A PEGADA DO SONHO

 

 

 

 

 

Homens

 

Homens que agiam

E pensavam,

Que amavam,

Empreendiam

E se entregavam...

 

Nebuloso

É que eram sonhadores,

O que é deveras perigoso:

 

A ver o mundo, não com dores,

Sem sentido,

Mas pior,

Como podia ter sido,

Com outros humores.

Ou mais – como podia tornar-se

Com o sabor

De algum dia alcançar-se.

 

Insaciáveis...

De satisfazer

Inviáveis

A quenquer.

 

Só querem o que não podem ter,

O que nem sequer existe

Para poder, mal seja ouvido

Ou se aviste,

Ser tido.

 

 

Fiz

 

Calos?

Alguma coisa fiz para os ter.

Uma vida sem calos,

Feita apenas de vazios intervalos,

Não é vida sequer.

 

E quanta gente

Anseia por tal vazio

Permanentemente!

Nem imaginam o fastio...

 

 

Esquecem

 

O problema duma criança qualquer

É que se esquecem facilmente dela

Como se fora invisível.

Por isso, vida além, o que toda a gente quer

É tornar-se uma estrela

Indesmentível.

 

Então já ninguém mais o ignora

Como ocorreu vida fora.

 

 

Perdoar

 

Não devemos perdoar nem esquecer

O evento criminoso

Que História além houver

Contra o Homem.

O responsável, embora poderoso,

Tem de cumprir a pena

Plena

Dos males que nos consomem.

 

E teremos de impedir

Que o mal se venha a repetir.

 

Mas teremos igualmente de evitar

Que tais eventos

Continuem a determinar

Do presente os momentos.

 

Se alguém me abandonou,

Não tenho de ser eternamente catalogado

Como que sou

Um abandonado.

 

O rótulo a mim colado

Impede-me a liberdade

De ser o que eu houver determinado

Que será minha identidade.

 

Importa libertar a energia

Prisioneira do passado,

Trazê-la de volta a cada dia,

Do presente aqui moldado,

De modo a projectar, de seguida,

O futuro à minha medida,

 

Sem âncoras, rótulos nem correntes,

Livre de espargir todo o tipo de sementes.

 

 

Espírito

 

O espírito de qualquer arte

É o poder e o direito

De renomear tudo,

Recriá-lo aparte,

Recolocá-lo no real a que andou afeito,

Transformando-lhe todo o conteúdo.

 

Aí podemos imaginar um país novo,

Uma nova comunidade,

Um mundo outro a estalar do ovo

Prenhe de novidade.

 

 

Embora

 

Temos em nós

Um poder transformador.

No momento de o utilizar

Ir-me-ei transmudar

Em criador.

 

Então, após,

Embora em mim o não sagres,

Serei feitor

De milagres.

 

Tudo transformando,

Concito,

Em meu gesto entusiástico e brando,

O Infinito.

 

Se não atingir mais,

Abro, pelo menos, uns portais...

 

 

Pequeno

 

Era pequeno e vivia

Numa aldeia tão pequena

Que era um convento e eu, monge.

 

Até que um dia

Reparei que atrás da cena

Havia o lugar do longe.

 

Depois então nunca mais

Houve muros nem varais.

 

Da janela

Da minha cela

 

Faço a ponte

Para os confins do horizonte,

 

Procuro a última estrela

Da galáxia derradeira.

O murmúrio dela

Por mim apela,

Eternamente à minha beira.

 

E o que eu sou somo-lo todos,

De biliões e biliões de variegados modos.

 

 

Nunca

 

Em casa,

Nunca mais chega a hora de trabalhar;
No trabalho,

Nunca mais chega a hora de retornar...

Por maior que seja meu bater de asa

Não calho

Descobrir meu lar.

 

Ausente

Do presente,

 

Vivo num futuro

Que de vez nunca inauguro.

 

 

Escapar

 

A vida é um alpinismo

Pela montanha dos dias a esmo,

Tentando escapar do abismo

E trepar ao cume de si mesmo.

 

Quando não consegue,

Angustiada, insatisfeita,

Nunca a vida se enjeita,

Prossegue.

 

 

Sente

 

Um homem sem erecção

Sente vergonha.

A mulher, não,

Embora seja ela que a tal o disponha

Ou acaso não:

Se for uma matrafona medonha,

Como provocar excitação?

 

A mulher não sente

Com a erecção em mente,

Mas com o coração

Que projecte vida um passo à frente.

 

Seja a dos filhos,

Seja a dos cadilhos

 

Com que a incito

A se projectar ao Infinito.

 

 

Objectivo

 

O objectivo dos objectivos

É compreender o amor total

E realizá-lo, enquanto vivos,

Até final.

 

O amor mora

Dentro de cada um de nós,

Nunca noutrem, nem agora

Nem após.

 

Desperta

Doutrem por mediação:

O Cosmos fica alerta,

Finalmente com sentido,

Quando com alguém partilho a emoção,

Desde a fundura movido.

 

Não é sexo,

O sexo é a porta

Para ir além, de anexo em anexo,

No interminável cósmico complexo,

Por onde nos transporta,

Rumo ao Infinito a que indefinível exorta.

 

 

Imaginas

 

Imaginas o que é a solidão?

Não é viver sozinho,

Não,

Nem sentir-se um campo maninho.

 

É sofrê-la ao estar com muita gente,

Quando todas as noites há um convite

Para a festa, o pôr-do-sol, a estreia diferente,

Quando o telefone toca como um coração que palpite,

Mulheres que te adoram, homens que te adoram,

E se demoram, demoram...

 

E, dentro de ti, o empurrão para longe:

Não vás, não te irás divertir...

Então, para quê ir?

Fico no meu canto, feito monge,

À espreita da luz

Que me seduz.

 

Fugidia, fugidia...

- Mas a única que tenho em meu solitário dia.

 

 

Sabemos

 

Todos sabemos amar

E todos temos de o reaprender.

Depois os corpos desatam a falar

Das almas a linguagem de ser

Que ambos une no mesmo amplexo:

- E é o sexo.

 

Aqui há um fio

Que nos conduz,

De desafio em desafio,

No rumo duma infinita Luz.

 

 

Perdeu

 

Quando é que o sexo

Se tornou do comércio um anexo,

 

Se perdeu nele a magia

Da poesia?

 

É mais que o romântico,

É um cântico, um inefável cântico...

 

- A lonjura

À minha procura.

 

 

Magia

 

A magia dum momento

É sempre desfeita

Pela realidade.

É um intento.

A desfeita

É a verdade.

 

Fica, porém, sempre a semente

A germinar indefinidamente.

 

Quem sabe, um dia...

- E é a via!

 

 

Temer

 

Não podemos temer o mar

Onde mergulhamos de livre vontade.

O medo, ao parar

Pela metade,

Confunde a mente

No jogo de toda a gente.

 

Uns aos outros nos amemos

Mas possuir-nos nem tentemos:

 

Ninguém doutrem é proprietário

Como se fora dum numerário.

 

Amo-a porque a não possuo

Nem ela a mim,

Somos livres na entrega,

Um duo

Que se emprega

Em tornar-se uno, num caminho sem fim:

Cada dia um acerto,

Cada dia mais perto...

 

E a liberdade,

No entrançado da união,

Cada vez mais nos invade

E persuade

Que todos somos um na infinita multidão

Que concito

Rumo ao Infinito.

 

 

Sonho

 

O sonho há-de insistir

Em devir

Realidade

E perder, entretanto,

No opacidade,

O encanto.

 

Sem a realidade, porém, então

Qualquer sonho é uma ilusão...

 

Vida fora ao seguir,

Não há como fugir

À contradição.

 

Temos mesmo de sujar as mãos

Na lama destes chãos.

 

Importa é sempre vislumbrar,

Aflorando à superfície da mistela,

O cintilar

Da estrela.

 

 

Reino

 

Reino de Deus?

É irmo-nos tornando

E vivenciando,

Não como nuns quaisquer imaginários céus,

Mas como irmãos,

Da terra nos pedregosos chãos.

 

É o esboço dum mundo em crescimento

Como família de Deus,

Por um interminável fermento:

Na terra, uma fresta de Céus.

 

 

Abrir

 

Orar

É para nos abrir ao desígnio libertador

De Deus, fecundo,

Ao escutar

O rumor

Do mundo.

 

Tudo a nos abrir a pista

Do Infinito à vista.

 

Outro sentido qualquer,

Para quem vai de mala aviada

Da vida na estrada,

É não entender

Nada.

 

 

Consciência

 

Consciência religiosa,

Em toda e qualquer confissão,

É a de que somos um povo em laboriosa

Peregrinação,

Como meninos nos indo

Duma grande família descobrindo,

A servir toda a humanidade

Em amorosa gratuitidade.

 

Marca, no tempo finito,

Do fermento vislumbrado do Infinito

 

Que perenemente ali por nós apela,

Dum eterno Natal pioneira estrela.

 

 

Religioso

 

O religioso verdadeiro

Não tem religião

Nenhuma:

De todas recolhe a espuma

Que lhe toque o coração

Pioneiro

E parte à aventura

Na rota eternamente insegura,

Rumo ao Infinito.

Por todas elas

Fatalmente proscrito,

É sempre depois de o matarem que lhe acendem velas

E lhe ouvem o grito.

 

Assim foi com os profetas

E com Jesus Cristo.

O custo de todas as metas

Foi, é e será sempre isto.

 

E o mesmo ocorre em todas as religiões,

Não haverá nunca excepções.

 

Os parasitas

Instalados

Matam à partida todas as visitas

Que do Outro Mundo nos trouxerem dados.

 

 

Loucura

 

Um porvir

De justiça e paz para todos

Não são engodos

Duma loucura de o erigir,

 

É uma tarefa à solta

Do mundo inteiro em volta.

 

Religiosos ou não,

A todos nos põe em questão.

 

 

Cuida

 

A qualidade

Duma civilização

Não é a da superioridade,

Mas a da forma como der a mão

E cuida, ao dar,

Daqueles que de si já não podem cuidar.

 

Aqui é que mostra reconhecer

No imo de quenquer

 

A dignidade

Que nele vislumbra da eternidade:

 

Na fundura dele há uma luz

A que tudo ali se reduz,

 

Com a inesperada potencialidade

De se desdobrar infinitamente pela Infinidade.

 

 

Salvar

 

Salvar o essencial:

A unidade na diferença.

É o lema que começa no casal,

Cada qual

Com a própria sentença,

 

Tentando conjugar

E respeitar

 

Ambas as utopias

No desafio dos dias.

 

É o lema que continua na comunidade vicinal,

Cada qual com seu pendor,

Uns aos outros a se contrapor,

A tentar não agredir,

Afinal,

No esforço de congregar-se sem nunca o conseguir

De modo total.

 

É o lema duma nação feita país,

Pejada de tradições,

Étnicas regiões,

Umas dominantes, outras servis,

Maiorias,

Minorias,

Todos em busca dum convívio são

Que de nenhuma implique lesão.

 

É o lema dum planeta inteiro,

Dividido entre crenças incompatíveis,

Interesses contrapostos, não apenas de dinheiro,

Dogmatismos irredutíveis...

 

A unidade na diferença é a grande utopia

Da mundialização de hoje em dia.

 

 

Lar

 

Todos os mal-amados

E os desamados

 

Têm um lar à mão:

De Deus o coração.

 

Dá-lhes a capacidade

De escutar

E testemunhar

Que o mundo é uma entidade

Em perene mudança

E que, só nos mudando, a bem se alcança,

 

Em busca de que o lar, de todos os modos,

Tente sempre ir sendo, mais e mais, o lar de todos.

 

Inatingível utopia?

Mas é o que enche a vida de alegria!

 

 

Perene

 

A Igreja é comunidade

Em perene construção,

Como toda a religião

No que comportar de verdade.

Quem já não lavrar o chão,

Porque lhe basta o que grade

No doméstico torrão,

É uma folha, da vida na corrente,

Afogada de repente.

 

É de escutar e promover

Do encontro as mil e uma formas

De quem

Mundo além

Conviver.

 

Nisto é que a comunidade

Conformas,

Interminável reformas,

Da eterna fraternidade

Rumo à infinidade.

 

A construção é perene.

Qualquer parada modalidade

Que encene

É traição

Ao fito

Infinito

Que anima qualquer alma de qualquer religião.

É assim que o Infinito fermenta

A fornada da Terra,

Por mãos de quem alcançá-lo tenta

E a cada afloramento

Dele se aferra,

A acolhê-lo e cultivá-lo,

Do mundo inteiro para regalo.

 

É assim que o mundo inteiro é um sacramento:

Sinal

Em fermento

Da eternidade ideal,

Na Terra um pouco dos Céus,

Um vislumbre de Deus.

 

É assim que, de Deus, o mundo

É o corpo dia a dia mais transparente

E fecundo

A desafiar toda a gente.

 

É assim que em mim concito

Minha pequena fatia de Infinito.

 

 

Hospital

 

O hospital é para curar,

Não para aprender a morrer.

Compreendê-lo é verificar

Que apenas o amor, ao se dar

E receber,

É que findará sempre mais forte

Que a morte.

 

Para além dela perdura

E se apura.

 

Muito mais que na memória,

Pela glória

 

Da luz dele com que no imo me inundo

E por minhas mãos inundo o mundo.

 

Assim é que, do vazio no grito,

Pelo Infinito

Me aprofundo.

 

 

Reproduz

 

A família que temos

Reproduz o mundo.

Como é que a convertemos

No lugar sem quezília

Onde fecundo

A Humanidade como família?

 

Um mundo de irmãos...

Ou nos casamos com este fito

Ou somos pagãos,

Sem entender nada do que é fermentar o Infinito.

 

 

Dignidade

 

A dignidade humana

É tanto a do mais nobre e elevado

Como a do desenganado,

Doente,

Deficiente,

Onde tudo aquilo se haja ocultado.

 

É que na fundura

Do imo

Perene sempre fulgura,

Camuflada, a luz do cimo.

 

 

Vale

 

Vale a pena melhorar o mundo,

Crer que haverá justiça

Para vivos e mortos

No vindoiro reino fecundo

Que tudo desenliça,

Indiferente a nossos abortos.

 

A injustiça suprema,

A da morte,

Será vencida

Por quem rema

E a esteira no rio não entorte,

Perdido na lida.

 

Na ressurreição

Todo o inocente crucificado

Vai dar a mão:

Seremos Deus por todo o lado.

 

Pouco importa que ninguém haja reparado:

Deus é maior que a nossa distracção.

 

 

Sai

 

Sai de ti,

Mergulhando por ti dentro

Em busca do centro

Que anda ignorado por aí.

 

Sai de ti,

Buscando com a natureza e os outros a harmonia

Que ninguém concilia

Mas que em ânsias em ti vi.

 

Sai,

Fica vazio, no nada,

Que abres as portas à estrada

Que vai

Para lá da aparência de pessoas e coisas...

- E aí no Infinito a mão de leve poisas.

 

 

Recusar

 

O Infinito dá-me a mão,

Ao findar

Meu entremez.

Recusar a ressurreição

É resignar-se a acabar

De vez.

 

Crer ou não

É indiferente:

O Infinito dá-se-me inelutavelmente

Então

De presente.

 

 

Queres

 

Queres a salvação?

Olha para o teu coração.

 

Sê honesto contigo,

Salva tua interior alma em teu íntimo abrigo,

 

Antes de tentar salvar além

Mais alguém.

 

O Infinito que chama por ti

Começa aí.

 

 

Letal

 

Preso embora

No mais letal campo de concentração,

A mente é livre de ir-se embora

E vaguear da liberdade pelo chão.

 

Poderão matar.

Isto, porém, como tirar?

 

Tenho um centro

Onde mais ninguém senão eu entro.

 

Mesmo que eu o queira,

Não há maneira.

 

É onde estou definitivamente sozinho

Espreitando pela fresta o Infinito que adivinho.

 

 

Ideias

 

Quando as ideias parecem loucas,

Se funcionarem

Já não as apoucas:

Tornam-se heróis os que as protagonizarem.

 

Só é pena

A proporção delas ser tão pequena.

 

Porém, as ideias falhadas

Calcetam o piso das estradas.

 

Sem elas

Nunca visaríamos as estrelas.

 

 

Prendas

 

Não te prendas a um clube, um partido,

Um país, uma cultura...

Corta as algemas, há um gemido

De tua garganta na fundura.

 

Calma é a corrente

Que ambas as margens ama

Mais a lonjura do oriente

Que vislumbra de lá

E que todo o dia a chama

Mas que nunca alcançará.

 

Quando com outrem estiveres,

Que seja isto exactamente o que quiseres:

 

Pertences-lhe tu ali

Como ele então te pertence a ti.

 

Assim cumpres o desejo

Que qualquer pessoa tem

De ser mais do que em si vê, do que em mim vejo,

De sermos uma fresta para Além.

 

Quando de dois de nós fazemos um, o que fito

É a porta aberta para o Infinito.

 

 

Marca

 

Sonho,

O espírito sonha em mim,

O espírito sonha um molde que imprime na matéria.

Eis como ponho

Minha marca de carmim

Na aventura sidérea.

 

Relativamente ao Todo, é nada,

Mas é, inapagável,

A minha dedada

Insofismável

Na infinita estrada.

 

 

Mesma

 

Crentes ou ateus,

É a mesma a voz:

Todos temos uma centelha de Deus

Dentro de nós.

 

Para uns, é quanto basta.

Para outros, é o farol que arrasta.

 

Em ambos, afinal, é o mesmo o fito:

Todos visamos o Infinito.

 

 

Procuras

 

Procuras nos céus?

Os olhos, as mãos e os pés de Deus

São os teus.

 

Olha em ti, bem no fundo,

O germe de Infinito que rebenta, fecundo,

E atrás de ti arrasta o mundo.