BARTOLOMEU VALENTE

 

 

O MINISTÉRIO DOS LOUCOS

 

 

Lisboa, 2001

 

 

Sendo embora este livro uma ficção, reais são todavia os eventos e conjunturas ligados à vida escolar e respectivos agentes exactamente como adiante os reportamos, por vezes recombinando, ocasionalmente e quando muito, casos idênticos sobreponíveis. Tivemos de alterar e trocar por inteiro nomes, localizações e escolas, a fim de preservarmos a privacidade de todos os intervenientes e participantes..

A eles agradecemos terem partilhado connosco tanto as utopias e projectos como as frustrações e desesperos. Dedicamos-lhes prioritariamente o trabalho, em nome de tanto sonho a caminho. Apenas lamentamos não estarmos eventualmente à altura para aqui lhes prestarmos o adequado testemunho.

 

 

Penso, às vezes com um deleite triste, que se um dia, num futuro a que eu já não pertença, estas frases, que escrevo, durarem com louvor, eu terei enfim a gente que me “compreenda”, os meus, a família verdadeira para nela nascer e ser amado. Mas, longe de eu nela ir nascer, eu terei já morrido há muiro. Serei compreendido só em efígie, quando a afeição já não compense a quem morreu a só desafeição que houve, quando vivo.

Um dia talvez compreendam que cumpri, como nenhum outro, o meu dever-nato de intérprete de uma parte do nosso século; e, quando o compreendam, hão-de escrever que na minha época fui incompreendido, que infelizmente vivi entre desafeições e friezas, e que é pena que tal me acontecesse. E o que escrever isto será, na época em que o escrever, incompreendedor, como os que me cercam, do meu análogo daquele tempo futuro. Porque os homens só aprendem para uso de seus bisavós, que já morreram. Só aos mortos sabemos ensinar as verdadeiras regras de viver.

 

Fernando Pessoa, Livro do Desassossego, n.º 191, pág. 128, Abril/Controljornal, Linda-a-Velha, 2000

 

 

 

PELA ESCADARIA ACIMA

 

            O diálogo truncado de O Ministério dos Loucos é desenvolvido por um médico fictício com a atitude do professor típico da geração pós-ditadura do Estado Novo:

            - Tem um indesmentível complexo de perseguição, herdado do anterior regime cuja Inspecção do Ensino era, em concreto, o braço estendido da polícia política neste ramo da vida do País, permanentemente suspeitosa de qualquer cabeça pensante, maioritariamente provável em ambiente escolar;

- Durante decénios pós-revolução aquele estado de espírito foi alimentado pela manutenção da mentalidade vigilante e persecutória por grande parte do aparelho de tutela, em pleno regime democrático, como confirmaria, ao correr já da década de 90 do século transacto, uma chefe de secção dos serviços centrais, na reunião com a equipa no início de ano: “eu estou aqui para que nada mude.”

Ora, apesar disto, a generalidade dos quadros políticos, dos professores para ali destacados e de muitos técnicos remou sempre contra tal maré, tentando alterar a atitude dominante e respectivas rotinas mais ou menos inconscientes, herdadas do passado tenebroso.

Como marca maior deste esforço de tantos, a abrir portas jamais outrora imaginadas, tivemos a extinção das Direcções Regionais de Educação, criadas, fora de época, ainda como um braço estendido do poder totalitário de antanho, embora camuflado (e, se calhar, inconsciente), trocadas pelos Agrupamentos de Escolas, com cada vez maior grau de autonomia.

Nestes termos, o presente meio diálogo revela como, apesar do obscurantismo e temores do velho regime, perto dum décimo dos educadores rompia caminho e permitiu configurar um modelo optimizador do desenvolvimento integral das novas gerações, uma engenharia do comportamento inédita e libertadora. É o que seria de promover e generalizar desde já, a bem de todos. Quanto mais cedo, melhor.

Não faz jus, todavia, a tantos, no aparelho do Ministério, que têm vindo, através dos decénios da democracia, a tentar inovar em conformidade mentalidades e práticas, contra a ordem unida a marcar passo de antanho. Nem um professor de tal perfil (como o do médico que imaginamos conversa além) o faria nunca. Isto, porém, levanta um problema que aqui não é abordado: a atitude generalizada do professorado tem de reconverter-se, de modo a não eternizar a mania da perseguição, cada vez mais sem fundamento. E nunca o teve de todo perante o leque de quantos se esforçaram, décadas além, para reconverter a máquina colossal do Ministério para os novos tempos.

Apenas então o diálogo centro-periferia será fértil. Aliás, só a partir daí poderá haver diálogo. Até lá é uma conversa de surdos, onde todos temos a perder. E é o País inteiro que perde.

Esta fala a meias da obra, portanto, denuncia consistentemente a urgência de reconverter a cultura predominante da ditadura para a educação que era a de manter o professor à mão e curto, como cão açaimado. Hoje em dia muito poucos no Ministério se reverão neste espelho. Há muito caminho feito entretanto. O outro lado da moeda, porém, finda de todo ausente deste livro: a urgência de reconverter a mentalidade resultante daquilo no professorado - o permanente temor da perseguição. Doravante inexistente esta, é o temor dum fantasma que igualmente neste grupo tende a eternizar-se, sem qualquer fundamento. Seria muito bom que a caminhada depuradora também fosse aqui empreendida, a bem da saúde emotiva de toda a gente.

Aí todos nos poderíamos, finalmente, encontrar. Aí poderia haver a festa prometida.

 

 

I Parte

 

AS MAZELAS

 

 

 

Mazela 1

 

 

- Então que tomas hoje? Manténs-te na Reserva do Porto Borges? Tudo bem, tudo bem... Olha, eu vou mudar. Ofereceram-me aqui um tinto de Pias que, a acompanhar um queijo curado de Castelo Branco, nem te digo! É uma revelação! Nunca imaginei que caísse tão bem! E depois, já sabias que vinho deste é que leva a viver os povos mediterrânicos mais uns dez anos que os demais europeus? É verdade, é! Trava a formação de radicais livres nas células e os tecidos orgânicos não envelhecem tão cedo. É melhor ires-te lembrando...

 

-...Ora! No teu Ministério não é a decrepitude o problema, não vai a barris de tinto. Aí é mesmo loucura colectiva. E se te não precatas, qualquer dia tenho-te lá no consultório, a aguardar vez...

 

-... Claro, mais de dez por cento dos meus pacientes vêm daí, principalmente professores. Aliás, lembra-te das estatísticas dos sindicatos docentes: setenta por cento das consultas das clínicas deles são problemas de esgotamento e afins. Vocês andam a stressar em massa o sector. Ou ainda não deram por isto?

 

-...Não compreendes?!... Não, não é por andarem exaustos os mestres que os alunos, em nove anos de escolaridade obrigatória, não aprendem nada. É uma vergonha Portugal entrar no terceiro milénio na cauda da Europa relativamente à cultura escolar de base. Apenas a Islândia nos fica atrás, mas quem se lembra de que existe tal país ou que faz parte deste continente? Olha, de certeza que não os tais alunos que vocês andam para aí a diplomar! No nosso tempo ainda íamos ao mapa e competíamos (lembras-te?) a pontuar, à descoberta de tudo o que por lá constava, a ver quem vencia. Agora, imagino!...

 

-...Isso é completamente errado! Queres que te explique?... Não é nenhuma conversa fiada a doença do stresse. Até parece que estás por fora de tudo. Se calhar este é o problema do Ministério inteiro: um alheamento universal. Autoconvencido, auto-suficiente, autista. Mergulhar os dedos na realidade, não, que faz frio. É incómodo. Uma lógica adequada à preguiça, que passe culpas, e pronto, fica tudo resolvido! Continuam a dormir na maior paz de consciência. Entretanto, o mexilhão é batido por todo o lado, não há santo que lhe valha.

 

-...Evidentemente que estou a ironizar. Mas repara que, se calhar, devia falar a sério. Ainda hoje atendi a Prof.ª Madalena. Não é daqui, não a conheces. Ando a ajudá-la a aguentar-se há uma meia dúzia de anos. Tudo começou com o vosso maldito regulamento de avaliação do Ensino Básico, no princípio dos anos noventa.

 

-...De acordo, o modelo era excelente: avaliação contínua, formativa, com atendimento à personalidade inteira dos alunos e tudo o mais. Não é aí que bate o ponto, é nas pedras que vocês encravaram na engrenagem, na primeira versão, logo a arrancar, para não deixar dúvidas. Eu conto-te a história da Prof.ª Madalena. Lembras-te do ano inicial da generalização da Reforma Educativa? Ninguém adivinhava como iria ser a avaliação final. Quando o tal regulamento chegou, ela viu logo que teria praticamente de perder as férias: a turma que lhe calhara era muito indisciplinada e preguiçosa, ninguém aprendia nada. Como vocês obrigaram a justificar por escrito todas as avaliações negativas, ela lá se mentalizou para escrever um relato completo acerca de cada aluno, já que teria de ser praticamente de todos. Andou mesmo aquele verão inteiro a dar conta disto. O caso pior era o do Ramiro. Ando a ouvir do mafarrico do miúdo há uns seis anos. Logo no primeiro dia de aulas lhe havia entrado pela janela e até ao fim do ano nunca a professora logrou evitar de vez aquele comportamento. E então dentro da sala, nem te digo: murro neste, canelada naquele, chegou a furtar e a comer a merenda do Luís, o mais tímido e inibido da turma, que passou o dia a chorar sem se atrever a denunciar o evento. Foi preciso recorrer à família.

 

-...Não, não é o problema da disciplina. Não é aí que eu queria chegar. O caso é que em setembro se lhe apresentou um inspector na escola, para verificar aquela hecatombe na avaliação. Afirmou-lhe que era do ramo pedagógico e tinha instruções para examinar todo o processo. A Prof.ª Madalena, cheia de boa fé, pôs-lhe tudo ao dispor, o trabalho dum verão completo. Vai daí, o homem começa no primeiro: “Mas então o rapaz não aprendeu nada?! Nalguma coisa há-de ter progredido... Ora vê? Sempre sabe mais umas ninharias, não é? Se houve progressão, tem de passar! São estas as normas.” E, quando ela protestou que isto era insensato, sem dominarem o mínimo dos programas tinha de avaliá-los negativamente, ele comentou: “Não somos nós que fazemos a lei. Quem manda, manda assim, a nós só nos compete cumpri-la.”

 

-...Ai é um exagero, um episódio pontual, apenas do primeiro ano da avaliação e que não se pode extrapolar? Olha, no caso do Ramiro, queres ver no que deu? A conversa foi esta: “Mas ele no fim do ano saltava-lhe tantas vezes pela janela como no princípio? Não? Está a ver: houve uma melhoria. Logo, ele tem de passar.” E quando a Prof.ª Madalena contestou que isto era demais, ele puxou dos galões: “Ou a senhora cumpre o que lhe estou mandando ou instauro-lhe um procedimento disciplinar. A escolha é sua.” Evidentemente que ela tem de viver, sujeitou-se. Foram os relatórios inteiros para o caixote do lixo e desde então nunca mais fez uma avaliação correcta, que tenha algum sentido, nestes anos todos.

 

-...A maior anedota vem daí. O Ministério alterou o regulamento de avaliação dos alunos logo no ano imediato, anulando os dispositivos que chantageavam os professores ou os obrigavam a distorcer estratégias de aplicação (como ao exigir-lhes avaliarem permanentemente, o que era e ainda é inexequível). Estamos de acordo. Agora repara: sabes como esta Prof.ª Madalena e a escola dela interpretaram este segundo Despacho? Aliás, pelo que me é dado entender das conversas com os meus pacientes educadores, foi uma tendência de todas as escolas do País. Adoptaram-no assim: este novo regulamento anula o anterior nos aspectos que nele constam de modo explícito, mantendo-se ambos em vigor no restante, a complementar-se mutuamente. Quer dizer, as normas para pressionar e distorcer, de modo a acabar administrativamente com as negativas, as retenções e as reprovações, mantêm-se todas em vigor, desta forma mais ou menos encapotada. Olha, não conheço ninguém que até agora, mais de dez anos corridos, tenha assumido, desassombradamente, de forma definitiva, que o primeiro regulamento já não exisste de todo, que foi abolido por inteiro. Nem entre os inspectores que foram tão pressurosos ao impor as anomalias dele. Aliás, o pior é que descobri várias escolas que, para não restarem dúvidas aos professores e se defenderem das arbitrariedades da tutela, acabaram por aprovar em regulamento interno as normas abolidas, restaurando-as assim, para todos ficarem bem vinculados a obedecerem-lhes. Imagina então a vida da Prof.ª Madalena!

 

-...Não, não, aí é que te enganas. Ela foi a única, mas não na interpretação que lhe dás: é que os demais colegas e os das outras escolas, logo à partida, como ela, entenderam que o que o Ministério pretendia era aquela falcatrua e trataram logo de agir em conformidade. Então não tiveram sarilhos com a Inspecção nem com ninguém. Esta tornou-se a norma do País inteiro. A excepção é um ou outro professor com mais escrúpulos deontológicos que pretende reagir contra a maré, como a Madalena. Aí vocês trataram logo à partida de cilindrá-lo. Até ao nono ano é isto em todas as aulas doravante: as avaliações tornaram-se uma burla institucional bem vigiada, para manter o País inteiro analfabeto mas diplomado. Quem é que andam a enganar? A OCDE e a UNESCO, pelos vistos, não, já que, quando avaliam os países, põem a nu esta vergonha: andamos sempre na cauda do mundo, já nem sequer é só da Europa. Eu até conheço alguns doutores muito universitários, com o canudo perfeitamente em ordem, e que pouco mais são que uns iletrados altamente pretensiosos, todos enfatuados.

 

-...Pronto, não te abespinhes. As tuas intenções conheço eu bem. O problema são os factos. Contra eles os argumentos nada valem, não é? Quando te ouço que isto não é bem assim, lembro-me sempre do Fernando, um internado na Psiquiatria do Júlio de Matos e que ao princípio me ludibriou durante um ror de dias. Todo ele uma simpatia, passava o tempo a avisar-me: “Ó Snr. Dr., não ligue ali ao Zé Fernandes, que ele é inofensivo, mas tem a mania que é o Nun'Álvares Pereira e anda sempre a fazer planos para dar cabo dos castelhanos. Mas não é capaz de fazer mal a uma mosca, entende?” E de facto o outro vivia naquela permanente alucinação, sem transtorno de maior para ninguém. Já transcorrera mais duma semana desta conversa diária quando ele me confidenciou, muito solícito: “Sabe, Snr. Dr., o Zé Fernandes acredita que é o Nun'Álvares, mas é mentira. É que o Nun'Álvares Pereira sou eu. Agora não lhe diga, senão ainda lhe pode fazer mal!” Ora, enquanto tu e vocês lá pelo Ministério andam à procura de castelhanos imaginários para combater, recusando-se a reparar nos reais que por aí proliferam, vão estes ocupando pacificamente o País inteiro. Aliás, que é que esperavas em resposta, quando lá os teus técnicos impuseram, no princípio, a justificação por escrito das avaliações negativas? Isto, quando mais de 90% dos alunos no fim do nono ano tinham tido pelo menos uma vez uma experiência de reprovação e era de mais de 73% o número de insucessos acumulados em cada coorte de estudantes. Os educadores não são parvos nem masoquistas, felizmente. É óbvio que o que se queria era levá-los a não optarem pelas negativas, de modo a não as darem de vez. Se é o que o Ministério quer, então tudo bem, ninguém as dá, passa tudo, não importa mais aprendizagem nenhuma, a escola é uma ficção mentirosa para inglês ver. Os alunos, aliás, rapidamente se aperceberam disto e pronto. Daqui para diante só houve trabalho escolar de quem? Dos filhos das famílias que em casa são avaliados a sério, acompanhados de perto e com exigência. E aí tens os cerca de 15% que continuaram a dar boa conta do recado: os de lares altamente escolarizados à partida, mais alguns que lhes rodam na periferia e se deram conta do descalabro e do modo de o ir minorando. Quando ainda têm meios, tanto de saber, de tempo, como de jeito, para virem a terreiro, claro. A larguíssima maioria baqueia à partida: nunca tivemos uma tão perfeita reprodução da estratificação de classes e da sua impermeabilidade no País. A escola para todos, que grande burla!

 

-...Sensibilidade social?! Vocês têm cá uma lata! Mostram é não ter nenhuma. Que custava pôr preto no branco que foram anulados estes dispositivos legais distorcedores, que o Ministério os repudia, que o primeiro modelo de avaliação está morto e enterrado por inteiro, não apenas parcialmente, e não só na letra mas também no espírito que o informava? Ora, ninguém o fez, ao invés do que ocorreu quando foi posto em vigor, com sessões por todas as escolas, conferências de imprensa e colóquios pelo País inteiro. Não é bizarro? Olha, queres ver outra anomalia do mesmo teor? Em todas as escolas os professores continuam a justificar em acta as razões porque atribuem mais de 50% de negativas, quando tal ocorre em qualquer turma. A norma que alguma vez impôs isto é tão antiga e já foi abolida há tantos anos que ninguém a conhece. Todos continuam a dar-lhe cumprimento, contudo, muito religiosamente. E sabes porquê? Porque também em documento nenhum foi expressamente escrito que está abolida. As anulações genéricas têm sempre este efeito: ninguém sabe o conteúdo concreto daquilo que é anulado, só os juristas. Ora, os professores não são juristas nem têm de sê-lo, nem dispõem de assessorias jurídicas para colocarem tudo no devido lugar. Resultado: vigora indefinidamente tudo quanto alguma vez foi imposto e não foi banido de modo explícito. Acontece que normalmente é o pior. Não é curioso?

 

-...Calma, calma! Não estou nada a pôr em causa a tua honestidade, a autenticidade de tuas crenças e valores. O problema é o buraco entre o que tu imaginas e a realidade. E a mania de ficares permanentemente pendurado das fantasias em prejuízo dos factos. Sabes que um dos meus doentes crónicos, um incurável, coitado, vive permanentemente convencido de que vai haver uma grande revelação que salvará o mundo definitivamente: agora tem uma fixação nas pirâmides, até um telhado com um remate triangular (e são quase todos) é uma prova cabal daquilo. E não há comprovação que o demova, por mais que trinta e tal anos de factos, desde que ele nasceu, demonstrem o contrário. O que conta é a alucinação. Então, seja lá o que for, lhe serve de pretexto para se agarrar cada vez mais à mania. Aqui há uns anos eram os cursos intensivos de vendedores que algumas empresas de venda directa promoviam: ludibriou a família e espatifou-lhe umas dezenas de contos. A prova dele, na ocasião, eram os profetas do mundo novo, todos a venderem enciclopédias porta a porta! A diferença, compreendes, é que este era inofensivo e as crises histéricas de misticismo fanático se controlam com uns sedativos e uns ansiolíticos. Enquanto, no vosso caso, olha para ti... Já viste o que era nomear o meu paciente Ministro da Educação? Seria uma diferença apenas de grau, não de qualidade.

 

-...Tudo bem, tudo bem. É verdade que eu estou cheio de doentes provenientes da área da educação, é verdade que não vão à consulta os que andam sadios. Posso cair no escolho da parcialidade, já que todos generalizamos. Agora, repara, o mesmo se aplica a ti. Estás disponível para a mesma autocrítica e para a tua relativização de leituras da conjuntura? Bom, pretendes estar, como eu. Daí até o conseguirmos é outra coisa e tanto se aplica a mim como a ti. É verdade, eu vivo rodeado de doentes, mas tu, comparado comigo, andas afogado num mar de milhares de técnicos, assessores, quadros de todos os tipos... E todos altamente alheados da realidade cá de fora. Lá dentro, no teu Ministério, é tudo tão rico e complexo e rematadamente completo que se basta como mundo, é um microcosmos, e quem queira ler este daqui por aquele obviamente extrapolará para cá interpretações inteiramente inadequadas, com desprezo, embora involuntário, de quantas realidades exteriores divirjam daquelas que ocorram nos corredores ministeriais. Não é, neste sentido, exagero falar da imensa alucinação cultivada e mantida (mesmo de boa fá, não discuto) por essa mole humana incomensurável que te rodeia. E tu, que aí tens de viver mergulhado, como poderias evitar o contágio? Vivemos todos por empatia, para o bem ou para o mal. E não há nada mais contagioso que o comportamento humano, muito mais que qualquer vírus. E pronto, aí tens a mazela e o foco de origem.

 

-...A Prof.ª Madalena? É um caso emblemático do que vocês provocam... Ó pá, eu sei que não tens intuito nenhum, mas o facto é que ela é um dos milhares e milhares de episódios em que os melhores dentre os professores são vitimados pelo sistema. No meu consultório eu já lhes perdi a conta: centenas e centenas. Imagina o que não irá pelo País fora. Olha, no último Congresso de Psiquiatria, o panorama com os meus colegas foi rigorosamente igual ao meu: montes de docentes que eles acompanham, talvez a fatia mais vasta da clientela.

 

-...Não compreendes? É simples, eu explico-te como eles chegam ao limite. Com a Prof.ª Madalena foi perfeitamente linear. Ela é uma entusiasta da relação pedagógica, uma pedagoga nata. Viveu sempre para os alunos, a sala de aula foi durante dois decénios a vida dela, praticamente ao nível da própria família. Então, quando ocorreu o embate com o inspector, ficou em estado de choque. Durante dias não conseguiu sequer ir à escola, quanto mais dar aulas. Bastava pensar nisto que desatava a chorar. Quando logrou enfrentar a turma, caiu em depressão, ficou irreconhecivel: não vislumbrava como operar naquelas talas, vivia em completa objecção de consciência contra tal contexto de trabalho, contra aquele esquadrão de alunos ignaros e militantemente dispostos a nada aprender. Acabou irascível, intolerante, instável. Pela primeira vez na vida achou a turma insuportável e desatou a detestá-los a todos. Semanas depois, no meio de tanto contar e recontar a desgraça que lhe tinha ocorrido, calhou de desabafar com outro inspector, antigo colega dela. Não é que ele lhe identificou o que a tinha levado a este estado como sendo do vector administrativo, meramente destacado nas funções, inexperto e incompetente, que apenas abusara do lugar, do poder e dela própria? Só que, repara no pormenor, com plena conivência e encobrimento das chefias. Estás-me a entender, não estás? Somos todos muito democratas, mas na Inspecção de Ensino o autoritarismo continua, prepotente, invulnerável e pujante, a rir-se de todas as madalenas, de mim e de ti, do regime inteiro...

 

-...Importam muito as medidas que tomes! Quantos, antes de ti, já as tomaram? Hã? Ali só a extinção completa e sem a criação de nada que os substitua nem à instituição, durante um bom par de anos. Senão é outra vez a troca da PIDE pela DGS: muda o rótulo, o veneno é o mesmo. Aliás, foi o que vocês fizeram ao reconverter a inspecção através da criação da figura do inspector pedagógico: não reconverteram nada e ele é que ficou reconvertido. O caso da Prof.ª Madalena é uma ilustração exemplar.

 

-...Ora, como se eu não conhecesse tantos que remam contra a maré! Até tenho um engenheiro que foi há uns anos presidente duma Secundária, salvo erro em Alhandra ou algures aí na zona. Só que é uma agulha em palheiro e, para se aguentar, consultório com ele! Venho-o mantendo à base de calmantes e soporíferos. Qualquer dia tenho de chegar aos hipnóticos. É espantoso como vocês recusam ver o óbvio, refugiados sempre nas racionalizações mais infundadas e alienatórias! Depois não queres que eu lavre um diagnóstico. Mas se até a um leigo lhe entra pelos olhos dentro!

 

-...Correcto. A Prof.ª Madalena, quando ouviu aquela de a fazerem de boba, a gozarem com ela, entrou em ruptura profunda. Aí é que me veio parar ao consultório, acompanhada da então Directora. Agora quase sempre é o marido que a traz. E ainda bem que ao menos conta com uma família unida, estabilizada. Os que nem isto têm, coitados!

 

-... Não entendes como pode redundar naquilo?! Esta agora! Mas é evidente! Como é que fica alguém que inesperadamente vê que se lhe esbarronda aos pés todo o sonho duma vida? Como é que tu ficarias? E depois, o pior é que não resta maneira nenhuma de retomar o rumo, de saltar por cima: o regulamento de avaliação lá continua vigorando, mesmo abolido... Este é um caso em que só fugindo para fora do comboio do Ministério. Mas quem é que, no meio da vida ou perto do fim da carreira, pode encontrar alternativa? E como, se educar, lidar com crianças para as ver desabrochar, é que era o grande projecto de que se alimentou cada hora duma adultez inteira? O problema para os professores que partilham da escola por gosto (e são larga maioria, concordarás, que os proventos não andam tão atractivos como isso para irem lá parar por eles), o problema é mesmo este: vocês não lhes permitem que operem correctamente, que ensinem, que eduquem. Neste pendor particular é por omissão, por deixarem o equívoco no campo da avalição perdurar indefinidamente: terão de ser maus formadores por imposição legal. Quem é que logra viver equilibrado com isto? Olha, eu ando cheio de madalenas nas consultas e o resto do País também. Por mais resistente que psicologicamente um homem seja, quando adora a relação pedagógica, mais dia menos dia, quebra, é fatal: há limites para tudo e aqui vocês, lá no Ministério, esticaram a corda demais. Se foi por ignorarem como a lei da avaliação estava a ser interpretada, é o mesmo: como podem desconhecer que eles agem como se tudo estivera em vigor, mormente os dispositivos deturpadores, justamente os mais traumatizantes? É, aliás, por serem traumáticos, que tendem a eternizar-se, papões ameaçadores, tanto nos sonhos de pesadelo como em vigília. É o funcionamento comum de qualquer trauma, por isso é que aprisiona os pacientes a vida inteira, se não for tratado e ultrapassado. A gravidade maior deste, entre os professores, é que se tornou colectivo, anda enfermando o País inteiro. E pelos vistos ninguém repara, lá entre os responsáveis...

 

-...Ai julgas que conseguem ensinar? É uma questão de personalidades fortes e fracas, é? Não há dúvida que vocês teimam em não querer ver. Têm de arranjar desculpas e justificações, dê lá por onde der. É impressionante! Claro que és só tu e que eu não devo generalizar... Como se eu não andasse todos os dias a ouvir o mesmo de toda a vossa gente, em todos os lados! Deixa-te de histórias: estás a ser o porta-voz da ideologia e atitude comum a um Ministério inteiro. O inverso é que é raro e não representa senão opiniões individuais, sem eco praticamente nenhum lá dentro. Olha, é o contrário do que ocorre no resto do País, creio eu, pelo menos daquele que anda minimamente informado disto ou que lho sofre na pele.

 

-...Está bem, concedo que uma coisa são os quadros técnicos de carreira, as tais centenas e centenas de professores falhados praticamente na totalidade, que tiveram de resolver a vida deles. Como nas aulas foram uma nódoa e não encontraram maneira de lidar com elas a contento, optaram por tal alternativa e lá os tens a proliferar por todos os cantos. São aa espinha dorsal do aparelho ministerial, em todas as directorias, departamentos, gabinetes e serviços. Como falhados, sofrem dum crónico complexo de inferioridade que os revolta contra tudo e todos que operem bem. Como eminências pardas do poder, usam-no, sempre que podem, para se vingarem, reduzindo os mais à impotência deles próprios: assim vão compensando a má imagem e o complexo de culpa que os envenenam, com que é muito difícil e doloroso conviver uma vida inteira. São neuróticos que mutuamente alimentam as respectivas neuroses. É neste caldo de cultura envenenado que respiras dia a dia. Com a agravante de muitas vezes se mascarar de complexo de superioridade: então embandeiram em arco com iniciativas superlativizadas, inevitavelmente montanhas que parem ratos, com imposições cegas do poder, pondo os pés por cima de toda a gente, decidindo autisticamente no meio de simulacros de diálogo e consulta, visando serem consagrados como iluminados, como oráculos da infalibilidade... É a sintomatologia completa do mesmo complexo mórbido, seja no acabrunhamento, seja na exaltação: a flutuação entre os extremos é absolutamente característica, como qualquer psicólogo to pode confirmar. Agora diz-me que andas tão cego que ainda nem reparaste nisto, nos comportamentos desviantes do intriguismo, do corte sistemático na casaca uns dos outros, das conversas intermináveis sobre tricas incongruentes e inócuas, tornadas barreiras inultrapassáveis... Olha, se queres fazer tu um bom diagnóstico, repara no teor das relações humanas: não encontrarás por lá amizades sem suspeita nem pé atrás, sem punhaladas pelas costas, aquilo é um vespeiro. Laços sadios, que descontraem e ajudam a realizar as potencialidades de cada um, com solidariedades duradoiras e gratuitas, sem andarem a visar vantagens, promoções, compadrios – isto é fruta que ninguém cultiva nos pomares do Ministério... Mas é no teu como em qualquer outro, repara, não estais sozinhos.

 

-...Já te confirmei que distingo daquilo os quadros políticos e administrativos superiores, a flutuarem sempre em conformidade com as mudanças governamentais e os resultados eleitorais. Tudo bem, estamos de acordo. Sim, também é verdade que estes não serão predominantemente movidos a irem para o Ministério por serem pedagogos falhados em busca de compensação e vingança. Mesmo assim, há muito quem corra para aí para inchar o peito de vento e aparecer no pedestal das primeiras páginas: olha a Prof.ª Anabela, é gritante. Até a tua chefe de secretaria, a D. Dulce. Ainda não reparaste? Há uma sede de protagonismo que é narcisista, uma ansiedade por ser reconhecido que é um arranhar da auto-imagem nada saudável. Tudo isto anda a milhas da mera vontade de servir e da alegria de o conseguir bem e eficazmente. Esta festa descontraída onde é que tu a encontras, onde é que tu a vives? Tens de vir aqui para minha casa, à procura duma amena cavaqueira ao serão, vê lá onde chegaste...

 

-...Evidentemente que continuas um lírico, a sonhar com paraísos perdidos, claro. Mas não te dás conta de como o teu discurso mudou e a atitude diverge do que eras antes de assumir funções?

 

-...Ai mudaste e de que maneira! Se não fora teu amigo de outrora, agora não te quereria muito perto. É verdade. Queiras ou não queiras, o poder trepa à cabeça e, por mais que te vigies, é tão reconfortante ser louvaminhado que, fugindo embora, acabas sempre com umas nódoas na casaca. Somos todos humanos, ninguém lhes escapa. Repara, estou a afirmar-te que sei bem que te esforças o melhor que podes, nem outra coisa esperaria de ti. Agora, o pior não é daí que vem: no fundo, é pelo menos saudável que alguém nos reconheça no que de melhor obramos e mal de nós e da alegria de viver se ninguém é nosso amigo nem nos preza. Aqui o problema é dos fingidos, dos aduladores que bajulam com perfídia, interesseiros. É-nos sempre difícil distingui-los dos amigos deveras e, quando trocamos uns pelos outros, estamos perdidos: passamos a viver com autoimagens falseadas e com uma visão mascarada do mundo, em troca da verdadeira. Não é normalmente intencional, é quase sempre uma fatalidade. Tanto mais provável quanto mais deixarmos inadvertidamente que a vaidade nos passe a rasteira. Mas pronto, do mal o menos. O pior é que ninguém logra resistir muito tempo ao efeito da empatia. Conheces o meu colega, o Américo Abrantes. Eu sei que não lhe aprecias os livros nem as ideias. Tudo bem. O caso é que anda completamente desnorteado, lá na clínica não o distinguirias de qualquer maníaco-depressivo que tenhamos internado. E olha que é um bom psiquiatra! Distraiu-se e pronto, baqueou. Ou montamos defesas fora, com relacionamentos normais, saudáveis, ou acabamos como ele a caminhar pelas ruas além, um pé em cima outro em baixo do passeio, a falar sozinho como um bêbedo, feito um miúdo de escola cinquentão, uma parvoíce deprimente que até a mim me põe mal disposto. Agora vê-te lá a ti no meio do chavascal do Ministério da Educação: queiras ou não queiras, a influência mórbida é inevitável. E se ainda não andas a pregar aos pardais no meio da rua, como o Américo Abrantes, a verdade é que já não falas como antes acerca dos problemas do teu pelouro. Subtilmente, a peste vai-se-te inoculando. Olha que o primeiro sinal de loucura é que o louco se toma sempre como certo e o resto do mundo, como errado. Como dizia Chesterton, louco não é quem perdeu o juízo, louco é quem só tem juízo, perdeu foi a realidade. Para mim, o sintoma em ti é já notório. E o que me mete mais medo é que tão denodadamente o estejas recusando: é sempre por aí que os meus pacientes acabam no estádio final. A esquizofrenia é muito insidiosa e pode provir de vivências as mais inesperadas: um caldo de cultura de complexados crónicos de inferioridade, objectivamente falhados, ainda para mais cortados da vida real por uma comunidade fictícia auto-suficiente, montada intramuros do Ministério, redunda facilmente numa leitura ilusória do mundo, auto-gratificante, inteiramente falsa mas perenemente alimentada pela lógica do complexo como paga compensatória do sofrimento inassumido e inultrapassado.

 

-...Não creio nada que esteja a ser alarmista nem pessimista. Com toda a franqueza, acredita que estou a ser maximamente objectivo e honesto. É verdade. Bem, tu é que estás a afirmar que o Ministério é, afinal, um internamento de externos um pouco benignos, como os alienados que temos na clínica em regime ambulatório. Não fui eu que o insinuei sequer. Mas se o queres ler assim, é lá contigo. Talvez te ajude a libertares-te do contágio incontornável dos miasmas.

 

-...Pois, desviámo-nos. Mas isto é que é falar com sabor, ao acaso da corrente. Faz-nos bem a ambos, descontrai e dá gozo. Ou não te dá a ti? Para mim é óptimo, escapo à armadilha que apanhou o Américo Abrantes...

 

-...Ah! Ah! Ah! Ainda me serves de panaceia, pois claro! Os teus sintomas, por ora, não são terminais, apenas não vislumbro até quando. Mas no caso de me vires envenenar a vida, olha, daí por diante dispenso-te. Vai fazer serão com os malucos que para lá terás, que não te faltarão então alternativas de escolha. Mas, se ainda tiveres juízo que chegue, aí abandonas o barco e pronto. O caso fica arrumado. E saudavelmente...

 

-...Ah! Queres entender por que diabo é que, nas condições actuais, um professor não logra ensinar os alunos? Pois não. Olha, a Dr.ª Graça é uma velhota reformada, antiga docente, que me aflora ao consultório regularmente para uma conversa e uns calmantes para dormir melhor, nada demais. Esteve lá na quinta transacta. Tem uma amiga ainda no activo, uma tal Dr.ª Clorinda, que lhe faz o ponto quotidiano de tudo, lá da escola dela. Queres saber a última? Numa turma da tarde explicou, na história da ciência, como Galileu descobriu que os corpos no vácuo caem à mesma velocidade, independentemente do peso que tiverem. E como isto destruiu a evidência empírica milenar, errónea mas sustentada na enorme autoridade de Aristóteles que nunca ninguém pusera à prova antes dele. Estava nisto quando um dos alunos se vira para ela e, petulante, lhe atira à cara: “ A setora pode para aí dizer o que quiser que eu não acredito em nada disso!” A professora ficou siderada. “Qual é o meu papel numa conjuntura destas?” - perguntava à amiga. - “Se eles recusam o que nós ensinamos, se nem ao menos os podemos reprovar devidamente, que é que andamos ali a fazer? A ignorância, o obscurantismo, a superstição, é aquilo a que vamos dar diplomas?” Cá por mim, apenas não sei até quando é que o País se vai manter alheado, a dormir, perante o que vocês lhe andam a fazer aos filhos...

 

-...Já cá faltava a jura: “Não é nada intencional!” Para já, a alternativa não é muito melhor: então vocês serão todos uma cambada de incompetentes. Qual é preferível? E depois, olha: porque é que, por exemplo, não informam imediatamente que está abolida há muito a norma de justificar por escrito qualquer avaliação negativa, mesmo a duma turma inteira? Como podes querer que alguém acredite que não é de propósito o desastre na aprendizagem escolar, quando basta uma decisão tão banal para alterar logo tudo e ninguém a toma? E quem diz nisto, diz no resto: continuam nas escolas a pedir o acordo dos pais para a segunda retenção, a atribuir falsas positivas quando não vêem como viabilizar uma avaliação especializada e menos ainda um plano de recuperação do aluno e assim por diante. Até fazem simulacros de avaliação permanente, tal é o terror dos fantasmas! Quando é que decidem exorcizar tudo isto de vez? Da lei já o lixo foi varrido há mais de dez anos, mas que adianta se o medo continua a tolher os gestos de educadores e dirigentes por todo o lado?

 

-...Não descortinas como é que uma coisa leva à outra?! Oh, com mil diabos! Não há pior cego que o que não quer ver! Para já, não me digas que acreditas que alguém logre ensinar alguma coisa a um aluno que deliberadamente não queira aprender nada.

 

-...Exactamente. O velho princípio de Paulo Freire: ninguém ensina a ninguém, ninguém é ensinado por ninguém, todos aprendemos uns com os outros. Logo, quando um dos lados recusa aprender, acabou a caminhada. Certo? Ora bem, sem avaliações negativas, sem reprovar, não há desafios a sério. Sem desafios, qual é o aluno que tem vontade de aprender? O que tiver os desafios em casa mais o que for amigo deste e se sentir desafiado por osmose. E acaba aí. A Dr.ª Graça conta como numa derradeira turma que teve, ainda no regime anterior à Reforma Educativa, lhe apareceram dois miúdos muito capazes que ela desafiou a atingirem notas entre 18 e 20 (era a última vez a vigorar esta escala, naquele ano). Entusiasmaram-se de tal maneira que, a meio do segundo período, andaram um mês inteiro a escrever a versão deles duma revista monográfica, acerca do tema que iam abordando nma cadeira dela. Mostrou-me o trabalho lá no consultório, há uns meses atrás. Olha, eu fiquei espantado. Aquilo era perfeito. Com a ingenuidade da puberdade, mas francamente bom. Simularam trabalhos de campo, seminários e mesas-redondas entre especialistas, recolha de dados e tratamentos estatísticos rudimentares, eu sei lá! Eram mesmo dois cientistas em miniatura ali a desabrochar, podes crer!

 

-...Bem, estranho era não ouvires casos destes aos milhares. Aliás, aquilo foi a norma das melhores escolas ou, mais correctamente, dos melhores professores, antes das asneiras impostas com o actual modelo de avaliação do Básico, na interpretação ambígua generalizada, abrangente dos dois diplomas, o que vigora e o anulado. Sim, que a obrigação de justificar por escrito as negativas não é a única, mas já lá vamos. Agora, vê só onde tudo isto foi parar. A Dr.ª Clorinda fez muitos projectos daquele género durante anos com a Dr.ª Graça, formavam uma parceria que animou a escola inteira durante muito tempo. E, apesar da reforma, esta continua a dar uma mãozinha àquela amiga quando ela fica mais apertada, com falta de disponibilidade e muita acumulação de afazeres. Queres ver o que ocorreu este Maio, antes do fim das aulas? Para já, antigamente havia sempre uma semana de jornadas pedagógicas. Olha, morreu de há uns três ou quatro anos para cá: hoje ninguém apura, numa escola inteira, trabalhos em quantidade nem em qualidade que a justifiquem. Mas a Dr.ª Clorinda ainda é uma das poucas que resistem. Então faz ela, sozinha, uma exposição final do melhor que realizaram durante o ano, com as turmas que tem, para amigos e familiares dos alunos, para outros estudantes que queiram ver, para algum eventual docente que ainda pretenda alimentar o bichinho da arte de educar. Sabes qual foi o comentário que a Dr.ª Graça mais ouviu dos alunos, enquanto andou por lá a ajudar a montar aquilo tudo? Este, duns estudantes para os outros: “Ó pá, para que é que andas para aí a cansar-te? Eu cá não me chateio com nada, não preciso de estudar nem ligo a estes floreados e no fim vou ter o mesmo diploma que tu. Para que é que serve andares para aí a perder tempo? Dar graxa não te adianta, grande nabo!” E a colega confirmou-lhe permanentemente que este é o desespero durante o ano inteiro. Os que vêm motivados do lar são constante e acintosamente picados pelos mais com o mesmo argumento: não importa lutar por nada porque o efeito ao fim é o mesmo. Quem estuda, quem trabalha, é um palerma, ainda não entendeu que aquilo não redunda em coisa nenhuma. Ora, uma professora isolada, com o sistema inteiro contra ela, que é que pode? Qualquer dia lá terei no consultório esta Clorinda como tenho a Madalena. Nem vejo, aliás, como logram, depois de tudo, resistir tanto. Terão de retirar muita gratificação dos pequenos nadas, dos raros ramalhetes que vão podendo colher entre os alunos.

 

-...Um caso não faz lei? O problema é que os tens em todas as escolas, do Minho ao Algarve. É claramente esta a norma, não vale a pena iludires-te. Ainda não entendeste por que é que teria de redundar mesmo neste panorama? Eu explico-te. É pena não te haveres licenciado em Desporto ou Educação Física, que porventura já o terias desvendado. Tudo tem a ver com a agonística, o motivo que nos leva a ter prazer por transpor obstáculos, por vencer desafios, por ganhar competições.

 

-...Pois, ele é mais visível nos jogos, nos campeonatos, no atletismo, aí ocupa constantemente a primeira linha. A cegueira vem de confundirem o contexto em que ele é prioritário, lendo-o como se fora exclusivo. Não é. O motivo agonístico opera na vida inteira, em dois sentidos: primeiro, em qualquer idade, depois, em qualquer campo de experiência. Ainda me recordo quando o meu Carlos teria aí uns dois anos, se tanto. Trepou, afadigado, a um divã que naquele tempo tínhamos ali, por debaixo do interruptor da luz, lembras-te ainda? Ora, se lembras! Nunca te gostavas de sentar lá, ficavas com os pés no ar, não era? Bem, mas o que importa é que ele, a muito custo, esticou-se acolá de braço estendido pela parede acima e atingiu o interruptor. Gritou-me então: “Pai, pai! Consegui!” Pronto, isto é a agonística a operarr: a enorme exultação da vitória que o levou, sem mais, a suar até transpor o obstáculo. E é exactamente o mesmo do velho sacristão da nossa juventude, lá da aldeia. Lembras-te do ti'Capador? Aquilo é que era um velho de ferro! Pois, no dia dos setenta anos, fez-nos o comentário: “Esta meia já a calcei, agora só falta a outra!” E ria, desdentado. Tu até comentaste: “O quê?! Vai chegar aos cento e quarenta?! Não é nada exigente, raio!” A gargalhada dele! É a agonística, estás a ver. A festa de vencer o desafio da morte. E aquele vergou-a bem, ultrapassou um centenar, não achas? Perdi-lhe o rumo quando vim para cá...

-...É verdade, a agonística opera em todas as idades, mas igualmente em todos os campos. Quando afirmamos que toda a vida é um projecto, que todo o homem é uma semente de homem, estamos apenas a colocar o pano de fundo de que resulta o motivo agonístico como estruturante, como espinha dorsal de cada personalidade: onde houver um sonho a realizar, há o desafio dum itinerário a cobrir e dos respectivos obstáculos a transpor. Ora, não há campo nenhum da vida onde tal não ocorra. Contaste-me há tempos da tua Lúcia, eufórica, à tardinha, quando veio da rua, de levar o cão a passear. Já se te varreu? Foi o dia em que lá o teu vizinho, adolescente como ela, - não é Luís que ele se chama? Pois!... - lhe confidenciou que, se tivesse idade e vida para já poder namorar, teria de ser com uma miúda assim, tal e qual. Ora, ela andava a tentar cativá-lo, não é verdade? Aí está o desafio, vês? Depois, a euforia. É que ela não tinha a certeza de vencer, podia ter falhado. Nisto é que está o sal: por aqui é que vida é apaixonante. No dia em que a tornáramos, se tal fora viável, inteiramente segura, perderia metade do valor. O risco, o problema, a ameaça é que aguilhoam: felizmente estão presentes em qualquer sonho a caminho – a pegada em mundo novo é, por natureza, arriscada. Todas as áreas de realização humana mantêm esta constante.

 

-...Bem, é isto que não opera durante os nove anos da escolaridade obrigatória. Evidentemente, por culpa das pedras na engrenagem da avaliação que continuam a vigorar de facto, embora abolidas de direito. Sabes que tenho perguntado a todos os professores que me aparecem na consulta quantos diplomas a escola recusa a alunos do nono ano. A princípio, nenhum, todos tinham direito a ele. Agora já vão reprovando uns tantos, muito a medo. O certificado de frequênia, na prática, foi abolido, ninguém mesmo fala nele: o que é isso? Era interessante verificar no resto do País, quase apostaria que é a norma. Decerto não andaremos longe disto. Para o caso pouco importa. A agonística é que assim não pode operar: não há desafios onde não há riscos. Se praticamente ninguém pode falhar, que importa o jogo? Aliás, haverá jogo nestas condições? Onde não há regras ou onde não operam?

 

-...Vencer a ignorância? Evidentemente que é desafiador para quem o pretenda, lhe seja sensível. Agora, a aprendizagem escolar é atractiva para um aluno? Por ela própria? Onde descobres semelhante raridade? Olha, onde encontras estudantes a reagir deste modo, é onde eles ficaram vulneráveis ao programa por interposta pessoa: quando na família tudo opera na teia dos currículos escolares. É a minoria dos 15%. A cultura crítica, característica diferencial específica da escola, só tem peso determinante na vida quotidiana duma ínfima minoria da população do País. E mesmo aí apenas toca os filhos quando entra na convivialidade espontânea do dia-a-dia. Quando fica reduzida à empresa, ao horário laboral, e os ecos dela no lar forem nulos ou pouco menos, não adianta nada. E ainda é pior quando a parentela utiliza os currículos como pretextos para imposições, castigos, violências e policiamentos, à séc. XIX: a escola do terror desafia mas é à agonística da libertação – desmultiplicar as maneiras de burlar o sistema, desde o copianço à gazeta, à simulação e a todo o tipo de duplicidades. De resto, fora isto, por onde vocês enfiaram a rede inteira, não há motivação curricular que resista.

 

-...Concordo, concordo. Há mil e um motivos a operar todos os dias na vida de cada um. O problema é quais os que poderemos activar em contexto de escola. Desarmado o agonístico que é o estruturante das personalidades e das vidas, que interliga idades e áreas de realização da existência, apenas opera, em paralelo, o da convivialidade. Também não escolhe idades e é o predominante em todas as faixas etárias, no contexto da escola. É sempre o que dá mais gozo a qualquer estudante e fica pela vida fora. Lembras-te do grito colectivo, lá no Alexandre Herculano, quando nos faltava aquele sacana do Latim? Já nem me lembro do nome dele. Era um autêntico terrorista! Que festa quando nos dava gazeta e as pragas que lhe rogávamos! Ainda hoje sinto um arrepio quando me recordo daquela cavalgadura. Em contrapartida, o gozo que nos deu sempre aquela horita inesperada quando ele faltava! Que alívio! Recordas-te do Porfírio, o “TS”? A pavonear-se pelos corredores e pátios com uma embalagem de camisa de vénus a sair-lhe pela borda do bolsinho do casaco, em jeito de lencinho decorativo? Era sempre nas faltas daquele professor: a mensagem particular para o estuporado. Há decénios que tudo aquilo foi e ainda hoje nos recordamos. As partidas, as conversas, as confidências, os jogos, os planos, as iniciativas, sei lá, o convívio entre colegas saboreado espontaneamente é sempre o que mais atrai qualquer aluno dentro da experiência escolar. Agora repara: isto é tudo fora da sala de aula e não pode ser transportado para dentro. Ou então desaparece a lição, fica apenas a festa, a roda de mesa de café. Sabe muito bem, mas não leva a lado nenhum, em termos de aprendizagem dum programa curricular. Fica o estreitamento dos laços humanos...

 

-...Ah, bem, nessa linha, claro! A D.Mariazinha, de Ciências (lembras-te dela?) era perita. Os primeiros quinze minutos eram sempre para conversar ao acaso. Como aquilo nos caía bem! E a quantidade de aulas que lhe tirámos até ao fim, quando os temas aqueciam! Mas ainda hoje julgo que ela tinha critério. A gente cria que a levava, mas no fundo ela é que via se valia a pena ou não aplicar o tempo todo ao tema em debate. Era uma grande educadora, foi durante anos um dos meus ídolos, sabes? Quando imaginava a minha futura mulher, via-a sempre com uns traços dela. Mas aquilo era uma coisa, outra completamente diferente era o que os nossos colegas contavam das aulas do Dr. Barros, o de Inglês da outra turma. Ali ocorria a nulidade completa, tudo na brincadeira e ninguém aprendia nada. Para eles aquilo foi um ano perdido por inteiro. É nestes termos que a convivialidade não é transponível para dentro das aulas. Aproveitá-la como estratégia, com medida, tentar algumas aproximações (lembras-te dos grupos de trabalho nas aulas de História, com o Dr. ...como era o nome dele? Neiva? Isso!), até aí, tudo bem. Às vezes as disputas de temas em Filosofia com a Dr.ª Helena também iam um bocado por lá, com os afins conluiados para argumentarem pela posição comum. São aproveitamentos criteriosos da convivialidade e resultam, mas claro que não serão nunca aquele motivo a ser cultivado e propugnado como objectivo a atingir. Isto, só nos recreios e nas faltas dos professores. E aqui é, curiosamente, uma motivação deveras formativa. Agora, convém é não confundir. A fragilidade e subtileza das relações humanas, ao menor desvio, deitam tudo a perder. O problema do Ministério da Educação é não tomar cuidado com isto. Então fica posto em causa o efeito mesmo das melhores medidas. Não raro, inverte-se até:

é uma característica também dos relacionamentos. O grande amor e o grande ódio são, por norma, frutos um do outro. E os pequenos nadas é que um no outro os transmudam.

 

-...Deixa-me ver se compreendi bem. Não crês que a mera medida de ter obrigado, durante um ano e há muito tempo já, os docentes a justificar por escrito as negativas arraste em cadeia todo este rol de hecatombes. Talvez tenhas alguma razão, nunca o descobriremos. Além do mais, aquela norma não ficou só, juntaram-lhe várias outras que a desmultiplicaram no efeito demolidor. A primeira foi obrigar a uma autorização expressa dos encarregados de educação a segunda retenção e as supervenientes dos alunos: ainda agora as escolas a respeitam, apesar de abolida e substituída a lei, pelo facto de entenderem que ambos os modelos estão em vigor complementarmente. Ah! Imagina quanto tempo me demorou a descobrir a diferença entre a reprovação e a retenção: quase dois anos! Bem, e eu sou formado. Calculo que o resto do País deve continuar às aranhas com isto, mesmo abolida a diferença, como ocorre na prática. Ainda hoje atendi na Policlínica uma Dr.ª Leonilde que, coitada, anda há vários anos, sem horário lectivo, em apoio à biblioteca da escola. Uma recuperação muito demorada dum esgotamento profundo. Mas é uma boa mulher, cheia de saudades dos alunos e das aulas. Para experimentar, perguntei-lhe como era esta baralhada das retenções, então agora os alunos não reprovam? Meteu os pés pelas mão e não foi capaz de explicar. No fundo, parecia-lhe que, de facto, hoje em dia as reprovações eram para casos muito raros e ficou por aí. Claro que está muito diminuída e não intervém no activo...

 

-...Não, nem sequer estou contra o dispositivo avaliador e a nova nomenclatura. Concordo que até pode ter benefícios, depende de como for a prática. Mas aqui é que é o diabo. Sabes como o explica o Eng. Meireles, o tal inspector meu conhecido que presidiu antigamente a uma Direcção? Do lado dos professores, o entendimento universal foi que, se um aluno reprovado não podia ser retido, então deveria passar também na avaliação e desataram a dar-lhe as notas de três de que ele precisava. E pronto, com a tendência para manter o que vem de trás como vigorando indefinidamente, eis como no nono ano todos tendem a atingir o diploma, mesmo os analfabetos de facto. O pior, todavia, não é isto. Ele acredita que os docentes acabaram de braços caídos por se verem desarmados, sem autoridade nem poder de educar ou instruir. Então que lhes adianta tentarem endireitar o mundo? Parece estúpido, quando a lei lhes pôs tudo na mão novamentte logo a seguir. Só que eles não acreditam que seja isto e ninguém faz nada para que acreditem, há estes anos todos...

 

-...Que é que os pais têm a ver com isto? Homessa! Queres ver? Quando fomos a Lagos de férias, tivemos no verão de há dois anos, como vizinhos, um casal novo de professores duma das Preparatórias duma vila das redondezas. Andavam indignados. Tinham tido um aluno, filho dum cacique lá da zona, dono duma empresa de enchidos. O rapaz o ano inteiro fora um mandrião malcriado, daqueles que têm o rei na barriga e fazem pouco de toda a gente. Só teve negativas em ambas as cadeiras deles nos três períodos. Indisciplinou permanentemente a turma, uma dor de cabeça para toda a escola. Ainda por cima muitos professores temiam retaliações por parte do pai, uma vez que tinham familiares empregados na empresa dele, por isso não queriam mexer em nada, tomavam-lhe a defesa a contragosto. Ora, aquele casal achou que era urgente pôr cobro a tanto dislate e, para além das duas negativas deles no fim, entenderam que o miúdo devia ser retido, até para separá-lo da roda de amigos da turma que estragavam todo o trabalho escolar, deles e dos mais. A proposta vingou em Conselho de Turma. Avisaram a família, a pedir consentimento, já que não era a primeira retenção (como vês, continuam a praticá-lo, mesmo após abolido na lei). O pai fechou-se em copas, nem chus nem bus, mas entretanto comentava com os comparsas na vila: “Atão agora querio o meu consentimento p'a reprovar o rapaz? Num faltava mai nada! Comigo num contem!” Decidiram na gestão levar o caso a Conselho Pedagógico, até porque era o mais grave da escola a nível disciplinar. Votaram ali pela retenção do aluno, com as mediddas de recuperação que entenderam adequadas. Adivinhas o que lhes caiu em cima a seguir? Recebem uma carta duma firma de advogados de Lisboa, com nomes sonantes, nestes termos: ou cancelavam de imediato a decisão ou eram logo todos processados. Como ninguém quer problemas, olha, meteram o rabinho entre as pernas, foi tudo para a gaveta e o gabiru lá continuou a reinar fora da lei, a coberto do papá, sem retenção nenhuma e também sem negativas que o reprovassem. Tal e qual como os restantes mais, calculo, que até nisto os profesores cederam, tão atemorizados ficaram todos. Já vês como é... Tive pena do casalito: novos, idealistas, cheios de sangue na guelra, generosos, ainda a acreditar que podiam ir endireitando o mundo e zás! Ali com as pernas cortadas rente!

 

-... Tudo ilegal, não é? Claro! Mas também tudo legal, se os dois Despachos estão complementarmeente em vigor, como tendem a interpretar nas escolas. É que, à cautela, o elo mais fraco protege-se. São fatalmente os professores: tudo lhes cai em cima, de todos os lados, e ninguém os defende, nem a tutela ministerial que era a primeira a dever fazê-lo. Não, agora é normalmente a primeira mas é a malhar-lhes em cima. Então que era de esperar dos docentes senão muita cautela e prudência? É perfeitamente compreensível...

 

-...Está bem, isto é mais um caso-limite. Não conheço também outros de tal jaez. Agora, indica bem para onde tendem as atitudes de todos, sem chegarem ao extremo. A minha mulher ouviu há semanas no talho uma conversa. “Então, o Quim safou-se?” - perguntava o talhante a uma cliente. “Claro! A escola perguntou se a gente queria que ele reprovasse. Ora, quem são os pais que querem tal coisa?! Só alguém muito reles, dos que votam ao desprezo ou ao abandono. Íamos lá agora fazer mal a um filho!” - foi a resposta da senhora. Tal é a postura universal, não deves encontrar uma em cem que entenda em termos pedagógicos a autorização de retenção a que vocês obrigaram, no princípio, a escola e menos encontrarás alguém que saiba que isto já foi extinto na lei há uma dezena de anos atrás. Para a generalidade dos progenitores, outra atitude até pareceria mal. E não creias que é só com os analfabetos: uma das minhas pacientes ocasionais é chefe dos correios. Tem um filho a entrar agora na Universidade e, nos anos do ensino obrigatório, foi confrontada com o mesmo. Pois olha, ainda me recordo que numa das vezes, apesar de ele ter seis negativas no fim, ela optou pela transição. E o filho é um calaceiro, ao que ela conta, não tem, aliás, mais problema nenhum: é o caso mais vulgar possível. A escola convida a preguiçar com este tipo de normas organizativas, e eles aproveitam para passar nove anos de ensino obrigatório sem estudarem nada, na preguicite mais aguda. Repara que nisto os alunos até são saudáveis: sacrificarem-se, suarem as aprendizagens para coisa nenhuma, é que era um masoquismo – isto é que constituiria doença. Claro que depois acumulais mais de oitenta por cento de negativas no décimo ano. É a primeira vez que eles são avaliados a sério, sem distorções nem pedras na engrenagem. É o consenso dos educadores que manda, sem artificialismos a desviar nem coacções impostas de fora por burocratas. Ali, finalmente, vemos a verdade do que vós andais a impor às escolas e às novas gerações do País. Aí é que ressalta como é traiçoeiro o mel das palavras, das conclamadas boas intenções, a esconder, a mascarar a tremenda punhalada pelas costas com que continuais a liquidar-nos a todos o futuro...

 

-...Catastrofista? Não estou a ser nada... Não ignoro que hoje nenhum aluno transita com seis negativas. E que vocês têm vindo a remendar, a remendar, todos os anos, o fato roto. O meu espanto é que continuem com a mania dos remendos em lugar de vestirem a roupa nova duma vez por todas. Até porque é o que está na lei, é só explicitarem-lhe os efeitos, se é que de facto os querem. Isto é que vos desmascara: não há vontade nenhuma de resolver o problema da ignorância universal dos alunos ao fim de nove anos de escolaridade, o que quereis é continuar com as camuflagens, a ver se o ludíbrio, que pegou tão bem no País amorfo e alheado, se prolonga indefinidamente. Doutro modo, a resposta era óbvia: bastaria clarificar tudo, o que redundaria, na prática, em estender a avaliação do Secundário, a que vigora sem equívocos nem entraves do décimo ao décimo segundo, aos Ciclos anteriores (adaptada a escala de zero a vinte à de um a cinco e à descritiva da Primária). Se vocês têm a cura à mão, por que andam com paliativos? As mezinhas são para atirar poeira aos olhos do povo, mais nada. Não venhas aí com racionalizações, que aquilo não pode ter justificação nenhuma.

 

-...Ainda bem que falas na anedota do plano de recuperação do aluno no terceiro período. É para rir e vocês continuam a recusar abrir os olhos. Repara, ninguém tem nada contra uma avaliação extraordinária ou especializada nas férias lectivas depois de março, ou antes mesmo, com as medidas a tomar para cada aluno negativo. Ainda mais agora, com a paragem das aulas fixada aí (até quando?), em lugar de flutuar para trás e para diante com a data aleatória da Páscoa, a probabilidade de ter alguma eficácia aumenta. O problema não vem disto, mas do que teimam depois em manter na lei, quando ambos os Despachos se entendem em vigor, como na prática ocorre: se o aluno não for submetido a tal procedimento, então parece que não poderá ser reprovado no fim do ano. E, na dúvida, já vimos como as escolas tendem a operar, defendendo-se... À letra, isto implica, por exemplo, que no Primeiro Ciclo todos os alunos terão garantida avaliação positiva até ao 5.º ano, mesmo que não aprendam rigorosamente nada. É que cada professor esgota todas as possibilidades e recursos ao dispor dele no estabelecimento logo desde o princípio das aulas, não fica à espera do derradeiro período. Mesmo que faça avaliação extraordinária e especializada (e quantos deles dispõem de meios para efectuar esta?), não tem mais nada com que recuperar o aluno no fim do ano. Ora, todas estas escolas se encontram, por norma, em idêntica situação. Logo, em junho, terão de avaliar, por imposição legal (no tal entendimento tendencialmente generalizado das duas leis em vigor), todos os estudantes com notaçã positiva, independentemente do que aprenderam ou não. E eis como uma medida bem intencionada devém numa perversão massiva e sistemática. Claro que a legislação que vigora de direito evita isto, só que ninguém diz qual ela é inequivocamente, há anos e anos. E, na ambiguidade, tudo continua como dantes. É um pesadelo.

 

-...Ai não?! Pois digo-te mais. Sabes onde aquilo já levou numa zona de população estável, agrária, ali à volta de Santiago do Cacém, Grândola, Sines, Milfontes...? Fui lá fazer um colóquio para professores, integrado numas jornadas pedagógicas dos Centros de Formação da zona, acerca de saúde emntal. Confirmaram uns atrás dos outros isto que um de Odemira contou: primeiro, ainda não conseguiu um aluno para amostra que recuperasse durante o terceiro período lectivo, ele e os Conselhos de Turma é que vão deitando, deitando água benta na avaliação final e depois a informação dos alunos negativos já não corresponde a nada de real; segundo, e é o mais importante, a miudagem apercebeu-se de que esta é que era a regra do jogo e agora, olha, de ano para ano, cada vez tem mais alunos que tratam de garantir, no fim do segundo período, uma positiva tangencial, de modo que o professor não lhe faça avaliação extraordinária nem especializada. E pronto. Não põem mais os pés numa aula até ao fim do ano, que já estão garantidos. A lei proíbe a reprovação deles, na tal interpretação dominante do que está em vigor, o caso fica logo arrumado ali. Alguns dos participantes no debate até referiram que ainda são gozados, quando pretendem levar um ou outro a mudar de atitude. Fazer pouco dos docentes na cara, impunemente e, pior ainda, vitoriosamente! Já pensaste no que seria uma coisa destas no nosso tempo? Depois não queres que eu diga que vocês, lá no Ministério, andam loucos!

 

-...Metáfora... Era bom, era! Mas é mais no sentido real que metafórico que to afirmo. Tenho lá no internato do hospital, regularmente, um esquizofrénico divertido, vem do norte. Nunca ninguém logrou falar com ele, mas o caso é que ele não faz outra coisa senão falar, com a mão junto do ouvido, a imitar um telefone. Em março transacto, lembras-te daqueles dias gelados? Até apanhaste aquela alegia que derivou em gripe... Encontrei lá o rapaz na ocasião. Uma vez, ia eu a entrar, andava ele junto ao átrio, para trás e para diante, muito atarefado a interpelar alguém incógnito, numa alucinação estranha. É que, para além do frio de rachar, nessa manhã choveu a cântaros horas a fio. Ora, o que eu lhe ouvia era isto: “Este calor é insuportável, é um sol pior que o do deserto. Estamos para aqui a morrer à sede, vê lá! E ninguém nos ajuda, daqui a bocado nem me aguento de pé, vou tombar para o lado e morrer, abandonado à soalheira. Água, não há em lado nenhum...” Haverá assim tanta diferença entre isto e a tua fuga para a idealidade dum sonho utópico a que não corresponde realidade nenhuma? E é mais grave ainda quando constato que é partilhado por milhares de sequazes no Ministério inteiro. Dado o efeito de contágio, isto é uma epidemia institucional de que ninguém fez o diagnóstico até agora.

 

-...Ri-te. Ri-te. É bom descobrir que pretendem pôr cobro a tudo aquilo. Vamos a ver é o que conseguem... Até porque, mesmo retirando aqueles pedregulhos da engrenagem, falta descobrir os que lá porão em troca...

 

-...Qual má vontade, pá?! Não é! Apenas constato o que tem vindo a ocorrer até agora, anos e anos pegados. Repara só no que engendraram para o regulamento disciplinar dos alunos. Não lembrava ao diabo!

 

-...Hoje não dá tempo. Queres mais um copo? Não? Tenho de entrar no hospital de manhã, por ora ficamo-nos por aqui. Eu não mando no Ministério para ter o teu horário livre. Mas lembra-me depois, que eu tenho umas boas para te contar no âmbito da disciplina da rapaziada... Até lá! Boa noite!

 

 

 

 

 

 

 

 

Mazela 2

 

 

- Olá, boa tarde. Despachaste-te cedo. Anda ver a novidade que hoje me trouxeram: pezinhos de coentrada, especialidade de Montemor-o-Novo, para acompanhar com um tinto de Borba. Já sei que não aprecias os petiscos populares, para ti só de Porto ou Madeira para cima. Não sabes o que perdes. Eu também era como tu, antes do apoio aos departamentos de Psiquiatria dos Hospitais Regionais. Aqueles aninhos foram do melhor, em termos profissionais mas principalmente pessoais. E uma das vantagens foi esta. Abriram-me o apetite para quanto há de bom nos segredos populares. A gente fina, com todo o pedantismo, o pretensiosismo dela, é demasiado superior para rebaixar-se a tais ninharias. E é bem feito, perde o melhor da gastronomia, é o castigo que merece.

 

-...Curioso, eu também nunca apreciei em particular o sabor do Borba e menos ainda do tinto. É por isso que estou para ver a combinação. Os pais do meu paciente que mo ofereceram garantiram-me que é de chorar por mais, mas que tem de ser desta qualidade, estás a ver? Da Cooperativa, com a marca de qualidade da região demarcada. Os outros já não resultam, que são menos apurados. A falar verdade, para mim estes são a zurrapa dos vinhos alentejanos. Gostos não se discutem, não é? Os meus colegas de Estremoz quase todos os preferiam, vai da habituação também. Enfim...

 

-...Não não é um doente ligado à escola. Isto é um casal com um filho oligofrénico, lá da região, não tem nada a ver... Bem, ele frequenta a escola e até vai singrando, um bocado aos tropeções. Com um problema daqueles até não é mau.

 

-...Ah, ah, ah! É boa! O Ministério da Educação como um alfobre de oligofrénicos... Podes acusar-me de tudo o que quiseres, mas de tal anedota, não! Todos fazemos generalizações, evidentemente, nem há outra maneira de conhecer. E nelas é inevitável o risco, a margem de erro, a probabilidade de falhar. O itinerário da ciência é o fruto disto, não é verdade? Vamos eliminando franjas de escuridão, mas sempre inexoravelmente na mesma lógica, o que implica idêntico limite logo adiante, e assim indefinidamente. Não há como fugir. E não ir por aqui era ficar no escuro da ignorância completa, sem uma velinha sequer. Seria pior a emenda...

 

-...Ah, mas não fiques tão descansado! Queres ver? Não, não vou defender que a oligofrenia veio da sala de aula. É outra coisa. Quando vocês obrigaram os professores a aplicar a avaliação contínua no tal primeiro modelo que foi abolido mas continua na prática em vigor, como um papão escondido atrás da porta, apareceu-me logo um número incontável de novos doentes com sintomas de stresse: isto era previsível a partir dos hábitos anteriores – os docentes dão aulas a partir deles próprios, os alunos ficam inertes a ouvir o tempo todo, há dois testes por período, uma nota atribuída no termo. Por que varinha de condão poderiam repentinemente pular disto para avaliarem a tempo inteiro, todos os dias, relativamente a todos os alunos? Ninguém via como e é, de facto, inexequível, como sabes muito bem. O Dr. André, aí duma das escolas de Loures, só à conta dele, encaminhou-me lá para o consultório, seguramente, uma dúzia de colegas. Nada de grave, evidentemente: um aumento generalizado da ansiedade, a gerar insónias, fadigas no limite, baixa do limiar de tolerância e de auto-domínio, explosões de irritabilidade, agressividade ao menor pretexto, um síndroma vulgar mas generalizado. Uns calmantes resolvem-no sem dificuldade de maior.

 

-...Que é que tem a ver com os oligofrénicos? Tudo. As mazelas dos mestres quem as paga são os alunos. É, é verdade, nem que eles o não pretendam. É fatal, que ninguém escapa ao contágio da empatia e ao ambiente dos climas emotivos que desencadeia.

 

-...Todos os meus doentes em idade escolar revelaram uma sintomatologia de agravamento paralelo naquele período. O Dr. André, na ocasião, era Presidente do Conselho Directivo na escola. Foi por estas funções que me desatou a canalizar clientes para a clínica. A mulher dele teve um esgotamento há anos, foi minha paciente e ficou-nos daí o relacionamento, de vez em quando ainda nos telefonamos. Explicou-me o panorama do estabelecimento, do lado do corpo docente. Havia lá um colega, um tal Miguel, que andava desvairado. Era um dos melhores professores de matemática, embora com metodologia toda tradicionalista: permanentemente expositivo, com exercícios, trabalhos para casa, pontos... E, claro, umas chamadas ao quadro, pelo meio do itinerário. Mas ia obtendo bons resultados, devido mormente a um empenhamento com muita garra e a uma relação pedagógica viva, atenta, aqui e além personalizada, com os alunos cumpridores mas mais tacanhos. Ora, o Miguel, ao que me contou, gritava a torto e a direito como é que ia dar conta da avaliação contínua: deixava de explicar, eliminava a exposição, punha os alunos a resolverem problemas sem primeiro se apoderarem dos saberes, resolvia dúvidas individualmente...? Tudo, para ele, era uma quadratura de círculo irresolúvel. Qualquer que fora a via adoptada levaria a maior perda que vantagem, relativamente à prática em que era destro. Foi um fermento de revolta na escola durante meses e meses.

 

-...De acordo. Fiz a mesma conversa ao Dr. André: o Miguel pode ser um luminar no método expositivo, há indubitavelmente autênticos artistas em qualquer que seja o modelo. Por quê, para quê mudar? Mas andam aqui misturados dois problemas. O meu amigo pôs-me a questão nestes termos: “Também julguei deste modo até me caírem na escola duas estagiárias, por acaso de Matemática, que me abriram os olhos – elas deram os programas inteiros em jogos didácticos encadeados: o problema da quinzena, a maratona da matemática, as olimpíadas, com equipas, campeonatos, resultados ordenados, prémios... Foi um entusiasmo tão grande pelas matérias que a aprendizagem disparou e os níveis de notas dos alunos ultrapassaram tudo o que eu tinha visto até aí.” Ora, este é o primeiro ponto. Não há dúvida de que os métodos activos, bem executados, têm potencialidades para que os passivos nunca terão unhas, não é? Então é justificado mudar, vamos para o que tiver mais potencial. Mas aqui é que vocês cometeram a argolada.

 

-...Correcto, correcto. Ninguém impôs a obrigatoriedade das metodologias activas em aula e ainda bem. O erro não foi não as terem imposto e ficarem pela indicação e apelo. Isto foi bom, até aqui concordo: qualquer pedagogia imposta devirá na prática, permanentemente, sem excepção, anti-pedagógica. Não ignoraram, quanto à didáctica activa, este princípio-base. Mas então que dizer da obrigatoriedade da avalição contínua, imposta no primeiro modelo legal?

 

-...Não acredito no que estás a dizer! Com que então, um vector irrelevante? Olha, o Dr. André pôs tudo muito clarinho. Ele nem sequer reagiu àquela imposição, sabes porquê? Porque já a praticava, opera nas aulas com o método de inquérito, como charneira permanente. Como parte da recolha dum evento concreto, questionando-o a seguir, em busca do que os alunos forem logrando elucidar, reflectir, analisar, conduzindo-os, com as perguntas, degrau a degrau, até à reconstrução do programa, é claro que os tem permanentemente activos diante do nariz. Daqui resulta que avaliar constantemente, de modo informal, é o que ocorre dia a dia, minuto a minuto. Agora vê as contas dele: não chega a ter lá na escola nem dez por cento de colegas a trabalharem com um método activo. Ora, só estes é que podem dar cumprimento à imposição legal (claro que foi abolida, mas apenas no papel – e ninguém acredita muito nisto, até a restauraram nos regulamentos internos...). Sem metodologias daquelas ela é inexequível: avaliar de hora a hora uma turma a ouvir, parada, um professor a falar? Quem diabo se elmbrou de tal asneira? Só se for para avaliar a soneira que dá nos alunos...

 

-...Aí é que te enganas. Não vês a perversidade que é pressionar os educadores para a didáctica activa por uma via enviesada destas? É pior que obrigá-los descaradamente. Isto perverte até a relação com a tutela: que credibilidade vos resta, a seguir, com esta falta de transparência e lisura, para o diálogo com os sindicatos? Vocês não medem os efeitos? A partir de posturas destas é que toda a gente fica depois de pé atrás... Como acreditar, por exemplo, que o segundo Despacho de avaliação anula mesmo o primeiro e que não é, ao invés, uma ratoeira para pegar os incautos e os crédulos?

 

-...O pior, pior mesmo, é o resultado nas escolas. O Dr. André contou-me o evoluir do corpo docente na dele. Queres ver? Em primeiro lugar, todos os professores trataram de encontrar uma estratégia qualquer para os defender, pondo-os em conformidade com a lei. Imaginas o que foi? Muito simples: desataram todos a multiplicar as avaliações intermitentes que faziam antes. Em lugar de dois testes por período, olha, tem lá um monte de gente que elabora uma ficha semanal, ou que obriga os alunos a trabalhos escritos múltiplos, regularmente, e assim por diante. Não tem um único caso em que alguém tenha trocado a didáctica tradicional por uma activa, como efeito disto. E ele jura que tal é o panorama do País inteiro. Um terço dos professores da escola roda anualmente, os eventuais que estão em trânsito. Ele confirmou-me o que estes lhe contam: em todas as escolas viram o mesmo. Portanto, aí tens...

 

-...Também não venho afirmar que isto é uma catástrofe. Tem, porém, dois efeitos que lentamente apodrecem tudo. Ainda hoje à tarde, numa consulta, ouvi uma tal Prof.ª Etelvina. O tema veio por acaso à baila e, claro, ela afirmou, convicta, que anda fazendo avaliação contínua. Depois falámos dos métodos e estratégias: deve, coitada, dar as aulas mais chatas que poderíamos imaginar. É uma espécie de Filha de Maria muito ingénua, todavia generosa, só que bastante tapada: dá Ciências a expor do princípio ao fim, imagina bem! Nem logra entabular diálogo durante a aula, que fica perdida. Como é que isto permite, no fim, avaliação contínua? Olha, porque “toma tudo em conta!” Queres acreditar? É tal qual como ela mo explicou ainda agora. Quando lhe pedi para me exemplificar o que englobava naquele “tudo”, repara, foram pormenores como se um aluno é irrequieto ou não, ou então falador, se a interrompe com dúvidas, – e isto para ela é negativo, estás a ver, porque a leva a enredar-se no itinerário – como é simpático ou antipático e, por fim, a imagem global que lhe deixa. Em resumo, é tudo subjectivo e não houve um único item ligado à aprendizagem curricular. Impressionante! Adivinho que me argumentarás com o desenvolvimento da sociabilidade e não recuso como importa cada vez mais. Quero é sublinhar quanto a Etelvina está desviada do rumo e conteúdo da avaliação contínua. Ela nem imagina como é diferente e tão estruturalmente encastrado no currículo programático o que uma didáctica activa permite! O que o Ministério conseguiu não foi levar os educadores a largar a metodologia passiva, mas a desatarem a chamar avaliação contínua a uma contrafacção dela. Agora ninguém entende o que aquela poderá ser. Antes ainda lograriam aprendê-la, ao treinarem um método activo qualquer, nas estratégias dele. Doravante é tudo confuso, fecharam-lhes a porta com aquela imposição. Lindo efeito!

 

-...O outro lado? Não, o Dr. André tem-me contado que lá na escola dele nem um colega para amostra lhe resta que use exclusivamente o método expositivo. Já vês!... Não deve nada andar longe da média nacional. Mas diz mais e que é igualzinho em todo o lado: afora os raros dez por cento que se norteiam por métodos activos, os restantes noventa por cento agora usam o método coloquial – um quarto de hora a expor, dez minutos de debate, de exercícios, de aplicações ou de dúvidas, outro quarto de hora de palestra, toque de fim de aula. E o modelo é retomado e retomado. Pronto, é um degrau em frente, tudo bem. Agora, tens de reconhecer que isto fica muito longe ainda duma didáctica activa – o discurso continua do mestre, centrado nele, com a parte de leão por ele ocupada, com o rumo e o conteúdo pré-programados e controlados estreitamente, ali, com rédea curta e assim por diante... Avaliação contínua nisto? O aluno quase nem tem recanto nenhum onde mostre algo de seu... Avaliar um eco, um papagaio?… Hás-de concordar que a diferença para a escola tradicional é diminuta. Esta também tinha as chamadas orais, não era?...

 

-...Ora ainda bem que nisto estás de acordo. Depois, repara, como o acto de avaliar controla o sistema, ordenando-lhe o rumo do princípio ao fim, então, quando ele apodrece num marasmo de incongruências arbitrárias, é nisto que irá dar o resultado inteiro da rede escolar. Não admira o panorama em que caímos.

 

-...Não, não acredito no decreto da autonomia de cada estabelecimento. Bem, não me interpretes mal. Eu apoio-o convictamente, é um rasgo de utopia, daria sentido a muita coisa. O problema é de outra ordem: todos temos o fascismo cá dentro, governantes e governados. Quinhentos anos na lógica de ditadores e amordaçados não vamos facilmente ultrapassá-los do pé para a mão. Quantas gerações mais irão ser requeridas? Por muita autonomia que a lei dê, o problema é da cultura colectiva. E da escolar, particularmente. Quem se atreve a ocupar os territórios indefinidos e vagos que forem abandonados na mão de cada comunidade educativa? Fica tudo tolhido, à espreita da pide-inspecção ou do salazar-director (geral ou regional), não acreditando que não é uma rasteira, à espera da próxima punhalada pelas costas. E do vosso lado é o mesmo: como resistir a pôr o pé no pescoço de quem mexa, quando está ali mesmo a jeito e ainda por cima a aguardá-lo? O País é profundamente totalitário, tanto do lado do poder como da vítima, não vai ser leveiro mudar e, muito menos, rápido.

 

-...O pior é mesmo a generalização duma leitura superficial optimista e mentirosa. Deixa-te dela. Induz em erro, levando a crer que isto da democracia é apenas questão de poder ou não votar. A democracia do papelinho!...Ilude por completo a questão de fundo: o direito-dever de cada um se auto-assumir, auto-afirmar, auto-desenvolver, na reciprocidade de itinerários, nisto, sim, idênticos, dos demais. É uma tarefa de gigantes, não tens uma escola capaz de protagonizar nada deste teor em campo nenhum. A dependência do ditador é a mais total, neste ramo da vida do País. Contava-me há dias um colega teu esta história inacreditável: discutiram na escola dele (que é lá para as bandas do Seixal) em que sentido deveriam interpretar as “actividades escolares” para cumprirem o calendário anual de 180 dias. Então alguém lembrou que havia uma circular de interpretação autêntica disto, emanada lá dos teus gabinetes centrais. Deram-lhe cumprimento. Parecia que ficaria tudo arrumado. Ora, depois das propostas aprovadas, afinadas e rematadas de vez, não é que ainda há uma colega que, insegura e medrosa, vai telefonar para a Direcção Regional a perguntar qual é a interpretação que dão à interpretação?! Não é uma anedota, ocorreu: isto é que é a imagem da viabilidade de qualquer autonomia gerível pela comunidade escolar. Em que é que vais apostar, em que vais acreditar?… A realidade é aquela desgraça: a mais acabada auto-castração. Não é apenas questão de descobrir que normas de avaliação estão em vigor ou não, é uma atitude geral e colectiva, relativa a tudo.

 

-...Tá bem, tá bem, a sala de aula creio também que é o fermento viável que te resta. É, é verdade que ali há muito educador que é um perito e a relação pedagógica desbrava inesperados muito prometedores. Agora vires-me com a dúvida da indisciplina, não! Quem não for capaz de gerir a turma não aguenta como docente, viste isto tão bem como eu. A balbúrdia, a bagunçada, já me levaram à clínica gente demais. Ninguém aguenta aquilo muito tempo. Ou logra disciplinar os grupos ou tem de abandonar, a bem ou a mal: em menos de cinco anos fica taralhouco, é a estatística internacional. Autonomia, só no relacionamento correcto, equilibrado. Não há campos de treino na asneira.

 

-...Então eu iria agora ignorar que vocês finalmente regulamentaram a disciplina dos alunos de forma ponderada e quase sem buracos? Claro que bato palmas ao documento. Por aí qualquer professor teria meios para impor-se quando em aula houvera precisão. Em aula ou fora dela.

 

-...Exactamente. Eu lembro-me de que deixei isto pendurado a semana transacta, quando nos despedimos. Um pormenor que mostra claramente como não resta ponta de sensibilidade pedagógica em nenhum departamento do Ministério. E aqui tenho mesmo de afirmar que nem nos altos quadros administrativos nem políticos.

 

-...Como não, se vocês é que rubricam e dão luz verde às asneiras? É que a pedra aqui não tem nada a ver com a rotina dos gabinetes que vos não corre pelas mãos. Aqui subscreveram, não têm desculpa. Eu fui ver o documento, porque nem acreditava.

 

-...O que é? Ora, é a inacreditável burocracia a que obrigaram, na primeira versão, qualquer procedimento disciplinar: cabe na cabeça de alguém que para punir um comportamento grave de qualquer aluno seja requerido, à partida, elaborar qualquer coisa como uns dezoito documentos? Vocês naquele tempo enlouqueceram lá no Ministério ou quê? É que nem num processo-crime que implique pena maior um tribunal requer tal enormidade! Dei-me ao trabalho de o confirmar: uma advogada minha paciente ficou mesmo espavorida com aquele desconchavo. Se nem a segurança-mor do tipo de crime mais punível pelo Código Penal implica aquilo, que diabo pretendiam vocês com semelhante parafernália? Deram a lavrar tal dispositivo legal a um paranóico? Contrataram juristas lunáticos, com complexos de perseguição? É que isto é de tal maneira incrível, que alguém tinha de estar gravemente afectado. É a sério!

 

-...Claro que já anularam aquilo, simplificaram-no, mas olha que ainda resta uma página inteira de alíneas de diligências... E falta saber quando é que as escolas se convencerão de que esta melhoria é para valer, não é? Podem continuar a proceder à moda antiga, à cautela, que convosco nunca se sabe... Olha o que ocorre com a avaliação...

 

-...Eu não acredito no que te estou a ouvir! Uma questão de segurança?! Então já te esqueceste de que a escola não é nenhum tribunal, que um procedimento disciplinar não é um caso-crime? Um educador, mesmo quando disciplina, presta apenas um trabalho pedagógico. Isto é clarinho no tal regulamento disciplinar de que te ufanas. E com razão. Não vês que com o posterior burocratismo processual bloquearam tudo, é um modelo disciplinar, na prática, inteiramente abolido? Olha, vou-te contar vários exemplos. Uma Secundária dos Olivais, aqui em Lisboa, teria tido sessenta e dois procedimentos disciplinares, apenas no primeiro período, se tivesse podido lavrá-los. Só que, para nomear tantos elementos para instruí-los, teria de parar as aulas, pelo menos, durante uma semana – era quase metade do corpo docente requerido para dar conta daquilo. Com a quantidade de infracções graves, pancadarias, violência (incluindo a docentes e funcionários), era impensável acumular aulas e instruir autos, não havia nem energias nem tempo para aguentá-lo. Imaginas como resolveram? Contou-mo uma colega da Comissão Executiva, quando me trouxe a mãe dela à consulta, um caso terminal de Alzheimer. Olha que nem um processo levantaram! O regulamento disciplinar foi para a gaveta e pronto!

 

-...Não havia problema?! Tu não estás bom! Então eu conto-te o resto. Vocês lá no Ministério da Educação devem andar todos na lua. Vê, foi assim, tal e qual, nem que não acredites. Os dois alunos mais arruaceiros foram mandados compulsivamente aos balneários de Educação Física. Esperavam-nos os dois professores mais atléticos deste grupo. Deram-lhes um enxerto de porrada de criar bicho. E ai deles se abriam o bico, que então era logo outro a seguir. E nem julgar que bufavam cá fora ou no bairro, que então apanhariam uma espera das bem montadas: aí era para o hospital ou pior! Com os intratáveis foi deste modo. Com os outros, olha a receita: contactaram os pais que sabiam à partida que os desancariam e pintaram-nos com as tintas negras todas. Foram arraiais de pancadaria por tudo quanto era lugar. Nos dias seguintes, até as marcas das chicotadas nalguns casos eram notórias. E preveniram todos e cada um destes indisciplinados de que aquilo era para continuar: à primeira, apanhariam nova dose. Com este clima de terror, claro que a rapaziada serenou. É o que vocês, com o vosso angelismo irresponsável, conseguiram: transformar uma escola num campo de concentração. E não me venhas com o paleio de que é culpa dos educadores, a culpa é toda vossa, quando meteram um pedregulho daqueles na engrenagem. Inviabilizar um modelo disciplinar formativo como o que vigora! E nem sequer dar por ela! É inacreditável! Onde é que vocês andam com a cabeça? Que é que fizeram da vossa experiência, da sensibilidade pedagógica? Então não houve ninguém para ver os efeitos do que os ignaros dos juristas propunham, antes de o porem cá fora? Que lá a eles, como nunca deram aulas, ainda vá que não vá... Agora vocês, a nata dos pedagogos do País?!... Vá lá, que já arrepiaram algum caminho, mas o mal feito e a reprodução indefinida dele irá durar até quando?

 

-...Pois, o clima de terror é intolerável, de acordo. O facto, porém, é que o regulamento disciplinar também o ajuda. Com efeito, há nele um buraco a ultrapassar urgentemente. Repara que ninguém compreende o que quer dizer o legislador quando dispõe que, nos casos de alunos apanhados em flagrante, a escola deve usar os meios ao dispor, antes de socorrer-se de entidades externas. E depois, timidamente, refere que, ao fazê-lo, deverá ter em conta uma ordem de prioridades que provoque o mínimo de prejuízo. Isto é sibilino. Ainda não encontrei um professor para amostra que tenha entendido que aquilo é para legitimar o recurso à força física. Os juristas, sim, que o identificam logo com o estatuído para a intervenção das polícias e com a doutrina dominante, no âmbito penal, para o uso do direito de legítima defesa e do dever de protecção das vítimas e o que configura, neste contexto, qualquer excesso punível. Ora, com um texto regulamentar tão vago, as escolas continuam sem descortinar se têm ou não o poder de recorrer à força, nos casos-limite. Como tal as inibe, estes proliferam, impunes.Vocês têm de falar claro, que diabo!

 

-...Bem... No fim, ainda gozo?! Diz-me lá que não tendes todos a pretensão de não encontrar competidores à altura. O pior é que, se calhar, é verdade. Mas então a tristeza ainda é maior. Se o melhor é tão mau, que irá ser de nós?

 

-...Não desvies o problema. Não, não é questão de manterem nem de modificarem isto. Evidentemente que espero que reajustem quanto de torto vos for ficando ao alcance. Mesmo aí, porém, ainda estou para ver como ides vergar a resistência e a esperteza das eminências pardas. O Ministério vive enxameado de reaccionários prepotentes, muito bem treinados desde há quinze gerações, passando de pais a filhos, de antigos a novos, desde a era dos Descobrimentos. Ora, os quadros políticos e superiores, perante eles, são meros franco-atiradores de transição, não dominam a máquina nem os truques do aparelho. Pode muito bem ocorrer que as tuas declarações de intuitos não vão além disto: basta-lhes, por exemplo, retardar o movimento dos papéis. Se em média, quando não há resistência passiva militante, qualquer documento demora duas semanas a ir duma porta para a do gabinete ao lado, de que é que eles não serão capazes quando pretenderem mostrar quem manda? As papeladas devem criar bolor!

 

-...Ora, não te ponhas para aí a defendê-los! Os burocratas são o cancro de qualquer administração pública, infelizmente mais incurável do que os orgânicos. E então numa que há vários séculos foi serventuária de constantes ditaduras, imagina onde o requinte da perversidade terá chegado! Para já, ninguém lhes toca.

 

-...Pois, de acordo, o pior não são eles, infelizmente. E o que me aflige é mesmo o que implica corrigirem e ratificarem isto tudo ao vosso nível, entre vocês. São quem promove ou impede tudo. Que mudará aí? No resto...

 

-...O País, o ensino, a educação, o desenvolvimento das novas gerações escolares, até este ponto não tenho qualquer dúvida de que, se findarem com as distorções, as pedras na engrenagem, os obstáculos artificiais colocados nos pontos estratégicos, todos beneficiarão dum enorme salto qualitativo para melhor. Isto apenas ainda não ocorreu pela vossa incrível cegueira e surdez, por alheamento ou incompetência que quase rondam o criminoso. É que o efeito desta postura é o adiamento indefinido dum País inteiro. Qualquer povo apenas pode singrar e ombrear no palco das nações pela qualidade e saber dos indivíduos e comunidades que tiver. Uma escola que nos impede a melhoria apenas nos condena a eternos criados dos demais. É o que vocês, até agora, nos andam a fazer.

 

-...Está bem, está bem. Imaginemos então que retiram estes e outros travões que impedem o sistema escolar de operar em pleno, enquanto aparelho. A minha dúvida provém do vosso triunfalismo. Repara no tom da entrevista do Secretário de Estado que vem hoje aí num diário qualquer.Tem o rei na barriga, é um político infalível e, ainda por cima, sabe tudo. Mas isto é um caso. Claro que reparei que costumas ser mais cuidadoso. Todavia, para ser franco, não chega. A asneirada vai continuar.

 

-...Admito que o confronto político requer o teatro do ataque e da defesa. Mas, por um lado, há maneiras e maneiras. Por exemplo, ele não fica eliminado quando mutuamente se reconhecem as vantagens, os benefícios, as conquistas objectivamente atingidas, para depois se referirem as debilidades, as derrotas, as insuficiências, terminando com os caminhos alternativos, os modelos até então marginalizados e assim por diante. Isto é que seria um confronto sadio e não o sectarismo do mútuo rebaixamento constante em que andam todos para aí a afundar-se, para descrédito da democracia e da saúde mental dum povo. Mas não era por aqui que eu pretendia alertar. Claro que isto também é atitude e postura, mas é um outro aspecto. É a história do diálogo e da autoridade.

 

-...Não, não os condeno, sabe-lo muito bem. Condeno é que sejam mero folclore e para encobrir que não fazem aquilo que deveria ser feito. Quando fui o mês transacto ao Porto, pediram-me para conversar ao serão numa asssociação cultural, lá numa vilória periférica. Havia um grupo de Educadoras de Infância que me interpelaram por causa do currículo pré-escolar. Não ignoras como é pouco recomendável qualquer programa de características escolares em idades tão baixas, mesmo no termo da segunda infância, na faixa dos quatro a seis anos. Falávamos disto quando uma me perguntou se era de responder ao inquérito da Direcção Regional relativo àquele tema. Quando eu fiquei perplexo por não compreender porque não, ela retorquiu (e as outras acompanharam-na): “Ora, então não sabe que já têm tudo cozinhado quando nos perguntam? Não adianta nada o que a gente diga. Já foi assim com o calendário anual para a rede pública do pré-escolar. Quando eu ia entregar os impressos (por acaso tive de ir ao Porto e aproveitei), olhe, mostraram-me lá o que já estava pronto para mandarem para as escolas.Eu ainda cuidei que era, se calhar, um rascunho. Qual o quê? Veio tal e qual, em tudo de que eu me lembrava. Para que é que nos andaram a entreter com a papelada? Foi apenas para atirar poeira aos olhos...”

 

-...É verdade, no Regulamento Disciplinar dos alunos tiveram mesmo em conta as propostas e os consensos criados. Não haverá muitos casos mais, mas pronto. Claro que a correcção dos pormenores críticos da Reforma que prometes também partirá daí, senão nem dariam pelos aspectos de organização, de regulamentação ou de imposição legal que andam a bloquear todo o funcionamento do sistema escolar. Muito bem. Mas o que te queria dizer é que nem é sequer problema de diálogo. Quem te garante que, introduzidas as afinações de pormenor, não se mantêm outras a coberto da cegueira e da surdez institucionais? Quem te garante que não são introduzidas outras anormalidades que passarão tão despercebidas como as que temos vindo a comentar?

 

-...Ora vês? Não há garantia nenhuma. Logo, tudo irá continuar na mesma, do lado do Ministério. Mas mal os efeitos da melhoria de eficácia devenham notórios, eis-vos logo embandeirando em arco, berrando aos quatro ventos como tinham razão e que enorme qualidade a dos respectivos desempenhos! E aqui não há como fugir: são vocês, os políticos, que arvoram permanentemente estes pendões de glória. Os técnicos e os administrativos, esses ficarão permanentemente na sombra, têm os tachos garantidos para a eternidade, de geração em geração, como de há quinhentos anos a esta parte. Mesmo quando é a primeira vez. É curioso.

 

-...Legítimo, evidentemente que é: quem é que não gosta de ver a obra dele reconhecida e valorizada? Não critico isto. Mal seria que em democracia não fôssemos olhando às obras, pouco mais nos resta como critério de escolha, que lá pelo palavreado, entre uns e outros que venha o diabo e opte. É o reino da aldrabice encantatória. Se fossem levados a tribunal pelo crime de seduzir, os políticos portugueses já estariam todos na cadeia. Ah, pois, talvez algum apartidário fique de fora. Mas eles também não fazem carreira da política, não é?

 

-...Desculpa, desviei-me. Sabes o que pretendo? Num caso vais vê-lo melhor. Tenho uma paciente de longa data que é lá uma funcionária na décima repartição. É uma ansiosa crónica, nada de particularmente grave, mas vive permanentemente perturbada com desequilíbrios dali provenientes. Um daqueles casos de personalidade frágil que a vida inteira requer vigilância e apoio atento, mais nada. Bem, mas não é isto que importa. O facto é que talvez há meio ano me apareceu na consulta e então a fonte maior de perturbação dela era exactamente esta problemática toda de como reajustar o sistema escolar para lhe estancar os enormes buracos em que opera em perda. Sabes como ela resolvia tudo? Pela via mais elementar: “Os grupos de trabalho andam a listar os reajustamentos a fazer e pronto. Depois de os porem nos regulamentos já podemos viver descansados. Acabam logo estas acusações, as críticas, os ataques, não é?” Para ela, com a ansiedade que a marca, tudo se resumia a isto.

 

-...Ora vês como tu cais na mesma armadilha? Aquilo pode até resolver um problema, mas repara que deixa de fora um ror de vectores e que são os mais importantes para a intervenção do vosso lado, o dos políticos e quadros superiores. Se querem sobreviver e servir adequadamente o País, têm de mudar de atitude e prioridades. Um dirigente sindical que ando a ajudar a escapar duma grave depressão pôs-mo muito a cru, anteontem. Comentava ele: “Olhe, Dr., isto, mesmo que eles limpem o terreno, desarmadilhem tudo, tem de ser tomado como um mero exemplo, um afloramento. Embora seja muito bom que o resolvam, o mais importante era descobrir porque é que ocorrem estes travões na engrenagem e quem os coloca. Era compreender porque duram anos e anos até que alguém resolva retirá-los. Isto é que é grave. Agora aquela atitude de os ir arrumar na prateleira e pronto, doravante já está tudo bem, é de quem não compreendeu ainda nada. E sabe que mais? É o que me põe doente, percebe?” Eu julgo que ele tem razão. O problema da crónica incompetência pedagógica dos gabinetes do Ministério só ficará resolvido quando enfrentatrem nas práticas, eficazmente, estes dois vectores: o que origina sistematicamente as distorções, para o eliminarem; o que pode evitar que amanhã caiam novos pedregulhos na via, para o porem rapidamente a operar. Enquanto o não fizerdes, depois de cada Regulamento Disciplinar suficientemente equilibrado, cheio de utopia viável, brotará de qualquer outro canto uma norma processual inesperada que o inviabilizará por inteiro. E o pesadelo jamais findará.

 

-...Lá vens tu com o exagero! Olha que é mania! Encontra-me uma decisão que, desde 74, no âmbito da educação, não seja ou uma escolha desequilibrada ou então uma proposta saudável inovadora acompanhada duma contramedida que a inutiliza. Só te pergunto por uma. Quase juraria que a não encontras. Eu, quanto mais professores e agentes escolares trato e ouço, mais me convenço de que não há mesmo. Nem uma para amostra! Como não há-de andar esta gente toda adoentada? Com semelhante teor de vida comunitária, muito saudáveis e resistentes são eles todos!

 

-...Ai tu ainda entendes o inquérito remetido às escolas como o verdadeiro diálogo?! E que é neste diálogo que encontras as soluções? Mas que anjinho me andas a sair! Nem sabes então que eu tive de medicar vários elementos dos grupos de trabalho de tratamento de dados, antes que se afogassem de vez. Pareceu quase uma neurose experimental colectiva, imaginas? Semanas inteiras sem vislumbrarem ponta por onde pegar naquela montanha de arrazoados e contradições e vocês e as escolas e os sindicatos a pressionarem, a urgirem... Passa-vos tudo ao lado, até mesmo lá dentro, não é? Não admira que nem vejam o País...

 

-...Arranjarem uma estratégia, arranjaram. E listaram uma série de ajustamentos, senão vocês ainda andariam às aranhas, à procura do que nos coloca na cauda do mundo nas aprendizagens escolares. Mas o problema é doutra ordem. Aquele dirigente sindical contou-me como eles se encontraram quando pediram o mesmo aos colegas. Afogados, é o termo. Afogados em tantos, tantos pormenores, perspectivas, propostas, achegas, sei lá, que era por inteiro inviável traçar um rumo. Foi a um dos meus colóquios. Tinha contado umas dezassete escolas da margem sul do Tejo, até Sines, que haviam convergido numa proposta (que por acaso vocês ignoraram por inteiro) para reajustar o ensino nocturno. A pergunta dele era: “Isto é diálogo?” É que ele não via como é que uma avalanche inabordável de resposstas que até impediam de ver convergências como a que ele recolhera (ou, se não impediam, ajudavam muito a convencer que impediriam, quando, afinal, os serviços estejam é muito empenhados em permanecer cegos), não via como é que isto pode ser diálogo, mesmo no domínio retorcido da política. Eu também não vejo, entendes? Isto é mera perversão do que é ouvir a sério e buscar caminhos.

 

-...Ai não vês qual é a alternativa? Mas ela está diante do teu nariz. Não é nada o retorno ao autoritarismo, que disparate! Olha, durante o debate da proposta de Desenvolvimento Curricular da Reforma Educativa, nos princípios de noventa, fui ao Hospital de Vila Franca de Xira, a convite dum colega, para conferir um caso bicudo que lá tinham em tratamento. Depois, como um filho dele frequentava a Secundária e calhou no dia em que lá promoviam um debate com o grupo de trabalho mentor da proposta, deslocámo-nos ambos à escola. Tive a oportunidade, durante a merenda que partilhámos ao fim, de conferir com o ex-ministro Prof. Fraústo da Silva como é que eles tinham elaborado o projecto. Este é que julgo um caso de diálogo verdadeiramente exemplar. Recordas que eles atingiram o consenso nacional de todas as escolas (não houve uma única contra no País inteiro, é notável) à roda do modelo de currículo novo com o respectivo enquadramento pedagógico. Sabes como é que fizeram? Primeiro estudaram exaustivamente todos ao autores-investigadores portugueses que analisavam o nosso sistema, a qualquer nível, e propunham alternativas. Depois foi apenas listar as convergências e delinear o itinerário que configuravam. Elaborado o documento (e apenas então), consultaram os estabelecimentos, para estes o julgarem, no fundo conferirem se eles tinham feito bem a tarefa. Pronto, foi a unanimidade, todos se identificaram com aquilo. Caso único no mundo inteiro, sabias? Umas reservas pontuais aqui e além, uns alertas, mormente movidos por intuitos corporativistas de grupos disciplinares, e, de resto, luz verde por todo o lado. Se queres diálogo, repara então como deve ser feito.

 

-...Não brinques comigo, pá! Então mandar um inquérito a cento e vinte e cinco mil professores é que é dialogar?! Tu não vês a demagogia de semelhante iniciativa? Não, não é apenas por o dilúvio de respostas devir inabordável. É que não é rumo para descobrir itinerário nenhum. O sindicalista de que te falei fez um curso de formação permanente há uns meses. Contou-me um dos debates lá ocorridos, relativo a esta problemática. “As pessoas, em geral, estão de boa fé e concordam em colaborar” - concluía ele. - “Agora o que isto é, dado que por norma ninguém foi investigador, é uma espécie de chuva de ideias. Vem tudo o que ocorre a cada um, desde o mais sensato ao mais estúpido, do mais fácil ao mais inexequível. Não é uma consulta, é disparar ao acaso, no escuro, em todas as direcções. Ficamos ao fim com uma listagem interminável de hipóteses de caminhos, sem qualquer critério do que resultará ou não. Se depois não houver intuição pedagógica para aferir, as decisões podem ser as mais disparatadas. Ora, isto é o que ocorre fatalmente com o Ministério, uma vez que a generalidade dos técnicos são pedagogos falhados.” Creio que ele foi perfeitamente lapidar. Agora vocês chamam a tal coisa um diálogo... É que nem é uma consulta. Esta só a posteriori faria sentido, agora à partida? No fundo, o problema é que vos dá muito trabalho fazer o que o grupo do desenvolvimento curricular fez: estudar os peritos todos, exaustivamente, aprender com quem sabe, com quem investiga, experimenta, testa e descobre, juntar os fios da meada e só depois conferir em público os roteiros resultantes. Dá muito mais nas vistas atirar inquéritos a toda a gente, correr à comunicação social, jogar flores para todo o lado. Demagogos do caraças! Depois queixais-vos do abstencionismo eleitoral, da má fama dos políticos, do descrédito das instituições democráticas... Que é que esperavam, com semelhante escroqueria? Só vos importam os tachos e o poder! Vocês podem manter o povo analfabeto, mas lá estúpido a este ponto... Militais pela cegueira,o País, não.

 

-...Pronto, não te exaltes. Não é teu intuito, de acordo, mas poria as mãos no fogo em como é o de centenas e centenas dos que rastejam lá pelo Ministério, a polir paredes... Não to confessam, claro, mas, se aprenderes a ouvir atrás das portas, ficarás então muito edificado... Olha, hoje atendi uma professora efectiva da Secundária Vitorino Nemésio. Após vários anos destacada nos serviços centrais. Retornou à escola. Sabes porquê? “Que quer, Snr.Dr., fartei-me!” - contou-me ela ainda há bocado. - “Fui para lá convencida de que iria desemperrar o Ministério. Logo na primeira reunião com a minha chefe perdi as ilusões todas. Ela declarou textualmente que estava lá para entravar tudo, para impedir com todas as forças que o País mude no que quer que fora. E, claro, esperava a nossa lealdade para levar a bom termo tão espinhosa e patriótica tarefa. Jurei a mim mesma que lhe havia de trocar as voltas e andei a remar contra a maré até este ano. Não adianta, lá são todos iguais. Um indivíduo apenas se destrói e não muda rigorosamente nada. Pronto, vim-me embora. Aquilo, só com uma bomba, Snr. Dr.!” Tal e qual, pá. E antigamente tu também o vias. Entraste no covil, encegueiraram-te. Como diabo te deixaste apanhar?

 

-...Outra vez a mania de identificar quem foi a chefe! É o mesmo que com os reajustamentos da Reforma Educativa. Isso não resolve nada enquanto recusares ver como o fenómeno se reproduz generalzada e indefinidamente: cortas uma cabeça à hidra, logo proliferam sete novas no lugar dela. Que adiantou? Vocês não têm emenda nesta miopia, é o que é... Muda de atitude, homem! Aquilo é apenas a ponta do icebergue: mergulha nas águas fundas e logo verás...

 

-...Mais um pouco de Borba? Não?... Então adeus e dorme bem. Até para a semana.

 

 

 

 

 

 

 

 

Mazela 3

 

 

- Perguntas qual é o aperitivo de hoje? Por acaso, desta vez, não tinha cuidado de nada. Mas ando aqui com uma curiosidade estranha. Ontem entrou-me lá pelo gabinete um colega que há uns anos foi meu estagiário, o Luís Eugénio, agora colocado no Alvarve. Não sabia nada dele desde aquele tempo. Trazia-me uma prendinha, sabe dos meus gostos... Não adivinhas. Duas iguarias que no paladar dele combinam muito bem, embora eu não veja como. Mas sempre quero confirmar.

-...Ora, um doce de amêndoa com vinho fino! Isso já nós provámos um monte de vezes. Qualquer copo de água tem a fórmula, então lá para o sul é o pão nosso de cada dia, desde a mais humilde festinha. Não. Olha, a que é que tu ligas a jeropiga? Às castanhas, evidentemente. Como todo o mundo, aí pelas berças. Ele ofereceu-me esta garrafa que vem da região e jura que é bem melhor que um porto ou um madeira para talhar as trincas dos tradicionais bolinhos de amêndoa. Vê a cestinha que me trouxe! Vamos tirar a prova?

 

-...É, é. A gente submete-se aos preconceitos gastronómicos implantados e depois fica de portas trancadas a grandes descobertas. É como aqueles que a vida inteira bebem branco ou tinto, conforme o prato é de peixe ou carne, embora detestem o sabor dum dos tipos. Cai mal, em sociedade, e convém ter maneiras... Nunca respeitam o que lhes cai mal no estômago nem descobrem que os gostos não se discutem, muito menos à mesa. Desvendar e atender à autenticidade própria é uma tarefa descomunal, o padrão da carneirada predomina inelutavelmente. É uma pena! A qualidade de vida que lograríamos apenas com atirar estes preconceitos todos para trás das costas! Mas “gente fina é outra coisa”, não é?

 

-...Lá piada, tinha: jogar o Ministério inteiro no caixote do lixo! Portas fechadas pelo menos um ano. Talvez então descobríssemos que não faz cá falta nenhuma e as escolas desatariam a caminhar pelo próprio pé, quem sabe? Ninguém tem coragem para tanto, não é?... Mas olha que então já nenhum educador castrado teria para onde ligar a perguntar: “O que é aquela coisa da autonomia?” O pior é que eles iriam morrer de susto, coitados! Um escravo aprender a viver sem dono é um desafio aterrador.

 

-...Não há mal nenhum em imaginar. Ao menos podemos ir calculando as vantagens do que não temos a coragem de empreender. Claro, claro, há também os riscos e as perdas. Sabes o que me contou um antigo Director-Geral cuja mulher é minha paciente? Fez as contas a cada documento que de lá emanava: uma média de cinco mil contos. Num ano publicam mais de seiscentos: três milhões de contos. Como ao todo o Ministério tem umas vinte e duas Direcções-Gerais ou equiparadas, são mais de sessenta e cinco milhões de contos anuais em desperdício. Se trancares as portas, vê lá quanto poupas! Trezentos e vinte e cinco milhões de euros!

 

-...Bem, se tiveres energia e discernimento para obrigá-los a estancar ou, pelo menos, a morigerar esta diarreia documental, terás dois ganhos: poupas em dinheiro e aumentas em hábitos que aqui nas bases automatizam a escola. O vosso permanente bombardeamento de papéis a introduzir intermináveis alterações de pormenor instabiliza permanentemente a rede. Isto é uma fonte constante de ineficácia: não permite poupar energias nem afinar destrezas, com automatismos apurados, e provoca choques e contradições encadeados entre todos os intervenientes. Vê lá quantas vantagens tirarias com o mero estancamento desta colossal hemorragia! Reduz, reduz as seiscentas circulares anuais a sessenta. Qual sessenta! Seis, que até serão demais estas, caso não carreiem alguma novidade imprescindível. Se atingires isto, prometo que não te desancarei tanto no serão que depois tivermos...

 

-...Claro que tens de medir os efeitos negativos. Os oito ou oitenta serão porventura mais deletérios que construtivos e, claro, num ponto intermédio qualquer é que encontrarás o maior ganho com a perda mínima. Agora repara no pormenor que anda a alimentar aquela cachoeira inestancável e contraproducente de papéis. Sabes como é que o Skinner fez com os esquizofrénicos clinicamente perdidos que estavam internados, definitivamente, na respectiva ala do hospital onde ele trabalhava?

 

-...Não, não é para transpor nada, nem para vos cobrir de esquizofrenia a todos. Aliás, neste caso, tu até ficarás satisfeito: é que o paralelo daqueles doentes são os corpos docentes das escolas, no que se reporta à constante inviabilidade de assumirem a autonomia. É o complexo do escravo há séculos alimentado coercivamente nos educadores, para tê-los à mão e curtos. Só assim eles convêm aos ditadores, não é? De direita ou de esquerda ou de pura arbitrariedade individual, desde sempre o autoritarismo zelou ferozmente para que os mestres foram mera voz do dono. Aqui, nem o mínimo desvio. É ver quantos pagaram qualquer veleidade durante o Estado Novo: expulsos da escola, presos, desterrados, expatriados... Sobre eles qualquer ditadura malha, fatalmente, sem dó nem piedade...

 

-...Ah, pois, o Skinner. Ele fez deste modo: primeiro, à hora da refeição, quem não entrava no refeitório nos primeiros trinta minutos ficava sem comer. Uns dias depois, a fome era tanta nos retardatários que todos desataram a cumprir. A partir daqui foi reduzindo o tempo até chegar aos cinco minutos: quem se atrasava mais, já sabia, ficava à fome. Ao fim duns dias, alguns atingiram o limiar da inanição, correndo risco de morte. A direcção do hospital, alarmada, quis pôr termo à experiência. Skinner insistiu: podemos permanentemente evitar a morte sem cortar um milímetro naquela regra do jogo. Continuou e, umas semanas depois, todos comiam pela própria mão. Então principiou a especializá-los: tinham prendas os que levantavam a mesa, depois os que as punham, a seguir, os que limpavam o refeitório e assim por diante. Foi ao ponto de até o bar, com atendimento, contas e o mais, chegar a ser desempenhado por eles. Ora, eram todos esquizofrénicos extremos, casos perdidos à partida, sem qualquer vestígio de autonomia. Vê o que atingiram no fim!

 

-...Não consegues entender? O paralelismo para mim é evidente. As escolas vivem famintas de quem mande, mande, mande... só foram treinadas para obedecer, obedecer, obedecer. Daí a permanente subserviência, a incapacidade crónica de dar o mais ínfimo passo pelo próprio pé. Os departamentos, como os enfermeiros e técnicos das clínicas psiquiátricas tradicionais, fazem o que eles pedem: no vosso caso, inundam-nos de papéis com ordens e mais ordens, obsessivamente, em catadupa inestancável constante. Uns e outros, com tal comportamento, apenas aprofundam e eternizam a anomalia, a doença. Invertendo a lógica, como Skinner fez, quebram o círculo e principia a cura. No vossso caso é apenas estancar o fluxo da papelada. Com o risco de morrerem à fome disto, os agentes escolares ver-se-ão obrigados a desatar a andar. Basta depois aplaudir cada pequena vitória destas, como fazemos aos bebés que tenteiam os primeiros passos, para aprenderem a correr e a equilibrar-se a breve trecho.

 

-...Concordo que é difícil, mas não pela razão que apontas. Não, não virá da falta de qualidade dos pedagogos: são tão bons como qualquer outro ramo laboral do País. Repara que mesmo essa imagem dominante do Ministério relativa aos corpos docentes, de que são uns irresponsáveis, uns incapazes, uns atrasados mentais, é uma herança fascista que não há maneira de erradicarmos: quanto mais os lograrem convencer de que serão aquilo, tanto mais os tornarão naquilo mesmo. É a lógica do efeito de Pigmalião: se introjectas num aluno que ele é bom, ele lutará por corresponder a tal imagem e tu mostras-lhe permanentemente tudo o que ele vai logrando que o comprova, reforça e desenvolve; ao invés, se lhe interiorizas que é um incapaz, logo ele se resigna a tal estatuto, baixa os braços, e tu constantemente lhe irás sublinhando todo e qualquer pormenor que o demonstre, aprofunde, levando-o, degrau a degrau, até ao aniquilamento. Ora, convém à mentalidade fascista totalitária, hegemónica senão exclusiva nos quadros técnicos e administrativos do Ministério, reproduzir indefinidamente corpos docentes paralíticos, papagaios do poder, sem pés nem asas capazes de voo autónomo nenhum. Doutro modo, como os dominariam? É muito mais fácil governar uma nação de analfabetos que de cultos, de tetraplégicos que de campeões olímpicos. O empanturramento de seiscentos documentos anuais a jorrar de cada fonte, combinado com a imagem degradada-degradante dos educadores, alimentam-se mutuamente e cumprem a mesma lógica aniquiladora. E lá vais tu, cantando e rindo, levado, levado e bem levado... A dificuldade de autonomizar as escolas virá daqui, não doutra banda. Estes milhares de meliantes que enxameiam o Ministério não só erguerão a imagem de que os educadores são todos desprezíveis, incapazes, impotentes, como lutarão acirradamente para o demonsstrar e contra quanto enverede pelo caminho contrário: ameaçarão docentes e escolas que principiem a ocupar o território que a lei lhes atribui, enviarão inspectores-pides ameaçadores e enigmáticos que reforcem o terror sagrado pelo ignoto ditador que cada qual traz enterrado no coração, violarão a lei e os regulamentos que lhes não submetam tudo à consideração, esvaziarão sistematicamente de qualquer conteúdo real qualquer norma em branco cuja matéria seja remetida à escola ou ao educador... O inimigo real mora aqui. E prolifera, invulnerável e inatingível. Não estás disposto a atacá-lo? Ou preferes continuar cego?

 

-...Agora não ignores que a luta é inaugurada por dentro de ti: tens de ler os educadores como realmente são e não como tos lê o preconceito conveniente à ditadura. Vê lá bem, que isto não é nada fácil! Conheces o comentário daquela contínua: “Eu, racista?! Homessa! Eu até quero tão bem a toda aquela estúpida pretalhada toda!”

 

-...Por que ponta lhe pegar? Espera aí, isto recorda-me uma conversa, uma noite, num bar em Nova Iorque, aquando dum Congresso em que participei quase no princípio da carreira. Era um colega meu de lá, um tipo brilhante, altamente surpreendente, como era o nome dele? Rob...

Robertson, pois, Robertson. Era também formador e tinha feito uma graduação pedagógica num colégio universitário com o pedagogo Neil Postman. Recordas-te dele, daquela leva que deu brado, com o Ivan Illich, o Carl Rogers e outros que tais, com as propostas e as ideias mais mirabolantes? Pois, esse, o da “Contestação – Nova Fórmula de Ensino” que na época deu a volta ao mundo e a muitas cabeças.

 

-...Não, não é para retomar utopias. É outra coisa. Foi a experiência do Robertson como aluno dele. Não se fartava, na época, de a recontar como o evento mais extraordinário que lhe havia ocorrido em toda a vida. Não imaginas como é que foi nem a mim me viria à ideia. Repara nisto, creio que te dará a resposta de bandeja. Postman entrou na primeira aula, cumprimentou, apresentou-se, referiu o título da cadeira, já nem me lembro, só recordo que era ligada à Pedagogia, qualquer coisa como “Prática Pedagógica” ou... olha, não sei. Bem, depois quis a apresentação breve de cada aluno mais o que pretendiam e esperavam daquela disciplina. Terminado este ritual, retoma a palavra para declarar, peremptório: “Informo desde já, para ficar bem claro e ninguém ter ilusões, de que me recusarei a dar qualquer aula daqui até ao fim do semestre!” Grande burburinho na turma e ele impávido e sereno. “Mas então como é que damos conta disto?” - era a pergunta generalizada. Ele retoma a palavra: “Não faço ideia nenhuma nem quero saber. Que é que me importa? O problema é vosso.” Aumenta o mal-estar e a barafunda. “Mas nós temos de ter uma avaliação e um certificado no fim, isto não é uma brincadeira!” - protestavam de todos os lados. E ele, na maior das calmas: “Evidentemente! Aliás, informo que sou mesmo muito exigente e que recuso qualquer certificado a quem não dê conta disto e muito a sério.” Pior ainda. Alguns entraram em autêntica histeria. Outros derivaram para o confronto pessoal. “Está a fazer pouco de nós! Que é isto? Veio aqui para gozar connosco, é?” E tornava ele, perfeitamente inatingível: “Pelo contrário, pelo contrário. É porque vos estou a tomar muito a sério que não alterarei uma vírgula ao que vos disse. Se há aqui alguém que não brinca em serviço sou eu.” Alguns perderam a cabeça e queriam saltar-lhe em cima, tiveram de ser agarrados e acalmados pelos mais. Os contemporizadores tentaram várias vias para obter uma plataforma exequível. “Mas o Professor dá-nos ao menos uma orientação, não é?” E Postman, impassível: “Nem pensar! Orientem-se os senhores! Já viram que responsabilidade querem atirar-me para cima? Não sei orientar ninguém e, mesmo que o soubera, jamais o quereria. Cada qual é que deve saber que rumo quer tomar. Não me irei substituir a ninguém, era o que faltava! Com que direito? Ninguém pode fazer tal coisa, seria quase um crime!” E eles, aflitos, a repisar por outro lado: “Mas ao menos indique-nos uma bibliografia.” A confusão aumentava, já ninguém ouvia ninguém. Ele acalmou a barafunda e continuou, inquebrantável: “A minha bibliografia? Que disparate! Essa é a que me importa a mim. Que é que ela tem a ver com qualquer de vocês? Nada. Quem quiser uma bibliografia que a elabore, como muito bem lhe aprouver. Agora, não ma venha pedir a mim, não tenho rigorosamente nada a fazer aí.” Terminou a aula na maior das ansiedades e dos nervosismos do lado dos alunos e Neil Postman perfeitamente calmo e seguro, inteiramente indiferente à tempestade que desencadeara e alimentara.

 

-...Aí é que te enganas. Qual pô-los à prova! Era mesmo a sério e definitivo.

 

-...Exactamente. Foi rigorosamente aquilo o semestre inteiro, não se afastou nem um milímetro nunca.

 

-...Como é que os alunos se desenvencilharam? Olha, o Robertson contava que até meados de Novembro, ninguém encontrou fio de meada, continuavam as aulas com a turma a pressionar Postman e ele a mostrar como não podia ir por onde eles exigiam. Debandavam revoltados, frustrados, perdidos; um grupo inteiro foi desistindo convicto de que com aquilo jamais se entenderiam e de que não haveria mesmo saída nenhuma, o grande pedagogo não passaria dum embuste. Quando finalmente se convenceram de que nada o demoveria, então, pouco a pouco, primeiro um, depois outro, principiaram a tentar alternativas próprias. Um dia, um colega bosquejou um vago programa de curso. Propô-lo à turma. E logo Postman lhe cortou as vazas: “Eu não dou aulas, o senhor também não nem nenhum outro. Se quer esse curso, faça-o, é o seu, não tente sequer impingi-lo a mais ninguém, que por mim não passa. Fui claro?” Alguns ainda tentaram um subterfúgio revelho: “Mas podemos trabalhar em grupo, não podemos?” E logo Postman, implacável: “Claro, desde que seja deveras em grupo, quer dizer, de modo que a marca de cada um, a achega individual me seja perfeitamente identificável. Doutro modo, ninguém que o compartilhe terá certificado na cadeira, entendido? Nem sequer quem o lidere. Agora o problema é vosso: não há duas pessoas iguais, terei de verificar isto no que o grupo produzir ou nada feito. Se querem arriscar, arrisquem.”

 

-...Seria uma hecatombe, dizes tu. Olha, foi também o que os alunos lá creram à partida. À chegada, o Robertson entendeu-o como a maior lição de vida que tivera. Em que é que deu? Nisto: cada um fez o seu próprio curso, escolhendo o caminho que preferiu, com a colaboração dos mais e do professor, mas sob liderança e responsabilidade do próprio, em termos de pesquisa bibliográfica, de experiências de campo, de observações e acompanhamentos ao vivo – enfim de tudo o que deu na veneta a cada qual. Ninguém foi orientado, foi orientador; não foi condicionado de fora, foi auto-motivado e assumido; não se submeteu nem subjugou ninguém, pôs-se ao dispor e serviu-se das disponibilidades dos mais; liderou, não foi comandado, como a princípio pretendera. O Robertson resumia a experiência deste modo: “Aprendi a dobrar – a matéria da cadeira que mais me importava e a maneira de ser eu o mais autenticamente possível com ela. O mais giro é que nós víamos isto nas posturas inesperadas, surpreendentes, de Postman. Um pedagogo tem muito poder...”

 

-...Era, era preciso ter a coragem de fazer aqui algo de parecido com a autonomia das escolas. Elas são aqueles alunos cronicamente dependentes, doentiamente alienados. Vivem enxameadas deste perfil. Como tudo o mais, na comunidade escolar: funcionários auxiliares e administrativos, até encarregados de educação. Quem é que não opera na lógica de ser mero eco da voz do dono? Faz-nos falta um Postman aqui. Várias vezes tenho pensado se não te queres encorajar um dia...

 

-...Como contrariar o desinteresse, o mercenarismo, o desânimo generalizado? É verdade que aqueles alunos precisavam desesperadamente do certificado final do curso ou ficariam de vidas adiadas. Enquanto os professores... nem o vencimento nem o lugar são questão de monta para o estrato que importa, que são justamente os que aguentam de pé cada estabelecimento, os trintões, os quarentões e os quinquagenários, a meio da vida, estabilizados.

 

-...Não estou nada convencido de que é inviável. A questão é: de que é que os educadores gostam e que lhes é inatingível? Não há ninguém que sobreviva equilibrado no meio duma frustração laboral permanente. E menos ainda em desempenhos que impliquem encontros humanos, como é o caso da carreira docente.

 

-...Aí é que bate o ponto. Mas a escola permanentemente operou para o insucesso da larga maioria, em todos os países: acima cronicamente dos setenta por cento em todo o lado, nos primeiros nove anos de escolaridade. Todavia, os pedagogos lograram permanentemente manter-se, em geral, saudáveis psicologicamente. É que há uma experiência extremamente salutar que, embora nada quotidiana nem generalizada, aflora contudo sempre aqui e além, em todas as escolas: são os projectos pedagógicos, quando mestres e alunos dão corpo a sonhos. Isto às vezes tem o condão de mobilizar e arrebatar estabelecimentos inteiros, nas semanas de animação cultural, nas jornadas pedagógicas ou como quer que lhes chamem. Às vezes, até fora deste contexto.

 

-...Exactamente, é a área-escola, na designação pobre da Reforma Educativa. Agora vão apelidá-la de área de projecto, com renovado estatuto e enquadramento. Pode ser que a não entraveis de novo. Isto é que era importante, porque por aqui poderias chegar ao outro lado. Falta saber com que pedras na engrenagem virá doravante...

 

-...Ai a anterior não as tinha, apenas foi legislada sem meios? Estás mesmo cego! Olha, para teu governo, eu tenho regularmente no meu consultório quatro professoras da mesma escola, a Secundária Eça de Queirós, todas com redução total de trabalho lectivo e bem profundamente perturbadas e desequilibradas emocionalmente. Sabes que enquanto lhes foi viável viver num contexto em que, naquele estabelecimento, todas as semanas havia animação, como resultado final dos projectos mais variados, nenhuma delas quebrou, nenhuma caiu no buraco em que se encontra e de que ando a ajudá-las a sair? Aliás, uma delas foi sempre, durante anos e anos, uma animadora-mor do grupo de História. Imaginas como está hoje? Não diz coisa com coisa e agride tudo e todos. Descobres porquê? Porque não logra aguentar o fracasso duma vida inteira em que apostou os melhores sonhos de realização laboral e, ao fim, olha, anda ali de mãos vazias, com tudo perdido, jogado pela janela fora.

 

-...Porquê? Porquê? Então tu julgas que basta consagrar na lei a mais rica das experiências pedagógicas e pronto?!... Apenas isto e já lhe dá uma magia extraordinária e agora, com os novos meios e contextos que lhe vens acrescentar, é uma explosão de maravilhas! Estás a gozar comigo! Quer dizer, vocês ainda não entenderam por que foi destruído maciçamente este tipo de eventos na rede inteira? Ah, então haveis de ter um grande enterro com o tal reajustamento da área de projecto. O Ministério deve pôr-vos a todos idiotas, só pode ser! As doenças mentais são violentamente contagiosas, aquilo lá é pior que o meu internato de incuráveis...

 

-...Ó pá, olha, naquela mesma escola, os primeiros anos da generalização da Reforma geraram uma conjuntura divertida: a maior animadora cultural do estabelecimento levou o grupo disciplinar a votar que repudiavam a área-escola porque pretendiam levar à prática projectos pedagógicos. Sim, sim! Todas as quatro me relatam obsessivamente isto, têm uma adoração por aquela colega, é um ídolo. Felizmente esta aguentou-se equilibrada até agora, mas acabou igualmente por desistir. Juram elas que apenas ao nível da escola, que tudo continua com ela lá dentro nas turmas. Só que doravante não transpira nada para fora.

 

-...Ora, como é que domino isto?! É que eu estive por acaso com ela, na festa de Natal do meu neto no Jardim de Infância. Ela também é avó e encontrámo-nos lá pelo mesmo motivo. Palavra puxa palavra, afirma às tantas a senhora: “Toda a vida animei projectos naquela escola. Voluntariamente. Vêm-me agora impor por lei que é obrigatório! Desde quando? Farei questão de ser militantemente contra! Que estupidez é aquela? Ainda por cima com um tema imposto pelo Pedagógico! E com o dever de o implementar em cooperação com os colegas da turma! Em que mundo é que aquela gente vive? Comigo não contem! Continuo com os meus alunos, realizamos todas as utopias que nos derem na veneta, empreendemos todas as loucuras com quem muito bem entendermos e se me quiserem vir pegar que venham. Até gostava! A imbecilidade deste Ministério é de tal ordem que me dava um gozo dos diabos pô-los a todos de rastos. Que raio de incompetência!” Percebeste? É isto, pá!

 

-...Faz-te confusão? Olha, a mim, não. Primeiro vocês tornaram obrigatório um desempenho ideal. Juridicamente, isto é uma aberração. Comentam-me os meus pacientes advogados: a lei só pode impor o mínimo comunitariamente aceitável. Afirmam que aquilo, para além de ir contra um princípio geral do direito de todo o mundo civilizado, será mesmo inconstitucional no País. Depois, já afirmaste que a pedagogia imposta devém na prática irremediavelmente anti-pedagógica. Então como justificar a medida? Para inverter o efeito em concreto? Foi o que resultou de facto e é o que sabemos de como a pedagogiaa opera. Se não é intencional, então... Mas isto é apenas a primeira abstrusidade. Depois, que ideia foi aquela dum tema cogente imposto pelo Conselho Pedagógico, a vincular a partir deste os delegados de grupo e os diredtores de turma, enclausurando nele, por fim, cada professor e cada aula? Então o projecto não é o cume da criatividade, dos voos inesperados, do imprevisível por natureza? Uma ideia geradora à Paulo Freire, ainda vá que não vá... Agora aquilo?! Como diabo pode brotar um sonho de semelhante espartilho? Tão pesada imposição é apenas para cortar asas e quebrar pernas, não me venhas com justificativos: se não fora intencional, então a incompetência, a insensibilidade pedagógica, são duma crassitude de calhaus! Tu nem gente lá tens como consultores, tens pedregulhos travestidos de homens, desculpa. Que isto é demais! E então aquela história da interdisciplinaridade? Cada educador tem de levar os outros às costas?! Mas vocês lá no Ministério são tão ignaros que ainda não repararam que qualquer trabalho de projecto é por natureza interdisciplinar, nem que seja executado apenas por um indivíduo? Que raio pretendiam com tal exigência? Bloquear definitivamente os vinte ou trinta por cento de docentes que são os que em todo o lado protagonizam permanentemente as iniciativas? Mas é isto que provocam quando pretendem obrigá-los a levar os mais de arrasto. Antes, eles operavam permanentemente como fermento na massa. Agora ficaram todos interditos pela resistência intransponível dos restantes setenta a oitenta por cento. Então e ninguém viu isto? E, depois do desastre ocorrer, ninguém pôs imediatamente cobro a semelhante descalabro? Que raio é o Ministério da Educação? A sério, não era mesmo melhor fechar-lhe de vez as portas e mandar tudo aquilo que por lá vegeta para casa?

 

-...A única coisa que sabes dizer é: “Que exagero! Que exagero!” Olha lá, quando é que afirmas isto mesmo de vocês? Ou lá no Ministério, por maior que seja a asneira, a incompetência, a traição às novas gerações e ao País, nunca atingem o exagero?

 

-...Pois, vocês vão mudar tudo. Mas, como não chegaram a compreender nada, vão mudar o quê?

 

-...Queres ver o que a vossa irresponsabilidade faz dos melhores educadores? Monitorei um colóquio há um mês numa C+S da periferia, uma escola que ainda nem sequer tem nome, com problemas diabólicos no corpo discente, filhos das barracas, de ciganos, de africanos... Uma miséria! No debate falámos das melhores iniciativas para agarrar aquela pequenada pelo coração, a ver se se lhes dá algum jeito de vida. Vieram os projectos à colação, trocámos vários exemplos e testemunhos. Então o Luís Miguel, um jovem professor loiro e quase imberbe, depois de narrar entusiasmado várias aventuras curriculares com as turmas dele, remata-me com esta: “Eu fui mesmo estúpido! Então o que eu andei todo o ano a fazer é que foi mesmo a área-escola. É que em maio a coordenadora dela veio ter comigo, aflita, que eu ainda não tinha feito nada, estava em falta, que tinha de colaborar à pressa num projecto qualquer, senão íamos quase no fim do ano e depois já não teria mais possibilidade nenhuma... E eu, feito parvo, fui a correr ajudar a fazer uns cartazes numa coisa qualquer que estavam lá a expor e pronto, dei por cumprido o meu dever de participar na área-escola. Que grande estupidez! E ainda por cima todos alinharam nisto, que assim é que era mesmo! Só agora me dou conta da asneira incrível duma coisa destas. Área-escola foi o resto, isto é um simulacro. Que imbecilidade!” Eis o que vocês provocaram, mais valia terem ficado quietos. Ainda quero ver o que irá dar o reajustamento da área de projecto, saído de tais sumidades ignaras...

 

-...Eu não contesto que sejam ilustres no resto, até podem ser génios, que isto não importa. Em prática pedagógica são zero. Zero? Abaixo de zero, infinitamente abaixo. Então de intuição relacional e dos impactos das normas na pedagogia em acto são por inteiro destituídos. Se isto faz parte da razão, são inteiramente irracionais, abaixo mesmo da inteligência dum cão ou dum gato doméstico que aqui lograrão sempre ir mais longe do que eles...

 

-...Não digo isto porquê, se é verdade? Sentem-se ofendidos? Então que se vão embora, colectivamente, e que tranquem as portas atrás deles. Ora esta! Que culpa tenho eu de eles produzirem factos como aqueles?

 

-...Ai não são tão ignorantes como isso? Olha, queres ver outra? No mesmo colóquio dei comigo a ouvir uma formadora lá dum dos vossos centros da linha do Estoril: arengava ela, meia confusa e perplexa, que na área-escola o projecto pedagógico e a animação cultural são realidades distintas. Fui mesmo ler o vosso dispositivo regulamentar. Não é que está lá mesmo aquilo? Os teus génios ministeriais ainda nem descobriram que nas melhores práticas lectivas os projectos pedagógicos mais bem logrados culminam em animações culturais da turma, inter-turmas, da escola, da comunidade... Tudo depende do voo a que se arrojam e do que nele vão atingindo. Mas dentro do Ministério da Educação isto nunca cruzou pela cabeça de ninguém.

 

-...Ora, então, se tens lá tanta gente que o não ignora, como diabo vem aquilo naquele regulamento? Como raio é que ninguém o viu? E como é que depois é requerida quase uma dezena de anos para porem cobro à asneira? Precisavam de tempo para testar um disparate, é? Olha, vocês têm é muita sorte por viverem num país que tem tanta paciência. Ou então que é tão castrado, tão decapitado! Senão não vos rogava pela pele. Já teria sido tudo varrido, de cima a baixo.

 

-...Tens a certeza de que o panorama vai mudar? Eu não ficaria tão seguro... queres um exemplo que me deixa apreensivo, à espera do que aí vem?

 

-...Então repara. Para todos estes docentes o projecto pedagógico sempre foi uma estratégia para a sala de aula. Nunca foi uma iniciativa à margem, de fora, noutras circunstâncias ou com outros enquadramentos. Mesmo os projectos do complemento curricular, até no nosso tempo, lembras-te daquela festa de finalistas no Alexandre Herculano do Porto? Aquilo não tinha de ser nada alheio às aulas, nem aos programas, nem como se fora uma realidade inteiramente aparte deles. Ora bem. Irão manter este rumo e conteúdo com uma área de projecto em horário próprio e professores com tal tarefa especificada nas horas de trabalho? Tenho muito medo de ninguém compreender nada outra vez...

 

-...Eu não estou contra por princípio, estou céptico, dadas as provas anteriores. Apenas isto. Duvido que lá no Ministério alguém atinja o que está em causa deveras. Repara, a maior parte dos educadores também o não entende. Se apenas dez a vinte por cento animam espontaneamente as comunidades escolares, somente estes é que verificam por experiência própria como aquilo ocorre e em que condições e modalidades. Os demais andam na periferia, vêem produtos, constatam efeitos, eventualmente partilham dalgum pormenor, cooperam nalguma parte. Mas no fundo olham de fora, nunca o viveram na pele, nunca o protagonizaram de fio a pavio. Com este panorama, achas que faz algum sentido andar tão confiante como tu andas? Não é mais uma demonstração da crónica incapacidade de dar conta da realidade que enfrentamos?

 

-...Está bem, admitamos que desta vez vocês acertam. Vislumbras onde é que irão então falhar?

 

-...Não sou nada uma ave de mau agoiro! É muito linear: é que irão tomar isto como uma receita. Os burocratas nunca pensam, executam. De facto, serão inelutavelmente burocratas, que dá muito trabalho reflectir, servir o espírito e não a letra da norma. Aqui ocorrerá o mesmo: cumprirão como refiro, como a aviar uma receita médica, sem compreender como nem porquê a mezinha actua, esperando pelo milagre. Ele até pode ocorrer, não contesto. Nós também curamos muito doente. O problema é que, à mais pequena variante, como não querem entender nada, não lhe farão corresponder adequação nenhuma e, conseguintemente, tudo falhará de novo. E depois terei de aturar-te a tentar demonstrar-me que eu, afinal, é que andaria errado, quando, efectivamente, vocês lá no Ministério é que constituem um erro institucional sistemático. E ainda para mais um erro definitivamente convicto de total e perene infalibilidade.

 

-...Como não é verdade, quando tu teimas em encarar cada caso e conjuntura como sendo o problema real, em lugar dum mero sintoma, um ligeiro afloramento do verdadeiro cancro? Este, este é que urge enfrentar. Ora, este aqui é a vossa atitude altamente convencida e estruturalmente errada, a vossa miopia preconceituosa mas dogmaticamente na lógica de “a verdade sou eu!” A cultura ministerial é bem pior que a de Luís XV: para este só a lei é que era ele. Para uma ditadura de quinhentos anos apenas conviria uma postura definitivamente radical: o Ministério é a verdade. E acabou-se! Quem contradisser isto é louco e, como os comunistas faziam nos dias mais negros, deverão é interná-lo numa clínica psiquiátrica como a minha.

 

-...Pois, estou a ironizarr. Mas a verdade é que os mais voluntariosos, os contestatários, tenho-os lá nas consultas aos montes. De forma expressa ou larvar, germinal, o resultado final não é qualitativamente diferente. Os outros também chamavam ao totalitarismo deles uma democracia. E até popular. Sempre denunciaste as duas coisas como a grande burla, não é? Então agora compara os efeitos e vê lá o que dizes!

 

-...Pronto, pronto... Não fiques em baixo, senão não dormes e ainda é pior. Pois, o que importa é não ignorar que as intenções não bastam, a prova dos factos é que é definitiva. E aí, estamos conversados! Olha, vamos dormir, que o mal do País é o sono. Até para a semana.

 

 

 

 

 

 

 

 

Mazela 4

 

 

- Benvindo! Ai hoje trazes uma surpresa? ! Qual é a tua?

 

-...Mel? Vários méis combinados? Aguardente de medronho?! Não acredito que te tenhas convertido às minhas experiências gastronómicas!

 

-...Deixa-me lá recapitular: o teu conterrâneo serrano Manuel trouxe-te quatro boiões de mel de abelha com sabores diferenciados... Quatro, pois! Portanto, madressilva, eucalipto, alfazema e flores silvestres. E quanto à bebida é lá da lavra dele, apurada em casa. E agora como é? Uma colherada de mel, um gole de medronho? Não? Ah! Uma pitada de cada um e cortar com a aguardente naquele que fizer melhor contraste. Entendido. Para ele era depois do mel de eucalipto, mas a mulher prefere o de flores silvestres. Então vamos lá a ver como é que connosco operará. Esta versão também para mim é nova. Mas olha lá, isto a barrar umas tostazinhas não ficaria melhor? Tenho ali umas integrais de trigo... Experimentamos das várias formas, não?

 

-...Sim, sim, também me parece que é receita mais para os dias frios, daqui a dois, três meses, a aquecer as noites longas da invernia, lá para os fragaredos desamparados da Beira Alta ou Trás-os-Montes. A tua região de origem...

 

-...Era o que me estava a recordar, entre Bragança e Mirandela, pois claro. Agora deve estar desertificado, não é? Há-de ser repousante aquela solidão toda, a natureza em bruto... E os velhotes apegados aos gostos de antanho. É bom preservvar isto, cada vez é uma raridade maior.

 

-...Também tiveram de encerrar o turno da noite lá da vila, por falta de alunos? Numa região já tão sem nada?! Que diabo é que se vai por ali manter? Fecharão a escola inteira a seguir, como fizeram com a da Primária da tua aldeia, uns anos atrás. Não há mesmo ninguém naquela zona toda? Eu sei que é pequena, os socalcos é que são muitos e os caminhos, intransitáveis.

 

-...Melhorou? Espero bem que sim. Aliás, na minha aldeola, para onde a tua família veio ainda na nossa infância, eram só trilhos de carros de bois, em miúdo, e agora é tudo pistas de alcatrão. Alguma coisa há-de ter sobrado lá para as tuas bandas. Mas com esta da extinção do nocturno é que me pões de cara murcha, é verdade.

 

-...Já cá faltava o argumento do custo! Claro que, se não há alunos, terão de fechar o turno. Mas olha lá, que é que tu dirias de alguém que provoque, mesmo inconscientemente, o abandono colectivo, para depois constatar que não há inscritos e, portanto, a escola fecha?

 

-...Ai isto não tem nada a ver com o Ministério?! Não, não estou a afirmar que foi intencional. Para tanto era precisa uma competência de génio e não descubro por lá ninguém capaz de tal. Não, fizeram asneira sem querer nem compreender. Depois, como resultou no efeito inesperado que no fundo pretendiam, agarraram-no com unhas e dentes. Como o País não entendeu o mecanismo, foi oiro sobre azul, lograram correr com inúmera gente da escola sem levantar o mínimo protesto. Uma obra de mestre! Só é pena serem tão bons a fazer mal. Se fora para bem, imagina o que este Ministério já não teria feito da grei! O azar é que apenas são deveras bons quando é para destruir. O Ministério da Educação não é um Ministério, é uma infecção. E contagia permanentemente o povo inteiro, podes crer.

 

-...Não acreditas que a culpa seja imputável a vocês? Então ouve. Contou-me o Dr. Garrido (é um dirigente sindical das vossas mesas de negociação) que a zona oriental de Lisboa onde lecciona teve um itinerário bizarro nos turnos da noite. A mãe dele sofre de demência senil e eu estou a dar-lhe apoio no lar onde vive internada, ali no Campo Grande. Às vezes encontramo-nos e trocamos uns dedos de fala. Ah, conhece-lo pessoalmente? Então, ainda melhor. O panorama é este: antes de o Ministério generalizar o modelo por unidades capitalizáveis à noite, tinham, só na escola dele, apanhando Chelas e Marvila, quinhentos alunos inscritos. Os pavilhões abarrotavam de estudantes a tentar os cursos nocturnos. Mas não era a única: o D. Dinis e a Eça de Queirós tinham também naquele turno, relativamente aos diurnos, o maior número de inscritos. Três anos depois, mantendo-se o bairro tal qual, mal contavam trezentos alunos. Hoje o Ministério anda a extinguir, um atrás do outro, a todos eles, não tarda muito.

 

-...Ele também me informou disso, não há gente nos turnos de dia nas escolas de Lisboa, a cidade anda a envelhecer a uma velocidade inesperada e incontrolável. É verdade. Mas não é daqui o problema: é que as desistências da noite ultrapassam tudo o que alguma vez víramos, não tem paralelo com a formação etária da comunidade, os potenciais candidatos ao turno da noite parece que até deveriam ser mais, não menos.

 

-...Seriam mais porque há muito mais reprovados de dia, ao nível do Secundário. Os mais novos, dos cursos gerais, não era de aguardar que viriam para a noite, porque de dia atingem por norma o diploma de nono ano, mesmo sem aprenderem nada, como já comentámos. Agora os outros, não. E em bairros tão degradados e problemáticos como os das periferias os níveis de reprovação, nos décimos anos, trepam em flecha. Estes alunos tentam concomitantemente o emprego e o ensino nocturno. Por que diabo desapareceram das escolas repentinamente, quando antes transbordavam delas?

 

-...Não, não colhe explicar com as mudanças bruscas do País, as alteraçõess de conjuntura nem de estrutura. Sabes porquê? O Dr. Garrido contou-me o caso dele: ficou, durante vários anos, com turmas de regime normal concomitantemente com as de unidades capitalizáveis, até à completa extinção daquelas. Ora bem, nem queiras ver a diferença! Naquelas, quando a turma acompanha em conjunto as matérias, é avaliada trimestralmente e tem avaliação final global definitiva, a perda de alunos foi permanentemente de perto de um terço e verificou-se constantemente até ao início do segundo período. Garantiu-me que era tal e qual, igualmente, no País inteiro, enquanto vigorou aquele regime. Quanto às outras turmas foi o desastre do abandono em massa que verificas por todo o lado. Contou-me, por exemplo, que no primeiro ano da generalização do modelo teve um tal José Rodrigues, um aluno cordato, muito dado e brincalhão. Enquanto estiveram, no primeiro período, a trabalhar na primeira unidade, praticamente não faltou nunca. Só que era um traquina, não estudava nada, queria era conviver, falar, divertir-se. Se aprendeu algo foi com os mais, por arrastamento, que lá por ele não mexeria uma palha. Pois olha, mal fizeram o teste da unidade, numa turma de vinte e dois, apenas uns cinco atingiram a positiva. Foi um susto para os restantes e houve um grupo que se encheu de brios e tentou outra vez, uma semana depois. Mais um lote deles conseguiu, ficaram uns doze na segunda unidade. Imaginas o que ocorreu com o José Rodrigues? À primeira, nem apareceu e foi muito franco, confessou que não sabia nada, não iria lá fazer coisa nenhuma. Mas quis ver o teste, conferiu provas feitas para conferir como era, falou nisto com os demais, preocupado. À segunda tentativa, compareceu, preencheu o cabeçalho e perdeu metade da hora a olhar para as questões, depois pediu para sair, entregando o teste em branco. O Dr. Garrido ainda o procurou convencer a continuar, falou com ele um bom bocado. Ele garantiu que viria, tinha lá bons amigos... Pois bem, nunca mais lhe puseram a vista em cima. Com os outros reprovados foi apenas uma questão de tempo, foram abandonando um após outro. Este é o destino a que o modelo os condena: divididos por várias unidades, impossibilitados de se encorajarem e apoiarem mutuamente, anulada a aprendizagem por osmose, vão ficando pelo caminho, como destroços perdidos. E acaba chegando quase a todos... As vossas estatísticas dão 95 na 100%, não é? Repara que não são minhas.

 

-...Ainda não te convenceste que é da organização e não dos mestre e dos alunos? Então olha. Os números dele são clarinhos, relativamente ao último lote de turmas que acabaram o Secundário em regime normal. É tão gritante como isto: todos os alunos que continuaram até ao fim do ano, os tais dois terços dos primitivamente inscritos, fizeram o curso com aproveitamento, cem por cento de aprovados. Em contrapartida, sabes quantos daqueloutra turma e de todas as outras de unidades capitalizáveis completaram o curso inteiro no triénio do Ensino Secundário? Eram ao todo perto de cento e vinte alunos, à partida. Pois apenas uma estudante da área dele acabou as unidades por inteiro. O Dr. Garrido deu-se ao trabalho de fazer as contas globais da escola: enquanto testaram o modelo, com ambos os regimes a operar em paralelo, antes da generalização e de extinguirem o normal, obtinham em média dez vezes mais aproveitamento escolar do que actualmente. Dez vezes! Já viste a diferença?

 

-...Só quem quer andar cego, homem! Como não é da organização, do modelo adoptado, o das unidades capitalizáveis? Então não vês a melhoria, quando operam os dois em paralelo? Contra factos não há argumentos. Ou já ides, lá no Ministério, pelo princípio de que, se o facto não encaixa na teoria, tanto pior para o facto? Esta foi a peste do séc. XX que mais tragédias humanas e colectivas provocou. Não vos basta a insensibilidade pedagógica nem o convencimento ignaro e prepotente?

 

-...Ah, queres entender a lógica disto. Correcto. Vamos a outros casos para o clarificarmos então. Olha, há vários pendores que levam àquele colapso final. O primeiro tem a ver com os professores.

 

-...Ri-te, ri-te. Claro que os educadores não são alheios ao fenómeno, mas não deites foguetes já. Tens razão num ponto. O Dr. Garrido contou-me o problema deste modo. Ele leva os alunos a trabalharem no método de aprendizagem por descoberta, mas no grupo curricular dele é o único. Tudo ocorre desta maneira: quando os alunos aprendem a consultar os compêndios e outros textos quaisquer, ele leva-os a esquematizar a informação por tópicos, a elaborar resumos, a inventar apresentações criativas por escrito. Ora fazem de conta que são jornalistas e inventam artigos e estudos das matérias, ora escrevem os temas em poesia ou em contos, imaginam guiões para programas de televisão, dramatizam cenas e por aí adiante... Claro que ele pode acompanhar, a partir daqui, qualquer aluno em qualquer unidade e podem estar em aula, ao mesmo tempo, estudantes em todas as unidades do programa. Mas isto é o caso dele.

 

-...Se todos foram iguais, outro galo cantaria, evidentemente. Ora, este é que foi o primeiro choque. Ele tem lá uma colega, uma tal Maria José, que sempre foi uma pedagoga aplicada e eficaz. Pois com as unidades capitalizáveis é um descalabro! Como é perita no método coloquial e nunca se adaptou à aprendizagem por descoberta, olha, pega no grupo mais numeroso de alunos que estejam todos numa unidade e arranca com eles. Aos outros manda-os caminhar pelo próprio pé e mostrarem trabalho. Conclusão: com os primeiros vai logrando que percorram algumas unidades, os mais desistem em massa. Conta ele que este é o panorama generalizado, tanto lá na escola como no País.

 

-...Já acabaste o rosário de recriminações contra os educadores? Bem, principiei por te afirmar que esta ponta da meada era devida a eles. Mas isto de lhes jogar a culpa em cima, mais devagar. A questão é: sabendo que mais de noventa por cento deles laboram radicados no método coloquial, como diabo decidem vocês generalizar o ensino por unidades capitalizáveis à noite? Estavam à espera de quê? Que por um toque de varinha mágica os mestres acordariam no dia imediato peritos em didáctica activa, todos a trabalharem em aprendizagem por descoberta ou em dramatização e jogo didáctico (que também não vejo outras alternativas)? Não foste tu que me contaste que, em conversa com Gaston Mialaret, quando ele andava à frente da Reforma Educativa na França, aquele pedagogo te lamentou que o obstáculo intransponível das reformas no mundo inteiro (e na dele em particular) era que os professores não mudam? Até te deu os parabéns antecipados se tu congeminasses o milagre aqui em Portugal, lembras-te? Então e depois o Ministério escolhe uma alternativa daquelas que apenas resultaria se os pedagogos operassem todos doutro modo? Que raio de inteligência foi esta? E o mais grave é que nem deram pela discrepância!

 

-...Qual o quê? Não estavam nada à espera da adaptação, imaginam lá agora o que aquilo é! Os teus técnicos são uma anedotas, qual peritos nem meios peritos! Só se for na ingenuidade... Queres ver? Num curso que monitorei em S.º André apareceu-me uma coordenadora do turno da noite de Santiago do Cacém. Toda empenhada, cheia de sangue na guelra, uma mulher nova. Andava, porém, completamente às aranhas. Sabes porquê? Tinha ido a todas as reuniões lá com os teus pretensos técnicos, tanto dos gabinetes centrais como regionais do Alentejo. Comentou-me ela: “Só despejam generalidades, banalidades, coisas que qualquer um anda farto de saber. Mas agora para os problemas que a gente leva, tanto dos professores como de coordenação e organização (isto era o que me preocupava a mim, em particular), olhe que nem uma indicação, nem uma ideia, nada! Era apenas que tínhamos de mudar e inventar, que fizéssemos como julgássemos melhor, que os docentes têm de leccionar de maneira diferente... Perguntámos vezes e vezes: diferente como? Eu fiquei convicta de que não tinham ideia nenhuma. As respostas foram duma vaguidade, do género 'é da maneira que der' ou então 'é duma forma qualquer desde que resulte bem', que isto e nada é o mesmo.” Na fala com esta professora cheguei a duvidar se os pretensos peritos do Ministério estariam mesmo a entender que problema lhes estavam a colocar. “Não, não!” - comentou-me ela. - “a camisa de onze varas que nos vestiram, conhecem-na bem. É que repetiram até ao enjoo que os professores têm de atender a todos os alunos, qualquer que seja a unidade em que estiverem, não podem pegar num grupo e abandonar os restantes. Mas como é que no método expositivo ou coloquial podemos dar conta disto? Aqui ficam completamente mudos. Só acabam a repetir, como papagaios, que os professores têm de agir de modo diferente. Até mete raiva! Apetecia berrar-lhes: então venham à escola demonstrar, para a gente ver como é!” Já viste o que era se o fizessem mesmo pelo País inteiro? Ficarias logo sem ninguém, de Ministério vazio. Era quem mais queria fugir! Até que nem seria má ideia! Não queres obrigá-los a todos a demonstrarem em sala de aula e na gestão dos estabelecimentos as incomparáveis qualidades que pretendem ter? Olha que era um excelente crivo de saúde mental!

 

-...Não concordo nada, era presumir que os pedagogos resistem propositadamente a mudar de metodologias. Que resistem, é verdade, mas é igual no mundo inteiro. Algum motivo de peso tem de haver por trás, senão isto não poderia cruzar tantos países, tantas culturas, tantos continentes, sem nada a orquestrá-lo, sem qualquer artifício, tão espontaneamente. Eu sei que lá no Ministério ninguém quer vê-lo, para eles tudo é apenas fruto de má vontade, comodismo, irresponsabilidade dos corpos docentes. A miopia não dá para mais, não é? Espero bem que não alinhes com semelhante estupidez de leitura, que é dum provincianismo, duma cegueira que até confrange!

 

-...Qual é a alternativa? Mas é óbvia! Olha lá, quando começaste no D. João de Castro, que metodologia adoptaste?

 

-...Ora vês? Método expositivo. Ninguém lhe logra escapar à partida, a não ser os raros que, na profissionalização integrada ou feita em paralelo com o curso académico, tiveram a sorte de encontrar um mentor na escola de estágio que opere já com outra alternativa. São agulha em palheiro, ao que todos me referem nas consultas. Sim, que eu já tenho, nalguns casos, estagiários a requererem apoio. Custa a crer, mas é verdade. Bem, adiante. Arrancaste com o método expositivo e depois? Ainda te lembras?

 

-...Pois, então já era o coloquial: expunhas, debatias e tiravas dúvidas, retomavas o fio da exposição, correcto. Foi uma transição gradual, no teu caso, não consegues determinar onde foi o ponto de viragem. Repara, se procurares no País, confirmarás que o trânsito para a coloquialidade em praticamente todo o lado ocorreu deste modo, num movimento natural quase espontâneo. Só que, enquanto noventa por cento dos professores ficaram por aqui, tu, não. Agora vê como é que foi o teu salto para o método de inquérito.

 

-...Ora aí está! Principiou no ano anterior ao estágio, prolongaste-o por ele inteiro, com a cooperação e confronto diários com os mais colegas e a orientadora, e apenas dás por findo o itinerário no ano imediato, já como agregado no D. Dinis. Três anos ao todo e um deles com um apoio muito particular dum grupo de colegas. E a tua experiência como delegado e orientador tu próprio, depois, na profissionalização doutros que é que diz em termos da viabilidade destas mudanças?

 

-...Um ano sempre te bastou para os estagiários à tua conta transferirem as perícias que previamente haviam adquirido para uma didáctica activa? Pronto! Nem mais, aqui tens o quadro completo.

 

-...Não estás a ver? Mas é linear. Demoraste à roda de três anos até ficares perito num método activo, a um nível satisfatório para ti próprio. E já tinhas anos de prática antes, para além de toda a carolice com que te dedicaste à escola. O professor médio levará mais, eventualmente. As margens andarão entre os três e os cinco anos, pelo que me é dado constatar de casos paralelos que tenho na clínica. Claro que não estou a apagar o período dum ano em que os teus estagiários deram o salto. Com o teu acompanhamento e apoio, tudo bem. Mas o que resulta é evidente doravante. Repara. Em primeiro lugar, esta conquista dos educadores é trabalhosa, de grande morosidade, a requerer vontade, concentração, cuidado, tempo e energias, enfim, muita, muita disponibilidade e empenhamento. Não é coisa que decorra dum decreto, duma penada distraída de qualquer sumidade ministerial. Não é apenas mandar. Não é apenas querer. Isto dá uma trabalheira e uma fadiga dos diabos! A pergunta é: existe algo que justifique que um educador se meta em tais alhadas? Para a carreira não conta, para a auto e hetero-imagem, também não (até pode operar ao invés, que as invejas e os medos dos outros, não venham a exigir-lhes o mesmo, degradarão mesmo porventura quem o operar). Fica apenas o que gratificar laboralmente. Isto, contudo, terá garantias de continuidade, quando todos os anos pode mudar tudo no teu maldito Ministério? Não tem! Então a que título alguém se irá voluntariamente entalar em tal betesga? Só algum entusiasta e por mero gosto individual. É o que fica, mais os que tiverem a dita de encontrar um orientador de estágio que por aqui ande. Chegarás então aos perto de dez por cento que encontras nas escolas a operar desta maneira. E é tudo. Como vês, clarinho como água. Nem sequer imagines que haja aqui algo de doentio. Pelo contrário: é meramente uma questão de bom senso. E é o que tem preponderado, neste aspecto, no corpo docente do País: é uma nota de equilíbrio e de saúde, o que é muito bom para o futuro da Nação, pese embora a perda enorme que provoca, conjunturalmente, nos turnos da noite (e não apenas) das escolas. Mas convirás agora que a asneira não foi deles nem continua a ser deles. Qualquer indivíduo ponderado que é que faria em idênticas conjunturas? O mesmo que eles, não te parece?

 

-...Sei lá agora se no resto do mundo pesam as mesmas razões! Não trato do stresse dos professores dos outros países. O que te vou dizer é que, primeiro, as dificuldades de adquirir mestria num método novo são iguais em qualquer parte do planeta; segundo, se não houver nenhuma contrapartida, de fora ou do íntimo, que o justifique, meter-se em tal carga de trabalhos, só para um desequilibrado; terceiro, se a instabilidade for tão permanente por lá como por aqui, então fica tudo mais que clarificado. E ainda bem que os pedagogos têm juízo pelo mundo fora, o porvir da humanidade talvez não venha a ser tão negro. Quanto, porém, aos mentores deles que os encurralam neste beco e depois lhes vêm pedir contas por não haver saídas, aí é que já não poderei afirmar o mesmo. Estupidez? Irresponsabilidade? Má fé? Incompetência? Que diabo é, no fim de contas, o Ministério da Educação?

 

-...Tu, desequilibrado?! Mas que disparate! Tu fazes parte da minoria de dez por cento dos que operam com didácticas activas e que são tão equilibrados como os noventa por cento da regra, porque, de duas, uma: ou foram iniciados logo nos primeiros tentames em tal itinerário (e foram uns privilegiados!), ou então são uns entusiastas da pedagogia, para quem a realização laboral é tão importante que justifica as apostas e os sacrifícios todos a que se abalançam. É o teu caso. Olha, desequilibrado seria pretender que os restantes, que não partilham de tal motivação, para quem o vector do trabalho não pesa tanto assim no conjunto dos campos da realização individual, actuem da mesma maneira, com a mesma garra e empenhamento. Isto é que é deveras asnático e anda constantemente a aflorar lá pelas bandas do Ministério: eles têm uma saudade tão grande dos tempos da ditadura, em que era só cavalgar impunemente nos lombos dos professores! Bons tempos que lá se foram!...

 

-...Oh, não me venhas com cantigas! Intratáveis, os docentes?! Até são tão fáceis de levar!... De habituados a andar à trela há tantas gerações, o que admira é que já não opere neles o mero “posso, quero e mando!” Como é que os convencerias a mudar? Dá-lhes um motivo tão forte que sobrecompense o sacrifício, o desgaste que a aprendizagem duma nova metodologia lhes requer. Aí vão todos, irás ver!

 

-...Que motivo? Olha, se estiveres mesmo apostando forte nisto, é simples: oferta-lhes, por exemplo, um escalão da carreira. Correrão logo em bicha a aprender um método activo. Experimenta, terás logo a contraprova.

 

-...Julgas que não obterás consenso para tal medida? É só um exemplo. Há outros. Olha, porque não abolir a burocracia mórbida da avaliação extraordinária, congeminada apenas para impedi-la de operar na carreira docente, e atribuir automaticamente o bónus lá previsto a todo e qualquer professor que labore centrado num método activo? Isto é que estimularia a qualidade, não a vaguidade e as dilações com que vocês regulamentaram aquilo na carreira deles. O que lá têm até parece uma anedota, a sério! Houve um delegado de Filosofia cujo pai me faleceu no internato da clínica. Contou-me, na ocasião, que na reunião de grupo disciplinar, quando leram o regulamento que os teus técnicos congeminaram, desataram todos à gargalhada, aliás, na sequência do que já tinha ocorrido no Conselho Pedagógico da escola. Um professor praticamente apenas atingirá a benesse de antecipar dois anos da carreira quando já estiver no fim dela, se calhar já reformado, com os pés para a cova ou mesmo morto! Isto não é para rir? Olha, terias aqui uma boa oportunidade para pôr cobro a mais este dislate congeminado pelos teus sábios peritos.

 

-...Ora, não sou eu que gozo, eles, os professores, é que se divertem com a crónica estupidez do Ministério. Aliás, estou convicto de que, se determinares, por exemplo, que, na formação permanente, dominar e centrar a docência num método activo equivale à aquisição dos créditos requeridos para transitar de escalão, logo aqui obterás uma enorme leva de docentes que optarão por tal alternativa. Principalmente se se lhes tornar claro como devirá profissionalmente gratificante, na relação pedagógica, este caminho. E pode haver outras alternativas, é evidente. Sem um motivo forte é que não levarás nada.

 

-...Ai acreditas que, se abolires as unidades capitalizáveis, substituindo-as por três blocos de matéria, cada qual a ser avaliado no fim de cada período lectivo, resolves o problema? Aí é que te enganas. Só resolves o lado do professor, o do aluno, não. Lá o mestre poderá leccionar, claro, com o método coloquial, numa base de matéria igual para todos, em cada trimestre. Mas que é que fazes aos estudantes que reprovarem na matéria do período? Ela vai ficando para trás. Apenas um ano depois poderá ser retomada. E se os blocos seguintes implicarem o domínio dos anteriores? Isto bateria certo caso o problema fora apenas de os docentes não dominarem metodologias compatíveis com as unidades capitalizáveis. Ora, tal é apenas meia dificuldade, o pior é o que ocorre do lado dos alunos. Pelos vistos, uma vez mais, vocês, no Ministério, ainda não viram nada do que aqui falha, não é? Ou então não querem mesmo resolver o problema... Meia resposta já dá para empapelar, ganham mais uns anitos de analfabetismo generalizado, com o País inteiro a dormir...

 

-...Não vale a pena ofenderes-te. Sabes muito bem que os factos é que contam. Não és capaz de me explicar por que magia o Dr. Garrido atingiu resultados tão discrepantes nas turmas de regime normal e nas de unidades capitalizáveis, quando trabalhava concomitantemente com ambas e por igual numa didáctica activa? Ali não tens a desculpa da inadequação do método. Nem foi um caso fortuito, uma vez que durou o tempo todo até à extinção da derradeira turma de regime normal. E todos os anos foi o mesmo. Tive a sorte de acompanhá-lo, ele desabafa comigo regularmente, quando lá nos encontramos, no lar do Campo Grande. Compreendes ao menos que, no caso dele, opera manifestamente outra realidade que não tem nada a ver com o que estivemos a analisar até agora. Certo?

 

-...Bom, no mínimo já vês que aquilo não explica tudo. Não descortinas que mais anda aqui ensarilhado? Vamos voltar ao caso do José Rodrigues, o aluno qun desapareceu de vez, que logo ficará tudo clarificado. Este tinha lá um grupo de amigas com quem se entretinha à conversa todas as noites. Eram três, com uma mais velha, uma tal D. Alzira, já casada, inclusive com uma filha a frequentar um dos turnos de dia da escola. Esta é que liderava naturalmente o conjunto, as outras eram mais novas, da idade do rapaz. O Dr. Garrido até acreditou que dali derivaria um namorico com uma das solteiras, mas não, foi tudo apenas convívio entre amigos, mais nada. Ora o que importa é isto: o rapaz não tinha qualquer hábito de estudo, o que viera aprendendo até ali (e bem pouco era) fora de outiva. Nunca na vida lera sequer um livro. Aliás, lera, lera um, ao que confirmou ao professor, quando este insistira com ele para estudar o manual e mais documentos de consulta. Fora “O Principezinho”, de Saint-Éxupéry. Mais nada. Para quem atinge um décimo ano, já vês...

 

-...Exactamente, mais um dos quase analfabetos com diploma de nono ano. Mas este ao menos ainda aprendera a ler, já não é mau, porque muitos outros nem isso. Quando o grupo se apercebeu de que teria de interpretar, estudar, esquematizar, resumir, tomou a iniciativa uma das raparigas, creio que era uma Ana Paula, a mais voluntariosa e persistente de todos. As outras iam-na seguindo e complementando, mantendo a coesão de conjunto. Aqui o José Rrodrigues continuou a acompanhá-las, como um observador de fora, desvinculado da aprendizagem, mais brincando e distraindo-as do que dando achegas. Tudo correu bem até à avaliação final da unidade. Agora, repara bem. À primeira tentativa, apenas atingiram a positiva a tal Ana Paula e a outra, salvo erro era uma Sandra. A D.Alzira não chegou lá, mas tentou. À segunda, esta mais o José Rodrigues compareceram e ela conseguiu. Ele rubricou a sentença de morte, como já te contei. O que o Dr. Garrido aponta é o seguinte: o rapaz oralmente não estava a zero, longe disto. A conversa com as colegas, a preocupação delas e, mormente, o esforço final da D. Alzira para não as perder na sequela levaram-no a comparticipar, a aprender o que podia, a entrar nos temas e problemas da unidade, embora muito ainda pela fronteira. Aliás, todas o incitavam porque também elas gostavam de manter o grupo unido, o companheirismo do rapaz dispunha bem, descontraía, alegrava o trabalho e unia-os a todos. Ora, pelo que lhe dizia respeito, acabou tudo ali.

 

-...Evidentemente que quem não aprende, desleixa em manter-se ignorante, não sabe nada, deverá reprovar. Não é isto que ponho em causa. Claro, claro que, se ele pretendia manter-se com elas, teria de lutar por isso. Tudo bem, de acordo. Mas repara agora na diferença. No regime normal ele teria tido negativa naquela matéria mas continuaria com o grupo na posterior, unidade a unidade, até ao fim do ano. E poderia gradualmente ir entrando no programa, a ponto de atingir a positiva no termo a um nível tal que globalmente justificaria a transição, relativamente à generalidade das unidades abordadas o ano inteiro. O Dr. Garrido estava plenamente convicto de que era o que teria ocorrido com o José Rodrigues, porque estava cheio de alunos destes nas outras turrmas e, quando persistiam o ano inteiro, acabavam todos por lá chegar. Já te informei de que, por norma, ele atingia cem por cento de sucesso. Ora, nas de unidades capitalizáveis, todos estes alunos (e são uma larguíssima maioria, mais de noventa por cento) ficam perdidos pelo caminho. Acabam retidos na unidade em que reprovarem, perdem a convivialidade dos amigos que entretanto continuaram em frente, são o trapezista a que as cordas partiram, espatifam-se no chão. E não há mais remédio.

 

-...Ora vês? É o problema da aprendizagem por osmose que os pedagogistas há muito identificaram e até contabilizaram. Os alunos aprendem tanto na convivialidade espontânea entre eles como com o professor em aula. Cinquenta por cento para cada lado. Sabias que há trabalhos de campo feitos aqui a confirmarem isto? É verdade, recolhas simples, mas altamente significativas desta realidade. O Dr. Garrido emprestou-me cópia dum em que ele entrou. Compararam resultados de alunos filhos de pais analfabetos ou, no máximo com quarta classe, em duas escolas, o D. Dinis, dos Olivais, e o Pedro Nunes, da Estrela, ali no centro de Lisboa, em turmas em que o grau de escolarização parental formava uma pirâmide praticamente invertida: quase todos, no Pedro Nunes, tinham formação superior; quase todos, no D. Dinis, se ficavam até à quarta classe. Pois os filhos destes últimos, numa e noutra escola, têm resultados escolares inteiramente distintos. Os poucos do Pedro Nunes praticamente todos têm sucesso, alguns chegam a ser brilhantes, a baterem-se mesmo com os melhores, cercados como andam por eles por todos os lados. Os do D. Dinis são cronicamente mal sucedidos, com notas baixas, reprovações acumuladas: os poucos filhos de escolarizados não chegam para fermentar a massa enorme que os rodeia. Nem parecem oriundos dos mesmos estratos comunitários. Tal é o efeito do caldo de cultura da convivialidade entre estudantes: a aprendizagem por osmose é fundamental, aumenta para o dobro a eficácia do sistema inteiro. Ora, foi isto que ficou cortado cerce com a generalização dos cursos por unidades capitalizáveis. Aqui é cada um por si. Quebrou-se o clima afectivo do ambiente, a empatia das amizades, o encadeamento dos estímulos, a entreajuda, a partilha de empenhamentos, de valores e de aprendizagens. É o aluno sozinho perante o mestre solitário: ficou tudo reduzido ao esqueleto.

 

-...Como pode redundar num descalabro tão grande no País? Repara apenas como tudo se conjuga. O professor também não pode explorar técnicas de dinâmica de grupos: ficam reduzidas aos subgrupos que logrem manter-se a par e enquanto eles durarem. É tão pouco que os poucos docentes aptos a aproveitarem-no acabarão, ou desistindo disto para tentarem salvar o que puderem no todo, na generalidade dos alunos, das turmas, ou fixando-se nestes pequenos restos, abandonando gradualmente os demais. Acescenta ainda que estes alunos não têm hábitos de estudo. Nem sequer aprenderam a estudar, quanto mais... Queres ver o que ocorreu na escola do Dr. Garrido? Dos cento e vinte e tal inscritos há quatro anos, apenas dois (um de Ciências, outro de Letras) findaram no triénio todas as unidades do ensino secundário. Para quem atingia cem por cento de positivas, estás a ver... O homem precisa mesmo de ter com quem desabafe! E agora, ainda por cima, vocês meteram-lhes as unidades capitalizáveis de dia! Pior, ficaram no turno da tarde, o que no País inteiro acumula mais fracassos. Depois de todas aquelas provas de que é uma alternativa tão eficaz, só faltava mesmo uma imposição deste teor! E não queres tu que acuse o Ministério de promover intencionalmente a hecatombe escolar! É que, se não for isto, então uma de duas, qual delas a pior: uma incompetência que raia o crime, de tão irresponsável, ou, eventualmente, uma loucura generalizada... Que venha o diabo e escolha...

 

-...Como é que os nórdicos logram sucesso no modelo? Ora, também aqui há alunos que singram muito bem. O Dr. Garrido fala-me muitas vezes na Isabel, é um caso exemplar. Foi uma aluna que adorou a metodologia activa, logo no primeiro ano escreveu-lhe o programa todo em poemas! Agora repara: em primeiro lugar, lia e interpretava tudo com a maior das facilidades. Depois, tinha hábitos de estudo e autêntico entusiasmo pelas descobertas da aprendizagem: o ano inteiro lhe veio falar dos livros que lia, dos filmes que via, dos programas televisivos onde encontrara revelações. Finalmente, sabia muito bem o que queria da escola e da vida, uma pessoa muito determinada e definida, já casada, com um bebé e uma carreira profissional firme. Com alunos destes, claro! O regime normal, para eles, até constituiria uma traso. O problema é quantos encontras tu assim. Olha, na escola do Dr. Garrido, em cento e vinte, foram dois. Ora, se as unidades capitalizáveis integrassem exclusivamente alunos destes, imagina o fenómeno! O que os nórdicos compreenderam foi isto: é um regime para indivíduos adultos, com personalidade forte e autónoma, sem dificuldade em singrarem pela cultura escolar além pelo próprio pé. Isto não tem nada a ver com o tipo de aluno amorfo, invertebrado, ignaro, infantilizado, avesso à escolarização e semi-analfabeto que o ensino obrigatório nos fabrica em série. Que é que era de esperar? Teria de dar no que deu... Além disto, ainda são púberes ou adolescentes, nem idade têm para caminhos autónomos, quanto mais...

 

-...A alternativa? Mas é evidente: o funcionamento em paralelo e em simultâneo dos dois regimes. O normal, para todos os josés rodrigues que serão quase a totalidade; o de unidades capitalizáveis ou blocos, para as isabéis de excepção que, apesar de tudo, vão desabrochando como raras flores no meio do pântano. Com isto, e permeabilizando o trânsito dum para o outro (para os que se forem tornando adultos, amadurecendo entretanto, de ano em ano), terás a optimização, porque não bloquearás nenhuma das potencialidades. Agora sempre quero ver se vocês pretendem mesmo resolver o problema ou se não é tudo antes fogo de vistas...

 

-...Está bem, está bem. Fico à espera para ver. Para mim, só os factos. Vamos embora, que se faz tarde. Para a semana há mais. E vê lá se te não deixas enrolar, está bem? Até lá!...

 

 

 

 

 

 

 

 

Mazela 5

 

 

- Então? Aquilo lá por Aveiro foi uma consagração, parecias quase o senhor Dom Rei a passear entre os súbditos, hã? Não há dúvida de que as comunidades escolares esperam muito de ti. Vê lá o que fazes...

 

-...Ofertaram-te os pipinhos de ovos moles, claro. Mas isso que aí trazes é demais, é um grande pipo! É quase uma pipa de ovos moles, com mil diabos!...

 

-...Em miúdo regalei-me muitas vezes com eles, sou oriundo lá do distrito, lembra-te. Uma rica sobremesa.

 

-...Isso é uma proposta muito subversiva. Entremeaar ovos moles com quê?! Licor de mel? Mas que raio...? Tudo bem, vamos à prova! Nós cá experimentamos tudo e depois ou gostamos ou não. E ponto final!

 

-...Qualquer licor popular te lembra o patinho feio? “Ninguém gosta de mim, ninguém gosta de mim!” Pois cá eu, não, lembram-me os deficientes que vocês integraram (e com prioridade absoluta) nas escolas normais, a “escola inclusiva”. É o máximo, somos o País mais avançado do mundo: conseguimos votar os deficientes ao maior abandono e desastre escolar do planeta! Muitos parabéns! E andamos a vangloriar-nos da façanha pelos fóruns internacionais! E estes, tão palermas, ainda nem deram por nada! Não fora a má sorte dos desgraçados deficientes, isto era uma das melhores anedotas da minha vida.

 

-...Mas como evitar o sarcasmo se o que os teus benditos peritos fizeram foi rigorosamente aquilo?

 

-...Ai não?! Olha, numa Primária de Sacavém, onde inscreveram obrigatoriamente uma criança neurótica profunda, com trauma pré-natal, a quem venho prestando apoio desde que nasceu na maternidade Alfredo da Costa, há sete anos, duma prostituta morta no parto, ao mesmo tempo enfiaram um invisual e um surdo-mudo. Nenhuma das professoras entende nada do alfabeto Braille nem de linguagem gestual. E quanto a um neurótico com bloqueios pré-natais nem sequer imaginam o que isto será, quanto mais como lidar com ele.

 

-...Um caso-limite?! Andas muito mal informado. E digo-te mais. O simulacro de rede de apoio pedagógico é ali deveras exemplar: há duas peritas para apoiar aquela escola, cada qual com mais três outros estabelecimentos à conta dela. Uma ainda tirou uma curta especialidade em defeitos de linguagem oral e terapias correlatas, a outra, nem isto. Concorreu porque não tinha vagas na rede de escolas e ficou. Nem mesmo tem experiência de trabalho directo praticamente nenhuma. Andam para ali as duas feitas parvas, a aflorar em voo rasante cada escola umas duas vezes por semana. Que é que elas têm para ajudar as colegas que enfrentam os alunos-problema no quadro da aula? Nada! E, mesmo que tivessem, que é que poderiam empreender? Iam ensinar Braille ou língua gestual às professoras dos deficientes? Numa ida a correr, “que estão à minha espera nas outras escolas”? É uma conjuntura para rir ou que diabo é isto?

 

-...A seriedade ministerial é espantosa! Mas pronto. Agora repara: imagina que as docentes aprendiam Braille, linguagem gestual e até como abordar, estimular e desenvolver um neurótico cheio de bloqueios pré-natais. Que é que iam depois fazer em aula? Dedicar-se ao caso-problema e abandonar o resto da turma? Dar-lhe cinco minutos de cuidados e depois correr para os demais?

 

-...Pois claro, vocês lá no Ministério da Educação são todos génios! Um atendimentozinho particular ao deficiente e fica tudo resolvido? Não há dúvida de que precisais mesmo de bater com o nariz no problema. Venham para a sala de aula, venham, e tentem abordar cada caso destes. Quando ficarem completamente esmigalhados talvez ganhem juízo.

 

-...Que diabo, então não há ninguém neste maldito Ministério que saiba que as deficiências profundas apenas se recuperam (e é quando recuperam!) com dedicações exclusivas? A cega surda-muda Helen Keller algum dia poderia tornar-se na personagem brilhante em que se tornou se a mãe dela não se lhe houvera dedicado a tempo inteiro dezenas de anos pegados? Na vossa escola inclusiva ficaria uma analfabeta para o resto da vida, a pedir esmola a uma esquina qualquer. É o que vocês andam a fazer dos nossos deficientes. E o mais espantoso é que se vangloriam por esta Europa fora por darem cabo deles, de facto, a pretexto de os incluírem no convívio dos normais! Vocês, lá no Ministério, não serão, afinal, um bando de anormais todos, definitivamente irrecuperáveis?

-...Pois, já cá faltava esta! Com que então apenas há duas escolhas: ou escola inclusiva ou escola segregada. E o resto do mundo é estúpido, não é? Como ninguém mais vai por aí, não há dúvida de que unicamente os teus iluminados é que descobriram a grande luz. Andou tudo enganado a empreender ensino especializado aparte da rede normal sem razão nenhuma. Enfiam-se os deficientes no meio dos normais e fica tudo magicamente resolvido. Metem-se os loucos entre os sadios e eles ficam curados, os neuróticos no meio dos equilibrados e a neurose evapora-se por varinha de conddão, os cegos no meio dos visuais e a cegueira cura-se, os sudos-mudos até desatam a fazer sermões à António Vieira, os mongolóides mudam de código genético e assim por diante... Não queres propor os teus peritos ao Prémio Nobel? Ganham-no, de certeza! Se tudo for assim...

 

-...Que raio! Isto não é exagero. A maneira como obrigaram a enfrentar o problema implica rigorosamente aquilo. Não tenho culpa de estares rodeado de gente ou completamente estúpida ou duma ignorância de calhaus!

 

-...Ó pá, é que isto irrita um santo, desculpa...

 

-...Não, não defendo nenhuma escola segregada, nem ninguém no mundo terapêutico nem pedagógico a requer. O problema é que a tua pretensa escola inclusiva apenas o é no papel. Na prática é a mais excluidora de quantas alguma vez tivemos e no mundo se experimentam. E o vosso triunfalismo a cantar vitória sobre o sangue de tantas vítimas indefesas é absolutamente asqueroso. Vocês aqui metem nojo a quem tenha uma ponta de sensibilidade ética. Nunca a escola abandonou a tal desamparo os nossos diminuídos, esta é que é a verdade dos factos.

 

-...Está bem, vamos por partes. Não, não quero que elimines a rede do apoio pedagógico. A professora lá do meu miúdo apoiado, o Vasco, até tem motivos para desejar aquele auxílio. Contou-me que o ano transacto teve uma aluna que por qualquer razão bloqueou a oralidade até meio do ano dentro da escola, nem uma palavra a ninguém, nem aos colegas, nem à mestra, nem às auxiliares. Entrava muda e saía calada. A pobre da professora esgotou todos os estratagemas para levar a pequenita a desinibir-se e nada. Fora da escola, porém, a aluna falava pelos cotovelos. Ora bem, como contava com a perita em logoterapia no apoio, remeteu-lhe o caso. Foi trigo limpo. Logo à primeira e sem hesitações, esta colega isolou por momentos a miúda e pronto, a conversa desencadeou-se espontaneamente sem mais bloqueios. Nem chegaram a descortinar que é que teria provocado aquele distúrbio tão persistente na comunicação em ambiente escolar. Nem sequer no recreio a rapariga até ali tinha falado com ninguém. E de repente, sem mais, questão resolvida.

 

-...Ah, sim, concordo contigo em dois pendores. Primeiro, que pode ser útil a rede de apoio pedagógico para ajudar a resolver dificuldades de aprendizagem, com a troca de experiências, com a tramitação de informação relativa a métodos, estratégias e atitudes, com intervenções pontuais especializadas ou específicas. Em segundo lugar, o mais limitativo desta eficácia é a inexperiência dos intervenientes, às vezes bem mais incapazes do que os próprios professores que requerem os apoios. Assim, de facto, não chegamos a lado nenhum. Ainda bem que vês isto. Quem mais por lá tem tal noção?

 

-...É geral? Muito me espanta! Não estás a exagerar? Aquele ambiente do Ministério leva-te à certa... Bem iludido deves andar!

 

-...Tudo bem, tudo bem. Mas repara no que é inaceitável: como é que partes daqui para concluir que o modelo é adequado?

 

-...Ai não é, não! Que é que podem fazer pelo Vasco, o miúdo meu paciente, as professoras de apoio?

 

-...Claro, a colega inexperiente está fora de questão. Se nem para alunos normais tem competência particular, quanto mais para um neurótico profundo.

 

-...Se a outra, em lugar de logoterapeuta fora psicóloga clínica, por exemplo? Não resultaria na mesma, homem! Mas vamos devagar. Repara na conjuntura que criaram com a tal medida avançadíssima de escola inclusiva. Aqui era requerida, nas tuas palavras, mestria de psicologia clínica. Pois bem, ela pode muito bem existir na equipa de apoio pedagógico das escolas ao lado e lá não haver aluno nenhum a precisar dela. Como pode haver lá estudantes a requererem terapia da fala e não haver lá ninguém que entenda nada disto. É inteiramente fortuito, com o vosso modelo, o milagre da convergência. Isto, para além de já ser um milagre encontrar alguém com alguma competência especializada que valha alguma coisa, quando os problemas atingem gravidade. Milagre sobre milagre, tudo é milagre, na vossa escola inclusiva. O teu Ministério não é da Educação, é da crendice e da superstição. Se desatarem a pregar ao País, ainda irão ter romagens maiores que as de Fátima. O problema é que não fazem milagres, não é?

 

-..Pois gozo, que é que queres que faça?

 

-...Não estou a desdizer nada. A rede tem de manter-se, no modelo actual, para atendimento das dificuldades de aprendizagem. O aspecto criticável é apenas o de integrar inúmeros professores sem qualquer preparação de ensino especial, grande parte dos quais nem mesmo experiência lectiva têm. Mas até aqui estamos de acordo, não é?

 

-...O que é extraordinário é que vocês fiquem tolhidos pelo facto de a maior parte das vagas a concurso ficarem sem concorrentes. Não perguntam porquê? Que raio haverá na rede de apoios de tão pouco atractivo que os docentes tendem todos a fugir-lhe? Olha, a professora do Vasco contou-me o teor das conversas com a colega mais perita. Sempre que lhe falou do miúdo a resposta foi: “Eu não entendo nada dele, que queres que eu faça? Mesmo o curso de terapia da fala que fiz julgas que me ensinou muito? Não, foi tudo em regime intensivo, pela rama, não tivemos nenhum estágio com ninguém mais experiente, isto é uma mistificação pegada. Para problemas simples, juntando o que aprendemos com a experiência e um bocado de intuição, até aí ainda conseguimos alguma coisa. Daí para a frente é uma frustração. Todos na equipa de apoio pedagógico nos queixamos do mesmo. Para o mais grave ninguém tem respostas, isto não serve mesmo, este modelo é uma burla completa.”

 

-...Não mistures as coisas. Evidentemente que urge investir e aumentar permanentemente a formação, cada vez mais especializada, para implementar a eficácia da intervenção destes agentes de apoio. E também ninguém irá pretender que isto vá conseguir-se do dia para a noite, é uma tarefa interminável, perfectível ao infinito. Tudo bem, não tenho qualquer objecção contra, não alinho nos argumentos da oposição descabelada que sempre embarca por aí, explorando os continuuns de desenvolvimento com catastrofismos. Como, aliás, vocês embarcaram também quando foram oposição. Podem bem limpar as mãos à parede!

 

-...Qual é a minha reserva? Olha, é simples. A logoterapeuta lá da Primária para mim clarificou tudo. Não entendes? O erro está no modelo. O mais são insufuciências da implementação dele, colmatáveis com tempo, persistência e mais recursos investidos aí. Isto, porém, não resolve o erro dele. Melhora a eficácia naquilo para que ele serve, jamais o levará a atingir aquilo para que ele não serve nem servirá nunca.

 

-...Continuas a não entender? Então vamos a um caso, que vês logo. Lembras-te do meu estágio no Instituto Jacob Rodrigues Pereira, na Casa Pia de Lisboa? Estava no princípio da carreira ainda, já lá vai um bom par de anos. Foste lá comigo um dia almoçar à cantina da provedoria, por trás dos Jerónimos. Já se te varreu? Ora, a Professora Elisabete, dos surdos-mudos, comeu na nossa mesa, tu até ficaste perturbado. Qaundo saíste comentaste que nunca poderias leccionar ali, que senão, ao fim de pouco tempo, quem ficaria surdo-mudo eras tu. Vês como te lembras? Nunca darias para o ensino especial, juravas. A verdade é que nunca te meteste por ele.

 

-...A que propósito vou buscar isto? Não, não tem nada com regredir lá atrás. É que eu tenho mantido a ligação ao Instituto regularmente, há sempre alunos a requerer diagnóstico, às vezes tratamento. Há dias trocávamos lá imptressões à mesa, contava-lhes que do Vasco, ao fim de sete anos em que o acompanho, com duas consultas por semana, mais outras três duma psicóloga lá da políclínica, entremeadas com as minhas, depois de tanto envolvimento, o que até agora lográmos foi apenas um estado geral de acalmia emotiva, autodomínio comportamental nas rotinas do quotidiano e uma quebra na agressividade no convívio entre alunos. Ainda não atingimos mais longe, apesar da intensidade e persistência do apoio. Aí então a tal perita Elisabete entrou na conversa dizendo, parecia a despropósito, que os mestres de surdos-mudos tinham desistido todos. Como eu não entendi aquilo, comentou-mo o monitor da relojoaria, o Adérito. Os de lá do Instituto continuam todos o trabalho de ensinarem a língua gestual, os que havia na extinta rede de Centros de Ensino Especial do País, esses é que desistiram de integrar o concurso nacional do apoio pedagógico.

 

-...Porquê? Pois aí é que bate o ponto: por falta de condições para darem conta do trabalho. O modelo adoptado por vocês pode ajudar nas dificuldades de aprendizagem de alunos normais, não permite o atendimento dos deficientes, menos ainda dos profundos, cujas falhas se repercutem gravemente nos desempenhos escolares.

 

-...Mas então não vês? Como é que ensinas linguagem gestual a um aluno se o professor a ignora e se a equipa de apoio não tem nenhum perito nela? Ou, tendo-o, se ele apenas pode andar a pular de escola em escola, a explicar a cada docente como é que deveria ser feito aquele ensino, caso houvera alguém que o pudera operar, e que era colocar o perito com o educando em ensino individualizado ou em micro-ensino (com mais dois, três ou quatro surdos-mudos), a tempo inteiro, a praticarem aquele modo de comunicação e a tramitarem nele todo o conteúdo programático das aprendizagens escolares? O vosso apoio pedagógico é inteiramente incompatível com isto. Ora, sem tal, os deficientes graves ficam completamente abandonados, uma vez que também extinguiram as Equipas de Ensino Especial da rede de Centros que anteriormente cobriam o País.

 

-...Ai não compreendes como é que continuas a encontrar alunos destes a diplomar-se? Pois eu compreendo. Neste momento todos os peritos optaram pelo ensino privado, ou acolhendo alunos em casa, ou montando escolas particulares, ou integrando instituições de apoio de iniciativa familiar e assim por diante... Como o estado atirou os deficientes às urtigas, olha, cada qual defende-se como pode. O vosso cinismo a proclamar aos quatro ventos que têm a lei mais avançada do mundo, quando o que estão a implementar é isto, é duma perversidade aberrante.

 

-...Essa é boa! Claro que, a partir do segundo ciclo, encontras alunos destes nas escolas, integrando com sucesso turmas normais. Olha, o mestre Adérito tem vários hemiplégicos na oficina dele, lá na Casa Pia, e vão dar com certeza excelentes profissionais. Foi sempre deste modo, desde o começo. E daí?

 

-...Não contradiz nada o que te estava afirmando. Na conversa que tivemos há dias, ele comentava o caso dum aluno clarinho. Não é viável, por exemplo, fazer dum invisual um relojoeiro eminente, nem sequer lhe vai parar às mãos. Ora, é deste modo com todos. “Quando um cego, um surdo-mudo ou um paraplégico aprendem no básico as técnicas para singrar na escola” - comentava o Adérito - “podem, a partir do segundo ciclo, frequentar sem dificuldade de maior o currículo normal com os mais. Basta-lhes um complemento regular de apoio nas técnicas que dominam, por exemplo textos em Braille. Por isso é que a rede de apoio pedagógico opera apenas no pré-escolar e primeiro ciclo. Daí para cima todos entenderam que ela apenas serve para ajudar a transpor obstáculos aos alunos normais, portanto, para isto, bastam os corpos docentes com que já contam nas escolas.” Quando lhe perguntei: “Então e os deficientes profundos?”, respondeu-me: “De duas, uma: ou ficaram definitivamente pelo caminho ou então já dominam as técnicas específicas da respectiva deficiência, o que os equipara de facto aos estudantes médios com algumas dificuldades próprias. Nestes a integração opera bem. Os mais ficarão perdidos de vez. É por causa disto que a partir do segundo ciclo o problema não se coloca.”

 

-...Claro que a panaceia universal não existe, nem eu estou a partir de tal pressuposto. Há-de haver fatalmente muitas perdas, muito insucesso, muito irrecuperável. Agora uma coisa é certa. Com o vosso modelo actual o meu paciente Vasco não tem qualquer atendimento, apoio nem resposta.

 

-...Pois eu entendo que podia e que devia ter.

 

-...Não, não! Pretendo lá agora que a escola substitua a rede de saúde mental! O Vasco deve continuar a ser meu paciente e da psicóloga que o acompanha enquanto precisar. Mas não estás à espera que nós façamos a escolarização dele ou estás? Ora bem, ele tem capacidade para a fazer, mas, integrado numa turma normal, nem aprende ele nem permite vida fácil à mestra e, se calhar, nem aprenderão os outros por causa dele. Aliás, há muitos dias em que ele se descontrola e então é mesmo isto: uma perda total para toda a gente, sem proveito que se vislumbre em aspecto nenhum. O Vasco é mesmo um caso típico para entender a asneira e compreender a saída que falta pôr de pé. Não há resposta na rede escolar para o deficiente profundo.

 

-...É evidente que entre a dificuldade escolar e a deficiência profunda há um continuum no qual é inviável colocar uma fronteira. Estou a falar-te de extremos para entenderes que a rede de apoio pedagógico é por inteiro ineficaz a partir do momento em que atinjam alguma gravidade os obstáculos de aprendizagem a transpor, mais nada. Fica então claro que todos os casos graves findarão irremediavelmente sem atendimento, à escala do País inteiro. Se não houvera alternativa, teríamos de aguentar, que remédio! Mas a questão é que há e apenas a vossa cegueira a continua a impedir. Disto é que acuso o Ministério da Educação.

 

-...Não, não é restaurar os Centros de Educação Especial, não é voltar à escola segregadora. Nem os peritos daquela rede extinta alinhariam em tal. Há quantos anos andavam eles a pedir uma remodelação!

 

-...A professora Elisabete ilustrou-me, com o caso dela, como deveria ter sido feito e não foi, e como deverá reajustar-se, para tudo bater certo. Inscreveu-se num curso de tapetes de Arraiolos, no centro de formação lá da zona, ela, uma surda-muda, única entre professores falantes. Ora, não está tendo dificuldade nenhuma. Por quê? Porque aprendeu a ler os lábios dos comunicantes orais para compreender o que dizem e escreve (ou fala, uma vez que o consegue) quando precisa de perguntar ou tirar dúvidas. Atingidas estas condições, qualquer surdo-mudo pode incluir-se em qualquer escola, em qualquer turma, aqui a inclusão não oferece reservas, qualquer frequência aparte só traria prejuízo para todos.

 

-...Evidentemente que a inclusão é óptima quando resulta. O problema é, pois, o que se deve garantir para que resulte. Para a Elisabete é muito simples, é o que têm lá na complementaridade dos vários estabelecimentos escolares da Casa Pia de Lisboa. Os surdos-mudos, primeiro, ficam a tempo inteiro entregues à equipa da comunicação gestual, até dominarem esta e, a partir daqui, descodificarem a oralidade e a escrita, a fim de que toda a reciprocidade devenha viável. Apenas então a escola inclusiva pode ser total, mantendo-se, contudo, um apoio complementar para qualquer dificuldade superveniente.

 

-...Não, não é de enfiar na Casa Pia todos os deficientes, não estás a entender. Este modelo funciona e escolariza adequadamente. Logo, era o que deveria ter sido estendido, logo à partida, na rede, não o apoio pedagógico. Dito doutro modo: as equipas de ensino especial, com os respectivos técnicos, com os peritos, os equipamentos e os recursos, deveriam ter sido integradas em escolas normais, numa rede que cobrisse adequadamente o País, ficando a fazer parte do serviço de cada um destes estabelecimentos à comunidade. Então, sim, com o ensino especial incluído dentro do normal, os deficientes, de qualquer grau de gravidade, teriam atendimento integrado em qualquer região do País, na escola que a cada qual mais ficasse à mão, com a correspondente especialidade técnica disponível.

 

-...Não, isto não os segrega, como os não segrega o Instituto Jacob Rodrigues Pereira dentro dos casapianos: estiveste lá a almoçar também com alguns deles, quando lá foste. Isto é que é a escola inclusiva deveras, não a mistificação que vocês andam a apregoar cá dentro e lá por fora. Se tu cobrires o Pais com uma rede de equipas de ensino especial fixas em escolas determinadas, integradas por peritos nas várias áreas de deficiência, aí é que terás a inclusão dos deficientes na escola, com o atendimento personalizado que cada um requerer, combinado com a paticipação na comunidade escolar de que cada qual, a cada momento, for capaz.

 

-...Como é que farão? É fácil. Com os expertos integrados na vida do estabelecimento, logo eles verão o que mais convirá e o que é eficaz para colmatar cada tipo de deficiência, em cada período de evolução ou desenvolvimento do aluno. Olha, seria normal os recreios serem compartilhados; na maior parte dos casos, as cantinas também. A biblioteca, a sala de estudo, a reprografia, os campos de jogos, o bar, igualmente. Em vários casos, também certas disciplinas podem ser frequentadas em regime normal. E assim por diante. E acompanhando a passada de cada recuperação, onde elas forem viáveis e ocorrerem.

 

-...Por que não é tudo? Mas é óbvio. Promovem a inclusão onde ela opera e gera sucesso escolar e individual. Intervém o acompanhamento e a aprendizagem aparte onde não há condições ou nível de desenvolvimento para aquilo ocorrer. E é justamente para que aquilo possa vir a registar-se no maior número de campos e de casos possível que teremos de ir por este caminho. Doutro modo, terás a trágica anedota da conjuntura actual: os deficientes a ombrear com os demais no mais completo abandono, frustrados, incapazes, ignorados. Votados ao fracasso escolar mais fatal e sem recurso. Jogá-los a monte no meio dos outros, em condições iguais, quando nem estes, por norma, aprendem algo de jeito, é querer mesmo condená-los sem remissão. É a mais brutal das segregações: a solidão completa no meio da multidão. Chamar a isto escola inclusiva, valha-vos Deus! É preciso andar muito distraído! E então tomá-lo como ideal, a papagueá-lo pelo mundo... Eu até tenho vergonha, palavra de honra. Vocês andam cegos ou que diabo é isto?

 

-...Até de acordo com a vossa lógica o modelo não faz sentido. Uma escola inclusiva é a que inclui nela as múltiplas valências da escolaridade. O ensino normal, o de unidades capitalizáveis, os currículos alternativos, os cursos profissionais e, na mesma linha, o ensino especial. Ela é inclusiva por englobar no respectivo leque de atendimento as correspondentes modalidades, com os docentes, mestres, técnicos e peritos adequadamente enquadrados e disponíveis. Não é inclusiva por enfiar para lá deficientes sem ter com que os atender. Como diabo é que no resto entenderam tudo correctamente e com estes elaboram depois uma leitura e uma implementação tão disparatada? Os alunos normais requerem toda uma panóplia de alternativas, de especialidades e de especificações. Os deficientes, não. Não precisam de nada, são todos de repente mais que normais: bastam umas dicas, a correr, dum elemento de apoio àquele que reger a turma e fica tudo resolvido. Extraordinário! Quem inventou isto acredita em bruxas ou então tem uma varinha de condão: um toque mágico e então a gata borralheira vira princesa! E o pior é que vocês vão nesta leva todos, não é?

 

-...Pronto, eu calo-me já. Só mais um pormenorzinho. O mestre Adérito garante-me que lá não dão certificado profissional a nenhum aluno que não esteja à altura de responder por ele no mercado, perante qualquer patrão ou cliente. Que diabo pretendem vocês, no Ministéerio da Educação, com a avaliação e certificação obrigatoriamente equiparada dos deficientes aos demais alunos durante o ensino básico? A quem pretendem enganar? À comunidade, não, que ninguém é parvo a tal ponto. Aos deficientes? E vocês crêem que isto é educar, é formar?

 

-...Não há dúvida de que a vossa ideia de inclusão está mesmo pervertida. Vocês não entendem que tratá-los por coitadinhos é enclausurá-los no coitadinhismo? Isto é que é discriminação. Para quem tanto cisma com a escola inclusiva...

 

-...Como é que era? Eu digo-te como. A minha colega psicóloga da policlínica trabalha com um centro de formação laboral dos Olivais, mormente com deficientes. Quase todos acabam com um certificado de habilitações. Olha um caso, apenas mais um: tiveram lá um tal Miguel na marcenaria, um pequeno mentalmente muito retardado e de reflexos muito lentos. De técnicas de marceneiro nem uma aprendeu, escepto a de lixar peças, que executava com muito gosto. Para o fim, conseguia varrer e deixar toda limpa a oficina. Imaginas o que consta do diploma dele? Não é que é marceneiro, como vocês lá no Ministério pretenderiam. Não, aqui não há aldrabices nem coitadinhices. Está lá clarinho: “Apto a lixar peças sob o comando dum marceneiro. Apto a limpar e deixar arrumado o local de trabalho.” E mais nada. Entendes? Isto, sim, é educar, não é enganar ninguém, nem a ele nem aos mais, de dentro nem de fora. Franqueza franquezinha, à velha maneira portuguesa. E pronto, agora calo-me.

 

-...Ah, pois claro, o serão lá se foi e a gente nem deu por ela. Então adeus e dorme bem. Até para a semana. Vou a Beja, espero trazer de lá um petisco jeitoso. Olha, bom trabalho!

 

 

 

 

 

 

 

 

Mazela 6

 

 

- Entra, entra, bem vindo. Os meus colegas de Beja levaram-me de surpresa descobres aonde? A Barrancos. Um programa completo. Ouvi falar barranquenho, o dialecto ainda não reconhecido oficialmente. A propósito, porque o não consagras tu? Depois do mirandês, era o segundo e não temos outro. Olha que deverias cuidar dele, que é mesmo giro, uma salada com o linguajar de além-raia que é logo ali ao lado e também é um regionalismo de nuestros hermanos, mal aparentado ao espanhol normalizado de Castela.

-...Já lá vamos, já lá vamos. Mas antes, olha, sabias que eles têm um reportório enorme de cantos tradicionaais, um folclore inteiramente diferente de quantos até hoje ouvi dos recantos todos do País? É verdade. A música rica dos pobres, acompanhada a palmas ritmadas, cheia do paladar cigano do sul de Espanha, com os versos, a fala e o sotaque locais muito marcados. Dei por mim a bater o pé como os demais, por pouco não entrei nas rodas com que eles dançam e folgam.

 

-...Pois, o aperitivo. É que isto hoje é mesmo uma ceia. Não conheces os enchidos de Barrancos, pois não? Eu nem sequer tinha ouvido falar deles. Levaram-me a fazer uma prova. Foi uma série de qualidades, não as logrei fixar, qual delas de sabor mais requintado. Ofereceram-me uma quantidade enorme do que eu mais fui apreciando. Vais ver o chouriço, o paio e o salpicão deles. E tenho também um naco de presunto curado que nem te digo!

 

-...Não, espera aí! É que isto não é tudo. À ida demos uma volta por Moura, um dos meus colegas aproveitou para umas compritas numa mercearia. Sabes o que era? Azeitonas de cura por receitas familiares secretas, cada qual com um gosto peculiar. Levaram-nas de propósito para as combinarem com os enchidos. Mas há mais. Desviaram pela Amareleja, disseram-me que para ouvir cantar o português. E, a propósito, sabes que lá, ao falarem, ainda o cantam? Ao que eles me contaram, tal qual como se presume que seria a oralidade em finais da Idade Média. É mesmo lindo! Muito mais sonoro e melodioso até do que o sotaque brasileiro, ao que parece outra reminiscência daquela pronúncia de antanho. Nunca tinha ouvido falar português com tais ritmos, acentos, prolongamentos silábicos, é mesmo um chilreio, uma cantilena desatada!

 

-...Pois, foi um pretexto. Não me quiseram contar, para me fazerem a surpresa. Adquiriram um vinho particular, um branco muito apurado num produtor familiar de lá. Não há no mercado, só mesmo entre amigos e conhecidos, é uma quantidade diminuta. Bom, vais ver e depois dizes-me. Eu adorei. Ah, ainda falta a triga-milha, um pão de mistura que só lá mesmo no Alentejo!

 

-...Bem te dizia que era uma ceia. Não são uns meros digestivos, hoje é dia de banquete. Um programa completo. E dos mais motivadores, dos mais motivadores...

 

-...Por acaso não te estava a picar, mas olha que vem a propósito. Os vossos programas, se calhar, em termos de motivação, ainda pecarão mais agora do que os do nosso tempo... Bem, também não creio que é tanto assim, os meus pequenos mais novos ainda apanharam esta reforma de ensino e, pelo menos durante o segundo ciclo, houve áreas que adoraram, as práticas e de aplicação. Ainda guardo ali como recordação um carrinho de madeira que o mais novo executou nos Trabalhos Manuais. Aliás, da irmã ainda lhe decora a parede do quarto um quadro que ela desenhou e teceu nas mesmas aulas. Mas julgo que vocês perderam uma oportunidade única.

 

-...Obviamente que um currículo de cultura crítica, como tem de ser o escolar, não é feito para agrado. Se tal fora o critério de escolha, acabaríamos sem programa nenhum. O saber de rigor e precisão obrigou a muito suor e lágrimas para se descobrir e leva outro tanto para permitir que o dominem. Logo, à partida, não é muito atractivo para ninguém. Já a Bíblia sugere que o trabalho é uma condenação, não é?

 

-...A questão é outra. O fim de semana transacto fomos até uma esplanada em Sesimbra, para uma mariscada ao pôr-do-sol. Era para ser apenas em família mas, olha, encontrámos lá Dr.ª Maria da luz, uma antiga paciente minha, da fase da elaboração dos programas desta reforma. Sabes porque é que me caiu no consultório? Porque o companheiro actual dela, durante aqueles meses, andou num desvario. Era coordenador de vários dos grupos de trabalho que andavam a organizar os novos currículos e foi-lhe inteiramente vedado, meses seguidos, definir quaisquer critérios para escolher e ordenar os conteúdos programáticos. Os docentes requisitados teriam de criar programas inteiros sem qualquer fio condutor de referência. Ele, claro, ficou com a cabeça em água e, como é costume, ela é que acabou por precisar de apoio. Pois no sábado juntámo-nos todos à roda da mesa lá em Sesimbra e pegámos à conversa.

 

-...Definir critérios iria condicioná-los?! Que raio de argumento! E não definir que é que faz? Então não vês que, de duas, uma: ou estavam por dentro das escolhas e fundamentos da lei relativa ao desenvolvimeento curricular (o que era impossível porque nenhum deles tinha feito parte do respectivo grupo de trabalho) ou então apenas lhes restaria recorrer aos critérios tradicionais, o que era tudo menos entrosar-se na reforma em curso? Ora, foi isto mesmo que todos fizeram, evidentemente. Não os condicionar à lógica da viragem foi condicioná-los à anterior. Queres continuar cego e não ver verdades do tamanho dum boi? Pois a vossa cegueira (ou má fé, não me venhas com coisas!) é que me atirou a Dr.ª Maria da Luz para o consultório: os indivíduos terem as soluções e não as poderem utilizar, tens de concordar que não dá saúde a ninguém e gera um stresse que arrasa qualquer um.

 

 

-...Qual era o problema, perguntas, se as unidades curriculares não se escolhem por mais ou menos atractivas, mas por pertinentes e eficazes? Olha, o marido dela contou-nos esta durante a conversa, a clarificar exactamente a pergunta. Tu lembras-te, na Primária, de quando decorámos a tabuada? Todos a cantarmo-la na sala de aula e a repeti-la em casa, para a chamada oral e as sabatinas? Nunca chegaste a apanhar reguadas por falhares? O desgraçado, naquele tempo, era o Tino, recordas-te dele? Se calhar não reparaste, que vocês, da tua família, como não eram oriundos de lá, vinham de longe, não conheciam bem a gente da aldeia. Ora, não importa. Para o caso a questão é que saber a tabuada sempre foi uma meta difícil e aborrecida de atingir, não conheço miúdo nenhum do nosso tempo que adorasse aquilo, bem pelo contrário.

 

-...Claro que é imprescindível que a aprendam, então como agora, senão temos aquela anormalidade que ocorreu na escola, na turma do meu mais novo. Com a mania das máquinas de calcular, um dos colegas somou dois mais dois, deu-lhe vinte e dois e ele achou que era assim mesmo. Até discutiu com a professora e tudo. Ora toma! A máquina tem sempre razão...

 

-...Evidentemente, também para os cálculos do quotidiano. A propósito, sabes que na nossa ida para o Algarve, em Março, o meu João comeu à borla? A rapariga da caixa, num dos restaurantes da auto-estrada, fez para lá as contas na calculadora, pagámos e ninguém reparou. Só depois de sairmos é que a minha mulher, ao olhar para o preçário, achou esquisito e pôs-se a calcular enquanto retomávamos o caminho. Dava muito mais, conferiu o talão e pronto: a moça errara ao meter os dados na máquina! É o pão nosso de cada dia com os novos diplomnados.

 

-...Ah, pois! O marido da Maria da Luz. Olha, o Rodrigo, o filho mais novo deles, vai agora para a terceira classe com a tabuada toda na ponta da língua e com um entusiasmo por ela que eu não entendia. Fez um brilharete à mesa. Era o pai: ”Nove vezes oito?” E o miúdo: “Setenta e dois. Viva o Sporting!” E a mãe: “Sete vezes seis?” Logo ele: “Quarenta e dois. O Sporting é o maior!” Desatou tudo a rir e eu sem compreender nada. Que diabo tinha a ver uma coisa com a outra? Também não te passa pela cabeça, não é?

 

-...É que tem uma professora que faz sempre aquilo na turma dela: um campeonato de futebol com as tabuadas. A turma organiza-se em equipas, cada qual adopta o nome da que prefere dentre as da liga da primeira divisão e principia o jogo. Cada acerto dum à pergunta doutro qualquer da equipa contrária é um golo: dá direito a trepar uma casa nos ladrilhos do chão da aula. E arranca uma salva de palmas da respectiva claque, formada pelos colegas que de momento não entram em jogo. Como todos pretendem ficar à frente, imagina o entusiasmo com que se aplicam a decorar a tabuada! E, então, atingir o topo da aula é ficar campeão: já vês como puxarão uns pelos outros, os melhores pelos mais fracos, a tentar chegar ali. Olha, garantiram-me que bastam sempre duas semanas cheias de euforia para a turma inteira, do mais esperto ao mais tapado, dominar a tabuada por completo. E lá o miúdo demonstrou-o bem, ainda a arder em fogo!

 

-...Claro que isto é uma escolha de estratégias da professora, é utilizar o jogo didáctico em aula. Não tem nada a ver com a definição dos programas. Não é por tal que to estou a contar.

 

-...Pois, não voltamos ao tema de impor ou não uma pedagogia, que já estamos conversados quanto à asneira de o operar. O marido da Maria da Luz, contudo, definiu-o bem: os programas podem induzir ou, ao invés, bloquear a proliferação de eventos como aquele. E foi nisto que o Ministério falhou nesta reforma: preferiu o bloqueamento.

 

-...Qual má vontade?! É um facto, que diabo!

 

-...Paz, paz! Eu explico tudo direitinho. Mas vamos devagar. Lembras-te do Ângelo Pinto, do nosso tempo de Coimbra? Aquele barraqueiro de Direito que se mentalizava para a época de exames com uma semana inteira de noitadas de serenatas?... Ora pois!

 

-...Era, era um bom aluno. Mas recordas-te da cena do exame de Processo Civil? Nunca mais me esqueceu, nunca encontrei, em lado nenhum, nada tão extremado: cinco mil páginas de matéria para dominar, digerir e debitar. Olha que o pior de Medicina, a Anatomia, que era o nosso terror de então, nunca chegou a tal exagero. O desgraçado adormeceu de exaustão em plena prova oral! Nunca engoli esta muito bem, mas com tantos colegas a confirmarem... Aliás, o Conselheiro garantiram que até chegou a ressonar, não é? Gostava de ter lá estado...

 

-...Vem isto a que propósito? É o ponto extremo a que pode levar o critério do enciclopedismo na delimitação dum programa. Foi sempre isto: cada listagem de conteúdos entendida como uma introdução geral aos saberes da respectiva área, embora adequada à idade dos alunos e ao número de aulas previsível para cada ano.

 

-...Sim, um caso extremo não é a norma, mas aqui revela desta o aspecto crucial: é que ninguém hoje, em área nenhuma de investigação, logra manter-se actualizado, por mais restrita que ela seja. Morreria de exaustão. Sabes o que lhe contou, ao meu filho mais velho, um professor de Matemática do Técnico, quando o meu rapaz andava lá pela biblioteca à procura dum livro para uma matéria em que ninguém conseguia entender nada? Já foi há uns anos. Desencantou-lhe um calhamaço, dum canto qualquer, do tamanho quase dum dicionário. “Olha para isto!” - apontou-lhe. - “é o número deste mês da revista de matemática desta associação americana. E estes escolhem e apenas publicam novas descobertas, novos desenvolvimentos. Mensalmente, é um volume deste tamanho. Imaginas de quanto tempo precisaria um professor de matemática para dominar isto tudo? Eu digo-te: perto de seis meses, no mínimo. Ora, daqui a seis meses há já mais seis volumes iguais à espera de vez. Portanto, é inviável ir por aí. E o pior é que há mais uma boa meia dúzia de revistas de igual teor espalhadas pelo mundo, dedicadas apenas às novidades. Imagina lá! É completamente idiota alguém ter a veleidade sequer de lograr acompanhar isto, quanto mais de dominá-lo. Em todos os campos, doravante, este é o panorama. As regras de funcionamento tradicionais não se adequam a nada disto. A própria Universidade deixou de ser o santuário da universalidade dos saberes, já era muito bom lograr servir de porta de entrada aberta a eles, não lhes tolher o passo... É um imenso rio sem fundo, onde já ninguém consegue tomar pé.”

 

-...Aonde quero chegar? Respondo com outra pergunta: num contexto destes, que raio de fundamento tem o critério do enciclopedismo na escolha e listagem das matérias dum programa? Quem o continue a usar é que ainda não deu conta de que o panorama actual é aquele, é alguém inteiramente ultrapassado. Que matérias vão brotar das mentes de tais génios? Introduções gerais a quê? É completamente absurdo, tens de concordar...

 

-...Exactamente, é no que acaba por cair: uma listagem mais ou menos integrada de matérias arbitrariamente escolhidas, normalmente na linha do que estiver na moda, naquele momento, em quaisquer pós-graduações ou doutoramentos em curso. Se o trabalho for feito daí a meio ano, já poderá ser outra coisa qualquer e o mesmo seria caso o grupo fora relacionado com outras equipas de pesquisa e assim por diante. Isto é pouco menos do que vogar na onda do acaso. De qualquer modo, não é critério nenhum. Mas foi o que vocês implementaram.

 

-...De acordo, de acordo. Escolher domínios de base com posteriores desenvolvimentos potenciais, está bem. Olha, falámos das tabuadas, é um exemplo flagrante... Igualmente a linguagem técnica, mas apenas de conceitos-chave, em áreas onde persistam, que tudo muda muito rapidamente, como vemos. Mas onde for viável, recolher e arrumar estes dois vectores é prioritário. Agora não creias que daqui te brote um desenvolvimento curricular, nem por sombras! Ficarias, ao fim com meia dúzia de ninharias, mais nada...

 

-...Ai tu ainda acreditas que o encadeamento lógico das matérias, no contexto de considerandos pedagógico-didácticos, tem uma função positiva? Ainda não compreendeste nada, homem! É o contrário: foi o erro que depois os grupos de trabalho cometeram. Sem critérios definidos, era o que daria!

 

-...Espera aí, que entendes já! Tu lembras-te por acaso daquele Dr. Paulo que nos deu cabo do juízo com a Filosofia do sétimo ano, no nosso tempo?

 

-...Sim, eu hoje diria que ele era um esquizóide, mas para o caso não importa. Quando ele desatava a caminhar de lado a lado à frente da turma, a falar sozinho (que para nós não era de certeza), ninguém entendia nada!... Ah, e aqueles minutos de expectativa, quando ele ficava fito na trave do tecto, em contemplação extática, mudo como uma múmia!... Mas a verdade é que todos vivíamos convictos de que ele, lá na Filosofia, deveria ser um génio. Nós é que acabávamos mais em branco do que uma manhã de nevoeiro, à espera de algum D. Sebastião para nos vir ali salvar. Nunca cheguei a entender como é que ele depois dava aquelas notas. Andávamos todos às aranhas, que é que distinguia entre uns e outros? Enfim, deu-nos cabo do juízo e, quanto a mim, nunca mais pude olhar para um compêndio de filosofia, foi uma vacina mortal! Recuperei foi o gosto pelos autores, vá lá...

 

-...Não vês a ligação? Mas ainda hoje estás convencido de que ele vivia para aquelas matérias apaixonadamente, não é verdade? Então repara: ele foi o fruto acabado, (concordo que, no caso concreto, um bocado doentio) do que é um programa todo muito bem entrosado, lógico-dedutivo, caminhando ordenadamente dos conceitos gerais para os particulares, do teórico para o fundamento prático, do modelo de enquadramento para as exemplificações concretas. Isto convida mesmo à contemplação, dá prazer estético a quem domina aqueles campos, estimula a reflexão a revelar conexões, fios condutores... O Dr. Paulo deixou-se mesmo embalar como uma criança e o espectáculo indecifrável que nos deu naquelas aulas, o ano inteiro, foi apenas isto: o encantamento dele perante o olhar da serpente. Andava constantemente tão fascinado que ignorava que nós existíamos e que ele estava ali para nos servir. É para onde tende o tradicional critério lógico-dedutivo na formulação encadeada dos conteúdos programáticos: muito compreensível e apelativo para o professor, mas abandona os alunos de fora.

 

-...Ah, estou inteiramente de acordo com esses teus dois itens. Temos prioritariamente de conquistar os educadores e é claro que o estudante ignora o programa, senão não andaria a estudar. Ambas as coisas, porém, nada têm a ver com as reservas que te apontei.

 

-...Então não havia de haver alternativas, homem?! O marido da Dr.ªMaria da Luz tinha-as bem presentes. Sabes como e porquê? Ele, quando se efectivou, foi na Secundária Mousinho da Silveira, em Portalegre, aquela mesma onde o José Régio fez toda a carreira, até à reforma e à morte. Hoje ninguém já fala dele, mas nós bem o adorámos na nossa juventude, lembras-te ainda dos recitais de poesia, do “Cântico Negro”, nos saraus da Academia? Pois foi àquela escola que o concurso de efectivos o jogou. Durante o tratamento da esposa, esta contava e recontava as memórias deliciadas daquele ano em que tiveram de viver longe um do outro mas em que o sacrifício compensou pelas revelações que o marido teve. Então foi assim. Um grupo de colegas, todos amigos mas de várias disciplinas, decidiu naquele ano inaugurar uma cadeia de experiências pedagógicas inovadoras que animaram a escola inteira. Ele integrou-se entre os que escolheram pegar nos programas e dar-lhes uma volta completa.

 

-...É verdade, anteciparam o pedido que a reforma educativa agora leva aos professores. Mas o mais importante é que, juntando as tentativas, os acertos e as afinações, descobriram o que é que poderia despoletar o gosto de aprender e tornar gratificante o esforço e o sacrifício, encontraram os critérios alternativos para o desenvolvimento curricular no âmbito dos programas.

 

-...Olha, o marido da Maria da Luz ainda o fim de semana transacto mo contou. “A Paula, na Filosofia, foi à partida a mais radical: introduziu o programa pela última unidade, em lugar da primeira. Tinha duas boas razões para a inversão: 'é a matéria mais concreta', - contava ela – 'os valores, mormente os éticos, mexem com o quotidiano de qualquer aluno, isto logo à partida todos entendem; depois, é só atirar-lhes com um ou dois problemas mais polémicos, como ter ou não relações sexuais livres, romper ou não com a dependência e obediência familiar, sei lá, e não há um aluno que resista à tentação de se engalfinhar na disputa. A partir daqui é muito fácil conduzir a aventura a bom porto, então vão aprender mesmo, quase sem repararem.'” Ele e os demais daquele grupo foram mais comedidos, mas acabaram por ser arrastados pela tal Paula, por dar-lhe razão.

 

-...A Dr.ª Maria da Luz, no período crítico do tratamento, há meia dúzia de anos atrás, repetia-me os critérios alternativos quase como uma palavra de ordem. Referia ela, obsessivamente: “Se o critério enciclopédico é inexequível e inadequado, então, se queremos a democratização deveras, ele tem de ser substituído pelo motivacional. Os conteúdos são escolhidos e priorizados pela motivação potencial que tiverem para os alunos a que se destinarem, tendo em conta a idade deles e a cultura ambiente em que viverem. Foi no que eles apostaram na Mousinho da Silveira e ocorreu um salto qualitativo descomunal. Isto deveria ser óbvio, então porque o impedem? E depois o critério lógico-dedutivo na listagem é o pior, porque o itinerário do aluno ao aprender é ao contrário. Aquilo induz em erro todos os professores do País: vão leccionar por aquela ordem, do abstracto para o concreto, do geral para o particular, do teórico para o prático. Ora, ninguém aprende assim, mas rigorosamente ao invés: da prática à teoria, do concreto ao abstracto, do particular ao geral. Este é o critério genético-indutivo que é urgente que substitua o outro, para encaminhar adequadamente todo o sistema. Porque o proíbem? “ E eu ainda hoje o pergunto: porque o proíbem? Verdade verdadinha, vocês nunca querem deveras o que juram que querem. Ignoro é até quando continuarão a ludibriar o País...

 

-...Tudo bem, tudo bem. Eu conheço de sobra a tua boa fé, senão nunca mais porias os pés aqui dentro. Mas tu, em tal Ministério, pareces-me um miúdo a tentar arrastar uma montanha com uma guita.

 

-...Amanhã tens de arrancar cedo?! Ah, uma inauguração. Tanto fogo de vistas! Mas pronto, não percamos mais tempo. Adeus, até para a semana.

 

 

 

 

 

 

 

 

Mazela 7

 

 

- Olá, entra depressa, que senão ficas num pingo. Que chuvada, hein? Um outono bem inaugurado! O calor é que não baixa e já era bom que refreasse um bocado. É a tal coisa, andamos a descongelar os Oceanos Glaciares. Qualquer dia tens de chegar cá de barco, com a subida do nível do mar.

 

-...A minha surpresa de hoje? Olha, lembras-te de que eu fui a Beja? Pois. Não te contei que há lá uma pastelaria com um produto local muito típico: uma vara de porcos em chocolate. Dão-lhe um nome característico que já se me varreu. Não importa. É formado por um casal de bácoros com os respectivos leitões. Guardei-o ali para esta ocasião. Com que queres acompanhar? Um Madeira? Mas pouco doce, para desenjoar. Certo! Desta vez vou contigo, os sabores vão combinar bem. Cuidava que irias optar, sei lá, por um Tríplice ou por um Sheridan's... Aí não te acompanhava. Andas a ficar mais convertido aos sabores caseiros. Parabéns!

 

-...Também não digo que ponhas de parte os outros. O que é estranho é que venham cá, todos os anos, mais de vinte milhões de turistas provar a nossa culinária e ficam deliciados e depois nós, armados em gente fina, só apreciamos o que é estrangeiro. É uma maleita nacional muito antiga: o que vem de além-fronteiras é que é bom, dá estatuto e tem estilo. E às tantas o que temos de portas adentro pode bem pedir meças, os turistas que o digam!

 

-...Isso, isso! Vem-me cá com a de apoiarmos o que têm de bom! Olha, não te basta de exemplo o que vocês fizeram com a gestão das escolas? Também a copiaram, à partida, da Inglaterra e vê lá que lindo efeito!

 

-...Ai tu ainda continuas convencido de que é um modelo adequado! Não reparas no que anda a ocorrer no terreno, pois não?

 

-...Evidentemente que há casos e casos. Olha, ainda ontem fui, à tarde, a um Centro de Saúde na Damaia, a pedido dum colega meu, por causa dos problemas com o equilíbrio psico-emocional do bairro de lata da Pedreira dos Húngaros. Há lá uma infinidade de miúdos e jovens em idade escolar. O Xavier (é o meu colega) contou-me que uma das escolas secundárias tem dado uma resposta brilhante: mantém-se entre as melhores do País nos exames do 12.º ano e, há meses, uma delegação da Comunidade Europeia que a visitou e andou lá com os africanos pelo bairro fora ficou tão bem impressionada que os membros telefonaram, depois de retornados à origem, para lhes afirmarem que tinham aquela escola por uma das melhores da Europa. Mas não te esqueças de que uma andorinha não faz a Primavera. Duvido mesmo de que encontres um segundo caso à altura daquele, em Portugal inteiro. Aliás, vocês andaram a veranear com a delegação comunitária pelo que de melhor creram ter para lhes mostrar e a verdade é que eles não viram nada de paralelo em mais lado nenhum.

 

-...Qual afloramento do pendor geral, qual nada! O Xavier contou-me o caso justamente por andar preocupado com a gestão que vocês impuseram. Aquela escola já é muito boa há muitos anos, não teve nada a ver com a imposição do novo modelo de a administrar, pelo contrário. O que ele teme é o descalabro. Contou-me que a Presidente do Conselho Pedagógico anda em stresse há meses porque estão a reunir aquele órgão semanalmente, cada reunião dura no mínimo oito horas, e até agora não lograram decidir praticamente nada. É um desespero, ninguém se entende, cada cabeça, cada sentença, a puxarem uns para um lado, outros, para o outro. E olha que é uma escola em que os professores tiveram o cuidado de formar listas abrangentes, cada uma englobando todos os órgãos, de modo a garantir o máximo de coesão entre todos. Nem assim, compreendes? Repara que são docentes empenhados, aquilo até deu luta renhida. Sabes por quantos votos ganhou a lista para a Comissão Executiva contra uma outra concorrente? Por um voto, um voto apenas, vê lá bem! Não são profissionais que se estejam nas tintas. Agora olha em que talas vocês os enfiaram com o vosso modelo tão altamente democrático. Aquilo não funciona, não é operacional. E lá anda o Xavier a aguentar com drogas a Presidente do Pedagógico, para ela não quebrar. Ainda por cima já não é nenhuma criança, entrada nos sessenta...

 

-...Não compreendes o que está mal? Um exercício de democracia?! Olha que tu és mesmo ingénuo, com mil raios! Talvez, na Inglaterra, com a tradição do five o'clock tea, os clubes de fãs, todo o associativismo comunitário, um modelo destes resulte e incarne qualquer democraticidade real. Mas, por alguma razão, quando vocês o impuseram aqui, andavam já os ingleses a tratar de ver-se livres dele. É verdade, contou-mo uma das vossas destacadas num Centro de Formação de Professores que lá pelas Ilhas Britânicas andou num dos projectos de intercâmbio internacional. Já eles tinham visto a confusão e indefinição que resulta do modelo, ainda por aqui andavam a testá-lo e a discuti-lo. E a vossa teimosia levou a impô-lo. Agora, de quantos anos mais vão precisar para chegarem à conclusão dos ingleses e deitarem aquilo para o caixote do lixo?

 

-...Eu explico, pá, vamos por partes. Lembras-te do período em que o projecto de decreto-lei foi posto à discussão, já lá vão uns bons anos? Olha, calhou eu ter ido à Secundária Eça de Queirós, nos Olivais, por causa da médica escolar de lá. A rede destes gabinetes ainda nem tinha sido extinta. Naquele dia, um Secretário de Estado qualquer foi por acaso ali explicar, a representantes de escolas da zona, o modelo previsto.

 

-...Eu sei que vocês o alteraram e adaptaram bastante. Até concordo que melhorou, correcto. Mas para o caso não importa. Ora, como o problema da minha colega era uma série de tricas com os órgãos de gestão que não havia maneira de se ultrapassarem, ficámos curiosos acerca da nova modalidade de gerir em análise. Entrámos sorrateiramente na sala e pudemos acompanhar todo o debate. Sabes quais eram as críticas dos professores, repetidas umas atrás das outras, até à saciedade?!

 

-...Claro que não. Olha, era que o decreto não era democrático! Exactamente, ouviste bem: não é democrático!

 

-...Mas como é que tu continuas a confundir democracia com direito de voto e com escolha de representantes?! Então Hitler e o nazismo foram perfeitamente democráticos! O povo é que os elegeu, eram mandatários dele... Que raio de simplismo!

 

-...Não, é que tem a ver com isto. O voto e a eleição são meros instrumentos de controlo da democracia, não são a democracia. Não têm nada a ver com usar o poder em proveito do povo, sob vigilância dele e podendo este participar e intervir em tudo o que for viável e lhe importar. Aqui é que está a democracia, o resto é a condição e o esteio dela, apenas isto, por muito imprescindível que seja e é para evitar e castigar a arbitrariedade, o abuso, a corrupção, a incompetência, o nepotismo, o totalitarismo... Tomar a forma pelo conteúdo leva a perversões estranhas.

 

-...Aí é que te enganas: o modelo diz que é para todos participarem mas organiza de modo que ninguém, de facto, tenha qualquer vontade nem oportunidade para tal.

 

-...Como? Os teus colegas viram-no exemplarmente bem naquele debate. Lembro-me duma tal Catarina que até esteve depois na Expo 98, naquele vector das visitas das escolas...

 

-...Conhece-la? Ah, viste entretanto quem é. Pois. Ela resumiu-nos, no fim, em diálogo de corredor, toda aquela argumentação de hora e meia. Foi mais ou menos isto: “Dividindo os poderes por órgãos múltiplos, mesmo no topo, uma Comissão Executiva ou um Director, uma Assembleia de Escola, um Conselho Pedagógico e um Conselho Administrativo – isto é logo uma confusão: quem é que manda em quê? Bem, e depois, para tomarmos uma decisão, temos de consultar quem, onde, quando? Se toda a gente intervier, quando chegaremos ao fim dos degraus do calvário? Depois do ano lectivo terminar? Mas isto é apenas metade do problema. O outro lado é a desautorização dos professores em todos os órgãos. Nivelando-os em número, poder e competência com os alunos, encarregados de educação, pessoal não docente, autarquias, forças vivas do meio, a actividade educativa deixa de radicar neles e no encontro professor-aluno. Dissolvido este núcleo agregador das outras componentes que intervêm na relação escolar, esta descaracteriza-se, ninguém descobre mais o que anda a fazer, o sistema não tem fundamento nem fito próprio que vise.”

 

-...Concordo que vocês moderaram isto e voltaram a dar alguma prioridade aos docentes em toda a distribuição de lugares. Agora, repara, nem simplificaram o modelo nem o hierarquizaram de modo claro.

 

-...Hierarquizaram?! Olha, ontem o Xavier contou-me a vossa hierarquia. “Eles na lei” - ria ele - “afirmam que a direcção do estabelecimento recai na Assembleia de Escola que reúne uma vez por trimestre. A Comissão Executiva ninguém compreende muito bem o que anda lá a fazer dia a dia, fora apanhar porrada de todos os lados. Depois, ainda por cima, o Conselho Pedagógico, que representa integralmente as sensibilidades e problemas educativos e que reúne uma vez por mês, é um órgão meramente consultivo. Para rematar com chave de oiro, os recursos ficam todos na mão do Conselho Administrativo que não é nenhum destes nem se vê a quem obedece, se é que obedece a alguém. Os tipos que congeminaram esta obra-prima de arbitrariedade e confusão deviam estar bêbados ou então apeteceu-lhes gozar com toda a gente. E a verdade é que o País deixa!” Não julgues que é por o Xavier ser médico, fartei-me de ouvir e ler isto, como tu de certeza também, durante a fase de experimentação e debate nas escolas. Repara que vocês não tiveram um único estabelecimento no País inteiro a afirmar: “Este é mesmo o modelo de que andávamos à espera!” Nem um. E uma larguíssima maioria rejeitou-o de forma clara. Aliás, os sindicatos também. Pois, mesmo assim, o Ministério impô-lo. Grandes democratas, não é? Claro, tinham o voto, podiam fazer o que lhes der na veneta. Salazaristas do caraças! E depois pretendes que Hitler não era democrata... Olha, fazia o mesmo que vocês: se o voto é a carta branca para trepar por cima de toda a gente e fazer o que der na gana a quem ocupa o pedestal... O caminho é rigorosamente o mesmo e tu sabe-lo tão bem como eu...

 

-...Também não estou a afirmar que andam a repetir as receitas deles, mas que lhes andam a cobrir as pisadas. E mais: a Dr.ª Catarina, no fim daquele debate de que falei, alertou-nos para um aspecto muito curioso. “Ao dividir os poderes pelos órgãos de topo e pelos intermédios, mais por todos os sectores e intervenientes,” - murmurou ela, quase conspirativamente, que isto ninguém se atreveu a atirá-lo à cara dum Secretário de Estado - “ao fazerem isto, que é que fica? Um presidente que apenas responde perante a tutela. Estão a ver? Isto é o retorno à ditadura dum reitor, é outra vez o centralismo da escola fascista. E agora ainda por cima com tudo muito bem encapotado em vestimentas pretensamente democráticas, é o refinamento mais acabado que até hoje vi do princípio de dividir para reinar. É uma sacanice do princípio ao fim, mas vai levar muita gente na conversa.” Eu creio que ela tinha razão, pelos vistos até a ti te levou, não é?

 

-...E que é que adianta terem retirado da letra da lei que o presidente só responde perante a tutela? Com aquela estrutura de gestão não resta alternativa. Quanto mais aatomizados e divididos, mais vocês reinam. E então, se desatarem todos à pancadaria uns aos outros, o vosso império é absoluto. Qual é a dúvida?

 

-...Não o querem, não o querem... Vives rodeado de mentalidade fascizante, centralista e pidesca e não há maneira de abrires os olhos. És mesmo um anjinho!

 

-...Ai eu é que sou extremista? Então, repara. Qual é a queixa mais comum que encontras na imprensa dos sindicatos de professores relativa à nova gestão? A ditadura do presidente. Em todo o lado. Pudera! A ter de responder perante os departamentos centrais e regionais, com as inspecções permanentemente à perna ou iminentes, com todos os restantes órgãos desentendidos, paralisados ou em interminável agressão ou demissão mútua, que é que o desgraçado pode fazer? Toma o poder nas mãos e trata de defender-se o melhor que puder e souber.

 

-...Com tempo o panorama melhora? Se calhar. Aliás, nem é preciso muito para ver onde tudo irá ter. Há um monte de escolas que não ligam nada. Olha, a do meu mais novo, por exemplo.

 

-...Fizeram, fizeram tudo em conformidade, fartaram-se de brincar às eleiçõezinhas. Têm uma montagem perfeita. Só que ninguém se importa com coisa alguma, ninguém acreditava nisto à partida, ninguém acredita à chegada. Portanto, cumprem o ritual, reúnem, aprovam de chapa todas as papeladas-propostas obrigatórias que logo vão para arquivo morto e pronto. E então vivem todos em paz. A Comissão Executiva é o único órgão que mexe e tem carta branca para gerir a escola como muito bem entender. O Pedagógico só colabora para ajudá-la quando e nos pontos em que ela o pede. O Conselho Administrativo anda sob o mando dela. Quanto à Assembleia de Escola ninguém reparou até agora sequer que existe, se calhar nem os próprios membros, a autarquia até recusou fazer parte. Ora, a verdade é que isto deste modo aprova muito bem. Há de facto um órgão gestor com os mais a coadjuvá-lo quando ele o requer. Até tem a vantagem de assim a escola o poder controlar: é apenas um, embora colegial, não pode atirar culpas a ninguém nem enjeitar responsabilidades.

 

-...Claro que todos podem fazer o mesmo, ora! Mas então, de duas, uma: ou era isto que vocês pretendiam e neste caso é estúpido terem imposto aquele modelo, uma vez que esta forma de o pôr de pé é uma maneira de o anular; ou então não era e, neste caso, a não pretenderem o afundamento geral do funcionamento das escolas, resta apenas a alternativa da tomada do poder por parte do presidente executivo, com a consequente ditadura intra-escolar e a manipulação arbitrária da vossa tutela sobre ele. A Dr.ª Catarina tinha toda a razão. Estranho é que te mantenhas cego. Isto faz-me lembrar a democracia popular cujo instrumento é a ditadura do proletariado e depois nem o povo nem o proletariado têm nenhuma palavra a dizer nunca. Mas a camuflagem resulta tão bem feita que durante decénios ninguém logra desmascarar e abolir a grande burla. Meio mundo foi levado...

 

-...Que raio de relacionamento, dizes? Olha, há outro em que se calhar o vês melhor. Lembras-te das nossas conversas, no grupo da casa do Quebra-Costas, em Coimbra, no derradeiro ano do curso, com aquele tipo, o Píxide? As obsessões religiosas dele, o homem sofria com aquilo... Ora, o que importa era a análise que aí fazíamos da actual ex-Jugoslávia. Recordas-te ainda? Era o único ponto em que partilhávamos da opinião do moço. O ideal era a autogestão jugoslava, já que a democracia directa ateniense de antanho é inviável à escala dum país. O problema era que os intervenieentes eram tantos, os poderes tão divididos, as instânciaas a pronunciar-se um rosário tão interminável, que, enredado tudo em constantes impasses e conflitos de poderes, aquilo redundou num estagno económico catastrófico do terrirório inteiro. Ora, o efeito notório era de facto a perpetuação da ditadura, como com efeito foi até à morte de Tito.

 

-...Acha-lo pouco convincente? Mas concordas que o modelo era o gerador dum pântano estagnado inultrapassável. Pelo menos nisto vês o paralelo. Não terás outra coisa nas escolas que levarem a sério o modelo que vocês impuseram.

 

-...Ai acreditas que os intervenientes se irão entender? É boa! O Xavier contou-me o que ocorre lá na zona escolar do Seixal e Amora, na outra margem, onde vive. Um amigo dele, o Carronda ou coisa que o valha, é um dos professores que já foi director dum Centro de Formação, monitora cursos e acções para as escolas, enfim, é um animador muito conhecido lá na área. Pois olha, entrou, cheio de boa fé, numa lista da escola dele, ficou a presidir à Assembleia, o presidente da Comissão Executiva era uma amigo de longa data, dos tempos da Faculdade, tudo prometia o melhor dos mundos. Sabes em que pé estão as coisas neste momento? Ele está demissionário, de relações cortadas com o colega, isto extrapolou para as respectivas famílias que doravante nem se falam, apenas tratam entre eles de questões de trabalho e tudo reduzido ao mínimo indispensável. Pior, quando têm de falar é de gravador em cima da mesa, a tal ponto a desconfiança mútua minou tudo. Olha, o Xavier anda a aguentá-lo a calmantes e ansiolíticos. E espera bem que rapidamente largue as funções, senão o homem vai acabar quebrando. É um caso, mas neste momento contamos milhares pelo País inteiro. É uma pena o que vocês andam a infligir aos melhores, aos mais generosos pedagogos que temos. É um sadismo nacional.

 

-...Não compreendes como é que podem chegar àquilo? Vais já ver tudo clarinho. O Xavier anda a medicar um Moisés qualquer coisa, Alves ou Barros... Ele disse-me ontem mas já me não lembro... É presidente do pedagógico duma das escolas da beira-Tejo, na linha de Vila Franca de Xira. Este ano reuniram vinte e seis vezes. Se contares as semanas lectivas, vais ver que poucas escaparam, não é? E tudo para chegarem a este impasse: a Comissão Executiva queria assentar a actividade pedagógica na animação de clubes com iniciativas circum-escolares; a Assembleia de Escola aprova estruturar tudo a partir da área-escola, para os programas serem o mais possível trabalhados em projectos pedagógicos; o Pedagógico, por seu lado, é de parecer, permanentemente maioritário, de que os estudantes devem estudar e a escola ensinar, pelo que tudo o mais ou reforça isto ou deve ser banido, daí que a actividade nunca deverá radicar em nenhuma daquelas alternativas, meramente ancilares como são. É um impasse perfeito e completo, cada qual no domínio da respectiva competência, e sem que a nenhum órgão seja reconhecida capacidade nem função de desempate. Sabes onde isto já levou neste caso? Olha, a Inspecção foi chamada, anda por lá há meses em averiguações, em consultas, e, até agora, ficou tão tolhida como os restantes.

 

-...Não procuram consensos?! Ai procuram, procuram. Se não procurassem não teriam feito tanto esforço inútil, nem o tal Moisés andaria no psiquiatra. A questão é outra: qualquer um tem direito à própria escolha de consciência e a vê-la respeitada pelos demais. Ora, as prioridades de vida de cada qual variam ao infinito. Quando os várioss órgãos de gestão requerem a pronúncia e o empenhamento individuais, irão obrigatoriamente cair naquilo, no choque de sensibilidades e vivências e não há saída nenhuma. Só por milagre haverá convergências espontâneas.

 

-...Tolerância mútua? Olha que neste caso, pelos vistos, até houve. Nem mesmo caíram na agressividade, não há por lá nenhum procedimento contra ninguém responsável, tanto quanto ouvi. Só que ficam todos desentendidos, por mais que argumentem e contra-argumentem. Não há enxertia de consciências. Como é que queres que mudem as vivências que acumularam, o modo como as hajam interiorizado, os valores e prioridades que delas vieram erigindo? A personalidade de cada qual ninguém a troca como uma muda de roupa, que diabo!

 

-...O hierarquismo? Não, não julgo que seja a única alternativa. Pelo menos, se por ele entenderes o “posso, quero e mando!”, a sacralização e intocabilidade das ordens do topo e a acefalia, o acriticismo cego e gregário de quem obedece.

 

-...Ora, sabes muito bem que tender para aquilo é inviável com órgãos eleitos e representativos, em eleições livres regulares. É deste modo num país como em qualquer organismo ou estrutura comunitária.

 

-...Qual o quê, não ficamos em impasse nenhum! Vamos por partes. Em primeiro lugar, a pergunta é: a escola serve para os alunos aprenderem e se desenvolverem ou, antes, para todos treinarem a democracia formal em cadeias intermináveis de eleições e representações?

 

-...Concordo que uma coisa não impede a outra. Mas o problema é saber quel é o objectivo prioritário do sistema.

 

-...Então, se o alvo englobante que sobrepuja tudo é a aprendizagem escolar, a questão é saber qual o modo de gestão mais adequado para obtê-la. Ora, não é manifestamente o que vocês impuseram. Basta imaginares o que seria, por exemplo, dum banco cuja gestão respeite tal padrão: os donos a elegerem os representantes deles; os empregados, por outro lado, os seus; os depositantes, ainda outros; os utentes de fundos, mais ainda; e todos subdivididos por vários órgãos com competências paralelas onde se misturariam os delegados dos múltiplos vectores. Em menos dum ano estaria na falência. Era um pandemónio! É de tal maneira óbvio que não entra na cabeça de ninguém sequer admitir tal hipótese. Ora, quem congeminou tal obra-prima, no Ministério, para as escolas, ou pretendeu a falência geral do sistema ou a ditadura dos gabinetes centrais, encapotada por um simulacro de democraticidade basista. Claro que também podem ser duma incompetência abstrusa...

 

-...Evidentemente que o primeiro erro é o do basismo. Tem de ser urgentemente eliminado: isto de destruir a hierarquia, de obrigar toda a gente a intervir em tudo, de obter o consentimento ou o parecer duma multiplicidade de figuras para dar um passo... Faz-me lembrar a brincadeira: “Meu filho, queiras ou não queiras, tens de ser bombeiro voluntário!” É que o que importa a qualquer vector da comunidade escolar é que quem dirige dirija de facto e em prol da melhor realização dos objectivos visados. Garantido isto, quer é que o deixem em paz, que tem mais a que atender e há todo o direito de ficar nesta postura. Não é alienação nem irresponsabilidade: é o direito de escolher o respectivo lugar e função, sem que ninguém lhe venha exigir nem impor que faça o que não quer fazer, que intervenha onde não pretende intervir. Ser apartidário é um direito, não entrar nas querelas da gestão, também.

 

-...Não, não é uma alienação. Alienado é aquele que, contra ele próprio, contra o que pretende da vida, contra a vocação a que tende e por que opta, contra as escolhas e prioridades dele, se vê obrigado de fora, por coacção da lei e da comunidade escolar, a intervir, actuar, viver o que nunca pretendeu e para o qual não tem nenhuma propensão, gosto, nem escolha individual. A maioria dos representantes está a viver isto, todos contra vontade.

 

-...Ora, se respeitares o lema à risca, irás simplificar muito o modelo, tanto no número de órgãos como de representações. Para quê aquele atropelo todo de gente e de sectores? Não corresponde nem à eficácia nem à vontade manifesta (e muito menos à implícita) dos intervenientes. O que não quer dizer que elimines qualquer representação. À partida, podem muito bem ficar lá todas mas de modo mais simples, sem duplicações orgânicas nem vinculações ou obrigações para além do que verifiquem como pertinente para garantir uma gestão informada, eficaz e controlada.

 

-...Já vês como é. Evidentemente que então fica restaurada a hierarquia, polarizada na Comissão Executiva. Nem pode ser doutra maneira. Todos os animais gregários sobrevivem graças a uma estrutura hierárquica. Nós somos apenas mais uma espécie deles. Não podemos abolir tal princípio sem o pagarmos e bem caro.

 

-...Como evitar o hierarquismo? Muito simples: pondo a operar uma hierarquia clara e acompanhada, sob controlo eleitoral periódico. O órgão superior então desempata os impasses, pune os transgressores (e não apenas os alunos), apoia-se nos demais órgãos que o complementam e ajudam, estimula e lidera os sonhos que brotarem...

 

-...Pois é. Com isto podes abrir caminho aos líderes da educação que aparecerem, dás-lhes os meios de continuarem a gesta dos grandes pedagogos que abriram os novos caminhos à escola num século inteiro. Por ora, tem-los todos de asas cortadas.

 

-...Eh, pá, tens razão, é tardíssimo! Então até para a semana. Bom trabalho, não te deixes afogar. Mas já agora, enquanto vestes a gabardina – e esta invernia, hein?, está pegada para durar! - já agora só mais um pormenor. A volta que podemos dar à hierarquia é a gestão por consensos. Isto é o ideal a buscar, não o ponto de partida nem o mínimo exigível. Logo, se quiseres mexer no problema, tu na lei não podes abolir a hierarquia que deverá ser definida, ao invés, de modo claro e sem ambiguidades. Poderás, na introdução, sugerir ou propor o ideal de que cada um se deverá aproximar. Nem mais nem menos do que isto, era o que eu faria em teu lugar. Gerir por consenso torna invisível a hierarquia, uma vez que ela não precisa então de manifestar-se, de ser assumida nem exercida. Mas isto não quer dizer que foi abolida, não. Ela está lá sempre, de prevenção, como carta na manga que todos saberão que a qualquer momento, quando o consenso é quebrado ou quando houver uma transgressão, poderá ser jogada. É, aliás, a garantia do próprio consenso: todos verificam que, ou cooperam para construí-lo, ou então o órgão hierárquico decidirá sem eles. Nesta alternativa é que é reforçado o estímulo eficaz para serem negociadas plataformas de organização e trabalho aceitáveis para a generalidade ou mesmo toda a comunidade escolar.

 

-...Certamente, era isto que defendias quando falavas da falta de consensualidade. Há uma diferença, porém, e que é crucial: no modelo que vocês impuseram falta na organização o órgão capaz de a gerar e gerir. O erro é apenas este, mais nada. Só que é bastante para bloquear tudo. Sem ele, todos são iguais, porque é que há-de prevalecer esta ou aquela sensibilidade? Tentam convencer-se mutuamente, no melhor dos casos. Só que isto mexe com afectos, vivências, valores, sentimentos - isto implicaria uma conversão. Quem é que muda de ser e de estar na vida por tão pouco? Então finda tudo num impasse. É inteiramente diferente se uma direcção propuser um caminho e o abrir à relativização, complementaridade e cobertura de todos os mais, a fim de atingir o máximo de compatibilizações e atendimentos, de responder se possível a todas as sensibilidades. Aqui os intervenientes irão logo cooperar. E os que não forem, não importa, a direcção optará pelo que melhor lhe parecer e tudo correrá para diante.

 

-...É, é isso. A complementaridade entre iguais é que é a verdadeira característica humana de conviver comunitariamente. Só que isto vive primeiro enraizado e depois é que ultrapassa a hierarquização, não a abole nem ignora, bem ao contrário. Sem ela, anularia a animalidade sobre que tem de construir-se quanto houver de humano no homem, e então qualquer estrutura se esbarronda no chão. Tendo-a em conta e bem firmada nela, então toda a complementaridade pode desenvolver-se indefinidamente, de consenso em consenso. Só que alguém tem de liderar isto e a liderança tem de ser oficial e legalmente consagrada. Se não for por aqui, não haverá nenhuma saída de jeito. Ora, este é o panorama do País inteiro, neste momento. Por muito que os cegos continuem a recusar-se a vê-lo. Que lá em teu redor é cada cegueta!

 

-...Ah, pois! Abriga-te e agasalha-te bem. Estas chuvas em noites quentes são traiçoeiras. Até para a semana.

 

 

 

 

 

 

 

 

Mazela 8

 

 

- Olá, entra. Vens cheio de verão. Isto é que é um calor! É cada flutuação, de semana para semana, que um indivíduo nem vê como há-de vestir-se nem como há-de resistir sem uma gripe ou coisa pior. Não há dúvida de que a destruição da camada de ozono nos anda a tramar das suas.

 

-...Ah, então a chuva da semana transacta já te pegou. Vê se te livras desse catarrinho, senão ainda terás de te haver com alguma. Vamos ter para aí uma epidemia de gripe, com um tempo assim, que nem te digo!

 

-...Ai hoje não vais acreditar no que eu tenho! É lá da nossa região. Lembras-te de quando fomos a pé, no nosso quinto ano, pela linha de comboio do Vale do Vouga, de S. João da Madeira à Vila da Feira, à “Festa das Fogaceiras”? Onde aquilo já vai! Tínhamos quê? Quinze, dezasseis anos?... Foi uma grande aventura, ainda hoje recordo com saudade aquela caminhada e a alegria toda do arraial, lá nas faldas do castelo. Um dia em cheio!

 

-...Nem mais: encontrei no Cais das Colunas uma carrinha de pasteleiro a vendê-las ali mesmo à mão, genuínas – cavacas, fogaças e regueifas da Vila da Feira! Com a receita e o sabor todo da nossa adolescência. Olha, aqui as tens, vês? Repara, repara nesta cobertura, ah, que cheirinho! O toque da canela... As outras nunca sabem a isto. Cozem e vendem cada coisa por aí!... E a acompanhar, não sei se te escandalizas, mas eu vou por um Mateus Rosé bem gelado, não quero quebrar nada do nosso sabor e aquele é levezinho, doce e suave que baste. Agora tu escolhe, se não te apetece o mesmo. Por mim, continuo a preferir as receitas caseiras.

 

-...Crio-te escrúpulos?! É boa! Não, de certeza que não sou eu que tos crie. Agora que tu deves ficar ai com uma pedrinha na consciência, com a mania de esnobar à estrangeira, não duvido. No cerco de pedantes que tens lá no Ministério, com os pretensiosismos de gente fina de que se emolduram, não me admira nada. Mas põe-te à vontade, escolhe o que quiseres.

 

-...Claro que poderíamos viver todos muito bem com o pedantismo pretensioso dos teus círculos ministeriais, não fora o caso de ele se reflectir na generalidade das medidas que eles tendem a tomar.

 

-...Ai não, que não reflecte! Reflecte e de que maneira! Ainda bem que falaste dos teus escrúpulos. Sabes que a origem da palavra significa a pedrinha no sapato que nos põe a manquejar e nos dá cabo de qualquer caminhada? Ora bem, continua ainda hoje a apontar para isto, agora no domínio psicológico.

 

-...A que propósito o trago á baila? Olha, que fazes tu quando tens uma pedra no sapato?

 

-...Exactamente, tira-la. E que fazem os teus pedantes do Ministério, quando é detectada uma areia que põe a manquejar um pé qualquer do sistema?

 

-...Tá bem, primeiro ignoram-no, é verdade. E não é por fazerem vista grossa, é ignorância mesmo, da mais crassa. Mas depois de se tornar evidente, irrecusável?

 

-...Não, não tiram nada a pedra da engrenagem. Isso é que era bom! Quem nos dera! Já seríamos hoje um dos países mais avançados do mundo.

 

-...Pois, demora tempo, correcto. Mas depois o que por norma executam não é retirar a pedrinha do sapato. O que fazem sempre e com todo o espalhafato (só faltam as bandas e charangas e os tiros de canhão!) é uma outra coisa muito grave: em vez de libertarem o pé do grão de areia arreliador, amputam a perna inteira.

 

-...É verdade, já vais entender, mas espera. Amputam e enxertam no lugar outra perna nova. O problema é que esta vem igualmente cheia de pedrinhas no sapato. São outras, noutros pontos, travando doutras maneiras, a partir doutras lógicas... Os teus técnicos, que nunca entenderam patavina de prática pedagógica, do que a entrava ou estimula, condenam-nos a este pesadelo, indefinidamente, há decénios. Se se limitaram a retirar os grãos de areia, meu caro amigo, onde nós já não iríamos! Sim , que isto condiciona o País inteiro.

 

-...Queres ver como é? Está bem. Há tempos houve uma urgência lá no hospital onde fui chamado a intervir. Era uma adolescente que frequentava a Gago Coutinho de Alverca e que tentara um suicídio por motivo duns amores contrariados. Uma tentativa simulada, é verdade, mas tão bem que quase acabou mal: estava fechada e sozinha em casa, aquilo foi por um triz. Se o irmão se houvera atrasado aí uns trinta minutos, já não teria havido nada a fazer. Mais um caso ilustrativo do pico dos suicídios entre os dez e os dezoito anos, três quartos dos quais por motivos ligados à experiência escolar destes estudantes. Mas adiante. No contexto do acompanhamento do caso tive uma longa conversa com o vice-presidente da escola que foi, aliás, quem requereu a minha intervenção no atendimento da rapariga. Ora bem, naquele estabelecimento não havia maneira de formarem lista para elegerem um Conselho Directivo, eram há vários anos nomeados por vocês. Mas, curiosamente, constituíam uma equipa largamente consensual na escola inteira e muito coesa entre si.

 

-...Ora aí é que bate o ponto. Eles nunca aceitaram ser eleitos. Sabes porquê? Porque pretendiam poder sempre bater-vos o pé. Se fossem a votos, então vocês entenderiam que eles representavam as bases e, portanto, não sendo vossos mandatários, nada impediria que lhes exigissem o que muito bem entendessem. Assim, colocados lá pelo Ministério, quando a tutela quisera impor-lhes o que lhes era inaceitável, eles limitar-se-iam a apresentar a demissão: se não gostavam deles, que colocassem lá outros. Não há dúvida de que isto lhes dava mais força.

 

-...Que é que tal tem a ver com as amputações? Repara, o Conselho Directivo de Alverca é apenas um dos cinquenta por cento que não se conseguiam eleger, durante a vigência do anterior modelo de gestão escolar. Este era o grande mistério: porque é que apenas em metade dos estabelecimentos, no País inteiro, havia listas que eram eleitas? Porque é que cronicamente a outra metade tinha de ser nomeada por vocês? Sabes como é que os teus génios interpretaram sempre isto: o modelo é inadequado. Estás a ver que andava aqui uma qualquer pedra no sapato. Ora, isto é que levou à amputação e a colocar uma perna nova no lugar da antiga. E que é bastante pior, por acaso, do que aquela tinha sido, relativamente à eficácia do modelo na aprendizagem dos alunos.

 

-...Em que é que consistia o problema? O dirigente de Alverca pôs o dedo na ferida. Contava-me ele: “Se me não pagam um tostão por este trabalho e ele me rouba muito mais horas, energias e cuidados que responder por um horário lectivo completo, então que sejam eles a impor-mo, para eu me poder descartar quando eles se puserem para aí a dar-me cabo do juízo. Já têm muita sorte, nestas condições, em haver metade das escolas com direcções eleitas. O modelo tem de ser mesmo muito bom, muito atractivo, para haver tanta gente a ir voluntariamente para o matadouro. É que um indivíduo, para dar conta do recado, tem mesmo o dobro do trabalho ou mais. Ora, isto, sem qualquer compensação monetária, é uma mina para o Ministério: explora escravos com o maior descaramento. E, pior ainda, nunca lhes fica reconhecido, somos todos corridos permanentemente a tratos de polé, não têm qualquer consideração por nós nem pelo que fazemos. O Estado é mesmo um mau patrão, talvez até o pior de todo o País. É o tempo inteiro com imposições, ameaças, suspeitas, inspecções, chamamentos a prestar contas – neste domínio, o regime policial não acabou, pelo contrário, estou em crer que foi agravado até, relativamente ao antigo regime. Lá, os reitores eram da confiança deles. Agora, os eleitos não o são. Até por isto nós preferimos ser nomeados, que não há pachorra para os aturar!” Afinal, como vês, o modelo de gestão era eficiente e adequado. A pedra no sapato, afinal, é que vocês se recusaram permanentemente a pagá-lo de modo minimamente significativo. Isto, mais a falta de reconhecimento do que foi uma manifestação genuína de democracia e autonomia no sistema escolar durante decénios. E que ainda por cima geria bem os estabelecimentos.

 

-...Não, não é mais democrático o modelo novo: apenas tem masis representantes de mais sectores e mais órgãos. Isto não é mais democracia. Apenas o será quando lograr com isto que os alunos aprendam e se desenvolvam mais e melhor. Aquilo, só por si, é apenas uma teia de controlos do poder e respectivos usos. Já vimos que, ao invés, o inflacionamento de órgãos e representantes o que garante é inviabilizar qualquer democraticidade na comunidade escolar, em virtude da tendencial generalização dos impasses e conflitos, sem árbitro para dirimi-los. E depois, porque há-de ser a democraticidade formal o critério para uma boa gestão escolar? Bom modelo será o que melhor promova a aprendizagem dos alunos. Este é que deveria ter sido o critério para reformar este vector do sistema. A verdade é que ninguém o usou. A pedra no sapato levou a deitar tudo pelo buraco abaixo, em lugar de a retirarem: era apenas pagarem o trabalho dos gestores e acolhê-los com o respeito e a consideração que mereciam. Amputaram tudo e enxertaram outra estrutura: pioraram o modelo em toda a linha – desde logo no critério que seguiram, que não tem nada a ver com a eficácia educativa, até ao basismo implantado, a terminar na complexidade inútil e perversora. É verdade que retiraram a antiga pedra no sapato: agora já pagam o trabalho e acolhem com outra cara as Comissões Executivas e o resto. Mas vê lá quantas pedras novas meteram na engrenagem sem vislumbre sequer de o suspeitarem. É uma desgraça tudo o que vem da tutela ministerial. Parece constantemente um trabalho de idiotas. Só que o pedantismo os encegueira. Eles são gente tão importante e tão perita que jamais lhes poderiam brotar das mãos semelhantes abortos. Isto são tudo meras insinuações torpes de quem se morde de inveja por não ser tão importante, tão ilustre, como cada um dos luminares que te rodeiam acredita ser, dele na rasteira bestialidade.

 

-...Não te amofines, eu retiro a bestialidade e ponho em lugar dela mediocridade. Certo? Pois é, satisfazes-te com pouco...

 

-...Já cá faltava esta! Com que então não é tão mau o modelo, não é visível nenhuma derrocada generalizada?! E depois és tu que ainda há bocado afirmavas que em teu redor andam por lá todos cegos e demoram tempo! Também tu precisas de óculos e de algo que te espevite. Então não entendes que as escolas têm de adaptar-se e deixar correr? Senão, mal delas! Mas é justamente isto que anda errado, que lhes seja eternamente requerido dar a volta ao texto, tornear os pedregulhos, para irem sobrevivendo, quando o que vem de vocês que as tutelam, à partida, deveria estar rigorosamente ajustado, ajudá-las, estimulá-las, impeli-las para diante. Ora, é exactamente ao contrário, são sempre entalamentos onde as colocam. E ainda por cima recusam-se a vê-lo, a reconhecê-lo, todos emproados numa grandiosidade oca. Maldito pretensiosismo!

 

-...Ai continuas a não acreditar que os problemas venham daí? Mas olha que estes vêm mesmo. E é defeito muito antigo, não é de agora. Ando a dar apoio pós-operatório a uma orientadora pedagógica, doravante já reformada, que teve de amputar um seio e tem reagido emocionalmente muito mal. Um destes dias contou-me a experiência dela com os programas. É exemplar. Enquanto orientadora, nos anos oitenta, teve de reunir regularmente e dar conta do trabalho na 24 de Julho, na Direcção-Geral do Básico e Secundário. Ora, ali têm sede as coordenações nacionais das áreas curriculares. Confessou-me que perdeu a conta ao número de programas, alterações de programa, programas mínimos, novos programas, que pela carreira fora leccionou. Sabes porquê? Na dela, porque todas as equipas que se foram regularmente substituindo no departamento, ao correr dos anos, eram fatalmente de gente iluminada, nunca aquele lixo dos anteriores que iam substituir e que apenas tinham feito borrada, portanto, era urgente atirar para o caixote quanto haviam recolhido de trás. E pronto, em lugar de examinar com rigor o que falhava, como era desajustado e porquê, varrendo então as pedras da engrenagem, não, recusavam a herança e impunham outra com idênticos desajustamentos, falhas e inadequações. “Que raio de valor tem isto?” - perguntava-me ela. - “É apenas para fazer currículo que aquela gente toda mexe, estão-se nas tintas para o afundamento da aprendizagem na escola inteira a que aquilo leva. Mostram montanhas de trabalho e é o que lhes importa, tudo o mais não conta, permanentemente a aguardar uma promoçãozinha, uma benesse, um tacho... Nem reparam no efeito destas atitudes. É uma tristeza! Mas ai de quem os denuncie! Uma vez” - confidenciou-me - “atrevi-me a recusar mais um programa lá do grupinho de ocasião. Nem queira saber! Apanhei um enxovalho público que ainda hoje me dá vergonha. E não foi lá dos elementos do grupo de trabalho, não, foi do Chefe de Divisão, de que eu dependia hierarquicamente. Meti logo a viola no saco, que senão ainda era maior o prejuízo que o ganho.” Já vês, todos os luminares perfeitamente solidários, ai de quem duvide ou ponha em causa a grandeza, a infalibilidade deles! Coligam-se a destruir o inimigo, a proa deles é intangível. E aí tens os efeitos na prática: programas inúteis, contraproducentes, apenas para promover o ego destes pedantes.

 

-...Sim, sim, não ignoro que pretendeis, no imediato, apenas reajustamentos. É louvável. Agora, cuidado. Os pretensiosos andam lá, não irão mudar de atitude apenas porque tu e um vector de quadros políticos e administrativos o pretendem. É que estes mesmos, homem, não te digo nada! Alguns andam para aí mais emproados que um pavão: olha a comunicação social...Põe-te a pau ou continuas a ser levado.

 

-...Ora, basta que te distraias e logo eles aproveitarão para meterem, além das pedras que os tenhas levado a varrer do sapato, mais uma novidade aqui, um enxerto acolá, que inevitavelmente entalarão de novo tudo com novas areias na engrenagem. Eles ignorarão, claro, na melhor das hipóteses, quais são e onde se encontram. Mesmo assim, duvido se não haverá quem o empreenda intencionalmente. São tão infalíveis a fazer mal!...

 

-...É, é uma propensão permanente inevitável, quando enxameiam os indivíduos que usam o poder para promoção e culto da própria personalidade, em lugar de o porem ao serviço das escolas e dos estudantes, no fundo, do País. Podes remar contra a maré, mas ela será inelutavelmente aquela. E continuarão a amputar membros em lugar de tirarem as pedras do sapato, apenas para mostrarem como são importantes, como são grandes, enormes! Lembras-te duns Directores-Gerais, na época da profissionalização em exercício, quando as Equipas de Apoio Pedagógico, entretanto extintas, pretendiam abolir as autorizações prévias para algumas das respectivas movimentações? Eu já nem me recordava, a paciente de que falei é que o trouxe à baila. Naquele tempo, apenas porque pretendiam entregar-lhes as provas documentais das actividades após empreendê-las e não antes, logo eles ameaçaram que se demitiriam. É a mesma lógica. Tinham-se por elementos tão importantes que era desconsiderá-los intoleravelmente atribuir-lhes apenas uma fiscalização a posteriori. Não, todos tinham de submeter-se-lhes à partidsa, andar de gatas à frente deles, mendigando um visto para trabalhar. O bloqueio da actividade no terreno que tudo isto implicaria não lhes importava nada. Que é que vale um reles dum país e uns chatos duns indivíduos resmungões?

 

-...Podes não te reconhecer num quadro destes e ainda bem, que espero que lhe resistas. Agora, não sejas ingénuo: em teu redor prolifera aquela mentalidade e atitude, é uma cultura e um clima geral que todos respiram pelos Ministérios. Têm de implementar reformas de fundo, do fundo mais profundo, ou então não fazem jus ao enorme tamanho deles. Quanto à escola, é um mero pretexto para brilharem e extasiarem quantos olharem para eles, ofuscados. Nunca reparam quanto com isto ateiam fogo ao sistema inteiro.

 

-...Pois é, tens de aproveitar o verão tardio. Mas não vás apenas às festas e ao beija-mão. Abre os olhos, homem, e vê o que deveras anda a marcar os alunos pelo País fora. Mas não quero atrasar-te. Até para a semana. Felicidades para o teu galinheiro de pavões!...

 

 

 

 

 

 

 

 

Mazela 9

 

 

- Benvindo, entra. Que cara é esta?! Mera constipação? Nas mudas de época deixas-te constantemente apanhar, é fatal. Já quando andávamos em Coimbra, lembras-te? Eram de caixão à cova!

-...Tem vindo a melhorar? A idade vai ajudando, evidentemente, vamos ficando vacinados. Já agora, ainda continuas a reagir à cafeína como na juventude, ou entretanto a tolerância também tem vindo a aumentar? É que eu não quero pôr-te em vigília até ao cantar do galo.

 

-... Ainda bem que podes apreciar um bom café, que eu hoje trago-te duas surpresas com que não contas. Recordas-te do lar de terceira idade, no Campo Grande, a que dou apoio? Uma das internadas é madeirense. Já tem muitos momentos de ausência, mas ainda mantém, fora deles, longas palestras com lógica. Olha, descobriu que somos gulosos por acepipes regionais e então aproveitou as idas e vindas de familiares, nas férias transactas, para me fazer chegar uma especialidade do Funchal: queijadas à moda de lá, não têm nada a ver com as de Sintra, nem na forma nem no paladar. É uma outra coisa, já vais ver.

 

-...Ah! O café. Um dos teus pedagogos duma escola da Portela vem-me regularmente à consulta, mais para manter a medicação em dia, para se aguentar, nada de particularmente grave. Há pouco presenteou-me com um lote privado, garantiu-me ele que combinado e feito à medida por um ex-fazendeiro de Angola, que disto estes é que entendem. São amigos e gostam de experimentar pitéus, um pouco à nossa maneira. Então, a minha proposta seria irmos petiscando as queijadas, temperando-as com um cafezinho de paladar e perfume requintados. E para remate, olha, aqui tens os rebuçados de funcho que da Madeira também me trouxeram. Aliás, irão servir para te adoçar a garganta. Deve dar-te jeito, com o congestionamento todo com que andas aí a defrontar-te.

 

-...Já nem é defeito, é feitio? Olha lá, que tornar um defeito em feitio torna-o crónico e nunca mais te desenvencilhas. É bem capaz de ser vírus do Ministério. Respira-lo lá, pronto, tens maleita para o resto da vida, quando cá fora em oito dias debelarias qualquer incómodo transitório, como qualquer de nós, os meros mortais sem galões nem ouropéis.

 

-...Ironizo, como antes tu ironizavas, antes de ocupar a cadeira que lá deténs. Já te não lembras?

 

-...Ignoro se descortinareis assim tão bem os vícios congénitos do Ministério da Educação. Mais rápido dareis conta dos comuns a todo o aparelho da Administração Pública. O burocratismo, a falta de brio profissional, a ausência de gosto de servir, a prepotência, a arrogância... Claro que, se é comum, também pulula nas malhas do teu. Mas não creio que seja o mais lesivo da educação e da escola. No vosso caso há depois o que é característico e próprio deste campo. Olha, o que falámos a semana transacta, tendo pendores comuns à governação inteira, adquire no teu Ministério cores e sequelas muito próprias e irrepetíveis. E não é único nisto, o pedantismo emproado.

 

-...Outro? O teu colega que me ofertou o café contou-me um pormenor relevante. No debate no lançamento do ano, o presidente, perplexo, lamentou-lhes que a quantidade quotidiana de correio o andava a obrigar a ir para a escola às seis da manhã. Até às oito, à entrada do corpo de auxiliares, apenas lograva passar em revista os títulos e temas e ordená-los por lotes. Um ou outro documento que se antolhava mais urgente ainda lhe ia correndo os olhos, leitura em diagonal, mas não bastava para dar conta do recado. Se pretendera ler tudo e despachá-lo adequaddamente, levaria pelo menos meio dia. Ora, isto é por inteiro inviável, a escola acabaria sem direcção e a toda a hora há problemas a resolver que não podem adiar. O homem encontra-se entalado, interdito.

 

-...Foi o que ele fez: optou por uma triagem prévia na secretaria, apenas lhe irá parar à mão o que requerer intervenção directa dele. Corre o risco de perder informação relevante, mas não lhe resta alternativa.

 

-...Que é que tem a ver com os vírus ministeriais? O comentário do tal professor é importante. Contou-me ele que o lamento do presidente era de que a maioria daquela papelada era a repetir outros papéis de anos anteriores, dos mesmos ou doutros departamentos, tudo proveniente dos gabinetes centrais, regionais ou locais, agravados com idêntico vício da autarquia.

 

-...Eu fiz-lhe exactamente o mesmo reparo: com uma vista de olhos, qualquer um verifica se é mesmo aquilo e põe logo o documento na prateleira. Isto leva pouco tempo. Mas aí é que é o busílis. “Não, não!” - explicou-lhes o presidente, no tal debate. - “Isso é que era bom! É que eles metem constantemente uma alteraçãozinha qualquer num ponto aleatório do papel e doravante é aquela a versão que vigora. A maior parte das vezes tenho de ler três, quatro e mais páginas de texto repetitivo para finalmente descobrir o tal pormenor. E não dá para ignorá-lo. Ele implica fatalmente um procedimento que tem de ficar registado e é permanentemente esta anotação que os inspectores vêm verificar. Isto é um controlo cerrado, pior que o de antigamente. Autonomia?! Qual autonomia!”

 

-...Juro-te que não estou nada a aumentar. É tal qual como eu o entendi na consulta de há dias. Aliás, ele até rematou este aparte com um comentário que bate no ponto e que para nós, que fomos à guerra, é perfeitamente claro. “Aqueles gajos, lá no Ministério, são uma cambada de tarimbeiros frustrados. Têm todos de apresentar trabalho, senão ainda apanham uma porrada do comandante e não acabam promovidos. Claro, tudo na base das cunhas e dos empenhos, que é que era de esperar? Os compadrios é o que dão. Cambada de incompetentes e lambe-botas! Depois nós é que nos lixamos: é gramar e bico calado, como na tropa!” Eu gostei foi daquela dos tarimbeiros frustrados: creio que é mesmo o que opera ali – criar lugar, a garantir continuidade e promoção, o que leva à subserviência à hierarquia e a pôr-se em bicos de pés, a tentar dar nas vistas. Como são todos ocos, tratam de repetir o que vem de trás e meter lá uma marcazinha individual inócua que depois irão erguer como bandeira na ponta dos dedos, a provar labor e génio de quem nunca os teve deveras.

 

-...Ele falou em montes de exemplos, mas, como é natural, não os pude decorar. Contudo, olha, retive estes. Aquando do reajustamento do ensino recorrente por unidades capitalizáveis, uma das medidas foi admitir que os alunos escolhessem entre frequentar aulas ou preparar as unidades aparte, sem contarem com aquele apoio. Ora, foi imposto que tal constaria de comprometimento escrito por eles com os coordenadores de cada turma. De acordo com aquele professor, foi uma medida inteiramente inócua para o melhor aproveitamento dos alunos. Aumentou apenas a burocracia, mais nada. Já desde antes que estes estudantes ora frequentavam, ora abandonavam as aulas, correspondendo a última escolha praticamente a desistirem. Ficou tal e qual daí para diante. Ah, mas lá o controlo da alteraçãozinha, este não o perdoaram! Claro que a escola o fez cair em desuso, logo depois, e ainda bem, para atender caso a caso e momento a momento ao que melhor podia corresponder a cada aluno. Que importam comprometimentos que à partida todos sabem que ninguém vive em condições de poder garantir? Claro que lá os teus serventuários, eles nunca farão ideia nenhuma de nada, portanto, também aqui...

 

-...Outros exemplos? Olha, viste por acaso, há tempos, um dos teus técnicos, ignoro de que Direcção-Geral, na televisão, a falar na segurança das avaliações finais? Eu não o vi. Também que tempo tenho eu para ver programas? Por sorte, às vezes, lá apanho um ou outro telejornal que tento ir acompanhando...

 

-...Ah, então deves estar a par do caso. O professor contou-me a anedota assim: “Aparece um parvalhão no jornal da tarde e no meio dum chorrilho de banalidades de base, atira com esta maravilha: 'Para aquilatarem como operamos pelo seguro, as notas finais registaram-nas cinco vezes, cinco!' Aquele estúpido não tem de partilhar de nenhum conselho de turma de fim de ano. Deviam obrigá-lo a ir aos meus. Só em junho tive um que demorou três horas e tivemos de repeti-lo. Fora os atrasos que provocou nos demais que tinham elementos ali acorrentados. Com técnicos daqueles, valha-nos Deus! E apresentava aquilo como uma grande medida! O tipo é parvo ou quê?! Ainda bem que na minha escola elaboramos o lançamento a computador, antes da reunião. E, anos atrás, era um original que depois fotocopiávamos. Mesmo assim, temos emperramentos de horas. Que faria se o seguíramos! Ainda hoje por lá andaríamos, se calhar...”

 

-...O problema é que isto gera instabilidade permanente. É o bastante para tolher a máquina escolar inteira. Primeiro que alguém domine o que fazer e como e quando e assim por diante, já perdeu a oportunidade. Ou então organiza o trabalho como entende ou como era dantes e depois bate com o nariz na porta, porque o tem de reformular e tudo volta atrás. Olha que há mesmo quem se esteja nas tintas para os teus tarimbeiros e organize e opere à revelia dos controlos. Há tempos telefonou-me um docente de Mirandela que tinha participado num colóquio que eu havia animado numa escola do Torrão, já lá vão alguns anos. Imaginas porque é que me contactou? Pretendia que eu me deslocasse à região porque, contava ele, a reforma do ensino ainda não tinha lá chegado. A escola continuava tal e qual como no tempo em que ali fora aluno, quase dez anos antes. Claro que haviam adoptado os novos programas, mormente os que culminavam num exame, mas no resto nada tinha mudado, nem nos métodos e estratégias pedagógicas, nem na organização, nem na mentalidade. O presidente da direcção, pormenorizou-me ele, respondera-lhe, entre enfadado e divertido: “Ó colega, ninguém se lembra de que nós existimos. Porque é que nos vamos meter em trabalhos? As modas andam permanentemente a cair, eles que se entretenham lá com aquilo, que parece que não têm mais nada que fazer. Nós cá não vamos estragar a nossa vida com floreados que não levam a lado nenhum e apenas nos impedem de gozar cada dia, a todos, incluindo os alunos. Deixe-nos fazer aqui o trabalho à nossa maneira, que vivemos em paz, os alunos que estudam aprendem e no fim ficamos todos bem. A prova é que o colega singrou deste modo. Olhe, aí está já feito doutor para leccionar os seguintes. Os outros, lá das capitais, não agem melhor do que nós, acredite, tudo aquilo é fogo de vistas que apenas nos obriga a todos a andar a correr, a perder tempo para nada.” Claro que o professor estava revoltado contra isto e confessou-me que não encontrava maneira de os convencer, portanto pedia para eu lá me deslocar como um missionário a converter os infiéis.

 

-...Bem, de acordo, por trás deste discorrer acoberta-se muita rotina, muita preguiça, passadismo, desleixo... Acredito que era aqui que se ancorava o mal-estar do meu contacto. Mas a conversa do presidente põe também o dedo no outro pendor e aqui tem ele inteira razão: “obrigam-nos a perder tempo para nada e não operam melhor que nós.” Isto é a denúncia do produto dos teus tarimbeiros frustrados. Produto que tem, aliás, o efeito perverso de perpetuar, como aqui vemos, com sólidas contraprovas de facto, a escola tradicional, expositiva, hierarquista, prepotente e rotineira, uma vez que torna a alternativa a ela ainda menos eficaz, ainda pior. E desculpa que te diga, mas eu continuo a não acreditar que isto é mero produto da incompetência pedagógica dos gabinetes. Uma coisa destas, que é um pendor perene dum Ministério inteiro, tem de ter também muito de intencional. Ou melhor, o efeito tem de estar de acordo com o que lá visam, senão ser-vos-is intolerável e ai de quem o desencadeara! Ora, não vislumbro em lado nenhum qualquer repúdio de tal mecanismo, a não ser justamente nos estabelecimentos que são vítimas dele e tentam, desesperados, qualquer estratagema para impedirem o bloqueio do funcionamento a que ele leva. Quanto a vocês, é a execução sumária destes: bombardeiam-nos a toneladas de papel, primeiro, e depois é a brigada da inspecção a verificar se alguém ainda respira debaixo da mole asfixiadora. Em tal caso, é um tiro na cabeça: são averiguações, relatórios de ameaça, convocatórias compulsivas, emxovalhos nos departamentos... Ai de quem se tente libertar, sobreviver, torneando ou fintando a magna avalanche! Tem os dias contados.

 

-...Já descobri que para ti tudo isto é duma parcialidade inqualificável. Nem sequer te excluo desta quadrilha de mal-intencionados, não é? Deixa lá, é o meu extremismo. Só é pena que os factos condigam com ele. É mesmo irritante, não é? E os anjinhos como tu lá vão velejando ao sabor do vento, muito humanos com todos aqueles génios incompreendidos de que o Ministério é um viveiro inextinguível e impoluto. Não há dúvida, o País não é merecedor de tão abnegadas vítimas. Ora bolas! Sempre me saíste cá um cegueta que até mete raiva!

 

-...Vá lá, já é um começo, reconhecer que algo opera mal já é um começo... Pode ser que um dia te convertas. Não te amofines, não me estou a referir aos teus intuitos, apenas ao facto de que deles anda o inferno cheio. É urgente abrir os olhos. Os cancros vão permanentemente mais longe do que tu crês, clandestinos e discretos como os do organismo.

 

-...Não, também não estou a afirmar que é tudo. Apenas que no todo, na globalidade do aparelho há desvios estruturais, constantes, que correspondem a pendores comportamentais generalizados. Não são fruto de meros casos pontuais nem fortuitos. Correcto? E olha que terapias para isto não são difíceis, apanhar casos desgarrados é bem mais complicado e falível.

 

-...Está bem, é o mesmo que afirmar que o teu Ministério é doente. Mas na linha do que anotamos de qualquer indivíduo: alguém ficar enfermo não implica que tudo nele esteja mal, o comum é que ele sofre apenas duma área qualquer que o afecta todo, pode mesmo matá-lo, embora o resto continue sadio e seja quase tudo, ao fim e ao cabo. Uma crise aguda de úlcera duodenal abate um homem inteiro, embora aquilo que ande doente sejam uns irrelevantes centímetros de tecido orgânico. É tal qual o que ocorre convosco, relativamente a este aspecto.

 

-...Não te convences de que é tão estrutural como isso? Olha que é, olha que é. E digo-te mais: os vários pendores cancerados alimentam-se mutuamente.

 

-...Ai não?! Julgas que os teus megalomaníacos pedantes não se entendem muito bem com os tarimbeiros frustrados, por exemplo? Entendem e de que maneira! Não, não se trata de conluio nenhum - eles nem mesmo se dão conta de tal, calha bem! Os doentes mentais são como os maridos traídos: sempre os últimos a descobrir. Algum dia viste um daqueles aceitar à partida que está mal e precisa de ser tratado? Olha, eu ainda não: para eles eu é que vivo permanentemente louco, eles andam equilibradíssimos. Não, no teu Ministério o entendimento é espontâneo, lé com cré. Nunca ouviste afirmar que os loucos atraem os loucos, cada qual com seu igual? Vai lá ao internamento da minha clínica, que logo ali tens a regra ao vivo. Na vida real é o mesmo.

 

-...Como é que é então? Eu já te conto. Vem mesmo a talho de foice. Adivinhas quem foi a minha última cliente, esta tarde, na consulta? Uma Dr.ª Ermelinda que é professora de Ciências Físico-Químicas, com sessenta e dois anos de idade. Foi a primeira vez que a vi. É duma Secundária lá para Benfica, efectiva há decénios, quase no termo da carreira.

 

-...Não, não está nada senil, é mesmo lúcida demais e é o que anda a dar cabo dela. É um caso aparte, mas já verás como ilustra bem o que pretendes verificar. Apareceu-me completamente arrasada de ansiedade, a chorar descontrolada, a voz a não lhe brotar, uma lástima. Adivinhas porquê? Há várias partes dos novos programas de Física e de Química que ela não consegue de todo compreender. Nunca as deu na Faculdade, no tempo dela; ao que consta, nem sequer ainda tinham sido descobertas. E, durante a carreira toda, nunca teve nota de tal. Faltam-lhe bases por inteiro para entrar naqueles domínios, é o que ela, aflita, me repetiu na consulta, obcecada. Imagina: chegou ao extremo de pedir a uma colega nova do grupo para lhe dar explicações, como qualquer aluno, pagas e tudo! É aflitivo.

 

-...Achas que é falta de profissionalismo?! Uma mulher com aquela idade e que toma aquela iniciativa para colocar-se à altura do desafio, a ponto de quebrar de ansiedade? É uma contradição nos termos, homem! Falhos são quantos não precisam de psiquiatra porque se estão nas tintas para tudo e o que não dominarem, não dominam.Não ligam aos programas nem aos alunos, nem à escola – então nunca vivem stressados nem a ansiedade os molesta. Agora aquela, não!

 

-...Correcto, voltemos ao fio da meada. Quem programa e reprograma, altera conteúdos, elabora orientações para regê-los, quem depois os anula, refunde e volta a dar, não são os tarimbeiros mas os megalomaníacos, permanentemente emproados no alto dos galões. Então, aí tens a convergência: a Dr.ª Ermelinda está bloqueada, encostada à parede, incapaz de pegar numa turma, tal como acaba a generalidade dos professores, mais ano menos ano, em virtude da inestancável diarreia mental dos teus ínclitos génios. Ora, isto apenas reduplica e é reduplicado pela catarata interminável das intervenções provenientes, em moto contínuo, do outro lado, de todos os departamentos, secções, gabinetes e quejandas infecções e inflamações que por lá proliferam como pústulas em teu redor. Toda a genta altamente atarefada e competente a bloquear, numa vaga maciça, qualquer eventualidade de o aparelho bulir, ser viável e sobreviver. Tudo multiplicado pela pirâmide de núcleos centrais, regionais e locais. Que teia descomunal!

 

-...Claro, claro que isto não é senão convergir nos efeitos, não é conluio entre os intervenientes, separados pelo extremar das respectivas atitudes. Agora repara: quando foste docente nos cursos de oficiais contaste-me muitas vezes as histórias daquele alferes incompetente, complexado mas megalómano, o que andou a afugentar a tiro um favo de vespas que o atacaram, recordas-te?

 

-...Ora bem, não te esqueceste da pena que sentias dos cadetes quando tinham instrução com tal carrasco? Tu ficavas furioso com a tara dele em os obrigar a deitarem-se no chão para berrar, deliciado e imponente, a ordem: “Rasteje até mim!”

 

-...O que tem a ver com o caso? Vês como andas cego? Atenta bem: em teu redor, no Ministério, ninguém precisa de berrar a ordem, é a diferença. É que tens, por um lado, um rebanho inumerável de tarimbeiros ansiosos por se estenderem ao comprido e rastejarem aos pés de alguém, e, por outro, um rede de hierarcas que vai até aos administrativos superiores e aos políticos, pavões de peito emproado que só esperam mesmo por aquilo, à falta dum país a beijar-lhes reverente as veneráveis patas.

 

-...Perfeitamente de acordo, repito que não é tudo nem são todos. Reafirmo, porém, que é um pendor constante, primeiro. Depois, que é uma tentação para cada um, de ambos os lados daquela conivência, e tanto mais forte quanto mais indivíduos se deixarem arrastar por ela e baquearem, mormente da rede de chefias. Isto tem constantemente, por motivo da empatia, um efeito de difusão generalizada nos subalternos. Finalmente, alerto-te para o facto de que ninguém é imune ao desvio. Mais, o intuito de servir e esta corruptela que te rodeia e morde cruzam por dentro de cada um: todos caem mais ou menos nisto (então não sabe tão bem ser bajulado? Claro que sabe e muito!) e todos se reerguem da lama em maior ou menor grau para responder ao País. É apenaas uma questão de nível, os que pendem mais para um lado, os que pendem mais para o outro. O voluntarismo no meio disto é uma ingenuidade. O cancro requer uma vigilância permanente e uma luta constante, tanto por dentro de cada um de nós como para fora. Aqui a tarefa é interminável. Quem o ignorar ou esquecer ou, pior ainda, baixar as mãos, mergulha no lamaçal. Nos píncaros do poder não há como escapar a esta conjuntura. E no teu Ministério ainda menos, que anda sempre na berlinda.

 

-...Vês como até fui tão brando e comedido? E ponderado. E ponderado, confessa lá! Tudo certinho para não ferir susceptibilidades. Mas olha que não sei se não me vou arrepender, que há lá cada comportamento e cada personagem, que valha-nos Deus! Mas enfim...

 

-...Pois é, se calhar estamos a abusar da noitada, para quem veio tão congestionado como tu. Olha, leva esta saqueta de rebuçados de funcho, para te aveludarem a garganta, leva! Boa noite. Cuida da constipação, não a deixes derivar para coisa pior. Até para a semana e cura-te! Aqui também a vigilância tem de ser permanente...

 

 

 

 

 

 

II Parte

 

 

AS MEZINHAS

 

 

 

 

 

Mezinha 1

 

 

- Olá, já estás curado? Entra, entra. Ao menos vens bem agasalhado, homem prevenido, não é? Mas não sei se resulta, com este calor e sempre a chover. Lembra-me o clima dos Dembos, no norte de Angola, quando lá andei na guerra colonial. Os que foram à Guiné juram que ainda é pior. Um indivíduo nem descobre como deve vestir-se. Até parece que estamos a viver na região equatorial. Como o tempo anda mudado!

 

-...Ainda continuas um bocadinho fanhoso. É renitente o vírus. Olha, chega-te cá, que se calhar tenho uma mezinhaa que te ajuda. Hoje tive de ir à Baixa. Não adivinhas qual é o aperitivo?

 

-...Os dois, os dois: pastéis de Belém, ainda morninhos, apalpa aqui a caixa, hein?, e, a acompanhar, ginjinha com elas, da tasquinha mais tradicional. Lembrei-me da foto de Fernando Pessoa, de copo na mão e o comentário: “Apanhado em flagrante de litro!” Gosto particularmente desta marca, parece-me mais caseira e bem apurada. Ignoro os teus gostos neste domínio, mas apostei que te não irias arrepender.

 

-...A mezinha? Não, não me tornei curandeiro. Mas a ginjinha vai amaciar-te e aquecer a garganta, estás com a laringe muito roufenha.

 

-...Ai nem pareço médico?! É boa! Com que então, por ser especialista, teria de rejeitar as medidas simples? Vês como és um viciado no cientismo tecnocrático? As mezinhas são muito veneráveis e resultam mesmo em muitas perturbações ligeiras. São a primeira linha de defesa de quem for inteligente e muitas são mesmo o derradeiro recurso, quando até a ciência e a tecnologia falharam. Há muito saber tradicional por recuperar, aprofundar e afinar. Muito, muito... Então na minha área, nem nos passa pela cabeça quanto temos andado distraídos na farmacopeia. Esquecemo-nos todos depressa demais das origens.

 

-...Mas alguma vez te dei a entender sequer que apenas no Ministério da Educação ocorrem as abstrusidades de que temos vindo a conversar? Quem me dera! Que grande país seríamos! Não, a peste é geral, sabemo-lo todos muito bem.

 

-...Ai não há no teu Ministério a recusa das mezinhas? Há, sim, e de que maneira! Nem vejo qual dos dois lados anda mais distraído, se o meu, se o teu.

 

-...Não estás a ver onde, já que apenas temos escalpelizado erros de organização que não têm nada a ver com receitas de campo? Então já te explico. Ainda não há um mês tive um diálogo engraçado com uma das internadas no lar do Campo Grande. Anda perto dos oitenta, a memória imediata já lhe falha muito, mas a de longo prazo mantém-na vivíssima. É professora reformada duma das escolas de Odivelas. Contou-me um caso espectacular. Apanhou no sétimo ano daquele tempo (hoje décimo primeiro) um aluno bizarro, o Caldo. Era o bobo da turma e da escola, mas inteiramente assumido, sem qualquer complexo, por ele próprio.

 

-...Não, não é da animação que te vou contar. Sei bem que pretendes reformular a Área-Escola trocando-a por uma estrutura de projecto pedagógico, integrada no currículo e no horário de cada turma e de dois dos professores dela. O caso é outro. O Caldo, ao que ela recorda, era um preguiçoso de marca e fazia gala disto. Ia singrando com umas notitas à roda do dez, ora positivo, ora negativo, ano perdido, ano passado, e ela foi apanhá-lo já no sétimo, a acabar o complementar de então. Não se importava com matéria nenhuma, chegava religiosamente atrasado às aulas, de propósito. Nas dela era por norma um quarto de hora, vinte minutos... Se o não deixavam entrar e lhe marcavam falta, ficava feliz da vida, era mesmo o que pretendia, pelo que, depois de lhe compreenderem o jogo, nenhum professor caía na esparrela. Dentro da aula, entretanto, era bem educado, não perturbava ninguém, embora estivesse permanentemente distraído. Aproveitava todas as oportunidades para perguntas e comentários jocosos, normalmente com sentido de humor, embora constantementa alheio a qualquer interesse pelo estudo. Uma vez ela levou uma pequena malinha que lhe haviam dado de prenda e, para não a esquecer abandonada nalgum canto, prendeu-a à cintura durante as aulas. Logo o Caldo aproveitou para interromper a meio da lição: “Ó setora, desculpe, agora vai usar a pistola?” A piada maior era que estavam justamente a falar das travessias do deserto do Saara e dos perigos que enfrentavam. Claro que foi um pagode.

 

-...Quebra a monotonia, lá isso quebra. Mas estás a ver o desafio para a professora? Não, não é o da disciplina em aula, que também não é de pôr de lado, claro. É o dum aluno inteiramente alheio a tudo, que nada é capaz de motivar, anda na escola a prestar um frete o dia inteiro, anos pegados. Naquele tempo era uma excepção, agora é a norma, como sabes. Já falámos disto...

 

-...Piada tem a volta que ela lhe deu. Contou-me que ao primeiro teste, ele faltou, sem dar qualquer justificação. Ao segundo, tendo ela insistido com ele nas vésperas, o rapaz compareceu, preencheu o cabeçalho, esteve no lugar dele muito composto o tempo inteiro e entregou a folha em branco, no fim. Agora repara no que ela fez no dia da correcção. O Caldo entrou atrasadíssimo, como sempre, e ficou ao fundo da aula, na expectativa. As provas foram sendo entregues, os comentários avançando, a indicação dos erros, as respostas correctas, os alertas para os pendores mais deficientes da turma e para o modo de os ultrapassar... A derradeira entrega foi a dele, sem palavras. No meio do silêncio, toda a turma parou, interdita, e desataram a perguntar: “Então e o Caldo? Quanto teve o Caldo?...”

 

-...É verdade, houve suspense e tudo. Aí a professora limitou-se a responder-lhes: “Entregou a folha em branco, não tem nada.” Então alguns, ainda confusos: “Em branco?!... Nada, mesmo nada?!...” Quando todos olhavam expectantes o colega e a docente, esta abordou nestes termos o aluno renitente: “Sabes? O que eu não te perdoo é que, na única cadeira de que tu gostas deveras, faças uma coisa destas!” Apanhado de surpresa, o Caldo arregalou os olhos por instantes, hesitou e acabou por declarar: “Olhe que é verdade, setora, é verdade. Eu disto gosto.” “Claro que gostas!” - reforçou ela. E torna o rapaz: “Então, pronto! No próximo tiro positiva. Prometo, chego à positiva!” Imediatamente a turma inteira estraleja numa salva de palmas espontânea e entusiástica, junto com múltiplos incentivos: “Força, Caldo! O Caldo diz que atinge a positiva! Eh, Caldo, agora é que vai ser!”

 

-...Qual bagunçada! Isto era o que a professora pretendia. Quando os ânimos acalmaram um pouco, levado pela fogosidade do ambiente, o aluno comentou: “Claro que consigo positiva! E mais: se não fosse a média de trás, dispensava de exame.” E a docente, a deitar mais achas para a fogueira: “Ah, mas podes dispensar da oral...” E o rapaz: “O quê?! Ainda posso?! Com que nota?” “Basta-te chegar a 13,5. Tens o catorze e dispensas.” Naquele tempo, a norma era assim ainda, como tinha sido connosco, se bem te recordas...

 

-...Exactamente. Levado pelo entusiasmo, o Caldo subiu a parada: agora jurava que ia lutar pela dispensa da oral, no fim do ano. A professora apelou à turma inteira para o ajudar, a fim de ele lograr vencer mesmo a aposta que acabava de fazer com ele próprio.

 

-...Como é que a aventura terminou? Olha, no teste posterior, ele atingiu efectivamente o dez. Quando ela o proclamou na turma, foi um delírio de palmas. E o rapaz reiterou que ia lutar pela dispensa da oral no exame.

 

-...É verdade, dispensou mesmo. A primeira nota de jeito que tirou em toda a vida dele. Se calhar, a única. Contou-me ela que estava no Conselho Directivo a tratar da papelada de exames, entrou o moço de rompante, eufórico, em busca dela, a gritar entusiasmado: “Eu não lhe dizia? Dispensei! Já viu as pautas? Está lá, dispensei!” Ainda agora ela se comove ao narrá-lo. Foi uma das melhores vitórias pedagógicas de toda uma vida.

 

-...Pois, isto depende do génio do pedagogo, da arte de recriar e animar a relação pedagógica, da intuição apurada... Estamos de acordo. O Ministério nada tem a obrar aqui, é eminentemente individual e intransmissível.

 

-...Não, não, trago-o à colação por outro motivo. Repara, o Caldo, todos os Caldos reagem, afinal, a desafios bem feitos, bem enquadrados, com estímulos intercombinados à altura. Mesmo quando nada nem ninguém logrou ainda encontrá-los, como tinha ocorrido no caso vertente. É apenas questão de descobrir onde se encontra o filão, para explorá-lo a seguir. E um aluno, uma turma, podem dar uma reviravolta completa.

 

-...Qual a parte do Ministério nisto? Olha, são pelo menos duas. Primeiro tem de reconhecer que é o gosto pelo desafio, o prazer de competir, mesmo contra os próprios limites, a luta por vencer e ser reconhecido pelos demais, numa palavra, a agonística, que é a espinha dorsal do desenvolvimento da personalidade de toda a gente, em qualquer que seja a idade.

 

-...Está bem, chama-lhe motivo estruturante, se quiseres. Mas não me venhas com esta de que os miúdos é que dizem “quando eu for grande...”. Olha que, quando eu ou tu deixarmos de projectar um qualquer “quando eu for grande...”, ou outro indivíduo, independentemente da idade, então é melhor arrumar as botas e encomendar o caixão. Já estaremos mortos e andaremos para aí a fingir de vivos.

 

-...Olha, o que importa é que compreendais que a agonística é que nos dá o fio condutor para dos meandros imbricados da vida cada um construir, afinal, um modo de ser e de estar no mundo. O motivo agonístico atravessa as idades todas, do nascimento à morte. As demais motivações são meramente complementares, específicas ou exclusivas até de cada faixa etária, muitas delas...

 

-...Qual simplismo linear, qual carapuça! Vocês, lá no Ministério, é que se escondem por trás de chavões como este para encobrirem a ignorância e a desatenção mais crassas, a incompetência mais imperdoável. É permanentemente o mesmo! Que raio, pá!

 

-...Ai não é? Lembro-te apenas um pequeno episódio. Vieste cá no dia em que a Rosa Mota ganhou isolada a primeira maratona feminina mundial, em Atenas. Vimo-la aqui na televisão a cortar a meta, toda fresca e sorridente, a distribuir beijos pelo mundo inteiro. Recordas-te? Ora bem. Ficaste tão comovido que não contiveste as lágrimas e tiveste de levar o lenço aos olhos. Aliás, eu fiquei na mesma. Já não éramos nenhumas crianças, não é verdade?

 

-...E daí? Então não estás a ver? Que é que nos emocionou senão o desafio, a competição, a superação, a vitória? E nem sequer estávamos lá, não éramos atletas, nem de pista nem de bancada. E, contudo, reagimos com uma emotividade praticamente incontrolável. Aliás, a minha sogra, já então velhinha, ficou pior do que nós perante o espectáculo: nem mesmo conseguia falar, presa pelo evento, maravilhada. Ora aí tens! Agonística atravessando todas as idades e prendendo-nos a todos, grandes e pequenos, velhos e novos, no laço de igual espanto: o pressentimento arrebatador da infinitude, quando uma fronteira intransponível é finalmente ultrapassada, o maravilhamento perante o breve levantar da ponta do véu, o vislumbre dum mundo novo... Que é que enche os estádios do mundo inteiro senão isto? Aliás, o mundo inteiro é um estádio, para a humaniddade, em todos os domínios.

 

-...Pronto, tudo bem. A fome, a sede, a doença, a desafeição acompanham-nos igualmente a vida inteira. Se calhar também outros estados geradores de motivos. Ora são a condição, ora as mil modalidades de realizar a agonística, ela é a espinha dorsal donde derivam todos, o tronco donde brotam todos os ramos. Agora não queiras radicar a escolaridade em qualquer destes. O currículo escolar é de cultura crítica: saberes e actividades de precisão e de rigor. Aqui não encontras alternativa. Ou é a agonística, ou nada. Quando a largas, quando não há ferrão que te aguilhoe para transpores mais uma fronteira, rumo a um território ignorado, caíste no nível da vaguidade empírica, acabou a abordagem científica, tecnológica, reflexiva, artística: acabou o currículo escolar inteiro. Certo?

 

-...A outra parte do Ministério nisto é mesmo esta. Depois de acolher que o motivo agonístico é a pedra angular onde radica e donde parte toda a estrutura e ramificação da personalidade gerada por cada um, então é acolhê-lo e andar vigilante para que a escola inteira o tenha como coluna vertebral desde a base até ao topo. Não podes tolerar medida nenhuma que o bloqueie ou lhe desarme o aguilhão, como ocorre, por exemplo, com as medidas que chantagearam os professores na avaliação do Ensino Básico e que ainda hoje a impedem de corresponder à real aprendizagem dos alunos, tão fundo e duradoiro foi o trauma por elas provocado em todo o aparelho. Mesmo abolidas há tantos anos, ninguém acredita que o foram deveras e todos continuam a deformar tudo em nome delas, interminavelmente. Aliás, muitas escolas até incluíram e mantêm as normas abolidas no seu regulamento interno, não é?, não fora alguém esquecê-las e o diabo tecê-las depois, neste Ministério onde ninguém sabe nunca com o que conta.

 

-...Estou outra vez a bater no ceguinho? Está bem. Mas é apenas porque aquilo é o pior que vocês já protagonizaram neste domínio. Olha, porém, que não é o único. Queres ver o que me ocorreu ainda há um bocado? Fui à escola do meu mais novo buscá-lo, ao fim da tarde, ficava-me em caminho e aproveitei para cumprimentar quem estava na Comissão Executiva. Como já era à sonoite, apenas encontrei o assessor do turno do recorrente nocturno. Estava a atender uma senhora, pelo que não quis tomar-lhe tempo, saudei-o e preparava-me para retirar-me quando ele ma apresentou para eu ouvir a história que ela acabava de lhe narrar. É uma aluna da noite, já adulta e casada, que trabalha na biblioteca dum Instituto, integrado no Politécnico de Lisboa. Acabava de chegar deste onde tinha estado a ouvir o desabafo duma professora desanimada com o rumo das aprendizagens. Segundo ela, a tal docente queixava-se de que, a continuarem a baixar o nível de exigência do Instituto, não vê onde irão parar. Os alunos que tem este ano em geral não conseguem interpretar o que lêem, não sabem consultar um livro, um documento... Mas o pior é que não aprenderam a escrever, aquilo não é português nem é nada. Entrara na biblioteca com uma mancheia de folhas escritas duma turma. Algumas eram mesmo ilegíveis, a caligrafia eram uns gatafunhos tais que aquela aluna não logrou decifrar nada. Tentou lê-las, a pedido da tal professora que queria testar aquilo com alfabetizados comuns. Outras liam-se bem, mas era cada palavra, cada erro, ou então a sintaxe era de cortar à faca. Lembrava-se duma parte que era assim: “...a gente ía-mos lubar a pruduissão...” Contou-ma e repetiu-ma, às gargalhadas. Diz que lá no Instituto havia até chorado com tanto riso. Com aquela e com outras que já nem recordava. Ah! Ainda me indicou esta pérola de ortografia: “incuno-mia”. O aluno que escreveu tal enormidade certamente julga que “economia” é uma forma verbal qualquer, com uma estranhíssima conjugação pronominal, porventura. Isto é no ensino superior! Não vejo o que é que vocês andam a fazer...

 

-...Que é que tem a ver com a agonística? Então, é a baixa constante das fasquias. Os teus peritos operam ao contrário dos treinadores de atletismo: estes abrem os treinos dos saltos com a barra em baixo e vão-na subindo gradualmente, à medida que os atletas vão melhorando as marcas, desafiando mais e mais. No Ministério da Educação é ao invés. De ano para ano menos é requerido ao aluno, em vez de aumentar. Que é que pode justificar que um estudante do quarto ano aprenda pior que um da quarta classe antiga, por exemplo do nosso tempo? Pelo contrário, têm melhores condições, deve exigir-se-lhes mais. Com o nono ano é o mesmo, relativamente ao antigo quinto que fizemos (e com exame que excluía, lembras-te?). Todo o facilitismo desmotiva, desmobiliza. Vocês inçaram o aparelho disto. Queres outro exemplo? Olha, o direito à transiçãao com montes de disciplinas em atraso. Está bem, já estreitaram o leque. Mas melhoram num lado e alargam o regime a outros, é uma no cravo e outra na ferradura...

 

-...Ah, com isso estou de acordo, claro. A motivação vem de dentro de cada um, de fora nenhum de nós pode inventá-la, o aluno ou reage ou fica inerte. Mas podemos dar-lhe ou retirar-lhe condições, não é? E, quando se lhe retiram as condições todas, é tal e qual como se nunca existira motivação alguma. Ora, vocês andam lá por muito perto.

 

-...De acordo, a fatia do pedagogo é crucial. Intervém, contudo, tanto no âmbito das condições como a vossa e depende desta. Se vocês o desarmam ou lhe armadilham o terreno, como é que um educador dá conta do recado?

 

-...Não, não os estou a desculpar. Há formadores de todo o género e feitio, evidentemente. Mas, se concordas que o que importa é não cortar as asas a quem as tiver para voar, então conto-te outro episódio fascinante de que tomei conhecimento no fim de semana, ali na livraria de baixo.

 

-...Então aí vai. Fui lá ver a estante de banda desenhada. Às vezes tenho saudades do tempo de miúdos, lembras-te? A lermos o “Cavaleiro Andante “ às escondidas, durante a missa, aos domingos, na torre sineira... Era para aí a quinta vez ou mais que relíamos tudo, não? Mas ali, naquele recanto, tinha cá um sabor!... Nunca compreendi muito bem porquê, mas enfim... Bem, o caso é que estava lá entretido a folhear algumas bandas desenhadas actuais, sabes que o meu mais velho também tem um fraquinho por elas desde pequeno, estava mesmo a pensar nele, se encontrava qualquer coisa de jeito para oferecer-lhe. Vai daí o dono, o Marques, que já me conhece há um largo par de anos, sou um cliente habitual, vem-me de lá com ar conspirativo e diz-me: “Ó Snr. Dr., ando há tempos para lhe mostrar uma coisa gira que me veio parar às mãos. Como sei que trata de professores e coisas assim, de certeza que lhe importa. Veja isto, que eu depois conto-lhe o que é.” E pôs-me na mão uma banda desenhada a preto e branco, numa impressão muito pobre. Autor português, relativa a Galileu, não aparentava sequer uma edição para o mercado. Fui virando as páginas, dei conta de que o traço era inspirado no Astérix, aqui e além tinha quadros bem humorados. Resumia a vida e obra galilaicas, até à morte do génio.

 

-...Bem, até aqui não havia nada de particular. Esperei que o dono atendesse uma cliente que mora além, num dos prédios à direita, para ver que é que aquela história tinha de estranho.

 

-...Tinha, tinha, e de que maneira! Ouve: imaginas donde aquilo veio? Nem te passa pela cabeça!

 

-...De Moura! Da Escola Secundária. Aquilo foi um trabalho dum aluno, em Filosofia, no décimo primeiro ano, há tempos atrás. Era um exemplar fotocopiado, duma tiragem restrita feita pelo professor do aluno-autor e que ele apenas entregava a amigos e a outros estudantes eventualmente interessados. A título meramente exemplificativo do que uma relação pedagógica pode desencadear.

 

-...Ora aí é que bate o ponto! Afirmas que os alunos brilhantes operam milagres que nos surpreendem. Então que dirias dum que fosse uma nódoa vergonhosa? É que foi a caso. E é o que o torna deveras fascinente!

 

-...Então ouve. Pelo que me relatou o Marques, foi assim. O Meireles – é o apelido do rapaz que consta do exemplar da banda desenhada – era um filho de família abastada, o mais novo do lar. Alguns irmãos já tinham transitado com diploma por aquela escola. Ele, não. Reprovou ano atrás de ano. Ninguém lograva encontrar como poderia levá-lo a motivar-se. Os pais insistiam na escolaridade e o rapaz por lá se arrastava, desanimado, desatento, reduzido ao mínimo dos mínimos, apenas para não ir para o tractor, que era o que o esperava no dia do abandono dos estudos. De resto, havia sido um terror no estabelecimento até ao nono ano, depois, com a idade, acalmara e, quando atingiu o décimo primeiro, era um rapaz cordato, calmo e rigorosamente improdutivo em todas as áreas curriculares. Na convivialidade entre estudantes, aí, sim, nunca faltava, era um animador compincha, permanentemente pronto para a cavaqueira, para uma farra, para uma jogatina...Ah, claro, era também um namoriscador inveterado.

 

-...Como é que aparece a banda desenhada? Aí é que importa ver. Nunca nenhum professor encontrara fenda na carapaça defensiva do Meireles, ninguém penetrara ali, nenhuma proposta em sala de aula encontrava nele eco nenhum, tudo sofria ricochete e o rapaz continuava inerte e descrente. Ora, isto também espicaça os bons professores, é um desafio. “Que raio!” - dirão eles entre si. - “Será que eu não consigo mesmo dar-lhe a volta? Tenho de virá-lo!” Muitos o terão tentado, certamente, mas falharam. Ora, foi ddurante uma aula de Filosofia que a transmutação finalmente ocorreu.

 

-...Não, não foi sem mais nem menos. É um caso típico em que a intuição pedagógica e a arte no relacionamento educativo foram decisivas. Cá está o tal outro lado a que os condicionamentos ministeriais, provenientes de fora, jamais chegarão. Mas atenção, poderão permanentemente favorecê-lo ou inibi-lo ou impedi-lo de ocorrer. Ora vamos ao caso. Durante uma aula em que o Meireles, como de hábito, não prestava qualquer atenção, o professor foi animando o debate, ali de olho nele, discretamente. Fazia-o, evidentemente, desde o princípio do ano, quando se apercebeu do problema que aquele aluno constituía. Espreitava uma aberta, teria de haver uma ponte qualquer para o que dentro dele buliria. O rapaz gostava do convívio, era tão divertido fora, como diabo não entrava eco nenhum disto dentro das aulas? Ora, esta atenção persisstente e clandestina acabou por ser recompensada.

 

-...Exactamente: reparou no óbvio em que ninguém tinha reparado. Às vezes é assim: é demasiado evidente para poder ser visto, como diria Chesterton.

 

-...Não, aquele aluno não era como nós, não tinha nenhum fascínio particular pela banda desenhada. O mais estúpido é que o pormenor ocorria desde o princípio, ao que parece em todas as aulas, há anos, e nem o professor de Filosofia nem os mais viram o potencial que ali andava, pelo contrário. Era apenas uma manifestação do desinteresse do rapaz por tudo...

 

-...Nem mais! Acertaste em cheio. O Meireles entretinha as aulas a rabiscar desenhos no papel, como com todos nós tende a ocorrer, quando estamos num colóquio amodorrado, a matar o tempo.

 

-...A viragem? Olha, primeiro foi o docente que a teve de operar. Reparou no traço do jovem, identificou-lhe o parentesco com a banda do Astérix. Aí parou a aula, mostrou-se francamente admirado com a qualidade do que via, pediu autorização ao Meireles para o mostrar à turma, sublinhou a mestria e segurança dos desenhos, a energia explosiva que jorrava de alguns, a vida e o movimento que animavam todo o quadro improvisado na folha de papel. Pela primeira vez, o aluno olhava arregalado de espanto, desnorteado, sem compreender nada.

 

-...Claro, a partir daqui o professor deu-lhe a volta. “Isto é muito bom! Isto é mesmo muito bom!” - repetia, convictamente. - “Homem, tens de pôr tudo a render, uma qualidade destas não pode ser desbaratada nem ignorada. Até podes vir a viver no futuro da pintura ou da banda desenhada, sei lá!” E o aluno: “O quê?! Acredita mesmo?! Como é que a gente faz? Quem me dera!” O professor insistia: “Olha, tanto quanto recordo, nunca ninguém se lembrou de criar uma banda desenhada sobre Galileu. Queres tentar? Eu depois até te ajudo a divulgá-la, mostramo-la a editores, gente que andar por este ramo de negócio. Quem sabe? Às tantas ainda alguém lhe acha qualidade bastante mesmo para editá-la. Ninguém pode adivinhar até onde uma coisa destas pode ir...”

 

-...Aderiu?! Foi muito mais, o aluno perdeu a cabeça com este desafio. Entregou-se, numa paixão desenfreada, semanas inteiras, nunca ninguém lhe tinha visto tal comportamento. Pegou o fogo a mais quatro colegas para o ajudarem. Estudou e consultou todas as obras e documentos que lhe chegaram à mão acerca de Galileu. Desenhou, após elaborar um guião, trezentas plaquetes para serem miniaturizadas, reconstituindo deste modo toda a vida e obra do autor em estudo. E culminou no livrinho final que o Marques me colocou na mão. E é ele que tem andado por aí como um testemunho a recontar a história desta aventura pedagógica.

 

-...É verdade, uma autêntica receita de como ressuscitar um morto. Para mim é um caso deveras exemplar. Ignoro que terá sido feito do Meireles, agora não acredito que até ao fim da vida não recorde com saudade, como uma aventura das mais gratificantes da adolescênccia dele, a odisseia de criar aquela banda desenhada. É uma das coisas que jamais se obliteram e que nos marcam definitivamente para o resto das idades. Não me admiro nada se ele for um destes novéis cartoonistas que de vez em quando brotam pelos jornais e revistas, ou um dos recentes autores de banda desenhada que andam conquistando mercado no País. É também deste modo que eles germinam, não é?

 

-...A mezinha? Aqui, olha... Para o Ministério, neste pendor, é apenas isto: acreditar na sensibilidade apurada dos bons educadores que tem e serão, felizmente, a norma. Vocês terão definitivamente de deixar de fazer coro com os desequilibrados que perdem o tempo a cortar na casaca dos professores. Aqueles que gastam os dias a identificar os outros com o que têm de pior são complexados e doentes: definitivamente incapazes de cultivar nem de manter um encontro saudável com ninguém. Já por demasiadas vezes o Ministério da Educação se comportou como um inumerável bando de alienados. É tempo de pôr cobro de vez a este padrão ao lidar com o estrato do professorado. Nem aquilo, nem as generalizações ligeiras. Ainda para mais, de vosso lado, caem permanentemente na negativa; ainda se generalizassem pelo lado do que há de bom... Mas nem um rumo nem o outro constituem visões realistas. O facto, contudo, é que larguíssima maioria de docentes lutam por ser ou devir profissionais competentes. Ora, esta é que tem de ser a base de tudo, tanto para se ter a imagem do grupo como para se lidar com ele.

 

-...Não estamos nada conversados! Apenas porque a agonística é capaz de pôr de pé um morto, quando jogada com a mestria dum educador intuitivo e dedicado, já te dás por satisfeito?! Eu, não! E sabes porquê? Porque há muitas asas cortadas por factores alheios ou aleatórios e, quando vivemos demasiado distraídos uns dos outros, o que é o pão nosso de cada dia, as vítimas formam multidões.

 

-...Que é que o Ministério tem a ver com isto? Vês como também vós sois uns distraídos? Ó pá, então não reparas que, se cortais as pernas à agonística, se já ninguém luta para “quando for grande...” na escola, o corpo docente não fica apenas atado e desarmado na relação pedagógica, a partir daí não há via nenhuma para chegar mais longe, a qualquer factor familiar, comunitário ou aleatório que tolha o desabrochamento dum educando? Quando a porta fica trancada,é para todas as entradas. É constantemente mais grave do que vos parece.

 

-...Onde quero chegar? Olha, é que há educadores de génio no terreno que, apesar das dificuldades e estrangulamentos, conseguem mesmo varrer o entulho que tolhe a germinação de muitas sementes. Importa não o ignorar quando o tecido familiar e social vive em crescente deslaçamento, com a destruição generalizada de nós e solidariedades. Mais ainda, quando se pede à escola um suplemento de alma que falta cada vez mais nisto tudo. Ora, se nem a ela própria bastar, como lograria a instituição corresponder a tal expectativa?

 

-...Mas aí é que bate o ponto. Não basta legislar que doravante a escola tem de ter em conta a família e a comunidade. O que importa é a prática, o agir ao vivo. Ora, aí há também, quando as asas se não cortam, momentos fabulosos que é urgente generalizar.

 

-...Eu conto, eu conto. Creio que não conheces a enfermeira Mariana, lá da clínica. Ela trabalha na cirurgia, não é no meu sector, portanto... Ah, conhece-la de vista, lá do bar? Muito bem. Pois olha, foi mesmo no bar que me pôs a par do que ocorreu com ela, quando foi estudante numa Secundária em Torres Vedras, já lá irão talvez quase vinte anos.

 

-...Sim, sim, antes da Reforma Educativa dos anos noventa, porventura quando já andavam no ar os primeiros ventos dela. Ora bem. O que a Mariana me referiu chega a ser comovente. Foi uma aluna tímida, sistematicamente posta de lado por todos os colegas, desde o nível primário. Viveu este calvário, remetida permanentemente a um canto, sem jamais descortinar porquê, até ao termo do então Curso Complementar. Ora, foi aí que uma estagiária, ao tentar experimentar trabalho de grupo, estranhou aquilo. Reparou que ela não tinha amigos, nem no recreio convivia com ninguém. Para uma adolescente, isto era mau sinal. Falou com ela, mas a Mariana não se abriu, que já estava habituada, que não procurava amigos, que preferia dar conta do trabalho sozinha, enfim, todos os desvios comuns nestes casos. Usou montes de camuflagens, já tinha onze anos de treino a fazer cortinas de fumo para todos os professores que entretanto viera tendo desde miúda. Sofria com aquilo mas há muito que se havia resignado. Era boa colega, gostava de ajudar, não prejudicava ninguém, era um mistério por que vivera permanentemente ostracizada por parte de todos. Ainda por cima era até uma aluna razoável, nunca reprovara e nalguns casos chegava a atingir notas altas.

 

-...Pois é verdade, até àquele momento nem ela nem ninguém desvendara donde provinha a marginalização, ainda para mais tão duradoira.

 

-...Exactamente, foi a estagiária que marcou a diferença. Esta não se deixou enganar pelas camuflagens nem desculpas. Insistiu com ela dias e dias encadeados. A Mariana abriu-se, confessando a perplexidade dela relativamente às razões dos colegas. A professora falou com alguns deles, mas a todos lhes parecia uma coisa natural deixarem a colega abandonada a um canto, uma vez que ela é que ali se refugiava permanentemente, nem reparavam já como ela vivia à margem do convívio da turma, nunca a haviam conhecido doutro modo. Até aqui já muitos outros professores haviam ido, e era por aqui que ficavam sempre, sem nunca ultrapassar o problema.

 

-...Claro que podia não haver problema nenhum, se isto fora o que a Mariana pretendia e caso se sentira bem com aquele estado de coisas. Mas era exactamente ao contrário. A resignação era um baixar de braços perante a fatalidade, não era uma conquista nem uma reconciliação com ela e com o mundo.

 

-...A estagiária? Olha, resolveu trabalhar com a Mariana, sentou-se-lhe ao lado na cadeira quando pôs a turma inteira a funcionar. Foi quanto bastou para descobrir o porquê de tão prolongado ostracismo. Não adivinhas o que era?

 

-...Não, não tinha nada a ver com a incapacidade de ela trabalhar com outrem. Era um problema muito mais comezinho: o odor corporal natural. A Mariana era uma adolescente bem arranjada e sempre limpa e, como todos nós, incapaz de sentir o próprio cheiro espontâneo da pele. Ora, ocorria que este tinha um ligeiro travo que enjoava, muito vago e subtil. Levava toda a gente a afastar-se mas, como o odor era muito difuso, ninguém lograva identificar porque o fazia, não chegavam a tomar consciência do factor. Conclusão: a rapariga vivera a vida inteira em total isolamento, sem ninguém a conseguir ajudar a resolver isto.

 

-...Como é que a professora...? Muito simples: chamou-a aparte, teve uma conversa franca em que lhe explicou o fenómeno, os cuidados a ter para o resto da vida tanto com a higiene como com um desodorizante capaz de anular aquele travo. Prontificou-se a acompanhá-la a uma farmácia para tratarem de encontrar um produto adequado àquilo. Foram lá, descobriram com a técnica qual seria a melhor fórmula, a rapariga passou a adoptá-la cuidadosamente até hoje e nunca mais teve problema. Nem agora lá na clínicca. Ninguém diria que tem uma dificuldade destas, mantém-na por inteiro sob controlo, desde aquela época.

 

-...Na escola? O que ela me contou foi que parecia um milagre. Ainda hoje a comoveu relatar-mo. A professora não informou de nada a turma, aguardou uma resposta espontânea, já que o isolamento não era intencional por parte dos colegas. Diz que nem demorou quinze dias. Logo ao corrrer do trabalho de grupo, como era boa aluna, vários, esporadicamente, vieram verificar aspectos, na cadeira ao lado dela, e já não fugiam de imediato, como antes. No recreio, então, quando falava, já ninguém se afastou mais, até parecia que revelavam surpresa ao descobrirem-na. Duas semanas depois ficou inteiramente integrada, tanto em aula (o lugar à beira deixou de andar vazio, como tinha ocorrido anos inteiros), nos intervalos (comparticipou logo num grupo natural que lhe revelou mais afinidade), como na cantina ( agora chamavam-na para as mesas deles como entre si haviam feito permanentemente, mas até então nunca com ela). Uma viragem total.

 

-...Concordo, o problema nada tem a ver directamente com a agonística. Mas agora repara como andaria o gosto dela pelos desafios, a viver numa conjuntura daquelas! A vida da Mariana era uma desolação. A professora, ao proporcionar-lhe aquilo, fê-la germinar de novo.E não apenas para a escola: para o resto da vida. É aqui que eu queria chegar: se zelarem por manter de pé e bem aferido o motivo agonístico, mais e mais episódios destes viabilizarão. Se o desmontam ou torpedeiam, ninguém chega aqui. É o que ocorrerá se agirem em conformidade com o princípio de que o professor nunca tem razão, de que em norma é um infractor e de que terá de provar primeiro a inocência para ser absolvido. É o que vocês andam sistematicamente a fazer, há anos e anos, contra o bom senso e o princípio geral do Direito de qualquer país civilizado que os romanos nos ensinaram: na dúvida decide-se pelo réu e este é sempre inocente até prova em contrário. Com os educadores, há decénios que vocês andam todos ao invés. Já é tempo de pôr cobro a isto, não te parece? Todos têm razão contra eles, os alunos, os pais, a comunidade, o Ministério. Só eles é que nunca têm razão. E depois, para provar uma inocência... é o cabo dos trabalhos! Não achas que já é tempo de vocês terem juízo?

 

-...Eh, pá, é tardíssimo! Como é que foi isto?!... Adeus, continuamos para a semana... Até lá!

 

 

 

 

 

 

 

 

Mezinha 2

 

 

- Ah, hoje vens cedo. Ainda bem. Temos ali, para o serão, uma caixa de trouxas da Malveira, sabes? O Pinheiro, lá do consultório foi veraneear o fim-de-semana a St.ª Cruz e lembrou-se, quando foram dar uma volta à zona, à procura de antiguidades e artesanatos, para aproveitar o sol do verão de S. Martinho. Então trouxe-me aquela iguaria saloia que os monges inventaram, creio, em eras imemoriais.

 

-...Combinar com quê? Olha, para mim já fiz a escolha. Um colega estagiário do meu filho mais velho, que me pediu uma entrevista de diagnóstico, por andar um pouco indeciso com o trabalho, como eu não aceitei pagamento, mandou-me um pacote de café de Timor, uma mistura particular, arranjada lá em família, eles moram em Campo maior... Alinhas comigo? Ele diz que este lote, para ser bem saboreado, é sem açúcar, que lhe emprestaram um travo licoroso. Estou a vender o sermão como mo pregaram, ainda não provei. Vou agora metê-lo na máquina de moer, logo veremos... Mas estou curioso com o paladar deste café.

 

-...Agrada-te o programa? Agora já toleras a cafeína, não é? Lembras-te de quando andávamos na Universidade? Levaste meses a descobrir que quando tinhas insónias era infalivelmente quando tomávamos a bica no bar da Associação, depois de almoço. Aquilo é que era uma reacção! Mais de dez horas depois... É curioso como mudaste, agora se calhar até te dá sono, não?

 

-...Voltas às insónias quando tens um projecto pendente? Pois claro! É da ansiedade...

 

-...Também quando andas entusiasmado? Mas que giro! O teu metabolismo é mesmo invulgar. Se o teu padrão se generalizar, qualquer dia teremos para aí as escolas inteiras a dormir em pé...

 

-...Não entendes? Então não é o teu Ministério que pretende que todos os estudantes aprendam através de projectos pedagógicos? É o que tenho ouvido...

 

-...Não estou a ironizar nada. Pelo contrário, tens-me aqui plenamente de acordo. Questão é se o farão ou não, dado o vosso inacreditável jeito para impedir o que há de melhor, mesmo e principalmente quando o afirmam, o promovem e o apoiam. Creio bem que nisto logram mesmo ser geniais...

 

-...Pronto, paz, paz! Não quero nada bater mais no ceguinho. Queres as mezinhas que vos andem porventura a escapar? Tudo bem. O projecto pedagógico é mesmo a mezinha das mezinhas. Se é que algum dia vocês lá no Ministério irão entender o que isto é, o que aqui está em causa...

 

-...Eu sei que até ali já vocês foram. Na lei, nas palavras. Falta ver os factos. São eles que constantemente me têm deixado céptico, não é?

 

-...Não, não é nada para te picar. Mas lembras-te de que falámos há uma semana da agonística? Até onde, no teu Ministério, compreendem aonde ela leva, se lhe querem corresponder nas aulas, na escola, na família, na comunidade...? Quanto queres apostar que o projectto pedagógico para vocês todos é uma questão de moda, depois de todas as outras e tão inócua e estúpida como permanentemente foram quaisquer delas? Juro-te que não tens um em cada cem dos teus benditos técnicos que entenda a fundura dum projecto educativo e não deves descobrir um em mil que desvende qualquer ponte entre ele e o motivo agonístico. Ora, sem ambas estas garantias, todas aquelas vossas leis, regulamentos, reajustamenttos, reorganizações, áreas de projecto e tudo o mais são balelas. Balelas, tudo balelas, pá! E a verdade é que não vejo ninguém entre vocês preocupado nem atento a nada disto, portanto...

 

-...Tá bem, eu ponho-to em pratos limpos. Vamos a alguns casos ilustrativos, certo?

 

-...Como é que eu os tiro da cartola? Então, lido com eles todos os dias! É a diferença, vocês lá no Ministério, nas Direcções Regionais, nas Coordenações de Área Educativa e assim por diante apenas lidam com papéis e mexericos. Por isso é que bem podias extinguir aquilo tudo, que o País até ficaria mais saudável, entregue aos que desempenham a actividade directa, ali ao vivo nas unidades escolares.

 

-...Tá bem, é um exagero. Mas é menor que o que vocês cometem no rumo contrário. Pronto, vamos adiante... Olha, ontem, ao jantar, a minha mulher contou-me que encontrara uma amiga dela ainda dos tempos do liceu, quando foi tomar uma bica à esplanada do parque. É uma antiga professora reformada por invalidez há meia dúzia de anos, hoje uma avó toda babada. Tem um neto no pré-escolar de que cuida nas horas de emprego dos pais, ela é que o leva e o traz do jardim de infância. Estava toda derretida porque o pequeno, que tinha divertido o fim-de-semana deles na casa de campo, tivera uma gracinha enternecedora. Quando se sentaram à mesa para jantar, o miúdo reparou que, ao lado de cada prato, estava uma fatia quadrada de pão de forma. Então pegou na dele e desatou a comê-la por um dos cantos. Dava uma trincadela e olhava-a, outra, olhava-a outra vez, depois virava-a ao contrário, aparava mais um pouco do outro lado e assim por diante, muito metodicamente. A avó observava-o e não entendia o que é que ele pretenderia atingir. De repente, após virar o que lhe restava da fatia do direito e do avesso, deu-se por satisfeito, levantou-a bem alto na ponta dos deditos e exclamou: “ Vejam, fiz um triângulo!” Todos à mesa ficaram encantados, só lhes faltou baterem palmas. “O que eles aprendem! Tão pequeninos!” - repetia ela à minha mulher, ternurenta.

 

-...Que é que isto tem a ver?! Essa agora! Ó pá, aquilo é um projecto pedagógico! Não vês?! E completo, ainda por cima completo. Eu bem digo que vocês não há maneira de abrirem os olhos!...

 

-...Ai é um mero episódio encantador, é? Então, repara bem. Há ou não há uma aplicação duma aprendizagem para criar algo?... Há! Logo, tens aqui um projecto genuíno. Todos são isto: um desiderato qualquer que toma corpo, mediante o recurso a saberes disponíveis.Na escola, na educação, na arquitectura, como em todas as áreas da vida...

 

-...Rudimentar?! Ai pelo facto de ser simples deixa de ser projecto?! Não estás bom do juízo!

 

-...Aí é que te enganas! Aquilo é perfeitamente extensível à escola inteira. Aliás, afirmo-te mesmo que, quanto mais simples forem os projectos, melhor: mais fácil é aderirem-lhes tanto os professores como os alunos. Os muito complicados tendem, na generalidade dos casos, a devir anti-pedagógicos. Ora, o daquele miúdo é pedagógico deveras. E sabes porquê? Porque brotou mesmo de dentro, ele é que o quis, sonhou de repente com um triângulo de pão e executou-o como uma meta desejada que tratou de atingir. Ninguém lho impôs nem foi um fardo, um peso a mais, como em muitos casos ocorre pelas escolas além: ora, sempre que isto advier, o projecto, de pedagógico em teoria, devém anti-pedagógico na prática. Nestas conjunturas era preferível nem implementá-lo. Apenas desmobiliza ainda mais...

 

-...Não, não confundas. Então eu iria ignorar que em aula, geralmente, os alunos não têm ideias, sonhos nem protagonismo? Agora uma coisa é o formador impor-lhes um projecto dele, ou da escola, ou do director de turma, ou do tutor, alheio à afectividade dos educandos, às expectativas que tiverem, outra é devir mediador, ajudá-los a encontrar modelos que os empolguem, metas que os galvanizem, sonhos a que pretendam dar corpo e pôr a caminho, através de empreendimentos que apliquem as aprendizagens que vão ocorrendo. Aquilo é anti-pedagógico, isto é ser pedagogo.

 

-...Evidentemente que não serão vocês que podem interferir e desempatar a alternativa, é o professor em plena relação pedagógica. Este é que tem de resolver o desafio. Agora é crucial que o Ministério e, em geral, todas as chefias, a principiar nas da escola, tenham bem presente aquele critério. Doutro modo não estimularão, não reconhecerão nem ratificarão o desempenho correcto e adequado perante o que o deturpa e lhe inverte o vigor formativo, tornando-o deformante.

 

-...Não acreditas que redunde tão mal assim, mas é. Não te recordas do que ocorreu com a tua filha, no fim do segundo ciclo? Ainda não estavas no Ministério, naquela época. Até eu fui bem levado, lembras-te? Também achei que aquela reconstituição de história ao vivo, com o auto-de-fé, a procissão dos condenados e penitentes, as projecções de imagens, a música e o texto gravados em fundo, eram uma obra-prima. Caiu-me a alma aos pés quando a tua pequena veio ter connosco, ao fim, toda excitada, a meio da plateia lá da Colectividade Filarmónica onde tinham encenado o espectáculo, e nos perguntou: “Então, gostaram?” E nós, cheios de boa fé: “Muito! Uma maravilha!” E ela, uma das principais intervenientes no quadro da procissão: “E que era tudo aquilo? Que é que era?” Foi um balde de água fria! Nenhum daqueles alunos chegara a entender em que é que andara envolvido durante o projecto inteiro. Foram os burros de carga, mais nada. Não haviam logrado vibrar com ele, nem sonhar com momento nenhum, nem projectar-se lá. Bem tu tinhas estranhado, nos meses anteriores, que a tua filha se queixasse do tédio, da carga que eram aqueles ensaios, lembras-te? Ora aí tens: é o que provoca um projecto efectivado de modo anti-pedagógico. É o alheamento, a rejeição, em lugar do entusiasmo e do empenhamento.Se ele vem do íntimo, se radica nos afectos e sonhos do educando, é mobilizador e formativo; se é imposto de fora, não, por mais que resulte num espectáculo de qualidade o respectivo produto final. Também as pirâmides do Egipto são uma das maravilhas do mundo, todavia decorrem do sangue escravo de quem as erigiu e jamais pôde maravilhar-se com elas, antes foi pelas pedras esmagado. Um projecto executado anti-pedagogicamente também pode redundar nisto.

 

-...Ao menos houve interdisciplinaridade?!Então e no triângulo de pão do miúdo não houve?

 

-...É inacreditável! Vocês continuam a medir a interdisciplinaridade pelo número de professores de áreas curriculares diferentes que intervêm num projecto. Mas que estupidez! Então no 1.º Ciclo, como apenas há um docente por turma, as actividades nunca poderiam ter aquela característica, não é? E depois não queres que eu suspeite de que o Ministério ande pejado de idiotas...

 

-...Não vês onde?! Olha, então o pequeno não teve de utilizar os saberes que tinha acerca do pão para talhar o triângulo? Vê lá se ele se pôs a roer o prato! Não pôs, pois não? Então sempre esteve a utilizar conhecimentos doutras áreas. Mas há mais. Usou as regras de estar à mesa daquela família, por exemplo. Em muitas outras achariam que aquilo não era maneira de comer o pão e não lhe seria permitido. Ora, ele comportou-se de modo adequado às circunstâncias. Até presumiu que os iria deixar derretidos quando ao fim exibiu a obra acabada. Noutros lares nem poderia abrir o bico, seria mal educado. O pequeno utilizou uma gama variada de saberes para dar conta do propósito. Isto é que é interdisciplinaridade, aquela que é característica de qualquer projecto, intrínseca a ele. Nem conseguirás inventar um que a evite, não existe mesmo, não é possível. Todo e qualquer projecto, por mais rudimentar que seja, é interdisciplinar neste âmbito. E outro conteúdo que vocês lhe dêem virá deturpar tudo, mormente aquele de apenas respeitar a interdisciplinaridade a iniciativa onde se conjuguem pelo menos dois professores de áreas distintas.

 

-...Não, não é que isto seja mau. Pelo contrário, até poderá ser muito bom se aumentar o entusiasmo dos educandos e a qualidade dos empreendimentos. Mas repara no que ocorreu com o de tua filhaa: meia escola lá envolvida, se calhar até com educadores galvanizados, só que os alunos ficaram de lado, em termos de estímulos para os motivarem. Que raio de interesse tem uma coisa destas? Isto é que é deveras fazer flores para camuflar um vazio inerente. E é o que vocês andam afincadamente a implementar, com regulamentos e interpretações que tais.

 

-...Evidentemente, têm de deixar de referir mesmo a interdisciplinaridade nas vossas normas e recomendações, dado que ela é intrínseca ao trabalho de projecto, como é. Doutro modo continuarão a deturpar tudo. A cooperação entre docentes não é aquilo, dado que até desejável é entre os da mesma área. Ora, forçá-la resulta no mesmo que obrigar a qualquer outra escolha pedagógica: leva-a a devir na prática numa anti-pedagogia. E é isto mesmo que têm no terreno, onde aquilo não foi uma escolha livre dos intervenientes. É mais ou menos o mesmo que se vieram impor: “Os homens têm de ser racionais!” Como todos o são já por natureza, desataríamos à procura do que pretenderiam com tal normativo e cada qual iria emprestar-lhe um conteúdo outro qualquer. Resultado: teríamos ao fim todo um rosário de arbitrariedades, de irracionalidades, no fundo. Tudo, menos a materialização da razão basilar característica da Humanidade.

 

-...Ah, pois, deliciámo-nos com o espectáculo da tua filha e do resto da escola dela. Em termos de animação cultural e comunitária foi mesmo um momento alto. É indubitável. Por aqui não falharam, tens toda a razão. O projecto daqueles professores apenas eliminou o vector pedagógico, por não o ter submetido ao entusiasmo, ao empenhamento dos educandos. No resto foram exímios. Mas também o foi o pequeno do pão de forma.

 

-...Não tem comparação?! Ai tem, tem! A plateia dele foi a família. E enterneceu-a porventura mais do que a plateia de que partilhámos. Neste miúdo é que tens um projecto pedagógico completo: motivado na realizaçãp, aplicando uma aprendizagem na criação efectuada, culminando numa celebração final, em público, a consagrar o trabalho numa partilha em festa. E, como vês, não é preciso nem muito tempo, nem muitos recursos: menos dum minuto bastou para ele marcar à dentada o triângulo na fatia de pão. Nem a educadora precisou de ali estar, ele animou a festa sozinho e com pleno aproveitamento. Isto é que é exemplar, ao contrário do que creio que vocês pretendem e acreditam lá pelo Ministério. Se não for uma coisa colossal, um imenso elefante branco, não vale nada, não é?

 

-...Apenas dá para o jardim de infância? Claro, com aquelas coordenadas, é verdade. Não ficarias nada enternecido com o teu rapaz - tem agora dezasseis, não é? - a talhar um triângulo duma fatia de pão e a mostrá-lo, triunfante, à mesa inteira. Mas o da tua filha pecou meramente por não ter sido pedagógico: os educadores, porventura preocupados com a mostra pública, descuraram-no. Ora, nada os impedia de atenderem prioritariamente à motivação dos educandos. Os projectos não são para dar espectáculos, são para educar, para formar, para desenvolver competências, capacidades, habilidades, saberes...

 

-...Requerem um mínimo de abrangência? Não, nem por isso. Lembras-te da feira de projectos que alguém da tua Secretaria de Estado protagonizou há um ano numa escola dos Olivais? Não pude ir contigo mas passei por lá no fim da tarde e tive um guia privilegiado: um dos animadores naturais da escola, pedagogo já a caminho do fim da carreira. Para mim, o recanto dele foi o mais interessante, mas creio que vos terá passado quase despercebido, deve ter-vos faltado um cicerone à altura...

 

-...Exactamente, o do livrinho sobre “Fernando Pessoa e o reflexo da filosofia ocidental na obra poética” dele. Recordas-te deste, ainda bem. É um bom exemplo, escrito por duas alunas, ainda a meio do Secundário. Além do mais, claramente inovador. Eu também lhe fiz uma leitura em diagonal, picado pela coragem, pela quase temeridade delas: meterem-se daquela maneira por territórios inexplorados, é obra!

 

-...Aí é que te enganas: não tiveram mais que o acompanhamento do professor de Filosofia, a de Português esteve de baixa durante o período inteiro que levou a dar corpo ao projecto. Como vês... E aquele que as apoiou limitou-se a corrigir e avaliar dia a dia o que elas iam descobrindo e escrevendo, mais nada. Nisto é que radica a piada toda daquele livrinho: são elas mesmo as autoras, não se limitaram a ser criadas de servir duma iniciativa ou pesquisa qualquer dum orientador. Aqui não houve nenhum desvio, podes crer: tive oportunidade de ouvi-las, à entrada do turno da noite, que eu ainda lá andava quando chegaram. Contaram-me até que viveram semanas interditas e desorientadas porque o professor se recusava a mais que a mandá-las avançar sozinhas. Apenas o fizeram quando se convenceram de que ele não cederia de todo. Então deitaram mãos à obra e pronto: escreveram aquele livrinho que é mesmo uma pequena jóia de criatividade e qualidade, ao nível de aprendizagem em que elas se encontram. Imagina que o chegaram a editar, numa tiragem pequena, para o distribuírem entre colegas, familiares, professores, amigos e conhecidos. É verdade, até eu tive direito a um exemplar que mantenho guardado lá dentro no escritório. Repara só onde a aventura chegou...

 

-...Complexidade?! Qual complexidade?! Não confundas, isto é um projecto temerário no conteúdo, naquilo a que se abalançaram, mas duma simplicidade linear no itinerário de elaboração. Repara que nem contaram com os dois professores das duas áreas curriculares envolvidas, o Português e a Filosofia, nem com qualquer enxertia provinda de fora, nem do docente acompanhante, tudo se limitou ao caminho que ambas foram logrando trepar, contando com a avaliação dia a dia, o estímulo, as sugestões permanentes dele. Aquilo foi quase como elaborar uma tese na Faculdade, o orientador destas fica em regra por ali e ponto final. Se calhar alguns até interferem mais, até há aqueles que querem que realizemos as investigações que eles nunca foram capazes de enfrentar, não é? Ora, aqui foi tudo perfeitamente simples, sem complicações desviantes e inúteis.

 

-...Tá bem, combinaram duas áreas curriculares. Mas combinaram, como sempre, muitos outros saberes: a pesquisa documental, a comparação de textos com identificação de teses sobreponíveis, a escolha das ilustrações poéticas mais significativas, a elaboração da sequência encadeada e coerente do trabalho, a escrita de cada parte, a triagem de níveis de linguagem e assim por diante. Nada disto (e nuito mais) consta do programa de literatura das alunas nem da teoria do conhecimento e da epistemologia que estudavam em Filosofia. A interdisciplinaridade, uma vez mais, é tudo aquilo, não se limita ao mero cruzamento de áreas curriculares, embora, claro, estas também o integrem. É, porém, um reducionismo castrador ficar por tão pouco exclusivamente.

 

-...Não, não creio que a qualidade dependa, em nada, disto. E tinhas lá mesmo um bom ilustrador. Não reparaste naquela simulação duma revista monográfica de Filosofia elaborada por dois alunos? Era um projecto perfeitamente paralelo ao outro. Até tinha maior extensão, ainda me recordo que ia a perto de cento e vinte páginas. Não o folheaste? Eu fi-lo, até li alguns extractos, por indicação do meu cicerone. Olha que perdeste uma extraordinária peça. O nível de qualidade daquilo era inacreditavelmente elevado, claramente universitário e dos melhores, repara.

 

-...Em que consistia este projecto? Eles imaginaram que eram uma equipa redactorial completa, encarregada de elaborar uma revista comemorativa do tema duma unidade programática, do género do centenário dum autor. Tinham consultado uma brochura deste tipo na biblioteca e haviam gostado. Então, olha, aquilo resultou numa obra completa. Na introdução, sumariaram e explicaram a lógica do itinerário por que optaram. Num artigo de fundo, expuseram as correntes dominantes de pensamento relativas à matéria em análise. Simulatram depois uma entrevista a um perito em tais questões. Depois, imaginaram uma mesa redonda com representantes das várias correntes contrapostas, cada qual defendendo a própria linha. Imitaram, na sequência, um trabalho de campo com recolhe sócio-cultural de efeitos de tais correntes nos modos de pensar e de agir de indivíduos e comunidades. Concluíram com um balanço final de todo o trabalho, das hesitações, dúvidas e questionamentos deles mesmos. Como vês, um desafio ambicioso.

 

-...Pois, exclusivamente envolvidos numa área curricular. E vê lá, não perderam nada por isto, o trabalho final redundou num volume de nível muito bom, não se prejudicaram, pelo contrário, por não andarem a complicar o que pretenderam empreender. É como te digo, os mais simples tendem a ser os melhores, é mais fácil garantir que estes projectos sejam pedagógicos, que cativem pelo coração os alunos.

 

-...É verdade, esquecia-me deste pormenor. Estes estudantes eram jovens adultos e frequentavam o ensino nocturno. Torna aquele trabalho ainda mais extraordinário. Todos têm a mania de que os frequentadores da noite são indisponíveis, o que os tornaria incapazes de feitos de vulto. Aqui, vocês, as escolas e a comunidade embarcam no mesmo preconceito. Olha, gostei mesmo de o ver destruído naquilo, ao vivo e com aquela qualidade toda.

 

-...Ele explicou-me que não era um caso único. Com o professor daquela turma, praticamente todos os educandos o faziam, com maior ou menor nível, claro. Dependia da metodologia e estratégias em aula, mais nada. Não é curioso isto? Mas acrescentou que com as unidades capitalizáveis (como com os blocos) é que não operava, ficam todos os alunos pelo caminho. Dá que pensar... E ainda mais dá a vossa insistência dogmática em tal modelo, apesar da prova factual contundente de que é contraproducente, fomenta o insucesso escolar e o abandono em massa... Admite que vocês, lá pelo Ministério, pretendem mesmo isto. É ou não é?... Contra factos...

 

-...Tá bem, pronto, não vamos desconversar. Reparaste como temos vindo a referir projectos em todas as idades? Desde o pré-escolar ao ensino de adultos. É a única estratégia que encontrei com esta característica, a de ser universalizável, resultando em pleno sempre, quando correctamente aplicada, tanto nas aprendizagens como no desenvvolvimento de competências e da personalidade.

 

-...Não, não, é mesmo como te digo e há uma razão clara para isto: a agonística. A estratégia do projecto pedagógico é a única que lhe corresponde plenamente, qualquer que seja a idade. Cada educando, ao levar à prática e criar algo com que sonhe, antecipa e dá corpo às metas que visar pela vida fora, que mais não seja através de simulações, fantasiando conjunturas e eventos e concretizando aí os papéis que aspira vir a protagonizar. Ora, dar corpo ao sonho é permanentemente realizar o motivo agonístico que nos acompanha do berço à tumba.

 

-...Totalmente de acordo: radicar o aparelho escolar no projecto pedagógico, como espinha dorsal, a unificá-lo do jardim de infância ao fim da Universidade, é a estrutura que pode marcar a nossa diferença para melhor no âmbito pedagógico-didáctico, relativamente ao resto do mundo. Assim vocês o deixem operar e acabem com a infinidade de pedras na engrenagem com que a incompetência ou a má fé lá dos teus quadros bloqueou e anda a deturpar tudo isto. Aquelas de que já falámos e outras mais que se calhar nem vi ou que eles se encarregarão de inventar no futuro...

 

-...Então e julgas que eu iria atirar as culpas de todas as dificuldades para as costas do Ministério? Não, homem, Claro! Mas aqui importa distinguir dois tipos de problemas. Um é o da compatibilidade dos currículos programáticos, outro, o da resistência dos corpos docentes para dominarem tal estratégia e a generalizarem nas respectivas práticas educativas.

 

-...É, é mesmo importante distinguir, já vais ver porquê. Ignoro se deste por ela, mas houve um ano em que eu transferi o meu João, durante o Ciclo, para uma escola de Chelas, tudo por causa do Francês com que ele não havia maneira de se reconciliar. Adorou constantemente o Inglês, ainda hoje, e com aqueloutra língua andou para ali de candeias às avessas. Permanentemente, excepto aquele ano. Descobres porquê? A professora enveredou por uma abordagem única e deveras espectacular. Não foi propriamente um projecto, foi um jogo didáctico. Dito doutra maneira, o projecto deles foi desenvolver um jogo didáctico em níveis e formas cada vez mais ricos e complexos.

 

-...Olha, mais uma vez um modelo inacreditavelmente simples mas com um potencial que me não teria ocorrido nunca: o jogo da glória, aquela espiral de casinhas numeradas que temos de percorrer, transpondo obstáculos, até um jogador, o vitorioso, atingir o centro.

 

-...Exactamente, as dificuldades, os desafios e as penalizações eram as várias aprendizagens de francês. O acaso do número que saía no dado é que levava a cada casa e à questão que a ela se reportava. Linear, como vês.

 

-...Ah, não, apenas o primeiro exemplar é que foi todo elaborado pela professora. Daí para diante foi com cada aluno e cada grupo da turma. Eles é que desenharam e criaram os quadros e os guiões de todos os níveis posteriores. E contaram para avaliação tanto os modelos que inventaram como o resultado de cada desafio e campeonato que jogaram com eles. Desenvolveram concursos na turma, entre equipas e entre jogadores individuais. Cada nova unidade retomava o itinerário inteiro: desenhar e ilustrar outras placas com o jogo da glória, criar novos guiões de questões e respostas, jogar entre equipas e entre jogadores, até às tabelas finais de cada qual na listagem da turma. Nem imaginas o entusiasmo que isto desencadeou. Nunca uma língua estrangeira foi tão cativante de certeza para ninguém. Pelo menos para o meu João foi a revelação mais extraordinária que lhe poderia ter ocorrido...

 

-...Se aprenderam? Mais do que aprenderam, aplicaram os dias a treinar, em casa e na escola, uns com os outros, até connosco em família. Ninguém gosta de perder, não é? Olha, aquilo foi tão longe que, no terceiro período, já jogavam no convívio dos alunos, na biblioteca, e acabaram por ter de organizar um campeonato inter-escolas, que os das vizinhas também queriam entrar na festa. Vê lá bem!...

 

-...Que é que isto tem a ver com a dificuldade de generalizar os projectos pedagógicos? A verdade é que tem. Repara. Não é por acaso que tudo aqui revestiu a forma dum jogo didáctico. Lembras-te, nos anos oitenta, de a matemática ter transitado para o terceiro lugar das disciplinas com mais reprovados no País? Ora bem. Ocorreu por efeito das múltiplas iniciativas nacionais, umas do Ministério, outras das várias agremiações de matemáticos, no intuito de generalizar métodos e estratégias de jogos didácticos: foram e são as olimpíadas da matemática, as maratonas, os concursos do problema semanal ou quinzenal e uma infinidade doutros. Todos eles, porém, constantemente daquele modelo. A verdade é que o insucesso baixou bruscamente e até hoje aí ficou. De então para cá habituámo-nos a ver no topo da lista a Língua Estrangeira e a Físico-Química, com o máximo de reprovados.

 

-...Sim, acompanhei de perto uma experiência de duas pedagogas em Torres Vedras, há já uns anos. Ajudei-as para não caírem em stresse nem esgotamento. Imagina que iam e vinham todos os dias para a zona ali de Cascais! Era arrasador, mas aguentaram muito bem. Quem corre por gosto não cansa, não é? Leccionavam Matemática, adoptaram a estratégia do problema quinzenal, com classificações e prémios para os vencedores de cada desafio. Abriram a competição a toda a escola e a equipas mistas, podendo envolver inclusive funcionários do estabelecimento e, depois, mesmo indivíduos da cidade. Isto foi-se alargando mais e mais até que, a meio do ano, foi lançado o repto a todos os professores para centrarem a escola inteira em projectos pedagógicos. Muitos aderiram, criaram um núcleo de animadores e uma lista de iniciativas a desencadear. Na Matemática, organizaram uma maratona de problemas para competir entre equipas. Tudo veio a culminar numa semana de adiafa, lá para os fins de Maio. Estive em Torres Vedras num dos dias, para respirar aquilo ali ao vivo. Fui ao cine-teatro da terra onde montaram um espectáculo aberto à comunidade. Descobres quem ganhou a maratona da Matemática? Uma equipa formada por uma aluna do Secundário e uma empregada duma loja de modas. Imaginavas alguma vez uma coisa destas? É lindo, é mesmo lindo!

 

-...Era aí mesmo que eu queria chegar. Tudo aquilo foram múltiplos projectos em muitas áreas curriculares e circum-escolares, mas a verdade é que os professores de línguas e matemáticas viraram todos para a fórmula dos métodos de animação de grupos: a análise de casos à partida, a conduzir a dramatizações logo depois, onde ficam quase todas as abordagens das línguas, e, finalmente, os jogos didácticos, onde desembocam as matemáticas e as componentes matematizadas doutras matérias. As melhores experiências destas duas áreas curriculares tendem permanentemente a este itinerário e é mesmo por causa dos conteúdos programáticos: estão de facto a pedir projectos deste tipo e não doutros modelos quaisquer. Ora, isto é, de alguma maneira, limitativo, não há todo o leque dos demais. E também aqui se pode muito facilmente fazer, por exemplo, uma dramatização, como nas nossas aulas de inglês, lembras-te ainda?, e ser uma imposição opressiva, nada motivadora. Recordo-me do Rangel naquele suplício. Coitado! Muito padeceu ele naqueles anos! Claro que isto poderá ser tão anti-pedagógico como um projecto que não cative pelo coração. E o jogo didáctico também poderia limitar-se a mera competição, quebrando solidariedadess, levando a degenerar as relações humanas e devindo então deseducativo. Enfim, tudo se pode corromper, não é?

 

-...É verdade, duas professoras movimentaram uma escola inteira, é obra! Meteram-se em altas cavalarias, por isso é que tive de as ajudar a aguentarem.

 

-...Pois não, generalizar esta atitude é uma utopia. É mesmo o que nos leva à segunda dificuldade, a da resistência dos pedagogos em adoptar a estratégia dos projectos pedagógicos, como estratégia condutora para as aulas.

 

-...Correcto, impor não resulta, porque pedagogia imposta devém na prática sistematicamente deseducativa. Agora, quanto a os professores terem de trocar de método, usarem modelos activos para a estratégia resultar, não concordo. Mesmo a metodologia expositiva mais extrema é compatível com o fomento de projectos, como todas as outras. Queres ver? Olha, o meu filho mais velho fez a maioria das cadeiras de Engenharia através de trabalhos de grupo e individuais. Alguns entusiasmaram-no deveras, cheguei a cooperar até num ou noutro. Pois bem, nunca me descreveu uma aula, nas dezenas de cadeiras que teve (até mesmo nas práticas, por estranho que pareça!) que não fosse expositiva do princípio ao fim. Às vezes, lá havia um naco de diálogo, para variar. Aqueles trabalhos como não eram acompanhados em aula, foram discutidos oralmente ao fim dos respectivos prazos e classificados em conformidade. Curiosamente, eram mesmo projectos, em regra, com temas escolhidos e propostos ao gosto dos alunos e para aplicarem as aprendizagens que iam sendo feitas. Tiveram foi de executar-se permanentemente fora do tempo lectivo, mais nada. Mas concordo obviamente contigo que os métodos activos poderão desmultiplicar indefinidamente o efeito destes modelos pedagógicos. Dariam resultados cumulativos.

 

-...É, de facto, uma estratégia optimizadora para todas as idades e também compatível com todos os métodos de organizar e dar conta das aulas. Neste aspecto é um achado para a educação, o projecto pedagógico.

 

-...Não, não ficamos nada tolhidos para o generalizar. Claro que assustarás todos os educadores se lhes deres como modelo aquela experiência de Torres ou a de Chelas, ou outra igualmente avassaladora. Quem nunca as experimentou fica aterrorizado perante empreendimentos que tais. A questão é apenas de lhes mostrar por onde principia, a conta-gotas, a brotar o grande rio: é indicar-lhes a nascente, mais nada.

 

-...Como? Olha, por exemplo, não afugentará ninguém referir-lhes o itinerário do meu filho nas cadeiras de Engenharia: qualquer professor pode combinar trabalhos individuais ou em grupo com os alunos, relativos a qualquer unidade das matérias abordadas. Todos são capazes e podem promover isto, com inteira facilidade. Achas que algum docente ficaria atemorizado por tão pouco? Não creio, nunca descobri nenhum, pelo menos.

 

-...Ora! Então esta seria a única fonte?! Claro que não, homem. Lembras-te de que há uns dois meses fui com a família comemorar os vinte e cinco anos de casado aos moinhos da Serra da Atalhada? No retorno apeteceu-nos rever as ruínas de Conímbriga, eu já lá não ia talvez há uma dezena de anos. Fiquei espantado quando o meu João desatou sem mais a armar em cicerone, a levar-nos aos recantos mais ilustrativos, às ruínas mais recentemente postas a descoberto, explicando a vida e a antiga população mais provável de cada vestígio, inteiramente dono de toda a informação relativa a cada aspecto da velha cidade romana, morta há tantos séculos. Por momentos, cuidei que ele teria andado a estudar aquilo para me fazer surpresa, sei lá... Mas não, era apenas que recordava muito vividamente uma visita de estudo que a turma dele lá fez há já uns três anos. Fora muito bem preparada e todos tiveram de elaborar um relatório descritivo de quantas descobertas lá fizeram. Olha, marcou-os tão duradoiramente que não só ele continuava com tudo perfeitamente presente, como ainda, no decorrer da exploração, encontrámos uma colega dessa mesma turma, também ali com os pais, a reviver tudo em família, de moto próprio como nós.

 

-...Uma visita de estudo é um projecto pedagógico desde que haja gosto dos educandos e o cuidado de avaliar, por exemplo através de relatório, todas as aprendizagens durante ela ocoridas. Senão pode derivar num belo passeio, porventura muito divertido, e mais nada. De qualquer modo, eis outra nascente de rio simples e normalmente cheia de alegria e boas memórias. Qual o professor que a iria encarar timorato ou arredio? Não vejo...

 

-...Há mais, há. E não pretendo esgotar todas as matrizes donde brotam projectos pedagógicos. Por exemplo, lembras-te do ano em que correu mundo o filme “O Clube dos Poetas Mortos”? A Junta de Freguesia dos Olivais promoveu um visionamento, à tarde, para as escolas, no cinema da Encarnação. Naquele dia, por acaso, eu estava lá, a pedido deles, num levantamento da rede de saúde mental da zona. Fui à projecção do filme e ao debate. Estavam várias turmas doutras tantas escolas, a plateia quase cheia. Alguns professores. Quando o herói, o pedagogo-poeta, é expulso e abandona pesaroso a aula, à meddida que cada aluno trepa silencioso para o tampo da carteira, contra as ordens gritadas pelo substituto do mestre, descobres o que ocorreu? A casa veio abaixo com uma frenética salva de palmas, aquela rapaziada estava toda de lágrimas nos olhos. Durante o debate foi uma torrente de explosões de revolta. Por mim, julgava que tudo ficaria por ali. Já era muito aquele entusiasmo, toda a utopia ao vivo jurada e trejurada. Mas não. Um dos professores de Filosofia desafiara-os a fazerem de jornalistas e a escreverem cada qual a respectiva reportagem do que ali ocorrera, para um semanário fictício. E pronto. Contaram-me depois que houve de tudo: reportagens, artigos de fundo, comentários, entrevistas simuladas, até poemas alguns deles escreveram... Estás a ver como pode brotar um projecto pedagógico com a maior das facilidades e com o fogo a arder em todos? E quantos mais caminhos não poderá haver?...

 

-...Momentos fortuitos, privilegiados e pontuais? Estes, sim. Mas não concluas daqui que é inviável generalizá-los. Até convém, para professores inexperientes, que principiem num momento de forte motivação dos educandos, com modelos muito simples, facilmente geríveis, como este de que acabamos de falar. Nada, porém, implica que fiquemos por ali. Olha, basta recordar-te um pormenor da “Feira de Projectos” que ambos vimos. O meu cicerone alertou-me para uma mesa de canto onde quase só estavam expostos trabalhos escritos. É, de facto, um modelo de projecto pedagógico por onde começam, na didáctica, praticamente todos os docentes. Já quando éramos estudantes nós próprios elaborámos vários, lembras-te, por exemplo, das recolhas para Ciências Naturais acompanhadas de relatórios descritivos? Fizemos uma série delas. Pois é. Mas então, na tal mesa de canto, repara só no que me lembro que folheei: vários textos eram meros resumos, em linguagem mais ou menos pessoal, dos compêndios de estudo; outros, porém, tinham ilustrações, uns com simples colagens, alguns com desenhos e quadros inventados pelos autores-alunos; nesta linha, deparei pelo menos com um em banda desenhada e com outro constituído por uma espécie de montagem de cartoons. Mas então, no tipo de textos, atenta apenas na variedade de que me recordo, para além dos resumos individuais: um era uma tese original dum aluno acerca do tema; outro era um guião para ensino programado (feito a pensar numa utilização em computador); havia ainda uma novela relativa a outra temática; vários quadros de teatro, um pouco ao jeito da revista à portuguesa; uma sequência em prosa e poesia ao lado doutra em que uma unidade inteira era abordada em poemas; sob a forma de contos, dei com meia dúza deles; ah, havia outro segundo o modelo dum ficheiro de enciclopédia... Os mais curiosos eram dois guiões: um para um imaginário programa de televisão e outro para uma gravação sobreposta a música, para servir de suporte a um bailado. Tive o privilégio de ver em vídeo a realização destes dois últimos, depois. O professor proporcionou-mo no fim da visita. E houve mais decerto, não me lembro de tudo.

 

-...Bem, como espectáculo, os vídeos eram pobres, mas como aprendizagem e criatividade dum sonho a caminho, para mim foram exemplares. Ora, é isto que importa fundamentalmente, o mais é mera superabundância que virá por acréscimo, quando o contexto o requeira, as animações culturais, a relação escola-meio...

 

-...Exactamente, aquilo era uma recolha, em turmas do mesmo educador. Este já tinha generalizado os projectos pedagógicos, embora radicados em trabalhos individuais e de grupo dos alunos, praticamente todos escritos. E, como vês, bastou-lhe ir enriquecendo gradualmente o leque das modalidades deles, em conformidade com as competências dos educandos, para resultar naquela panóplia de variedades tão diferenciadas que quase nos levam a ignorar que são tudo textos escritos.

 

-...Como compatibilizar com a corrida ao Ensino Superior? Olha, o meu filho mais velho montou naquele tempo, com os colegas da turma de finalistas de 12.º ano, uma exposição de Físico-Química a que promoveram visitas guiadas por eles, ocupando um andar inteiro dum pavilhão. Já lá vão uns anos, mas repara: ele gostou, teve de investigar, organizar trabalho de campo e de laboratório, criar um diaporama... Viveram aquilo como uma maneira muito mais interessante de dominar o programa do que a cadeia de aula-estudo-teste. Também responderam regularmente a provas, também tiveram montes de exercícios para casa, claro. Mas eram complementares e mais para as componentes matematizadas, que lá o resto...

 

-...Então, o princípio é para todos os educandos o mesmo: responder ao motivo agonístico com projectos que o realizem. Se eles querem entrar no Ensino Superior, são modelos que lho facilitem e aumentem a probabilidade de o atingirem. Olha, lembras-te, na “Feira de Projectos”, de haver lá uma tese original? Era duma aluna do 12.º ano, na disciplina de Filosofia, uma vez mais. Um trabalho destes, se aquela educanda o estendeu a todas as unidades curriculares, obviamente deu-lhe um traquejo tal que, em exame, dificilmente encontrará quem lhe peça meças. Ao fim ela terá um pensamento de tal maneira estruturado, fundamentado e seguro que não vai haver oponente que se lhe equipare. Ora,em todas as áreas é o mesmo: projectos que lhes aumentem a hipótese de entrarem nos cursos que pretendem. Aí, logo os quererão, se jogarão de cabeça.

 

-...O quê?! Já tão tarde?!... Tens razão, os temas encadeiam-se e a conversa vai saborosa, nem reparamos. Então adeus. Até para a semana e boas mezinhas.

 

 

 

 

 

 

 

 

Mezinha 3

 

 

- Olá, boa noite. Entra. Hoje adiantei-me ao serão, que tenho a garganta a picar um pouco. Servi-me dum cálice de brandymel. Alinhas também?

 

-...Ah, o acompanhamento. Olha, são as famosas queijadas de Sintra. Demos uma volta no fim-de-semana, a aproveitrar o prolongado Verão de S. Martinho, antes que o frio e a chuva nos acobertem a paisagem. Foi daí que me veio esta picada nos gorgomilos, como dizia o ti'Zé Sacristão, lembras-te? Aos anos que lá vai! À vinda, a estrada estava pejada de vendedeiras. Parámos no Poço do Inferno e dele é que trouxemos as caixas de queijadas. Já tinha saudades delas. Houve um tempo em que nos enfariámos, não nos apeteciam. Deste vez foram logo várias.

 

-...Infantil esta mezinha do brandymel? A questão é que cai bem e nem sequer me belisca o fígado, por estranho que se antolhe. O mel corta-lhe o efeito nefasto.

 

-...Continua como antigamente: o brandy, comigo, não, fico logo inchado. Excepto nesta versão mista artesanal. E diz lá que te não delicia retomar o sabor das colheradas de mel de miúdos, a atacar as constipações monstruosas que curtíamos pela aldeia! Claro que delicia, ainda para mais com estes vapores desinfectantes que o acompanham de leve, como quem não quer a coisa...

 

-...Ora, não acredito particularmente no efeito curativo, não é o que mais importa, evidentemente. É antes o retorno à infância desvalida por onde vagueámos e bem trôpegos. O mel era um carinho, uma meiguice numa colher de sopa. E bem falta nos fazia! Se calhar, por isto é que, afinal, resulta tanto: curava a alma e, pelo menos, não danificava o corpo...

 

-...Por acaso creio que há nisto mezinha bastante e muito urgente para os bebés, por muito que fique fora do aparelho escolar. E se calhar a escola também terá por aqui uma mãozinha qualquer a deitar, não sei...

 

-...Lembras-te do fim-de-semana em que no verão fui com a família à Lagoa de St.º André? Aproveitámos para visitar as ruínas de Miróbriga e almoçámos lá perto, num restaurante que tem uma ementa curiosa, com alguns pratos exóticos. Já comeste crocodilo? E avestruz? Pois, esta doravante principia a vulgarizar-se... Bem, o que importa é que deparámos com um casal novo, com os filhos como nós, lá nos restos do Templo de Esculápio. As crianças deles ainda estavam na infância, aí entre os cinco e os oito anos. Metemos conversa, os pais eram professores, acabámos almoçando à mesma mesa. Contaram-nos que, quando lhes nascera o mais velho, viveram anos de aperto. Tinham sido colocados lá em escolas da zona, não concordavam em meter o bebé numa creche, mas não tiveram alternativa. É que não tinham na área ninguém de família e as terras onde os dois tiveram de leccionar distavam dezenas de quilómetros uma da outra. Não dava para combinarem horários, rodando entre ambos no trato ao recém-nascido. Ainda por cima, nenhuma escola por lá criara ainda o turno da noite, por onde um deles pudesse optar. Então andaram desesperados à procura duma aberta. Para fugirem ao armazém de crianças em que lactários e creches tendem a tornar-se, tentaram uma ama, familiar da empregada doméstica que os ajudava no arranjo da casa. Uns dias depois o bebé começou a ter manifestações esquisitas, agitado permanentemente, o sono perturbado, a vomitar por tudo e por nada, chorava quando lhe pegavam ao colo...

 

-...Pois foi, aquilo não era ama nem... Tinha enchido a casa de bebés com a ganância de dinheiro, não havia atenção nem cuidado com nenhum e, como não aguentava a gritaria constante, fechava-lhes a boca à força, com risco de asfixia ou afogamento. Eu até achei isto esquisito, mas a professora narrou-me que este pormenor o chegara a ver, uma vez que se pusera à socapa a vigiar o que ela fazia, num jardim fronteiro à casa. Entrou em pânico quando verificou tal coisa.

 

-...É verdade, em regra é uma via melhor que a da creche, sendo ambas habitualmente piores que o tratamento no âmbito familiar, até ao termo da primeira infância. Mas aí está, o que importa é o relacionamento em concreto que é alimentado com o bebé. O que é mais comum? É que os progenitores cubram de ternura o recém-nado, lhe peguem, brinquem com ele, lhe falem e se divirtam intensamente com quanto ele vai sendo capaz de lhes responder. Depois, é vulgar aproximar-se deste padrão qualquer familiar, ou mesmo um estranho que acolha por norma o trato quotidiano do bebé: a continuidade, o trato duradoiro, criam laços mútuos e a ternura, os afectos, manifestam-se num interminável rosário de gestos físicos. O lactário, a creche, com o número aumentado de miúdos e reduzido de técnicos no quadro de atendimento, é normal que mais dificilmente logrem cultivar amor e demais afectos. Não há tempo nem disponibilidade para tanto. E, depois, têm de dar lucros, são o trabalho e o modo de vida de quem empregam. O indicado é garantir o trato da primeira infância por esta ordem de prioridades, do mais íntimo ao mais distante e frio.

 

-...Pois não, com aquele casal não resultou, quando lhes nasceu o mais velhito.

 

-...Olha, resolveram-no a contento na alternativa onde era menos provável: numa creche. Ainda há organismos bons. O que importa é descobrir em concreto o melhor caminho.

 

-...É o que te digo. Descobriram uma com poucas crianças e com um número baixo destas por técnico e pessoal de atendimento. Mesmo com estas raras convergências, o mais comum é o trato ser cuidadoso e impecável, mas ficar por aí, não havendo cultivo de afectos nem laços, nem manifestações deles, onde porventura germinem. É por causa disto, como sabes, que indicamos esta como derradeira alternativa para apoiar o desenvolvimento durante a primeira infância. No caso deles, porém, operou ao contrário. A educadora e a auxiliar ficaram tão ligadas ao miúdo que ainda agora o visitam, trocam prendas e ele considera-as madrinhas, mais ainda que a de facto, irmã da mãe. Até hoje, de meu conhecimento, isto é exemplo único, ainda para mais verificando-se relativamente a todos os pequenos que frequentavam na época, como eles me testemunharam, aquela creche.

 

-...Pois, é uma pena não se generalizar. Mas aí não há nada a fazer. Estatisticamente sabemos que o pendor dominante é o contrário, pelo mundo inteiro. Aqui como em tudo, porém, há fortuitas excepções. Pois se até há progenitores que são carrascos! É onde a probabilidade é menor, mas pronto, há casos e casos... Eles acabaram foi por ter sorte, muita sorte.

 

-...Claro que o papel da escola nisto não é criar lactários nem creches, por muito exemplares que foram: seriam inelutavelmente um mal menor, nunca a resposta mais desejável. Como esta é a do trato familiar durante toda a primeira infância, até à volta dos três anos, descortino-vos aqui outro papel: o de informar e dar o exemplo. Quando o corpo docente inteiro proclame todos os dias ao País, infatigavelmente, que os bebés e todos os pequenos desta faixa etária deverão ficar com os pais ou com os avós ou com os tios, enfim, com familiares próximos, que os amem e lhes dêem toda a ternura que eles requerem para desenvolver-se a contento física e psicologicamente, talvez logremos meter um travão na loucura de despejar os recém-nados cada vez mais em armazéns de miúdos, mesmo liofilizados, tecnicamente perfeitos, mas frios, massificados e anónimos.

 

-...De acordo. O fundamental é que alertem para os gestos de ternura, sem os quais qualquer bebé tende a perder o gosto de viver. Esta é a chave-mestra duma nova geração equilibrada desde o berço. O caso que te contei é ilustrativo: às vezes é na alternativa menos provável que encontramos, afinal, a vivência mais adequada, a ser protagonizada momento a momento. Facilita-lhes a vida, porém, ouvirem qual é o pendor dominante de cada via. Torna mais rápidas as escolhas e aumenta-lhes a probabilidade de acerto.

 

-...Ah, lembras-te ainda do síndroma do hospitalismo? Correcto, os dados referem que os bebés tendem a morrer cinco vezes mais, em igualdade técnica de cuidados, desde que não recebam manifestações físicas de ternura. Não há medicamento mais eficaz do que a afectividade, vês? Se colocarmos a alternativa entre técnica sem ternura ou ternurra sem técnica, é de optar indubitavelmente por esta. Não há técnica que lhe chegue em saúde e desenvolvimento, por muito que custe ao cientismo ou tecnocracia. Claro, a não ser que haja uma doença concreta. O que, aliás, não tem obrigatoriamente de implicar muda nos laços afectivos onde viva enquadrada a criança.

 

-...Não mudará nada nas comuniddades? Há pelo menos um aspecto em que pode transformar muita coisa. Aquele casal, quando lhe nasceu o outro filho, já estava colocado na mesma terra, pelo que não precisou senão de intercombinar os respectivos horários para poder tratar do bebé. Ora, aqui ocorreu uma conjuntura rara: a mãe só podia ter aulas diurnas, pelo que o pai optou por um horário nocturno, a fim de se revezarem. Foi ele, portanto, que cuidou integralmente do bebé o dia inteiro: mudou-lhe a fralda, alimentou-o, deitou-o, levantou-o, vestiu-o... Enfim, tudo aquilo que habitualmente é a mãe que executa. Confessou-me que fez tudo para ultrapassar os tabus educativos e os automatismos que levam um homem a conter os sentimentos, não os manifestar, manter a cabeça fria e distante. Admitiu que foi uma luta contra decénios de educação, a fim de poder ser ternurento, abraçar e beijar o bebé, falar com ele, divertir-se e diverti-lo sem inibições, aconchegá-lo para o acalmar a adormecer... Bem, sabes que mais? Deve ter desempenhado tão bem ou tão mal a tarefa que aos quatro meses, quando estava com o miúdo deitado sobre o ombro após o almoço, a dar-lhe as pancadinhas para ele arrotar, o pequeno esticou os bracitos apoiado no peito dele, olhou-o de frente e articulou, esforçado: “O-lá, pa-pá!” Exactamente, as primeiras palavras que proferiu. Claro que eles ficaram completamente derretidos, um pirralho que era um palmo de gente!...

 

-...A mudança, caso isto se vá generalizando, é a do padrão tradicional de ser masculino: quem dera que as vindoiras gerações desenvolvam indivíduos capazes de lidar com os sentimentos doutro modo que reprimindo-os! Os afectos são uma área tão estrutural da personalidade que vivê-los exclusivamente para os destruir, contrariar, não partilhar, é uma inenarrável perda individual e colectiva. Nós formamos homens castrados de afectividade, como ideal, em nossa cultura. Já é tempo de aprendermos que este domínio, como qualquer outro da vida, é para o gerirmos, usarmos e vivermos construtivamente, em cada eventualidade do quotidiano. O preconceito tradicional de que um homem não chora é inteiramente destrutivo e desequilibrado.

 

-...Claro que é utópico, a escola tem uma margem diminuta para ser fermento. Mas pronto, quanto mais e melhor a usar, mais transmuda a fornada da cultura, não é?

 

-...Não, esta não é a única mezinha para a primeira infância. Diria que é a fundamental, que é a pedra angular sobre a qual poderemos construir um homem inteiro. Depois, patamar por patamar, há outras que deverão ser tomadas, a fim de o firmarem. Isto é um bocado como a avaliação do Básico: se com ela destróis a agonística, destróis a eficácia estrutural.Então todas as demais medidas terão os efeitos gorados. Se aquela for reajustada, (não apenas na lei, como já ocorreu, mas nas práticas, onde ainda pouco chegou) também as restantes lhe reduplicarão os frutos.

 

-...Por mim, descortino pelo menos mais duas mezinhas que não podem ser descuradas. Enquanto comíamos à mesa, lá pertto de Miróbriga, em Santiago do Cacém, os meus rapazes puseram-se a falar das leituras, a propósito da colecção “Uma Aventura”, de Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada, que o benjamim dos filhos deles andava a devorar, entusiasmado. Lembras-te de que o meu mais velho os leu todos, os publicados até então, que aquilo é um rosário interminável, durante o primeiro ano da Primária: vivia grudado neles. Até deve ter aprendido a ler mais depressa apenas porque os queria absorver sem demora. Bem, mas o que importa é que aquele casal comentava a abismal diferença que constatavam entre os dois filhos deles: o mais pequeno com aquela paixão pela leitura, o mais velho em norma desmotivado. O curioso é que insistiam em que ambos tinham tido igual tratamento, educavam-nos do mesmo modo, pelo que não entendiam aquilo. Evidentemente que se reportavam ao tratamento deles próprios, no âmbito do lar. Mesmo assim, não reparavam em quanto a primeira infância de ambos tinha divergido, apesar do bom encaminhamento que haviam logrado com aquela creche de qualidade.

 

-...Claro que a diferença decorria dum pequeno cambiante, aparentemente inócuo: o pai lera permanentemente ao mais novo histórias infantis e bandas desenhadas, desde antes de ele falar e mormente quando o deitava. Claro que isto era inexequível na creche, por mais carinhoso e terno que o trato fora, há constantemente pequenos demais para tornar viável levá-lo a bom termo. Aliás, expliquei-lhes a diferença entre os meus, embora todos devorem livros uns atrás dos outros: a banda desenhada, por exemplo, apenas o mais velho a adora, o João nunca lhe ligou em particular. Ora, a origem da divergência é para mim notória: eu permanentemente li àquele, à hora de deitar, histórias, mesmo bastante complicadas, como o Tintin, o Astérix, o Lucky Luke e quejandas, em banda desenhada, durante a primeira e a segunda infância, até à entrada na Primária; ora, com o mais novo não foi assim, privilegiei outras aventuras, as ilustradas, primeiro, e depois as que tinham texto exclusivamente. Conclusão, aos cinco anos o mais velho reproduzia, figura a figura, os textos das brochuras, a ponto de os avós acreditarem que ele já sabia ler. O mais novo, não, folheava distraidamente algumas das mais lineares e insistia para lhe lermos as outras, vezes repetidas. A diferença ficou para o resto da vida, ainda hoje é notório como divergem de predilecções. E a rapariga, então...

 

-...Qual é a mezinha? Olha, falar com os bebés, arrulhar e ciciar a imitá-los, brincar com eles manipulando-os, abraçando-os, apertando-os ao peito, - quenquer que os ame e se enterneça com eles o fará. É a pedra angular, desabrochando a estimular e levar a adquirir a linguagem. Os níveis mais elevados da inteligência, porém, requerem um degrau mais, para chegar a ler e a escrever, com o pensamento cada vez mais organizado, elaborado, entretecido. O gosto pela leitura é a porta de entrada. Ora, isto é inaugurado no berço e acompanha a infância. E é através da história que lhes é lida, do livro folheado e recontado indefinidamente, mormente ao deitar, que sedimentamos momentos de magia, de encantamento, que a memória depois evoca pela vida fora, com renovada carga poética. Então continuaremos a ler, a escrever, e, com isto, a descobrir e criar novos mundos por fora e por dentro de nós próprios. É isto que erigirá um homem novo, com todas as potencialidades cada vez mais disponíveis, aptas a entrar em acto.

 

-...Pois, a escola também aqui deverá divulgá-lo e, por norma, na primeira infância, não terá margem para intervir mais, directamente. Neste particular, porém, há iniciativas que ela pode dar a conhecer e estimular. É que há organismos e voluntários que se prontificam a ir de porta em porta contar contos, ler histórias, apresentar textos ilustrados e bandas desenhadas, regularmente, a bebés e miúdos que lhes não tenham acesso, por qualquer razão: analfabetismo da família, falta de horário dos pais e familiares, doenças prolongadas de quem os trata... Ora, aquelas actividades-tipo podem ser aconselhadas pela escola, a fim de serem promovidas por autarquias, grémios culturais, locais de convívio, mormente de terceira idade (quem melhor que os anciãos logra contar a mil e uma histórias da vida?...), bibliotecas, organismos religiosos, núcleos comunitários... enfim , há uma infinidade de grupos organizados ou a organizar que poderão dar conta do recado, bem como divulgar pelos lares o que deve ser prioritariamente atendido. Aliás, há muitas escolas com biblioteca que criaram a hora diária do conto. É para os alunos que a frequentam, não é para os bebés nem miúdos de creche, claro. Só que, tendo horário fixo, nada perdem ao abrirem aquele momento à comunidade, mormente a pequenos já nos dois, três anos... Enfim, uma vez mais, é uma questão de não esbanjar as oportunidades e de ir abrindo mais e mais portas ao futuro.

 

-...Não, não, isto ainda não era a nova mezinha de que pretendia falar-te. Esta é outra coisa, está por trás dum dos problemas mais graves do mundo inteiro, mormente do mais industrializado, de tradições mais em crise.

 

-...É a questão da disciplina na educação.

 

-...Claro que não é a escola que irá disciplinar os bebés no lar e cada família, até porque já vimos que nem sequer lactários nem creches ofertam, por norma, o melhor caminho. Mas o problema é que a indisciplina na educação dos miúdos cada vez se agrava mais e torna mais intratáveis os alunos, ao entrarem em aula como na vida comunitária.

 

-...Eu sei que o problema é conhecido. A questão é a das soluções, evidentemente. Mas é que há medidas simples que põem a vida no carril adequado, encaminhando tudo a contento. Vou-te contar um exemplo aqui da minha família. O meu filho mais velho conviveu com um primo segundo que morou ali no prédio ao lado. Em miúdos até comunicavam de janela a janela, recordas-te? A diferença de idades é de meses. Repara agora neste pormenor. A minha mulher e eu entendemos que, em bebé, a mamada, o biberão e depois as papas deveriam respeitar as horas adequadas, não andarem ao capricho dele, para desde logo ir entendendo que aquilo interferia em nossas vidas e todos deveríamos tentar respeitar os horários. Não foi uma rigidez total, que não convém nunca, mas tendencial, com a variabilidade reduzida ao mínimo e com transigências irrelevantes. Pois bem, ali os meus primos optaram justamente pelo contrário: era às horas a que o bebé quisesse. Tinha uma avó para o cuidar, na falta dela, os pais, nada justificaria, no entender deles, impor qualquer regra. Conclusão: na minha casa a refeição familiar, com a partilha saborosa dos nacos da vida quotidiana, é quase um ritual reconfortante que todos apreciamos há decénios e nos mantém coesos, alimenta a vida espontaneamente em empatia; acolá, o rapaz habituou-se a não encontrar nem conviver com ninguém, alheou-se gradualmente do lar e da família, já largou a casa, mas antes de a abandonar já vivia de facto fora dela há anos e anos. Dão-se todos bem, repara, apenas é quase como estranhos, alheados uns dos outros, muito mais do que entre nós.

 

-...Evidentemente, não é o mero cumprimento ritual de horários de comer que disciplina os nossos filhos desde o leite e lhes permite intercombinar os ritmos de vida deles com os do lar e, depois, da comunidade e do trabalho. Contaram-me há dias um evento que mais parece uma anedota. Um casal, com um bebé de quase um ano, veio pedir ajuda a um colega meu lá na clínica, sabes porquê? Porque já não aguenta mais. À hora de deitar, o miúdo não adormece, têm de se meter no carro e correr a marginal até Cascais, depois voltar para casa e tratar de o não acordar, para poderem dormir eles também. Ora, isto funcionou enquanto o bebé foi mais pequeno, deitado quase o dia inteiro. Agora, crescido e correndo em vigília a maior parte das horas diurnas, já não dá. Não é que não adormeça quando vai no carro, é que acorda mal o param e desata num berreiro se o não põem novamente a caminho. Na última semana nenhum deles pregou olho a noite inteira, neste inacreditável serviço de táxi à fera irredutível, até ao apontar da aurora. Agora andavam a revezar-se já, a ver se aguentavam...

 

-...Como é que alguém cai em tal alhada? Então, eram novos, queriam gozar a vida, não lhes apetecia nada ficar em casa a velar o sono do bebé. Olha, deitavam-no atrás e iam dar uma fugida depois do jantar, nada demais. Ele dormia o tempo todo, parecia que estava tudo bem. Nem lhes aflorou a cabeça o buraco em que se andavam a enfiar. Agora, olha... Vivem a pagá-lo e de que maneira!

 

-...Sim , é deitá-lo e deixá-lo gritar até à exaustão. Tens razão, mas é bom de dizer, o pior é o resto. Aquele casal fizera-o na véspera e fora exactamente o que o levara ao desespero: o bebé estava a berrar ininterruptamente há vinte e quatro horas!

 

-...Acredita, acredita que é verdade. Aliás, enquanto estiveram na consulta ele não parou de espernear ao colo dos avós, no parque de estacionamento. Estavam todos a dar em doidos, como podes imaginar.

 

-...Ora, como é que um bebé adquire tamanha resistência?! É simples: eles andaram semanas a tentarem deitá-lo no berço, sem o lograrem, dado que ele berrava em protesto e eles cediam. Quanto mais insistiam, mais o miúdo persistia, levando-os a quebrar. Aprendeu, portanto, que era uma questão de não parar, que os vergaria. No fim, já não parava sequer durante um dia inteiro. Este comportamento intolerável fora magistralmente reforçado com as constantes vitórias atingidas. Cada cedência dos pais era um novo reforço, a vincar-lhe o padrão e a resistência. É o mecanismo bem conhecido do condicionamento operante.

 

-...A saída? É mesmo inverter isto: têm de ser os pais a ganhar neste medir forçass, dure o tempo que durar. E sem mais uma quebra sequer, ou ela irá novamente reforçar o incomportável e nunca mais haverá fuga ao inferno. Claro que um calmante, um hipnoticozito ajuda: mal se fatiga, o miúdo adormece, mesmo sem o notar.

 

-...É mesmo. Disciplina à hora de deitar, logo desde o berço. Sem rigidez extrema mas também sem ir ao sabor do acaso: criar hábitos, de modo a gerar automatismos com que todos venham a contar, para organizar os papéis da vida familiar a partir deles.

 

-...Não é tão irrelevante como referes. Queres ver? Aqui em casa não ignoras que não temos rigidez particular de horários. Os pequenos já estão enormes e são responsáveis, o mais velho anda lá nas tentativas de primeiro emprego, a outra é quase de maior, o mais novo para lá caminha. Nunca tivemos problemas de monta na escolaridade deles. Adivinhas o que ocorreu na aldeia com os filhos da minha irmã Etelvina? Pois. Nenhum deles atingiu um diploma superior. E queriam-nos, conhece-los muito bem. E então a mãe deles, é dos maiores desgostos que lhe deram. Estivemos a examinar porque fora assim. É óbvio: nunca naquela casa houve horas definidas para deitar, desde pequenos. Ora é às vinte e duas, ora às duas da madrugada, sem qualquer motivo para tal, senão o livre alvedrio de cada um. É tudo ao acaso e tudo fortuito. Como é que depois um miúdo entra no ritmo escolar, como evitar que ora chegue adormentado, ora sobreexcitado, ora desatento a cair de sono, ora turbulento de irritabilidade, como nós quando mal dormidos? E eis como uma permanente variação de nada à partida, acaba por condicionar o resto da vida inteira: são os diplomas inatingíveis, as carreiras fechadas, o leque de abertura social restringido, o tipo de família a constituir limitado pela faixa comunitária de pertença e a cadeia nunca mais acaba... Disciplinar, por exemplo, as horas de dormir poderia ter evitado tudo isto.

 

-...Também concordo, o vício do consumismo e o novo-riquismo igualmente andam a perverter o berço das novas gerações. Então a cena do miúdo a bater o pé e a gritar, frente à montra do Centro Comercial, obrigando os progenitores a obedecer-lhe, envergonhados, correndo dentro a comprar-lhe o cão de peluche ou o carrinho, apenas para o calarem – esta é já um quadro clássico! Todos os dias o constatamos e é uma ilustração linear do que jamais deve ocorrer. Os pais a mando dos filhos, era o que faltava! Seja ou não uma vergonha para eles, que é que importa? Nunca os progenitores podem demitir-se da responsabilidade de educar, muito menos sob chantagem ou pressão da gritaria: aqui deverão ser ainda mais intransigentes e aplicar castigos severos, como jamais os levarem de novo a tal volta, enquanto não se emendarem de vez. É urgente que não haja hesitações nem cedências: o que os pais julguem correcto ou adequado é o que tem de ser cumprido, sem mais tergiversação nem veleidade. Ou haverá penas e sem perdão. A criança tem de entender quem manda e que não tem alternativa senão acatar. Apenas depois disto pode haver entendimentos, conversas, acordos, flexibilizações... Nunca, porém, com o risco nem, pior, com o efeito da inversão de papéis: um bebé a impor, arbitrário e selvagem, a vontade aos pais! Mas é verdade, hoje em dia proliferam as famílias desequilibradas, em que os pais já nem descortinam que fazer aos bebés e andam à trela dos caprichos deles, da forma mais idiota e perigosa para a sociabilidade futura dos miúdos. Não é raro as educadoras de infância queixarem-se-me disso.

 

-...É verdade, ainda na reabertura deste ano lectivo tive uma que me contou que a mãe duma pequenita de três anos lhe entregou a criança, no primeiro dia, com este comentário: “Olhe, Snr.ª educadora, veja lá o que pode fazer, que eu já não sei que mais tente, ela nunca me obedece e agora até me bate... Não vejo o que irá ser no futuro, eu por mim já não consigo nada dela. Veja só as nódoas negras aqui nas pernas: são dos pontapés que me dá, já não aturo mais isto!” E foi embora a chorar.

 

-...Claro que a educadora se impôs, veemente, ameaçou-a e, mal ela pisou o risco, pô-la logo de castigo, isolada dos mais, a um canto, numa cadeira, até ganhar juízo. Entrou imediatamente nos eixos. É tão simples que até faz impressão tanta estupidez dos adultos! Às vezes custa a compreender que é que tanto encegueira os progenitores e demais parentela. É que não há ninguém por inteiro destituído de intuição. Então não vêeem o efeito das atitudes que tomam?! Não é?...

 

-...És capaz de ter razão, é a história dos oito ou oitenta. Ora, nem tanto ao mar nem tanto à terra: para evitar a violência, as sevícias familiares, não é requerido que os pais e demais educadores se demitam da autoridade e do poder de disciplinar, punir, impor, orientar e premiar. Bem pelo contrário. Se isto for feito logo e quanto mais adequadamente o for, tanto menos provável é que haja eventos que provoquem a perda do controlo que degenera em espancamentos e sevícias. Pelo menos os desta origem findariam de vez. Se calhar até serão a maior parte ou todos, quem sabe?...

 

-...Pois, o consumismo tem ainda outro desvio para onde estavas a apontar. Tu lembras-te da Anália, do nosso tempo de Coimbra, aquela de Biologia? Olha, lecciona lá para Milfontes há muitos anos. Encontrámo-nos no verão transacto, pusemos a escrita em dia. Estava com um problema de consciência a perturbá-la. Tem mesmo a ver com esta mania de comprar tudo, dar tudo, facilitar tudo: a nova geração parece não descobrir nem ter limites.

 

-...O caso? Foi lá com um aluno da escola, filho dum estivador de Sines. Queres ver onde aquela atitude leva? Contou-me o marido da Anália que, de origem humilde, o pai do jovem fez questão, desde o berço, de nada faltar ao miúdo, tudo do bom e do melhor, nem que para tal houvera de sacrificar-se mais e mais. Não aflorou capricho que lhe não satisfizesse desde a mais remota pequenez. Agora, já na adolescência, claro que apenas para as farras, as noitadas, as mulheres fáceis é que o rapaz vive. Reprovou há dois anos, mudou de escola, reprovou novamente, reaparece outra vez numa turma da Anália. E repara então, apesar deste comportamento brilhante, o pai ainda o premeia com um carro e o aluguer dum apartamento privativo. Vê depois o encadeamento exemplar. Chegou à escola para inscrever-se, a directora recusou-o, porque já não tinha vaga. “Não há vaga?! Então que é que eu vou fazer? Sim, porque já tenho apartamento alugado...” - argumentou, soberbo. “Agiu ao contrário: antes de alugá-lo deveria ter-se informado se havia vaga ou não, não é verdade?” - retrucou a directora. “Esta agora! Que é que a senhora tem a ver com a minha vida?” - foi a resposta insolente dele.

 

-...Mas não ficou por ali. Acabaram por readmiti-lo para lhe darem mais uma oportunidade. Como nunca aparecia em aula nenhuma, a Anália convocou o pai para pô-lo a par. Compareceram os dois, pai e filho. Ora, durante a conversa, o filho ocupou o tempo a lamentar-se de que a culpa era da professora que era demasiado exigente, muito rigorosa. Repara, um jovem que nem sequer lhe tinha entrado numa aula, para amostra, nem uma! É preciso ter lata! E ela, ingénua, ainda se prontificou a deixá-lo participar como assistente (já reprovara por faltas, entretanto) na turma, para poder preparar-se para exame como aluno externo. Isto é que lhe dava problemas de consciência, claro. Um rapaz como este não merece contemplações, tem que se cortar dura e intransigentemente com semelhante tipo de atitudes. Senão, estamos também a corroborá-las, a premiá-las, a reforçá-las. Isto não é, obviamente, educar ninguém, muito menos valdevinos destes.

 

-...É verdade, pai galego, filho doutor, neto ladrão: este caso ilustra bem a sequela típica. Talvez o filho acabe em ladrão antes de chegar ao neto, mas isto é da velocidade dos tempos de hoje. E o mais grave é que aqueles não são, como outrora, casos pontuais. Desta vez andam estratos colectivos inteiros a embarcarr nesta asneirada. Isto é que é o mais arrepiante. Pode romper com o equilíbrio da textura comunitária toda. É cada dia mais urgente reverter o caminho.

 

-...O princípio não é dar ou não dar. É, primeiro, dar para premiar e recusar para punir. Depois, é nunca dar, seja lá o que for, sem fazer sentir o custo, sem resultar de labor, esforço, trabalho, suor – qualquer comportamento adequado ou atitude geral correcta que a criança deverá ter em contrapartida.

 

-...Negociar isto ou operá-lo como um contrato de compra e venda também tem os próprios limites. Pode ocorrer e ser bom pontualmente. Como sistema, a estruturar os relacionamentos, é mau. As realções humanas autênticaas são gratuitas, valem por si, gratificam por elas próprias. Daí que o melhor é cada dádiva, cada prenda ser uma consagração, uma celebração dos momentos bons ocorridos, das atitudes certas tomadas e da alegria daí resultante para todos. São uma surpresa, não um pagamento, uma festa de amor compartilhado, não um negócio. Isto é o que resulta melhor, senão os miúdos poderão devir interesseiros e levar a vida a instrumentalizar os outros, a fim de obterem as benesses, as metas ou os produtos que invejem pelos anos fora. Então tornar-se-ão asquerosos para os demais. O amor, a amizade, a fraternidade, a solidariedade não têm preço, não se compram nem se vendem, antes se celebram, comemoram, alimentam, incentivam... É neste sentido que tudo deverá ocorrer, se pretendemos pôr cobro ao consumismo desbragado que nos asfixia.

 

-...Perdeste-te entre as mezinhas? Olha que, para a primeira infância, apenas referi três, com os respectivos pendores de maior relevo. Pronto, eu resumo-as. Primeiro, a mais crucial, coluna vertebral de todo o desenvolvimento equilibrado e sadio, a afectividade fisicamente manifestada em todos os gestos e rituais da ternura, por mães e pais, avós e avôs, irmãs e irmãos, tias e tios e por quem mais trate dos bebés e dos miúdos. Em segundo lugar, no encadeamento da lalação infantil, da fala e dos chilreios com os pequeninos que culmina no domínio da linguagem, o estímulo da leitura, mesmo desde antes de a compreenderem, feito lendo-lhes livros infantis desde o berço, recontando-lhes os contos deles, mormente à hora de deitar, como vivência encantatória altamente gratificante. Finalmente, disciplina desde o berço, com horários sistematicamente respeitados, embora com a flexibilidade que as conjunturas requeiram, mormente nas refeições e na deita, com a imposição definitiva (e sem jamais incorrer em qualquer excepção) de quem manda, embora este deva manter-se permanentemente aberto a reformular, adequar, ocasionalmente negociar as melhores escolhas, com a partilha, a dádiva de bens e as entreajudas a alimentar as provas de sentido da responsabilidade, da reciprocidade, da solidariedade, da noção das exigências da vida e dos laços e afectos humanos. Como vês, é simples. Não há nada que perder o fio da meada e, com isto, criaríamos o gérmen dum homem novo, podes crer. Até eu ficaria com muito menos trabalho: para quê um psiquiatra, se toda a gente se desenvolver equilibrada?

 

-...Pois, para as escolas ficaria o apelo a que divulguem o modelo às comunidades e aos progenitores, mormente por via do professorado do pré-escolar, do primeiro e segundo Ciclos. Mas tudo aquilo é de aplicar onde quer que nasçam crianças, claro.

 

-...Muito bem, tens trabalho amanhã cedo. Obrigado pela tua visita. Por hoje ficamos conversados. Então até para a semana. Agasalha-te bem, que isto já é o frio do Natal. Adeus.

 

 

 

 

 

 

 

 

Mezinha 4

 

 

- Boa noite, entra. Então, não foste levado pela enxurrada! Isto é que está cá um temporal, hein? Como é que foi essa vinda de Foz Coa? Bem atribulada, não?

 

-...O quê, choveu sem parar estas centenas de quilómetros todas?! Muita inundação vai haver! E acidentes na estrada? Ao menos as pessoas precaveram-se?

 

-...Ainda bem! Olha que é raro, tiveste mais sorte que eu em não topar com ninguém na valeta. Por mim, só da Charneca da Caparica até aqui, trinta quilómetrozitos de nada, dei com seis acidentes, alguns bem feios. Três ambulâncias à saída da ponte, junto ao desvio de Alcântara, um monte de meia dúzia de enfeixados, um deles completamente ensanduichado. O tempo hoje está feio, mesmo feio.

 

-...Chega-te aqui ao aquecimento, se calhar é melhor pôr-lhe à beira o sobretudo, acabou molhado, só da corridinha do carro até aqui. Estacionaste longe? Não? É do vento, claro, isto é uma tempestade desatada.

 

-...Uma coisa que te aqueça? Vê lá se te serve. Tenho aqui esta bagaceitra de fabrico caseiro que me trouxeram hoje de Torres Vedras, com umas caixas de pastéis de feijão. Desta vez foi uma colega da policlínica, cuja família é um dos produtores da região demarcada do Oeste. Costuma brindar-me, quando lá vai, sempre com um dos requintes da casa mais uns doces da zona. Aqui os tens. A aguardente deles tem um travo que não consigo identificar, parece-me carvalho misturado com baunilha ou canela, achas isto viável? A minha colega não entende nada, diz que é um segredo do avô que nem a ela lhe contam. A verdade é que sabe bem, não sabe? E acalenta cá duma maneira! Uf!

 

-...Fizeram-te as honras com os miúdos do jardim de infância? É natural, se andam a estender a rede do pré-escolar.

 

-...Não contam pequenos que o justifiquem? Se calhar eles já compreenderam que há um abismo de diferenças entre as redes de atendimento social e a outra que pretendem.

 

-...Claro que há mezinhas aqui também, a segunda infância é mesmo crucial, pelos caboucos que permite colocar e firmar. Sem eles, o que virá depois, pela escolaridade além, acabará de vez precário, em norma.

 

-...Não, não tem de ser a rede do pré-escolar a operá-las, às pedras angulares. Na generalidade dos aspectos, são as famílias e as comunidades de origem quem cumpre a tarefa. Mas onde estes falharem e nos vectores aonde não chegarem – e há cada vez mais lares em ruptura e as falhas aumentam em proporção - então quase apenas resta às novas gerações recorrer à vossa rede pré-escolar. As alternativas oriundas das comunidades de vizinhos terminam em regra muito mais precárias e falíveis.

 

-...Ora, compreendes logo se te afirmar que a primeira mezinha é a de adquirir linguagem capaz de dar conta da generalidade das aventuras do dia a dia da criança. Isto é fundamentalmente operado em ambiente familiar, o jardim é um complemento para introduzir precisões e enriquecimentos, excepto quando aquele falha e até onde ele falhar. E deverá ocorrer mesmo assim, doutro modo avalizamos a irresponsabilidade de famílias e lares, o que de modo algum poderá ser feito. Senão desatarão a despejar os filhos nas aulas e a requerer destas o que são tarefas deles, alijando freimas e preocupações. Ninguém deverá tolerar tal atitude. Mas isto anda por aí permanentemente, de modo larvar. À mais pequena distracção, pronto, ei-los impantes a gozar a vida, abandonando aos outros a missão que é afinal a deles. É urgente muito cuidado com isto. Vigilância permanente ou então reforçaremos o apodrecimento da textura familiar do País inteiro! E já basta de tanto degenerar, não te parece?

 

-...Tenho, tenho um caso exemplar em que estou cogitando ao dizer-te isto. É raro uma educadora de infância vir à consulta, mormente da rede do nível pré-escolar. Creio bem que é o único domínio que no teu Ministério opera sem entraves nem distorções orgânicas para emperrá-lo ou corrompê-lo. As outras teias de jardins de infância, creches e lactários, com o vector social como prioritário (tomar conta das crianças para libertar as famílias), não alimentam de facto nenhum modelo de desenvolvimento pedagógico dos educandos que tutelam. Albergam, no fundo, armazéns de miúdos, pouco mais. Na rede do pré-escolar, até agora, não.

 

-...Pois bem, tive, apesar disto, uma educadora stressada em tratamento o ano transacto. O caso foi este. Acompanhou, há tempos atrás, uma aluna de quatro anos com uma deficiência grave: não falava, nunca articulara uma palavra em toda a vida. Esta afasia não era fisiológica, a miúda tinha um aparelho fonador normal, emitia sons sem dificuldade e articulava-os igualmente, embora sem sentido definido. Aquela educadora tomou o caso e peito e, algumas semanas depois, a pequena já utilizava algumas palavras com significado intencionalmente. A compreensão do que lhe contavam e ordenavam, bem como das conversas espontâneas entre os colegas em aula progrediu ainda mais veloz. No fim do primeiro período ela já entendia tudo.

 

-...Gratificante, é. E deu saúde, indubitavelmente, a quantos se envolveram durante esta fase. No fim do ano já falava, embora hesitantemente e com pouco vocabulário, tanto no jardim, com todos, miúdos ou adultos, como em casa, uma barraca miserável.

 

-...A origem? A pequenita era duma família muito pobre e tinha vivido fechada, praticamente sozinha, durante quatro anos no antro onde nascera, sem ninguém a cuidar dela, entregue ao próprio alvedrio. Os pais trabalhavam fora em tarefas humildes e mal remuneradas, não tiveram recursos para mais. O problema era todo da falta de estímulos e enquadramento convivial. Mal isto lhe foi dado, a miúda desabrochou, apenas levava um grande atraso relativamente aos demais. Com o da linguagem vinham todos os demais retardamentos: de conhecimentos, de destrezas corporais, manuais e digitais, de relações humanas, de abertura ao meio ambiente... Curioso, era emocionalmente equilibrada, os pais gostavam mesmo dela e acarinhavam-na, a miséria extrema é que levara àquilo.

 

-...Que é que stressou a educadora? Aguarda, que já lá iremos. Era suposto que, ao completar os cinco anos, a aluna deveria transitar para o Primeiro Ciclo. Como continuava a recuperar bem, embora ainda muito atrasada relativamente à média dos respectivos colegas, o jardim fez a proposta de ela continuar ali por mais um ano, a fim de entrar mais preparada, com mais probabilidade de superar o desafio dos programas escolares. Foi autorizado, pelo que foi-lhe prolongada a permanência até perto dos sete anos. Aqui, a pequena recuperara já toda a alegria de viver, a espontaneidade no trato com colegas e adultos, foi um ano feliz na escola e no lar. Mesmo quando doente, insistia em vir para as aulas, chegava a chorar por o estabelecimento estar fechado no fim de semana e nas férias, tão gratificante e libertador se lhe havia tornado. Agora repara: continuava um pouco atabalhoada na fala, às vezes não era fácil entendê-la, havia fonemas cuja articulação lhe era muito difícil e que brotavam de modo apenas decifrável para quem já convivia diariamente com ela, um estranho não a lograva compreender.

 

-...Pois claro, foi isto que lhe ditou o fim. Quando transitou para o Primeiro Ciclo, a educadora falou longamente com os pais, a fim de eles alertarem a escola para o problema da filha, tentando integrá-la numa turma com uma professora empenhada, capaz de dar continuidade a toda a recuperação em curso. Doutro modo, tudo poderia ser deitado a perder. Imaginas o que estes progenitores fizeram?

 

-...Pior, pior, se fora apenas não ligarem nada... Não, a pretexto de que pequena era normal, não era nenhuma maluca, ora essa, recusaram sequer abordar o problema e não admitiram que ninguém por eles fizesse qualquer diligência. A educadora prontificou-se e tudo. Explicou-lhes que não era nada daquilo, queria apenas garantir a continuidade do que ia tão bem... Nada os demoveu. Que não eram nenhuns anormais, que a filha não precisava de ser tratada como louca, até era bem esperta e assim por diante... Conclusão, foi integrada, por azar, numa turma cuja professora não entendeu nada do problema, esteve-se nas tintas, ao fim dumas semanas pô-la de lado, como retardada e incapaz, a miúda desatou a detestar a escola, a chorar para ir lá, regrediu em tudo, deixou de falar e apenas pedia para a deixarem voltar para a educadora.

 

-...Como acabou? Para a miúda não acabou, o martírio e a destruição continuam. Para a educadora, desembocou no consultório, em estado de choque. Sabes porquê? Eu conto-te. Na véspera, quando lanchava no café com uma colega lá doutra sala do jardim, encontrou os pais e a aluna. Esta já nem a reconheceu, incomunicável, sentou-se balançando para trás e para diante, numa regressão para o autismo que nem quando vivera isolada havia manifestado. Os progenitores levaram o tempo a lamentar-se, “ai vejam esta desgraça, a cruz que nos caiu em riba...”, no papel de coitadinhos, sem um vislumbre sequer de arrependimento nem de reconhecerem que eram eles que estavam a criar e a alimentar a destruição sistemática da própria filha. A educadora ainda tentou quebrar a couraça e nada. Inteiramente empedernidos: aquilo era destino, tinham de levar o fado deles ao calvário. E ai de quem lhes desmascare o pretenso rótulo de mártires para o trocar pelo de responsáveis, ali a cultivar, com todo o afinco, quanto lhes aniquilava a filha a fogo lento, apenas para recolherem a benesse da comiseração alheia!

 

-...Exactamente. A revolta, o asco, a fúria impotente abateram a pobre daquela educadora que tão denodadamente arrancara do buraco a criança vitimada. Não aguentou, foi-se abaixo, desesperada. Ainda continuo a ampará-la com alguma regularidade. Persiste muito descrente de que valha a pena apostar e investir, quando o que se encontra é gente de tal cariz pela frente. Tende a medir tudo pela mesma rasa...

 

-...Também para ti é um murro no estômago, pois... Casos extremos a este ponto são raros, não vamos generalizar, evidentemente. Agora, permite identificar ao vivo a mezinha: a primeira prioridade, na segunda infância, aí dos dois, três anos até aos seis, é todo o estruturar da linguagem de base aliada às actividades do quotidiano, coligando em estreito abraço o lar e o jardim-escola, com este a colocar e ordenar as pedras angulares dos conceitos que, neste domínio, devirão decisivos, posteriormente, na aprendizagem dos programas curriculares. E, claro, a família tem muito mais poder que a rede escolar, tanto para construir como para destruir, não é? Não vale a pena alimentarmos ilusões...

 

-...Há mais, evidentemente. Adivinhas qual é o problema maior daquela educadora no grupo deste ano? Tem um miúdo que entrou com quatro anos feitos, esperto, a falar pelos cotovelos, mas mimalho e desregrado até dizer chega. Tratado, nas horas de ausência dos pais, por uma tia solteirona e já um pouco velhota, para quem é o ai-jesus. O efeito duma educação ao deus-dará é que ele, com aquela idade, ainda defecava na fralda e era incapaz de utilizar a sanita, quando chegou. Por outro lado, o desenho era inexistente, limitado ao rabisco, um atraso muito grande.

 

-...Bem, nas regras disciplinares, à partida, era um caos: os pais referiram que ele comia gente. Parece uma anedota, mas não foi a brincar, preveniram aquilo a sério, que a vizinhança fugia dele e tudo. Ah, claro, e como é de hábito, que a snr.ª educadora trate do caso, que eles já não descortinavam o que haviam de fazer! Estás a reconhecer o padrão, não é? O que importa é sacudir a água do capote, alijar a carga para as costas de alguém e lavar daí as mãos, satisfeito, liberto e sem remorsos.

 

-...Evidentemente que te estou a falar duma zona difícil, talvez noutras comunidades mais estáveis os casos sejam em menor número. Não, ela não tem o condão de os atrair, ali são de facto muito abundantes os desequilíbrios. As periferias das grandes cidades vivem pejadas de casos anómalos, por vezes tornam-se ali a norma.

 

-...Ora, ela é uma grande profissional! É pena que a violência dos eventos arrase educadoras como esta. Olha, até hoje, e ainda nem sequer um período lectivo acabou, repara no que já arrancou do miúdo. Primeiro, o pretenso vício de comer gente foi logo cortado cerce no primeiro dia: sempre debaixo de olho, quando pretendeu começar a mastigar a mão duma retardada mental que há lá na sala, um grito da educadora pô-lo logo em sentido, de imediato ficou de castigo, isolado a um canto, sentado numa cadeira a meditar na asneira e com autorização de voltar apenas quando prometeu que não faria mais mal a ninguém. Acabou-lhe logo a mania, embora haja requerido semanas de vigilância aturada, que a tentação era muito forte, ao que ela conta.

 

-...A asneira provém dos pais e demais familiares, pois que querias? Quando a educadora os convocou e questionou, encostando-os à parede – que nenhum bebé nasce antropófago, não é? - aí descaíram-se. Então, vê lá, o pai, o avô paterno e a tia solteirona desde o berço conjugaram-se a narrar-lhe contos de violência e horror, desenhos animados do mesmo jaez, bandas desenhadas de monstros em que a agressividade descomandada é um ideal e ser homem deveras é matar, trucidar, aterrorizar e comer vivos todos quantos se lhe deparem diante. Extraordinários pedagogos, como vês! Claro que apanharam uma sarabanda da educadora, uma desautorização liminar, um ataque cerrado a quejandas atitudes e mais ainda à estupidez de se demitirem de comportamentos sociabilizadores para eles próprios e para o pequeno. Felizmente, a mãe do aluno esteve de perfeito acordo com ela, em busca de apoio contra semelhante cultura familiar, a postura da pedagoga caiu como sopa no mel. Daí para diante, o jardim de infância contou com esta aliada dentro do lar e ela, com as técnicas de fora. A mudança do pequeno foi acompanhada pela alteração das escolhas de narrativas em casa, bem como de atitudes e comportamentos correspondentes, apoiados no contexto familiar. Nada mau, para um período de tempo tão curto! E não ficou apenas por aqui...

 

-...Por exemplo, já utiliza a sanita, acabaram de vez as fraldas.

 

-...Como? Simples. Dado que o miúdo o mais que desejava era brincar na casa das bonecas (coisa dogmaticamente desautorizada pelo pai, à partida, a pretexto de que o iria tornar um mariquinhas, digamos de passagem...), aquilo foi-lhe terminantemente proibido pela educadora enquanto se não serviu, como os mais, da sanita. A tia foi convocada para lhe ser explicado que ela deveria cooperar no mesmo rumo, corroborado, aliás, igualmente pelo pediatra. Em casa ou no jardim, apenas lhe era permitido defecar naquelas condições. Resistiram, lá na família, uns dias, chegaram a não o mandar ao estabelecimento, mas como ele queria voltar e lhes deu cabo do juízo, acabaram por quebrar e hoje tem o comportamento relativo às fezes normalizado. Agora repara quanto cada educador vai ter doravante não apenas de cuidar dos educandos, mas igualmente das distorções e anomalias dos agregados familiares! Isto é manifestamente demais, embora não haja outra alternativa para inverter o apodrecimento geral do País. Mas pronto, estou a desviar-me. Retomando o fio da meada...

 

-...Claro que é importante a intervenção supletiva da escola relativamente às rupturas e cancros que afectem a comunidade. Não é, porém, a tarefa axial, aquilo porque escola existe: a finalidade específica dela é transmitir à geração vindoira o currículo da cultura crítica, os saberes de precisão e rigor, em todos os domínios. Isto é que ninguém pode garantir senão a rede escolar. Não podemos inverter as prioridades, não acreditas?

 

-...É a segunda mezinha, evidentemente: disciplinar sociabilizando, através das regras dum bom convívio e integração no grupo, no funcionamento do jardim, tal como no lar e nas respectivas tarefas e actividades, de modo a bem coabitar com todos, crianças e adultos, de quaisquer idades.

 

-...A diferença entre a primeira e a segunda infância, neste pendor, é apenas que disciplinar o bebé e os pequeninos consiste em requerer-lhes o respeito pelas normas que permitam integrá-los na vida da comunidade restrita do lar, é ensiná-los a compartilhar da família, respeitano os ritmos dela, o funcionamento, distribuição de papéis e tarefas pelos vários membros. Na segunda infância é já integrá-los no convívio e comparticipação com estranhos, interiorizando e respeitando as normas que tudo tornem paritário, seguro, libertador e gratificante. É a primeira socialização estrutural, a primeira descoberta do mundo para além da porta de casa: importa aprender como deve operar o encontro com os outros e como gerir, compartilhar e fruir com eles das maravilhas que o mundo exterior for revelando e pondo ao dispor destes pequenos bandeirantes.

 

-...Claro que requer rigor, exigência, autoridade e, quando haja violações, atentados, desrespeito da igualdade de direitos mútuos, terá de haver de imediato um castigo. À medida da criança e da gravidade da falta, mesmo que seja apenas um ralhete, ou uma ameaça, mas permanentemente actuante, sem laxismo nem duplicidade de critérios e, menos ainda, sem demissões por parte de quem deve mandar, tanto em casa como no jardim-escola.

 

-...Pois, vale a pena insistir porque a crise da família, a crise do papel tradicional do pai, que era quem impunha antigamente a autoridade e as penas no lar, levam cada vez mais progenitores a falhar, pelo menos, ao educarem os filhos, na interiorizaçãao de normas. Ora, estas resultariam da disciplina que imponha o respeito mútuo de todos os membros e do respectivo entrosamento e entreajuda, no contexto familiar. Hoje temos miúdos cada vez mais e em maior número asselvajados, sem sentido dos outros nem qualquer segurança interior. O indivíduo inseguro vive em permanente ansiedade a chocar e pisar quem o rodeia, o que lhe aumenta o mal-estar e o torna conseguintemente mais violento... É uma espiral que vai de mal a pior, se não for quebrada. É urgente inverter isto, sob pena de rasgar a prazo toda a teia comunitária. A ajuda do jardim-escola é também, neste momento, crucial, não apenas ao impor uma regra que congregue os pequenos no grupo e no estabelecimento, mas ao levar a mensagem aos progenitores e, através destes, à comunidade. Talvez o cancro comece a irradicar-se e a ser curado. Ou ainda acabará por vitimar-nos a todos, não tarda.

 

-...Não, não, há um outro aspecto. É que aquele miúdo apenas faz rabiscos e, lembra-te, já tem quatro anos. Neste domínio anda bastante retardado.

 

-...Exacto, a educadora aqui ainda não obteve resultados notórios. É um pendor que releva de aprendizagens e vivências mais ricas e complicadas. Eu conto-te em pormenor o caso. Vai levar-nos a outra mezinha fundamental.

 

-...Verás que é uma pedra angular para a aprendizagem escolar vindoira de qualquer criança desta faixa etária. Olha, a educadora contou-me, surpreendida, que ele não faz ideia de dados elementares, como, por exemplo, quando ela lhe diz: “Então, não desenhas nada do lado direito da folha?” Ele olha para ela completamente confuso e pergunta: “Aqui?” E aponta o cimo ou um canto qualquer do papel. Não tem nenhuma noção ainda das localizações.

 

-...É verdade, é estranho, com o gosto dele em falar pelos cotovelos. Mas é como te digo. Aliás, ele cumpre em regra sem hesitar quando a educadora lhe manda: “ Corre lá fora a buscar o balde que deixei à porta!” Isto confundiu-a durante semanas. É que, ao invés, quando lhe ordenava, ao arrumar o tapete em que eles brincavam aos condutores na estrada: “Vá, afasta-te para o lado!”, ele ou recuava ou avançava, ou ficava parado até compreender o que ela pretendia fazer. Apenas então é que retirava. Manifestamente, não entendia a ordem. Pelo contexto é que, inteligentemente, inferia o sentido e então adequava-lhe a resposta.

 

-...É, é uma pedagoga deveras competente e com grande profissionalismo. Discrimina os pormenores críticos com enorme acutilância, é mesmo perspicaz. Queres ver? Quando cantavam músicas ou jogavam jogos de comandar posturas e gestos, tratou de reparar cuidadosamente no pequeno. Até dar conta da falha, tudo parecia ocorrer com normalidade. Estando atenta é que verificou que ele executava correctamente cada ordem ou cada movimento, gesto ou postura corporal, mas permanentemente com um ligeiro retardamento relativamente aos restantes. Estás a topar a esperteza do miúdo? Via como os outros operavam e copiava logo. A quem fora desprevenido ou menos atento, levava-o à certa, nunca descobriria que ele não compreendia mesmo nada das localizações no espaço de que estava dando conta.

 

-...No tempo? A educadora contou-me um qui-pro-quo divertido. Como é que era? Deixa ver se me lembro. Quando senta a turma à roda para contar algo que viveram, se os demais principiam, ele corrobora, afinando pelo teor do que debitam. Mais uma vez, não dá para descobrir se domina ou não os encadeamentos temporais. Foi quando começou por ele que a confusão se instalou. Era mais ou menos deste modo. Numa segunda-feira perguntou-lhe: “Então, que fizeste ontem?” E ele começou: “Ontem? Ontem vou brincar com o Bobi.” E a educadora:”Ai brincaste?” Retruca ele:”Não, não, quando chegar a casa.” Apenas aí ela compreendeu que ele trocara as ocasiões e as confundia. Continuou a conversa e ele, de facto, baralhou vários momentos temporais. Mesmo expressões como “a semana passada” tanto originavam respostas a ela referentes, como a eventos do próprio dia, como a actividades que esperava vir a executar. O domínio do tempo é muito indefinido ainda, misturando as cadeias diárias e horárias permanentemente.

 

-...Não, aqui ainda não há evolução notória, até à data. Questão de linguagem apenas? Não, quando é geral, é mesmo problema de sentidos, de organização e de estrutura mental, o pequeno tem ali uma falha no desenvolvimento da personalidade, por enquanto. Aliás, repara que isto não pára aqui, no jogo dos relacionamentos humanos há um buraco paralelo.

 

-...É estranho, de acordo, mas consonante copm o resto. Ele distingue muito bem apenas os padrões relacionais com os colegas dos que mantém com a educadora. O trato com esta generaliza-o a todos os adultos do jardim, não a discrimina relativamente à outra colega nem às auxiliares, trata-as todas como se foram por igual responsáveis pela turma. O mais curioso, porém, é na família: não distingue no trato os pais dos avós nem da tia. Para ele todos mandam, o servem, são igualmentee quem lhe responde e corresponde. Trocar uns pelos outros dará no mesmo, pelo modo como os refere e pelo que deles aguarda.

 

-...Bom, tinha de dar nisto, tendencialmente, já que durante quatro anos todos eles viveram em função dos caprichos do miúdo, nenhum o enfrentou deveras nem se lhe impôs nunca.

 

-...Ah, sim, não os confunde nos tratamentos, sabe o que é cada um. Eu refiro-me é ao padrão do relacionamento. Repara, qualquer miúdo desta idade sabe muito bem quem manda e decide em último grau, que são o pai ou a mãe, quem dá carinhos e ternura incondicionais, que são os avós, mas que apenas mandam supletivamente, e os tios acabam para eles ainda mais distantes, tanto nos apoios como nos comandos. E já principia a variar claramente o padrão relacional relativamente a outros membros: irmãos mais velhos e mais novos, primos, amigos íntimos... Ora, aquele petiz opera com todos os membros familiares do mesmo modo: todos mandam e são chantageáveis, todos acarinham, dão prendas, tratam dele e assim por diante. Parecem constituir, para ele, algo como um agregado amorfo de gente em que cada elemento é perfeitamente intermutável. Quando muito há uma qualquer divisão de tarefas: as mulheres dão de comer, vestem, despem e deitam; os homens dão ordens, brincam, dão passeios e contam histórias. Qualquer coisa deste teor.

 

-...Ela descobriu isto ao perguntar-lhe quem lhe dava refeições. “A minha mãe” - afirmava o miúdo uma vez. Outra era: “A minha avó” ou “a minha tia”. Podia ser apenas fruto de elas se revezarem. Mas o problema é que para ele não há revezamento nenhum: qualquer daquelas respostas refere indiferentemente o mesmo agente-função e, quando designa uma, designa todas. Todas são o mesmo, não há variação de expectativas, cambiantes de poder, jogos diferentes e adequados de estratégia para cada indivíduo e respectivo papel. O terem-no apaparicado e terem andado à trela dele gerou a indiferenciação geral, o empobrecimento da discriminação de laços, papéis e funções, bem como das respectivas reciprocidades.

 

-...Pois é, entre os quatro e os seis anos, a criança deve dominar bem as localizações no espaço e no tempo. A partir daqui é que poderá interiorizar os diferentes laços interpessoais, as posturas recíprocas diferenciadas de cada indivíduo, com a respectiva maneira de ser, com as competências e responsabilidades que tiver, os papéis que desempenhar, o estatuto que lhe competir. Sem aquilo, nunca chegará a isto. É o período do complexo de édipo, muito rico de cambiantes. Vai gerar muita angústia e frustrações quando atempadamente não for sendo interiorizado todo este rol de aprendizagens.

 

-...Não é tarde ainda, claro, o pequeno está a entrar no derradeiro patamar da segunda infância, com quatro anos feitos. E reage muito bem aos desafios que lhe vão sendo propostos.

 

-...A mezinha? Então, é principiar por atender prioritariamente a este vector, como a educadora vem operando neste caso e para todo o grupo-turma. Depois, é ter em conta que, sem localização no espaço-tempo, não há quadro onde integrar o xadrez complexo e subtil da multiplicidade dos perfis das relações humanas, aquele opera como o húmus onde estas germinam e vão enriquecendo os matizes. E há nisto um efeito ignorado por quase todos os pais, educadores, bem como pelos agentes do teu Ministério. Imaginas onde radica a reprovação escolar da Matemática?

 

-...Digo, digo. É mesmo daqui que ela deriva. O cálculo é, antes de mais, um jogo de reciprocidades e laços e presume, por isto, a pré-existência de quadros interiorizados deste tipo, a partir das actividades quotidianas da criança. Quando isto falha ou fica muito pobre no termo da segunda infância, logo na terceira principia a dificuldade de calcular, mesmo nas operações básicas de aritmética, somar, subtrair, multiplicar e dividir. Pior, porém, é resolver problemas: aqui tratamos de aplicar aquelas operações num jogo de reciprocidades entre tamanhos, grandezas, quantidades. Como representar mentalmente isto quando na mente não houver, previamente, um quadro similar com que efectuar tal jogo de relações? É inexequível, é óbvio. E não irão resolver o problema com mais aulas de Matemática nem com explicadores, micro-ensino e quejandos recursos.

 

-...Perguntas como, então? Olha, como a educadora anda agindo com todos e com aquele aluno em particular. Desde que detectou a falha, todos os dias faz com ele o jogo das ordens, aliando-lhe o grupo inteiro. Principia ela e ele vai executando. “Um pé para a frente, um pé para trás, um pé para a direita, um pé para a esquerda, um joelho para cima, um joelho para baixo...”

Depois troca a ordem, manda rodar o corpo, movimentos com as mãos, com a cabeça e a lista é interminável. Entretanto troca as ordens e as execuções também pelos miúdos. Depois cantam letras pontuadas por gestos e movimentos. A seguir há baile mandado. Vêm mais tarde jogos de encaixes, ora com peças, ora com o próprio corpo dos miúdos...

 

-...Como é este último? Actos simples, repara. Entrar num caixote, sair dele. Ficar dentro, colocar-se fora, por cima, por baixo, À esquerda, à direita e por aí adiante. Trepar ou descer uma escada, permanecer no alto, ficar em baixo, no meio dela, sair de frente, de costas, avançar, recuar, inclinar-se... Ao aflorar a fadiga, correm para os encaixes e os modelos de continentes-conteúdos, jogos de formas e moldes e o que então melhor calhar.

 

-...De acordo, isto apenas permite organizar e interiorizar o espaço. Todavia, quanto ao tempo, a educadora actua de modo paralelo. Sabes como principia cada dia na turma dela? Aliás, é comum nas práticas da rede pré-escolar. As que têm o vector social como prioritário (tomar conta de crianças) é que muitas vezes não logram condições para praticá-lo. Olha, é isto: sentam-se todos nas almofadas para narrarem, à segunda-feira, as melhores aventuras do fim de semana; de terça a sexta, as da tarde, jantar e serão do dia anterior, bem como dos projectos para depois de saírem e para os dias supervenientes. A partir daqui, o tempo vai alargando espontaneamente para períodos mais largos, festas de anos, baptizados, férias ou passeios que eles gozaram ou esperam, tradições comunitárias fixas ou periódicas, como o Natal, o Carnaval, a Páscoa, o dia de Todos os Santos, o Ano novo, episódios marcantes das curtas vidas destes educandos mas que eles evocam ao acaso da conversa e que a educadora estimula a localizar, com o rigor possível, no decorrer do tempo. Enfim, a variabilidade é tão interminável aqui como a dos jogos no espaço.

 

-...Exactamente, é através destes relatos cruzados que ela vai estimulando a interiorização dos diferentes papéis das relações humanas, do peso relativo diferente de cada personagem na vida destes educandos. Aliás, este pendor é todos os dias vivido ao vivo no jardim-escola, uma vez que os vários adultos têm competências e funções que se não misturam e são permanentemente requeridas e activadas para o bom funcionamento do organismo.

 

-...Neste momento é isto: o grupo-turma é que opera como campo de recolha mais distinto e rico, para aquele miúdo em particular, do que são as complementaridades dos relacionamentos humanos e respectivos agentes individuais. Olha, esta semana descobriu, pela primeira vez, a hierarquia de quem manda e quem obedece nos vários degraus da pirâmide. “Tu é que mandas em todos, não é?” - perguntava à educadora, muito admirado, quando descortinou que ela é a directora, cumulativamente. “Claro, na escola inteira” - respondeu-lhe ela. “Mesmo na Ivone?” - é a responsável doutra sala. “Sim , quando são problemas do jardim, mas lá na turma dela é apenas ela que manda.” E ele, pensativo: “Ah! E também mandas na D.Maria?” - é a auxiliar. “Evidentemente, ela faz o que eu lhe pedir.” Um bocado depois: “E ela também manda nos meninos?” - parecia confuso quanto ao lugar a dar-lhe. “É, quando a educadora não está ou quando vem ajudar nalguma actividade. Mas, quando ela aqui auxilia, tu já viste que eu mando acima dela, ela faz com os meninos como eu lhe indicar, não é como ela quiser, não é?” E torna o pequeno, muito entusiasmado com a descoberta: “Pois, até quando eu fiquei com as mãos cheias de tinta, amanhã, não ontem, tu disseste para ela ir comigo para me ajudar a lavá-las não foi? E eu então fui lá dentro com ela... Fui lá fora... é lá dentro ou lá fora que se diz? Como é?” “É lá fora da sala e cá dentro do edifício, não é? Se tivesses de ir para o recreio lavar as mãoss então é que era lá fora, tanto da sala como do edifício inteiro do jardim. Portanto, podes dizer das duas maneiras, que está bem. Tiveste de sair para fora da sala mas continuaste cá dentro do edifício, certo? Ficaste fora duma mas ainda dentro do outro: é correcto, portanto, referi-lo de ambos os modos.”

 

-...Eu bem te dizia que é uma educadora de enorme qualidade e grande profissionalismo. Dá gosto acompanhar-lhe o itinerário. Aprendemos muito e podemos ir testando ao vivo quanto vamos intuindo e compreendendo. É bom tratar de pedagogos deste nível. É pena que o Ministério nivele constantemente por baixo, em lugar de estimular prioritariamente estes que operam com garra, empenho e grande eficácia. É pena, muita pena...

 

-...Já basta de mezinhas, que o serão vai longo. Para a semana há mais, não é? Olha, vê se te agasalhas, que isto aqui está quentinho e a gente deixa-se ludibriar. Agora, nem a chuva amacia a temperatura. Adeus, até à próxima.

 

-...Só mais uma? Vá lá então, que esta não demora. Na rede pré-escolar, as valências sociais (o mero tomar conta) têm de ficar a cargo doutras entidades, noutros espaços e com actividades diferentes das dos educadores, sob pena de se destruir a aprendizagem da identidade na segunda infância. Ora bem, não há alternativa a isto nos jardins com uma sala apenas. Para os que tiverem duas ou mais, porém, encontrei outra fórmula com igual eficiência: dividiram as actividades por salas – uma só com os cantinhos de interesses, outra com actividades plásticas apenas, outra exclusivamente dedicada a cantos, bailes mandados, jogos e educação física... Todas as crianças são obrigadas a mudar de sala, educadora e actividades da manhã para a tarde, e cada uma escolhe o que quiser. Assim podem funcionar por turnos os educadores e os assistentes, sem prejuízo para os educandos. E pronto. Adeus.

 

 

 

 

 

 

 

 

Mezinha 5

 

 

- Ora viva! Entra ligeiro, que hoje trazes contigo uma nortada de cortar à faca. Deves vir enregelado, não? Ah, apanhaste um estacionamento pertinho. Que sorte! Mas olha que deu para ficares todo corado. Um dia destes ainda iremos ter um nevão em Lisboa, eu até gostava, a neve encanta-me, imagina!

 

-...Já não era a primeira vez, mas a verdade é que eu nunca vi. Olha que seria mesmo giro! A avenida inteira coberta de brancura... Faria falta a lareira, mas ninguém pode ter tudo, não é?

 

-...Romantismo não lhe chamaria, quando muito bucolismo. Os espectáculos da natureza sempre me deslumbraram.

 

-...É verdade, já nem me lembrava: em miúdo perdia-me a contemplar os picotos da Serra de Arouca, quando lá branquejava a neve. E a aragem dela também nos enregelava, recordas-te? Era uma navalha a gretar-nos a pele toda, chegávamos a sangrar.

 

-...Não vás sem resposta: onde julgas que fomos o fim de semana transacto? À Serra da Estrela, pois claro! O nevão parou na sexta, desimpediram a estrada até à pousada junto das Penhas Douradas, olha, reservámos o lugar e fomos todos regalar a vista. Aquilo ficou um espanto, digo-te! Parecíamos uns miúdos, a atirar mancheias de neve, a deslizar em sacos de plástico, a parar espantados em toda e qualquer curva e alcantil... Tudo ficou incrivelmente surpreendente, vale a pena.

 

-...Claro que me aviei de queijos da Serra. Dos autênticos, não dos “tipo serra” lá das fábricas. Fomos às aldeias, às queijarias caseiras, ali bem artesanais. E mais, adquiri várias boroas de milho deles. Assim é que o aperitivo regional vai ficar com o paladar mesmo de origem.

 

-...Vinho, olha, fui à procura, à vinda, na região de Monsanto. Um tinto, familiar também, que me juraram que era o que acompanhava a merenda dos pegureiros, tanto de queijo da Serra como de Castelo Branco, de meia cura. Foi o que me aconselharam. Vamos saborear os acepipes da terra fria? Hoje é petisco de pastor. Alinhas, não é?

 

-...Sim , sim, todas as escolas do Primeiro Ciclo estavam fechadas. Depois do nevão tudo ficou intransitável e perigoso. Ainda bem que tendes lá no Ministério o projecto de generalizar o aquecimento daqueles estabelecimentos. Só de lembrar-me de quanto sofremos em miúdos com a frialdade (e éramos duma zona litoral, apesar de tudo mais suave), eu nem imagino como aqueles alunos podem aguentar as aulas com semelhantes temperaturas. Claro que o corpo se adapta, mas mesmo assim...

 

-...Para o frio, realmente, a única mezinha é o aquecimento. Aí não te encontrei outra, por exímios que sejam os educadores da região. Mas noutros aspectos elas ocorrem e são, por vezes, surpreendentes.

 

-...Por acaso, o exemplo mais representativo com que lidei até agora é duma pedagoga oriunda lá da zona, profissionalizada, uns decénios atrás, na antiga Escola do Magistério da Guarda. Já está reformada há tempos, mas na época trabalhei com ela bastante de perto, com a Feliciana. Tinha um grupo de deficientes profundos na turma e foi-me entregue o caso para apoio e acompanhamento, mormente dos alunos diminuídos que se reportavam ao foro psíquico. Foi dos melhores momentos da minha carreira, aquela pedagoga operava milagres.

 

-...O difícil neste caso é escolher qual a ponta mais relevante, tão rico foi ele. “A minha aula é uma romaria, anda sempre tudo no forrobodó!” - costumava-me ela afirmar. E repara, era verdade, mas aquilo,sendo um ambiente alegre e descontraído, todavia estava fortemente disciplinado e aprendia-se a sério, como eu até nem encontrei segundo, pelo menos por enquanto.

 

-...Tá bem, principio pelas aulas. Olha, quando lá entrei a primeira vez, a turma trabalhava subdividida nuns seis grupos. Era um segundo ano. Tratavam de ler e de interpretar um texto, para escreverem uma frase a identificar o que ele abordava. Tinham minutos contados para dar conta da tarefa. Reparei que era uma curta história que constava da página que decifravam. Os quatro mais perto de mim cochichavam todos menos uma rapariguita que ia acompanhando o diálogo mas nunca interferiu. Era a deficiente mais grave da turma inteira: com sete anos feitos, não falava, uma afasia meramente funcional, nem aprendera ainda a ler nem a escrever nada. A Feliciana corria permanentemente de grupo em grupo, a verificar os avanços, a desafiá-los, a puxar por eles, a conferir o que iam atingindo, a avaliar cada pegada... Os alunos estavam já tão rodados nesta metodologia que todos desataram a operar deste modo automaticamente, a tentar cumprir nos minutos dados o desafio proposto, senão ficavam excluídos ou perdiam pontos no campeonato da turma. No fim desta fase, a professora pôs um de cada grupo a ler e rodou por todos. As correcções, quando conseguidas pela própria equipa, valiam como leitura correcta. Depois da prova de lerem, foi a da frase-resumo queo porta-voz de cada pôs à consideração de todos: então os outros foram debatendo cada uma, mostrando-lhe as insuficiências, erros ou defeitos; os autores justificavam, fundamentavam o que tinham escrito. Por fim a Feliciana estabeleceu a ordenação a partir do que tinha conseguido menos até ao que tinha atingido melhor qualidade. Este último grupo recebeu uma consagração pública: toda a turma os premiou com uma salva de palmas e cantaram em coro uma quadra de parabéns.

 

-...Era, era, isto é que era a tal romaria. Mas olha que a alegria da turma, o entusiasmo com que se aplicavam, era esfusiante e contagioso. Eu fiquei logo encantado com semelhante ambiente, apeteceu-me cantar, acredita.

 

-...Sim, aquele foi o molde geral. Depois do recreio mudou a matéria. Agora entraram na matemática. E foi o princípio dum encadeamento novo. Imaginas como ela o introduziu? Nem a mim me teria ocorrido: com um conto em que o animal-herói, creio que era um macaco Felisberto ou coisa do género, andava ali às aranhas, por não ser capaz de fazer uma conta qualquer lá com um cacho de bananas que arranjara para uma farra com os amigos. É a ideia que me ficou, os pormenores já se me varreram, ao fim destes anos. O caso é que toda a gente queria ajudar o bicho encalacrado, de modo que toda a informação aritmética para dar conta da dificuldade que ela entretanto ia debitando foi bebida com a maior concentração e empenho. “Quem é que irá conseguir ajudá-lo?” - perguntava ela. - “Vamos a ver quem é o primeiro a conseguir livrá-lo daquela desgraça. Já viram? Estão todos para ali à fome porque não há maneira de descobrirem qual é a fórmula.” E insistia: “Nós cá descobrimos como fazer, nós descobrimos!”

 

-...Isso mesmo, ficaram logo enfronhados no papel e no lápis, a rabiscar, a contar pelos dedos, a murmurar baixinho duns para os outros. E ela a correr dum em um, a cochichar neste grupo, a picar aquele, a afirmar que estava errado a um terceiro, a confirmar além, a pedir mais aqui, não parava... Apenas a aluna muda continuava alheada, olhando tudo como quem fica de fora a ver a paisagem evoluindo.

 

-...A Feliciana falava-lhe, à deficiente afásica, regularmente, sempre que ia ao grupinho, mas não obtinha resposta digna de nota. A pequena olhava, acenava indefinidamente e ficava por ali...

 

-...Exactamente, o encadeamento inteiro reproduziu os trâmites do primeiro, anterior ao intervalo, com pequenas variantes. Quando o Viriato (creio que era o nome dele, estou mesmo a vê-lo, muito atilado, magrinho), quando ele voltou a ser porta-voz do grupo, novamente o melhor, ela comentou, por exemplo: “Esta equipa anda a ficar muitas vezes campeã, temos de lhe pedir ajuda para os que progridem com mais dificuldades, não acham?” E a turma toda: “Sim , sim, snr.ª professora, o Meireles ( ou seria o Adílio?) já ficou duas em derradeiro.” E logo houve uma troca: “A Joana vai reforçá-los e vem para aqui o Carlos, da próxima vez. E vocês, os melhores, tratem de ajudá-lo, que ele anda com alguma dificuldade nisto. Posso contar convosco?” Ora era com uns, ora com outros, compreendes? Falei nestes por acaso, lembrei-me deles. A rotação era regular.

 

-...Bem, a mezinha é mesmo esta metodologia: o método de colmeia, a turma organizada em grupos de três a cinco alunos, com pequeninos projectos a serem trabalhados com princípio, meio e fim em cada momento temporal. A Feliciana ora tinha um para a manhã inteira, ora dois, divididos pelo intervalo do recreio, como neste dia que te contei.

 

-...Distingui-lo da segunda infância? Então não vês que nesta os miúdos ainda são muito pequenos, ainda não têm dinâmica de grupo? I-la-ão adquirindo entre os três e os seis anitos, se forem bem estimulados, por isto é que sociabilizá-los é crucial nesta franja etária, como falámos no último serão. O método de colmeia é por inteiro inviável com tais educandos, lembra-te de que nem sequer ainda interiorizaram, na primeira metade do escalão, nos dois, três anos, o jogo múltiplo do estatuto e dos papéis dos indivíduos com que lidam e das respectivas expectativas e laços. É precoce demais para tal aposta. Das educadoras com qualidade, nenhuma encontrei a laborar em tal modelo.

 

-...Pois claro, com as professoras do Primeiro Ciclo é o contrário: as melhores, sem dúvida, a todas as descobri radicadas no método de colmeia.

 

-...Que é que lhe corresponde na faixa etária anterior? Diria que o mais eficaz que acompanhei é uma rotação, em períodos mais ou menos curtos, acompanhando a gradual estabilização dos miúdos com o aumento da idade e do desenvolvimento, de duas metodologias, revezando-se uma à outra ao correr do dia: primeiro, o jogo didáctico, onde englobaria a hora do conto, das narrativas do que fizeram e do que projectam vir a empreender, dos vários tipos de canções e danças, dos bailes mandados, movimentos com o corpo, com objectos, com encaixes, com aparelhos de ginástica e quejandos, em resumo, todas as actividades que visam a turma inteira a operar em bloco...

 

-...Sim, também as plásticas, como a pintura, o barro, a plasticina, o recorte, a colagem, a colheita em trabalho de campo e a criação de quadros, tudo quanto envolva o grupo mobilizado por inteiro.

 

-...Evidentemente que não é por estarem todos envolvidos que isto é um jogo didáctico. É porque as melhores educadoras transformam permanentemente estas actividades naquela metodologias, com desafios a ver quem atinge, com metas a conquistar.

 

-...Como? Enquadrando-as num contexto de fantasia, principiam sempre com um “faz-de-conta”, às vezes é o próprio conto por onde abriram o dia que oferta o entrecho e todos devêm personagens dele a desempenhar múltiplas tarefas que vão sendo distribuídas. O apelo ao imaginário é que marca a primeira grande diferença. A segunda provém dos desafios a vencer. As melhores pedagogas estão constantemente a repetir: “João, vê se és capaz de...?”, “A Joana vai tentar atingir...Vamos ver se ela consegue!” E assim por diante. E, para os mais fraquitos, são beijos e palmas quando atingem uma meta há muito falhada.

 

-...Pois, isto é apenas o primeiro método. Normalmente uma hora depois já a turma inteira está noutro, a aprendizagem por descoberta.

 

-...Precoce demais não é, desde que adaptado à segunda infância, lembra-te de que os pequenitos estão a viver o primeiro período de descoberta do mundo envolvente.

 

-...Adaptado como? Olha, o que verifiquei nos melhores momentos foi permanentemente deste modo: os miúdos vão em grupos para os vários recantos de motivos da sala – a casa das bonecas, a garagem, o tapete do trânsito, a biblioteca da turma, a cozinha, o canto dos trapos...

 

-...Não, aqui os grupos não pré-existem nem mesmo se organizam durante as brincadeiras. A técnica é outra: há um número-limite de lotação para cada área que ninguém pode ultrapassar. Uma vez atingido, ninguém pode ir para lá sem outro de lá sair. E eles têm de aprender, com o desenho e o algarismo que identificam a regra afixada em cada um, a funcionar correctamente com esta exigência. Os mais instáveis vêem-se à nora com esta norma, mas do cumprimento rigoroso dela é que vem gradualmente a interiorizar-se a noção, o sentido e a dinâmica do grupo. Por exemplo, quando um, que está na biblioteca, quer ir para a casa das bonecas que já ficou cheia, ou espera, ou então tem de negociar a troca de lugar com outro que não se importe. Os mais pequenos não chegam lá, evidentemente, os mais velhos depressa o descobrem e, por osmose, isto corre rapidamente pela turma fora, até que todos aprendem a operá-lo. Começou a interiorização da vivência em grupo.

 

-...Ah, dura pouco esta fase, mormente nos mais abebezados.Um nada depois a educadora volta a reuni-los todos e retoma a primeira metodologia e assim continua, rotativamente, pelo dia fora. Apenas interrompe para o lanche a meio da manhã e o almoço.

 

-...É fácil compreender porque é que a colmeia resulta como o melhor na terceira infância, entre os seis e os dez, onze anos. É que, neste período, os pequenos já estão a interiorizar os valores: o grupinho com que finalmente são capazes de lidar é que, ao vivo, lhes permite descobrir, gerir, avalizar, recusar, conforme as conjunturas e os desafios a que tentam ir respondendo, cada atitude e comportamento ocorridos no grupo. Ali é que verificam em acto o que é bom e o que é mau. Então é que aprendem a escolher, a repudiiar, a incentivar, de acordo com os objectivos que vão tendo em mira, bem como o clima de convivialidade que mais lhes agrade cultivar.

 

-...E também o jogo das lideranças, hierarquias e complementaridades mútuas, tens razão, é mesmo. Exercitam-no ao vivo nesta metodologia, não há mesmo outra tão apta para uma finalidade destas. Por isto é que os melhores pedagogos irão por aqui, numa escolha espontânea.

 

-...É verdade, ela desencadeava a colmeia constantemente a partir duma história que inventava, a propósito da matéria que iam aprendendo. Foi permanentemente desta maneira, durante o tempo inteiro em que pude acompanhá-la. E já vinha de longe, ao que me ia contando da carreira dela. Isto vai levar-nos à segunda mezinha, já vais ver.

 

-...Tem, tem algo a ver com as histórias de faz-de-conta da fase etária anterior. Olha, quando estagiei na América, fiz um curso intensivo com a equipa de McCleland, recordas-te? Andavam eufóricos com o que haviam descoberto vinte anos após um trabalho de campo em vários países latino-americanos, confirmavam doravante que a hora do conto que haviam lá garantido a vários grupos de crianças, desde os seis até aos dez anos, dava hoje frutos espantosos. Em resumo, 80% destes miúdos agora adultos ocupavam funções de chefia e lideravam genericamente as respectivas comunidades nos domínios mais variados. Eram regedores de aldeia, donos de empresas, directores de jornais e rádios, líderes sindicais, animadores culturais, dirigentes de clubes, de associações recreativas, enfim, uma lista interminável. Em contrapartida, dos restantes colegas do tempo de escola que não tinham fruído da hora do conto, apenas uns magros 20% ocupavam postos idênticos. Era um salto qualitativo descomunal, o quádruplo!

 

-...Donde vem isto? Do motivo da competência, um motivo-chave do desenvolvimento da terceira infância. Os pequenos querem corresponder às expectativas de quem os rodeia, imaginam, sonham com as conjunturas de que sairão vitoriosos e reconhecidos e tratam de ir correspondendo às ordens e programas de quem é por eles responsável ou lhes cultiva os laços mais gratificantes. O que a equipa de McCleland fez foi estimular isto sistematicamente, através de histórias contadas diariamente durante quatro anos. Quadruplicaram, com isto, a probabilidade de aqueles miúdos virem a ser adultos de topo. É obra, hein?

 

-...Pois, é uma fresta no muro dos países pobres. Mas eles extrapolaram para outro campo, o período de Péricles em Atenas, o séc.V a. C., denominado de oiro, com a avalanche de génios que ali se acumularam numa mesma geração e de cujas criações artísticas e culturais ainda hoje alimentamos o mundo inteiro, pelo menos onde pesa a marca do imaginário ocidental. Como é que aquilo ocorreu, o milagre grego? Explicam eles que o ditador eleito obrigou ao pagamento dum imposto para custear os cantores populares das sagas helénicas que, na ágora ateniense, de manhã à noite, anos pegados, celebraram mormente as lendaas da Guerra de Tróia. Ora, toda a pléiade de génios que vieram a proliferar depois foram as crianças que ali os ouviram, deliciadas, meses, anos inteiros. Olha, levantaram pelo menos o véu acerca dum dos eventos mais estranhos e felizes da história universal, sem paralelo em mais nenhum momento nem cultura alguma. Aliás, dei comigo a meditar se não teria ocorrido algo paralelo com os filhos de D. João I e D. Filipa de Lencastre. Ela educou-os como? Foi pena não no-lo ter dito, quase de certeza utilizou os romances de cavalaria dos vários ciclos então em voga, mais as “Viagens” de Marco Polo, pelo mesmo motivo. Foi quanto bastou para aqueles irmãos se lançarem à descoberta do mundo inteiro e Portugal, por breves decénios, erguer o maior Império planetário. Pelos vistos, ficaram demasiado sozinhos na genialidade que despertaram neles, o resto do País não tinha músculos nem mente alerta para empreendimento de tal jaez.

 

-...A Feliciana ignorava tudo isto. Trabalhou o currículo por mera intuição empírica, com sensibilidade pedagógica apurada e bem encaminhada. Como naqueles casos históricos, aliás.

 

-...Eu conto, calma! Mas espera lá! Tu viste-a, num vídeo que correu numa mostra de projectos do Ministério, há uma meia dúzia de anos atrás. Olha, vê se te recordas, lembro-te uma cena que me ficou. Estava ela a contar uma história a propósito duma consoante qualquer, juntam-se dois alunos distraidamente à frente, com as letras “A” e “I” ao peito. Ela interrompeu de imediato e correu para eles agitada, gritando: “Ai! Ai! Reparem, reparem: ai, ai... 'Ai' dói muito, quem ajuda? Depressa, que alguém venha aqui curar esta dor, ai, ai, ai...” E, de repente, o pequenito que tinha ao peito a letra “p” correu lá do fundo da aula e colocou-se ao lado do “A”, formando a palavra “PAI”. A Feliciana respirou fundo: “Pai! Chegou o 'pai', pronto, já está tudo bem, já não há mais gritos de dor. Muito bem, Luís, vieste mesmo a tempo salvar-nos da aflição.” Não te lembras disto?

 

-...Ah, recordas-te melhor da história dos gémeos “SS” que têm a mania de andar muitas vezes juntos e, quando assim é, então sibilam mesmo como duas cobras? Já nem me lembrava dela, vês? Mas pronto, estás a identificar quem é e como lidava com o currículo. Acolá era com a leitura. Para cada letra-fonema, uma história, interligando-as todas umas às outras, numa telenovela pegada, os personagens que se dão bem, os que se dão mal, os que andam toda a vida colados, os que mudam, os que se mantêm, enfim... Com as aventuras dos grafismos feitos gente adivinhas que tempo lhe demorou a pôr aquela turma inteira, a do vídeo, a ler e a escrever tudo? Em leitura e escrita fonética, bem entendido, que a ortográfica é outra história... Olha, foi mês e meio! Um recorde. Confirmou-mo ela e repetiu-mo uma outra colega lá da escola. É um fenómeno, temos de concordar.

 

-...No resto do programa? Pois aí é que está o mais extraordinário deste caso da Feliciana. Ela tinha, quando a acompanhei, já transformado toda e qualquer área dos programas do Primeiro Ciclo numa cadeia de histórias, num conjunto de aventuras. Da primeira à quarta classe. Isto, mais que o resto, é que transmudava aquela aula numa festa pegada. Na matemática, para cada número havia um conto, por exemplo, quando aprendiam os algarismos.

 

-...Creio que ainda lograrei reconstituir algum. Vou tentar, mas é apenas como um afloramento, correcto? Que aquela pedagoga operava deste modo com todos os conteúdos e todos os dias. Lembro-me de ela introduzir o tema na Primeira Classe mais ou menos desta maneira. “Era uma vez um lago de cisnes muito redondinho.” E desenhou no quadro um “O”. “Ora, de manhãzinha muito cedo, os cisnes, que são uns dorminhocos, estão todos escondidos no quentinho da capoeira, a sonhar com as aventuras que irão viver. Vocês vêem algum cisne no lago?” E a turma, em coro: “Não!” E ela tornava: “Quantos andam já nadando ali?” - e apontava o “O”. “Nenhum!” - respondiam os miúdos. E ela: “Nenhum são quantos? São dois, é um, é zero?” E logo eles: “É zero! É zero!” Continuava a Feliciana: “Muito bem! Vocês, afinal, sabem mais do que eu julgava. É zero, é zero, sim senhor. O zero representamo-lo então assim, como um lago redondinho vazio de cisnes. Vamos lá a desenhá-lo no caderno, o zero. Todos desenham aí o zero, para eu ver, vá!, que eu quero poder continuar a história. Então já descobriram que o zero é como o lago sem cisne nenhum da história, está correcto? Ninguém o esquece?” E, depois de correr em revista rápida todos os lugares, a verificar a tarefa de escreverem o zero no papel, retomou o fio da meada.

 

-...Cada dia com um algarismo?! Não! À velocidade com que eles aprendem e decoram através das narrativas, ela dava logo de enfiada uma caterva deles. Qual confusão, qual quê?! Quando um miúdo baralhava os elementos, os demais acudiam logo: “Professora, ele esqueceu-se da história!” Era quanto bastava para ele a evocar e, ao rememorá-la, de imediato corrigir a mão. Aqui e em todos os outros campos. Imaginas lá a eficácia disto!...

 

-...Tá bem, vamos ao resto de que ainda me lembro. Estou mesmo a vê-la, à Feliciana. “Ora, como os cisnes estão a dormir, os bichos-de-conta, que acordam com a madrugada muito cheios de sede, aproveitam para ir beber ao lago. Há, contudo, um pequeno problema. É que as aves, quando acordam, ficam esfomeadas e os bichos-de-conta são para elas um manjar delicioso. Hum! Que maravilha de pequeno almoço! Ora, então estas lagartas não podem ir a correr para a água sem vigiar, a ver se algum cisne já acordou, não é? Se tais bichinhos não tomarem precauções e caminharem para lá todos distraídos e, entretanto, um dos da capoeira acordar e os vir, que lhes acontece?” E a turma: “São comidos! São comidos!” Torna a professora: “Pois claro, muito bem! Eles, contudo, são muito espertos. Imaginam como é que fazem? Vai um, primeiro, à frente, para espiar se o caminho está livre. Ele chega à borda do lago, põe-se em bicos dos pés, assim (e ela desenhava um “1” ao lado do zero), e apenas depois de tudo muito bem verificado é que, não havendo perigo, então os bichos-de-conta podem ir beber. Agora digam: quantos vão espiar à frente, quantos?” Respondia a turma: “Um!” Aprovava a Feliciana: “Um, muito bem, como este aqui à beira do lago. E como é que ele espia, de pé ou deitado?” E eles: “De pé!” E então ela: “Pois claro!É, portanto, deste modo que representamos o '1', como um bicho-de-conta de pé. Vamos lá todos a escrever o um na folha, para eu ver. O número um é um vigia muito importante, tem de ficar bem nos bicos dos pés para poder ver o lago inteiro, senão ainda acabam todos comidos.” E com isto dava a volta aos cadernos dos alunos, a verificar o algarismo escrito por cada qual.

 

-...Pois claro, a aventura não terminou nada aqui. E eu apenas estou a recordar-me do principal, houve uma infinidade de pequenos incidentes que entretanto já se me varreram, sei lá, alertas aos distraídos, apaziguamento duma briga inesperada a um canto da sala, coisas deste teor.

 

-...Queres o terceiro episódio? Foi mais ou menos isto. “Agora reparem” - continuou a Feliciana - “os cisnes também são espertos. Quando os bichos-de-conta estão todos a beber no lago, espalhados em redor, então eles voam de repentem da capoeira e espalham-se pela água à volta. Não dá tempo de o pequeno almoço lhes fugir e eles todos os dias comem um ror de lagartas.Ora, aqui temos um evento que é um problema muito grave para os bichos-de-conta, qualquer dia acabam todos comidos. Que é que eles hão-de fazer? Reuniram-se numa grande assembleia, num canteiro do jardim, e ofereceram um chorudo prémio àquele que tivesse uma ideia para os livrar de tal pesadelo. Adivinham quem ganhou? Um dos mais pequeninos. Perguntou ele: 'Não é verdade que os cisnes não comem outros cisnes?' E os outros retorquiram: 'É, é! Mas que é que tem a ver connosco?' E vai daí, o miúdo: 'é que nós podemos imitá-los. Se formos dois a dois até à beira do lago, mal os cisnes apareçam, basta que um fique deitado e o outro em bicos de pés com a cabeça inclinada, assim, para ficarmos iguaizinhos a eles.'” E a Feliciana desenhou o “2” no quadro, como o personagem explicava. E continuou: “'Quando nos virem, vão acreditar que somos como eles, apenas mais pequeninos, é como se fôramos as bonecas de eles brincarem, não é? Ora, ninguém come as bonecas com que anda na brincadeira.' Mal ele acabou, todos concordaram que era mesmo a solução. Logo no dia imediato agiram como ele explicou e apenas foram comidos os bichos-de-conta que não se juntaram dois a dois para desenharem um cisne. Todos os outros sobreviveram. Então montaram uma grande festa com uma coroa de rei para o menino que tivera a ideia que acabou por livrá-los. Vamos lá a ver, portanto, como escapam. Quantos bichos-de-conta cooperam para desenhar um cisne?” E eles todos: “Dois! Dois!” Torna a Feliciana: “Exacto! Ficam deitados lado a lado quando os cisnes atacam?” Logo, a turma: “Não! Não! Um deitado, outro de pé!” Remata a professora: “Muito bem. São dois, um deitado, outro de pé. É desta maneira então que representamos o dois, como eles a fazerem de cisnes. Vamos lá escrevê-lo no caderno, o dois, antes que as aves acordem e comam as lagartas todas. Quero ver o dois bem desenhado, tem de enganar os cisnes, é uma bonequinha para eles brincarem.” E uma vez mais corria as carteiras, a verificar, a ajudar, a corrigir aluno a aluno...

 

-...Também eu queria ter sido um aluno duma aula destas. Nisto tivemos pouca sorte, nem uma vaga aproximação. Os bofetões e as reguadas que apanhámos, com mil diabos! Ainda me lembro daquela vez em que abandonei a aula a sangrar do nariz... que ideia de educar mais disparatada, a de nosso tempo de miúdos!

 

-...Estás enganado, isto foi apenas a introdução à colmeia. A partir daqui cada grupo tinha de escrever linhas de algarismos, rever no grupo como cada qual dava conta deste treino e, depois, contar à turma, com a ilustração dos trabalhos comuns, toda a história que tinha ouvido. E, quando se enganava, esquecia ou introduzia episódios que não eram significativos para a aprendizagem, era o porta-voz corrigido, primeiro, pelo resto do grupo dele, depois, pelos mais.

 

-...Pois, pois. E ao fim ainda havia uma cantilena com os algarismos, para aprenderrem, reproduzirem em coro e mimarem de pé, com as mãos, o zero, o um e o dois. Um receituario completo, que cuidas? Aquelas aulas eram um espectáculo permanente.

 

-...Em todos os programas, é verdade. Tinha arranjado histórias até para as ciências: tudo eram descobertas no meio de aventuras, para resolverem dificuldades dum herói que andava constantemente a meter-se em dificuldades. Era tanto uma rocha como uma planta, um animal, como até o céu e as estrelas ou a configuração do Planeta. Embebera tudo de fantasia.

 

-...Claro que foi ao fim da carreira, levara-lhe decénios a chegar ali, em caminhada solitária. Em contrapartida, atingira um nível de eficácia tão elevado que nunca mais encontrei ninguém a lhe aflorar sequer os calcanhares. Aquilo é que era aprender, naquelas aulas!

 

-...Exacto, isto é a segunda mezinha da faixa dos seis aos onze anos, tendencialmente. Esgotar-lhes a fome de imaginário até ao limite, em todos os domínios, e levá-los a desenvolver-se prioritariamente em tal contexto, na escola, em família, seja lá onde for.

 

-...Muito bem, é válido aqui para os lares e as comunidades quanto afirmámos também para a faixa etária anterior: importa reforçar a leitura de contos, histórias, romances, bandas desenhadas... Convém é acompanhar a maturidade que vai sendo atingida, a infantilização tem de ser ultrapassada, que é um risco, a autonomização da leitura, à medida que os miúdos forem sendo capazes, deve ser estimulada e alimentada.

 

-...É o que eu creio: se praticarmos isto algum dia, sistematicamente, nas aulas, nas famílias e comunidades, quando o generalizarmos, a geração de pequenos que daí advier alimentará no País inteiro um século de oiro idêntico ao ateniense. Uma civilização em crise e um Planeta esgotado bem o requerem hoje em dia. Assim tenhamos nós vontade e juízo para levá-lo à prática, não é? Ainda por cima teremos a vantagem de isto não precisar mais de parar, podemos estendê-lo a todas as gerações daí para diante. Enfim, é a utopia, mas a verdade é que é pelo sonho que vamos, como o propuseram Sebastão da Gama e António Gedeão, dois dos maiores pedagogos que alguma vez tivemos, não é verdade?

 

-... Com os alunos de agora a Feliciana teria mais dificuldade com a disciplina, mas não creio que fosse estruturalmente diferente. Não. Olha, digo-te mais, com ela ninguém punha pé em ramo verde. Aliás, sem uma disciplina bem intransigente, nem vejo como é que uma coisa daquelas poderia operar.

 

-...O segredo dela? Creio que é o de todos os bons educadores. Eu pude reparar na primeira aula, de apresentação, no segundo ano de acompanhamento, por causa do diagnóstico do grupo-turma. Digo-te que foi para mim uma surpresa. Ela parecia outra. Havia lá um valdevinos, um tal TóCego, que era o terror da vizinhança. Tentou armar-se em machão, já tinha um corpinho espigadote. Pô-la à prova. Quando ela os mandou sentar, ele ficou de pé conversando com o do lado, como se ela nem existisse. Nem queiras saber! A Feliciana corre da frente da turma como um furacão, furibunda, e berra-lhe, de dedo espetado: “Sente-se já!” O rapaz fez peito, com um sorrisinho sardónico de gozo. Ela pareceu inchar de furor, com os olhos espetados nele, a fuzilá-lo. “Ai sim?!” - rouquejou, estendeu-lhe as manápulas ao pescoço e o espertinho esbarrondou-se no lugar, a tremer descontrolado, sem pinta de sangue. Ela nem lhe tocou, nem comentou. Limitou-se a fixá-lo com aquele olhar de fúria mal contida e retomou a frente da aula, como se nada houvera ocorrido. Escusado é sublinhar que, perante isto, todos ficaram instantaneamente num silêncio de morte. Não lhe vi um sorriso, nem um para amostra, até à hora do recreio. Parecia mesmo outra...

 

-...Por acaso perguntei-lhe no intervalo, que o rapaz podia ter-se virado a ela. Olha, nem hesitou: “Dava-lhe ali um enxerto de porrada, que lhe servia de emenda! Ficava de vez escarmentado e não teria mais veleidades o ano inteiro. E se eu não pudesse mais que ele havia de gritar tanto, armar tal algazarra, que a escola em peso teria de acudir e ele acabaria, uma vez mais, posto no lugar dele, a bem ou a mal. Nisto não há que ter hesitações: quem manda tem que ser reconhecido e respeitado. E ponto final. Depois disto garantido, então podemos falar e ajustar tudo o que calhar. Antes ou em lugar disto, não, nunca! Se os incompetentes e os frustrados do Ministério o não entendem, tanto pior. Eu sou educadora com eles, sem eles, apesar deles ou contra eles, se for o caso. Não me demito das minhas responsabilidades. O resto não é comigo: que façam os políticos e os técnicos as asneiras que quiserem. Eu não, não leio pela cartilha deles e os resultados comparem-nos: pelos frutos é que vemos a qualidade da árvore, não é? Então a deles bem podre andará, não acha?” Claro que isto foi ainda quando era proibido ao professor recorrer à força física, mesmo em legítima defesa e em conjunturas-limite de lesão flagrante doutrem. Esta insensatez na lei acabou, se calhar (o texto legal é muito vago), mas nas práticas continua a eternizar-se, é como a justificação escrita de mais de 50% de negativas. Aliás, o regulamento disciplinar continua timorato, ambíguo e gravemente lacunoso neste domínio, como sabes.

 

-...Bom, foi com aquele aluno mas não com os mais. É um caso exemplar apenas. Colocou, porém, de imediato os pontos nos is e mandou a todos a mensagem de que ali ninguém mais poderia abusar, fazer pouco doutrem ou desprezar o trabalho, menos ainda desrespeitar, agredir ou violar direitos de alguém, que era logo encostado à parede.

 

-...É crucial, é. Na primeira aula é que o professor se impõe ou não: isto condiciona, no mínimo, metade do ano. A disciplina tem de ser garantida logo à partida ou provavelmente já o não será nunca mais. E não é na segunda ou terceira, é na primeira hora, logo. Agora a regra de oiro é que o educador tem de utilizar a força necessária e suficiente para atingi-la. Nem menos, nem mais. Ora, como a Feliciana me confidenciou, isto depende do tipo de alunos que lhe aparecem diante. Ali caiu-lhe o TóCego a armar-se em galarós, teve de ser abatido. Na turma de anos atrás havia apenas miúdos mais ou menos instáveis, não requereu nenhuma atitude tão drástica. Teve apenas de calá-los quando se distraíam com o do lado, ou de sentá-los quando passarinhavam pela sala. Fora desgastante porque perdeu horas nesta insistência, demorara uns dias a levá-los a interiorizarem como deveriam comportar-se, mas no geral fora uma entrada mais calma, embora intransigente com os comportamentos que inviabilizariam o trabalho a sério pelo ano fora.

 

-...Ó pá, eu fui tão vítima como tu das reguadas, ponteiradas e bofetões durante a Escola Primária, mas daí não vou concluir pela abolição linear deles e cair na asneira do extremo oposto. O recurso à força física por norma e como primeira medida, é mau e anti-pedagógico, em qualquer âmbito. Utilizá-lo como estímulo e castigo na aprendizagem, é pervertê-la, tornando-a num campo de vivências negativas, em lugar do cultivo de descobertas, de práticas e de valores. Agora, concluir daqui pela proibição da legítima defesa como do dever de protecção às vítimas de violência por parte doutrem, bem como impedir a utilização da força como derradeira medida para morigerar as relações humanas e o respeito da hierarquia e da autoridade, quando o mais falha, mormente na conjuntura de flagrante lesão deles, é, no mínimo, uma estupidez. Não é mais que o reflexo irracional de quem foi traumatizado e ainda não curou o trauma. Ora, vocês têm tomado medidas que se têm pautado por isto e vão, em resultado, traumatizar o País, gerando eventos de sinal contrário tanto ou mais lesivos que os anteriores. Agora as vítimas são os educadores, os auxiliares e a comunidade escolar inteira, por consequência.

 

-...Anti-pedagógico?! Essa agora! Então como é que Anton Makarenko, um dos maiores pedagogos do mundo, dominou o chefe da quadrilha da segunda turma que lhe entregaram e o colocou nos carris para vir a ser o engenheiro que deveio, de facto, no futuro, senão batendo-se ao murro com ele, durante quase meia hora, até o estender ao comprido no chão? Isto foi anti-pedagógico? Então pedagógico o que era? Deixá-lo continuar quadrilheiro, o resto da vida a pular de prisão em prisão? Abre os olhos, pá, e acaba com preconceitos ideológicos que apenas encobrem superficialidades e miopias idiotas. Ele até foi impecavelmentem pedagogo: aguentou um mês inteiro com insistências, conversas, punições simbólicas, todas ineficazes (horários impostos, horas de clausura com saída proibida, exigência de tarefas permanentemente incumpridas, obrigá-lo a suportar os efeitos dos próprios comportamentos...). Olha, o povo diz: pão numa mão, pau na outra. Compreende permanentemente muito mais do que vocês, os pretensos peritos do Ministério. Aliás, é apenas uma questão de bom senso. É apenas ter a medida certa e correctamente graduada ao aplicá-la.

 

-...Desviou-nos, tens razão, isto desviou-nos da professora Feliciana. Como é que não acaba numa ditadura o ano inteiro dentro da sala de aula? Olha, aqui é que os melhores educadores andam a fabricar com eles, de facto, um mundo novo em gérmen. Repara que, no primeiro dia, ela manteve aquela cara de pau de que te falei. Mas houve uma transição subtil, muito gradual, a ponto de eu nem quase ter dado por ela. Durante muito tempo a professora não se dirigiu nunca ao Tó Cego, individualmente, mantendo-o, entretanto, permanentemente debaixo de olho. A vista andava-lhe constantemente a circular, mas parava, em norma, na zona dele e a palavra dirigia-a ou pedia resposta mais vezes aos que lhe ficavam em redor que aos outros. Era quase um cerco disfarçado, tão espontâneo que nem me pareceu que ela dava conta. Afinal, era intencional, como mais tarde confirmou, quando falámos. O envolvimento veio a culminar num breve resumo das várias informações por que tinham perpassado: o programa, os livros, os cadernos, a maneira de trabalhar, de se tratarem, os horários, a organização das unidades, as regras a respeitar em aula, nos recreios e nos territórios da escola... E logo comentou: “Já aprendemos hoje muita coisa. Nunca esperei. Todos sabemos doravante o que vamos fazer, de que maneira nos organizamos, como nos devemos comportar uns com os outros. Como primeira aula isto foi óptimo. A turma está de parabéns. Por mim, estou a gostar mesmo de trabalhar convosco. Não estão a gostar?” E eles, meio a medo: “Sim... Estamos...” Continuou a Feliciana: “Olhem que eu já nem acreditava. Todos acabaram a comportar-se muito bem, há um esforço colectivo para consegui-lo e então podemos mesmo aprender mais e melhor uma infinidade de coisas interessantes. Nunca imaginei o Tó Cego a colaborar tanto e a gostar mesmo de tudo o que fomos combinando. Surpreendeu-me, é verdade. Gostaste mesmo desta aula, conta lá!...” E foi a primeira vez que se lhe dirigiu individualmente. O rapaz gaguejou, um bocado confuso, mas concordou.

 

-...Exactamente, ela, com este remate, transitou insensivelmente da disciplina imposta para a disciplina consentida. É um apelo notório à convivência mútua, a se coligarem com ela para gozarem melhor a aventura onde se envolveriam todos. Já não há duas barricadas, apenas uma, atrás da qual luta tanto a Feliciana como os alunos.

 

-...Ora vês? É rigorosamente aqui que divergem a disciplina ditatorial da democrática. Aquela fixa-se definitivamente no primeiro degrau: impõe, sem apelo nem agravo. É o posso, quero e mando de todos os autocratas, da família patriarcal aos fascismos, nazismos, comunismos... A postura pedagógica transita, logo que encontra condições maduras, dali para o segundo patamar: o consentimento do educando permite a este interiorizar regras e comportamentos, de modo a visar, a prazo, devir auto-disciplinado e já não um mero eco da voz do dono, uma sombra projectada de quem manda.

 

-...Não, não pára ali. Queres ver? Uma semana depois, quando lá voltei por causa da aluna muda, olha, o TóCego já era o braço direito da Feliciana: ele é que ia ao giz, lhe apagava o quadro, distribuía materiais pelos colegas, levava recados à Directora ou às outras salas... Aliás, a turma inteira já trabalhava em colmeia e sugeriam trocas de membros, escolhiam porta-vozes, secretários, capitães de equipa e assim por diante. Já rodava tudo em pleno. Quando lhe referi este particular, a Feliciana caracterizou o itinerário muito rigorosamente: “Então, impor ordem e respeito é a condição para verificarem como aquilo é compensador e, a partir daí, para poderem todos comparticipar responsavelmente, com eficácia. Quanto mais depressa aqui chegarmos, melhor. Entramos na romaria mais cedo.”

 

-...É como vês. A disciplina trepou de imposta a consentida, para depois atingir a comparticipada. Cada vez ficamos mais distantes do modelo ditatorial.

 

-...O derradeiro patamar veio depois, já muito no termo do período, quase no Natal. A Feliciana andava mesmo apostada em pôr a muda a falar, a ler e a escrever. Tínhamos de conferenciar amiúde, revendo em pormenor estratégias e respostas, cambiantes de comportamentos cada vez mais finos e apurados. Dentro da sala era inviável, ali apenas poderia eu observar mas, com o treino, isto deviera pouco pertinente, o que deveras importava eram mais e mais apuramentos de precisão muito subtis no relacionamento e na estimulação por parte da Feliciana à miúda. Então dava-nos jeito evadir-nos da sala para analisar hipóteses, a prever pequeninas sequelas desejáveis. Aí a professora, num típico jogo de faz-de-conta, transpôs um último degrau. Chamou o melhor aluno e pô-lo a fazer o papel dela numa aula de revisões. Concomitantemente, colocou o Tó Cego a zelar pela disciplina: teria de avisar quem se portava mal para entrar na linha, senão tomava nota para depois a informar, quando ela retornasse. Duvidei da eficácia, mas ela estava muito segura. Tinha rematado, antes de sairmos: “As prendas de Natal são apenas para os que se comportem bem, já sabem. Vamos lá a ver se todos as irão conseguir. Quer-me parecer, se todos se ajudarem uns aos outros para ninguém se distrair, que talvez tenhamos uma festa com a turma inteira. Muito atentos então, está bem? Voltamos daqui a bocado.” E, olha, funcionou lindamente. O miúdo imitou-a etapa a etapa, numa representação de mestre, o antigo valdevinos ao lado, vigilante e cuidadoso. Ela, claro, ficava toda vaidosa com estes pequenos diabretes, como lhes chamava. Em três meses levara-os já até ali, repara bem.

 

-...O itinerário completo? São quatro degraus: disciplina imposta, à partida, sempre; depois, disciplina consentida; em terceiro lugar, disciplina comparticipada; finalmente, disciplina partilhada, em que o poder e a autoridade já são colocados nas mãos deles, para os gerirem à medida do que forem podendo. Nesta idade, é como um jogo didáctico, fazem de conta que são o professor. Mas eu encontrei pedagogos que levam isto a cabo com adolescentes e jovens e então é mesmo a sério, estes preparam e dão aulas deveras, com o docente em postura supletiva, para cobrir eventuais falhas, a garantir a segurança e a qualidade das unidades. Nos destas idades é, aliás, um desafio apaixonante.

 

-...Se é constantemente linear? Não, há avanços e recuos. Quando um aluno pisa o risco, volta tudo ao ponto de partida, o professor impõe-se de novo, há castigos, levantam-lhe um processo... Às vezes as turmas são tão difíceis e os docentes tão inexperientes ou com tão pouca autoridade que o ano inteiro se têm de manter todos no degrau de partida, nunca aparecem condições reais para ir mais longe. Há um bocado de tudo...

 

-...Ora aí tens: isto oferta ao País, aos progenitores, uma alternativa clara e muito eficaz para o padrão tradicional de disciplinar educativamente. Tanto o poder patriarcal do pai, a impor-se, à partida, arbitrariamente no lar, como o político, policial ou administrativo, autoritário, herdado do antigo regime, ultrapassá-los-emos beneficamente quando lograrmos generalizar estoutra modalidade dinâmica de quatro patamares de aprofundamento, a operarem numa dialéctica mútua com o estádio de interiorização dos intervenientes em concreto. Aí teremos outra cultura, outro tipo de País e de civilização. Os melhores pedagogos andam a semeá-lo, vamos a ver se a seara amadura ou se o velho gorgulho a mata.

 

-...Ena! É já de madrugada! Isto hoje é que foi, hein? Bom, até para a semana. Vamos ver se arranjamos um cheirinho de Natal. Adeus. Até lá...

 

 

 

 

 

 

 

 

Mezinha 6

 

 

- Olá, entra. Hoje vens muito à fresca, olha que o Verão de S. Martinho já se foi há muito... É verdade, o tempo voltou a aquecer, isto flutua cada vez mais.

 

-...Hoje? O aperitivo, só com talher, não lhe podes tocar e não é doce. Adivinhas? Não? Então?! Queijo de Serpa afogado no melhor azeite do País. E este, sabes qual é?... Também é muito bom, mas eu prefiro outro, o de Moura. Imagina que encontrei um professor a regalar-se duma maneira insólita! Antes duma salada de legumes, despejava no fundo do prato raso uma cobertura de azeite e depois ia demolhando nele bocadinhos de pão alentejano e petiscava-os, deliciado. Sem mais acompanhamento, é verdade! Dá para acreditar? Mas eu vi-o. Adivinha só que paladar não tem o produto!

 

-...Claro que me preveni com um belo pão alentejano. E veio hoje mesmo de lá, tenho aí no Centro Comercial uma padaria cujo dono é da região, pelo que faz questão de fornecer-se na origem. De manhãzinha aquilo ainda estava quente, quando o comprei.

 

-...Como vamos regar? A mim está-me a apetecer o menu popular que melhor liga ao queijo de Serpa, no meu paladar: um tinto Terras d'El-Rei, uma boa reserva. Experimentas, a ver como te cai?

 

-...Assim é que é falar: é hora de ir à descoberta de novos mundos. Vamos por momentos voltar a ser aqueles púberes, ainda mal escapados da infância, que se atreviam, a corta-mato, medindo o sol e as sombras, a ir em busca dos povoados escondidos por encostas recônditas, a coberto dos pinheirais. Recordas-te do frenesim daquelas aventuras? E nunca nos perdemos, é curioso!

 

-...É verdade, a puberdade agora aventura-se a descobertas estranhas e perigosas. Isto de cada vez termos mais precocidade nos casos de mães desta faixa etária dá que meditar... É bom que tenha estabilizado, em lugar de aumentar, o número de maternidades nas de menos de vinte anos solteiras, é um sinal de alguma maturidade comunitária, de solidariedade colectiva, de acessibilidade à informação e à cultura de faixas demográficas até agora postergadas. Mas isto é tudo muito instável, amanhã já poderá resultar alterado por inteiro, em rumos diferentes.

 

-...Panaceias, não, não tenho e não existem de todo. Mas mezinhas, mezinhas e muito eficazes, há-as. Os grandes educadores há muito lá chegaram. É pena serem poucos, no cômputo geral, mas enfim... Qualquer fermento é fatalmente pequeno, não é?

 

-...Queres exemplos? Vem mesmo a propósito um pormenor do meu trabalho nas últimas semanas. Não ignoras que temos uma avença na policlínica com um sindicato de quadros. Felizmente para eles, não me dão muito trabalho a mim, ao contrário dos professores que em chusma vêm cair na psiquiatria. Vou tendo, porém, ocasionais clientes, mormente familiares daqueles técnicos. Ora, a minha direcção entendeu pôr-me este ano a rever, com os dirigentes sindicais, o quadro da cooperação mútua. Tenho tido algumas reuniões regulares, nas últimas semanas, para reformularmos o contrato com que lhes prestamos os atendimentos. O elemento que eles destacaram para tal fim tem uma memória exemplar dos tempos de estudante, enquanto púbere, num então Liceu dos Olivais. Foi uma época de grande poética para ele nas aulas de História, com um professor que ele cognomina de génio. “Aquilo entrava mesmo sem a gente querer, era impressionante! Foram as melhores notas que tive e marcou-me de vez. Se tirei um curso superior, no fundo, a ele o devo: aquele docente é que me entusiasmou pelo estudo e desde aí nunca mais parei. Olhe que eu chorei quando me informaram que tinha morrido de cancro, há pouco tempo. Não me era nada, mas pronto, aquele foi para mim um segundo pai, pode crer.”

 

-...Evidentemente que tratei de tirar todos os nabos da púcara. Não conheci aquele pedagogo mas tenho vindo a verificar a qualidade enorme dos frutos que deu naquele indivíduo. Imaginas porque é que ele afirma que as aprendizagens entravam sem eles darem por ela?

 

-...Olha, o Eng.º Meneses (é o nome do homem) relatou-me uma aula que recorda com muito pormenor porque nela foi ele que brilhou. Estava inspirado naquele dia, relembra. Discutiam a expansão ultramarina portuguesa e o papel da conquista de Ceuta. Perguntava o professor: “Vocês sabem o que é a desertificação?” E logo vários alunos: “Terras férteis que se tornam improdutivas. Dizem que o deserto do Saara anda a aumentar 10Kms por ano os limites dele. Até há quem diga que o Alentejo e o Algarve, se não nos pomos a pau, ainda acabarão como prolongamentos dele por aqui fora...” Tornava o docente: “Correcto. É o que ouvimos na televisão e na rádio e lemos pelos jornais. Já agora, qual é o produto comestível mais produzido no Alentejo? “ Responde um dos estudantes: “ A cortiça.” E o Meneses, ao lado dele: “Ó pá, tu comes cortiça?!” Riso geral na turma. O outro emenda: “Comestível? Não é o trigo, não é o celeiro do País?” E o mestre: “Exactamente. Ora, se o deserto tem vindo a avançar, em 1415 onde se cultivaria mais cereal, no Alentejo ou em Marrocos?” Outra vez em coro, a turma: “Em Marrocos.” Nova pergunta dele: ”Havia ou não, então, alguma vantagem económica evidente na conquista de Ceuta?” Logo de vários lados concluíram: “Pois claro! Um celeiro ainda maior. Já estamos a compreender...” Retomava ele: “E havia muitas outras riquezas, por exemplo o minério. Mas agora reparem. Nós tínhamos expulsado os moiros, corridos em fuga até Marrocos. Quando os nossos barcos se aventuravam, de então para diante, até ao alcance deles, que é que a moirama lhes fazia?“ O Meneses retrucou: ”Vingavam-se, pela certa. Atacavam-nos, roubavam, matavam e escravizavam, não era?” Torna o professor: “Evidentemente. Mas então ficamos com um grave problema: se queremos expandir-nos para novas terras, com eles logo ali, no princípio da África, à espreita, a atacar as expedições, isto pode derivar num suicídio. Que fazer para resolver o caso?“ Saltaram vários: “Dar cabo deles! Conquistar Ceuta, é isso!...” E o mestre, novamente: “Mas porquê Ceuta?” Aí foi o Meneses, brilhante: ”Ora, certamente porque era o lugar onde havia mais barcos dos moiros, não era?” O docente confirma: “Muito bem, exactamente.. É a razão justificativa que directamente liga o empreendimento à expansão. Aumentou a segurança da rota marítima, combatendo a pirataria que ali se havia instalado há gerações. Mas acham que isto deu cabo dos corsários todos?” Vários acudiram: “Não ! Então, se era apenas uma cidade... Devia haver outras menos importantes...” E o professor, meditando: “Pois é. Vamos lá a reflectir. Se tivessem de enviar navegantes à descoberta, qual seria mais prudente? Navegar com a costa à vista, como era de hábito naquela época, correndo o risco de ser também avistado pelos piratas em terra, ou arriscar-se ao mar alto, com medo de perder-se, mas furtando-se aos eventuais flibusteiros?” Aí ficou tudo na dúvida, a pesar prós e contras. Era difícil optar, qualquer das alternativas podia desembocar na morte. Então o púbere Meneses teve a iluminação. “Espere” - quase gritou - “era encontrar terra no alto mar, isto é que era a saída, não é? Agora compreendo porque é que principiaram pelo descobrimento da Madeira e dos Açores e pela ocupação deles. E mais, é por isto que o retorno das caravelas vinha por lá e não pela costa de África acima. Era um desvio para fugir aos piratas. Boa!” Teve o elogio rasgado do professor, a admiração manifesta da turma, muitas palmadas nas costas. Foi o herói do dia. Ainda hoje o reproduz, com este rigor e vivacidade toda. Não o esquecerá a vida inteira, aposto.

 

-...Exactamente, é o método de inquérito. Aqui, numa modalidade adequada milimetricamente à puberdade.

 

-...Então não vês? O grande desafio da faixa etária dos onze aos quinze anos é que atinjam o pensamento formal, a falta desta função intelectual é que leva ao pico do insucesso escolar e da aprendizagem naquele leque de idades, aqui como em todos os países onde haja escolas. É um cancro crónico, os reprovados trepam, no mínimo, para o dobro de antes, durante o período. Até hoje, ninguém deu conta de como resolvê-lo. Parece que temos ali a resposta.

 

-...O problema? Olha, talvez seja o maior que os educadores enfrentam: os pais e as famílias em geral, em Portugal inteiro, não atingiram aquele nível intelectual, raciocinam e comunicam no plano do pensamento concreto, o característico do fim da terceira infância. Ora, sem estímulos adequados e feitos a tempo, nenhuma função da razão se desenvolve nem estabiliza. Com o pensamento formal é o mesmo. E, se as famílias e a comunidade não logram operá-lo, não ofertam um bom caldo de cultura porque o não dominam, então apenas a escola e os professores poderão, supletivamente, viabilizá-lo, pô-lo ao alcance dos alunos.

 

-...Ora pois, a questão é mesmo descobrir se algum método o fará e com que estratégias. E é o que podemos verificar no testemunho do Eng. Meneses. O de inquérito vemo-lo ali, a par e passo, para elevá-los até ao píncaro do pensamento formal. Primeiro, o professor partiu dum dado concreto, no caso a conquista de Ceuta, para colocar questões a que os alunos foram chamados a responder. O itinerário típico: a partir do facto para o conceito, do concreto para o abstracto, do prático para o teórico. E levar o educando a dar o passo, a descobrir por ele, a buscar a iluminação interior, a faísca da inspiração. O educador apenas identifica o ponto de partida concreto e faz a pergunta. O aluno é que terá de encontrar a resposta, reflectindo sobre a informação inicial. Aqui o professor não deu matérias, os púberes é que as redescobriram, reinventaram. Eles é que, no fundo, refizeram o programa inteiro. Foi toda uma caminhada interior de apuramento da intuição, da lógica, do raciocínio, bem como da inspiração, para serem capazes de vislumbrar, de descobrir por eles próprios.

 

-...Ah, deste pela diferença? Pois é, quando eu frequentei aulas destas e depois lemos o que Postman referia como típico do método de inquérito, tudo parava no questionamento. Era apenas treinar os alunos a colocar interrogações encadeadas, perante qualquer dado concreto da experiência ou do saber já constituído. Isto faz sentido para universitários, já na juventude ou adultez, apenas habituados ou condicionados ao pensamento convergente, a reproduzir acríticos o saber consagrado. Com os púberes é outra coisa, o que importa é o treino das respostas, é inventar hipóteses de explicação – isto é que os levará a desenvolver e dominar de vez o pensamento formal, o característico da faixa etária. O que Postman praticava adequava-se a outras idades, muito mais para a frente. Aplicado aqui não resultaria em nada, até porque a maturidade no pendsamento e na vida ainda vêm longe para quem entra na puberdade, apenas a um degrau da infância recém-abandonada.

 

-...É a primeira mezinha, mas repara: se o País inteiro a aplicar a toda a faixa pubertária, a geração vindoira irá ser de indivíduos aptos a operar com o pensamento formal, com o poder de abstrair e de criar árvores de conceitos, ao contrário dos actuais 85% de adultos que apenas compreendem e reflectem a nível do pensamento concreto. Já viste o salto qualitativo? Todos poderiam descodificar sistemas e modelos conceptuais, poderiam argumentar e comunicar libertos do aprisionamento ao imediato factual, lograriam descobrir explicações encobertas, congeminar alternativas e vias a contento para os apertos da vida, com um pensamento extraordinariamente poderoso, envolvente, avassalador. Era outro País, vê lá bem...

 

-...Não, não, a mezinha não é apenas isto, o método de inquérito: transformar o programa nos dados concretos de partida mais as questões que se lhes levantam, induzindo os educandos à descoberta da resposta, até reconstituírem o programa inteiro. Há mais...

 

-...Tá bem, identificámos ali uma estratégia: o movimento do concreto para o abstracto em que o método se deve concretizar aqui, na faixa dos púberes.

 

-...Claro que tenho outras medidas. A eficácia depende do rigor, é nos pormenores que perdemos ou ganhamos as apostas pedagógicas.

 

-...Queres ver? O Eng. Meneses conta que, dois anos antes, com aquele mesmo pedagogo, era tudo muito mais complicado, a turma emperrava constantemente. Tentou-me reconstituir o encadeamento duma aula relativa às conquistas de D. Afonso Henriques. “Porque é que que ele não ficou lá pelo Condado Portucalense e veio recuperando terras por aqui abaixo, Santarém, Lisboa...?” - e o professor apontava as localidades no mapa. Ora, ficou tudo calado, a olhar para ele. Ninguém vislumbrava nada. Insistia o docente: “Reparem bem aqui na fronteira, por exemplo na região do Mondego” - e voltava a apontar a zona, a ver se eles visualizavam. - “Que ocorria entre povoados cristãos e moiros dum lado e do outro? Imaginem que eram vocês que ali viviam. Como é que seria?” E a turma, com cara de caso, sem ninguém descortinar fresta de luz. Pegava o mestre por outra ponta da meada: “Então digam lá: estes povoados são amigos ou são inimigos uns dos outros?” Finalmente um deles, muito ingénuo, acreditando que era o que o professor queria ouvir, aventou a medo: “São amigos, todos devemos ser amigos...” Com uma paciência inesgotável, contra-argumentou o pedagogo:”Isto não tem a ver com o que devemos ou não ser, mas com o que naquele tempo ocorria nestas terras. Reparem bem, eles estavam ou não em guerra?” Finalmente, a turma em coro: “Sim, estavam.” Voltava ele: “Nesse caso, que é que cada um faria a estas terras vizinhas da fronteira, ali mesmo à mão?” Até que enfim alguém entendeu: “Guerrear, matavam-nos todos!” E o questionamento continuava, aflitivo, a passo de lesma. O pior é que já ninguém recordava de que é que estavam a tratar. E lá tornava o professor ao ponto de partida: “D. Afonso Henriques desencadeou a conquista do terrirório de Portugal para sul. Estamos a tentar entender porque o terá feito, sem se contentar com o território do Condado Portucalense. Agora já descobrimos que...” E era infatigavelmente esta volta, a retomar o fio da meada, uma e outra vez.

 

-...Os relatos do Eng. Meneses tornam claro que adquirir a operatividade do intelecto formal é uma taarefa lenta, gradual, muito morosa, mesmo quando bem estimulada, quanto mais quando a generalidade dos educandos nem sequer tem no meio ambiente nada que lhe permita desenvolvê-la! De facto demora uns cinco anos, quando tudo corre bem. Como entre nós falta o contexto cultural-comunitário, quantos mais demorará? Olha, a verdade é que a generalidade dos adultos portugueses não chega ali, nem mesmo imagina o que tal poderá ser.

 

-...Que é que decorre então disto? Aquilo que apuramos ao vivo nesta conversa na turma que ele relatou. Em primeiro lugar, vemos o cuidado do professor em graduar o grau de abstracção da pergunta, aproximando-a, degrau a degrau, do dado concreto, até obter uma resposta satisfatória, que já tenha algum sentido.

 

-...Esta é a primeira dificuldade o método de inquérito nesta franja etária: os alunos, à partida, ainda não têm poder de abstrair, de se desligar do dado concreto de referência, de o olharem de fora, dum ângulo particulaar. É com arte e sensibilidade que o pedagogo terá de agir, como ali verificamos, aproximando a pergunta tanto da mera reprodução dos factos da experiência que em alguém dispare a luz e dele brote uma resposta utilizável.

 

-...Não, não, há mais! Não vês que aquele pedagogo voltava ao ponto de partida e retomava o questionamento a partir daí? É o segundo apuramento: um movimento regular cíclico do concreto para o abstracto, do dado de referência para a interpretação com retorno, logo após, ao concreto. No princípio, quando os miúdos estão na entrada da puberdade, já tive oportunidade de reparar que isto dura à roda de cinco minutos. A partir daqui, perdem-se, não se lembram do que estão falando. Tudo tem de voltar ao ponto de partida, juntando-lhe o que entretanto já descortinaram. E retomam de novo o encadeamento. Aliás, esta maneira de operar tende a durar uns dois anos assim, não se revelando progressão notória durante a fase da primeira puberdade, tendencialmente entre os onze e os treze anos, quando as angústias predominam e a instabilidade emotiva e comportamental dão cabo das resistências de todos os professores que têm de morigeerar tais educandos.

 

-...Sim, depois é diferente. Basta comparar os dois relatos do Eng. Meneses para entendermos que o mestre que o marcou foi alterando o ciclo do concreto ao abstracto, dilatando o tempo deste segundo momento à medida que os alunos foram adquirindo o poder de reflectir concatenadamente, a inteligência formal. Na primeira evocação dele não consta nenhuma retomada do ponto de partida: este subjaz presente na mente de todos, ninguém o ignora em momento algum. Aliás, perguntei-lhe de propósito se isto ocorrera: “Não, falámos pelo menos duas aulas daquilo, para quê relembrá-lo? Ninguém tinha dúvidas do que estávamos tratando...”

 

-...Ah, olha que estes pormenores é que são decisivos: a pedagogia resulta ou falha sempre, ao fim, pelos pequenos nadas. É por não entenderem isto que os teus técnicos falharão irremediavelmente sempre. Esgotam-se em generalidades. Ora, delas nada deriva que tenha relevo, no acto final: condicionam-no, mas este releva da intuição e da arte de atender ao pormenor decisivo.

 

-...Pesa tanto que há tempos fui procurado por uma professora de Sesimbra porque tinha ido a um colóquio meu, ficou entusiasmada com isto, pô-lo em prática e naquele momento, dois anos após, os alunos reagiam mal, acusavam-na de os infantilizar, de os tratar mal. E tão agressivo tudo ia que havia já queixas na gestão...

 

-...Talvez não resulte em todos os casos?! Olha, é o argumento permanente de quem nunca pretende fazer nada, sabias? Não é nada disso. Falei com ela, analisámos a conjuntura, alertei-a para a derradeira afinação, a de ir alargando o período de questionamento até recolher sinais claros de que os alunos já não evocavam o dado concreto de partida, já se encontravam perdidos. Não deveria voltar atrás enquanto isto não ocorresse, nem para resumir o que houvessem redescoberto.

 

-...Claro, ficou tudo pacificado num instante. Quinze dias depois já haviam reencontrado todos o gosto de trabalhar em conjunto.

 

-...Qual é a mezinha, em resumo? É simples. Em primeiro lugar, utilizar o método de inquérito, transformando o programa nas questões que levaram às descobertas que dele constam e incitando os alunos a redescobrirem-nas. É a única maneira de termos a vindoira geração com a inteligência formal como uma capacidade adquirida e estabilizada em cada indivíduo, disponível nele para utilizá-la a qualquer momento e em qualquer domínio.

 

-...Os ingredientes críticos? Então, o primeiro é o movimento pendular do concreto para o abstracto, com retorno ao ponto de partida. O segundo, a arte de graduar o nível de abstracção do questionamento, de modo a i-lo adequando à capacidade dos alunos, à faísca de iluminação que neles for despertando. O terceiro é ir alargando o período de questionamento, sem retoma do ponto de partida, à medida que o pensamento formal se for desenvolvendo nos educandos.

 

-...Quando é que podemos dar por adquirida esta função? Perguntas bem. Reparei num comportamento sintomático, nalgumas aulas videogravadas que a professora de Sesimbra me entregou. Ela ia perguntando e reperguntando, encadeando novas questões às respostas que iam sendo dadas. De vez em quando um aluno ficava perdido, perguntava ao colega do lado, perplexo, olhava a uma banda e a outra, de testa franzida, e, de repente, soltava um abafado “Ah!”, ao mesmo tempo que batia com um dedo na têmpora. Então fixava-se novamente na docente e víamos que acompanhava outra vez o rumo do debate.

 

-...Exactamente, sem a professora lhe ter dado ajuda nenhuma. O aluno deu a volta inteira por dentro dele próprio: foi capaz de retornar ao dado concreto, evocar o itinerário já feito, de modo a recuperar o fio da meada e retomarr o sentido do questionamento, centrando-se outra vez nele. Aqui já podemos dar a faculdade por adquirida, o educando trepa os degraus todos por ele próprio, fechando o circuito.

 

-...As cadeiras práticas e aplicadas? Podem, podem perfeitamente aplicá-lo, a maneira é que difere um pouco. Sabes onde pude vê-lo ao vivo? Em Reguengos de Monsaraz, imagina lá! Uma professora de Educação Visual fez questão de me mostrar o “estúdio de arte” dela. Fiquei de olhos arregalados, aquilo parecia mesmo uma galeria de exposições, com os alunos todos ali aplicados com um entusiasmo que nem te digo! Sabes como ela tinha o currículo organizado? Num ficheiro de tarefas, graduado por níveis de dificuldade. O educando principiava pelo mais rudimentar, ela ia verificando as actividades, corrigindo, alertando, até o trabalho ficar a contento. Então, o estudante saltava para o grau posterior e assim encadeadamente.

 

-...Onde anda o pensamento formal? Repara, para dar conta da freima, o aluno tem de representar mentalmente o modelo que lhe é pedido, bem como toda a cadeia das operações para executá-lo e as modalidades de o lograr a contento, passo a passo. Tudo isto requer cada vez maior poder de abstrair e de inventar estruturas e sequencialidades, a fim de as levar posteriormente à prática. Uma gradualidade bem aferida e uma avaliação permanente da formadora conduzem ao mesmo desenvolvimnento dos casos de que antes falámos.

 

-...Na Matemática e nas Línguas, tens razão. Mas já abordámos isto. Estas operam, nas melhores experiências, com os métodos de animação de grupos: ou pela análise de casos, ou pela dramatização, ou pelo sociodrama, ou pelo jogo didáctico. Ora, na dramatização e no sociodrama, o aluno incarna papéis, imagina conjunturas, recria eventos e atitudes, complica hipóteses, enriquece condicionamentos... É todo um jogo de modelos interiorizados e refinados, cada vez mais complexos, que treina e aprofunda. Nisto, por conseguinte, vai desenvolver as mesmas competências e capacidades que com o método de inquérito. Nestas matérias tem de ser desta maneira.

 

-...O problema dos projectos pedagógicos nesta metodologia? Olha, nas disciplinas práticas, em Reguengos, era apenas aplicar as técnicas treinadas a criar obras que eram mesmo obras de arte, em concreto, pelo que lá me foi dado verificar. Ainda me recordo dum vitral maravilhoso inteiramente gizado pelos educandos e que era uma lindeza na concepção e no acabamento. Quanto às outras, qualquer dramatização que eles inventem é um projecto. Vi uma, de Inglês, na Lourinhã, representada apenas em aula, em que os estudantes simularam uma conversa na bicha para o balcão de atendimento dos subsídios da Comunidade Europeia à agricultura. Estava lá tudo: a informação, o desdobramento de personagens e contextos de vida, a inventividade, o domínio da linguagem...

 

-...Nas disciplinas teóricas? Pois, aí o desafio é maior e mais difícil de ultrapassar. Mas atenção a um pormenor: todo o método de inquérito radica por ele próprio na agonística, é inteiramente constituído por desafios consecutivos, constantes das perguntas. Mas vamos aos projectos pedagógicos. O Eng. Meneses mostrou-me um caderno que conserva religiosamente daqueles tempos de púbere. Imaginas o que é? Olha, é o programa inteiro que deram com aquele pedagogo que o marcou.

 

-...Qual sumários, qual quê! É, unidade a unidade, tudo quanto redescobriram naquelas aulas vividas esfusiantemante. Ainda cuidei que era algum diário... Não, era o projecto proposto à turma. Todos os dias cada aluno escrevia, em resumo, a aula que haviam tido. Isto ia sendo corrigido periodicamente pelo professor e, em cada lição, vários liam o texto que traziam, também para ser comentado, corrigido e completado. Ao fim do ano cada qual tinha o respectivo livro das matérias do curso, escrito por ele próprio. O projecto de um aluno vir a ser capaz de rivalizar com os autores dos compêndios por onde estuda, escrevendo um volume como os deles mesmos, é um desafio apaixonante, até por parecer à partida inexequível, utópico. Não é nada, contudo, como ali confirmei. Aquilo é que era o verdadeiro livro de curso daqueles educandos, estás a ver?

 

-...Pois claro, é um modelo perfeitamente transponível para todas as áreas curriculares de incidência teórica. Tem a vantagem de levar ao uso da estratégia do projecto pedagógico sem precisar de suspender nem desviar do método-charneira. Nada impede, porém, que isto ocorra quando alguém entenda animar uma actividade criativa doutro tipo qualquer. O fito é permanentemente obter a maior eficácia formativa e apenas o que a obtiver é que é uma boa escolha em concreto.

 

-...É verdade que não há idade pior que a puberdade para executar projectos pedagógicos. E no primeiro período dela, então nem te conto! É donde me vem a maioria dos professores stressados, a darem aulas no Segundo Ciclo, princípio do Terceiro, com alunos dominantemente entre os onze e os treze anos.

 

-...Mezinha para isto? Claro que tem a ver com a disciplina em aula e com o itinerário dos alunos até aqui, neste aspecto da interiorização de hábitos de respeito mútuo e de normas de sociabilidade. Quanto mais de trás vierem cumpridores convictos, fruindo duma boa dinâmica do grupo-turma, menos instáveis, menos agressivos, mais cordatos e atentos logram conviver e trabalhar. Já não esgotam tão rapidamente o professor.

 

-...É inultrapassável, nestas idades aumenta a indisciplina, a entrada na puberdade é a experiência mais perturbante de todas as transições da vida, dado que a explosão da sexualidade potente e das paixões incontroláveis é instantânea e, portanto, inelutavelmente inesperada. Por mais que haja prevenções e que a criança a aguarde. Quanto a isto não há nada a fazer, é o factor do desenvolvimento e ponto final. Pode ser agravado ou atenuado, mas aniquilado ou iludido, nunca.

 

-...Não, não, há uma mezinha, podes crer. Olha, eu ando a acompanhar um rapaz que entrou em crise a meio do curso superior, filho duma professora Zulmira, aposentada já, mas que fez a carreira inteira numa escola 2,3. Esta tem, quanto a este aspecto, uma experiência exemplar. Conta ela que durante muito tempo preferiu horários apenas de 5.º e 6.º anos, gostava da agitação, da vivacidade daqueles miúdos, muito embora a fatigassem. À medida que foi envelhecendo, acusando a quebra de energias, por auto-defesa então pediu continuidade de turmas, acompanhando os alunos até ao 9.º, durante o período de maior estabilização da puberdade. Confessa, porém, que muitas vezes tinha saudades da instabilidade dos mais pequenos, para ela era um borbulhar de vida em bruto, ainda desorganizada, mas com todas as potencialidades ali presentes, intactas, em estado virgem. Dava-lhe gosto desbravar o terreno, inaugurar vidas novas.

 

-...Que concluo daqui? Então, que, para a saúde emotiva dos meus pacientes e demais professores que correm o maior risco ao laborarem com tal faixa etária, é de particular relevo andarem atentos aos próprios limites e não se deixarem fixar nas idades e turmas piores, entremearem anos de alunos instáveis com outros mais serenados. Clinicamente, isto pode ser crucial. Virá diminuir-me a clientela, mas ainda bem, porque haverá mais equilíbrio e bem-estar. Neste aspecto é óptimo que tendam a acabar as escolas com Segundo Ciclo exclusivamente, para integrarem outros anos. Andámos a aniquilar docentes, mormente nas grandes cidades, enquanto predominaram as daqueloutro tipo.

 

-...Tens razão, isto é uma postura clínica, deixa intacto o problema pedagógico. Mas também para este a Zulmira tem uma vivência muito curiosa. Refere ela que durante os primeiros anos andara um bocado baralhada porque pegava numa turma de 5.º ano, impunha a ordem sem dificuldade, bastava erguer um pouco a voz ou apresentar, ameaçadora, a robustez do próprio físico – é uma mulheraça enorme que só à vista já mete respeito. “Os miúdos, pequenitos ainda” - conta ela - “encolhiam-se e tudo retomava a normalidade. Se era preciso arrastar um pelo braço, erguê-lo pelo colarinho ou sentá-lo à força, nunca hesitei. Era assim mesmo e ninguém piava! Eu vinha habituada da Primária a pôr os rebeldes na ordem, sabe...” Onde havia então a perplexidade? “É que, um ano depois, com os mesmos alunos” - continua a Zulmira - “muitas vezes aquilo já não resultava. Dava com uns, outros revoltavam-se, alguns ficavam mesmo zangados comigo, não me queriam falar mais, pediam para mudar de turma, coisas do género...”

 

-...Ora aí tens: estava demasiado habituada à disciplina-padrão do antigo regime, ordem imposta e nada mais. É curioso que na terceira infância, sendo embora um modelo pobre e empobrecedor (apenas tende a criar cidadãos acríticos, meramente para obedecer, como pretendem as ditaduras), não costuma traumatizar as crianças, é acolhido por elas pacificamente, em regra.

 

-...Explicamo-lo porque nesta faixa etária os pequenos recolhem do meio ambiente, da escola e da família os padrões e valores comunitariamente consagrados, como um dogma que interiorizam, convictos do acerto e bondade deles.

 

-...Pois claro, é isto que espatifam no patamar etário posterior: a puberdade põe tudo em causa, também o padrão disciplinar e os valores que carreia.

 

-...Olha, a Zulmira contou-me que houve um dia em que quem entrou quase em estado de choque foi ela. Isto é que lhe abriu os olhos.

 

-...Não tenho muitos pormenores, mas enfim... “A Cristina era um diabrete,” - confidenciou-me ela - “remexida demais, magrinha e com uma linguagem que nem lhe digo! Aquilo era dez graus abaixo da peixeirada, quando se irritava com os colegas, e numa gritaria que até se ouvia ao fim da betesga! Custou-me pô-la na ordem durante o 5.º ano inteiro, mas acabámos por criar uma relação de mútua cumplicidade e ela ficou a adorar-me. Foi uma das poucas que às vezes se enganava e me chamava 'mãe' e confessou-me até que bem gostaria que eu fosse a dela ou, ao menos, a madrinha. Bem, isto foi antes das férias grandes. Quando voltámos, eu notei nela algo diferente, sonhadora, com os olhos no vazio, mas era apenas uma vez por outra, de resto continuava endiabrada como dantes.” Eu anotei-lhe: “Tinha entrado na puberdade entretanto, não é?” Confirmou que sim, mas só mais tarde o viera a descobrir. “É que, repare bem, há um dia” - continuou a Zulmira - “lá para meados de Outubro, em que o raio da miúda se vira para o lado e, numa fúria descontrolada, desata a insultar um colega que naquele momento lhe tinha dado para a irritar, picando-lhe constantemente com um dedo no braço. Foi aquele chorrilho de palavrões que há muito tempo não lhe ouvia. Mandei-a calar uma e outra vez, mas a pequena estava numa histeria completa, sem mais governo. Corri para ela, agarrei-lhe na cabeça e rouquejei-lhe com o meu olhar de fúria: cala-te já! Ao mesmo tempo levantei a mão e punha-lhe a cara num bolo se ela se atrevesse a proferir mais algum palavrão.” Eu comentei, meio a rir: “Claro que ela teria de calar-se, a bem ou a mal, não havia alternativa.”

 

-...O que houve de novo? A pequenita quebrou e desfez-se em lágrimas, inconsolável, numa postura de completo desespero, coisa que jamais ocorrera anteriormente. “Aquilo foi tão inesperado,” - contou-me a Zulmira - “tão alheio ao que eram os hábitos, a maneira de ser da Cristina, que eu fiquei perturbada. É que não imagina, ela chorou sem parar, com soluços tão fundos que mexeram comigo, durante uma hora inteira. A própria turma ficou toda deprimida. Acabei por falar com ela no intervalo e olhe, faltei a aula inteira seguinte. Mas foi por uma boa causa. Primeiro, ela não quis abrir-se ali comigo. Depois, ante a minha insistência e preocupação, lá quebrou o escudo, mas chorando em bica tão descontroladamente que não lograva sequer falar, era uma torrente de lágrimas como eu nunca tinha visto em ninguém antes. A rapariga estava mesmo mal e eu sem atinar porquê. Quantas vezes eu já tinha tomado atitudes daquelas sem qualquer sequela negativa! Que era aquilo então?”

 

-...É evidente que ali havia a hipersensibilidade púbere a intervir e a descomandar tudo. Mas atenta no que deveio logo após. A Zulmira continuou: “Quando logrei acalmá-la o bastante para podermos dialogar, a Cristina desconcertou-me inteiramente com esta confissão gemida do mais fundo das entranhas: 'Eu não presto mesmo, eu não presto! Perdoe-me, perdoe-me, eu só queria que a setora gostasse de mim. Eu quero morrer, eu quero morrer... A setora é quem eu mais adoro na vida. Não me interessa mais nada, eu quero morrer, eu quero morrer...' E as lágrimas impediram-na de articular mais palavra. Claro que acabei eu a chorar também. De aflição e de ternura, está a ver? Aquela pequenina ali tão frágil, tão vulnerável, tão carente, tão abandonada! E com aquele coraçãozinho do tamanho do mundo... Chorámos ambas abraçadas.Diga-me lá se um diabrete destes não é mesmo adorável, se não é de uma pessoa perder a cabeça por ela. Claro que daí para diante e até hoje fiquei mesmo madrinha da aluna, inteiramente assumida.”

 

-...Não, a mezinha não é pormo-nos todos a apadrinhar os púberes, embora haja inúmeras Cristinas por aí abandonadas, à espera dum coração terno que as adopte deveras. É a pedra angular de qualquer pedagogia, não é verdade? Quem nos dera que todas encontrassem resposta a contento, mas enfim, um caso é melhor que nada. E vai havendo muitos mais, felizmente... Bem, mas a professora Zulmira conta que dali para diante nunca mais foi a mesma. “Sabe, Snr. Dr., aquilo abriu-me os olhos” - continuou ela. - “Eu tinha de medir bem as minhas atitudes e adequá-las à sensibilidade de cada aluno. Os que se mantinham crianças continuavam a reagir bem às ordens, à imposição, sem requererem mais cuidados. Os espigadotes, não, a puberdade é complicada. Encaravam mal este meu hábito, eu tive de lhes dar a volta doutra maneira: punha-lhes o problema, quando a bagunça perturbava o trabalho, perguntava-lhes que é que havíamos então de fazer, adiantava o que me parecia melhor e rematava com qualquer coisa do género: têm alguma ideia mais adequada? Aguardava uns instantes e apenas então, à falta de alternativa, impunha a ordem. Curioso, nunca obtive deles, em tantos anos, uma sugestão convicta desviante. Era permanentemente o que a mim me parecia conveniente. No fundo, ia dar ao mesmo, na prática, com este rodeio ou sem ele. Mas o interessante é que, com uma abertura de facto irrelevante à intervenção dos educandos, já acalmavam, acolhiam, ficavam novamente cooperantes como quando eram ainda crianças, mais infantis. Isto é estranho, não é? Os púberes são mesmo esquisitos!”

 

-...Foi o que lhe afirmei. A rota pubertária requer mesmo a disponibilidade explícita do modelo inteiro: ir do impor ao consentir do educando, até participar e partilhar da autoridade. Não que, nesta idade, eles logrem ir mais longe que o consentimento, por norma. Ainda estão muito desnorteados e confusos com as novas manifestações que neles constatam, são verdes demais para congeminar alternativas. Acabam repetindo e acatando o que lhes vier do educador, ainda não têm ideias melhores. A diferença crucial, porém, é que têm a porta aberta à frente, para quando a queiram e possam transpor. A Zulmira, no outro modo de agir, deixava essa abertura trancada, não lhes dava campo de manobra. Com aquela modelação, não, apontava-lhes à frente um itinerário viável, embora não de momento. Era quanto bastava para acalmá-los e pô-los a caminho. A caminho na matéria curricular, mas também na auto-disciplina, com apelo ao conteúdo mais rico que neste campo os nossos melhores pedagogos logram viver no terreno. Ela, a Zulmira, também o protagonizou e nunca tinha reparado no alcance imprevisto duma aparentemente tão insignificante modelação da estratégia. Ficou espantada quando lhe mostrei como uma cultura e um mundo novo estavam em gestação, afinal, num gérmen tão minúsculo e vulnerável, num mero pormenor de nada no contexto de toda a relação pedagógica.

 

-...Sim, isto não altera o modelo ideal de disciplina que progride por graus cada vez mais avançados, numa dialéctica permanentemente dinâmica, em reajustamento constante. Mas aumenta um pormenor decisivo: diz-nos qual é o patamar dominante, dentro do conjunto dos quatro, em que tende a radicar a franja etária da puberdade. É que, como a Zulmira, também os melhores educadores de púberes tendem a centrar-se em redor da disciplina consentida, como porta aberta para os desenvolvimentos posteriores, aqui ainda raramente aflorados. Isto é paralelo às melhores práticas dos da faixa anterior, só que estas centravam-se na disciplina imposta, embora aberta. Com os púberes, a tónica é o patamar ulterior, com o apelo explícito para visarem mais longe, logo que a maturidade lho permita.

 

-...Exactamente, esta é a mezinha. Mas tens razão quanto ao facto de tal prática disciplinar resultar muito dificultada por conteúdos programáticos que não sejam apelativos nesta idade. O ideal, neste aspecto, era lograr combinar ambos os vectores. Mas não podemos ignorar, também aqui, que o programa curricular não pode ser congeminado para agradar aos estudantes a que é destinado. A cultura crítica requereu muito suor e sangue ao constituir-se, requer trabalho, canseira, e muita disciplina para algum dia ser dominada. Jamais poderá ser de graça e muito menos uma festa. Posto isto, porém, que temos de relembrar constantemente, nada impede que muita festa ocorra e muito acabemos por lograr gratuitamente. E quanto mais, melhor, uma vez garantida a seriedade, o rigor e a exigência adequados ao saber crítico. Encarar a pedagogia doutro modo era um sado-masoquismo ou, ao invés, uma mera trivialidade superficial e simplista.

 

-...Também há uma mezinha neste domínio, claro que há. E de grande eficácia, por acaso.

 

-...A experiência da professora Zulmira é muito curiosa e bem elucidativa. Nos derradeiros anos de trabalho, ela abordou o programa de Matemática (que era a área dela) através dum projecto anual que englobava as unidades didácticas todas e a turma inteira. Chamou-lhe “A Cidade da Geometria”. Vi uma reportagem fotográfica pormenorizada de momentos da execução e do produto final, uma enorme maquete duma cidade imaginária que ocupava mais de metade duma sala de aula.

 

-...O projecto consistia em construir à escala um povoado, com casas, ruas, jardins, igreja, hospital, bombeiros, esquadra, escolas, quartéis, restaurantes, vivendas, cafés, hotéris e assim por diante. Para elaborarem os modelos, os alunos teriam de dominar os conhecimentos de geometria do programa. Para executá-los iriam aprender e aplicar as unidades de aritmética e todas as operações de cálculo requeridas para se respeitarem as proporções entre os múltiplos elementos a produzir. As dificuldades quanto aos tamanhos relativos seriam transformadas nos problemas que todos teriam de calcular e resolver: áreas, volumes, equações... Enfim, a totalidade dos conteúdos programáticos foi para aqui mobilizada.

 

-...Certo, certo: trabalhar na matemática aplicando-a é logo mais atractivo do que estudá-la a seco. É o efeito dos projectos pedagógicos que mobilizam os sonhos de cada aluno, bem como a agonística, enquanto desafio para atingi-los. Mas não é neste aspecto que bate o ponto desta mezinha que abordámos quanto bastee: é eficaz em todas as idades, acompanha-nos do berço à tumba. Não, ali aflorou outra realidade que tem fundamentalmente a ver com a faixa etária da puberdade.

 

-...Pronto, eu pormenorizo. A Zulmira narrou-mo deste modo: “Os pequenitos agarrei-os logo, ficaram todos entusiasmados, o que eles querem é executar, é aplicar, é agir. Mal pomos o problema, querem imediatamente resolvê-lo para começarem a medir e cortar as cartolinas, a colar, a montar... Enfim, com eles tinha era de meter travões para as etapas não se atropelarem umas às outras. Agora, com os mais espigados, o engodo foi diferente. As Marias da Lua ficavam de nariz no ar, os Romeus, de olhar embezerrado no vazio. Tinha lá um casalinho de apaixonados que, então, eram modelares: todas as semanas principiavam um namoro que todas as semanas acabava em briga. Mas isto durou um ano inteiro, eram mesmo persistentes nesta instabilidade. Coitados, acabaram cada qual para seu lado! Como é que eu havia de agarrar este vector inteiro, ainda por cima a aumentar de mês a mês, à medida que os que eram ainda miúdos entravam na puberdade? Olhe que é complicado...”

 

-...Bem, não foi encher os jardins de bancos de namorados, mas olha que a ideia não anda longe. “Uma tarde, estavam eles lá muito derretidos e meio envergonhados num canto,” - explicou-me a Zulmira - “e então eu tive uma ideia. Virei-me para o parzinho e perguntei-lhes: vocês não gostariam que na nossa cidade ideal haja um lugar onde os namorados venham encontrar alguém que os aconselhe? É que namorar é mesmo complicado, também o podemos aprender e então já talvez ninguém sofra tanto. Há equipas de preparação para o casamento, algumas igrejas têm-nas, como também movimentos de casais, e ainda há consultas de psicólogos para ajudar a orientar na vida afectiva e sexual... Não acham que fazia cá falta? Bem, nem lhe digo! Ateei-lhes o fogo, a eles e aos mais daquele leque. O que eles pretendiam era falar de namoros, do amor, da sexualidade, das paixões, dos encontros e desencontros entre os parzinhos, do ciúme, da moral afectiva e sexual, das relações eróticas e assim por diante. Isto era um manancial inesgotável. Foi apenas questão de contextualizá-lo nos espaços, nas construções, nos edifícios da “Cidade da Geometria”, de canalizar tudo para lá. A partir daqui apanhei o fio da meada para meter todos eles ao barulho. Já ninguém ficou mais de fora. Quando se distraíam, eu levantava outro problema ou mais um caso, até dos deles, ligado às paixonetas ou à vida sexual e pronto, tinha-os logo ali caídos como moscas no mel. Uns minutos de conversa, um problema, um local, o que é preciso fazer – e aí vão eles aos cálculos, às resoluções, às aplicações... O casalinho de amorosos desavindos foi permanentemente a minha chave para o subgrupo inteiro. Quando estavam muito derretidos, eu pegava em casos de amor bem logrado, pequenos eventos do dia a dia, uma palavra amistosa, um piropo ternurento, uma prendinha, uma conversa íntima à mesa do café, um gesto de entreajuda, um plano dum fim-de-semana ou dum jantar a dois... Coisas simples mas ilustrativas dos pequenos nadas de que os laços se entretecem quotidianamente. Quando os via arrufados, era ao contrário, tratava de rupturas, desentendimentos, ciúmes, traições, egoísmos, sei lá... Ah! Mas tudo com casos tirados da vida, da minha e dos outros, até deles próprios, que lá teorias não é com eles, estão ainda muito verdes para tal naquelas idades. E pronto, foi remédio santo! Pu-los a todos a erguer a cidade utópica.”

 

-...Desviado do programa? Não, cada caso a Zulmira reconduzia-o a um problema, um desafio da maquete. Por exemplo, ela contou-me como um episódio de desavença no casal foi ilustrado com escolhas divergentes de casas onde ir morar. Isto levou a uma cadeia de problemas mateméticos e de cálculos para ponderar as alternativas. Quanto custa em média uma casa por metro quadrado? De quantos quartos e mais divisões vão precisar? A quanto irá trepar a conta? Quanto ganhará o casal por mês? Que poupança mensal poderão atingir? É um rosário interminável. Foi apenas escolher e ir introduzindo valores. Toda a turma se engalfinhou a multiplicar, a dividir, a subtrair, a somar, a estabelecer correspondências e proporções, para continuar a ponderar as alternativas até chegar a uma escolha ou a várias, conforme as diferentes sensibilidades. A estratégia resultou mesmo e não houve perda do fio condutor do currículo. Foi permanentemente matemática.

 

-...Como caracterizar a mezinha? Olha, a motivação específica dominante, durante a puberdade, é a vida afectiva, com ambos os pendores interligados, o do amor e o do sexo. Então, toda a abordagem que toque num destes campos atinge os púberes bem no coração. Atenção, porém: tem de operar a partir de episódios, de narrativas e não de palestras teóricas. Estes educandos ainda não têm o pensamento formal constituído, tudo, para eles, deve ocorrer radicado em eventos da vida real, sobre os quais se reflicta e teorize. Este irinerário é fundamental. No fundo, é interligar as várias mezinhas: da síntese orgânica delas é que obteremos os efeitos mais gratificantes e duradoiros.

 

-...Então, se até a Matemática pode abordar-se a partir da afectividade, tratando do amor e do sexo, qual a dúvida? Todos os programas o poderão implementar, evidentemente. Esta é a via para cativar universalmente a puberdade. Qualquer professor pode centrar-se nesta área e alimentar dela todas as unidades curriculares que tiver de abordar, qualquer que seja o domínio da cultura donde provenha.

 

-...A síntese? Olha, primeiro, o método de inquérito (ou, em paralelo, a dramatização e o sociodrama em línguas e matemática), com o programa transformado nos dados da experiência e nas perguntas, com o ciclo do concreto ao abstracto mais o alargamento gradual do tempo deste, à medida do desenvolvimento do pensamento formal do educando; depois, uma disciplina estimulando os quatro níveis de aprofundamento, mas aqui predominantemente centrada no segundo degrau, o da ordem consentida; terceiro, o motivo da afectividade bem alimentado, com a abordagem casuística do amor e do sexo, em todo e qualquer domínio curricular.

 

-...É tarde, é. Gostei muito deste serão. Foi caloroso, como o tempo que faz. Mas vem aí a invernia, não nos iludamos. Bem, então para a semana. Bom trabalho!

 

 

 

 

 

 

 

 

Mezinha 7

 

 

- Olá! Entra depressa, para fugires à tempestade. Parece que o pior irá ser nas próximas horas. Se ficar muito feio o tempo, podes pernoitar cá, no quarto de hóspedes. Não queres? Não acreditas nos avisos catastrofistas... Mas olha que às vezes tem sido bem pior do que eles previam. Lembras-te de Alenquer e daquela aldeia mais acima, varrida do mapa pela enxurrada, há uns anos atrás?...

 

-...Claro, sabemos lá o que irá ocorrer esta noite! Façamos votos por que não haja mais desgraças. E aguardemos, não é? Tudo bem. Teremos muito tempo para verificar, ao correr do serão. Aliás, nada nos impede de fazer uma directa, como nos velhos tempos. Há muitos anos que não sei o que tal é, nem se me aguentaria agora à altura das eventualidades, mas enfim... A idade vai-nos pesando e de que maneira!

 

-...De acordo, não falemos de coisas tristes. Vamos então ao serão, que é bem mais apetitoso.

 

-...É verdade, já vais confirmar. Vim do Luso esta tarde, olha: pastéis de Tentúgal directos da fábrica, ainda quentinhos, polvilhados ali à minha frente e tudo, para não haver dúvidas. Bem genuínos. Gostas?

 

-...Pois! Para regá-los, hoje vou ao encontro do teu pladar de requinte. Quando entrei no consultório, na clínica, tinha lá uma prenda de Natal à minha espera. Olha para aqui e diz-me se não te cresce já uma aguinha na boca. Que tal? Um Porto Reserva vintage! Que me contas desta maravilha? Ainda há gente boa neste mundo! E coisas muito boas para partilhar.

 

-...Os teus sobrinhos lembraram-se de ti? Ora, então não havia de recordar-me daquela fabulosa laranjeira, no campo de baixo, como é que vocês chamavam ao terreno?Lameirada, não era? Aquelas é que eram laranjas, algumas deviam pesar quase um quilo, não acreditas? Foi a ideia com que fiquei. Nós também éramos pequenos, agora não nos fariam tamanha impressão. Mas que paladar! E quanto sumo! Creio bem que nunca mais voltei a encontrar nada parecido. É uma fruteira digna de memória que, pelos vistos, ainda perdura por lá.

 

-...Por que se lembraram agora, ao fim de tantos anos? Mas que idade têm?...

 

-...Dezoito e dezasseis? Então, estão na adolescência... Doravante é que redescobrem todos os familiares, retomam os laços ignorados e abandonados. É típico. Enquanto for para te mandar prendas, melhor ainda. Vais evocar o encantamento das laranjas da infância, tens mesmo é que agradecer.

 

-...Claro que tem a ver uma coisa com a outra: não há paralelo entre a insociabilidade ou a indisciplina escolar dos púberes e a dos adolescentes. É pacífico que estes, por norma, devêm gradualmente cordatos, serenos e muito mais aplicados que aqueles. Praticamente não encontrarás uma escola que no País inteiro fuja à regra.

 

-...Não, para isto não é requerida nenhuma mezinha, o desenvolvimento natural basta. Nesta franja etária o desafio escolar é outro e, à primeira vista, sem resposta: desenvolver a criatividade formal, o poder de inventar novos modelos de interpretação, novas teorias. É a faculdade dos génios, dos que desbravam ignotos mundos de descoberta, no domínio das perspectivas de leitura do real, do alargamento da compreensão, do saber, da ciência. O poder de fazer luz nas trevas da ignorância, da superstição, da crendice.

 

-...A dificuldade da mezinha? Olha, é de o génio ser tão raro. Como é que um educador que dele não dispõe poderá estimulá-lo, desenvolver-lhe os gérmenes? Como dar o que não tem?

 

-...Há uma maneira, sim! E podes crer que resulta, eu acompanhei-o ao vivo. E digo-te mais: existem mesmo dois caminhos inteiramente distintos que podem produzir iguais efeitos. Tive a dita de poder compartilhar de ambos.

 

-...Vamos então ao caso. Não acreditas, mas já vais ver como é. O primeiro exemplo com que deparei foi numa escola de Chelas. Uma das minhas pacientes, por uma cadeia de tragédias familiares, ficou inabilitada por inteiro. Como é de hábito nestes casos, não acatou a derrocada, negou-a veementemente e então a Direcção pediu-me ajuda para convencê-la, mais às instâncias de tutela, onde hoje tu pontificas. Fui lá durante uma semana, alguns serões (a profesora leccionava no turno da noite). As turmas eram comuns ao dirigente que me pedira ajuda e as aulas dela antecediam constantemente as dele. Já estás a ver o que ocorreu. A docente, completamente doente mas incapaz de se aperceber de tal, a insistir comigo para a acompanhar enquanto leccionava, a verificar ao vivo como tudo corria bem. Ele, o gestor preocupado com o evoluir da conjuntura, a pedir para eu não largar as turmas, a fim de verificar como operavam a seguir, para me ser mais viável constatar as diferenças.

 

-...Pois claro, a grande surpresa foi o que descobri nas aulas do dirigente. O mais não levantava qualquer problema, a professora vivia um momento terrível, após várias tragédias familiares encadeadas em prazo curto. Nem precisaria de lá ter ido, só que (tu conheces-me bem) eu nunca perderia uma oportunidade daquelas, não é? Nada como verificar ao vivo, enfronharmo-nos por dentro dos eventos, de mãos dadas com os protagonistas.

 

-...Correcto, não nos desviemos. Olha, fiquei alerta logo com a introdução. A princípio, tudo era aparentemente normal. “Quem lê hoje o resumo da aula anterior?” - abriu ele. Dois braços ficaram no ar, um aluno e uma aluna. “Prioridade às damas,” - continuou - “leia lá a menina.” E a rapariga leu o caderno. Uma coisa do tipo: “Vimos que as ideias, os pensamentos, não os captamos por nenhum órgão dos sentidos, os afectos também não. O mesmo ocorre com os valores e com as ponderações e deliberações íntimas das nossas atitudes. Toda a interioridade, a vivência de cada um, escapa à captação sensorial de terceiros, apenas o próprio a vive no íntimo dele e a apreende pela sensibilidade interna de que dispõe. Cada um de nós tem consciência do que lhe ocorre na intimidade, mas, se o não comunicar a ninguém, ninguém mais o logra descortinar. E mesmo quando o exprime, o que de fora captamos é a mera manifestação daquilo, não é a própria realidade do imo. Este, por natureza, não tem qualquer dimensão sensível a terceiros, nem tamanho, nem peso, nem cor, nem som, nem sabor, nem textura, nem calor ou frio, nenhuma, enfim, captável por qualquer órgão dos sentidos exteriores. É o que o povo refere quando afirma: 'o saber não ocupa lugar.' Cada qual, porém, tem consciência de si próprio; não pode, todavia, viver a corrente de consciência que outrem tem enquanto outro eu; nem este, reciprocamente, poderá nunca viver outra egoidade que não a dele mesmo. Poderemos, por conseguinte, partilhar apenas as nossas vivências falando delas aos demais e acolhendo, em troca, o que deles nos entendam comunicar. Podemos inferir, pelas manifestações exteriores sensíveis (pelas atitudes, comportamentos, testemunhos...), o que eventualmente andarão vivendo na interioridade deles, mas vê-la a esta, captá-la directamente, jamais. É o jardim selado de cada qual. Fica irremediavelmente além da fronteira dos meus sentidos exteriores, é doutra natureza que o universo sensível onde os dados nos ficam, diante da vista, disponíveis para análise de quem o pretenda, como ocorre na investigação científica, toda ela experimental, directa ou indirectamente. Era o que Aristóteles pretendia ao cognominar esta área do saber como “Metafísica”: estava para além da física, isto é, da totalidade dos objectos colocados no espaço e que os sentidos externos de quenquer podem apreender, em pé de igualdade com todos os mais.”

 

-...Não vês nada incomum? Talvez eu também não reparasse, não fora o caso de ter acabado de ler, por mera coincidência, a “Iniciação Filosófica” de Karl Jaspers.

 

-...Pois, ainda o nosso fervor universitário pelos existencialistas. Aí é que recuperei o gosto pelos autores (que lá filosofia de compêndio...). Continuam a deliciar-me, é verdade. O problema era que havia um abismo entre o “englobante”, a totalidade orgânica deste médico-filósofo que ele preserva como o campo do filosofar e que, ao fim, é muito vago, de contornos indefinidos e, principalmente, sem fronterias delimitáveis, e aquilo que eu estava ali a ouvir da boca daquela adolescente. O que ela me lia era duma clareza meridiana e separava os campos dum modo rigoroso e indiscutivelmente lógico e verificável. Buscar aquilo? Isto é que me alertou. Há muito que adoro a filosofia viva (a que a avantesma do nosso velho mestre não matou...) e nunca tinha encontrado uma coisa destas. Fiquei à espera de identificar as fontes, até para me renovar. Aí é que foi a surpresa, imaginava lá tal coisa!

 

-...Se era o professor? Espera, que já vais ver, jamais te ocorreria! A aula continuou. Depois do resumo do aluno, das correcções e precisões do docente e dum ou doutro estudante, principiaram uma etapa nova. “Podemos então agora rematar o tema” - continuou o pedagogo - “definindo o objecto da Ciência e o da Filosofia. Afinal, que é que a Ciência investiga? Que características tem de ter o campo de análise dela para poder levar a bom termo a tarefa que empreende?” Vários responderam. “Tem de ser captado pelos sentidos. É o objecto sensível.” Ele contemporizou. “Muito bem, muito bem, mas vamos precisar melhor. A vivência não é sensível? Senão, não teríamos notícia dela...” E os alunos: “Temos, temos, mas cada qual tem apenas a dele mesmo, não tem a da vida interior dos outros.” Voltou ele: “Então em que ficamos? Se também for sensível a vivência, então o objecto da Ciência não pode ser delimitado por esta característica, já que os sentimos a ambos, ao dela e ao da Filosofia.” Ficaram interditos. Até que a donzela que lera o resumo levantou o dedo: “Professor, é diferente. Para o mundo exterior temos os órgãos dos sentidos, para o interior, não, não é preciso. Então a Ciência estuda objectos sensíveis que encontra no espaço, são os espacializados. A Filosofia tem por objecto sensível a vivência de cada um por ele próprio, durante o tempo que ele durar. É o que é apenas temporalizado, a apreensão do íntimo de cada qual, de que apenas ele próprio pode fruir. Creio que desta maneira fica tudo claro.”

 

-...Bem, houve mais rodeios, ora! Não consigo reproduzir aqui, nem importa, os pormenores de cada avanço, recuo, hesitação... Olha, o teu espanto foi o meu: estava ali perante uma filósofa em gérmen, aquela adolescente, ao vivo, a depurar um modelo teórico, a precisá-lo, a traçar-lhe as fronteiras, com ideias arrumadas, uma disciplina mental acabada. Repara, quase podia afirmar que estava observando a mente a operar, a abrir caminho. Mas o colectivo da turma dava-me a mesma impressão, todos afadigados a reflectir, a tentar captar alguma faísca aleatória de luz.

 

-...Concordo, isto, à primeira vista, parece o mesmo que o itinerário da puberdade para atingir o pensamento formal, vai apenas mais adiantado, os alunos já correspondem melhor. Mas falta-te o pormenor decisivo que me desconcertou por completo.

 

-...Exactamente, é o que te vai responder à pergunta lá de trás. Eu havia reparado que estes alunos aqui apenas tinham à frente papel e lápis. Livros de filosofia, raros e todos de lado, fechados. Mas entretanto era vê-los constantemente a tomar notas, algumas raparigas pareciam mesmo estenógrafas, deviam reproduzir tudo, tim-tim-por-tim-tim. Quando ali chegaram, delimitando os campos da Filosofia e da Ciência, como eu estava perplexo por nunca ter ouvido nem lido nada com tal base (que, aliás, se me antolhava duma clara evidência indiscutível), fiquei curioso por deslindar donde tal abordagem procedia, quem teria sido o iluminado que finalmente tão bem e tão decisivamente clarificara uma querela velha de milénios. Como ao meu lado o aluno tinha o compêndio pousado mesmo diante de mim, fiz-lhe sinal para o consultar e ele colocou-mo nas mãos. Folheei-o, folheei-o, fui-o lendo em diagonal e em lado nenhum havia qualquuer pista de tal abordagem. Ele compreendeu a minha perplexidade e murmurou-me, rápido e lapidar: “Aí não vem nada. Ninguém chegou aqui. Nós é que estamos em conjunto a criar uma filosofia nova. Isto é mesmo fantástico, não concorda?”

 

-...Ah, eu também cuidei o mesmo: o professor deve estar mas é a levá-los... Só que então eu encontrar-me-ia perante, provavelmente, um génio ignorado: aquele docente teria chegado até onde nunca ninguém antes fora? Porque, para conduzi-los desta maneira, teria de esconder a carta na manga. Ou não haveria mesmo jogo escondido, como os alunos pretendiam?

 

-...Não é viável esta alternativa? É, é. E olha que era a verdadeira. Corria ali à frente do meu nariz e eu nem queria acreditar, como tu agora.

 

-...Numa palavra, o que me convenceu, para além da confirmação daquele educador, foram dois pormenores de nada. Primeiro, ouvi-o comentar para si, num momento de pausa, após ter feito um resumo do que haviam já desbravado e enquanto os alunos tomavam notas.: “Curioso, nunca tinha reparado nisto por este ângulo. Como é que nunca ninguém viu o problema por tal lado?” O segundo foi noutra aula e noutra turma. Perguntou ele: “Como é que estudamos o objecto da Filosofia?” E os alunos, tal como nós antigamente: “Nós? É pelos apontamentos, pelo livro, lendo os autores...” Tornava o professor: “Mas como chegaram ao que escreveram?” E a turma, ainda desentendida: “Aqui é discutindo as perguntas. E analisando também as respostas com outras perguntas. E mais, encadeando umas nas outras, não é? A ver se chegamos a algum lado.” Bom, isto continuou bem por uns vinte minutos, sabes para quê?

 

-...Não, o estranho é que aqui não havia novidade nenhuma, eu estava perfeitamente a seguir o que ele pretendia: era para os educandos gradualmente definirem o conceito de reflexão filosófica. Como vês, o mais banal e gasto possível, há dezenas de gerações que é o mesmo.

 

-...Que é que concluí? Então, a regra de jogo era clara: ele dominava o programa com os saberes previamente constituídos. O questionamento principiava por aí, pelo que ele já conhecia, visando a redescoberta dos conteúdos programáticos pelos alunos, tal qual como com os púberes vi nos melhoress desempenhos e já comentámos.

 

-...Depois é que vem a novidade. Naquela reflexão ouvi comentários dos alunos do género: “Devíamos também poder fazer experiências na filosofia, para provar as hipóteses.” E logo outro: “Era bom, era: metes um pensamento num tubo de ensaio e põe-lo a aquecer, a ver se ficas com ideias fervorosas!” Ou este: “Podíamos investigar como na História: analisar documentos, também são pensamento, só que está escrito, qualquer um pode trabalhar com os textos e conferi-los, depois apresenta-os como prova daquilo que concluir, não é?”

 

-...Pois, a diferença era que, enquanto, durante a puberdade, o pensamento desviante com sentido, com lógica, ia ficando ignorado, aqui, não. Este professor acolhia-o, elogiava-o nos aspectos em que mostrava fundamento ou era coerente, e remetia a análise dele para depois de clarificado o conteúdo programático sumariado.

 

-...Exactamente: retomava-o logo após. Não obrigatoriamente todos os aspectos, mas os que se lhe antolhavam como mais fecundos, perturbadores, que poderiam levar a inesperados. Ora, era disto que todos os alunos andavam à espera. O questionamento continuava, mas doravante por reinos ignorados. Eram todos, de facto, bandeirantes, o mestre tanto como os discípulos. “Vamos lá à descoberta, a ver onde isto nos leva.” E partiam à aventura, guiados pelas perguntas dele, através dos fios de sentido que iam vislumbrando uns e outros.

 

-...A mezinha primeira, para a adolescência, o período tendencial entre os quinze e os dezoito anos, fase em que a criatividade formal pode ser desenvolvida e estabilizada em cada indivíduo, constituindo o apogeu que a racionalidade humana pode visar, é afinal simples. Bastaria que todos os professores utilizassem o método de inquérito em aula, nas várias cadeiras, durante a faixa etária completa. Depois, que tivessem o cuidado de acolher, avaliar tal como qualquer resposta convergente com a reconstituição do programa, todas as achegas divergentes dele mas que façam sentido, dêem conta de qualquer perspectiva do real e tenham lógica. Finalmente, que explorem as potencialidades destes caminhos ignorados, em demanda das revelações que puderem surpreendê-los, com a expectativa deslumbrada de quem anda a inaugurar um mundo novo. E ele germina de facto, pelo menos na faculdade racional de cada educando.

 

-...Ora! A outra via não tem nada a ver com as línguas e matemáticas. Estas já vimos que seguem o itinerário dos métodos de dinâmica de grupos: análise de casos, dramatização, sociodrama e jogo didáctico. Ora, nestes dois últimos, quando os alunos forem estimulados a inventar as conjunturas e condicionamentos, como a reformularem as atitudes e posturas correspondentes, como ainda a criarem as versões dos desafios, os obstáculos e as estratégias que permitam ir vencendo – então igualmente em ambas estas áreas curriculares desenvolveremos o pensamento formal criador.

 

-...Pronto, eu conto como é a outra modalidade que encontrei. Mas não é senão uma forma diversa de utilizar a primeira mezinha, continuamos no campo dos métodos adequados ao desabrochamento dos píncaros da razão humana. Ainda não mudámos de domínio, entendido?

 

-...Foi por mero acaso que dei com tal, num colóquio que animei na Amora, integrado numas jornadas pedagógicas, a encerrar um ano lectivo. Dum dos pontos do programa constavam vídeos e demonstrações ao vivo de novos métodos e estratégias. Chamaram-me a atenção para um caso particular e foi aí que descortinei um novo caminho, que nada tem a ver com o anterior.

 

-...Claro que espiolhei tudo, achas que ia perder uma oportunidade daquelas? Fui mesmo jantar com o professor que intervém daquele modo, espremi-o até à última gota, que pensas? Ouve então!

 

-...Não, não é nada incomum. Lembras-te do seminário para a tese de licenciatura que frequentaste? Já vais ver o paralelo. Olha, ele correu um vídeo, com montagem de várias fases do trabalho nas turmas. Na primeira aula, abriu assim:”Hoje é o dia em que falarei mais e o ideal seria já não ser preciso intervir para todos, até ao fim do ano.” Fiquei logo de orelha arrebitada. Caracterizou a maneira de trabalharem deste modo: “Como já todos sabem ler e interpretar, vamos transformar-nos em investigadores. Este grupo inteiro é doravante uma equipa de pesquisa. Eu serei coordenador, avaliador e estimulador do projecto colectivo que vamos tentar levar à prática.” Não queiras saber a cara confrangida dos alunos, a olhar para ele, num silêncio de morte. Não diria que estavam aterrorizados, mas enfim... “A primeira tarefa vai ser a de esquematizarem toda a informação que forem consultar” - continuou ele. - “Bem sei que no geral se irão reduzir ao compêndio e ninguém é obrigado a ir mais longe, que fique já bem entendido. Mas a porta fica aberta para quem pretenda voar mais alto. Para isto, qualquer fonte, documento, material, que permita visar os píncaros é benvindo. Mas apenas para quem queira.”

 

-...É, familiariza-os com a pesquisa bibliográfica. Aliás, a segunda estratégia foi mesmo a de resumirem em linguagem própria a informação recolhida e organizada. É a rotina do investigador.

 

-...A partir daqui é evidente que teria de diferir. “Depois terão de estudar cuidadosamente todo o material” - explicou-lhes o professor - “porque faremos uma simulação de exame. É como um teste, mas vamos recriar uma conjuntura o mais próxima possível do que terão de enfrentar quando um dia forem prestar provas escritas. E a avaliação irei dar-vo-la em percentagem de aproximação à totalidade da cotação de cada pergunta, explicando que aspectos foram já atingidos e com que nível de qualidade, o que falta e porquê, bem como aquilo que deverão tentar para se aproximarem futuramente dos 100%.”

 

-...Pois, ainda tem algum paralelismo com a publicação e a prestação de provas, não é? Mas constitui um modo inteligente de ajudar os alunos a memorizar e reproduzir, reflectir e reformular, distanciar-se e tomar posição... Enfim, isto permite muita coisa diferente.

 

-...Há um derradeiro patamar ainda. “Para tentarem o nível máximo ou então para cultivarem o gozo que tudo isto pode dar” - rematou o Dr. Salema, é o nome dele - “faremos um trabalho criativo. Aplicarão o que aprenderam inventando uma modalidade que vos dê prazer. Pode ser em grupo ou individualmente. Apenas para dar-vos uma ideia, tenho quem haja escrito os temas de estudo em poemas, ou elaborado quadros de teatro ou de revista, trabalhado contos, até já me desenvolveram uma novela, há bandas desenhadas, jogos de quebra-cabeças, textos ilustrados, ensino programado para computador... Aqui não ponho limites, é soltar asas à fantasia e aos sonhos de cada qual e tratar de abrir-lhes uma porta. Uns imaginam entrevistas, outros, guiões para hipotéticos programas de televisão... Até há quem tenha dançado uma unidade que achou mais inspiradora e também quem tenha escrito e até editado, em número limitado, um livro... No trabalho criativo, ao aplicar os saberes aprendidos, pode haver lugar para as revelações e descobertas mais inesperadas...”

 

-...Agora uma demagogia! Não foi nada!

 

-...Com os alunos que temos?! Olha lá, e se tu vincares antes o outro lado: com o que deles fazemos? Ao menos o Salema fá-los doutro modo e o que pude constatar, (evidentemente que ele escolheu o melhor, como é normal; portanto, não são todos) é que no geral revelam indícios de genialidade, indiscerníveis nos demais, por norma.

 

-...Como é que lá vão? Pronto, não é nos degraus todos, de acordo. Olha, quando lhe perguntei se estimulava a criatividade formal, ele precisou: “Quando os levo à simulação de exame, tenho duas prioridades – a primeira é que dominem e reproduzam correctamente a informação e a segunda é que tomem posições críticas em conformidade com a própria sensibilidade e consciência, mas explicitamente fundamentadas. A maior parte deles fica na fase reprodutiva, mas os melhores, os mais exigentes tentam logo abrir caminho. Nestes vemos crescer o poder de argumentar, o discernimento apuram-no e vão germinando pequenos pontos de inovamento e descoberta.”

 

-...Também lhe perguntei por isso, que aquilo na ciência e na tecnologia não tem muito cabimento. Trocou-me as voltas. “Não é verdade. Parece,” - comentou - “para quem lê os programas e não descobre as entrelinhas. Então e o valor que é atribuído a tais saberes? E os prós e contras das aplicações? E os efeitos poluidores e de esgotamento de recursos? E as alterações de cultura, das formações sociais e comunidades e dos laços humanos? E os impactos na realização ou frustração, na felicidade ou infelicidade de cada indivíduo? E os vícios do consumismo e da competição?... Isto e muito mais subjaz a cada unidade que abordamos. Dizer amen a tudo acefalamente não tem nada com educar deveras. É justamente nas ciências e tecnologias que é mais urgente, dominado o saber e o executar, ser capaz de compreender e questionar valores e aplicações. Aqui anda quase tudo por elaborar. A segunda prioridade, o posicionamento crítico reflectido e explicitamente fundamentado é neste currículo implícito, propositadamente latente, que ela incide. Isto gera leituras e atitudes criativas responsáveis. Nada delas vai sem algum pensamento formal criador. Claro que é em pequena escala, eles são ainda adolescentes, mas vão tacteando o caminho.”

 

-...Ah, aí é o fruto final, o trabalho criativo confesso que me deixou fascinado e ao mesmo tempo confuso. É que nele juntam-se as criatividades de todos os níveis: emotivas, relacionais, activas e até formais, quer referentes a factos, quer a valores. Aquilo é uma girândola de remate, a desabrochar para todos os horizontes.

 

-...Manifestei-lho, pois. Ele argumentou logo com o caso duma aluna que víramos na videogravação. “Quer ver a criatividade formal?” - desafiou-me. - “Lembra-se da sequência da Catarina a liderar um colóquio? Pois bem. Fê-lo sabe porquê? Porque me apresentou uma teese inteiramente original, elaborada a partir da experiência de vida dela e contrastada com todas as que se de frontavam na matéria do programa. Definida com precisão milimétrica e bem posicionada perante as demais, com fundamentos factuaise vivenciais argumentados com uma lógica impecável. Quer que lhe conte? Então veja: apresentou-a à escola, participaram dezenas de alunos e um grande número de professores, o debate foi animado, sabe porquê? Porque aos docentes custava-lhes a acreditar que uma aluna do Secundário tivesse logrado ir tão longe. As perguntas eram todas: como é que isto foi feito, como é que ocorreu? E é muito simples: o trabalho criativo pode centrar-se em qualquer tipo de criatividade, portanto igualmente permite a formulação inovadora. Neste faixa etária, aliás, é a mais apelativa, em termos específicos: é que nas outras áreas já podemos ser criativos até desde a segunda infância, por exemplo na emotividade. Nesta, não, no pensamento formal é a partir apenas da adolescência, não é?”

 

-...Ele chamou-lhe método de aprendizagem por descoberta. Houve quem no debate lhe chamasse método experimental ou científiico, outros, de investigação, mas qualquer dos nomes ele achou-o restritivo. Concordo, é mesmo. Portanto, aquele nome é o melhor. E apura a criatividade formal sempre que ela é requerida no segundo vector da simulação de exame, o do distanciamento crítico fundamentado, e na invenção de novas formas ou modelos de interpretação e argumentação, no trabalho criativo final. É, como te dizia, uma outra mezinha para o mesmo desafio de desenvolver uma capacidade e função praticamente ausente dos actuais adultos e que é aquela que habitualmente atribuímos aos génios. Talvez saibamos, afinal, como tornar o génio uma realidade comum, no quotidiano de todos os indivíduos.

 

-...Apenas o julgarei utópico a partir do momento em que métodos e estratégias destes se apliquem bem e generalizadamente e constatemos então que não resulta. Aí, sim. Antes, não. Declará-lo antes é apenas confirmar que não queremos que aquilo ocorra, mais nada. É o que já temos. Os velhos do Restelo nunca pretendem que alguém parta à descoberta das Índias, serão fatalmente utópicas para eles.

 

-...Evidentemente que há outras mezinhas, embora esta seja, de longe, a mais prometedora, já que visa elevar-nos a níveis de racionalidade jamais fruídos, pelo menos à escala que da generalização disto poderíamos vislumbrar.

 

-...O mais interessante, além daquilo, é a volta a dar ao conflito de gerações. Com a desagregação das famílias em crescendo em todo o mundo rico, fica um pouco diluído aquele fenómeno que redunda na ruptura das raízes e na quebra de laços entre pais e filhos. Mas o problema mantém-se, até porque o predomínio da família patriarcal multimilenária ainda não encontrou alternativa à altura que generalizemos nos povos e na cultura.

 

-...Lembras-te de lermos na Faculdade os livros de Margaret Mead e da estranheza dela ao não encontrar entre os Polinésios vestígios do conflito de gerações? Aquela antropóloga, aliás, tinha-se por privilegiada porque na própria vida que fruíra jamais vivera conjunturas tais, no âmbito da família donde era oriunda.

 

-...Ora bem, tens razão, a mezinha vai por aí mesmo. Ainda te recordas de a escritora comentar que nunca porventura entrara em conflito porque a avó com que mais convivera jamais lhe dera propriamente ordens mas ponderavam sobre o que era melhor, buscavam um consenso por ambas deliberado e depoois então aquilo era cumprido pacificamente, como uma resposta absolutamente natural. Olha, quando ouvia o Dr. Salema falar disto e quando o vi com os alunos em plena aula, a cochichar nesta mesa, o ler um trabalho na outra, a atender a uma pergunta numa terceira, todos muito calmos e permanentemente afadigados nas tarefas em que estavam empenhados, lembrei-me dela...

 

-...Pois, a questão remete permanentemente para a disciplina. Mas não creias que ande aqui outro modelo qualquer. Eu provoquei o professor, perguntei-lhe se ele não se impunha às turmas. Se lhe meterem um arruaceiro nas aulas que é que fará? Ora, nem hesitou. “Ponho-o imediatamente na ordem!” - comentou. “Como?” - insisti. “Então, imponho-me ordenando-lhe como ele terá de agir. Se tiver veleidades de resistir, aí viro a turma toda contra ele. Ponho-lhes à escolha, ou ele ou eu. Se algum dia algum aluno embarcar em tal asneira estará bem tramado! Cai-lhe tudo em cima, era um encurralamento completo. Nunca passou pela cabeça de ninguém tal disparate nem ocorrerá. Era um suicídio: não entraria mais em aula e teria muita sorte em fugir de lá direito. São casos que nunca advêm quando trabalhamos num ambiente relacional como o que vivo com os meus alunos.”

 

-...Também fiquei na dúvida se ele bloquearia ou não na disciplina imposta, o primeiro degrau. Era voltar ao ponto de partida. “Nada disso!” - garantiu-me logo. - “Tudo é consesual do primeiro ao derradeiro dia. É por isto que, se alguém vier quebrar a harmonia, eu contarei com todos, tenho a certeza. Aliás, quem pretenderia tal asneira, se colectivamente gostamos daquela aventura e nos sentimos bem? Eu seria duro com um transgressor, mas, de facto, era em nome de todos, lideraria a revolta colectiva, o primeiro a gritar não ao intolerável que tal atitude constituiria para o grupo inteiro.”

 

-...Exactamente, isto coloca o núcleo da disciplina no âmbito da comparticipação, há um nítido companheirismo mutuamente conjurado, cúmplice, que transpira da postura do professor e que verifiquei como óbvio nas gravaçoes das aulas. Os patamares da autoridade imposta à consentida e desta à comparticipada são claramente transpostos por ele, para a turma radicar prioritariamente neste último, de modo solidário, com uma pacífica coesão entre todos, dentrro das trocas múltiplas entre eles.

 

-...Concordo contigo que, na autonomia com que trabalham cada estratégia e mormente nos trabalhos criativos que são projectos pedagógicos, aqui há já repartição de poder, o professor opera ao nível da disciplina partilhada. É, pelo menos, uma maneira de a inaugurar.

 

-...É, esta é a segunda mezinha. Mas não digas que é de alcance menor pelo facto de resolver o problema do conflito de gerações. É que, ao ultrapassá-lo, iremos criar uma nova cultura e a civilização já não será a mesma. O próprio modelo patriarcal da família ficará de vez transmudado: a partir da adolescência todos os membros do lar serão companheiros, iguais, apenas tendo nos progenitores os primeiros desta parceria. Este ideal do primus inter pares nunca logrou entrar na prática do tecido comunitário, por muito Católica e Ortodoxa. Mas nem aqui operou deveras nem fermentou reestruturações de vulto. Aquele modelo de disciplinar por degraus de autonomização, em dialéctica dinâmica, do imposto até ao compartilhado, que os melhores pedagogos estão a viver com as novas gerações, no dia em que entrar a configurar o lar de cada um, aí é que já viveremos finalmente num mundo novo que não é nem o do autoritarismo, nem o do basismo. Encontrámos deveras o modelo para democratizar todo o conteúdo das relações humanas, desde a família à comunidade, à região, até aos povos e nações. Por enquanto viveremos de simulacros, de superficialidades, como o da democracia do voto, reduzida a um papelinho periódico, melhor que nada, que permite escolher e triar entre eleitos, mas gravemente insuficiente enquanto não for a porta de ir mais longe, infinitamente mais longe e mais fundo.

 

-...Não entendes bem como opera globalmente e através das faixas etárias? Ah, queres um resumo. Olha, é simples. Primeiro, a disciplina aprofunda-se por quatro patamares interligados, como já vimos: imposta, consentida, comparticipada e, finalmente, partilhada. Depois, no educando, isto configura um itinerário que parte da heteronomia até atingir a autonomia, a igualdade completa no fim. Em terceiro lugar, o pedagogo avança ou recua mais ou menos no continuum dos graus em conformidade com a maior ou menor correspondência do discípulo, do grupo ou da turma a uma gestão adequada da dialéctica do relacionamento mútuo. Isto é tanto com quem manda como com os companheiros: se há mais auto-disciplina, podemos progredir mais, se há menos, se há indisciplina, agressões, transgressões, balbúrdia, prepotências, tanto mais recuamos até ao primeiro degrau da cadeia.

 

-...Ah, a preponderância por idades. Pois o que decorre das melhores experiências nas escolas é que, na terceira infância, predomina a disciplina imposta, o que já vem, aliás, de trás, dos lares mais equilibrados, logo de bebé. Na puberdade, a hegemonia transita para a disciplina consentida, conotando-se como infantilizador o bloqueio demasiado no primeiro patamar. Durante a adolescência a tónica transita para a comparticipação, como uma iniciação gradual ao companheirismo, à paridade.

 

-...Não, predomínio não quer dizer exclusividade, os bons pedagogos até com as crianças já buscam consensos, já ponderam com elas como será melhor organizar, proceder, já lhes atribuem pequenas margens de autonomia e decisão. A tónica dominante é que não tende a ser esta, mas a da disciplina impostas que os mais pequenos requerem para se sentirem seguros. Nas outras idades igualmente o modelo inteiro está permanentemente presente e operante, pese embora a tendência para mais vezes repousar no patamar do encadeamento que melhor se lhes adequa, no trânsito moroso de cada educando para a maturidade.

 

-...A derradeira? Ora! Há, pelo menos mais uma mezinha que temos de referir.

 

-...Pode não mudar o mundo, mas esta mudará pelo menos alguns preconceitos generalizados nas escolas, mesmo nas que preparam educadores. É uma estratégia a usar em aula que o Dr. Salema me pormenorizou.

 

-...Sim, aqui foi ele que me questionou. “Viu aquela novela escrita por um par de alunos?” - perguntou-me ele. Era um texto de ficção científica que eu manuseara numa ligeira leitura em diagonal, na exposição que lhe acompanhara a participação nas tais jornadas. “Levanta-me um problema” - continuou. - “O Basílio entrou-me no 10.º ano ainda com catorze anos. Vivia colado ao Freitas. Embora lhes abrisse a oportunidade de trabalharem em grupo aberto, com eles nunca pegou. Foi sempre aquele par, ambos rapazes, nunca dispostos a integrarem outros elementos nem interessados em entrar nos deles. Porque é que o Ministério, as Faculdades, as Escolas Superiores de Educação e quejandos, até na formação contínua, todos nos seringam os ouvidos para pormos os alunos a trabalhar em grupo, como se isto fora uma panaceia universal? A verdade é que ali não deu. E mais, sempre que tive alunos (já não digo raparigas, que são normalmente mais maduras...), rapazes que me chegaram ao Secundário ainda nos catorze anos, não houve uma excepção para amostra: nunca nenhum logra funcionar, sentir-se bem, a operar num grupo. Eu a princípio forcei-os, agora, não. É uma asneira. Vamos obrigar ao que não resulta? É um disparate pedagógico, não concorda?”

 

-...Que remédio tive eu senão de concordar! Quem é que teve a ideia peregrina de propor o trabalho de grupo como estratégia universal para os alunos de qualquer idade?

 

-...Não, não decorre nada dos métodos activos. Destes, aliás, daqueles de que recolhemos os melhores efeitos de aprendizagem e desenvolvimento, pelo que temos vindo a verificar nestes serões, apenas a colmeia, na terceira infância, e a aprendizagem por descoberta, na adolescência, operam com os alunos em grupo aberto e misto. E nem sequer obrigatoriamente, como o exemplo do Salema ilustrou.

 

-...Não é significativo, afirmas?! Como não? Ah, falas em adolescentes... Repara que ele indicou com precisão os de catorze anos. São púberes ainda, na fase terminal do estádio. Aliás, estas divisões etárias induzem em erro quando ignoramos que são tendenciais, apenas a maioria dos casos se integra nelas, mas há permanentemente alguns desviantes a que importa atender adequadamente. E não é por acaso que o Salema refere os rapazes, é que as raparigas tendem a antecipar a transição para a idade dos catorze, enquanto os moços a retardam para mais perto dos dezasseis. É quanto basta para entender a reserva e o bem fundado da experiência dele. Mas há mais e mais grave: sabes que eu já encontrei alunos aqui na cidade de Lisboa, de catorze, quinze e, pelo menos num caso, de dezasseis anos, ainda na terceira infância, nem sequer entrados na puberdade? E, claro, todos, sem excepção, com inteiro fracasso escolar. Adivinhas porquê? Apenas por inadaptação de métodos e estratégias aos casos deles. Olha que nem um para amostra era intelectualmente diminuído ou deficiente, entendes? É no que dão as generalizações apressadas. Irresponsáveis!

 

-...Claro que é irresponsável colocar púberes a trabalhar em grupo. Não, não por causa de o método de inquérito não radicar nele. É por eles, nesta faixa etária, serem incompatíveis com aquilo, eles nunca se agrupam, nunca.

 

-...Então não vês que o púbere perdeu a identidade e tem de reconstruir a auto- imagem a partir de quanto de novo vive e o perturba? Isto não vai com grupos nem em grupo. É ensimesmado, introvertido, metido no canto solitário dele e, quando muito, com um confidente a quem se cola como uma lapa. É o que terá de respeitar-se em aula. Nada de trabalhos de grupo com púberes, quando muito, a dois, e só mesmo entre confidentes mútuos, que estes pares do mesmo sexo não são intermutáveis e serão muito frágeis, vulneráveis. Um nada os destrói ou inviabiliza.

 

-...Vês como entendeste porque o projecto pedagógico de escreverem o livro do curso com as matérias leccionadas era de execução tendencialmente individual, cada qual com o próprio compêndio final? É exactamente por causa disto: na puberdade, o que resta do grupo de convívio espontâneo infantil é apenas um confidente eleito, mais nada. No de mais membros morre a comunicabilidade, nos mistos todos perdem o à-vontade por inteiro. O Salema tem toda a razão em abolir destes todo o recurso a trabalhos de grupo: fica no individual ou no par de confidentes. Isto é que optimizará o desenvolvimento de padrões relacionais adequados: o par faz de espelho mútuo, o que levará, a prazo, à reconstrução da auto-imagem, à recuperação da identidade própria.

 

-...Pois, já o adolescente típico é aberto ao mundo e a todos quantos encontra, este não põe fronteiras. Por isso a generalidade dos alunos estava em permanente intercomunicação, a trabalhar em conjunto qualquer das fases. Aqui, sim, o grupo adquire inteira pertinência: o desvendamento dos outros principia na própria aula. Repara, porém, apenas a aprendizagem por descoberta o propicia. O outro método, o de inquérito, limita-o. Aqui, só na execução do projecto pedagógico poderá deveras haver cooperação mútua. Durante os debates, não, é claro. Mas solicitar-lhes e dar-lhes meios de laborarem juntos é nesta estratégia gratificante e será tendencialmente bem correspondido.

 

-...É a terceira mezinha, claro: trabalho de grupo na adolescência; individual ou de pares de confidentes, na puberdade. Por muito que sejam outras as indicações dos pseudo-luminares.

 

-...Ó pá, tens razão, já seroámos que chegue. Até para a semana! Agasalha-te bem. Adeus!

 

 

 

 

 

 

 

 

Mezinha 8

 

 

Entra, boa noite. Que cheirinho de Natal! Foste às castanhas quentes?! Como em miúdos, é? Que te deu para tal? Estás mudado, homem!

 

-...Ah, mas eu adoro que tenhas trazido um pacote delas, ainda a ferver, bem assadinhas. Antigamente era o nosso aquecimento central, lá na aldeia, quando os dedos das mãos nem se juntavam, de enregelados. Que gostoso apertar o papel, a palpá-las por dentro, como um borralho!

 

-...Que é que eu tenho para o serão, a ver se combinamos? Por acaso trouxe uma delícia nova de que ignoro se gostarás. É uma regueifa de coco, de coco, já provaste? Eu cá tenho uma queda particular por tudo o que o leve. Lembras-te da Páscoa e dos doces no forno de lenha, quando éramos pequenos? Então aquelas bolinhas de coco com ovo, que delícia! Nunca mais as voltei a encontrar. Aquilo diluía-se-me na boca, a mascar devagarinho...

 

-...Um vinho tinto com forte sabor ao carvalho? Olha, tenho um Palmela apurado em três cascos diferentes. Queres experimentar? Três copinhos, para compararmos. E venham daí então as castanhas quentinhas. A regueifa de coco deixamo-la para depois, é a sobremesa dos petiscos...

 

-...Quem nos vira aqui agora julgar-nos-ia retornados à juventude e às loucuras dela? Olha, ainda bem, a ver se não enferrujamos, que os anos e a vida pesam e magoam. Os artelhos acabam por não aguentar.

 

-...Bem, o elixir da eterna juventude, este de facto não o encontrei, nem fiz pacto com o diabo, à Dr. Fausto, para vender-lhe a alma em troca. Agora que há mezinhas, não para eternizá-la, mas para transpô-la de forma optimizada, garanto-te que há.

 

-...Queres ver? Certo. No fim de semana transacto, quando estava a arrumar as compras, no parque dum supermercado com a minha mulher, ouvimos atrás de nós uma conversa elucidativa. “Olá, professor,” - cumprimentava uma jovem, com um filho pequeno colado às pernas - “olhe que entrei, mas não foi para o curso que pretendia. Falhei por duas décimas, frequento Sociologia e estou a adorar, nem imagina! Vou apresentar um trabalho para a semana, tenho andado a prepará-lo. Repare que aquilo que nos pôs a fazer, a maneira de estudarmos a cadeira, ajuda muito agora.” E o interlocutor confirmava: “É verdade, aquelas estratégias resultam mesmo, todos os anos há mais uns tantos a confirmá-lo. Também tu estás a ver como valeu a pena. Ainda bem! Parabéns e força nisso, o que é preciso agora é andar para a frente!”

 

-...Eram estranhos, apenas fiquei alerta e viemos reflectindo no carro. Que estratégias eram aquelas? Ignoro, não conheço os protagonistas, mas lembrei-me doutra experiência. Uma telefonista da clínica, muito jovem, ainda nem vinte fizera, frequentou há tempos atrás o turno da noite para completar o 12.º ano. Olha, hoje está acabando Enfermagem. Não o havia projectado, o que a entusiasmou foi a maneira como trabalhou numa cadeira. Falámos muito do que a empolgava tanto.

 

-...Às vezes é mesmo isto, uma matéria, um professor, um projecto pedagógico e pronto, tudo muda, a vida inteira troca globalmente de rumo.

 

-...Olha que revi muito disto no Dr. Salema. Mas no caso era outro pedagogo qualquer que nunca conheci. A Alzira (era o nome da telefonista) é que viveu entusiasmada uma cadeia longa de empreendimentos curriculares. Um dia apareceu-me lá com um texto pulquérrimo da autoria dela: a histórian dum dia de vida, em que cada episódio aparentemente irrelevante do quotidiano duma rapariga no primeiro emprego era lido em busca de afloramentos da matéria que andava estudando. Digo-te que era um espanto! O que ela logrou descortinar por detrás de cada rotina, de cada palavra, atitude, de cada espaço, contexto! E o encantamento que ressumava daquelas páginas!

 

-...Enganas-te, o que mais me tocou foi a variedade do que ela protagonizou o ano inteiro. Olha, depois daquele, escreveu uma fiada de poemas relativos a aspectos da unidade posterior. É um trabalho que nada tem a ver com o primeiro, na modalidade adoptada. Mas não ficou por aqui, na Páscoa tinha um género de fantasia dramatizada relativa a um novo tema que provocava impactos ambientais, embora fosse outro o cerne da matéria. No fim do ano elaborou um estudo estatístico com os nossos ficheiros de doentes. Descobriu, por exemplo, que eu atendia mais professores do que profissionais de todos os outros domínios juntos.

 

-...Não importa o que descortinou, até podia nem ter sido nada. Calculo que muitos outros colegas dela nem mesmo tenham acendido um fósforo de luz em campo nenhum, mas de certeza que o entusiasmo, a garra com que se envolveram na aventura dos desafios propostos foi igual.

 

-...Não, nenhum destes trabalhos foi grupal, mas curiosamente a Alzira permanentemente recebia e dava achegas a todos. Não foi por mero acaso que me vi envolvido nos estudos dela: procurava pistas que eu lhe poderia dar, queria ver como eu reagia àquilo, para confirmar ou infirmar o entusiasmo dela, o acerto ou falha dos caminhos por onde se metera à descoberta. Era igual com os demais, estava permanentemente a indicar-me aspectos, pormenores provenientes dum colega que trabalhava ao balcão, doutra que era florista, dum terceiro que fazia entregas e assim por diante.

 

-...Tens razão, isto é fruto dum método em aula que será inelutavelmente uma forma de aprendizagem por descoberta. Foi o que me recordou o Dr. Salema.

 

-...Há uma diferença que talvez não te seja notória, mas para mim, pelas conversas com a Alzira, ficou clara: o que nesta franja etária (que vai dos dezoito aos vinte e cinco, tendencialmente, abrangendo o ensino superior) é primariamente estimulado não tem nada a ver com o pensamento formal criador. O centro doravante é outro.

 

-...Não acreditas? Repara, que é que entusiasmou tão consistente e continuadamente aquela rapariga? Não era inventar modelos de interpretação inéditos nalgum vector nem mesmo a criatividade em qualquer domínio que a metodologia permite e promove. Não. O que a fez perder a cabeça o ano inteiro naquela cadeira foi a liberdade de se definir, de se encontrar, de se revelar.

 

-...Ah, claro que tudo conta.Se os temas ou os modelos não cativarem, também um indivíduo nunca descobre o que quer, para onde lhe vale a pena virar-se.

 

-...A diferença? Eu di-la-ia deste modo: durante a juventude todos temos de nos definir nos domínios-chave da vida. É nesta franja etária que no geral escolhemos as áreas laborais e principalmente uma carreira, também aqui terminam os cursos superiores e aflora a actividade produtiva, igualmente neste período se constituem a maioria das famílias e nascem os primeiros filhos, como também se firmam as preferências ocupacionais dos períodos de lazer e tempos livres. Qualquer destes domínios tende a marcar o resto da vida de cada protagonista, por várias décadas. É o que leva o jovem a sentir-se apreensivo, cheio porventura de ansiedade, quando os anos correm e ele não logra talhar um rumo, eleger uma escolha, apostar numa alternativa definida e duradoira naqueles campos. O adolescente não vive tal premência, é a idade de ir à descoberta, de experimentar alternativas, de pôr-se à prova, ainda não é tempo de decidir, escolher e dar um rumo à vida. As tónicas mudam dum período para o outro. Isto requer abordagens diferentes.

 

-...Tens razão, a mezinha é o método de aprendizagem por descoberta, como referi para a adolescência. Há, porém, afinações de precisão que o adequam e tornam apto para a idade posterior. Por outro lado, aqui já não encontrei como optimizador o método de inquérito que tão bem opera no desenvolvimento da criatividade formal.

 

-...Em pormenor? Olha, a Alzira, ao atirar-se a cada projecto, costumava confidenciar-me: “Era uma coisa que eu queria da minha vida, não sei se irei ter oportunidade, mas ao menos aqui já posso ir-lhe tomando o gosto.” No primeiro, certo dia, comentou-me: “Gostava mesmo de investigar. Descobrir coisas novas, curas, tratamentos, deve ser fascinante. Olhe que isto ainda não é nada e eu já ando toda entusiasmada.” Creio que foi o que a virou para a Enfermagem.

 

-...Eu diria que aquilo que vai ao encontro do jovem é privilegiar, na escada que progride da esquematização ao resumo pessoal, até à simulação de exame, culminando no projecto pedagógico com um trabalho criativo, é privilegiar, dizia, este último, dando a oportunidade a cada aluno de ir antecipando e dando corpo, desde já, aos rumos de vida por que for optando. Isto tanto pode ter a ver com as áreas do saber, como com os pendores por onde são focadas, como com os modelos de trabalhá-las (imaginar que é jornalista, investigador, criador dum programa de rádio ou televisão, actor, escritor...)

 

-...Intervindo deste modo o professor anda a ajudá-lo a definir-se e realizar desde logo os campos por que opte na vida, sem o aluno precisar de o empreender exclusivamente quando fora da escola. Desta maneira vai encontrando também campo lá dentro e aprendendo a utilizar a aprendizagem da cultura crítica, de rigor, em proveito de projectos individuais de realização.

 

-...É verdade, é uma questão de tónicas: na adolescência, acentuar os mommentos e vivências de criatividade; na juventude, os campos, os vectores e as modalidades de aplicar os saberes, entrosando a escola na realidade existencial, nas escolhas do jovem.

 

-...Há, há outra estratégia nesta mezinha que importa não ignorar. A Alzira, a princípio, baralhou-me. Eu julgava que era um trabalho de grupo. “Não, não. Isso era muito complicado” - esclareceu-me ela. - “Nós damos ideias, ajudamo-nos, ainda na outra semana estivemos, eu e mais dois que nos entendemos melhor, a rever tudo o que eu já tinha feito. Apontaram-me um conjunto de pormenores em que eu nem tinha reparado. Já melhorei muito ao reescrever tudo. E eu, para eles, faço o mesmo, à medida que progridem no que andam elaborando. Ajudamo-nos todos.” Perguntei-lhe: “Mas foi o professor que vo-lo impôs?” E acudiu ela: “Ah, não! Alguns estão a trabalhar em grupo, há lá um conjunto deles que veio do dia, mais novinhos, dão-se bem e então preferiram tudo em colectivo. Nós, não, à maior parte não lhe dá jeito, com horários a combinar... Nem era bem o que gostaríamos de fazer, compreende? Cada qual vive o projecto de maneira um bocado diferente, preferia ir por caminhos que não são exactamente os dos outros. Então é melhor um a um avançar por ele próprio e ajudarmo-nos mutuamente nisto.”

 

-...Ora aí está. O adolescente, inseguro, sente-se melhor em grupo, ainda anda à descoberta da variedade dos laços e projectos humanos em redor. O jovem, porém, prefere trilhar o sendeiro dele, impor a marca da própria pegada.

 

-...Exactamente, o trabalho de grupo também não resulta aqui: a juventude requer a definição individual. Abrir-se a todas as ajudas, sim; estar disponível para dá-las, igualmente. Mas lá caminhar em rebanho, nunca. Agora é cada qual pelo próprio trilho, conforme a propensão, a escolha, a vocação particular dele mesmo. Doravante procuram itinerários individuais únicos, irrepetíveis. Protagonizados por cada jovem e mais ninguém.

 

-...De acordo: compatível com isto, apenas a disciplina partilhada, com o poder tão dividido e colectivamente assumido que todos convivam e laborem como iguais. Na aula ideal, o professor é um coordenador, anima, avalia, estimula e encoraja. Fica diluída, entre parêntesis, a posição e o papel hierárquico e, se tudo operar bem, jamais precisará de se manifestar. Então mestre e alunos antolhar-se-ão, ao observador de fora, como um grupo natural em que não é fácil vislumbrar hierarquia, tão espontâneo é o entrosamento duns com os outros. Agora, não esquecer. O poder está lá e, se alguém transgredir, não se portar à altura, aí o docente puxará dos galões e imporá a ordem e o respeito. Aqui, entre os jovens, como com os adolescentes. O modelo disciplinar correcto é permanentemente o mesmo. A tónica é que nesta faixa etária se coloca no derradeiro patamar. É comum ouvirmos, contam os professores, este comentário no turno da noite, o dos alunos quase todos na faixa da juventudo: “Ai, é tão diferente do dia! Todos nos tratam duma maneira!... E nós também mudámos muito. Agora é tudo mais calmo e a sério. A vida não é brincadeira, acabou a irresponsabilidade de antes.” Creio que é uma forma de darem conta, concomitantemente, do próprio trânsito de desenvolvimento e da correspondente adequação da relação pedagógica às novas características dominantes.

 

-...Como é que resumiria as mezinhas para a juventude? Olha, primeiro, o método da aprendizagem por descoberta. Depois, as afinações de precisão dele. Desde logo, a estratégia centrada no trabalho criativo, vincando os campos, pendores e modalidades práticas que forem ao encontro das propensões e escolhas de cada jovem. A seguir, o trabalho personalizado, aberto a todas as partilhas, mas percorrido como itinerário individual pelo próprio pé de cada qual. Finalmente, a disciplina centrada na parttilha do poder, para atingir o máximo de paridade responsável e equilibrada no trato mútuo.

 

-...Compreendo a tua reserva. Isto é tudo referente a optimizações e para experiências optimizadas. De facto, a média fica tão longe disto... E para tais casos, enfim... Como agir aí, não é?

 

-...Bem, não tem tudo o mesmo peso. Na relação pedagógica é geral a acalmia dos conflitos de gerações na escola a partir da entrada na adolescência. É claro que ajuda também o facto de acabar neste patamar etário a escolaridade obrigatória. Os mais inadaptados, imaturos, é natural que busquem outros rumos de vida. O mesmo diríamos dos indisciplinados crónicos: não sobrevivem no aparelho para além do nono ano, tão penalizados acabam por ser, período após período.

 

-...O que resta? O desenvolvimento intelectual. Sabes que os números mais fiáveis nos reportam que 85% dos actuais adultos ficaram bloqueados no patamar do pensamento concreto, no termo da terceira infância, e não treparam para mais patim nenhum.

 

-...Que volta dar? A Alzirra contou-me muitas vezes que o grupo de adolescentes da turma tinha uma colega que até lhe parecia mentalmente retardada. Tudo o que lia ou lhe era explicado ela compreendia-o apenas em termos da experiência do dia-a-dia. Uma vez relatou-me que haviam definido um valor humano como sendo a importância relativa atribuída a uma atitude, comportamento ou relação com alguém. A tal rapariga ficou perplexa, mostrando não entender nada disto. Um colega, a ajudar, adiantara: “Então não vês que, por exemplo, o relacionamento que temos aqui uns com os outros é, certamente, menos importante para ti do que o que tens com a tua mãe ou com um irmão teu?...” E aí a adolescente retorquira, meio hesitante: “Ah, claro! Então é como, vamos supor, eu receber 9,5 euros por um jantar e por outro que teve uma sobremesa ou um prato mais caro já ter de cobrar aí uns dez, não é? O valor é diferente...” Claro que esta rapariga trabalhava num restaurante.

 

-...O professor? A Alzira referiu-me que ele se colocara ao lado da aluna e gastara um bom bocado da aula a perguntar-lhe através de exemplos encadeados uns atrás dos outros. “Para ti quem é mais importante, os clientes ou a tua família?” E quando ela retorquira: “Oh, claro que é a minha família, quem lá vai comer a maior parte sei lá bem quem é!...” E ele, a insistir: “E, dentro da tua família, quem é mais importante na tua vida, os teus pais ou os teus irmãos?” Novamente ela: “Por ora são os meus pais, agora quando eles me faltarem ou então se ficarem acamados ou sem tino, aí...!” Tornara o docente: “Pois. E que é que te importa mais, que vocês se dêem todos bem, ou mal, ou assim-assim?” Sem hesitar, logo a rapariga retorquira: “Então o que importa é que a gente se dê bem, não é? Ou , ao menos, assim-assim. Lá darmo-nos mal é que não, setor, não há coisa pior numa família. Deita uma casa abaixo, como ccostuma prevenir o meu avô.” E de igual modo por diante. Antes de ir atender outro aluno, teve o cuidado de recomendar aos colegas de grupo, já que eles trabalhavam em conjunto, para treinarem isto com ela em todas as matérias em que revelasse dificuldade, que ilustrassem tudo com casos e conjunturas da vida, que deste modo ajudá-la-iam a dominar a matéria inteira.

 

-...Claro que é precário, mas não tanto como cuidas. O professor mostrou andar bem atento à aprendizagem por osmose, aqui ainda mais fundamental, dado que continuava usando a metodologia de os pôr à descoberta e aquela aluna vivia manifestamente descolada muito lá para trás do pelotão.

 

-...Crês que era melhor ele ter optado pelo método de inquérito, com o questionamento sistemático das unidades programátiicas? É complicado. Era melhor para esta aluna, pior para os demais. Como optar? Ele fez, quanto a mim, pelo preferível para a maioria, o que é correcto. Depois jogou com a dinâmica do grupo-turmaa para ir o mais longe possível naquele caso particular, no contexto de que dispunha. Melhor, em tal enquadramento, não vislumbro como. Aquele professor, que nunca cheguei a contactar directamenter, era decerto um grande pedagogo.

 

-...Concordo contigo que, na generalidade dos casos, dado o retardamento dominante da maioria dos alunos, seria então de optar pelo outro caminho. Aliás, creio que é a mezinha fundamental a seguir com tudo o que ficou pelo itinerário e que tentarmos recuperar: vamos buscar o educando onde ele estiver, com as estratégias adequadas ao nível em que acabou bloqueado. É o mesmo que com a terapia psicológica: desbloquear um encadeamento comportamental que se fixou e empederniu num estádio precoce ou arcaico. Neste caso do desenvolvimento das actividades da razão humana é idêntico: normalmente as conjunturas decorrem a contento até ao termo do pensamento concreto; a partir daqui é que a escola terá de intervir, na idade própria ou fora dela. Então o método de inquérito é que nos dará a chave do desbloqueamento até chegarmos a estabilizar o pensamento formal. Quanto ao patamar posterior, bem, é o problema de ainda irmos a tempo ou de já ser tarde demais.

 

-...Que é que quero sugerir com isto? Olha, há tempos um educador confessou-me, um bocado divertido, que sofrera um choque num curso de pós-graduação que frequentara em Psicologia: tinham testado as faculdades intelectuais dos docentes inscritos e adivinhas qual foi o resultado? A maioria, mas uma larga maioria, não dispunha de pensamento formal. Repara que são adultos, formados e a praticar a docência. Em que ficamos? É apenas porque os testes não estão aferidos para nós ou porque é constantemente preconceituoso qualquer tipo de graduação? Até admito, que remédio, se é verdade! Mas não vou deixar de ficar apreensivo por não podermos comparar-nos nem medir-nos com os formados do centro europeu. Muito provavelmente é demasiado precário o nível de pensamento formal que logramos atingir, à mais insignificante variação esbarronda-se, não dá conta do recado. Então seremos um país que apenas opera seguro intelectualmente a nível concreto. Tudo o mais escapa-nos ou é problemático.

 

-...Ignoro, ninguém vislumbra qual é a conjuntura real, que povo temos neste domínio. Uma coisa é veraz, da clínica vem-nos o princípio que verificamos igualmente aqui: quanto mais tarde principiar uma recuperação, mais precária e vulnerável irá ser, menos resistente e duradoira, perante qualquer dificuldade ou obstáculo com que se defronte. Entendes porque provavelmente não há-de haver condições para alguém atingir a criatividade formal, o derradeiro patamar operativo da razão humana? Não chegamos lá sem os outros e o anterior é, se calhar, tão raro na comunidade em geral e tão de areias movediças em quem desabroche que, porventura, não oferta base de apoio bastante para sobre ele podermos construir o que quer que seja.

 

-...Pessimista?! Bem, creio que estou tentando ser realista: não somos o País onde não desabrocham nunca sistemas filosóficos nem teorias científicas em área nenhuma? Aí tens o quadro que explica porquê. Estúpido era fechar os olhos à verdade crua e desagradável. Inteligente é olhar de frente a nossa estrutural falta de desenvolvimento intelectual, pegar nas mezinhas que se revelam eficazes para curar a lacuna, implementá-las à escala colectiva, no aparelho inteiro. Aí poderemos devir optimistas: estaremos aptos a desencadear um cultivo generalizado de intelectos de topo e mesmo de génios, a proliferar pelo País inteiro. É tão linear como isto. As melhores aventuras do terreno, os nossos melhores educadores em actividade, dão-nos o guião e o itinerário. É apenas questão de ajustá-lo molde a molde e, completado o quebra-cabeças, como o temos vindo a elaborar nestes serões, levá-lo à prática no aparelho educativo inteiro, escola a escola, nível de idade a nível de idade. Os que algum dia apanharam o gosto de educadores não esperam nem quererão outra coisa. Aliás, que pai ou mãe hesitaria um momento em libertar as asas aos respectivos filhos para voarem até à genialidade?

 

-...Contradição entre utopia e desespero? Olha que tu... Nada disso! É apenas acolher a dialéctica entre a vida e o sonho. Já Sebastião da Gama nos advertiu de que “pelo sonho é que vamos”. E outro grande poeta-pedagogo, António Gedeão, nos alertou para os que fecham os olhos a isto, prevenindo que “eles não sabem que o sonho é uma constante da vida.” Ora, “se o sonho comanda a vida”, vamos mas é tratar de pô-la a caminho de o concretizar. Temos o mapa do tesoiro, que é que pode justificar que nos não lancemos em deamanda dele?

 

-...Não é tão linear assim? Tens amanhã uma reunião decisiva lá no Ministério? Mas é uma grande novidade! E continuas a acreditar neles, não é? Valha-te Deus, homem!...

 

-...É um problema, de facto: como atingir a escola inteira, sem contar com o aparelho? E como contar com ele, se milita definitivamente contra quanto pretenda recuperar algo deveras? Concordo que é um inferno!...

 

-...Olha, boa sorte! Vai lá dormir uma noite calma, para estares amanhã bem fresco. Felicidades! Até para a semana...

 

 

 

 

 

 

 

 

Mezinha 9

 

 

- Vá, rápido, foge do temporal! Dá-me o sobretudo e vai pôr-te à lareira, para secares depressa. Frio não está, mas lá chuva, valha-nos Deus, o céu está roto, por estes lados!

 

-...Apetece-te dormir embalado pela inverneira e a ventania? Claro, são as velhas reminiscências de infância. No quentinho das cobertas de trapo, às vezes tão pesadas e tantas que quase nem nos mexíamos por baixo, não era? Agora pomos um edredão cujo peso nem sentimos e pronto, é uma fornalha. Na aldeia não era assim, às vezes nem ao borralho lográvamos esquentar, que gelo! Os nossos filhos já não terão mais memórias destas, não é?...

 

-...Estás sorumbático, homem! Vamos lá a alegrar o serão. Adivinhas o que nos reservei para hoje? Arrufadas! Ah! E fogaças também...

 

-...Não, não voltei à Vila da Feira, que hoje é cidade e tudo. Aliás, irás ver a diferença. É que do Luso vieram-me esta semana arrufadas de coco. Como na clínica sabem do meu fraquinho por ele, olha, foi uma prenda de Ano Novo.

 

-...Mas que raio de conversa! Estás velho demais para prendas?! Donde é que te vem tal ideia? Pregaram-te alguma!

 

-...Mezinhas para a velharia do Ministério da Educação? É uma boa pergunta. Talvez melhor fora questionar como ressuscitar cadáveres ambulantes ou então como enterrá-los de vez...

 

-...Compreendes agora o envelhecimento dos professores? Olha, ainda bem! Isto até permitiria ajustamentos fundamentais, muito salutares, em todos os vectores, no aparelho escolar: eu poderia ter muito menos clientela, ou, em alternativa, com problemas bem mais facilmente resolúveis. Podes crer...

 

-...Como é que eu faria? Algumas pistas, pelo menos, antolham-se-me óbvias.

 

-...Então, basta relembrares, por exemplo, os teus primeiros anos como professor e compará-los com o que és hoje. Queres ver a diferença? Há quinze dias estive com a família a veranear o fim-de-semana na calma de Milfontes, na casa de férias dum colega, para relaxar e recuperar um pouco. Coincidiu com a festa de Natal da Escola Secundária da terra que foi no sábado. Claro que não conheço lá ninguém, mas um vizinho tinha um rapaz que é aluno, os meus filhos meteram conversa, ficaram cheios de curiosidade com o que eles iam levar ao palco, insistiram comigo que era um bom programa para a tarde e olha, fomos lá parar.

 

-...Não, não, a festa era da escola toda, tratavam de mostrar em público e partilhar alguns projectos de animação provenientes das turmas, todos à roda da temática natalícia. Houve participantes de todos os anos e com muitos professores envolvidos, claro.

 

-...Bem, conseguir ver lá a diferença das idades, para além da aparência dos indivíduos, não consegui. Mas reparei noutra coisa. Do princípio ao fim houve um docente que andou permanentemente a entrar e a sair do palco. Fez de maestro, de actor, de encenador, de apresentador, sei lá... Falei com a directora sobre ele. “Os colegas comentam que já não há gente desta” - afirmou ela - “a ele só lhe falta vir viver para a escola. Faz de tudo, como vê, apoia todos os projectos, coordenou o programa inteiro desta festa, acompanhou os ensaios, sem ele nada correria como está correndo.”

 

-...Aí é que te enganas. Não é nada solteiro, estava lá a mulher dele e um filho ainda pequeno...

 

-...Pois claro, é o sangue na guelra. Ora bem, tu achas que ainda o tens, na idade em que estás?

 

-...Era onde eu queria chegar. Na primeira fase da carreira, aí até aos 35, 40 anos, prevalecem as energias da primeira adultez combinadas com a preocupação de dominar a contento as exigências do trabalho, os conteúdos programáticos, a relação pedagógica mormente em aula, a disciplina ao gerir as turmas... Os novos professores investem tudo nisto, é a prioridade-chave.

 

-...Ah, ainda te lembras do teu primeiro ano, no D. João de Castro. Ficaste mesmo enfiado quando aquele miúdo, o filho do médico, te veio com todos os pormenores do sistema neuro-vegetativo. Não tinhas estudado nunca semelhantes coisas, nem tinham nada que ver com a Psicologia que andavas a leccionar. É, é a inexperiência que nos deixa sem pio, claro. E então aquele diabo de turma de arruaceiros, cheios de autos na polícia e em tribunal? Aí sofreste bem as passas do Algarve, eu temi deveras que não aguentasses, como aquela colega tua que teve de encontrar apoio psiquiátrico a meio do ano, recordas-te? A primeira cliente que me mandaste...

 

-...Pois, são os pontos fracos dos vintaneiros, não dominam bem os programas, nem a relação com as turmas, nem a disciplina... Também são novos, não é? Muito verdes. Quando já na casa dos trinta, isto vai ficando a contento e então os empenhamentos podem ganhar mais fôlego e segurança.

 

-...A mezinha? Olha, eu diria que vintaneiros e trintenários, operando como irmãos mais velhos dos alunos, estão mesmo indicados para lhes servirem de confidentes, cultivarem relações próximas e quentes, sem o que a teia pedagógica nunca chega a cativar pelo coração, o mesmo é dizer que jamais devirá formativa. Têm é aquele calcanhar de Aquiles, para o qual devem contar com o apoio, a prevenção, o reconhecimento dos mais velhos, não é? Senão os alunos poderão subverter tudo e comê-los vivos: nunca a proximidade pode ir ao ponto de estes educadores perderem a liderança do itinerário, acabarem com uma turma ingerível, de mera convivialidade informal e sem rumo, ou então indisciplinada e abusadora.

 

-...Há mais, há. Como são pedagogos da idade com mais energias e disponibilidade, cai-lhes como uma luva a animação de projectos, a iniciativa cultural, a relação escola-comunidade e tanto mais quanto maior reconhecimento lhes advier da teia envolvente de colegas e órgãos de poder, bem como quanto mais território de realização individual e mais estabilidade em todos os domínios educativos forem logrando. Na idade dos vinte, trinta, estamos permanentemente prontos a experimentar todas as novidades, não é? Na vida em geral, também no trabalho, e os educadores não fogem à regra.

 

-...Nesta fase eras um ignorante? Claro que eras, somo-lo todos. Há um claro predomínio da inteligência plástica sobre a interligência cristalizada. Andámos ansiosos a recolher, recolher informação, a conformá-la com a nossa experiência de trás, a testá-la no quotidiano. Ainda não há vivências em número bastante nem tempo de verificação capaz para toda a turbulência ir assentando. Isto apenas advém lentamente, com o correr dos anos. É com todos como com os professores. Eu também andei por aí, ninguém nasce ensinado.

 

-...Pois claro, quando estagiaste a tua postura já era outra, tinhas uns anitos a mais. Eu igualmente. Contávamos com muita bagagem entretanto acumulada na experiência laboral.

 

-...É verdade: e muita ilusão foi murchando pelo caminho. Creio que é igualmente inelutável com toda a gente e em todos os domínios, não é?

 

-...Dura pouco? É curioso que hoje digas isto. Lembras-te de que naqueles anos sentias rigorosamente o contrário? O tempo psicológico é bizarro. Como com os nossos filhos: enquanto pequenos e atreitos a mil enfermidades e inesperados, parece que um ano nunca mais se escoa para os vermos libertados, defendidos e maduros. Depois, aquilo durou um instante de nada e já lá vão pela vida fora pelo próprio pé. Mas deixemos isto. Lá em Milfontes reparei noutro pormenor: acreditas que todos os que tinham funções dirigentes estavam por ali, mas na plateia, embora com muitos educandos das turmas deles a intervir? Faziam as honras da casa, com os pais e outros familiares, com rresponsáveis da comunidade, com alunos, com a garantia da ordem, no fundo. Foi-me claramente visível esta especialização tendencial de actividades. Mas agora o pormenor: todos estes tinham caras de mais velhos, estive a reparar em tal o tempo inteiro. É curioso. Muito significativo.

 

-...Não, claro que não estavam os professores novos por atacado no palco, longe disso. Aquilo era dos alunos, fundamentalmente, e ainda bem. É o modelo mais correcto e mobilizador. Aliás, numa das partes encostei-me à parede do fundo do salão. Ao meu lado estava um grupo de jovens que, à partida, não vislumbrei se eram alunos, docentes vintaneiros ou familiares de estudantes. A certo momento, numa música mais animada, cantada e bailada no palco, fizeram roda também e dançaram lá no extremo da plateia. Perguntei quem eram: moças do Secundário misturadas com professoras. Pareciam quase da mesma idade, numa cumplicidade perfeita, em partilha. A tal mistura de irmãs mais novas e mais velhas...

 

-...Era aí que eu queria chegar: ninguém de meia idade fez isto, como nenhuma destas a vi fazer as honras da casa nem garantir espontaneamente a ordem. Vês a diferença?

 

-...Ora bem! São novas, querem é festa, dizes. Pois. A partir dos quarenta até aos cinquenta e cinco, sessenta anos, aquele companheirismo com os alunos dilui-se, as idades ficam muito distantes, a afinidade é gradualmente mais sentida e vivida com os colegas do que com os estudantes, o convívio preferido é o da sala de professores e não o dos recreios.

 

-...A relação pedagógica não se distancia, evidentemente. Torna-se é menos superficial, menos ligada a ninharias saborosas, as pequenas vivências e episódios do quotidiano. Já não há confidências dos educandos, isto é para os da mesma idade.

 

-...Não os estou nada a envelhecer antes do tempo. A questão é que nesta franja etária o jogo das expectativas dominantes é outro. Naquela os alunos projectam a imagem do irmão mais velho no docente recém-formado e inexperiente, cheio de verduras nos sonhos, como eles. Agora, nos quarentões e cinquentões isto já não opera. O que os discentes aguardam é um padrão de atitudes na linha do dos pais deles, uma tónica de quem assume a responsabilidade por todos, quem tem e exerce autoridade, põe na ordem quem transgrida. Sobre os ombros destes recai a estrutura inteira da escola, como a da família, em casa.

 

-...A mezinha é o que eu lá vi na festa do Natal: os quadragenários e quinquagenários estão mesmo vocacionados para dar conta do aparelho, da organização, dos quadros directivos de base, intermédios e de topo. Vê lá se não foi o mesmo contigo, rigorosamente. Quando dominaste os programas, as aulas, a disciplina, foi quando tiveste as primeiras Direcções de Turma por escolha tua, em Alverca, não é verdade? Ainda me lembro de me falares naquilo. E depois, repara, quando ficaste no Conselho Directivo, mais tarde, que ocorreu? Pegaste-te com a tutela e, no meio do desaguisado, trataste de transferir-te para os departamentos centrais do Ministério, a fim de pôr a casa em ordem. Mas entretanto já andavas bem por dentro da casa dos quarenta. Quando os professores adquirem mestria nas tarefas imediatas, mormente nas matérias, nas metodologias e na relação pedagógica, principalmente disciplinando-a, aí ficam interiormente libertos para atender aos outros níveis. Então irão olhar à escola e à organização e funcionamento dela. Bem como ao aparelho educativo como um todo, ao modelo que o suporta, aos estrangulamentos que gera...

 

-...Não vês onde cabe a gestão da ordem da festa de Milfontes... Então, é inerente àquilo: quem toma em mãos o aparelho, toma o poder e os meios de que ele dispõe para operar eficazmente. Por isto é que os professores de meia idade tendem às funções de comando e autoridade. São os que estão maduros para tal. Foi o que lá constatei igualmente.

 

-...Agora estás cansado e desiludido, mas não quando te empenhaste em ocupar o lugar que tens. Já lá vão uns anitos, não é? Então ainda o sonho imperava e havia já um bom lastro de bagagem para lhe dar húmus, permitir enraizá-lo.

 

-...Pois não, não te fatigavas como agora. Que querias? Manter a genica da juventude? O envelhecimento físico não poupa ninguém. Já é muito bom se formos renovando o espírito, para não morrermos por dentro antes do tempo.

 

-...Que ocorre nesta franja? Olha, aqui equilibramos a inteligência plástica com a inteligência cristalizada. Tanto andamos disponíveis a assimilar as novidades e a protagonizá-las como nos servimos da experiência adquirida e acumulada, de que não prescindimos. Nem acolhemos de bom grado pô-la em causa senão por boas e confirmadas razões. É que ela já provou acerto e eficácia, não é para ignorar ou jogar fora. Os dois pratos equilibram-se.

 

-...Empobrecimento na relação pedagógica? Não, olha que não. Este perfil da meia idade vai é mudar as tónicas. Lembras-te de que foi nestas idades que me vieste com as casos de alunos mais complicados: aquela de Alverca, por exemplo, ansiosa com a indefinição de escolhas, de rumos de vida, já não recordo o nome, a que andava hesitante, entre outras coisas, em aceitar ou não o namoro com um rapaz que os amigos afirmavam que era homossexual? Ora, esta foi apenas um episódio, nos anos posteriores falámos sempre, constantemente, ora dum, ora doutro. E tantos que foram! Olha, aquele filho de médicos, drogado e traumatizado, que me enviaste à consulta, também é deste período. E lembras-te de que organizaste o gabinete de orientação profissional na escola onde estavas – qual foi? D. Dinis, Afonso Domingues...? Ah, essa! - porque muitos dos mais velhos vos não largavam de mão, com preocupações deste domínio? Pois, é isto. A relação pedagógica centra-se cada vez mais nos problemas de fundo da vida, nos desafios graves, nos obstáculos mais ameaçadores, em tudo de que derivam efeitos de peso e duradoiros. Para isto, apenas professores maduros contam. Olha, até para a segurança, a disciplina, as arbitrariedades em aula: lembras-te daquele colega teu que te deu cabo do juízo quando eras delegado de grupo disciplinar, porque corria tudo a negativas? O que usava exclusivamente terminologia técnica, num discurso muito universitário?... Vê lá, os alunos recorreram a ti e não aos outros professores mais jovens da turma. Repara bem na tua idade, entretanto: andava pelos quarenta e muitos, se calhar já cinquenta, não?

 

-...Evidentemente que é natural, buscam a experiência, a maturidade e o equilíbrio que apenas os anos poderão ir dando. Nisto, a boa vontade, o empenhamento, o profissionalismo, não bastam: põem-nos a caminho, mas só com o tempo é que os frutos vão amadurecendo.

 

-...Docentes mais velhos? Sim, uma grande fatia foi reformada na casa dos cinquenta, os do pré-escolar e Primeiro Ciclo. Mas ali na festa não havia alunos tão novos. De qualquer modo, em geral, vocês findam a carreira na casa dos sessenta, mais ano, menos ano. Havia lá na adiafa muita gente de idade, mas creio que eram avós de estudantes, na maioria. Os únicos professores desta faixa etária em que reparei foi num grupinho que ficou sentado na coxia do meio, mesmo no âmago da plateia: umas cabeleiras brancas e uns ombros corcovados chamaram-me a atenção. Olha, ficaram ali arrumadinhos e bem dispostos durante o espectáculo inteiro. Um deles era o coordenaddor dos serviços sociais, já não dá aulas, contaram-me, sofre muito de problemas articulares, anda permanentemente adoentado, tem mesmo um ar enfermiço. Os mais, não. Velhotes sadios, muito calmos, com ar um tanto fatigado, apenas. Ali prontos a saborear o prato, a fazer corpo com a comunidade, mas como que da berma da estrada. Agora repara: imaginas o que me chamou mais a atenção para aquela fila? É que, regularmente, ao pais e os avós passavam o tempo a ir lá, ora um, ora outro, a cumprimentá-los, trocar uma palavrinha, um sorriso... E pronto, retomavam o respectivo lugar. Ah! E beijos e festinhas daquele grupo nas caras e nas cabeleiras dos alunos e dos miúdos mais pequenos eram uma constante. Foi um corropio regular durante a tarde inteira.

 

-...O que é isto? Olha, lembra-me as festas de família e o trato que damos aos avós, lá muito descansados num recanto qualquer, por onde regularmente todos vão passando e onde os netos mais pequenos vão pedir que lhes contem contos. A imagem saltou-me à vista, ao reparar naquilo.

 

-...Bem, o professor sexagenário é mesmo, no jogo mútuo de expectativas com os alunos, o avô que dá colo, de regaço permanentemente disponível, compreensivo em toda e qualquer eventualidade, pronto a perdoar constantemente e a dar outra oportunidade. É o depositário da sabedoria e da bondade. Claro que já não tem horizonte laboral que justifique grandes projectos, faltam-lhe energias para fortes envolvimentos, tem já tanta experiência acumulada que os inovamentos o deixam ou indiferente ou, então, apreensivo, angustiado, quando constata que já não está à altura de responder-lhes. A instabilidade, a mudança, amedrontam-no: não conta com plasticidade bastante nem energias para corresponder-lhes, habitualmente. São conjunturas que em regra o ameaçam nas poucas reservas que lhe vão restando.

 

-...Não, isto não é negativo: um colo acolhedor e benevolente sabe tão bem a quenquer que seja! Ora, os alunos podem ter e têm muitas feridas a requererem bálsamo. Este é o educador mais apto a ofertar-lho, por norma.

 

-...Como é que conciliam isto com o predomínio da inteligência cristalizada e a lenta diminuição da fluída? Olha, é como em casa. O pedagogo sexagenário busca as pequenas alegrias do quotidiano, vive o dia-a-dia, acorda de manhã e fica feliz porque, afinal, ainda mora do lado de cá. Ora, enquanto isto não finda, importa não perder nenhuma das oportunidades de saborear e dar sabor a cada momento que transcorre, porque amanhã ninguém adivinha o que lhe advirá. Então, o encontro com os alunos, fruir-lhes a companhia, a vivacidade e os sonhos, partilhar com eles a sabedoria de vida que lhe permite relativizar todos os eventos, agradáveis ou tristes, prometedores ou ameaçadores, ouvir desabafos, ligar memórias, entrelaçar factos e tempos vividos, - em tudo isto o educador ancião aproveita o instante que flui e empresta-lhe a bonomia e o bom senso de que o dotou a sabedoria do tempo.

 

-...Pois, esta é a mezinha da terceira idade.

 

-...Que ocorre quando não atendemos a nenhuma destas linhas de rumo? Olha, tive a oportunidade de acompanhar até ao fim da carreira um presidente de Conselho Directivo em Reguengos de Monsaraz, já lá vão uns anos. Era um excelente educador e dirigente e largou o cargo para se reformar. No caso dele, não foi violentado, tinha energias que bastavam e sonho a alimentá-lo até ao derradeiro dia. É, porém, uma excapção muito rara e que, no fundo, foi viabilizada por um consenso generalizado do corpo docente na escolha dele e depois em apoiá-lo e desdobrá-lo em todas as actividades. Quando não há condições destas (e em geral não as há), tal conjuntura transforma-se numa violência intolerável e às vezes mortífera. Aliás, antes deste, pude relacionar-me com outro professor em fim de carreira, aqui em Lisboa. Coordenava um departamento na escola e manteve-lhe a responsabilidade até à reforma também. Neste caso, porém, a contestação existia, mormente por parte de alunos, mas de alguns colegas igualmente. O desgaste, o nervosismo, o desespero, o desencanto com que finalmente acabou tudo, ao ir-se embora, levaram-no à morte num período muito curto de tempo, um ano e pouco. Nestas idades a amargura, o descobrir-se um trapo inútil, matam deveras, que a fragilidade é muita.

 

-...O desrespeito dos perfis das outras franjas etárias em regra não é mortífero, mas é tão deletério como este. Tu não ignoras que, por exemplo, as Direcções de Turma acabam em norma distribuídas ao acaso a professores recém-chegados, para completar horários, num número maior ou menor de casos, conforme as escolas. Não há por vezes alternativa melhor para viabilizar a elaboração da carga lectiva dos docentes. Ora, lembras-te daquela colega da Damião de Góis que tive em tratamento o ano transacto, a que me veio cumprimentar na Feira do Relógio, há três semanas? Adivinhas porque me foi parar à clínica? Reparaste como ela é nova. Mesmo assim já vai agora no quinto ano de carreira. Pois. Teve o azar de apanhar na direcção de turma com um gangue de miúdos da Pantera Cor-de-Rosa. Como ainda não é muito experiente, não aguentou. O chefe do bando tomou a liderança das aulas, nas horas dela e nas doutros colegas. Aquilo derivou num pandemónio. Ainda por cima era um grupo que aterrorizava outros miúdos com chantagem, extorquindo-lhes dinheiro. Aquela docente bem tentou aguentar, enfrentou a conjuntura, tentou impor-se, aplicou castigos em Conselho de Turma, levou-os à Direcção, expulsou-os da sala, enfim, esgotou todas as alternativas. O bando manteve-se coeso e impenitente. A meio do ano, a ansiedade, o stresse, o esgotamento, o desespero de constatar que perdia em toda a linha, deitaram-na abaixo. Teve de vir a tratamento. Felizmente a escola compreendeu bem e desligou-a então da função, trocando-a por outra colega mais experiente e de personalidade mais capaz de impor autoridade.

 

-...Não, não é uma demissão, é apenas uma medida adequada de gestão dos recursos humanos que deveria ter sido tomada logo à partida, para evitar sofrimentos e perdas. É o que falta em geral no aparelho educativo. Uma gestão burocrática, baseada em papéis e provas documentais, desatenta e ignorando os factores humanos dos intervenientes, alunos ou educadores, apenas pode generalizar perdas e desperdícios. Se atender àqueles pendores, todos ganham. Aliás, neste particular, há muitos estabelecimentos que o fazem, de forma escalonada: entregam as direcções de turma mais atrabiliárias aos melhores, aos mais provados educadores com que contam, de modo a garantir, pelo menos, o atendimento optimizado para os casos mais difíceis, com os recursos humanos disponíveis. Respeitam este critério até onde for tecnicamente exequível. É mesmo um procedimento que tende a generalizar-se, ao que eu tenho vindo a constatar.

 

-...E quando os inexperientes vão para a Direcção? Olha, não vamos mais longe. Lembras-te do afundamento do D. Dinis, naquele período em que ninguém queria geri-lo e puseram aquele miúdo franzino à frente, apenas porque era o que não lograva dizer não às pressões do corpo docente? Coitado, foi um mártir, anos pegados. Boa vontade não lhe faltou, mas a verdade é que a escola, pouco a pouco, ficou irreconhecível. E então aquelas cenas do Filó, o arruaceiro-mor, a desafiá-lo do pátio, cantando “o bacalhau quer alho...”, a apontar para ele, e o homem a correr em redor do pavilhão a persegui-lo, desaustinado... Que desespero e que desautorização! E que ridículo, com toda a gente, dentro e fora da escola, a compartilhar do espectáculo no maior gáudio! Valha-nos Deus!...

 

-...O mais grave de porem os imaturos, os inexpertos, a liderar, nem é o que lhes ocorre a eles, as primeiras vítimas. É o que advém daqui à comunidade escolar inteira. Ninguém pode esperar maturidade, equilíbrio e poder pessoal em quem ainda os não atingiu. É urgente respeitar as prioridades, apetências e capacidades próprias de cada idade. Ora, os professores mudam permanentemente, como todos os outros profissionais, como todos os indivíduos, pela vida fora. É inelutável. Ignorá-lo é ser ingénuo e incompetente: redunda num rosário de perdas, individuais e colectivas.

 

-...Olha, apenas te digo que, se curarmos as mazelas, as de que falámos e mais as que a incompetência, a insensibilidade pedagógica ou a perversidade consciente e encapotada inventarem no aparelho, teremos um modelo educativo a rolar sobre esferas, liberto de pedras na engrenagem, sem estrangulamentos nem desvios de rumo. Claro que ficará rodando na rotina, mas as boas rotinas são boas, não são más, atenção. Quebrar a rotina mudando tudo para que tudo no fim fique tal qual é que é deveras mau, afunda a pique a eficácia das aprendizagens e impede itinerários coerentes e constantes de desenvolvimento de destrezas, competências, capacidades, valores e personalidades. Este é que é o actual inimigo a abater. E quanto mais rápido e de vez, melhor. As continuidades são fundamentais em educação, as coerências repetidas e respeitadas fielmente, anos e anos pegados. Sem isto não há personalidade nenhuma que se estruture, organize, robusteça, comprove madura. Ora, é justamente o que o aparelho educativo mais impede que ocorra, com o permanente bombardeamento de leis, portarias, despachos, circulares, instruções, ordens, pedidos... Uf, até me falta o fôlego!

 

-...Que faremos das mezinhas? Então, a etapa seguinte. Se algum dia uma escola ou aparelho educativo as lograrem generalizar, terão o modelo optimizado. Aí desenvolverão génios em multidão. Será uma nova Humanidade, dado que o homem genial, em qualquer domínio, devirá norma e não a excepção actual.

 

-...Não é utopia nenhuma. Em lugar de haver meia dúzia de educadores a trabalhar deste modo, é estimular mais de cem mil a operá-lo, é convidá-los todos, cada qual com o respectivo grau de competência, disponibilidade e profissionalismo. Não deixará de haver os melhores e os piores, como não deixará de haver quem perverta tudo. O importante é que a espinha dorsal dos agentes de vocação venha a encaminhar-se por este carril, com a intuição pedagógica de que dispõem e o grau de carolice que os caracteriza. O mais ocorrerá pelo arrastamento das convergências. Não é preciso imaginar um eldorado, ninguém o porá de pé, como é evidente.

 

-...De que modo poderias convencer os professores? Premiando quem leccione radicado nestes métodos e estratégias. Podes atribuir-lhes a excelência numa avaliação extraordinária de desempenho, por exemplo. Adiantando dois anos o itinerário da carreira, terias de imediato o corpo docente inteiro disponível para enveredar por aí. Então era apenas orientar a formação profissional inicial e a contínua por estas aprendizagens: a breve trecho, o aparelho escolar inteiro acabaria reconduzido e ficaria concentrado nesta espinha dorsal. O salto qualitativo nos educandos, quer a nível dos saberes e desempenhos, quer a nível do desenvolvimento das personalidades, competências e destrezas, deviria um milagre jamais visto, em canto nenhum do mundo.

 

-...Os docentes não mudam facilmente? Pois não. Mas repara, basta indicar-lhes que esta é a linha de optimização e que a tutela a propõe como rumo para o modelo inteiro, para logo uma leva de educadores, os mais empenhados, os melhores, tenderem imediatamente a enveredar por aqui. Imagina o que era se além disto houver um prémio, por pequeno que fora, o que referi ou outro qualquer!

 

-...Não me digas! Então, agora que estavas quase a colher todo este renovamento educativo é que te vão mandar embora?!

 

-...Ora! É o mesmo: é despedida toda a equipa, dão por findo o vosso trabalho. Mas ele nem sequer ainda principiou! Doravante é que teria piada, agora que desmontámos as mazelas, as existentes mais as respectivas matrizes, inestancavelmente geradoras das actuais perdas e doutras quaisquer supervenientes. Poderias começar a varrer e a curar as enfermidades e mormente os focos donde fatalmente derivam, nas versões mais inesperadas e permanantemente renovadas. Assim, tudo o que andámos a caracterizar foi conversa fiada. Quando, por fim, ias quase ficar convertido, põem-te na rua. E não queres que eu diga que há má fé no Ministério, que é intencional. Claro que é, tens uma teia silenciosa e muito bem camuflada que opera eficaz inelutavelmente neste sentido. Se não fora isto, ora acertava, ora errava. Mas nunca ocorrem os acertos, é permanentemente nas medidas de tudo tolherem que os gabinetes centrais são peritos. Olha que é flagrante demais.

 

-...Pronto, és um inconvertível ingénuo de boa fé. Para anjinho apenas te faltam as asas! Aliás, como é que aquilo por lá pode ser doutra maneira, se há mais de quinze gerações que aquela mole de gente não foi senão treinada para isto mesmo?

 

-...Claro, desde 1500 que é desta maneira, nem uma pausa tivemos nestes derradeiros cinco séculos: permanentemente totalitarismos, iluminados ou não, constantes ditaduras, mais ou menos estremadas. E então o fascismo requintou: tinham de fazer tudo para o País não tugir nem bulir. Os técnicos e administrativos da rede pública nunca foram saneados, nem nos indivíduos nem nas mentalidades. Antes, eram os nobres, os familiares, os afilhados, os cunhados... centúrias inteiras. Agora são os compadrios, os partidarismos, os jogos de influência e as cunhas, as eternas cunhas... Neste clima, que adiantam enxertias de sangue novo? Uma vez lá dentro, no ninho de víboras, fica logo inquinado. Não há conversão nem reconversão viáveis. Não queres acreditar mas os factos estão aí. Clarinhos. Pelo menos para mim. Qualquer boa intenção está condenada à partida. Olha o teu caso...

 

-...Admito até que eles nem tomem consciência de que operam deste modo. Tanto pior: então é que tal forma de agir atinge a perfeita eficácia. Deveio o ideal da administração pública: emperrar de vez o País inteiro e, quanto menos o notarem, menos provável é que alguém se lembrre de ter escrúpulos e que venha alterar isto. A inconsciência, a boa fé da generalidade, constituem apenas, de facto, mais uma garantia da perenidade desta perversão. Tu vives lá mergulhado num caldo de fascismo até ao pescoço e não te dás nem eles se dão conta de tal. Então a continuidade indefinida fica de vez assegurada. Nunca ninguém, a partir daqui, alterará nada. Estamos condenados: o fascismo continua a governar clandestinamente o País inteiro, ao manter na mão a alma das novas gerações. Acorrentada para a eternidade. É demais!...

 

-..Olha, pá, só te digo: abre os olhos, abre os olhos! Até para a semana. Temos de arranjar outro tema de serão, não é? Que tal ver como haveremos de refazer o 25 de Abril?

 

 

 

 

NUMA PALAVRA...

É tanto mais pedagógico quanto mais entusiasmar os educandos. Consiste sempre na aplicação dum saber numa realização prática qualquer.

Podendo revestir qualquer modalidade, tende, por obter melhores resultados, nas áreas de línguas e matemáticas (mas só nestas), a centrar-se na sequência das técnicas de animação de grupos, da mais concreta à mais abstracta: 1 – análise de casos; 2 – dramatização; 3 – sociodrama; 4 – jogo didáctico.

 

Como o afecto se esbate com o distanciamento interpessoal e com o aumento do número de relacionamentos, dar prioridade aos laços íntimos, quando é de tomar conta da criança: primeiro, o lar; depois, a família alargada (avós, tios...); só depois, uma eventual ama (quando for imprescindível); por fim, o infantário, a creche – o critério deve ser o de onde é mais provável viver ternura em concreto (verificar, portanto, caso a caso).

Disciplina imposta, com flexibilidade razoável e aceitável para a vida normalizada dos adultos.

Entrada no jardim de infância, só a partir daqui conveniente e desejável.

Para a comunicabilidade ser cada vez mais eficaz, enriquecer mais e mais a linguagem, com todo o tipo de desafios: contar episódios do quotidiano, aprender canções, lengalengas, baile mandado... Brincadeiras de grupo, subdivididos pelos centros de interesse (casa de bonecas, canto dos brinquedos, tapete viário, biblioteca, espaço de jogos...).

Dominar as localizações no espaço e no tempo, condição-base para aceder posteriormente à matemática, através de todo o tipo de encadeamentos e movimentações descritas oralmente: o rei manda, ginástica com variações faladas, dança comandada, percursos dirigidos pela palavra, movimentos corporais solicitados, cobertura de itinerários predefinidos...

Disciplina imposta mostrando sempre quem manda e a hierarquia existente (director, educador, assistente...), mas com as regras explicadas nas razões e nos efeitos positivos que produzem.

Penas adequadas sempre que haja transgressão, mais uma vez com os motivos explicados, contrapondo os efeitos negativos aos positivos pretendidos.

Cumprimento do primeiro ciclo escolar.

Metodologia de maior rendimento na aprendizagem e sociabilização: método de colmeia, com os alunos subdivididos em pequenos grupos (de 3 a 5 elementos), flexíveis na composição concreta e na duração.

Estratégia tendencialmente mais eficaz: desafios de curta duração para aplicação das sucessivas aprendizagens que forem fazendo (um projecto é sempre uma aplicação concreta dum saber qualquer e será tanto mais formativo quanto mais entusiasmar cada um).

Área prioritária a estimular da inteligência: o imaginário ficcional – todos os programas deverão ser transmitidos através de histórias de fantasia, com quanto mais expectativa despertada, melhor. Se isto for feito sistematicamente, multiplicaremos tendencialmente por quatro a probabilidade de virem a ser adultos bem sucedidos. É de preencher todos os tempos livres com contos, lendas, histórias, romances de aventuras, relatos de vida.... - quer em conversa, em livro, em banda desenhada, em TV, em filme, DVD, computador... Isto, seja na escola, seja na família, seja nos períodos de recreação livre (o alimento da fantasia deve andar sempre disponível, sem limites, para ser usado e compartilhado pela criança sempre que o deseje).

Disciplina imposta com a razoabilidade explicitada e os efeitos benéficos patenteados, de modo a requerer que, de imposta, a disciplina progrida gradualmente para disciplina consentida, assumida pelo grupo-turma e por cada subgrupo dela.

Penalização aos transgressores logo no primeiro dia, desde o primeiro momento, sem tergiversações nem adiamentos nunca.

Área dominante: afectiva, centrada no descalabro da auto-imagem infantil e no enfrentamento das novidades da paixão e do sexo fértil, ambos, à partida, desgovernados. Fim da convivialidade de grupo, trocada por isolamento individual ou fixação num colega confidente apenas, do mesmo sexo. Divisão espontânea da turma por sexos, com os dois subgrupos praticamente incomunicáveis entre eles.

Metodologia tendencialmente mais eficaz em aula: método de inquérito, com perguntas encadeadas dirigidas a todo o grupo, a partir dum dado concreto (da experiência dos alunos ou desencadeado em turma, por exemplo, no laboratório), solicitando a conceptualização gradualmente (de modo a serem eles a ir reconstituindo-redescobrindo cada item do programa, por mera reflexão individual sobre o dado e cada questão proposta).

Estratégia para garantir cada degrau do pensamento concreto ao formal (abstracto), período que demora, em desenvolvimento gradual, cerca de cinco anos: interrogações em movimento pendular do dado material rumo ao conceito ou lei, com retorno ao dado de partida em períodos de tempo tanto mais curtos quão mais baixa a idade (5 minutos, por exemplo, à partida), alargando-se gradualmente, à medida que os educandos vão sendo mais capazes de evocar sozinhos o elemento em análise.

Desafio-mor para o professor: como compatibilizar a coexistência na mesma turma de crianças em terceira infância com outras já pré-púberes, dado que o método de colmeia opera bem com aquelas mas nunca com estas e o de inquérito, ao invés, corresponde à premência de pensar autonomamente destas, o que não diz nada ainda àquelas. Jogar habilmente com ambos em simultâneo é o mais aconselhável, passando dum subgrupo ao outro quando (e enquanto) o primeiro executa a aplicação do novo saber (projecto pedagógico) e vice-versa a seguir.

Atender a que as crianças vão fazendo umas atrás doutras o trânsito da infância para a pré-puberdade e, mal ocorra, (o que será sempre instantâneo, apanhando cada uma delas desprevenida) deverão integrar imediatamente o novo subgrupo, sob pena de, se a tal não atendermos ou nos distrairmos, se lhes agravar o mal-estar da nova condição de vida. Disciplina: como a que for meramente imposta revolta normalmente o pré-púbere, aqui tem de solicitar-se sistematicamente a consentida, com a fundamentação das regras sempre que imprescindível à compreensão de alguém. Mas não basta: ele deseja ser capaz de mais, embora ainda o não consiga. Então, deve pedir-se-lhe ideias para comparticipar no melhor ordenamento disciplinar, o que tem o condão de o acalmar, ao verificar que tem a porta aberta para quando qualquer alternativa lhe ocorrer.

Metodologia tendencialmente mais eficaz: reduzida a turbulência emotiva, readquirida a acalmia, é o método de inquérito o que mais logra desenvolver o pensamento formal, ausente ainda da maioria dos adultos no país e no mundo. É também esta a faculdade intelectual que melhor responde aos anseios reconstrutivos da personalidade desta faixa etária. O professor pode usar tal abordagem doravante sem alternância com nenhuma outra, uma vez que a turma será homogénea no nível de desenvolvimento (as excepções serão tão raras que deverão ser atendidas em ensino individualizado, dentro ou fora da turma).

A amplitude do movimento pendular concreto-abstracto-concreto alarga-se cada vez mais até no termo, idealmente, nem ser requerido tornar mais ao ponto de partida, por nenhum aluno o requerer doravante, capaz que fique de pensar em abstracto continuamente, sem perder a noção do domínio de abordagem sob questionamento.

Respeitar integralmente os pares de confidentes do mesmo sexo tanto na distribuição pela sala como nos projectos pedagógicos que se incentivem (aplicações dos saberes em realizações práticas que os atraiam).

Disciplina: concentrada na disciplina consentida e sempre aberta à comparticipada, mal algum educando algo sugira que possa integrar-se e melhorar ou, pelo menos, não piorar o clima convivial da turma.

Quando tudo isto for generalizadamente cumprido em escolaridade de cobertura universal, no período duma geração o nível intelectual dum país finda equiparado certamente ao dos mais desenvolvidos do mundo.

Atender a que as raparigas tendem a transitar de fase mais sobre os 14 anos e os rapazes mais sobre os 16.

Metodologia tendencialmente mais eficaz: ou o método de inquérito reajustado ou o método de aprendizagem por descoberta.

O desafio doravante é o do que mais provavelmente estimulará o pensamento criativo, o derradeiro patamar de desenvolvimento intelectual, praticamente inexistente, mesmo nos povos mais evoluídos (18% dos adultos na Suíça, por exemplo). O reajustamento do método de inquérito consiste em ratificar doravante não apenas as respostas ao questionamento que convirjam com o programa como as divergentes, desde que façam sentido, tenham lógica, embora não atendidas pelo saber curricular: é estimular tanto o pensamento convergente como o divergente – neste é que desabrocham sementes de criatividade formal. Até poderão levar a descobertas inéditas, o que seria a consagração máxima deste itinerário.

No método da aprendizagem por descoberta os alunos são desafiados a serem uns pequenos investigadores, fazendo uma germinal pesquisa bibliográfica (a generalidade limitar-se-á ao estudo do compêndio...), até atingirem um produto final o mais personalizado possível (já sabemos que o comum não logra ir além do resumo da matéria – e já é bom se em linguagem própria...). A porta, todavia, abre-se a todos para irem mais além, desde a versão em forma personalizada à interpretação pessoal, ao levantamento de dúvidas, à formulação de problemas em aberto, até ao levantamento de hipóteses, tentativa de concepções inéditas e assim por diante. A sementeira é feita, ao fim dos três anos o patamar pode perfeitamente ser atingido, generalizado e estabilizado para o resto da vida.

Disciplina: aqui não é formativa nem a imposta, nem a meramente consentida, apenas a comparticipada, com os pormenores dos arranjos da vida em turma a integrarem quaisquer achegas que alguém entenda dar, e sempre aberta ao derradeiro patim atingível, a disciplina compartilhada (qualquer aluno pode eventualmente ser convidado, a todo o momento, a substituir o mestre, gerindo o itinerário colectivo, por exemplo).

Metodologia de maior eficácia: aprendizagem por descoberta, doravante cada vez mais por conta própria, até atingir, eventualmente, completa autonomia no fim. O professor devém cada vez mais um conselheiro, até se tornar um igual. A pesquisa bibliográfica é cada vez mais, de ano para ano, um ponto de partida apenas, donde o aluno dá o salto para o desconhecido, lançado à descoberta de novos mundos, por ninguém antes trilhados.

Estratégia dominante do bom pedagogo: priorizar permanentemente qualquer afloramento de inovamento, formulação inédita, secundarizando por sistema todo e qualquer critério formal académico, desde as citações e respectivos modelos convencionais até à dimensão do produto, à apresentação, paginação e assim por diante.

A dinâmica de grupo adolescente (cada um a proteger-se enconchando-se no conjunto) sofre gradualmente a transformação da maturidade: convivialidade entre amigos, solidariedade de todos com o caminho individualizado de cada um, cada um recorre a cada outro, mudado o conjunto num depósito vivo e assumido de recursos de realização pessoal que poderá perdurar pela vida inteira. É a dialéctica criadora entre integração mútua e autonomia individual – é a meta que o diálogo mestre-discípulo deve respeitar e estimular na respectiva gradual maturação.

Disciplina: cada vez mais devém formativa apenas a disciplina compartilhada, com mestre e discípulo gradualmente igualizados no respeito mútuo (pessoal e de funções) e na mútua solidarização em projectos que compartilham.

 

 

 

 

 

FIM

 

 

 

 

 

 

 

 

Índice

 

 

I Parte – As Mazelas

 

Mazela 1

Mazela 2

Mazela 3

Mazela 4

Mazela 5

Mazela 6

Mazela 7

Mazela 8

Mazela 9

 

 

II Parte – As Mezinhas

 

Mezinha 1

Mezinha 2

Mezinha 3

Mezinha 4

Mezinha 5

Mezinha 6

Mezinha 7

Mezinha 8

Mezinha 9

Numa Palavra