, do mundo na liça,

Nem todo o mar

Logra apagar

A chama da justiça.

 

Revoluções, atentados, guerras...

Só delas escapa

Quem, ao primeiro bruxuleio no cume das serras,

Da justiça enverga a capa

E com ela vai lavrar as terras

Que tiver ao alcance.

 

Apenas então

Fará, com esta demão,

Que a fúria da justiça amanse.

 

Da ordem de trás, porém, os iníquos aproveitadores

É que então

Lhe trarão

À vida horrores.

 

Da história o crucificado

É a vítima deste lado.

 

Fica tudo igual

No final?

Não, que além cresce a justiça

E aqui, a iniquidade.

Ora, esta é que enguiça

O trilho da Humanidade.

 

 

Guia

 

As histórias sagradas

Sob a superfície se olhares,

Encontras um guia à espera, em tuas estradas,

Com quem te encontrares.

 

Por baixo desse manto

Desvenda-te então do mundo todo o encanto.

 

Da maravilha

Nunca mais tuas pegadas findarão a partilha.

 

 

Vestes

 

As vestes sacerdotais

São protecções peitorais

Que defendem o sacerdote

Do virote

Que Deus lança sobre os maiorais.

 

Não vai ele ouvir nem ver

O que lhe poderia comprometer

Algum dia

O poder:

A magia

Do que Deus afinal quer.

 

Não há pior inimigo

Do rebanho

Que o que do pascigo

Tira o ganho.

 

 

Centro

 

Sem rituais e cerimónias, sem liturgia,

O templo deixará de funcionar

Como centro de nossas vidas.

A via

Desata a calcorrear

Outras avenidas.

 

Os sacerdotes, então,

Nunca mais nos dominarão.

 

Entretanto, o animal selvagem

Nos ensinará

A viagem,

A Terra nos guiará,

Pejada de mensagem.

 

Das cinzas brotará, dadas as mãos, a magia

Dum novo dia.

 

 

Prever

 

Não há como prever, jamais,

Como nossos actos poderão beneficiar

Ou prejudicar

Os mais.

 

Pelo meio

O desafio

Interveio

Dum qualquer outro livre alvedrio.

 

Para além do mistério singular

Da natureza

Que tanto preza

Nossas pegadas enredar.

 

Não há, então, como prever, pois,

Assim,

Até ao fim,

O que virá depois.

 

Ficamo-nos, portanto, por um arremedo.

O que mais importa

É que não fecho a porta,

Nunca cedo:

Tento sempre vislumbrar, com mais precisão

E um pouco mais além,

Que chão

Aí vem.

 

É o caminho bendito

Do precário sucesso:

Prolongado ao infinito

E sempre do avesso.

 

 

Clero

 

O clero irá perder

Todo o poder

Se não houver

Templo.

Ninguém

Pode perder, porém,

O que nunca deveras teve.

É o que contemplo

No seu delírio breve

De pretender

Comandar o Céu na Terra,

Pretensão donde Deus fatalmente se desterra:

 

É que do espírito a interioridade

Jamais é o corpo que anima.

Se no homem isto é verdade,

Mais ainda no Cosmos, onde tudo se arrima

E sublima.

 

Deus na terra,

Se me deslumbra,

Nem no pináculo da serra,

Porém, sequer se vislumbra.

 

E assim será eternamente

Enquanto a temporalidade for presente.

 

Ai dos que chamam mal ao bem

E bem ao mal,

Que a luz por trevas têm

E as trevas, de luz por um fanal!...

 

 

Destinado

 

Todo o vivente

É destinado a sofrer.

Mais resplandecente,

Então é o dom precário de viver,

A dádiva conseguida

Da vida.

 

O mistério, em nós,

É muito mais profundo do que julgamos,

É a maior parte do que nos forma e ata os nós

Do que nos sustenta.

E é a beleza que vislumbramos,

Atenta,

No céu, na Terra

E em tudo o que em tudo se encerra.

 

 

Grande

 

É uma grande generosidade

Os filhos viverem convencidos

De que os pais

Sabem muito mais

Da vida, na verdade,

Do que eles, ignaros preteridos.

 

Nem imaginam que todos vivemos sob o império

Do mistério.

 

 

Cegueira

 

A necessidade de ser dos outros o dono...

Cegueira doente,

Lógica falhada que abono,

Incompetente?...

Da vida o objectivo real

É aceitar que o eu de cada qual

É um poço

Tão concreto

Como o nosso,

Em qualquer que seja o aspecto.

 

Que o eu

Que eu tenho

É o meu

Que mais ninguém pode ter de ganho.

 

Como o doutrem também

É o seu,

Inapropriável por mais ninguém.

 

Como é que o que é tão evidente

Custa tanto a ver a tanta gente?

 

 

Aparecem

 

Os mistérios do mundo aparecem a cada qual

Sob formas que os mais não logram ver.

Há vivências cujo sinal

Se não destina a partilhar-se com quenquer.

 

Temo-las por serem as certas para nós,

Os mais trepam por outros cipós.

 

Tudo pende do que vimos, tocámos, empreendemos,

Do que sofremos.

 

Isto é que abre portas e janelas.

Daí as diferentes

Sequelas

Entre as gentes.

 

 

Ses

 

A história humana

É uma história de ses feita:

Se em vez do que me deu na gana,

Outra fora a escolha eleita,

Bem outra fora a colheita

E outro o rio que ela emana.

E outro fora eu mesmo aqui,

Sem deixar de ser eu em si.

 

 

Escolha

 

O tempo à escolha exorta,

Sempre à beira

De nossa definitiva identidade.

Abrimos uma porta,

Transpomos a soleira

E mudamos para a eternidade.

 

Mil portas se nos abrem cada dia,

Por trás de cada uma, um mundo diferente.

 

Arrepia:

Eu poderia

Até nem ser gente!

 

 

Tesoiro

 

O nosso tesoiro está sempre connosco

E a nós se destina.

Quando a mim me embosco,

Descubro-lhe a mina:

Na fundura se me enrosco,

Leio a minha sina.

E, embora eu seja tosco,

Ela é divina!

De sábio meu vestígio fosco,

Afinal,

A tal

Me destina.