O MAIS QUE PERFEITO CRIME
Autópsia romanesca dum caso real
BARTOLOMEU VALENTE
Lisboa, 2012
PRIMEIRO QUADRO
Os sete professores do grupo de Filosofia, finda a reunião inaugural do ano lectivo, abandonam o gabinete de trabalho, caminhando pelo átrio fora dum pavilhão do Liceu Luís de Camões, conversando animadamente, entre risos, enquanto se dirigem para a porta de saída, dando por terminado o labor do dia. Um deles entra no gabinete da Direcção, do lado oposto ao que acabaram de fechar. Vão ficando para trás, em amena cavaqueira, o coordenador do grupo, Dr. Paredes, e uma das colegas, Drª. Maria da Serra, ambos demasiado compenetrados no tema da conversa para darem conta de que acabam ali os dois sozinhos, a meio do átrio vazio.
Ouvi bem, Maria da Serra?! Quem é que me estás a dizer que encontraram?!
É o que te queria contar, custa a crer, não é? Foi mesmo o Chico Santos. Conhecia-lo, Paredes. Já estava morto há quinze dias no quarto, sozinho.
Quinze dias?!
Pois, foi a conclusão da autópsia. Cheirava muito mal, estás a ver, com o calor deste verão... Isso é que alertou os vizinhos. Chamaram a polícia e os bombeiros, tiveram de arrombar a porta e deram com o cadáver em putrefacção deitado na cama, ainda vestido.
Não posso acreditar! Mas como é que foi?! Ele andava doente?
Não, não, pelo menos ninguém sabia de nada lá no D. Dinis. O que o relatório de autópsia descreve é que foi um ataque cardíaco fulminante. Nem lhe deve ter dado tempo de fazer nada nem de chamar ninguém. Mas também quem é que ele ia chamar?
Vivia sozinho, então?
Pois. Tinha um apartamento há uns anos já. Viveu para ali isolado de tudo e todos, tu sabes como ele era. Ninguém conseguia uma conversa com ele, nem sequer aproximar-se. Nem mesmo valia a pena tentar, de chato que ele acabava por ser, com aquela mania de psicanalisar toda a gente. Punha o mundo inteiro em fuga, ninguém tinha paciência para aturá-lo, não é? Então, olha... Foi uma morte triste.
Mas que raio de coisa!
Sabes, eu lamento-o, acabo por ter pena dele. Foi, a meu ver, um pobre infeliz, inteiramente inadaptado. Mesmo aquela mania de ser psicólogo, aquilo era uma doença, não tinha psicologia nenhuma. É tudo uma tristeza. Triste na vida e triste na morte.
Então e quem tomou conta da situação?
Olha, para mim foi a maior frustração de todas. Eu não estava cá, tinha ido com os meus para o Algarve e quando voltámos já tudo findara. Mas contaram-me, não se falou noutra coisa lá na escola durante semanas, chocou toda a gente, mesmo se todos o achávamos detestável. Sempre era um colega, não é? E ninguém merece, nem depois de morto, um destino assim.
Que aconteceu?
A família rejeitou-o, ponto final. Parece que já não tinha os pais, foram uns irmãos. Não quiseram saber de nada, haviam cortado todo o tipo de relações com ele, ao que consta, desde há muito. Também daquele lado foi, afinal, um enjeitado. Ninguém sabe pormenores, compreendes? A polícia, que foi quem acabou porr tratar de tudo, do enterro, do apartamento, só deu informações vagas. Parece que ninguém conseguiu entender nada de jeito, todos julgam, no fundo, que o feitio dele, tal como deu cabo das relações com os alunos e com os colegas, também lhe liquidou quaisquer laços com os familiares. Qualquer contacto com ele era de cortar à faca, não é? Bem, eu até nem tenho razão de queixa, comigo, quase parece milagre, sempre andou na linha. Eu chegava a divertir-me, podes acreditar, com aquelas atitudes dele. Agora a família, nem mesmo para um enterro, não querer saber mais dele, é chocante. Eu teria ido lá, se cá estivesse.
Então enterraram-no tão sozinho como viveu.
O director lá da escola compareceu, em nome do estabelecimento. Mais ninguém. Foi um enterro de indigente, em todos os sentidos. É verdade que ocorreu durante as férias e as aulas estavam fechadas, não é? Quem poderia ser contactado? Pouca gente fica por cá e dos que sabiam dele, ninguém, pela certa, aceitaria lá ir, só se fossem colegas que não o conheciam. Ora, para uma coisa daquelas, quem é que se ia disponibilizar?
E os tarecos dele, livralhada, as roupas, a conta bancária...? Ele tinha a obsessão dos livros, devia arrebanhá-los aos montes. Alguma coisa seria de aproveitar, de certeza. A família rejeitou tudo?
Tudo. É inacreditável. Nem a conta do banco, vê lá bem! Não faço ideia do que é que foi feito da biblioteca dele. Eram seguramente muitos milhares de volumes. Espero que a polícia os não tenha deitado fora. Devem ter ido para alguma biblioteca municipal, era o melhor destino. Mas olha que não ouvi nada, não juro. É como te digo: a polícia fechou-se em copas, não deu conta de coisa nenhuma a ninguém. Nem tinha que dar, julgo eu, já que tiveram de responder pelo trabalho todo de arrumar o problema.
Não acredito que os familiares tenham rejeitado a conta bancária. Vão deixar as poupanças para o Estado?! Não pode ser! Já não era rejeição, era mesmo estupidez! Havia ódio entre eles, entre irmãos?
Os zunzuns que eu ouvi referem outra coisa: o Chico não tinha praticamente nada no depósito. Nem dava para custear o funeral, acreditas? Um solteirão que não víamos fazer vida nenhuma em particular, nunca ninguém lhe conheceu extravagâncias, nem sequer as mais comuns, lá metido no inferno privado dele o ano inteiro. Com ordenado de professor, parece mesmo esquisito...
E ninguém desconfia sequer do destino que ele dava aos rendimentos?
Ai, lá desconfiar, eu, pelo menos, desconfio. No mínimo, estes últimos anos em que o conheci e em que falei regularmente com ele lá na escola, dá para entender: estoirava tudo em livros. Tornou-se um comprador compulsivo, uma loucura! E um leitor obcecado também. Bastava alguém citar um autor, uma obra que ele não conhecia para levá-lo a correr comprá-la. Era uma coisa abstrusa. E depois, ainda pior, lia aquilo tudo tão alucinadamente que no fim não entendia nada: foi a mente mais baralhadaa e confusa que alguma vez conheci.
E comia-lhe o ordenado inteiro?
Ah, pois, de certeza! Para mim foi o que foi. Ele não olhava a preços. Alguns volumes de peritos são fogo, como sabes. Um indivíduo consulta-os em bibliotecas, institutos... Mas ele, não. Tinha de os ter, de serem dele. Algumas vezes falou-me que fora obrigado a adiar uma compra qualquer porque o dinheiro ainda lhe não chegava naquele mês. Por aqui já vês como era.
No que ele acabou, coitado! Estou cá a pensar que, apenas para uma enciclopédia, vai uma batelada de contos. Ora, se ele se descontrolou assim...
Então ignoras da missa a metade. Enciclopédias, ele tinha-as todas, as que há no mercado e até as francesas. E mais: todas as histórias da filosofia e da cultura possíveis e imaginárias. A maior parte eu nem sequer algum dia tinha ouvido falar delas. Passava o tempo a atirar-no-las à cara em todas as reuniões de grupo, não havia paciência! Claro que nos habituámos rapidamente a ignorá-lo. Até porque as intervenções dele nunca faziam sentido nenhum. Aquilo transbordava sempre lá dum mundo qualquer de alucinações. Nunca foi capaz de ouvir nada nem ninguém. Parecia que toda a gente andava a emboscá-lo e ele tinha de se defender do planeta inteiro. Então a livralhada era a artilharia defensiva dele e o canhão do contra-ataque. Bem, quando lhe dava para destruir alguém, então era o fim...
Destruir?! Chegou a ter tais pretensões?! Não fazia ideia. Vocês também tiveram de amargar, pelos vistos, com tal tisana! Há vários anos que não sei nada dele, praticamente desde o estágio que já nos exigiu muita diplomacia para minorar as perdas, mas enfim... Lá ainda conseguimos levar a água ao moinho sem grandes ondas. Claro que então já qualquer diálogo a sério era inviável, mas pronto, ele funcionava minimamente tanto nas reuniões como nas aulas. Pelos vistos, tudo se continuou agravando, de ano em ano. Estou a pensar nos alunos... Coitados! Deve ter sido bonito, agora para o fim! Não houve sarilhos?
Ora, todos os anos! E, tanto quanto sei, nas outras escolas por onde andou foi o mesmo. Era de esperar, não era? Com semelhante maneira de ser...
Sabes, o problema é que aquilo não era maneira de ser, alguma coisa o provocou, não tenho ideia do quê. Por isso é que se veio agravando pela vida fora. A vir da personalidade, seria uma estrutura constante. Ali há um desvio de potencialidades, como uma febre que aumenta, aumenta, até devir mortal, com o tempo. Que raio poderia desencadear tal coisa?
É curioso que julgues assim, deves tê-lo conhecido melhor do que eu, claro. Mas olha, vou pelo mesmo: o que o matou foi aquela tensão permanente, aquela ansiedade, o enervamento de cortar à faca, todos os dias, todos os meses, todos os anos... e então se veio piorando... até admira que o coração tenha resistido tanto, não é? Quase chegou aos cinquenta. Para uma vida de constante inferno, grande coração ele teve! E, tanto quanto sei, nem um amigo velho, ao menos para o desabafo, não é verdade? Aquilo foi uma opressão comprimindo, comprimindo, até que a válvula explodiu. E matou-o.
Deve ter sido. Mas, pelos vistos, ele agora já desatinava convosco. Isso poderia ter ajudado a descomprimir. Era muito tarde, se calhar...
Ah, não! Devias ter visto as cenas. Terminaram sempre mal para o lado dele e agravaram tudo. Era uma coisa esquisita, parecia um disco riscado quando perdia o controlo. Repetia uma sequência bizarra, devia ter aquilo decorado, não sei... Era mais ou menos isto: “a mim ninguém me verga as costas, ouviste? Tenho peito que chegue para ti e para todos. Vá lá, bate, bate! Esmurra-me, a ver se consegues! A mim ninguém me verga as costas!” E fazia peito para o colega em questão, inteiramente a despropósito. Claro que toda a gente lhe virava a cara. Estávamos a discutir ideias, a planear sequências e trabalhos, que raio era aquilo? Quando se tornava insultuoso e alguém mais desprevenido lhe respondia, chegava a saltar do lugar e gritava aquela provocação descabida que nunca deu para entender...
De facto, “vergar as costas”?! Normalmente costumamos dizer dobrar a espinha, não é? Tudo nele era esquisito... e como é que era vergar? Dar-lhe um murro e ele dobrar para trás? Teria alguma razão, com o arcaboiço que detinha, aquela peitaça, aqueles ombros, todo ele grosso e atarracado como um cepo, não devia ser fácil vergá-lo, nem para a frente, quanto mais ao contrário. Onde raio foi ele buscar isto? Ao boxe? Que eu saiba, nunca ele o praticou. Aliás, nem desporto nenhum. Nem adivinho como logrou desenvolver aquela robustez física toda.
Eu também não. E sabes que aquilo metia medo aos alunos? Até os atletas, meio metro mais altos que ele, baixavam a bolinha quando lhe subiam os azeites.
Não quero acreditar! O Chico chegou a ameaçar alunos? Ele, para quem a lei era sagrada, intocável, ali à letra com um escrúpulo doentio?! Não pode ser!
Não, não entendeste. O Chico desafiava-os como aos colegas, ao menor pretexto e com aquela cara de fúria descontrolada pronta a matar quem se lhe opunha. Punha-se-lhes à frente e berrava-lhes pelo primeiro murro. Nunca ninguém se atreveu. Nem quero adivinhar o que teria ocorrido se algum caíra em esmurrá-lo, ele era bem capaz de desfazê-lo, se lho não tiram das garras. Ele transmudava-se com uma raiva selvagem e com aquele arcaboiço, como tu dizes, metia respeito. As turmas andavam ali direitinhas que nem um fuso, quando lhe dava para o terror. E, ao que consta, hoje em dia ninguém entendia nada em aula nenhuma. Esta era, para os jovens, a desgraça maior, quando eles andam a sonhar com a Universidade. Ninguém se vê preparado então para exame nem capaz de fazer média de jeito.
Ah, pois, foi daí que vieram os problemas, não é? O Chico Santos tornado indecifrável, mais inflexível de todo. Era de esperar, tudo encaminhava para tal desenlace, já não ouvia ninguém...
A Drª. Fantina, a directora, saiu para o átrio, vinda da porta da direcção. Ouviu as últimas trocas de palavras. Aproximou-se, lenta, dos dois colegas e parou.
E adianta a Fantina:
Nem queiras saber do sarilho em que me meteu, Paredes, por causa do meu filho mais velho. Calhou ficar numa turma dele o ano passado. Eu não sou do vosso grupo, mas aquilo não eram aulas, não eram nada. Foi um delírio permanente, podeis crer. Nem vos passa pela cabeça. Não havia tema, nem fio condutor, nem qualquer relação com o programa, nem sequer um pensamento, uma ideia qualquer por parte do professor. Era mais ou menos um discorrer descosido dum louco, dum drogado, dum alucinado, sei lá... Também me tive de meter ao barulho, como se isto aqui na escola já não bastasse! Mas, enfim, um filho é um filho, não é, Maria da Serra?
E adianta a Maria da Serra:
Ai, a quem o dizes, Fantina! Só de lembrar-me da aflição que foram estas férias todas por causa do braço partido do meu André lá no campo da Preparatória... Estava tudo bem, mas que queres? Havia sempre aqui um bichinho de medo a remoer no estômago. Mas conta lá, foi com o teu Gonçalo? Eu julgava que ele tinha mudado de turma. Como praticamente todos o pediam... Não cheguei a saber de nada, a não ser aquilo que já era costume com o Chico, os alunos a queixarem-se todos, a chatearem o director, mas de resto não me veio mais eco nenhum...
E adianta o Paredes:
O que me admira, Fantina, é o Chico ter perdido até o fio condutor nas aulas. Isso nunca acontecia antigamente. Aquilo era pobre porque a relação pedagógica ficava sempre inadequada. Normalmente ele assumia-se como superior, com uma linguagem técnica cerrada, num discurso de tipo universitário, e os alunos ficavam de boca aberta, inteiramente a zero. Nenhum conseguia descodificar semelhante abstrusidade. Mas lá ele perder o fio da mesda, não, nunca! Até fazia finca-pé nisto, era quase uma questão de honra, na maneira enviesada como o Chico a entendia.
E adianta a Fantina:
Pois olha, Paredes, até te poderei trazer umas cassetes que o meu filho gravou, se estiveres curioso. Nós, a princípio, também não acreditávamos e então é que ele foi de gravador escondido para lá, tínhamos de ter a certeza. Claro, foi apenas para nós e ouvimo-las depois com o delegado, quando vimos que não havia outra alternativa senão intervir, a ver que salvados poderíamos resgatar do naufrágio.
E adianta o Paredes:
E conseguiram alguma coisa? Pelo que a Maria da Serra me conta, o Chico, na prática, tornara-se já por inteiro inabordável.
E adianta a Maria da Serra:
Acabaram por dar-lhe a volta, Fantina? Como?! Tens de nos contar porque isto até nos pode vir a ser útil no futuro, quando tivermos de enfrentar problemas daqueles. Oxalá nunca mais venha a ser preciso! E eu nem imagino como diabo atingir ali alguma coisa aproveitável. Connosco foi um permanente diálogo de surdos, não houve nunca fresta por onde penetrar na carapaça daquele homem.
E adianta a Fantina:
Bem, é tudo relativo. Não levámos as águas ao moinho, mas alguma lá metemos, o bastante pelo menos para os danos poderem ser minorados e os ânimos acalmarem.
E adianta a Maria da Serra:
Mas como? Como? Não é mera curiosidade feminina, juro-te, estou em pulgas para ver como foi viável levarem-no à parede, nem que tenha sido apenas um bocadinho.
E adianta a Fantina:
Foi com um pequeno truque de esperteza, combinado discretamente com o delegado lá da escola. Fiquei a admirá-lo, é um bom profissional e tem intuição.
E adianta o Paredes:
Bom, agora sou eu, como delegado, que estou em pulgas. Que raio é que vocês engendraram?
E adianta a Fantina:
Ora, Paredes, foi uma abordagem simples, mas diferente. Como ambos sabeis, criticar o Chico ou atacá-lo não resultava, levá-lo-ia a endurecer ainda mais as atitudes, como ocorreu permanentemente em todas as escolas por onde ele andou. Então apontámos o caminho contrário: que os alunos é que chegam ali sem preparação nem desenvolvimento capaz, para atingirem o nível das aulas dele. Depois há uns tantos que criticam, em lugar de se esforçarem. São os que dão nas vistas, mas é por fazerem barulho. A maioria, não. Andam laboriosamente a tentar trepar à montanha, mas não é fácil, tanto mais que a gritaria não ajuda. Ora, a estes é que mais importa atender. E um bordão de nada (que o Chico poderia entregar-lhes à vontade) iria garantir-lhes a vitória, capaz de calar as más línguas. Podiam trepar bem alto e era uma bofetada de luva branca que o professor daria a quem persistia em denegri-lo. Foi uma abordagem destas que lhe caiu muito bem.
E adianta o Paredes:
Espera aí, espera aí. Eu preciso, como delegado de grupo, de saber que raio de bordão vocês inventaram para ele ajudar os alunos. Nunca me vi com um caso destes pela frente, mas, quem sabe, ainda algum dia... É que não vislumbro mesmo nada, desculpa lá, Fantina.
E adianta a Fantina:
Ah, foi uma coisa muito simples: escrever no quadro, no princípio de cada aula, um esquema da lição, a partir do compêndio adoptado lá, para servir de guião aos alunos. É a medida mais corriqueira que se pode imaginar. Mas foi quanto bastou.
E adianta o Paredes:
Quer dizer: ele fê-lo?
E adianta a Fantina:
Fê-lo, Paredes.
E adianta a Maria da Serra:
E bastou, como? Os alunos das minhas turmas andaram-me o ano inteiro a dizer que a tourada nas dele continuou até ao fim...
E adianta a Fantina:
Calculo que sim, Maria da Serra. Mas na do meu filho tudo serenou muito. Não foi apenas com aquilo, claro, nós combinámos com o delegado uma conversinha que ele teria com os alunos, para baixar a fervura e tudo mudou como da noite para o dia. Ele, o vosso colega de lá, tem mesmo muito nível, ficámos-lhe muito agradecidos. Tirou-nos um enorme peso de cima, vocês nem calculam.
E adianta o Paredes:
Bem, agora nada de segredos com a tal conversinha, Fantina. Olha que aqui o Camões pode precisar e eu terei de levar a carta na manga ou então falharei como delegado. Como é que foi?
E adianta a Fantina:
É um pormenor que me custa mesmo, pareceu premonitório. Eu até nem vou nada nestas coisas, nunca acreditei em algo fora do normal, nem em dons particulares, sei lá...
E adianta a Maria da Serra:
Agora aguças-me ainda mais a curiosidade. Conta lá! A uma mulher nunca a deixamos ficar tanto em suspenso, é uma crueldade.
E adianta a Fantina:
Olhem, jamais falei disto a ninguém. Juro que me põe em pele de galinha. A sequência que combinámos foi esta. Primeiro ele chamaria a atenção dos alunos para o facto de o Chico ser um homem sofrido, com uma vida desgraçada, tudo agravado por isto se vir prolongando sem melhoria de ano para ano, o que, a prazo, leva à quebra da resistência de quenquer que seja, acabando até por poder matá-lo. Ora, eles não quereriam decerto ser responsáveis por levar o homem à morte, não é? E foi mesmo isto, parecia que estávamos a adivinhar. Quando me lembro, fico mesmo perturbada.
E adianta o Paredes:
E ele abordou-os nesses termos?
E adianta a Fantina:
Abordou, Paredes, abordou. O meu filho relatou-nos a conversa toda em pormenor.
E adianta a Maria da Serra:
Esta agora! Estavam mesmo a adivinhar, Fantina. Nós, as mulheres, temos destas coisas, não é? Mas não te vais culpabilizar pelo ocorrido, não tem nada a ver uma coisa com a outra. Não foi o adverti-los que o levou ao colapso, se calhar até lhe permitiu viver mais algum tempo. Esquece agora, vá lá, e conta-nos o resto. Qual foi o outro ponto?
E adianta a Fantina:
Foi sublinhar-lhes que o Chico acatara afinar estratégias e que, se queriam continuar com a razão, teriam então de corresponder pelo lado deles. Deveriam anotar o esquema de cada aula, aproveitar qualquer informação pertinente que ele eventualmente acrescentava e depois tratar de estudar pelo compêndio. Com uma garantia final: nos testes ele sempre correspondia a contento e agora até esperava deles o máximo. E pronto, foi apenas isto. Claro que chagámos o Gonçalo em casa para ele e os amigos não falharem, tratarem de aproveitar estas migalhas bem. E olhem, resultou. Até nas avaliações.
E adianta o Paredes:
Mas foi apenas naquela turma, Fantina? Então e as outras?...
E adianta a Fantina:
Não, não, Paredes, combinámos que era para todas. Mas, pelos vistos, ao que diz aqui a Maria da Serra, nas outras falhou. Na realidade ignorava-o. Nem imagino porquê. Não consigo acompanhar o que lá ocorre, já me basta aqui a nossa escola, não é?
E adianta o Paredes:
Pois, é natural, claro. Mas para mim era importante entender porque é que apenas resultou naquela. Que é que terá faltado no resto? Não fazes ideia, Maria da Serra?
E adianta a Maria da Serra:
Ah, lá fazer, faço. Não que tenhamos alguma vez abordado o problema. Era inviável, como podes imaginar. Nem mesmo em conversas privadas, pelo menos comigo. E eu até falava bastante com o delegado, mas todos evitávamos tudo o que lembrava o Chico Santos, portanto aquilo era pior que um tabu.
E adianta o Paredes:
Mas, já agora, que é que te parece? Eu, como delegado, fico preocupado com tudo isto, mesmo não sendo nada comigo.
E adianta a Maria da Serra:
Ó Paredes, não estás mesmo a ver? A Fantina insistiu com o Gonçalo, pô-lo a mobilizar os colegas. Eu quase juraria que, mal o Chico desatou a pôr esquemas no quadro, toda a turma correu a copiá-los, a tomar notas, a tentar ver se se desenvencilhava. Ora, onde é que tinhas isto nas outras? Até aposto que ninguém notou diferença nenhuma, nem alunos nem progenitores. Se calhar ainda gozaram mais com ele, sei lá. A falha esteve nos encarregados de educação, estendendo-se às turmas, juraria. Vê lá se algum se mexeu como a Fantina. Quando muito foram à direcção dizer mal, exigir que exonerassem o homem, se calhar até a ameaçá-lo de linchamento. Aliás, esta de o lincharem era uma constante por parte dos alunos, meio a sério, meio a brincar. Para mim, foi isto. Quase ponho as mãos no fogo.
Vindo do fundo do pavilhão, o contínuo Fonseca aproximou-se do trio de professores que, entretanto, conversava ao lado da secretária dele. Abre uma gaveta e deposita nela um molho de chaves. Pousa no tampo alguns livros de ponto, enquanto Maria da Serra comentava com as últimas frases. Ele pára, intrigado, e intromete-se.
E então o Fonseca:
Desculpe o atrebimento, chetores, mas... eles ando a linchar profechores? É coija cá co'a gente?! Oh, c'um carago, bai cher cumo aquele do Cheixal...
E então a Fantina:
Não, não, Snr. Fonseca! Como directora aqui do Camões, garanto-lhe que anda por cá tudo calmo. Por ora...
E então o Paredes:
Ah, agora me lembro! Aqui o Snr. Fonseca é que deve ter novidades. Não me contou, o ano passado, que era de Arouca e que de lá conhecia o Dr. Francisco Santos, do meu grupo disciplinar?
E então o Fonseca:
Cuntei, cuntei. Mas ele morreu de repente, p'ra aí há um mês, oubi-o da boca dum primo que andou à cacha este berão comigo. Eu conhecho é família, que lá a ele nunca le pus a bista im riba. Agora os dos Chantos inté chão por aquelas bandas munto cunchiderados. Bibem da laboira, claro, mas inda amanham bastante terrunho. E ligam bem co'a bijinhancha.
E então a Maria da Serra:
Ligam, Snr. Fonseca?! Lá na minha antiga escola o que correu é que o Dr. Francisco vivia de relações cortadas com a família. E era tão radical o corte que nem à morte quiseram saber dele.
E então o Fonseca:
É cumo le digo, chetora. Eu bibo aqui desterrado, num chei das niquiches, num é, é tudo de outiba. Mas este primo é munto chegado inté deles, pela cumbercha. Num che abriu por'í além, mas deu p'ra intender. Lá por ele, tinha tomado conta do cajo e pachaba uma esponja no antigo, o que lá bai, lá bai. Mas cunfiou-me que inté intende os irmãos do Dr. Franchisco. Eles chão bários... Acho que chó o mais belho é que mantém o gado e os labradios, os mais ando impregados nem chei im quê. Algumas das matagueiras que nós cubrimos tamém chão deles, uns bôs pinheirais...
E então o Paredes:
Ele entende os irmãos, mas que é que houve? Estamos todos intrigados, eu até conhecia o Chico há muito, fomos colegas em várias ocasiões. E esta morte... Ninguém morre assim na nossa idade, se não é um doente cardíaco. E que eu saiba, ele não era.
E então o Fonseca:
Atão os alunos mataro-o? Foi icho, chetor Paredes?
E então a Fantina:
Não, Snr. Fonseca, ninguém o matou. Tenha calma, que eu preciso de toda a gente serena para governar aqui o nosso barco.
E então a Maria da Serra:
O caso é que nós pensamos, pelo menos aqui o Paredes e eu, que, se não fora o clima de cortar à faca das aulas dele, isto não se teria precipitado assim. E as relações humanas dele em geral contribuíram na mesma linha. Ninguém tinha pachorra para aturá-lo, é a verdade. Apenas comigo é que ele era diferente, nunca entendi porquê muito bem. Mas nem comigo deu alguma vez para ter um diálogo coerente, quanto mais um desabafo. Tudo junto, isto deve-o ter vindo a minar de ano para ano e pronto. Acabou num colapso cardíaco. Agora, não podemos culpar ninguém, os alunos têm o direito de se defender e procurar ter aulas normais; os adultos também têm direito de escolher com quem se relacionam e com ele era inviável, nem eu consegui nada, apesar da deferência que ele tinha para comigo. Eu achava-lhe piada, mas lá entender nunca logrei entendê-lo. Quando eu chegava e ele me via, corria todo risonho para mim: “viva, Maria da Serra!” E dava-me dois beijos na cara. Era o ritual de todos os dias. Meio cómico, pronto!
E então o Paredes:
Pois é isto, Snr. Fonseca. Há vários anos já que eu não sabia do Chico, mas tudo foi indo de mal a pior pelo tempo fora. Será que em miúdo já era assim? Não acredito, ninguém nasce com um desajustamento comportamental crónico. Isto não existe. Sabe alguma coisa de lá da aldeia? Não chegaram a conviver nunca em pequenos? Na escola, na igreja, sei lá...
E então o Fonseca:
Icho não, chetor Paredes. Eu era dum lugar maism longe, na Lomba. Aquilo por lá chão cherras, 'tá a ber? É tudo munto ijolado, este primo que é cachador é que era q'aije meu bijinho, a gente dá-che desde canalhita. Mas atão prò cajo o que le oubi é que o dòtor num daba cheta prà caja, quando eles che chacrificaro todos p'ra ele chigar onde chigou. Mas diz que era chó agora ultimamente. Inquanto os belhotes foro bibos cuido que chempre ia pingando qualquer nico. Ele é que conta. E mais, o dejaguijado foi c'os irmãos, o pior foi c'o mais belho, mas já lá bão uns bons anitos, num é de agora.
E então o Paredes:
Ele contou-lhe como é que foi?
E então o Fonseca:
Ó chetor, quer dijer, beio à baila, num é? E num foi nada cum dinheiros, acredita? Ò menos, é o que ele conta. Dou-o cumo arrechebi. Calhou de ele 'tar por lá e oubiu tudo. O Dr. Franchisco num arrespeitou o irmão. Atirou-le as últimas à cara. Que eles num fajio nada p'ra deixar de cher uns labregos, que ero todos uns ingnorantes que che armabo im espertos por chaber criar gado e dar conta das labras, mas ero mais burros que os burros que criabo. Que inté tinha bergonha deles, que nem falar chabio. Claro que eles ficaro co'as orelhas a ferber e caíro-le todos im riba do coiro (cum perdão de bomechês). Que che ele era dòtor a eles o debia, que todos tiraro o pão à boca p'ra pagar-le estudos e òdespois dá no que che está a ber, que nem podio cuntar co'ele p'ra nada, nem numa aflichão, nem chequer ganhaba p'rà caja, q'anto mais... Bem, aquilo ajedou tanto que eles recujaro-che a arrecheber nem mais um tostão dele.
E então o Paredes:
Ah, então vem daí a recusa da própria conta bancária, mesmo depois de morto. Deve ter sido lindo, uma briga e tanto!
E então o Fonseca:
Inda foi pior, chetor.
E então o Paredes:
Pior, como?
E então o Fonseca:
É que ele dajafiou o irmão. Q'ando le dichero que num querio chaber mais do dinheiro dele, que le fijeche bom probeito, o Dr. Franchisco abespinhou-che todo. Quê, 'tabo a escorrachá-lo de caja, era? Que aquilo num ero irmãos, num ero nada, pior que cães badios! Birou-che pò mais belho e diz que le gritou: “chó porque és o que aqui toma conta de tudo, apunhalas-me pelas costas, num é? Cobarde! Habia de cher de frente, aí eu queria ber! De frente ninguém me misca, oubiste? Num bales um bostal de merda!” Cum bocha lichencha, chetores, foi achim mesmo que ele me cuntou. E que che le botou diante, a fajer peito: “queres bater, bate! Anda, bate, mas fochinho a fochinho, num é pelas costas!” Foi aí que todos cortaro co'ele, que nunca mais le dirigio a palabra nem o rechebio. Num querio chaber mais dele p'ra nada, que era tal e qual cumo um morto. E pronto, agora, pelos bistos, cumpriu-che. Foi o que o primo dele me cuntou há menos dum mês, inquanto andábamos lá pelos brejos às rolas.
E então a Fantina:
Ah, então a desgraça vem mesmo de longe. E também isto deve ter ajudado ao colapso cardíaco. Mas quem pode ser responsabilizado, ó Paredes? Faz parte da vida...
E então o Paredes:
Espera um momento, Fantina. Ali ele já estaria muito transviado. Não sei há quantos anos foi tal briga, mas ela para mim ainda faz sentido, o confronto tem uma lógica que todos podemos entender. Ora, o ano passado, ao que contas, já nem nas aulas conseguiam apanhar um fio de meada, não é?
E então a Maria da Serra:
Nisto eu concordo com ele. A discussão que o Snr. Fonseca acaba de contar tem coerência. Ora, nas reuniões de grupo, no D. Dinis, foi sempre tudo a despropósito, ele parecia alucinado. Não me lembro mesmo, durante o ano inteiro, duma única intervenção em que não foi assim.
E então o Paredes:
Ó Snr. Fonseca, esse tal primo que é tão lá da casa deles não lhe contou nada de quando eram mais novos, em pequenos? Também ele não conviveu com o Dr. Francisco?
E então o Fonseca:
Ah, cuntou, chetor Paredes. Eles brincaro todos im ganapos, num tem idades munto diferentes. Inté chegaro a andar ò mesmo tempo na escola. A gente conta o que nos bem à cabecha, inq'anto andamos por ali a alebantar a cacha. Olhe, lembro-me de ele me cunfiar que uma bez foro todos achaltar um chouto que há lá numa congosta um bocado desbiada, às castanhas. E atão biro que os ourichos ficabo munto altos, num cuncheguio chegar-les do chão, nem à pedrada, que eles num caío. Bai daí impurraro o Chico, desculpe, o Dr. Franchisco que inda era um pirralho de nada, pelo castanheiro arriba. E ele ajeitou-che inté à primeira rameira e pôs-che a impurrar ourichos co'os pés. Atirou bários ao chão, inté qu'os picos furaro as chancas, ele aos gritos “ai, ai!”, dejiquilibrou-che, ficou ali dependurado duma mão, os outros botaro-che por baixo prò agarrar, “bá, deixa-te cair, que a gente chegura” e catrapuz! Caiu-les mesmo por riba das cabechas, esparramaro-che todos no chão coberto de ourichos, uns belhos, outros nobos, ficaro todos picados, uma gritaria e fugiro corridos im grande choradeira, ninguém comeu castanha ninhuma. A gente im canalha era achim. Eu tamém.
E então o Paredes:
Ora aí está!Em criança o Chico era perfeitamente normal. Davam-se todos bem, com as traquinices próprias da idade, mais nada. Não houve nenhum acidente, nenhuma coisa grave que lhe acontecesse, pois não?
E então o Fonseca:
Ó chetor Paredes, inq'anto eu lá bibi num choube de nada fora do comum. Morreu-le a abó, é cumo a toda a gente, os mais belhos bão-che, num é? E doenchas da miudage, ele era munto atreito à gapeira, no imberno num ia muntas bejes à escola por mor daquilo, atafegaba. Diz que uma bez calhou de ficar à morte, dejinganado do médico e tudo mas òdespois lá arribou. É, tais andachos ali pla cherra fora, chão o pão nocho de cada dia. A gente gelaba, os dedos ficabo tão incarangados que nem adregabo de agarrar o ponteiro p'ra escreber na louja. A mim, ai q'antas bejes me achuchedeu! Aquilo é que era um gelo, c'um carago! E atão aas frieiras? Doío mesmo, cada dedo um chepo, inchado cumo um chouricho.
E então a Fantina:
És capaz de ter razão, Paredes. O Chico teve uma infância normal, pelo padrão daqueles brejos. As vidas eram ruins em lugarejos perdidos. Ainda hoje são, não é? Quanto mais naquele tempo!
E então a Maria da Serra:
Eu estou para aqui calada a ouvir... É que para mim tudo isto é novidade. Eu só conheci o Chico lá no D. Dinis e sempre o vi da mesma maneira. Então, no meu entender, era como se ele tivesse aquela pancada a vida toda. Nem sequer me veio à mente outra alternativa. Fui mesmo parva! Claro que o mais provável é que não foi, decerto, nada assim. Como é que isto nunca me ocorreu? E tenho quase a certeza de que não ocorreu a mais ninguém. Andámos sempre muito preocupados e muito atentos para não entrar em choque com ele, a gerir com diplomacia as relações dentro do grupo e pronto. Não tinha havido ondas, estava tudo bem, cada qual ia à vida. Ala, que se faz tarde! Ora, se tivéssemos reparado nisto, podíamos, porventura, ter ajudado a resolver o problema e ele não tinha acabado como acabou. Ao menos haveríamos de ter minorado alguma coisa, sei lá... Sinto-me um bocado culpada, até por ele me ter privilegiado, poupando-me à agressividade que usava com todos. Se calhar eu poderia ter feito muito mais e bem melhor.
E então a Fantina:
Ó Maria da Serra! Não vás por aí, que ainda ficas stressada e eu preciso de ti aqui no Camões a cem por cento. Agora não há nada a fazer, certo? Então, nada de culpas. Vamos em frente. Que os novos desafios estão aí, não esperam. Os nossos alunos também não são nenhuma pera doce, não é, Paredes?
E então o Paredes:
Claro, claro, Fantina.
E então a Fantina:
E agora deixo-vos, que tenho de ir apanhar o meu mais novo. Até amanhã.
E então o Fonseca:
Adeus, chetora.
E então o Paredes e a Maria da Serra:
Até amanhã.
O contínuo abre um livro de ponto, aprontando-se para trabalhar. Paredes e Maria da Serra fazem-lhe, reparando, um gesto de adeus e afastam-se lentamente até à saída, continuando o diálogo.
Estou mesmo chateada, a sério. O Chico foi sempre amoroso comigo, podes crer. E eu limitei-me a achar aquilo divertido. Era a minha fera amansada. Grande parva!
Já agora, como é que era isso? Ele pegava-se com toda a gente menos contigo? Como é que conseguiste?
Sei lá bem! Creio que andava apaixonadíssimo por mim.
Mas ele não sabia que eras casada?
Claro que sabia, mas que queres? Era uma espécie de paixão platónica declarada todos os dias. Dele que é que era de esperar? Tinha de ser qualquer coisa esquisita.
Platónica e declarada?
Pois, estás a ver. Trazia-me florinhas que apanhava no caminho, um botão de rosa cortado num jardiim da berma da estrada... Coisas do género. E sempre aquela efusiva recepção quando me via. Sabes o que é um indivíduo risonho da cabeça aos pés? É como ele ficava. Ver-me era uma alegria. Já viste um bebé que ficou em casa quando a mamã chega e lhe estende os braços? Todo ele euforia, o corpo inteiro a remexer? Era o que o Chico me lembrava sempre. Um bebé na meia idade. Por isso é que lhe achava piada e nunca me veio à mente problematizar o caso. Lisonjeava-me e deixava-me em paz, comigo estava tudo bem. Não precisava de andar a escapulir-me como o resto do grupo, para evitar chatices.
Mas ele declarou-se-te?
Ah, não! Respeitinho. Era o que faltava! E depois, estás a ver o Chico a declarar-se? Com aquela confusão toda na cabeça? Os demónios que tinha dentro não lhe davam lugar para tanto... Não me digas que ele tinha alguma namorada! Não acredito. Quem é que podia aguentar?
Que eu saiba, não havia ninguém. E agora que penso nisso, também nunca lhe conheci nenhuma. Nem que andasse atraído por alguém, de facto. Era mesmo um celibatário. Mas não creio que o fosse por escolha. Aquelas obsessões, aqueles fantasmas deixaram-no tolhido em quaisquer outros domínios. Afectivamente era um frustrado, carente a todos os níveis e também na relação amorosa. Nunca deve ter tido nenhuma namorada. Mas atraído, lá isso era-o.
Porque é que o dizes? Como é que o sabes? Por causa de mim?...
Estou a lembrar-me dum pequeno pormenor. Já lá vai um monte de anos. Foi ainda pelo começo da carreira... Eu tinha pedido um documento qualquer a uma colega que ficou de mo entregar na Cidade Univerasitária, junto ao Campo Grande, a uma hora combinada. Por mero acaso, enquanto eu estava a fazer tempo ali à espera, apareceu o Chico e ficámos uns minutos à conversa. A colega veio toda de corpinho bem feito, com uma mini-saia muito curta, blusa sem mangas, era verão... Éramos todos ainda jovens, solteiros, ela estava mesmo na atitude da Diana caçadora e era uma colega esbelta, fresca, toda bem apresentada. Foi uma troca muito rápida, nem deu para fazer qualquer conversa e ala, cada qual para seu lado. Mas o Chico continuou uns metros comigo depois de ela se afastar, só para um comentário a que nem liguei na ocasião, mas agora significativo: “ena, Paredes, que corpo, hein? E ela já trabalha para ti, a trazer-te documentos... Andas a catrapiscá-la, não? Grande brasa!” Mas como eu não estava nada virado para ali, limitei-me e correr com ele: “Ah, não! Se te interessa, avança, é mesmo boa moça. Para mim, não, ando noutras guerras, de momento.” O Chico encolheu os ombros, riu-se descrente, virou costas a despedir-se com um: “ora, ora...” Não lhe pus mais a vista em cima durante anos. De qualquer modo, ele não vivia tão encegueirado pelos seus demónios que não reparasse numa jovem que era atraente e agora, pelos vistos, numa mulher feita que o não é menos.
Ai, muito obrigada. Mas então repara: neste domínio não houve nele degenerescência ao correr dos anos. Ao contrário dos outros aspectos da vida dele, pelo que me acabais de contar.
É estranho. E daí, talvez não. Ignoro outros casos amorosos. Mas quase apostaria que ele não só não tentou aproximar-se daquela colega como decerto de nenhuma outra, permanentemente inibido com os terrores que o tolhiam. Ali, porém, nesse tempo, ele encará-las-ia provavelmente como hipóteses eventuais dum relacionamento afectivo, qualquer coisa que poderia ter futuro. Agora contigo é nitidamente um amor desesperado. Ele sabe que dali não virá nada. E mesmo assim avança naquela postura, uma entrega ao vazio. De antemão derrotado. Sem sonhos nem horizontes. Se calhar por isso é que se abriu a uma ralação unilateral sem correspondência possível. Tinha chegado ao fim da linha. Aceitou-o. Restava-lhe colher as migalhas que caíssem da mesa: tu, ao menos, não corrias com ele, era um oásis de nada no deserto onde acabaria por morrer sempre à sede.
Coitado do Chico! Mas olha que lá desespero não lhe vi nunca. Era sempre eufórico. Nem que a seguir atirasse uma resposta torta a qualquer colega que me estivesse ao lado, a propósito ou a despropósito seja lá do que for. Acredita, era mesmo divertido. Até parecia andar tentando mostrar as diferenças relativamente a mim. Sinais dum espírito derrotado, eu cá nunca lhe vi, ele estava permanentemente ao ataque, não baixava as armas, desse por onde desse, jamais.
Não, desespero não sentiria nem mostraria, à flor da pele. O que eu vejo é uma postura de pano de fundo. Quem acolheu a derrota, quem aceitou já não ter mais horizonte, já se não revolta nem investe no rumo fatalmente perdido. Então fica em paz interiormente. É o seja-o-que-Deus-quiser da tradição popular mais sábia. Entrega-se tudo na mão de Deus e descontraímo-nos, deixando-nos fluir espontaneamente na correnteza dos dias. Alimentamo-nos, no íntimo, do que cada hora nos queira, por ela, ofertar. E ficamos gratos por seja lá o que for que nos venha à mão, alegre ou triste, abundante ou avaro. Sendo aparentemente o mais distante, é o que ronda, afinal, mais próximo da beatitude.
Isso é quase místico. Mas julgo que entendo. Estás a arranjar maneira de eu não me sentir também culpada pelo que aconteceu, não é? Mas repara que não preciso, comigo jurro-te que o Chico sempre sentiu alegria, mesmo sendo uma paixão não correspondida e sem mais horizonte, como tu dizes. Nunca lhe surpreendi, no trato entre nós, qualquer vestígio dum sentimento negativo, duma frustração. Eu cá tratei-o sempre bem, podes crer, ao invés de toda a gente. E nunca precisei de fugir. Se fosse ao contrário, era capaz de ter remorsos e de me perguntar se também eu não teria jogado achas na fogueira que o levou à morte. Agora assim...
De acordo, de acordo. Nem estava a pensar nisso. Repara, todavia, num pormenor em que estás a insistir repetidamente: dizes que ele não manifestava qualquer emoção negativa no trato contigo. Durante um ano inteiro, pelo menos, não é? Achas normal? Imagina como te sentirias se estivesses apaixonada pelo teu marido e ele não te correspondesse durante semelhante período. Ficavas com uma alegria esfusiante?
Ora, mas é o meu marido!
Pronto, lembra-te dum namorado ou dum amigo qualquer que te tenha atraído mas tu não o atraíste a ele. Nunca tiveste uma experiência destas, um desencontro de amores como no teatro renascentista?
Claro que sim, mas quem é que avança num contexto desses? É um caso perdido, só um sado-masoquista, quanto mais me bates mais gosto de ti... Mas também eu nunca maltratei o Chico!
Pois não. E era preciso maltratar? Porque é que as pessoas não avançam, não se deixam prender numa conjuntura daquelas?
Porque não querem passar mal, aquilo magoa e muito, se um indivíduo se prende.
Ora aí tens! Mas pelos vistis não magoou o Chico. Como é possível?
Mais uma anomalia.
Ou então é como te digo. Aceitou a inviabilidade como ponto de partida e alegrava-se com as migalhas de nada que lhe deitavas para o chão.
Credo! Eu nunca o trataria como um cachorro, nem sequer de estimação.
Tu, não. Mas ele foi como no Jardim das Oliveiras: “Pai, retira de mim este cálice, contudo não se faça a minha vontade mas a Tua.” Por trás daquela satisfação haveria uma renúncia muito funda que tinha de doer como o diabo. De certeza.
Estás feito pregador, Paredes. O Chico era religioso?
Não faço ideia. Sei apenas que teria passado pelo seminário, em miúdo. Pelo menos aí era crente, decerto por tradição, religiosidade popular. Depois não tenho dados. Por um lado, levava uma vida que parecia um monge, por outro não há pior ateu nem mais renitente que o seminarista que desperdiçou a vida a estudar para padre, o que por fim o frustrou. Não sei qual das alternativas se lhe aplica, nunca falámos disso. É mais uma questão a ver.
SEGUNDO QUADRO
No bar do Liceu D. Pedro V, conversam Portela, o contínuo do atendimento, Maria João, a responsável do pavilhão, e Vasco, o faz-tudo da escola, a meio da manhã, durante o correr das aulas. Maria João sentou-se a uma mesa com um galão à frente e uma sanduíche, Portela está de pé, encostado à parede, palitando os dentes, enquanto Vasco vai passando o pano da limpeza, por desfastio e hábito, no tampo de acrílico transparente do balcão.
E o Vasco:
Fiquei sem palavras quando vós me contastes. Um homem ainda tão novo! O Buldogue não vos largava de mão, nem a ti, Portela, nem ali à Maria João também. Como naquele tempo namoravam... Ele comigo nunca teve muita sorte. Para ele éramos todos uns tê-esses desavergonhados. Eu é que lhe não dava troco e ele sempre a chagar-me com aquela de eu ser adoptado... Que raio de professor!
E a Maria João:
O Buldogue Chiquinho, para nós, as raparigas, era mais como um divertimento. Tê-esse era ele, ninguém levava aquela treta a sério. A gente até se pelava por mais um diagnóstico estapafúrdio qualquer dele. Quando se colava a uma ao acaso de nós, passávamos todas palavra, era uma espionagem colectiva para ao fim irmos saber que é que o grande iluminado descobrira desta vez, qual era a tara daquela perdida, qual a fixação sexual, o descomunal trauma que lhe “bloqueava a personalidade”. Um gozo pegado!...
E o Portela:
Colar-se ao acaso é que ele não se colava, Maria João. Não é, Vasco? Eram sempre as mais giras, as que mostravam mais as pernas, as mais decotadas... Ele tinha bom gosto. Era um tê-esse mesmo obcecado. Aquilo nem às meninas devia ir, o gajo. Para só ver sexo em tudo... Andaria mesmo falho dele, o equipamento havia de estar bem murcho.
E a Maria João:
Cuidado como falas, que as paredes têm ouvidos, Portela. E eu sou responsável do pavilhão, não quero apanhar nas orelhas se um destes malandrecos que só aprendem o que é torto... Estás-me a entender?
E o Portela:
Claro, claro, Maria João. Isto era só uma maneira de falar, não é? Que lá o Buldogue era mesmo um fraldiqueiro atrás das saias. Principalmente das mais curtas.
E o Vasco:
Mas ele também convosco era uma lapa e a Maria João, naquele tempo, nem saias usava, se bem me lembro. Eram calças à boca de sino.
E o Portela:
Ora, o gajo farejava. Ele bem queria que a gente se confessasse. Nunca levou nada daqui, mas quase juro que ele adivinhou que nós, eu mais ela, como tantos outros, à época, nas euforias da pós-revolução, nos metíamos às vezes no haxe e dormíamos juntos ao fim de semana. Isto punha-o mais excitado que sei lá o quê! Para nós foi uma coisa natural, uma fase da vida que passou e ficámos amigos, sem problema nenhum. Podia ter dado para vivermos juntos uma vida inteira mas não deu. Não é desgraça nenhuma, a roda continua a girar, cada qual seguiu o seu rumo e olha, aqui estamos outra vez ao fim destes anos todos.
E o Vasco:
A mim o que mais me tramava eram as aulas dele. Ainda bem que só o tivemos em Filosofia. Se fosse também com a Psicologia, nem sei como é que me tinha safado. A maior parte das vezes eu não apanhava uma. Lembram-se de quando ele falava para o tecto, de nariz no ar a fixar aquele lintel que atravessava a sala de lado a lado? Oh, com os diabos! Sempre que inchava o peito e se punha naquela, eu já sabia que, para mim, era noite e não havia luar. Aqueles termos de nota de conto, só para dê-erres, quem tiver dinheiro que os compre... Eu andava completamente aos bonés.
E a Maria João:
Ah, eram as aulas assistidas, Quando estavam lá os outros setores. Nós a essas nem ligávamos, não era, Portela? A gente gozava o pratinho. Aquilo era teatro, o Buldogue Chiquinho estava a representar, a mostrar como era bom. Nem valia a pena uma pessoa preocupar-se por compreender nada. Se é que aquilo tinha ponta por onde se lhe pegasse, os outros setores também não me parecia que iam muito à bola com a cena. O homem tinha pancada e da grande. Se nós víamos, quanto mais os professores!
E o Vasco:
Mas como é que vós fizestes para vos safardes? Eu tive de meter explicações...
E o Portela:
Ora, Vasco, bastava seguir o compêndio, estava lá tudo, trocado por miúdos. Foi assim que eu e a Maria João fizemos, mais nada. Não deu para brilhar mas a gente também não o queria, não é? O que importava era um gajo safar-se, nem que fosse com o dezito. E para isso chegava, mesmo que fossem só as outras aulas.
E a Maria João:
Ora, o que o Vasco não queria era pegar num livro. Tu nunca estudaste, não é? Tinha de ser tudo de ouvido. Quem é que te deu explicações?
E o Vasco:
O setor Paredes. Era outra coisa, aquilo entrava nem que a gente não quisesse. Foi pena ele só ter ficado um ano.
E o Portela:
Eh, pá, aquela da telepatia com o Rui e o Vieira... Era muito fixe. Os gajos acertavam quase em tudo, custa a acreditar. Um numa ponta, o outro na outra do pavilhão, com o maralhal todo numa feira que ninguém se ouvia e no fim batia certo. Eu conferi para poder acreditar. Era mesmo giro com aqueles dois. Nunca mais soube que é feito deles. Sabes alguma coisa, Maria João?
E a Maria João:
Também lhes perdi o rumo. Está-me a lembrar como o Chiquinho nos atacou com aquilo. Tu ainda te lembras, Portela? Ele torceu a experiência duma maneira! Já não consigo reconstituir bem, era uma coisa mesmo muito retorcida, foi a ideia com que fiquei.
E o Vasco:
Não estou a entender. Que é que o Buldogue tinha a ver com isso? A Psicologia não era com ele...
E a Maria João:
Ah, pois não, pois não. Devia ter uma dor de cotovelo do caraças. A gente todos à roda do setor Paredes, que até os intervalos lhe tirávamos, e nas aulas do Chiquinho, mal o toque repenicava, pés para que vos quero! Toda a gente a fugir do homem, parecia que tinha peste. Era o único momento em que não esperávamos um pelo outro, não era, Portela?
E o Portela:
Claro, só para não ter de aturá-lo. Mas ali veio com uma conversa... Foi quando eu estava a conferir os dados duma transmissão, por acaso ainda me recordo de que eles tinham falhado duas em dez, uma coisa rara, que eles chegavam muitas vezes aos cem por cento. Então o Rui gritou-me lá da outra ponta: “agora é para ti! Agora é para ti!” e acenava-me com uma das fichas na mão, eu ri-me, ele concentrou-se e não é que eu senti mesmo o sinal da estrela a entrar-me na cabeça? O sacana viu que mo tinha conseguido transmitir e berrava: “vá, diz qual é! Diz qual é!” E todos à volta: “qual é? Qual é?” E eu: “foi a estrela.” Ele, triunfante, virou de lá a ficha para nós com a estrela bem visível. Foi a única vez na vida em que tive uma experiência paranormal. Mas não era de mim, com certeza, o gajo é que era bom naquilo. Formavam uma parelha de se lhe tirar o chapéu.
E o Vasco:
E então que é que o Buldogue vos disse?
E o Portela:
Ah, pois. Virou-se ali para a Maria João e saiu-se com esta: “só precisa disto quem é um frustrado nos relacionamentos. Telepatia, ora! É mesmo de falhados, não conseguem mutuamente o contacto directo e depois... Quem não tem intimidade troca-a por isto. É uma compensação, não resolve nada e aumenta o vazio. Cada vez vão ficar mais distantes uns dos outros, acabam todos impotentes. Em vez de jogarem cara a cara, de se enfrentar, andam a fugir com balelas destas. Todos sexualmente castrados, mesmo quando namoram. Querem, querem, mas não chegam lá. Aliás, ainda é pior se namorarem, que andam a esgravatar na ferida sem encontrrar cura. Aí o sexo acaba por tornar-se um cancro.” Estás a ver, Vasco, nós a namorar, naquele tempo, e a ir para a cama quando nos apetecia... É que não batia a bota com a perdigota. Raio de conversa mais palerma! Ainda por cima no meio duma experiência em que estávamos todos entusiasmados. Aquilo era o Buldogue com uma dor de corno em todos os sentidos. Ele estava-se era a ver ao espelho.
E a Maria João:
Eu cá nem lhe dei troco, era um paleio de extra-terrestres, para mim. Nem que eu sentisse qualquer culpa por me entregar a um namorado, que nunca senti de todo. Então naquela népoca! Andávamos todos muito aluados e de cabeça no ar. Coisas da juventude e da revolução. Depois um indivíduo assenta, que a vida moi e não dá para fantasias. E se a gente não assenta, então é que ainda vai ser pior. Mas lá a conversa fiada do Chiquinho, não, não me tocava de maneira nenhuma, não sentíamos nada daquilo, o homem parecia maluco.
E o Vasco:
Bem, a verdade é que todos fugíamos dele, não éreis só vós, o casalinho da turma. Ele se calhar estava ali a fazer o diagnóstico da fuga generalizada, a transpô-lo para aquela conjuntura, não? Aí ao menos ainda teria feito algum sentido...
E a Maria João:
Olha, Vasco, se calhar até tens razão, que o homem era todo enviesado. Mas não foi o que ali atirou da boca para fora. Eu e o Portela olhámos um para o outro e tratámos de nos pôr a milhas daquele anormal. Ali todos a vivermos uma coisa tão gira e logo ele havia de vir lá e pôr-se a estragar tudo. Que raiva! Ainda por cima era permanentemente assim, nasceu com a mão torta, sempre à esquerda. Não havia paciência! Enfim, agora lá se foi de vez. Oxalá que ao menos doravante descanse em paz e que em paz nos deixe também a todos!
E o Vasco:
Olá... Deste em crente agora?!
E a Maria João:
Nem por isso, Vasco, mas que alguma coisa há-de haver, lá isso há-de. Sei lá bem! Olha, não ligues. São caturrices de quem começa a ir para velha.
E o Vasco:
Está bem, está bem. Eu cá te entendo... Mas não fujas, diria o Buldogue, é de frente, cara a cara, não é? Ou então “ficas vazia, uma frustrada” - não era o paleio dele? Ele a mim também vinha sempre com essa por eu ser adoptado. Sacana! De frente, cara a cara, quando eu nem sequer sei de que família é que venho nem ela deve saber de mim nem se calhar o quer. Virei-lhe sempre as costas, àquele gajo. Que raio!
E o Portela:
É o que te digo, pá, eu e a Maria João sempre julgámos que ele andava era a falar dele. Nem via o que ocorria em redor, qualquer pormenor lembrava-lhe lá qualqquer coisa e então acordavam os fantasmas. Ele desatava com aquele palavreado todo empolado, todo excitado e ninguém entendia nada porque não era pera entender. Eram lá as maluquices que o atropelavam, mas por dentro. Os malucos falam sozinhos ninguém sabe do quê. Com o Buldogue era o mesmo. Só que ele falava para a gente, mas não era da gente que ele falava. Era dele, de certeza. Eu cá não eentendo se calhar nada disto, mas ele nem namorada tinha nem nada. Quase juro que nunca tinha tido antes nem veio a ter. Por isso é que andava obcecado. Via sexo falhado em tudo e mais alguma coisa, por todo o lado, parecia que andava a morrer à fome. E atirava as culpas para cima de tudo e todos. Lá ele sentia-se de certeza bem culpado. Andava por aí a expiar e fazia-nos expiar com ele. Não faço ideia do quê. É a minha psicologia barata, mas é o que para mim faz mais sentido.
E o Vasco:
Se foi assim, nós não ajudámos nada, Portela. Toda a gente se pisgava. Quem tinha paciência para aturá-lo? Nem um na turma inteira. Só se fosse algum professor.
E a Maria João:
Qual professor, Vasco?! Eu e o Portela falámos muitas vezes com o setor Paredes. Parece que houve uma que o foi tolerando, assim como obra de caridade, estás a ver? Ninguém podia respirar com aquilo, ele punha-se logo a psicanalisar à falsa fé, não havia pachorra.
E o Vasco:
Pois se o problema que ele era para nós devia enfrentar-se cara a cara, como ele pretendia com tudo, ficou bem arranjado connosco! Demos-lhe a volta ao contrário, ninguém esteve para isso. Escapulir-se era o mais inteligente, íamos lá perder tempo e paciência com semelhante indivíduo! O gajo cismava que eu não entendia nada porque era um adoptado. Grande cabrão!
E a Maria João:
Ele já morreu, Vasco, o que tinha a pagar já pagou. Não vale a pena insultá-lo agora, não é?
E o Vasco:
Tens razão, Maria João, mas pronto. O sacana tirava-me do sério. Já não me bastava o que bastava.
E o Portela:
Ó pá, tu sempre foste muito sensível nesse ponto, é o teu calcanhar de Aquiles. O Buldogue pelava-se por isso, por descobrir e explorar o ponto fraco de cada um. Apanhou o teu e zás, ferrou-te aí o dente o ano inteiro. Só não entendo que diabo de relação ele via entre tu não estenderes e seres adoptado. Misturou alhos com bugalhos, que diabo!
E o Vasco:
Ó Portela, eram as “saudades do útero materno” que me não deixavam reparar em mais nada! Dá para acreditar?! Foram as palavras do Buldogue. Como dizia o outro, arre, porra, bardamerda, chiça! As saudades do útero materno! Só se fosse as da mãe dele, salvo seja, que ela é que foi culpada de pôr no mundo semelhante aborto. Raios o partam!
Entrou no bar a orientadora Patrícia, dirigiu-se ao balcão e, acenando, fez que Vasco a começasse a servir, no que dá a entender que era uma rotina habitual. Ela ouviu as últimas intervenções calada mas atenta.
E daí, a Drª. Patrícia:
Snr. Portela, a sala B12 tem dez lâmpadas fundidas. Com tempo mais carregado já não dá para ver bem.
E daí, o Portela:
Entendido, setora Patrícia. Quer que trate já disso ou esperro pelo intervalo de almoço? Bem me podiam avisar antes de chegar a tal extremo, mas ninguém liga nada! Se calhar nem reparam...
E daí, a Drª. Patrícia:
Espere pelo intervalo, por ora ainda vai dando para ver, que hoje é dia de sol... Estavam a falar do Dr. Francisco Santos, não era? Finalmente descansou. Nunca conheci uma alma mais exasperada. E também exasperante. Foi para mim o caso mais atormentado em toda a minha vida de orientadora de estágio. E levantou-me problemas de consciência. Ainda hoje me levanta.
E daí, a Maria João:
Ora, porquê, setora? O Chiquinho, a nós, as raparigas, dava-nos era para gozar pela calada. Levava-se a coisa a rir, era o melhor. Se ele nos entalasse nas notas é que seria um problema. Mas não, naquilo ele até foi sempre um bom-serás. Não é que a gente entendesse bem porque é que ele dava aquelas notas. Então às meninas mais bonitinhas via-se mesmo que ele ficava caidinho, mas no fim a avaliação equilibrava-se, mais ou menos. Não vinham daí grandes queixas. A questão era sempre outra, ninguém conseguia uma conversa que não fosse sobre o mesmo com aquele homem. E as frases dele perdiam-se a meio muitas vezes, mesmo quando estava a explicar qualquer coisa. A setora não precisa de ter problemas de consciência, ora! O problema era ele e agora acabou-se, já não vai ser problema para mais ninguém.
E daí, o Vasco:
Pois aí é que a porca torce o rabo, ó Maria João. A setora Patrícia era a orientadora do estágio dele, por isso é que resolver um caso daqueles... Vós os dois ainda vos safastes, capazes que fostes de entender aquelas aulas. Agora eu, se não fosse o setor Paredes, nunca mais... A setora lembra-se dele? Aquilo era outra loiça!
E daí, o Portela:
Estávamos aqui a lembrar-nos das experiência de Psicologia acolá no pavilhão. A do labirinto em T foi com um hamster ali da Maria João e foi o Vasco que montou as peças, com as tábuas dumas mesas e cadeiras partidas que estavam lá num monte a um canto.
E daí, a Maria João:
Era o meu ratinho de estimação. Falava comigo e tudo! Era tão giro!
E daí, o Vasco:
Eu nessa nem deu para ver o resultado. O Buldogue, perdão, setora, o Dr. Francisco apareceu-me por trás e desatou a provar-me que eu era tal e qual como o bicho, sempre a correr para a mesma ponta do T porque lá é que se encontrava o que me mataria a minha fome afectiva, donde derivava o meu vazio sexual. Fiquei tão estuporado que desatei a fugir. Sacana de tarado! Se fosse hoje, era capaz de lhe rir na cara. Naquela ocasião, jovem verde, só me apetecia dar-lhe um murro nas ventas e virá-lo de cangalhas.
E daí, o Portela:
Havia de ser bonito, pá! Ele respondia-te com outro, que até voavas pela janela! E ninguém o podia condenar, essa é que é essa, se fosses tu quem começava. Entre nós, rapazes, falámos muitas vezes nisso, tu lembras-te, mas era só bazófia. Dum para um, ele arrumava-nos a todos, com aquela peitaça de toiro.
E daí, o Vasco:
De toiro, não, Portela, de buldogue, ah, ah, ah! Nunca vi alcunha mais a propósito.
E daí, a Drª. Patrícia:
Mas o Dr. Francisco provocou-vos alguma vez, desafiou-vos?
E daí, a Maria João:
Ah, não, setora! Era coisa ali dos machos lusitanos a fazerem de muito homens para dar nas vistas a nós, às colegas. Ele até foi sempre um paz de alma, só que era muito chato. E então intrometido, valha-nos Deus! Sempre a farejar a vida de cada um, “em busca do sexo perdido”. A gente ria dele, a parodiar o título do romance de Marcel Proust de que o profe de literatura nos tinha falado e que andava a sair em português às pinguinhas. Oito volumes, ainda me lembro.
E daí, o Portela:
Eu e aqui a Maria João éramos namorados, verduras... O que mais nos intrigava era a diferença das aulas quando era com ele sozinho e quando estavam os setores a assistir. Estas nunca tinham ponta por onde se pegar. A setora nem imagina! Nas outras aquilo andava por ali aos baldões, mas a gente acabava por atinar com um fio condutor qualquer, bastava pegar no compêndio. Agora, quando estavam lá outros, era de rir. Lembra-se daquilo?
E daí, a Drª. Patrícia:
Ora, se não lembro! Ficou-me sempre aqui trancada como uma espinha na garganta uma vez que o Dr. Francisco desatou a dar bibliografia. Se calhar vocês já nem se lembram de tal coisa. Parecia um delírio.
E daí, o Vasco:
Ah, eu lembro-me! Já tinha explicações com o Dr. Paredes e ele pediu-me que lhe levasse sempre o registo de qualquer livro ou autor falado em aula. E eu bem tentei, mas daquela vez não consegui. Aquilo parecia uma ladainha, não dava tempo de anotar um já vinha lá outro. Mas apanhei mesmo assim um ror deles. Quando mostrei a lista foi uma risota. Parece que não tinha lógica nenhuma, nem sequer para um profe. Eu cá não a havia encontrado, mas quem era eu, não é? Pelos vistos a setora também não engoliu a reza.
E vai daí, a Drª. Patrícia:
Pois não, pois não. E foi a pior aula assistida de toda a minha vida, vejam só! Como a podia esquecer?
E vai daí, o Portela:
Eu e a Maria João estamos aqui a olhar um para o outro e não temos ideia nenhuma disso.
E daí, o Vasco:
Ó pá, deve ter sido quando vós ficastes com a gripe, não foi nesse ano?
E vai daí, a Drª. Patrícia:
Ocorreu numa aula a meio do segundo período, já depois do Carnaval. Os outros estagiários brincaram com a ideia de que aquilo fora uma partida carnavalesca que ele nos pregara. Eu é que fiquei mesmo perturbada.
E vai daí, o Portela:
Ora, porquê, setora? O homem era chanfrado, o melhor era rir-se como os outros setores fizeram. Eu e a Maria João era o que também fazíamos nessas aulas assistidas. Aí é que ele se enredava de tal maneira que nunca dava para entender nada. Agora, essa, lá nos falhou por mor da doença. Conte lá, setora, como é que foi então. E porque é que a marcou tanto que, ao fim destes anos todos, ainda a não apagou da memória. Olhe que não vale a pena, o que lá vai, lá vai.
E daí, a Drª. Patrícia:
É verdade, Snr. Portela, é verdade. Mas como ali o Snr. Vasco referiu, parecia uma ladainha. Ainda por cima tudo de cor. Aquele homem decorou uma lista de autores e de livros que debitou durante cinquenta minutos, sem interrupção. Mais, sem explicar para que é que servia cada um, a que é que se ligava no programa, o que é que importava ou não para este ou para a avaliação curricular... Nada. Ali, de chapa, títulos de livros, nomes de autores, como se estivéssemos a ler uma bibliografia no fim dum volume qualquer. Isto para ele era uma aula, ainda por cima uma grande aula, muito erudita, pretensamente sábia. E ele creio que se encarou ali como um génio, salvo seja. Aquilo era para nos arrasar a todos. Ele dominava a matéria para além de quaisquer limites. Creio eu que era a postura dele.
E daí, a Maria João:
Mas tinha alguma coisa a ver com o programa ou o tema daquele dia? É que nessas aulas a gente andava aos papéis mas sempre julgámos que para os setores...
E daí, a Drª. Patrícia:
Ó D. Maria João, nem valia a pena. Uma aula daquelas é absolutamente inaceitável, nem que a bibliografia estivesse rigorosamente adequada ao tema, àquela aula, ao programa. Não pode ser. É completamente indecifrável para os alunos, como vocês acabam por confirmar e lá verifiquei ao vivo. Uma aula aquilo? Aquilo foi mas é um massacre. Se os alunos já não aderiam com as outras, com aquela rompiam de vez e com razão. Que raio de noção tinha aquele homem do que estava ali a fazer? Palavra de honra!
E daí, o Vasco:
Ó setora, ele nas aulas assistidas não falava para a gente. Eu acho que ele até se esquecia de que nós estávamos ali. Não se lembra dele a falar para o tecto? O peito inchado, o nariz no ar, os olhos pregados na travessa de cimento... Olhe, eu, nessa ocasião, nessa, fiquei com a certeza de que ele estava a dar aula para os setores; nós, os alunos, não tínhamos nada a ver com aquilo. Por isso é que nem a Maria João nem o Portela pescavam nada nas aulas assistidas, ao contrário das outras, quando ele estava sozinho connosco, em que eles conseguiam orientar-se mais ou menos. Ele estava era a fazer teatro para si e para os outros setores assistentes. Vai ver que era isto.
E daí, a Drª. Patrícia:
Era, era, eu concordo. Temos sempre esse problema nos estágios. Como é que o professor se há-de esquecer de que estamos ali? Muitos não conseguem de todo. Outros acabam por ignorar-nos. Há mesmo alguns que nunca estagiam por não conseguirem suportar este enquadramento. Mas mesmo assim... Começa porque a aula é para os alunos. Ponto final. Não, aquilo incomodou-me e ainda hoje me incomoda. Fiquei com um problema de consciência a picar-me para o resto da vida.
E daí, a Maria João:
Ó setora Patrícia, por amor de Deus não diga uma coisa dessas! Nós cá gostamos tanto de si que isso até nos doi. É uma das nossas predilectas, pelo menos do sector feminino, e olhe que as mulheres são muito intriguistas umas com as outras. Lá pelos homens não respondo. Agora problemas de consciência! Isso era o que o Snr. Dr. Francisco devia ter tido e mais ninguém. Um indivíduo como ele nunca devia ir para professor, essa é que é essa.
E daí, a Drª. Patrícia:
Pois aí é que foi o meu problema, D. Maria João. Se estivesse ao meu alcance, eu acho que ele nunca mais teria sido professor. Assim , andou por aí a dar cabo do juízo a tanta gente estes anos todos! Para ele e para os alunos-vítimas, Deus me perdoe, mas acho que foi melhor ele ter morrido. Talvez eu esteja a ser cruel...
E daí, o Portela:
Ah, não está nada, setora! Também entre nós – não é assim, Vasco? - é das melhores professoras com que a escola conta. E lá o Dr. Francisco morrer foi mesmo o melhor, há males que vêm por bem. Não se costuma dizer que Deus escreve direito por linhas tortas? Então está a ver...
E daí, o Vasco:
Eu vou com o Portela. Se ele não tinha conserto, consertado agora está. A morte é o remédio para tudo, quando não há outro caminho. Ele não veio aqui ver se mudava? E mudou? Não. Então...
E daí, a Drª. Patrícia:
Compreendo, Snr. Vasco. E eu bem tentei... Não consegui nada. Como saber que a falha não foi minha? Claro que uma pessoa faz o melhor que pode. Mas outrem que fosse melhor que eu talvez tivesse conseguido. Aquele homem era muito difícil. Para mim foi uma frustração aquele ano inteiro. Não o ajudei nem a um palmo de melhoria.
E daí, a Maria João:
E diga-me lá, Drª. Patrícia, ele aceitava qualquer ajuda, ele queria ser ajudado? Conseguiu ver alguma nesga disso, alguma abertura naquele homem? Duvido...
E daí, a Drª. Patrícia:
Pois, é verdade, D. Maria João. Depois daquela aula, como das outras assistidas, fomos analisá-la. Foi o maior diálogo de surdos da minha vida. Ele não foi capaz de ouvir nada, nem de mim nem dos colegas. Sempre a defender-se, a justificar-se, como se alguém o estivesse a atacar... No fim parecia que tinha dado a melhor aula da vida, a que devia servir de padrão para todos nós. Não há paciência! Eu, que até sou tão calma, ali acabei por perder as estribeiras e atirei-lhe tudo à cara. Com diplomacia, mesmo assim. Que era impossível aceitar tal coisa e menos ainda que alguém pretendesse valorar tal anormalidade como uma aula boa. Disse-lhe na cara que aquilo fora péssimo e não admitia, nem ninguém com um mínimo de sensibilidade pedagógica, que se pudesse julgá-la doutra maneira.
E daí, o Vasco:
Então e o Buldogue, perdão, o Dr. Francisco? Não lhe mordeu (desculpe o termo)? Por muito menos passou o ano inteiro a atazanar-me por eu ser adoptado, era a minha fonte dos males. Marrou para ali e era como o burro no meio da ponte, nem para trás, nem para diante. Claro que a setora Patrícia era professora e orientadora, ele aí já não se atrevia...
E daí, a Drª. Patrícia:
Oh, pelo contrário, Snr. Vasco! Ele atacou-me, aquele homem atacou-me! Que eu estava a apunhalá-lo pelas costas, que só porque tinha a faca e o queijo na mão já julgava que detivera o direito de julgar do bem e do mal, que o condenava sem apelo e assim por diante. Que, se as posições fossem ao contrário é que ele gostaria de ver, quem era eu para ter a pretensão de ser dona da verdade, que eu não era deus... Sei lá, um desaforo desmedido e o completo desrespeito das minhas funções e competência. Custa muito aguentar destemperos destes, ainda para mais quando uma pessoa está com a melhor das boas vontades e só a querer ajudar, a ver se aquilo conseguia não ser tão desastroso.
E daí, o Portela:
Ó setora Patrícia, mas afinal qual era a pancada dele? Era mesmo desaparafusado, não era? Eu e aqui a Maria João, naquele tempo, só nos ríamos. À socapa, claro.
E daí, a Drª. Patrícia:
O Dr. Francisco tinha o maior complexo de inferioridade que eu vi em toda a vida. Era ele que alimentava, por sua vez, um complexo de perseguição como nunca também vi outro igual, felizmente. Como se olhava a ele próprio como uma nulidade, então julgava que o mundo inteiro corria atrás dele a pedir-lhe contas e a puni-lo por ser um zero à esquerda. Logo, para se defender, contra-atacava de duas maneiras: fazia a mascarada de que era um grande sábio e um excelente professor ou, quando esta estratégia falhava (e falhava sempre porque ele não era nada do que pretendia), aí atacava verbalmente quem se não deixava levar por aquele teatro e tornava-se provocador até ao desafio. A mim atacou-me com toda a fúria, a tentar humilhar-me e desautorizar-me..
E daí, a Maria João:
Mas que coisa mais retorcida! Como o Portela diz, eu e ele, a gente só se ria. Juventude... Só que me pergunto: alguém nasce assim, pode ser? É que eu, a ver-me como mãe, até tremo. Tive muita sorte com os meus. Agora ele, esconjurada seja tal sorte!
E daí, a Drª. Patrícia:
D. Maria João, ninguém nasce assim. Alguma coisa teve de ocorrer na vida do Dr. Francisco para nos cair aqui naquele estado. E, dada a forma cerrada e mesmo inabordável com que nos apareceu, tinha de ser ocorrência muito antiga ou então teria de vir a repetir-se constantemente há tempo bastante para poder redundar naquilo. Estava muito enraizado nele o monstro, era uma segunda natureza já. O que ele teria sido sem tais atitudes ninguém lograva doravante vislumbrar. Mas à partida ninguém é um complexado, torna-se naquilo por qualquer motivo. Nunca soube o quê, no caso dele. Ninguém foi capaz de furar-lhe a barreira defensiva. Por isso também ninguém podia ajudá-lo a sério. Bem, um estágio também não é o melhor ambiente para tentar tal coisa. Há muita tensão emotiva, demasiada interferência que encegueira. E, de qualquer modo, ninguém estagia para isso. Só que nós podemos sempre tentar dar a mão. Mas, no caso dele, ele mordia quem lha estendia. Espero ao menos não ter contribuído, de algum modo, para agravar aqueles demónios do homem.
E daí, o Vasco:
Ora, como, setora? Se ele tinha demónios, a nós é que fazia o inferno, nós é que o gramámos. Eu cá não lhe apanhei nem uma aula o ano inteiro. Está bem que eu nunca fui grande estudante, mas deu sempre para passar. Agora com ele... Nunca eu lá tinha chegado.
E daí, a Drª. Patrícia:
Sabe, Snr. Vasco, a minha convicção é de que nós agravámos tudo por dentro dele, justamente por não termos conseguido nenhuma ponte até à realidade profunda que andaria algures por lá perdida, no íntimo do indivíduo. Ninguém o fez por mal, claro, até pelo contrário, mas o efeito redunda no mesmo. Entende? Quanto mais ele repetia aquelas atitudes disfuncionais, mais elas se robusteciam e enraizavam. Nós também aumentámos isto, não é? Não conseguimos que ele produzisse outras, repisou e repisou sempre as mesmas...
E daí, a Maria João:
Ó Drª. Patrícia, nós, as mulheres, estamos bem treinadas a tratar doentes, a acarinhá-los. Mas quando o mal não tem cura, não tem. Há que resignar-se. Quem é que tem culpa? É a vida, pronto, todos temos de ir, chegou a vez dele, a meio da jornada. Se uma pessoa se vai culpar, ora adeus! Que é que nós, alunos, podíamos ter feito, se nem os setores desaferrolharam a porta? Pois se agravámos, paciência, não é? Mais ele nos agravou a nós a nossa vida, que bem aflitinhos andámos o ano inteiro, a ver quando é que o caldo se entornava de vez.
E daí, a Drª. Patrícia:
O mais triste é que não há doença psicológica que não tenha cura. E o Dr. Francisco sabia-o bem. Cismou que havia de encontrá-la sozinho, tal era o terror de quem tentasse ajudá-lo, não fosse traí-lo e atacá-lo também. Pelo menos penso que terá sido isto. Senão, porque é que recusaria ajuda? Mas tal atitude é uma constante em praticamente todos os afectados. Primeiro que se convençam de que precisam de tratar-se... Ele sabia disto tudo e mesmo assim...
E daí, o Portela:
Bem, a setora Patrícia não era a psicóloga dele. Por isso... E de certeza não fomos nós nem os setores que o pusemos assim, não é? Se foi lá coisaa antiga, então só ele é que podia saber e quem lho fez ou lho andou fazendo pela vida fora. Eu e a Maria João ríamos, era a nossa defesa. Cada qual arranjou a sua maneira de safar-se, o Vasco foi para as explicações, que um aluno, naquele tempo, não tinha muito por onde se defender, não é como agora a bagunça que por aí vai. Nós cá no Liceu D. Pedro V até nem temos muita razão de queixa, mas a gente ouve cada coisa por essas escolas fora com estes marmanjos! Cruzes!
Entra no bar o Dr. Gonçalo, enquanto as últimas intervenções continuam. Para não perturbar a conversa, dirige-se a Vasco por gestos, indicando-lhe o que quer e começa a ser servido ao balcão. Ele, porém, leva cada coisa para a mesa da Drª. Patrícia, com o à-vontade dum trato de amigos velhos. Quando entra na conversa, Maria João e Portela fazem menção de ir cuidar de seus trabalhos, acenando adeus por gestos, próprio de relacionamentos pacíficos habituais entre todos, de longa data. A familiaridade solidária e respeitosa.
Há novidades, Patrícia? Deixa-me adivinhar: o Chico, não? Tinha de ser. Não me digas que continuas com complexos de culpa. Que mais podíamos ter feito? Não havia hipótese nenhuma, acredita.
Para vocês, não, Gonçalo, eram colegas de estágio... Agora eu, como orientadora, devia ter conseguido ir mais longe. Maior poder, maior responsabilidade. É verdade que não era essa a minha função nem sou psicóloga, nunca me achei apta para a clínica. Basta-me ser professora desta área. Mas mesmo assim... Ao menos, convencê-lo a consultar um especialista. Bolas, sinto-me mesmo frustrada com este desenlace final.
Também não temos a certeza do que o motivou. Um colapso cardíaco tem muitas origens.
E tu consegues acreditar que não veio dali?
Não, não acredito. Foi de certeza aquela pancada dele e o relacionamento humano que dali se gerou. O vazio emocional e a tensão constante pagam-se. Para um stressado crónico muito aguentou ele. Mas, que diabo, nós também temos o direito de defender-nos. E mais ainda os alunos, não é?
Ele a vós não atacou propriamente. Foi a mim. Ou houve cenas que me escaparam?
Ai houve, houve. Pelo menos comigo. Não te contei na ocasião, que não vinha a propósito de nada. Um dia calhou de sairmos ao mesmo tempo, de tarde, encontrámo-nos ali ao portão. Calhou é uma maneira de dizer. De minha parte foi fortuito, agora da dele foi de certeza uma espera. Nem antes nem depois voltou nunca a ocorrer. Ele vinha engatilhado.
Engatilhado, Gonçalo?! Como?
Pois, Patrícia. Veio tentar dominar-me com a psicanálise.
Bom, tens de trocar-me isso por miúdos para eu entender. Que ele psicanalisava toda a gente, claro. Mas atacar?
É uma maneira de falar, mas foi o que ele tentou comigo. O que dá para libertar dá para prender. Nunca vi tão claramente a verdade disto como ali. Creio que nunca ninguém alertou para o risco de a psicanálise, mal ou perversamente usada, poder encurralar um paciente. Ou dar cabo dele. Mas pode, senti-o na pele. Então compreendi o repúdio dos alunos pelas pretensas aproximações do Chico duma outra maneira: eles estavam a salvaguardar-se duma invasão da privacidade, feita contra a vontade deles e tendo em vista submetê-los. Foi uma manifestação de equilíbrio, de boa saúde emotiva, de interioridade sadia, cheia de vitalidade sã, de alegria de viver. Se não se tivessem defendido daquela maneira, ele tê-los-ia tornado, a quantos desprecavidos o permitissem, em neuróticos de facto. Teria sido a inversão completa do fito da terapia psicológica: ele transformaria todos os sadios em doentes. Podes crer.
Explica-me lá isso, ó Gonçalo. É novidade. Dou de barato que ele nem saberia o que andava a fazer.
Lá saber, sabia, mas acobertava-o com roupagens muito idealistas, para parecer tudo impecavelmente ético. Mas não era por perversidade intencional, não. Era um mecanismo de defesa. Com os alunos, por exemplo, era para tê-los debaixo de mão, já que os não conseguia disciplinar doutro modo.
Vamos aos factos? Que raio de abordagem foi essa quando ambos saíram do portão da escola?
Tu lembras-te de que eu pertenci à chamada comunidade da Capela do Rato, no centro de Lisboa, nos anos anteriores ao 25 de Abril. Enquanto ali houve um foco de interventores contra o fascismo e pela democratização do País, mantive-me activo por lá. Mas depois da revolução houve toda uma movimentação conservadora de cristianismo bolorento lá dentro, a impedir as ideias mais contestatárias, as reformulações mais arrojadas. Então abandonei aquilo, já tinha dado o que havia a dar. Dali, no meu entender, já não viria nada que me pudesse importar. Com toda a gente à procura de caminhos cá fora, parti para outros rumos e buscas, era muito mais fascinante.
Então e daí? Que é que isso tem a ver...?
Tem a ver que o Chico ficou a par disto, não sei como, ainda hoje. Teve de andar a vasculhar a minha vida, o meu passado propositadamente, porque eu jamais o tinha encontrado a ele em minhas andanças naqueles anos todos. Em vez de empenhar o tempo e as energias a tentar ser um bom professor, pelos vistos esbanjava-os nisto, para tentar manipular os outros. É mesmo mórbido!
Dele era de esperar, não é? E depois?...
Veio-me com um raio duma interpretação...! Quase me fez perder a serenidade, ele tinha o dom de irritar um santo. Que eu tinha abandonado aquilo porque era um ingrato, não queria reconhecer que lhes devia tudo. Que os padres do Rato e a Igreja é que me tinham aberto o caminho da vida e era assim que eu lhes pagava, um Judas tridor. E que se eu fugia era porque tinha um enorme complexo de culpa, por andar a vendê-los por trinta dinheiros todos os dias, a bandear-me com os inimigos deles. Que eu os tinha usado como um trampollim e deitado para o lixo depois, quando já me não convinham. Que eu devia era ter vergonha de ser tão baixo, tão reles que não era capaz de reconhecer donde me vinham os galões. Se eu os tinha abandonado era por saber muito bem que eles é que tinham razão e por não querer dar o braço a torcer. Isto era uma atitude dum cobarde, dum poltrão. Um homem a sério enfrenta a situação com verdade, doa o que doer. Mas eu, não, eu fugia e recusava-a, armado em importante, em vez de agradecer bem humilde a quem me fizera gente. Eu não valia nada, era menos que um pedaço de bosta que qualquer tacão esmaga sem sequer reparar. E não merecia outra coisa, que quem faz o que eu andava fazendo só podia esperar o desprezo de quem era minimamente bem formado. E assim por diante... Estás-me a ver uma coisa dfestas, Patrícia? Não há pachorra para aturar isto!
E tu, Gonçalo, que é que fizeste? Ele estava mesmo a tentar desmoralizar-te! Aquilo é que era técnica de esmagar pessoas! Não fazia ideia...
Ao princípio tentei chamá-lo à razão. “Não, não é nada disso, homem, estás completamente enganado.” Só que o efeito era ao contrário. Quanto mais eu procurava amansá-lo, mais ele me atazanava. Quando me convenci de que a ele não lhe importava verdade nenhuma mas esborrachar-me de qualquer maneira, aí virei-lhe as costas com uma resposta brusca e afastei-me rápido, que ele estava como o cão ferrado no osso e não me largaria doutra maneira. Claro que tentou continuar a seguir-me com as mesmas ferroadas, mas a passo rápido ou a correr aquilo já não podia funcionar, não era?
E ainda tu tentaste dar-lhe troco! E julgavas que era a tentar dominar-te, era? A mim parece-me que foi mais a tentar dar cabo de ti. Fazias-lhe sombra no grupo de estágio, como, aliás, os outros todos. Lá te viu como o mais frágil, eras o benjamim, e então toca de atacar a ver se te liquidava.
Quem pode entender o que se passava naquela cabeça? Sei lá! No mínimo, contudo, daria isto: se ele me convencesse daquela interpretação estapafúrdia, eu cairia numa culpabilização permanente. Como era ele quem me teria aberto os olhos, o mais provável seria eu passar a recorrer a ele como confidente-libertador, a projecção habitual, durante a terapia, sobre o psicanalista. Ele sairia, a meus olhos, pouco menos que endeusado, era o meu salvador. Para um carente afectivo em último grau como ele era, isto deveria ser profundamente gratificante. Daí para a frente ter-me-ia na mão para o que lhe deesse na veneta. Aliás, ter-me-ia à mão para servir-se de mim sempre que precisasse. Estás a ver bem onde isto levaria? Espero mesmo que nenhum aluno tenha caído na armadilha. É a instrumentalização das pessoas em benefício próprio. Uma aberração completa da psicanálise.
Olha, isso ainda me aflige mais. Quantos alunos é que, durante a carreira, ele terá vitimizado? Nós normalmente pensamos apenas em termos do currículo, do aproveitamento deles nas matérias do programa, já menos na relação pedagógica em aula que era, no caso dele, aquele atraso de vida que vimos, mas melhorava um bocado quando não estávamos presentes, como presumimos e as turmas iam confirmando. Ainda agora falávamos disto, a propósito. E aqui, nesta escola, pelo menos, foi assim. Contudo, esse outro lado... Mesmo nós, que somos professores da área, não nos sentimos à vontade para analisar e dar conta do recado num campo desses. Eu por mim confesso, sinto-me perdida em tal domínio. Aqui parece que ele não provocou estragos até ao ponto que referes, mas nas outras escolas, antes e depois de por cá ter passado... Será que ele acabou por escravizar alguém à sua tara, até ao extremo que contas? E nós não teremos sido algo responsáveis ao dá-lo por profissionalizado, a partir daquele ano em que nos deu cabo do juízo?
Ó Patrícia, nós pesámos maduramente os prós e os contras. Lembras-te? Qual era a vantagem de o reprovar no estágio? Ele não era excluído da profissão como deveria ser, ficava apenas sem se profissionalizar, mesmo que fosse para a vida inteira. Ninguém o expulsava do ensino por isso. Depois, ao reprová-lo, íamos agravar todo o complexo de perseguição que era constante nele e as vítimas maiores iriam ser os futuros alunos. Finalmente, ele, ainda mais destrambelhado, iria decerto concorrer a outro estágio e, se lá manipulasse alguém desprevenido, ainda sairia altamente cotado e poderia ser promovido a funções onde o estrago se multiplicaria em cadeia. A alternativa à nossa escolha era esta. Julgo que fizeste o melhor possível e o grupo todo esteve soludário contigo menos ele, claro. Foi a utilização mais lúcida do pouco poder que tinhas. Eu cá não me sinto responsável por nenhuma das loucuras que ele eventualmente tenha feito, nem antes nem depois. Aturámo-lo, resolvemos o problema o melhor que pudemos e soubemos, com diplomacia e tudo. O resto não é connosco. Se quem tinha o poder de arrumar a questão de vez não se demitisse de usá-lo como nós usámos o nosso, nem sequer teríamos tido necessidade de equacionar o problema: o Chico nem mesmo teria sido professor. Mas lá nos cadeirões do poder quem é que olha para as desgraças que semeia, tolera ou ignora?...
É verdade, é verdade. Só que eu sinto uma pontada no peito quando penso nas centenas, nos milhares de alunos que lhe foram correndo pelas mãos estes anos todos. Neste aspecto, ainda bem que findou. Nem ele nem eles têm que sofrer mais...
Amém. E ainda por cima há outro aspecto: no fim de contas, os alunos conseguiam aprender, ele não tinha uma percentagem de reprovações fora da média. Claro que podemos pôr em causa a fiabilidade das avaliações dele aos próprios alunos, uma vez que deveríamos estar, afinal, todos em comparação mútua. Mas não há motivo para grandes dúvidas: no exame os resultados foram praticamente iguais aos nossos, portanto... O principal estava garantido, que são os alunos e o aproveitamento deles, não é?
Aqui na nossa escola tens razão. Mas sabes o que ouvi no Ministério? Esse vector foi-se degradando gradualmente ao correr dos anos. Nos últimos parece que já nada ligava com nada, as aulas tornaram-se caóticas, sem fio de sentido nem para alunos nem para professores. Houve horas gravadas clandestinamente pelos moços: ninguém entende nada daquilo. O termo que ouvi foi que era alucinação, ele estaria semi-louco, se calhar louco varrido.
Estás a ver, Patrícia, que é que nós temos a ver com isso? Já lá vão dezenas de anos...
Pois vão, pois vão. Dou comigo, às vezes, a pensar se ele não teria aceite outra proposta de trabalho, sei lá, ir para um arquivo, uma biblioteca...
Quem, o Chico?! Ó Patrícia, és de bom tempo! Fosse o que fosse era sempre um ataque de cobardes, para ele, aquela couraça não havia nada capaz de a perfurar. Queres que eu te conte a última?
O quê?! Ainda há mais?
Já tínhamos acabado tudo, o ano no fim, mas ele teve ainda de vir outra vez atrás de mim para me atazanar. Em plena época de exames, com o estágio arrumado definitivamente.
Mas nós nem sequer voltámos a reunir nem nada. Com ele no grupo, então nem pensar! Envenenava tudo, até me dava engulhos só de pensar em tal. Foi livrar-me daquilo e pular à frente o mais rápido possível, a ver se obliterava tudo.
Pois. Comigo foi o mesmo e decerto com os outros também. Mas ele veio depois atrás de mim pelo passeio fora, ali pela rua adiante, estás a ver aqueles cachorros que ladram a dois ou três passos de nós? Uma figura dessas, a barafustar, a barafustar...
Mas que é que ele queria?
Nada, só chatear. Que eu lhe espetara uma facada pelas costas. Como se a decisão fosse minha! E pelas costas como? Fartámo-nos de conversar entre todos a tentar chegar a ele, mas ninguém conseguia fala nenhuma com aquele homem.
Mas eu encontrei-me com ele, quer dizer, tentei e disse-lhe tudo. Ele é que não aceitou nada, nem durante o ano nem no fim. Ou se defendia ou atacava. Diálogo, tentativa de entendimento é que não havia nunca nenhuma. Claro que repudiou o dez que lhe dei, mas pior ainda seria a reprovação que era o que ele merecia. Nem queria ouvir as justificações, sempre a racionalizar cada um dos motivos. Nós éramos todos incompetentes, ele é que tinha razão e toca de arquitectar uma argumentação lógica qualquer atrás da qual se escondia. Como sempre. Como se o argumento lógico apagasse os factos. É impressionante até onde ele levava aquela mistificação.
Agora que falamos nisso, quer-me parecer que era uma coisa dessas o que ele pretendia: repetiu atrás de mim que o que queria ver era um frente a frente, não era pela calada como nós teríamos feito. Na ocasião retorqui-lhe que ele estava muito enganado, que reprovaria no estágio se não fôssemos nós termos optado pelo dez, apoiando tal escolha pela Patrícia. Claro que isto não o calou, continuou rosnando atrás de mim como um cão assanhado. “De frente é que estas decisões se tomam, não à traição, uma facada pelas costas!” Não me ocorreu na ocasião que o que ele pretendia era aquele diálogo de surdos, aquela agressão permanente com as palavras em que ele se tornara perito, a subverter tudo, atropelando os factos, os efeitos, o amachucamento das pessoas com argumentos que dessem a tudo isto uma aparência de razoabilidade, até de grande ideal ético, com as vítimas transformadas em carrascos, em réprobos, em cadastrados até. Olha que era se calhar isto.
Bem, seria um espectáculo de sado-masoquismo. Não sei que gozo ele podia tirar de tal tropelia, mas és capaz de ter razão.
É o que faz sentido. Teria de ser frente a frente, ou ele não poderia esgrimir aquela lógica de morbidez. E tinha razão em vários aspectos, olhando para trás dou-me agora conta. Primeiro, quando nos apercebemos do que ele era e como funcionava, todos tratámos de nos pôr a salvo, ninguém esteve disposto a aturar tal aberração, mesmo a Glória que, a princípio, ou não se apercebeu ou teve pena do homem, acabou por manter as distâncias e alguma reserva. Ninguém que é sadio vai sofrer por gosto. Já que o tínhamos de aturar no grupo, ao menos era de ficar por aí, bastava. Já machucaria o bastante. Mas para ele isto era fugir ao confronto, não lhe permitia esgrimir os argumentos distorcidos em que era eventualmente imbatível. Ora, no fim do ano foi o mesmo. Não lhe demos a oportunidade de nos esmagar com a lógica irrespondível dele. É que imbatível, para aquele homem, era o mesmo que insusceptível de ser calada. Estaria tão imbuído da racionalização dos dados que nem se daria conta de que isto não demonstra nada, quando muito pode enganar algum ingénuo ou manipular um desprevenido de boa fé.
Concordo que faz sentido, nunca tinha reparado no caso por este ângulo. É muito curioso. Se é verdade, então ele jamais entendeu o velho dito irreverente dos estudantes: “a lógica é uma batata.” Quer dizer, se à partide se pretende chegar a um ponto predeterminado, então, vá-se por onde se for, podemos sempre chegar lá, dado que ela é arredondada. O que mostra que com ela se não prova seja o que for, uma vez que se pode demonstrar tudo. É por isso que contra factos não há argumentos: os argumentos é que têm de acolher os factos e subordinar-se-lhes incondicionalmeente. Só então a lógica cumpre a função dela.
Era areia demais para o Francisco. Aceitar tal estatuto seria destruir toda a muralha defensiva que armara em redor dele. Afinal, estaria convicto de que, desde que encontrasse um argumento qualquer para justificar que tinha razão, mesmo contra o mundo inteiro, ele então é que detinha a verdade. Bastava-lhe rebater todos os argumentos em contrário até ao infinito. Nunca se terá apercebido de que isto é exequível sempre, em todos os sentidos, qualquer que seja o dado em questão, a tese que se proponha, a posição que se tome. É apenas questão de imaginário, não tem nada a ver com a verdade, a convergência do dado com o conceito. E esta, ainda por cima, é apenas aproximável indefinidamente. Nunca a encontramos em definitivo, mesmo tentando decifrar cada vez mais o dado, quanto mais pretender agora que a detemos porque logramos sempre um palavreado qualquer para justificar a jangada instável onde apoiamos os pés! Mas pelos vistos o Francisco vivia nesta base. Só agora me dou conta.
Mas então que é que ele queria? Que vocês se enfrentassem ali todos, interminavelmente, até começarem a cair para o lado, de exaustão? Isso prolongar-se-ia até ao infinito...
Creio bem que a fèzada dele era que, por não termos o treino de racionalização que ele tinha, acabaríamos nalgum ponto sem argumentos. Tendo-nos calado, seria ele o vencedor. Era um combate. Estás a ver, Patrícia? Como teria o derradeiro argumento, ele, vencendo, é que seria o detentor da verdade. Quase juro que seria isto. Era a aposta dele. Frustrámo-lo porque nem sequer admitimos qualquer confronto. Ele confundia verdade com argumento, nunca entendeu que este é sempre redondo, dá para todos os sentidos que queiramos, indefinidamente.
Pior, era um combate, como tu dizes, Gonçalo. Ou ele vencia porque nos deixaria sem argumentos ou então por exaustão. Logo, o critério da verdade, para ele, era o do vencedor. Que coisa mais primária, mais idiota, mais irracional! Valha-nos Deus, mas que raio de professor de Filosofia era aquele homem, se nem aqui via um palmo à frente do nariz? Já não é na relação pedagógica, estás a ver, é na própria incoerência entre a vida e o que teorizava no programa. Que lá pratadas de sabedoria ele sabia-as atirar sempre, a propósito e a despropósito. Não me consta que ele propugnasse, na teoria do conhecimento, que a verdade é a do vencedor. Coitados dos Galileus deste mundo! Já não basta o mal que lhes acontece, ainda têm de aguentar quem pratique a defesa do crime que os condena à morte, apesar de serem eles quem tem razão contra os poderosos. Olha que isto é muito pior do que aquilo de que na ocasião tomei consciência. Aquele homem nunca devia ter sido professor. É caso para dizermos que é mau demais para ter sido verdade. E, contudo, foi. Anos e anos.
Patrícia, não te esqueças de que estamos a especular. Se calhar nem foi nada disto, sabemos lá. Como naquele tempo nem nos demos conta, pode bem ser que hoje vejamos o que, afinal, nunca existiu. Se já somos todos muito complicados, quanto mais o Francisco com aqueles monstros todos dentro da cabeça, a infernizar-lhe a vida! Podemos nem sequer estar à altura de descodificar que motivos o levavam às atitudes que tomava. Sei lá bem o que é que estaria por trás daquelas nuvens negras todas! E olha, o que lá vai, lá vai...
Pois, donde é que lhe viria aquela mania do frente a frente que ele inviabilizava sempre? Para torná-lo impossível também não faz sentido, embora ele provocasse permenentemente o falhanço. Que é que aquele homem queria, afinal? Seria deveras um confronto de que saísse vencedor? E confundiria isto com inviabilizar qualquer frente a frente? Afinal, queria ou não queria? Demasiadas perguntas para as quais acabámos definitivamente sem resposta.
Ora, nem ele deveria saber. Era já demasiado confuso para uma resposta com lucidez. O Francisco era lá capaz de compreender-se! Não. Alguma coisa levou àquilo mas se calhar nem ele estaria apto a identificá-la. Que raio de vivência deixa um homem assim escangalhado?
TERCEIRO QUADRO
Num gabinete da Faculdade de Letras, o Prof. Eduardo encontra-se em reunião com os pós-graduados que, sob a orientação dele,preparam tese. Sentados em redor da mesa, todos têm vários livros, cadernos de apontamentos e fichas. De lapiseira ou esferográfica, vão tomando notas ao correr da troca de impressões que decorre com informalidade. Todos se conhecem e convivem há vários anos, sem problemas de maior. São o Luís, o Veiga, o Moniz, a Fernanda, a Mónica e a Cristina.
E vai daí, o Prof. Eduardo:
Hoje soube duma notícia triste: encontraram morto um colega meu dos tempos de estudante. Vem mesmo a propósito. É como uma homenagem póstuma que lhe farei: aproveito o caso dele para ilustrar alguns desvios que não levam a lado nenhum e que deveremos evitar. Era o que tínhamos combinado para esta tarde, não era? Eu nem sequer o conheci bem, senão por alguns destes aspectos, não partilhava do meu grupo de amigos. Evocando traços negativos dele para nos ajudar, dou-lhes uma função positiva, torná-los-emos construtivos. É um bem haja para ele, agora que de vez nos deixou.
E vai daí, a Fernanda:
Ele também defendeu tese, Prof. Eduardo? Fez seminário como nós? Consigo?
E vai daí, o Prof. Eduardo:
Não, não, foi durante o curso, encontros esporádicos ainda nos verdes anos. Mas irão ver como ajuda. Não soube mais dele depois, cada qual foi pelo próprio rumo. Eu fiquei por aqui... Queria reproduzir-vos fundamentalmente duas conversas que tive com ele e não me saíram mais da memória, de tão exemplares que se me afiguraram. Foram verdadeiros protótipos, quase juro que, naqueles tempos, se repetiriam na cabeça de praticamente todos os estudantes. Vamos ao contexto. Em Portugal, quase até ao nosso curso, ninguém conhecia nem estudava Kant. Nem na gnoseologia nem em nada. Creio mesmo que havia docentes que chacoteavam dele, fundados em preconceitos ignaros, sem se darem ao trabalho sequer de o estudar minimamente. O resultado foi que nós tivemos de entrar ali como em terrirório virgem, pela mão dum estrangeiro muito bem documentado, sabedor e competente. Ora, Kant não é nada fácil. Ainda hoje, tantas gerações académicas volvidas, obriga a suar e bem qualquer um para dominá-lo. Vocês também tiveram igual experiência, não é?
E vai daí, o Luís:
Evidentemente. E em qualquer domínio, é curioso. Na ética também andámos às voltas, no meu curso. Kant obriga mesmo a crescer, que mais não seja.
E vai daí, o Prof. Eduardo:
Estávamos a sair da aula do Market, à hora de almoço, íamos a descer a escadaria ali de entrada. O Francisco resmungava ao meu lado, furioso, que aquilo era de propósito, senão, como é que ninguém entendia nada? Como é que se admitiam indivíduos assim na Faculdade, só para esmagar os alunos, a fazer de conta que eram bons e que aquilo era uma matéria reservada a iluminados? Era inadmissível! Gastar dinheiro do Estado com sujeitos destes, em completa perda... Isto era um roubo ao País. Gente desta devia ser irradiada, quanto mais agora ir ao estrangeiro convidá-los! Qual o quê, não tínhamos em Portugal quem o substituísse? Ninguém fazia em Letras a razia que todos os anos havia nas turmas dele, ninguém. Qualquer dos outros docentes estaria à altura e, de certeza, bem melhor do que ele, que não prejudicaria o País, ao menos, com aquelas reprovações todas. Era um estrangeiro, estava tudo dito, não lhe doía na pele o que nos andava a fazer, se calhar até seria bom para a Espanha que nós ficássemos sempre mais atrasados, não lhe faríamos sombra. Quantos não conseguem acabar a licenciatura por causa do raio daquele cadeira atrasada! A maior parte tem de desistir a um passo do fim. Que lindo serviço sua excelência anda a prestar a um povo inteiro, já para não falar de cada um. São vidas e vidas atiradas para o caixote do lixo. E pronto, esta foi a primeira linha de raciocínio e argumentação do Francisco. E dizia há pouco ali o Luís que Kant nos obriga a crescer, não é?
E vai daí, o Luís:
Pois, professor. Mas eu até compreendo a atitude. E não é caso virgem. De certeza que todos tivemos conversas aparentadas a essa, quando houve que enfrentar temáticas para muitos inabordáveis. Estou-me a lembrar, por exemplo, no caso do meu curso, dos cálculos em lógica matemática. Foi o desatino geral, quase ninguém tinha qualquer preparação e, sem bases, não há probabilidade nenhuma de lá chegar. Aliás, grande parte vem para Letras para escapar à matemáatica. Apanhá-la de repente no meio dum curso destes... E depois ficar a zero, não é, sem poder enxergar nada...
E vai daí, o Veiga:
É normal o desnorteamento num campo ou noutro. Agora virar para um discurso revolucionário, professor, aquilo deveu-se foi ao ambiente da época, depois do 25 de Abril. Hoje ninguém se lembraria de argumentar com o País ou com o destino dum povo. Anda tudo mais individualista, para não dizer egoísta. Quem daria ouvidos a tal coisa? O que importa agora é um cursinho qualquer, a ver se se encontra uma boa saída para uma vida a contento. O resto, quando muito, é para o papelinho no dia de eleições. Depois esquece. E, se correr mal, berra-se na manifestação ou na greve, quando muito, que a maioria limita-se a encolher os ombros e a dobrá-los a seguir. Mas não era neste alheamento que queria pôr o dedo, pois não?
E vai daí, o Prof. Eduardo:
Não, não, Era na estratégia de enfrentar a dificuldade. Reparem que aquela linha de rumo do Francisco não resolveria nunca o problema de compreender a teoria do conhecimento de Kant. Bem pelo contrário. Se levasse à prática o que implicava, até tornaria inviável resolvê-lo alguma vez. Com efeito, conduziria primeiro à expulsão do docente convidado, depois substitui-lo-ia por alguém, muito provavelmente dentre aqueles que troçavam de Kant sem jamais o haverem entendido.
E vai daí, o Veiga:
Pelo menos cortava o problema de raiz.
E vai daí, o Prof. Eduardo:
Exacto, Veiga. E consagrava a ignorância definitivamente, garantindo o seu prolongamento indefinido. Isto é que é de reter, creio eu. Trata-se duma forma de fuga para evitar o sofrimeento que a derrota, a frustração provoca. Como todas as fugas, transpõe o problema para outro domínio, não o resolve, quando muito adia-o. Normalmente vai levantar questões num campo novo que anteriormente, se calhar, nem existiam.
E vai daí, o Moniz:
Não foi o caso, pelos vistos. O País estava a pedir uma revolução para pôr termo à ditadura. Deviam multiplicar-se na época casos destes que acabaram por redundar na queda do regime de então. Nesse aspecto até foi benéfico haver uma projecção para o campo do estado do País. Resta é que não resolve, de facto, o problema de partida. Mas tem outra contrapartida útil: um indivíduo aguenta mais tempo e melhor o período de busca fracassada. Doutro modo, porventura, esse tal Francisco poderia ter desistido, não era? Podia não aguentar a sequência de tentativa e falha sem esperança de saída. Aquela atitude seria, eventualmente, o melhor que conseguia naquele contexto. E se calhar até tinha razão no objecto da crítica, a função do tal professor convidado, por mais alheia que fosse ao que por trás a motivava, não?
E vai daí, o Prof. Eduardo:
Resumiu exemplarmente o que eu pretendia, Moniz. Há na fuga a projecção dum pendor benéfico traiçoeiro porque, mal nos precatamos, cortamo-nos do desafio de partida e então falhamos no nosso projecto. Este é o alerta para quem investiga numa tese em curso, como é o vosso caso. Tem de se estar permanentemente vigilante nos períodos que correm mal. Podem rogar as pragas que quiserem mas não larguem nunca o fio condutor do vosso rumo. Certo? Agora a pergunta que ficou no ar. Nunca houve qualquer razão para aquela imprecação contra o docente. Era um espanhol fugido da ditadura de lá, também por motivos políticos. Estão a ver? Ele contou-me que, numa das ocupações selvagens estudantis da Universidade, vira um professor velhinho a saltar por uma janela dum primeiro andar da Faculdade, para escapar aos energúmenos. O Market ficara então deveras chocado, era duma desumanidade criminosa sobre um homem inofensivo, cordato toda a vida, e que no fim se vira forçado a tal recurso perigoso de sobrevivência pela arbitrariedade das massas em fúria. De mal com ambos os lados da barricada, viera-se embora.
E vai daí, a Fernanda:
Em todo o caso as ditaduras ibéricas é que geraram o pano de fundo de tais vidas. Davam assim uma cobertura com aparência ética às revoltas, mesmo por projecção, de qualquer Francisco daquele tempo. E era porventura uma máscara bem credível e eficaz, com eco generalizado, senão no País (alheado à força pela censura e propaganda do regime), ao menos entre estudantes, em todas as academias. Seria pelo menos tentador, Prof. Eduardo, temos de admitir. Um indivíduo falhava a cadeira, mas era um revolucionário, erguia a tocha dum país novo, obtinha o reconhecimento e consideração que no aproveitamento lhe eram negados, não é?
E vai daí, o Prof. Eduardo:
É verdade, Fernanda. E muitos deixaram-se embalar por esse canto de sereia e ficaram definitivamente pelo caminho. É contra isto que vos quero prevenir. Às tantas é tão gratificante que um indivíduo finda viciado, não quer outra coisa e o curso acaba atirado às urtigas. Ora, o risco é maior com a elaboração de teses de pós-graduação, uma vez que já temos a licenciatura, o caminho já ficou aberto. Importa medir permanentemente os prós e os contras, decidir numa base reflectida, não num impulso emotivo que nos arriscamos a lamentar para o resto da vida.
E vai daí, o Veiga:
Bem, naquele caso, ao menos, havia um fundamento poderoso e que não era de teor egoísta, a libertação do País duma ditadura, ainda por cima anacrónica. Se pelo menos fosse esclarecida como tinha sido a pombalina... Havia gratificação pessoal mas também uma benesse colectiva em jogo. Claro que tentaria mais e mais os oportunistas a abrigarem-se debaixo de tal guarda-chuva. Não quero dizer que tenha sido o caso do seu colega, Prof. Eduardo...
E vai daí, o Prof. Eduardo:
Mas olhe, Veiga, que de alguma maneira foi. Ele não era parvo nenhum, claro, e dava-se conta da falta de fundamento credível para aquela diatribe violenta, pejada de ódio frustrado. Como eu me mantive calado, o Francisco então mudou de rumo. É engraçado como todos buscamos apoio, mesmo para os nossos maiores dislates. A fúria dele entrou, com efeito, num campo mais pessoal, bem mais próximo do que era aquilo a que se reportava, o falhanço dele na cadeira. Deitou fora a falsa capa de pretenso patriotismo, mas continuou a encobrir-se, num primeiro momento, com o grupo, era o curso todo que estaria destinado ao rito sacrificial, já não pela mão do poder político, mas do individual daquele professor.
E vai daí, o Luís:
Em que termos? Era a mesma coisa...
E vai daí, o Prof. Eduardo:
Não, Luís, o Francisco podia tê-lo feito transpondo os argumentos, mas era mais esperto do que isso. Reelaborou instantaneamente tudo, dado que a primeira abordagem me não atingira minimamente. Que o Market era um sádico, o prazer dele era esmagar debaixo da bota toda a gente. “Já viste a percentagem de reprovações com ele, quando a comparamos com a doutro qualquer? O homem precisa é de psiquiatra. Sente-se realizado com a destruição dos outros, isto é uma doença. Ninguém se consegue plenificar fazendo mal a toda a gente. Aquilo é de propósito, não julgues que não! Aliás, ele nem devia ser autorizado a falar em espanhol. Estamos em Portugal, que diabo, o desprezo dele por nós vai ao ponto de nem sequer tentar comunicar na nossa língua. Eu sei que é um pormenor, mas, se aquilo já é tão difícil de entender em português, quanto mais numa língua estrangeira, embora aparentada à nossa. Não é que eu tenha dificuldade nisto, mas há lá muito menino na turma que a primeira parede que encontra é do espanhol meio galego que o gajo fala. O que ele deve rir por dentro quando olha para a turma e vê que ficámos todos a ver navios, que andamos todos aos papéis!” Aí eu retorqui-lhe que não era bem assim, porque, ao fim e ao cabo, a maioria, nas turmas, conseguia todos os anos fazer a cadeira e até com boas notas. Eu, pessoalmente, não sentia dificuldade nenhuma em entender as aulas dele.
E vai daí, a Fernanda:
Com essa, professor, arrumou o homem. Ele deu-se por vencido?
E vai daí, o Prof. Eduardo:
Não, Fernanda, aquela atitude mexe sempre muito mais fundo do que parece. Era bom se desarmasse assim. Limitou-se a deixar cair a capa fingida da preocupação pela turma e deixou vir ao de cima a verdadeira ansiedade que era com ele próprio. Por trás acaba por andar sempre isto, não é? O altruísmo puro não existe nem é imaginável, senão que é que um indivíduo sentia? Nem daria pelos motivos, uma vez que nem lhe tocavam.
E vai daí, a Mónica:
Ó Prof. Eduardo, afirmou que não era para falar mal do defunto. Então?...
E vai daí, o Prof. Eduardo:
Não me interprete mal, Mónica. Isto é apenas constatar como somos todos, nós e ele. Deixar cair a derradeira capa de fingida virtude e assumir os próprios medos foi, no meu fraco entender, uma atitude de lisura, foi ter coragem de expor-se. É saudável e digno de encómio, creio. Julgo importante, quando somos tentados à fuga, a proteger-nos desviando-nos e descarregando a frustração e a raiva num alvo aleatório qualquer, que tomemos consciência do que andamos a fazer e de que isto, no máximo, é uma irrelevante almofada a dar-nos tempo de tomar fôlego para recuperar a tarefa real e renovar os caminhos.
E vai daí, a Cristina:
De acordo, professor, mas assim não vale. Nós, as mulheres, queremos pormenores. Não pode descartar desta maneira o caso. Como é que foi jogar fora a última capa? Que é que ele fez?
E vai daí, o Prof. Eduardo:
Ah, pois claro, Cristina, tem toda a razão. Obrigado. O Francisco mudou uma vez mais o teor do discurso. Virou-se para mim a trejurar. “O gajo tomou-me de ponta, não me pode ver. Tu já reparaste como ele me trata? Qualquer um pode levantar uma dúvida, apresentar uma objecção. Todos, menos eu. Acolhe a interrupção de cada qual, com aquele ar atencioso todo afectado, só fingimento, e responde-lhes muito pausadamente, com toda a calma, aquele sorriso que é mesmo de lhe ferrar um murro nas trombas, o sacana! Só comigo é que não. Encolhe os ombros e nem me liga. Tu já me viste uma coisa destas? Com que direito é que um tipo daqueles me faz isto? Porque é que o gajo me discrimina? Não sou um aluno como outro qualquer? Ora essa! Ele não pode fazer isto! É só professor para os eleitos, os querridinhos dele? Onde é que já chegámos? Tu achas bem uma coisa destas?”
E vai daí, o Moniz:
Não me diga que era mesmo o que ocorria nas aulas!
E vai daí, o Prof. Eduardo:
Era, Moniz, era.
E vai daí, o Veiga:
Ah! Então o seu colega sempre tinha alguma razão.
E vai daí, o Prof. Eduardo:
Não, Veiga, não tinha.
E vai daí, a Fernanda:
Essa agora, professor! Não tinha?! Então como é que era?
E vai daí, o Prof. Eduardo:
É que, Fernanda, tanto quanto me lembro, o Francisco nunca apresentou uma dúvida nem uma objecção, durante aquele ano inteiro, naquelas aulas. Estava sempre a interromper, mas, como não compreendia nada do que ia sendo exposto, era constantemente a despropósito, jamais tinha a ver com o tema da lição. Aliás, recordo-me de que ele nem esperava o termo duma frase, a explicação dum raciocínio ou conceito. Parecia-nos até que nem sequer estaria a ouvir, tudo lhe servia de pretexto para tomar a palavra, a propósito e a despropósito. Normalmente a despropósito e sem qualquer conexão sequer com o que ia sendo exposto. Outras vezes era uma palavra solta ao acaso, sem contexto nem sentido, e lá desatava ele a objectar, a perguntar sem ponta por onde se lhe pegasse. E foi o ano inteiro assim.
E vai daí, a Mónica:
Não é fácil de entender contado deste modo, professor. Dê lá exemplos, se recorda algum.
E vai daí, o Prof. Eduardo:
Oh, Mónica, como é que eu hei-de...? Não me lembro em concreto, ao fim de tantos anos. Era do género, quando andávamos a distinguir o plano do entendimento do da razão em Kant, e estávamos ali todos concentrados a ver se não perdíamos o fio da meada, berrava o Francisco lá do canto: “ó professor, acha digno de conceitos tão elevados o senhor apresentar-se aqui sem gravata? Não acha que está a rebaixar o nível do autor e até o destas aulas, para já não falar de nós próprios?” Estão a ver como era?
E vai daí, a Cristina:
Era para rir?!
E vai daí, o Prof. Eduardo:
Não, não, foi apenas um exemplo, Cristina. E, curiosamente, nunca ninguém riu, agora reparo em tal pormenor. Era demasiado constrangedor. Eu, pelo menos, sentia-me incomodado, quase aflito com aquilo. E, decerto, os demais também. O Francisco parecia um deficiente mental e ninguém se sentia bem com isto, ele tomava aquilo a sério e sempre era um colega, não é? Havia algum espírito de corpo, naquele tempo, ainda para mais com as greves e manifestações académicas sempre na ordem do dia.
E vai daí, o Luís:
Estou mesmo perplexo, professor. Qual o intuito por trás de semelhante atitude? É que, se ele não compreendia nada, o normal seria meter o rabinho entre as pernas e esconder-se a um canto, a ver se ninguém dava por ele. Isto assim, ao invés, era suicidário. Ora, como diz que ele não era estúpido... Então visava o quê? Não é?
E vai daí, o Prof. Eduardo:
Não posso garantir, Luís, que tenha entendido muito bem aquilo, não estava nem estou na pele dele. Mas talvez ajude melhor um segundo caso de que me resta uma vaga ideia. Foi na fase de precisar com rigor kantiano o conceito de entendimento. Ora, depois de várias notas de sentidos a excluir, de aspectos e funções a incluir, o Francisco saiu-se com uma tirada deste teor: “para haver entendimento tem de haver negociação, pelo menos um encontro entre as partes, senão ninguém chega a entendimento nenhum.” E depois duma pausa, muito senhor de si: “estamos para aqui há não sei quanto tempo a falar, a falar e nunca mais chegamos àquilo, que é o que importa. Não faz sentido nenhum andarmos todos a perder o dia. Ainda por cima ninguém se manifesta. Acho que já era tempo de pôr as coisas no lugar.” Estão a ver, não é? Quase só faltou proclamar: “eu cá sou o maior! Vocês são todos uns míseros vermes!”
E vai daí, o Veiga:
Era isso o que ele pretendia? Um exibicionismo bacoco?
E vai daí, o Prof. Eduardo:
Se lhe tirares o bacoco de que ele se não dava conta, era, Veiga. Uma urgência de chamar a atenção, de pôr-se em evidência a um nível tal que nunca mais vi outro que se lhe compare. Se alguém falasse, pusesse uma questão, então ele tinha de secundá-lo, não podia ficar para trás. Teria de ser o maior, coitado dele! Então numa matéria daquelas, em que andava completamente às aranhas! Sempre me pareceu que o primeiro fermento daquele comportamento caricato era esta vontade exacerbada de auto-afirmaçãon sem limites e de busca de reconhecimento a qualquer preço. Vocês desculpem-me, mas a imagem que ele me evoca, humorística e de algum modo humilhante, é a dum burro aos pinotes pela rua fora a relinchar: “ó p'a mim! Ó p'a mim!” Já naquele tempo era a cena hilariante que o imaginário me traçava. Nunca o contei a ninguém porque me parecia um bocado cruel e depravada. Mas vinha-me sempre espontaneamente à ideia, não sei porquê. Agora, pronto, partilhei-a convosco. Não encontro melhor maneira de indicar-vos o estado de espírito que aquilo gerava em mim, durante aquele ano inteiro. Peço-vos perdão pela estranheza da imagem.
E vai daí, a Mónica:
Essa é boa, Prof. Eduardo, mas dá para entender. Só que, em tal contexto, o comportamento do seu colega é, no mínimo, bizarro. Precisava tanto de pôr-se em evidência que avançava, mesmo pelas piores razões? Era como os artistas que preferem que os meios de comunicação social falem mal deles a que os ignorem? Ao falar mal, pelo menos falam, já eles não caem no esquecimento... O Francisco tinha alguma vocação artística falhada? Em termos de auto-preservação, aquilo é uma atitude desastrosa. Estava a preparar um belo enterro na avaliação do fim do ano.
E vai daí, o Prof. Eduardo:
Pois estava, Mónica. Mas não creio que os motivos passem por dar nas vistas, como quem quer andar nas capas das revistas popularuchas, dos mexericos ou coisas assim. A questão era, decerto, outra, mas não me perguntem qual, que nunca a deslindei. Sempre foi para mim uma pedra no sapatode que jamais logrei libertar-me. Ele nunca revelou qualquer apetência artística nem de vedetismo, nem visava o palco do grande mundo. Se o bem entendi, era ao contrário: isolava-se, quase como se andasse a falar sozinho. Havia dentro dele uma luta qualquer entre Jacob e o anjo, ignoro com que conteúdos nem em que coordenadas, nunca mo revelou, se é que tinha deveras consciência de tal, coisa de que eu também duvido. Mexia nele como que um frenesim, o frenesim de vencer. Aquela auto-afirmação, se calhar, bastar-se-ia com relativamente pouco, sei lá, licenciar-se, arranjar trabalho na área, o que aliás conseguiu porque era professor. Creio bem que não seria muito mais do que isto. Pelo menos neste pendor.
E vai daí, o Luís:
Que é que o leva a ir por aí? Apesar de tudo ele atirava-se ao tal Market desbragadamente, pelos vistos sem temer ou sem medir as consequências que podiam, afinal, ser bem nefastas para tal meta. Podia perder a viabilidade de se licenciar, como o professor apontou que ocorreu com muitos outros...
E vai daí, o Prof. Eduardo:
Podia, Luís. Mas repara que as intervenções dele eram sempre ou terminavam com uma provocação. Foi sistemático. Ele estava permanentemente a atacar o pobre do homem, num ataque pessoal descabelado, com uma fúria mal contida. E é por isto que faz todo o sentido a atitude do professor: ouvia em silêncio e, calma e diplomaticamente, continuava a lição como se nada tivera acontecido. Para o Francisco, isto era ignorá-lo, discriminá-lo, espezinhá-lo. Já podem ver que não foi nada disto. Tratava-se apenas de não responder a provocações. Naquele tempo quem não ia por aqui, docente ou funcionário, ateava incêndios e arriscava-se a muito, podia acabar maltratado, agredido, impedido de trabalhar, sei lá... Aqui entre nós não chegou ao risco de linchamento, mas na Espanha, ao que ele nos contava, sim. Ora, ele vinha de lá, conhecia melhor que nós conjunturas daquelas e lidava com aquilo, em meu entender, magistralmente. Nunca o vi perder o pé e reparem que é de perder a paciência aturar tal atitude durante um ano inteiro. Nem impaciência, nem medo, nem resposta. Brilhante, em meu entender.
E vai daí, o Veiga:
Pois, e aos outros respondia normalmente, não é? Não admira que o tal Francisco julgasse que era perseguido. Esquisito é que ele procurava isto e, pelos vistos, assiduamente. Que raio de comportamento é este? Ele não se dava conta de que era quem provocava a situação? Andava cego? Isto é, pelo mennos, estranho. O homem era doente mental, tinha alguma anormalidade? Que isto da luta de Jacob e o anjo por dentro de cada um temo-la todos, ora mais, ora menos. É o custo de crescer, desenvolver-se, visar metas, empreender projectos... Qualquer escolha obriga a ponderar entre ccontrários, rumos inconciliáveis, caminhos desencontrados. Se calhar, quando o peso é muito, qualquer de nós fica cego para muita coisa que lhe escapa à volta. Mas espero bem que não chegue a obcecar-nos ao ponto duma asneira assim. Não me diga que vê em nós qualquer coisa destas, Prof. Eduardo! Também andamos desarranjados?
E vai daí, o Prof. Eduardo:
Ora, Veiga, que ideia! Não. Mas fizeste o alerta e de forma pertinente. Eu não diria melhor. Nem me tinha ocorrido apontar para o encegueiramento em que caímos quando ficamos obcecados. É um efeito natural inevitável. O cuidado é com o exagero, mal os ganhos fiquem menores que as perdas. Encontrar o meio termo justo é o que importa. No meio é que está a virtude, como andamos há milénios a dizer, na peugada de Aristóteles, não é?
E vai daí, a Fernanda:
Coitado do seu falecido colega, professor! Se ele não tinha consciência do que andava a fazer, como é que podia encontrar a medida ajustada? É um círculo vicioso.
E vai daí, o Prof. Eduardo:
É verdade, Fernanda. E aí é que bate o ponto. Fosse qual fosse o problema de origem, o Francisco vivia condicionado por dois complexos notórios, para quem atentava nele: um permanente complexo de perseguição, mormente perante quem detinha posições de autoridade, e um abismal complexo de inferioridade, por trás daquele, que o levava a uma agressividade constante, com muita diificuldade contida em parâmetros toleráveis. Para ele, qualquer ordem da Faculdade, qualquer decisão tomada eram sempre para nos acalcanhar, por mais que viessem em nosso benefício. Bastava um professor referir um autor, uma obra, que tinha de haver segundas intenções, era uma armadilha para vir a apanhar-nos em falso qualquer dia. Se um contínuo impedia alguém de entrar num gabinete ou numa sala, cumprindo as funções dele, era um abuso de poder para mostrar que ele é que mandava, aquele rebotalho! Era impressionante esta distorção sistemática das intenções, a persistente leitura negativa de tudo o que provinha de qualquer que fosse a instância de poder, desde o mais rasteiro até ao topo. Não é que não víssemos, por vezes, sinais disto, num caso ou noutro. Agora ser a regra, sempre e sem excepção? Nem pouco mais ou menos! Bem pelo contrário até, que os tempos requeriam diplomacia.
E vai daí, o Moniz:
Aí ele estava a talhar o próprio inferno à medida. A vida, para ele, devia ser mesmo bem negra! Como é que alguém pode respirar num ambiente assim? E por culpa de si mesmo ainda é pior, que então, qual é a porta de saída? Se nem tem consciência, só com uma terapia...
E vai daí, o Prof. Eduardo:
Ora pois, Moniz. Viver num pessimismo militante é chamar a desgraça. Pior, é cultivá-la já, mesmo onde ela ainda não existe. O optimista ganha em toda a linha, no presente e no futuro. Cria, literalmente, vida e saúde. E, como vivemos todos muito por empatia, espalha-as. É a perspectiva a nunca perder de vista, mormente nos momentos maus, quando ficamos em baixo. De acordo? Manter uma visão realista, mas com optimismo. Apenas fica no ar como é que o Francisco caiu em tal fosso. De certeza que deve ter havido qualquer confronto com alguém detentor de poder que o traumatizou. Ainda, ao tempo, pensei no mais óbvio, a violência familiar. Todos, em miúdos, apanhámos tareias mais ou menos aparatosas, era a lei do pão numa mão, pau na outra. Era o pão nosso de cada dia no lar português. Só que não conheço ninguém a quem o trato traumatizasse. Era comum a todos, confortávamo-nos mutuamente e depois havia sempre razões para ele, nem que fosse a bebedeira que o desencadeasse, mesmo regularmente. Lembro-me até duma vizinha minha de infância a contar-nos, muito feliz, como acertara violentamente com um sapato no estômago do pai bêbedo quando ele estava a desancar a mãe. Ele até bufara e gemera dobrado de dor. Coisas destas não traumatizavam e até, como ali, eram motivo de ufania. Depois, no caso do Francisco, nas nossas poucas conversas, não lhe vi sinal nenhum de disfunção familiar com os pais. Apenas não se abria muito, era do mundo privado dele, mas pareceu-me sempre tudo normal, o vulgar. Também, enquanto fomos colegas, ele não foi nunca sequer perseguido. Outros foram presos, expulsos, alguns mesmo mortos. Muitos expatriaram-se. Ele, não, nada disto. Donde, então, aquela fúria desgovernada contra os detentores de poder? Para si próprio ele era sempre uma vítima, uma peça de caça perseguida, desde que deparasse com alguém com um mínimo de poder.
E vai daí, o Veiga:
Esse não decifrou, mas havia o outro complexo, o de inferioridade, não era? E neste deslindou algum fio condutor?
E vai daí, o Prof. Eduardo:
Olhe, Veiga, o que pude entender é que um alimentava o outro, eram interdependentes. Como é que se ataram ambos dentro dele, não faço ideia. Alguma coisa tem de ter desencadeado isto, mas ignoro o quê. Como o Francisco não era parvo nenhum, deve ter sido alguma coisa bem precoce, senão ele daria pelo desajustamento comportamental e teria alterado o padrão da atitude. Ora, quando o conheci, já tudo estava tão enraizado que ele não tinha hipótese, não podia mais lá chegar. Todo o ar pimpão que ele assumia, a encher a peitaça, toda a agressividade ameaçadora, como se pretendesse bater no mundo inteiro, eram mera camuflagem da convicção (insuportável para ele) de que era um falhado, um ignorante crónico, um zero sem remissão possível. No fundo, era disto que vivia convencido, não sei porquê, dado que nunca me pareceu menos dotado do que qualquer outro dentre nós. Mas vivia no terror de que isto se confirmasse e alguém visse. Daí as estratégias obsessivas de camuflagem, de sinal contrário: “eu sou o maior!”, “atrevam-se, atrevam-se contra mim, vão ver como elas mordem!” Tudo nele incarnava esta postura. Donde proviera? De ser oriundo duma família humilde de camponeses serranos? Também eu e, naquele tempo, um largo leque de colegas de curso. Não era nada que complexasse ninguém, era a história comum, no meio de meia dúzia de privilegiados que, eles sim, eram a excepção.
E vai daí, a Mónica:
A reacção traumática vem tanto do evento quanto do sujeito que lhe responde inadequadamente. Se calhar foi ele que respondeu mal a uma conjuntura vulgar e que não era traumática para ninguém. Temos estado a olhar apenas para o lado dos factos, pode tudo provir da outra ponta da experiência, do sujeito, não é?
E vai daí, o prof. Eduardo:
Claro que sim, Mónica. E ele teve de reajustar-se muito mal a um evento qualquer, não sei qual nem quando. Mas, como era uma personalidade assertiva, forte, embora inadequada a cada momento ou interlocutor, isto não faz sentido para conjunturas comuns. Outra seria a história com un indivíduo débil, cuja fragilidade quebrasse ao mais ligeiro toque. O Francisco era tudo menos isso. Era robusto fisicamente e animicamente também, embora aqui com uma doença grave oriunda não sei donde. As matrizes normais nada me convence que explicariam aquilo, tem de ter havido em miúdo outra coisa qualquer muito má, para abater um indivíduo daqueles.
E vai daí, a Cristina:
Já agora, professor, como é que a história acabou? Ele conseguiu, afinal, fazer a cadeira, uma vez que foi docente. Sem licenciatura não ia lá. Ou mudou de Faculdade?
E vai daí, o Prof. Eduardo:
Não, Cristina, fez tudo aqui. Nem sequer foi preciso muito. Ele era mesmo inteligente e tinha esperteza quanto baste. A última peça da nossa conversa aqui hoje é mesmo isto e confirmou-me que o que o perturbava e lhe desajustava as atitudes tinha de ser oriundo muito lá detrás, se calhar já nem ele lograria evocar quando, nem onde, nem o quê. Aquele homem fez uma reviravolta completa, apenas com uma dica de nada, parece mágico. Custa a crer que uma insignificância possa mudar uma vida inteira, eu também duvidaria se não fora ter ocorrido comigo. Mas pode. Aqui abriu-lhe a porta ao aproveitamento académico e ele desembestou logo por aí fora até à licenciatura. Um crente falaria em milagre e eu teria sido instrumento de inspiração divina, estão a ver?
E vai daí, a Fernanda:
Por amor de Deus, Prof. Eduardo, conte-nos lá o que é que lhe disse, senão deixa-nos com os olhos em bico. Olhe que eu sou mulher, não suporto ficar na expectativa.
E vai daí, o Prof. Eduardo:
Ó Fernanda, por quem é! Nunca lhes faria isso. Foi muito simples. Quando ele viu que eu não o acompanhava nas diatribes a nível nenhum, virou-se para mim e perguntou-me se fazia algum sentido o conceito em que assentara a aula daquele dia. Ao fim destes decénios já não recordo qual era, evidentemente. Apenas sei que foi de Kant, cuja gnoseologia continuávamos a desbravar. Ora, como eu nunca tinha tido nenhuma dificuldade especial em compreendê-lo, limitei-me a explicar-lhe, em linguagem comum, como para mim era razoável, não apenas o tema de tal dia como os anteriores. Tudo despido de conceitos técnicos, o mais terra a terra que se me afigurou que lhe seria acessível de imediato. Olhem, o Francisco desarmou instantaneamente, com os olhos arregalados como numa visão. Pôs-se a perguntar-me sobre o programa inteiro e eu a descodificá-lo sempre do mesmo modo. Descemos a estrada até ao Campo Grande, com uma conversa apenas nestes termos: transfundi-lhe Kant na linguagem comum que me foi parecendo mais adequada para o autor permitir a entrada ao ouvinte. Era, afinal, quanto bastava. Desfeito o mistério, não foi preciso sequer conversarmos outra vez sobre o autor. Desenvencilhou-se daí para a frente sozinho, tudo normal. Até a agressividade caiu para o nível que lhe era habitual e que já era bastante anómalo. Uma mudança do dia para a noite. E, obviamente, acabou por fazer a cadeira como os demais, ao nível dele.
E vai daí, o Moniz:
Interessante. Apenas com uma mudança de linguagem. Quer dizer, se não foram as obsessões dele, os demónios interiores, afinal teria sido capaz de entender e superar os obstáculos por ele próprio, não era? O encegueiramento não vinha da dificuldade, vinha dele, a ponto de lhe tornar invisível o caminho de saída. É muito curioso!
E vai daí, o prof. Eduardo:
Exactamente, Moniz. É o derradeiro alerta que ele nos pode proporcionar e com que poderemos aprender. Temos de andar atentos para não cairmos nisto. Vejam só quantos desvios, projecções, escudos de defesa, quanto tempo e energias perdidos para nada, quando afinal tudo se teria resolvido com um irrelevante ajustamento de linguagem. Provavelmente no resto da vida dele seria o mesmo, não sei, mas a maior parte dos nossos problemas são assim. O tamanho não é deles, somos nós que lho emprestamos. E o pior é que é para nosso mal. Vamos, pois, velar por sermos sadios. Aumentará muito a nossa eficácia e a qualidade de vida. E, para mais, ainda é de graça. Hoje em dia muito pouco é assim. Tudo aquilo foi durante um curso mas na preparação duma tese é o mesmo. Aliás, em qualquer área da existência.
E vai daí, a Cristina:
Prof. Eduardo, sei que vamos para intervalo e este tópico do seminário encerra aqui, mas, se não precisar de sair, eu gostaria de ficar e analisar um pouco mais o caso.
E vai daí, o Prof. Eduardo:
Porque não, Cristina? Por mim fico com quem o quiser. Não há problema.
Levantam-se todos e encaminham-se para a saída, ao redor da mesa. Saem da sala Luís, Moniz e Veiga. Ficam com o Prof. Eduardo, de pé e rodeando-o, Fernanda, Mónica e Cristina. Conversam informalmente, ora encostados ao tampo, ora meio sentados no rebordo, ora inteiramente de pé, entretidos com o tema, mal reparando nas respectivas posturas.
E depois, o Prof. Eduardo:
Isto é curiosidade feminina, não? Os homens saíram todos...
E depois, a Cristina:
Nós adoramos os pormenores, professor, sabe como é. Os modelos teóricos não nos chegam, não têm colorido, perdem o sabor...
E depois, o Prof. Eduardo:
Vamos ao colorido, pronto! A Cristina tem algo em mente, não é?
E depois, a Cristina:
Foi uma informação em que ninguém pegou e que ficou a mexer comigo. Disse-nos que quando algum professor referia um autor ou uma obra, logo o seu colega via aí uma armadilha para apanhar alguém mais tarde. Aqui na Faculdade não me consta que quenquer opere de maneira tão pervertida, mas, curiosamente, juram-me que ali em Direito há um que é mesmo assim e até se gaba. Quando pretende arrumar com um aluno atira-lhe com uma dessas obras arbitrárias na oral e pronto, reprovado. O que me pergunto é se, no vosso tempo, não andaria por aqui alguém, armado em grande pedagogo, pregando partidas criminosas dessas. Pelos vistos, o convidado espanhol de que me falou, afinal, era todo o contrário disto. Mas e os outros? Aquilo era mesmo paranóia do seu colega? É que, se anda um agora aqui bem perto, o que não seria naquele tempo, com a ditadura a escolher os alvos a abater! Isto sou eu a imaginar, claro, nós não vivemos, felizmente, em semelhante época!
E depois, o Prof. Eduardo:
Que eu me tenha dado conta, não, não havia ninguém, mas sei lá, no meio das confusões daqueles anos! De qualquer modo, para o Francisco era o mesmo, ele via ratoeiras em todo o lado para o apanhar, existissem ou não. E, mesmo se as houve, não eram de certeza para ele que, do ponto de vista da ditadura, era uma inofensiva mosca morta. Nunca o vi mexer uma palha nem nas reuniões, nem manifestações... Até pelo contrário, ele era dos que nem queriam os panfletos que os vários grupos distribuíam à porta da Faculdade e nas cantinas, lembro-me bem de ele os recusar e, quando insistiam, pegar naquilo, dar meia dúzia de passos e jogá-lo ao chão, sem sequer lhes passar uma vista de olhos. Era inteiramente alheio às lutas académicas, ao movimento contra a ditadura, ensimesmado lá com os fantasmas dele.
E depois, a Mónica:
E, contudo, ligava ao que ouvia nas aulas, pelos vistos cheio de medo. Como é que ele fazia?
E depois, o Prof. Eduardo:
Ollhe, Mónica, ele carregava uma pasta volumosa pejada de livros. Sempre. Não fui muito chegado a ele, talvez não o tenha entendido muito bem neste particular. De qualquer modo, há dois pequenos pormenores que estranhei. Parecem-me significativos. O primeiro é que praticamente o encontrei pespegado na Livraria Académica as poucas vezes que lá fui adquirir algum autor. Não me lembro de ter encontrado qualquer outro colega, mas a ele, sim. É curioso, não é? Mesmo dum jovem obcecado. Para ter ocorrido isto, ele tinha de andar por lá todos os dias, para não dizer todo o dia. Não é um comportamento normal, nem no sentido de ser comum, nem no de sadio. Tinham de ser os medos que o empurravam para ali, a vasculhar tudo, sei lá bem o quê. O segundo foi numa tarde em que meteu conversa comigo porque estava extasiado. Na ocasião nem liguei muito, agora dou-lhe mais valor. Ele tinha acabado de adquirir um tratado, por sinal muito bom, de história da cultura na Idade Contemporânea. Para estudantes, uma obra mesmo bastante cara. Tínhamo-la para consulta aqui na biblioteca da Faculdade, eu até já a houvera compulsado ocasionalmente. Nós, naquele tempo, fazíamos várias cadeiras de História na nossa licenciatura, agora especializámos o curso, já não há.
E depois, a Fernanda:
Que é que o professor viu de significativo no episódio? Foi por ele comprar uma obra cara?
E depois, o Prof. Eduardo:
Não, de todo, Fernanda, embora seja um pormenor que também dá que pensar. Ele vestia pobremente, andava a pé para evitar gastos de transportes, não consumia no bar... Era, decerto, um pobretana e gastou um dinheirão a comprar uma obra secundária, dispensável, de mera consulta. Mais um efeito, porventura, da compulsão doentia que o impelia. Era assim em tudo, numa palavra. Mas não foi isto, não. É que, entusiasmado, disparou-me: “olha aqui, comprei há dias esta obra, sabes porquê?” E mostrava-me um exemplar que abriu, revirando páginas aplicadamente. É um livro volumoso, em laudas grandes, e eu fiquei à espera, enquanto ele procurava afanosamente. E continuou a falar. “Foi só por causa duma figura, já te mostro. É uma página genial, vale pela obra inteira. Tenho estado a lê-la e só me apetece decorá-la toda. É uma pena não conseguir metê-la inteirinha cá dentro. Isto é que enche uma pessoa, compreendes? Quem me dera dominá-la de fio a pavio! Sem excluir nada mesmo.” E chegou finalmente à figura que o levara à compra do volume. “Olha-me só para isto! Olha-me só para isto! Que maravilha! Vale por uma vida inteira.” E enfiava-me a página debaixo do nariz, num completo inebriamento, incapaz mesmo de moderar-se. Eu olhei, olhei e fiquei espantado, imaginam porquê.
E depois, a Mónica:
Que imagem era? A si não lhe disse nada, foi?
E depois, o Prof. Eduardo.
Exactamente, Mónica. Aquilo era a representação gráfica da espiral do tempo, num crescendo volta a volta, desde agora, com o círculo mais estreito, até ao infinito, com o mais largo, fruto dum crescimento tendencial era a era. Enfim, o esquema da dialéctica entre o eterno retorno e o tempo liinear progressivo, que superou, a partir do séc. XVIII, o confronto, até então sem alternativa, destas duas concepções temporais, a oriunda da revolução da agricultura, dez mil anos antes de Cristo, com os seus ciclos repetitivos, típicos das estações do ano, e a proveniente do judeo-cristianismo, com o horizonte de salvação messiânica final, projectando a temporalidade rumo a um porvir absoluto, em que nada se repete porque tudo são episódios únicos de salvação, o de Abraão, o de Moisés, o de Jesus Cristo e assim por diante. A figura apenas ilustrava graficamente que tudo se repete mas sempre, a cada volta da espiral, a um nível superior e mais universal, rumo, gradualmente, ao infinito. Era só isto, para mim uma aquisição banalizada por mais de cem anos em que já era conhecida, para o Francisco uma autêntica revelação doutro mundo, como se um profeta ou um anjo lhe houvesse de repente falado. Para ele, inesperada, abruptamente, ali fez-se luz, não sei porquê. Fiquei a olhá-lo, mais ou menos com cara de parvo, penso eu. O entusiasmo dele era tanto que nem por mim dava, imaginem! Uma verdadeira cena idiota entre dois anormais. Que comédia! Um autêntico qui-pro-quo dum quadro de revista, não é?
E depois, a Cristina:
Ai, não acho nada, professor. Para si era matéria conhecida, mas para ele, não. Foi a euforia da descoberta. Também connosco, quando andamos com um problema na cabeça e de repente lhe encontramos o portal den saída, ocorre algo parecido, não é? Newton, quando descobriu a fórmula para calcular a gravitação universal, não ficou tão fora de si de entusiasmo que errou os cálculos semanas seguidas e teve de socorrer-se dum assistente para lhe fazer as contas? Pois é.
E depois, o Prof. Eduardo:
Compreendo, Cristina, é mesmo assim. Mas referiu muito bem: “quando andamos com um problema na cabeça.” É que, fora desta condição, ou nem reparamos na descoberta ou ela toca-nos como mais um momento de clarificação, gratificante certamente mas nunca eufórico. É apenas mais uma pequena alegria: dá gozo mas não nos põe fora de nós. Ora, o que o Francisco ali mostrou deixou-me perplexo pela intensidade. Normalmente seria descabida. Quem é que anda tão preocupado assim com o entendimento do tempo? Por mim, nunca vi ninguém durante a minha vida inteira, senão ele, naquela ocasião. E é o que desde então me leva a perguntar: Porquê? Que é que na existência lhe terá acontecido para a temporalidade se lhe ter tornado tão problemática que a mera superação com aquela síntese helicoidal, apenas uma teoria, foi para ele como a libertação dum escravo? Que é que o aprisionaria, afinal?
E depois, a Fernanda:
Encontrou alguma resposta? Às vezes são insignificâncias tão fortuitas que nos encurralam num beco sem saída!... Ficamos com cada problema sem razão nenhuma!
E depois, o Prof. Eduardo:
A quem o diz, Fernanda!... Respostas, propriamente, não diria que as tenha encontrado. Mas pistas, creio que sim. Pode estar tudo muito errado, objectivamente, isto é, pode não ter nada a ver em concreto com o Francisco, mas paara qualquer caso do mesmo género parece-me fazerem sentido. Diria que elaborei um modelo teórico que nunca tive oportunidade de confirmar na prática. Eu e ele éramos, ao fim e ao cabo, meros conhecidos do curso, não dava para mais. E ele (logo ele!) jamais serviria para cobaia, não é?
E depois, a Mónica:
Venham as pistas, professor, venham as pistas!
E depois, o Prof. Eduardo:
Está bem, Mónica, está bem. É uma insignificância, mas pronto. Todos sabemos que qualquer complexo leva a comportamentos repetitivos, criando um ritual que acaba mesmo supersticioso, não é? Ora, quando há um complexo de inferioridade a alimentar um complexo de perseguição, quase de certeza que, sendo aquilo notório, como atrás verificámos, os vários aspectos que a repetitividade revestir nos hão-de revelar que tipo de evento ou de conjuntura levou a isto e que padrão de resposta disfuncional se veio multiplicando e diversificando pelo tempo fora. Até aqui é o bê-a-bá do diagnóstico para uma anamnese que eventualmente o confirme, certo?
E depois, a Cristina:
Certo, professor. E então onde é que o levou a análise dos pendores dominantes, dos vectores repetidos?
E depois, o Prof. Eduardo:
É uma hipótese apenas, Cristina. Deixemos o meu colega finalmente em paz, agora que se finou tão cedo. Ponhamos a questão apenas teoricamente. Não tenho qualquer dado que me permita ir além, nunca pude confirmar coisa nenhuma no caso concreto. De acordo? Então é assim, reparem. Ele atirava-se contra o poder da escola, fosse qual fosse. Estranhamente, ignorava o poder político contra o qual as academias, ao tempo, se batiam permanentemente em todo o País. Por outro lado, nunca me atacou nem a nenhum colega quando não alinhávamos com ele nas paranóias que lhe davam, o que era constante. Finalmente, tanto quanto me pude aperceber, tinha uma ligação normal à família que, pelo que entendi, o aguentava monetariamente no curso, ao menos parcialmente. Por exclusão de partes e pela área de incidência, diria que o trauma, qualquer que fora, ocorrera em ambiente escolar e se dera com alguém que detinha poder, director, professor ou funcionário. É o primeiro campo para onde apontaria a anamnese, em busca do ponto de partida do comportamento disfuncional ligado ao complexo de perseguição.
E depois, a Mónica.
E o complexo de inferioridade? Não seria provocado por esse? Sugeriu que era ao contrário ou que se alimentavam reciprocamente...
E depois, o Prof. Eduardo:
Pois disse, Mónica. O meu fio condutor é o seguinte, sempre em hipóotese. Ele, como eu, era oriundo do campo, um filho das faldas da serra, lá do norte. Isto facilita o despoletar de complexos de inferioridade quando nos confrontamos com os citadinos, começa nos sotaques e termina no conservadorismo das mentalidades, sempre muito mais fechadas nas pequenas comunidades aldeãs. Ora, quando a origem vem daqui, há-de provocar disfunções repetitivas no trato com colegas. Estranhamente, nunca lhe detectei nenhuma connosco. Pelo contrário, na convivialidade estudantil, ele era pacífico e cordato, embora sempre ansioso, mas nunca por razões oriundas dali. Por outro lado, o complexo mostrava-se por uma obsessão de conseguir vencer, de afirmar-se a tempo e a desoras, de obter sucesso escolar, cujo desafio o aterrava mas também o levava a cerrar os dentes e a investir corajosamente em frente. Ora, esta polarização para ser um bom estudante vem, habitualmente, da expectativa familiar, quando o relacionamento opera bem e se busca o reconhecimento de pais, irmãos, avós, padrinhos, enfim, do círculo dos mais íntimos. O carácter obsessivo é que é desproporcionado, disfuncional, e as atitudes desajustadas, inoportunas, mesmo insensatas é que terão de ter outra origem. Até por porem em risco o objectivo visado do aproveitamento escolar. Houve aqui, de certeza, outro factor marcante e violentamente negativo, algures, num ponto qualquer do itinerário da aprendizagem dele. E, justamente por se reportar à aprendizagem, eu diria que o leque de probabilidades aponta para o agente traumático ter sido da área dos professores ou porventura, se calhar, dum apenas. O caso é que o marcou e muito e ele estava longe de ter superado o que quer que seja que o levou àquilo.
E depois, a Fernanda:
Estou aqui a pensar... Ele tinha uma grande esperança, apesar de tudo, não era? Aquele delírio todo com o esquema do tempo... Como é que o encara no meio disto?
E depois, o Prof. Eduardo:
Agora, à distância, Fernanda, diria que o deslumbramento dele foi traiçoeiro. Concordo que era manifestação de esperança, claro. De tanto repetir as voltas da espiral do tempo, aproximamo-nos do infinito. O problema é que este é ambíguo e a ambiguidade não consta do esquema lá do tratado que o fascinou. Tanto pode culminar no mais infinito como no menos infinito. A segunda guerra mundial e a posterior corrida ao armamento nuclear mostra como colectivamente a roda do tempo pode culminar num aniquilamento definitivo, o menos infinito da espiral. Ora, o mesmo pode ocorrer a nível do indivíduo, quando se têm disfunções enquistadas, como no caso do Francisco. Operam como num cancro: a repetição, longe de nos libertar delas, enraíza-as mais e mais, generaliza-as, espalhando-as cada dia mais longe pelas atitudes e respostas do cotio. Ao fim acaba a personalidade toda inquinada. É um itinerário letal. Ou muito me engano ou a morte dele é uma confirmação dum rumo destes. Ter ficado deslumbrado com a ilustração da espiral do tempo até pode tê-lo encegueirado mais, não o deixando ver o declive para o abismo para onde terá resvalado definitivamente. A cura aguardada pode, afinal, ter-lhe ministrado o veneno que o matou.
E depois, a Cristina:
Boa, muito boa, professor! Nunca me tinha ocorrido essa da ambiguidade da espiral do tempo. Aliás, creio que todos tendemos a nunca reparar nisto, é o pendor saudável do optimismo, não é? Mas ser realista não é cair no pessimismo. Ora, nós caímos muito depressa mas é na utopia, andamos com os pés no ar e a cabeça na lua. Olhe que isto é outro grande alerta!
E depois, o Prof. Eduardo:
É verdade, Cristina, e neste eu nem tinha pensado. Obrigado a vocês as três.
E depois, a Mónica:
Mas aquilo, como o professor anotou, também pode ser positivo. Há dias, lá em baixo no átrio, assisti a uma cena parecida. Uma orientadora de Geografia mostrava entusiasmada a colegas uma obra dum investigador suíço acerca da formação de professores. Foi ao meu lado, deu para me inteirar. Era um esquema da relação pedagógica em que, no domínio da aprendizagem, a díade professor-aluno é recíproca da do aluno-professor, não há hierarquia como em matéria de disciplina (quando há que sancionar) e ambos aprendem um com o outro. Lembrou-me da pedagogia da libertação do Paulo Freire. E fiquei admirada também com o espanto dela, para mim é modelo velho e na prática até andamos a vivê-lo aqui entre nós desde o princípio. Creio, contudo, que, no caso dela, a espiral do tempo ruma ao infinito positivo. Se ela for melhorar a relação com os formandos ou estagiários, tentando incarnar o modelo, é óptimo, como a nossa experiência entre nós este ano. O seu colega devia ter tido era uma vivência destas, se calhar teria recuperado o equilíbrio.
E depois o Prof.Eduardo:
Obrigado pela parte que me toca, Mónica. E, como o efeito do relacionamento é recíproco, talvez então, embora ele tendesse a malhar-me em cima, enquanto orientador, a vós aceitar-vos-ia e convosco se calhar era só beber equilíbrio e saúde. E alegria de viver, que é o que mais recebo deste grupo inteiro, em todos os nossos encontros. Não creio, porém, que fosse tão simples. Num caso como aquele, só mesmo uma boa terapia e teria de ser com um terapeuta bem intuitivo e treinado. Era já um cancro, infelizmente, muito espalhado. E neste domínio não há cirurgia que lhe valha, não é? Neste aspecto, os do corpo acabam por ser mais benignos. Os comportamentais são diabólicos e tanto moem que acabam às vezes por matar.
QUARTO QUADRO
Um talho numa aldeola a meia encosta da Serra da Freita. Horas mortas do meio da tarde, quase sem a clientela que, ao fim e ao cabo, é a vizinhança. Conversa mole entre gerações, a entreter o tempo preguiçoso. Deserto dum povo esquecido, ignorado. E que espreita o mundo por um canudo.
Henrique, dono do talho, tio do defunto Dr. Francisco, e ti'Artur, um velho sapateiro-remendão que a idade tornou quase cego e paralítico. Hoje, por isto, um incapacitado a buscar companhia.
Ó Anrique, bochês num che inchergabo, num é? 'Tá bom de ber. Que o mocho, inq'anto nobo, chempre te beio dar aqui uma mãojinha, q'ando por 'i arribaba. Ero as férias, ero os chábados q'aje chempre... Chei lá, bochês num tinho rajão de queixa dele, ou tinho? Agora feito dòtor é outra coija. Ê cá intendo, cumo é que podia cuntinuar? Num binha pr'àqui cortá bifes, cherto? É que inté parechia mal! Bochês num bio isto? ! O pobo todo habia de bos cair im riba, c'um carago!
Ó ti'Artur, a gente estaba habituado ao cachopo, intende? Nem o bíamos a crecher, foi icho. Cá por mim, inté o dispenchaba chem problema, que prechijão tinha eu dele? Num há mobimento p'ra tanto. Lá o meu irmão é que não e mais a cunhada, 'tá a ber? Ela foi bem pior, que tinha munta fé no ganapo. Para ela, bencher na bida era o piqueno tomar conta disto quando eu tibeche de retirar as tamancas, chalbo cheja. Manias que entro na cabecha duma pechoa.
Pois é, e uma mania é bem pior que uma doencha. Que ele cumbosco, ao fim e ao cabo, chempre atinou. O pior foi c'os irmãos e chó agora mais prò fim, num é? Inda me lembro q'ando le punha meias-cholas, ele gostaba de ficar por ali chentado a ber-me. E era cumberchador, num tomaba ares de dòtor, de cher mais q'a gente, lá icho não. Chó le ficaba bem. E interechaba-che por o que uma pechoa fajia. Ora, um estudante a ligar a um chapateiro! Mas ele ligaba mesmo, mais aq'ando miúdo, 'tá bem de ber! Que, à medida que crechia, mais che foi afastando, cumo é natural, atão òdespois de ir estudar p'ra fora, inda mais, foi-che perdendo a ligachão. Acunteche cum todos, num é? Longe da bista... É achim, inté cum cajais, q'anto mais c'um piqueno.
É, é. Lá a minha cunhada é que achaba que le dero mau olhado. Acreditaba naquilo. O meu irmão, não, nem eu, que icho inté pode atrair o mal, num é? Agora mau olhado! Ora, figas!
Mas mau olhado porquê? Ele morreu do corachão... Eu inté digo que che calhar foi uma morte chanta, pode nem ter chentido nem nada. Che foi achim, tamém eu queria eche mau olhado, agora que estou aqui estou por pouco. Quem dera!
Ela num dijia aquilo da morte. Tirou-le meia bida, nem cuncheguia falar de tal, não. P'ra ela foi maldichão que le fijero no cheminário, há muntos anos. Debio querê-lo por lá mas ele beio-che imbora de bez. Ela desde chempre cuidou que era icho, num foi de agora, perchebe? Era um chisma dela desde que o cachopo chaiu daqui da escola primária. Nunca ninguém le ligou. Mas para ela tudo comechou a ficar intortado desde intão. Ê cá num dei por icho porque ele chó me beio dar aqui uma mão òpois, já mais crechidote, q'ando comechou a ingrochar a boz.
Aquilo era chentir de mãe, chabe-che lá, às bejes adibinho, q'as mulheres chão achim. Que é que ela terá bisto de diferente? Ê por mim num notei nada, mas nós é chempre à distânchia, podemos nem reparar. E tu que és tio tamém num deste por nada?
Nada, não, ti'Artur. O mê irmão tinha lá umas dúbidas. Achaba que o miúdo beio meio imburrado, chó metido co'ele, que inhantes num le notaba icho. Mas isto podia cher da idade, num é, q'ando comecho a tornar-che galispos, todos mudo, uns parte tudo, outros mete-che p'a dentro. Ele calhou de infiar p'a dentro dele. Cá p'ra mim chó bejo isto, mais nada. Inté porque foi chempre de ajudar. Bochê debe tamém ter reparado, ero bejinhos, ele ajudou chempre na laboira e atão na bindima e nas esfolhadas... Pelaba-che por aquilo, o raio do miúdo, Deus o tenha!
Atão num lembro! Às bejes inté foi no carro de bois comigo, p'a arrecadar o tojo do curral das bacas. E gostaba mesmo de ajudar, o pirralho. Olhe, estebe-me a tomar conta da bichicleta a última bez que fui desbastar o pinhal do Meroucho, já lá bão uns bons anitos. Inda era tão piqueno que nem chigaba bem ao guiador. Mas cumpriu munto cherto, lebou-a chempre atrás de mim pelo pinhal fora, parechia um homenjinho. É berdade.
Q'ant'a mim, a disgracha foi da mãe querê-lo dòtor. Q'ando a pachada é maior q'a perna, num é?... Que ele era espertito e lá o cuncheguiu. Mas tebe de pagar aquele precho. P'ra icho num balia a pena. Mais bale um pobre bibo q'um rico morto, num é? Mas a minha cunhada chismou, que che le há-de fajer. Era a mãe, atão...
Num che pode dijê que num tinha rajão, que ele lá foi p'a Lisboa, feche profechor e tudo. A bida por lá chempre há-de cher outra coija, é a capital, tem mais importânchia. A gente aqui chemos uns matarroanos. Ora, ele dejembrulhou-che, echa é que é echa. E pronto, chigou a hora dele, chega a todos. Olha eu, já aqui c'os pés prà coba. Foi pena ir de tão nobo, q'anto ò mais...
Inda me lembra de irmos à erba p'ò gado, uma bez, im Costa Má, era ele um ganapito de nada. E num é que andou a manhã toda à compita, a ber che me apanhaba? Era dibertido, aquele dez reis de gente a armar-che im grande. Mas faji-ò cum gosto, o danado do miúdo! Chó habia duas coijas a que ele fugia, chabe? Uma era apanhar os feijoeiros, que as folhas de cada pé prendio-che-le à roupa e q'ando le tocabo na pele ficaba um bermelhão. Tinha p'ra lá uma alergia qualquer. E era o mesmo co'a palha do trigo e chenteio. As praganas metio-che-le pelo pescocho abaixo e ficaba um lájaro, inté impolaba. Era mesmo uma doencha, num podia a chério co' aquele trabalho. Q'ant'ò mais, ia a todas, im miúdo. Òpois beio-le a chisma de ir p'a padre e a minha cunhada era toda igrejeira, quem é que che ia opor, num é? Inté porque era uma coija importante, che cuncheguiche. Mas foi chó um anito, dejistiu logo. Num che deu lá co'a padralhada, que ele aqui na escola tinha chido esperto que nem um alho. Como é que atão perdeu? Aquilo lá estranhou, era inda munto cachopo... é o que eu pencho. P'à minha cunhada é que não, ela tinha apostado tudo nele, era cumo lebar a família, a gente todos p'ò altar, 'tá a ber? Ele era a chabe, íamos ter a grande promochão e òdepois dejabou tudo no charco.
Im bida deles, não, Anrique. Foi co'os irmãos, num é? Q'o Chico chempre ajudou òs pais e atão à mãe... Ele debia-le tudo e chabia. Que lá che ela o queria p'a trepar na cunchiderachão, cher padre ou cher dòtor bai dar ò mesmo, ero ambos uma coija importante. Inté que che impôs ò pobo, é berdade. Todos che lembrabo de cumo ele era bideiro, inq'anto por cá bibeu. E ele im cachopo era munto dado, num te arrecordas? Falaba a todos, nunca o bi cum mania de grandeja, de doutoriche, nem chequer q'ando já lá tinha o canudo e bem nos podia olhar de riba che o quijeche.
Chabe, ti'Artur? Eu acho cá p'ra mim q'a minha cunhada o picou demais a bida toda, ela num bia outra coija.Ora, q'ando a aguilhada pica demais o boi, ele bem bai, mas òpois arrebenta e atão nem p'a trás nem p'a diante. Foi o cajo. O Chico num queria falhar-le, 'tá a percheber? E ele já tinha falhado lá no cheminário, im criancha. Atão foi toda a bida a puxar a carrocha, a puxar e num debia ter fôlego p'ra aquilo. Quem nache pé de boi tem a pachada a cumpacho, num dá p'ra cabalgar. E aquilo o mê chobrinho tanto cabalgou que caiu prò lado. Ò menos já num tinha os pais, que chenão, co'o desgosto, eles inda se finabo atrás. Num ia bastar uma desgracha, a minha cunhada ia desmanchar-che redonda no chão. Foi milhor achim, doeu menos. Tanta grandeja chonhada e, ò fim, no que deu, 'tá tudo no caixão. Num bale a pena dar o pincho maior q'a perna, bamos todos adubar a terra, grandes ou piquenos.
Bem, lá icho, Anrique, eu por mim já lá 'tou co'os pés há munto. A morte anda um bocado esquechida, que eu inté chou da criachão do tê irmão. Fomos às chortes juntos. Mas aquilo do cancro num perdoa, num é? E òdespois foro um atrás do outro. É que dabo-che munto bem, num podio biber um chem o outro, che um falta o outro tomba logo atrás, num aguenta a bida chojinho. É munto triste mas é uma coija linda de ber-che. Quem chabe che o Chico tamém num foi achim tão chedo por mor do mesmo, que lá o bajio de ficar chem eles, o dòtor debia de chenti-lo e bem, não, Anrique? Cá por mim cuido que debe ter ajudado. Chenão, cumo é que um home cai derribado achim tão chedo? Diz que do corachão. Pois isto tamém é corachão e munto e é de arrebentá-lo. Ora, o dele arrombou, num é?
Pois, foi o que nos dichero. Inté pode ter rajão, ti'Artur. Mas chabe? Aquilo lá im caja, inq'anto os pais dele foro bibos, era achim: eles fajio tudo (era mais a minha cunhada que Deus tenha), tudo o que o Chico quijeche e ele, im bez de ficar um mimalho, não, foi ao imbés, queria fajer tudo p'ra num les faltar, tudo o que eles querio dele. E era isto que fajia pior, a meu ber. Num era que eles quijeche alguma riqueja dele, a gente basta-che cum munto pouco e atão o mê irmão inda mais e a cunhada tamém. O que eles querio (ou foi mesmo chó dela) era que o ganapo foche grande no mundo, 'tá a ber? Num chei o que habia na cabecha daquela mulher. Num é que isto facha mal, inté pode cher bom, p'à bida num ficar chempre na mesma, nem p'ra trás nem p'ra diante. Picar aí é bom, chó que pode cher demais e cá p'ra mim foi o que foi. O corachão num quebra tão chedo em quem nunca foi adoentado de nada, q'anto mais daquilo.
Ó Anrique, há por aí munto padre filho dos brejos. Atão o de cá num é de Arouca? E o dantes binha de Cambra, de gente bem pobre, ao que dijio por aí. Lá o querer fajer pela bida nunca fez mal a ninguém. Num é por aí que che fina o mundo. Echa do mau olhado é que tem gracha. Inda por chima no cheminário? A tua cunhada num debia de cher lá munto católica, andaba um bocado às abechas... Inda mais que ele acabou dòtor, num é, o inguicho num bateu cherto, che calhar lá num debio chaber fajer bruxedos...
Ria-che, ria-che. O mê irmão tamém che ria daquela teima. Que ela ateimaba que o menino num biera igual q'ando de lá chaíra. Que imburraba, 'tá a ber? Olhe que ela a mim chigou-me e dijer que ele ia dar im doidinho. Naquele tempo. Ela queri-ò aqui no talho, a ber che o distraía, foi chó a partir daí que combibi mais co'o miúdo, que ele era uma criancha, na ocajião. Há q'anto tempo! E pareche que foi onte. Cumo é a bida!...
Ora atão ele imburraba, era? Q'ant'a mim, nunca bi nada dicho. E ele inda me lebou lá algum chapato a cunchertar, mesmo òdespois de bir dos padres. Antes era mais, mas mesmo achim... Comigo foi chempre cumberchador e munto inducado. Claro que òdespois de ir estudar p'ra longe num habia tempo. Ia e binha, ia e binha, foro uns anos de munto traquejo, por icho é que me deu algum trabalho, as cholas mal aguentabo tanto quilómetro. E aí boltou a cher bem cumpridor cumo q'ando aprendeu as letras, nunca mais perdeu. Lá co'os padres foro chaudades da família, num há-de ter chido outra coija.
Que ele era munto metido cunchigo, era, e mais q'ando foi ficando prò crechido, a mudar a boz, c'uns pelitos no beicho. Prà minha cunhada, era muda de mau agoiro. Que ele nunca tinha chido achim, que era ganapo alegre, imbora cum munto tento. O mê irmão e eu achábamos que isto era mais ò menos chempre igual, tamém antes habia de ter altos e baixos, num é? Mas ela, não. “Fijero-le alguma, ninguém mo tira da cabecha, fijero-le alguma!” - repetia-nos pelos anos fora. Ê cá num chei que le fijero, che é que le fijero alguma coija, num é? O cherto é que ele aqui, durante aqueles anos, era mesmo cumpridor, munto responchábel prà idade que tinha. Che calhar demais, que ele tomaba tudo a chério, num acheitaba que nada falhache. E atão por mor dele, não, prò miúdo era uma doencha. Ele ficaba desfeito, inconcholábel, às bejes por motibos de lana caprina, 'tá a ber? Lembro-me que uma bez a D. Luíja, a infermeira, que naquele tempo arranjou a cadelita, a Tica, pediu-le um ocho, q'ando che le abiache as carnes, que era lá p'ò bicho. Ele nunca mais che lembrou. Q'ando ela beio buscar, à tarde, a incomenda e falou naquilo, o mocho q'aje que choraba, de reboltado cunchigo. Ela inté o cuncholou, p'ra ele che acalmar, que num tinha importânchia ninhuma, oxalá todos os nochos esquechimentos fochem eches. Mas ele ficou a atanajar-che o resto do dia. Era munto, munto responchábel. Eu atiraba isto à conta da mãe, daquela mania de o cachopo bir a cher alguém na bida. Cumo 'taba chempre co' esta beneta im chima dele, claro que o miúdo habia de querer ficar à altura. E, q'ando falhaba, era atão a fim do mundo. Q'anto a mim, era chó isto, 'tá a intender?
Intendo, intendo. Chó que as mães adrego de inxergar mais longe. P'ra ela dijer aquilo é que biu nele mudancha q'òs mais escapaba, inté che calhar ò tê irmão, num é? Eu por mim tamém fiquei chego. A gente cumbibe mas é cumo bô-dia, bô-tarde e pronto, pache bem. Num dá p'ra ir além da pele, inté ò fundo. E, q'ando alguma coija arrebentou lá por dentro duma pechoa, num che le inxerga nada, pachámos munto à ligeira. Que é que a tua cunhada teria bisto, num é? Nunca le perguntaste?
Lá perguntar, perguntei e inté nos rimos daquilo muntas bejes lá co'o mê irmão. Chó que ela nunca choube explicar bem. Era uma coija achim cumo um fumo, 'tá a ber, num toma forma e num che le pode agarrar. Coija de bruxaria, num che le bê o fio da meada. Ela chó repetia que as maneiras dele num ero iguais, tinha habido ali uma bolta qualquer de que chó ela daba conta. E o Chico fechaba-che e nem queria òbir falar disto. Q'ando òpois foi prò colégio isto pareche que milhorou um nico, mas nunca pachou de bez, no dijer da minha cunhada. Foi maldichão p'a toda a bida, era o que ela dijia. Maldichão ou não, a berdade é que che finou achim nobo, a meio da bida.
Mas que é que ela beria nele de estranho? Bochês num comentabo os cajos? Que é que achou de o piqueno ficar todo danado cumchigo por mor do ocho p'à cadela?Ê tamém acho que num foi nada, mas que é que a tua cunhada dijia dicho? Era a tal bolta do mau olhado?
Ora, já num me lembro. Nunca falámos achim bem achente, chabe? Era de pachage. E aquilo num era p'ra nós tema de cumbercha. Che foche agora, outro galo cantaria, mas quem ia adibinhar a rebirabolta que a bida deu? Cherá que o ganapo, q'ando ficou achim mais chijudo, num era da idade mas de alguma coija que por lá le fijero? E ópois, naquele ano lá co'a padralhada, ele tebe muntas chaudades. Num cheria chó dicho? A minha cunhada achaba que não. Alguma rajão le dou, porque che fochem chó chaudades, agora que 'taba co'a gente, elas pachabo. Porque é que habia de haber mudancha, num é? E ela chismou a bida inteira que habia, lebou a chua ideia co' ela prà coba. 'Taba mesmo combenchida a chério. E lá que o Chico foi ficando cada bez mais arredio, é berdade. Mandaba-les dinheiro que eles nem querio, o que a gente bai tendo por aqui cchega-nos bem, num queremos bidas à larga. Agora na chidade, aquilo há-de cher bem diferente, num é? Ora, o Chico bibia por lá chojinho, a ele é que podia fajer falta. Mas não, inq'anto eles bibero chempre tibero uma mejada dele. Foi p'òs netos, é o cajo.
Chabes quem debe ter ficado ò par? A Luijinha. Ela é que os tratou na doencha, foi munto lá de caja prò fim, tinha cumberchas compridas co'a tua cunhada q'ando acamou, fajia lá cherão, chalbo cheja, num é? Hão-de ter falado munto disto, q'as coijas já num io bem co'os irmãos, ò tempo, eu inda me lembro. Aquilo ero ribalidades co'o dòtor, inda num che tinho jangado de bez, isto foi munto òdespois. Mas naquele tempo já num andabo nada direitos, atão co'o mais belho... Pois é, a Luijinha é que debe chaber tudo bem 'xplicado. Bem por aí hoje? É uma grande infermeira, a Luijinha, munto dada, foi uma bencha prò pobo ela ter-che formado e ficado por aqui, chabes? Que isto das doenchas, uma pechoa fica intregue òs bichos, che num topar cum alguém que chaiba.
A infermeira Luíja debe 'tar chigando. Já tenho ali a incomenda abiada p'ra ela. Pode-le perguntar, ti'Artur. Tamém le debe ter posto munta meia-chola nos chapatos, im cachopa, não?
Entra Luísa e procura um banco para sentar-se e repousar. Vem açodada, um pouco tensa e a precisar de descontrair com uma pequena conversa informal, antes de retirar-se para o lar. Henrique vai-lhe buscar o saco onde já tem arrumada a encomenda do dia.
E vai daí, o ti'Artur:
'Tás canchada, mocha. Correu-te alguma coija mal? Foi aqui no pobo?
E vai daí, a Luísa:
É verdade, ti'Artur, cansada e bem. Mas por fim correu tudo conforme. Um parto bem complicado, mas não foi aqui, foi lá para Bustelo, quase nas Minas. Estava a ver que tinha de chamar os bombeiros para levá-la para o hospital. Enfim, tudo se resolveu. Agora sou eu e a mãe do bebé a precisarmos duma horita de descontracção. Aviaste o pedido, Henrique?
E vai daí, o ti'Artur:
Ora há q'anto tempo ali o Anrique tem icho pronto, cachopa. 'Tábamos na cumbercha por mor do Chico, o dòtor. A gente num intende a chisma da mãe dele inq'anto foi biba, aquela de que le fijero alguma no cheminário, que ele beio mudado, 'tás a ver? Mudado im quê? Nem eu nem aqui o tio que inté le chigou a dar a mão im manchebo, arranjando-le por uns tempos um trabalhito prò intreter ou distrair lá da tal chisma. Pois nós num bimos muda achim de ter im mente, ero, parecheu-nos, coijas da mudancha da idade, bemos im todos q'ando comecho a querer cher homes. Cuidamos é que tu, Luijinha, debes chaber milhor p'a nos 'xplicar. E atão che era doencha, chó tu, que tens estudos. Q'ant'a nós, é cumo diz o outro, é chempre a marcar pacho, num é? Que por mim falo, burro belho num aprende linguage. Tu chabes mesmo porque é que ela chismaba naquilo? Que é que ela biu de mudado no pirralho que durou a bida inteira? Os padres dero-le mesmo mau olhado, ou icho é realmente coija de gente atrajada e nem chequer ejiste? É cum'às bruxas que dijem que num há, é? Mas im piqueno lebaro-me à bruxa por mor dum terçolho. Coijas dos antigos, num chabio mais...Atão, Luijinha, cumo é que é?
E vai daí, a Luísa:
Ó ti'Artur, são perguntas demais para um dia muito fatigante. Deixe-me respirar um bocado. O Chico... Ganhava-lhe sempre à macaca e ele ganhava-me ao berlinde. Era fatal. Coisas de miúdos de escola. E éramos rivais nas sabatinas. Aí revezávamo-nos tanto que nem sei se algum ganhou de vez, nalguma sexta-feira. Tempos divertidos, foi uma época linda, a de crianças. A preocupação maior era a de evitar erros nos ditados, senão, cada um, cada reguada. Era a praxe daquele tempo. Havia de ser hoje em dia, armavam para aí um reboliço... Agora é ao contrário, não tarda muito, são os alunos s correr os professores à reguada. Já faltou mais.
E vai daí, o Henrique:
Pois é, infermeira Luíja, conto-me que inté vos fajio o cajamento, o Chico e tu, num é? Òpois beio aquele ano de cheminário e pronto, findou tudo p'ra nunca mais. Ê 'tou cumo ali o ti'Artur, num dei por diferencha ninhuma de jeito. Tamém é berdade que o nocho combíbio num era munto chigado, eu birei-me aqui prò talho e chó munto òpois, q'ando ele beio dar-me uma ajuda, é que o bi chempre metido cumchigo e munto atento ò chervicho. Cuidei que era feitio dele, de miúdo, mais qualquer muda por mor da idade. A minha cunhada é que nunca acheitou icho. P'ra ela habia mais, mas num cuncheguia 'xplicar. Tu cunchegues?
E vai daí, a Luísa:
Talvez. Olha, Henrique, a primeira muda em que reparei é que ele deixou de rir. Não é que ele fosse um caso de muito riso, pouco juízo. Não era uma gargalhada pegada, não, tinha de haver razões e boas. Mas em miúdo sorria, principalmente para mim, que era perceira de brincadeiras. Lembro-me de que, na ocasião, estranhei. Até fiz o raciocínio: “bem, ele anda a estudar para padre, se calhar tem que se dar ao respeito, eles não se podem casar... Ou então ensinaram-lhe que é pecado. Será mesmo?” Enfim, pensamentos de criança. Depressa os esqueci, como é próprio da idade, não é? Houve, todavia, um pequeno pormenor que logo ali achei que não batia certo. E reparei nele, apesar de tão pequena, o que quer dizer que a mudança me causava estranheza e me magoava. Sempre era um amigo de anos que, de repente, se tornara um desconhecido sem motivo algum que para mim fosse plausível. O pormenor é que ele também não se ria para os rapazes que tinham sido colegas dele e, pior, nem sequer para a família. Eu era uma criança mas reparei bem nisto tudo, que o comportamento dele feria-me. Constatá-lo consolava-me um pouco, já que eu não estava a ser discriminada e, por outro lado, ao menos não era culpa minha, uma vez que ele estava mudado com todos. Deixava-me, contudo, perplexa: é que, se não ria para ninguém, então não devia ser por eu ser rapariga e ele não se poder casar por ir para padre. Se fosse isto, ele ligaria aos rapazes e à família, mas não. Deitou tudo no mesmo saco. Então porque é que seria? Era um mistério... Como não tinha resposta, joguei-o para trás das costas e ficou perdido nas memórias de infância. Evoquei-o apenas quando acompanhei o período final da doença da mãe do Chico, a tua cunhada, Henrique, que Deus tenha. Ela desabafou muito comigo e só então, ao correr daqueles serões, quando as dores amainavam, é que tudo aquilo me voltou. E principiou a fazer sentido. A mãe dele tinha alguma razão, de certeza, acredito agora.
E vai daí, o ti'Artur:
Atão chempre hoube mau olhado, Luijinha? Icho do rijo, eles quebraro-lo?
E vai daí, a Luísa:
Ó ti'Artur, o mau olhado... Sabe, nós sentimo-nos quando alguém nos rejeita, nos odeia, diz mal de nós ou nos olha com inveja ou raiva. É só isto. Não há o mau olhado em que o povo crê, mas aquilo magoa e muito. Dependemos todos do espelho que os outros mostrem de nós. Mas lá no Chico o que lhe aconteceu tem de ter sido bem pior do que o mal-querer todo junto. E alguma coisa foi, para um efeito que durou uma vida inteira e há-de ter contribuído para o derribar. Tenho a certeza, depois do que fui ouvindo à tua cunhada, Henrique.
E vai daí, o Henrique:
Chó do rijo?! Ó infermeira Luíja, ê cá num acho bastante. Deu-le p'ra num rir e òpois? Há munto quem num ria e atão? Fijero-le a todos num chei quê que ninguém chabe? Ná...
E vai daí, a Luísa:
É que há mais. Pendores em que eu, como miúda, nem podia reparar, mas não escapam a uma mãe. Ele veio do seminário convencido de que o pretendiam encurralar aqui, nesta vida de aldeia, sem horizontes, contra o que a mãe dele sonhava e ele tomara a peito, espontânea, ingenuamente, cumprir. E acabou cumprindo, não é? Licenciou-se e fez carreira. De alguma maneira à custa dum encurtamento da vida, mas cumpriu.
E vai daí, o ti'Artur:
Atão o inguicho num pegou. Eles num chabe fajê bruxedo, lá a padralhada, num é?
E vai daí, a Luísa:
Ora, ti'Artur! Se fosse enguiço ou bruxedo, bem podia o Chico com ele. É como o mau olhado, dali não vem mal ao mundo, que nada disso tem poder nenhum. Crendices, compreende? Antes tivesse sido uma coisa dessas, que então não o teria marcado para o resto da vida. Não, foi um traumatismo muito violento, senão jamais se enterraria nele daquela maneira. É que nem depois de ser doutor aquilo lhe passou. E nunca conseguiu abrir a boca a desabafar de tal malvadez, nem com a mãe nem com ninguém que saibamos. E de certeza que o recalcamento lá permaneceu no fundo dele até ao fim, senão ele teria melhorado, até porventura ver-se livre de vez daquilo. Mas não, enterraram-lho tão profundamente lá dentro que nem ele nem nada lho conseguiu arrancar mais. Agora o que terá sido ninguém sabe e decerto nunca mais se saberá, que ele morreu e levou o segredo para a cova.
E vai daí, o Henrique:
Quer dizer, ó infermeira Luíja, che ele tibeche ficado a biber aqui co'a gente, che calhar num tinha andado lá co' echa mania. Que isto tamém num é ninhum degredo, todos pacho bem, aqui num há fome do que a terra dá, num é? A minha cunhada é que le meteu minhoquiches na cabecha.
E vai daí, a Luísa:
Pois, Henrique, isso faz sentido, mas creio que seria pior. Ele veio de lá marcado e não foi só por não ir para padre. Repara que ele nunca se virou contra eles, contra a Igreja. Até pelo contrário, o que sempre me tem deixado confusa. Uma coisa parece não dizer com a outra, não é? Ele, com o tempo, até virou quase um fanático. Muito ritualista, ali com as regras todas, os pontos nos is. Às vezes chegava a incomodar-nos com tanta intransigência, tanto nas celebrações como cá fora. Ainda bem que, neste aspecto, lhe deu para falar pouco, porque cada conversa ali no adro acabava por nos deixar alguma incomodidade, era despropositada, muito extremista. Ele andava sempre obcecado. Isto bem podia ser por ter desistido de ir para padre, é o fruto proibido que é o mais desejado. Só que era doentio, ele ficava encegueirado. Nós tínhamos o cuidado de o não contrariar muito, senão o caldo entornava. E ainda éramos todos bem miúdos, quando muito a entrar na puberdade. É neste exagero mórbido que a dúvida se me coloca. É que não condiz. Se o trauma lhe veio dos padres, ele deveria detestá-los ou temê-los, de qualquer modo fugiria deles ou, no máximo, ignorá-los-ia. Podia até virar o bico ao prego e, uma vez cá fora, desatar a persegui-los, desprezando-os ou denegrindo-os. Mas não, ainda se grudou mais a eles. Que estranho! Tendo sido um ou vários a traumatizá-lo, a sequela iria por um qualquer daqueles caminhos, mas logo foi tudo ao contrário. Para se lhes grudar daquela maneira obcecada, ainda haveria a hipótese de lhe terem criado um sentimento de culpa tão grande que só o expiava colando-se-lhes incondicionalmente. Ora, culpa era o que ele menos sentia, se bem me lembro. Claro que eu era miúda e fomos crescendo e só muitos anos mais tarde, mormente nos serões com a tua cunhada, Henrique, é que me dei conta de tudo isto. Nem antes era capaz de entendê-lo. Esta visão é fruto de algumas luzes lá do meu curso.
E vai daí, o ti'Artur:
Ê cá num intendo mesmo nada, ó Luijinha. Burro belho, num é? P'ra mim, che ele num foche dòtor, num tinha chemelhante cumpllicachão, q'um home nem inxerga no meio dicho tudo. Eu, chó p'ra intender icho, daba logo im doente. Que admira que eles dê im malucos?...
E vai daí, o Henrique:
Mas atão im qu'é que fica? Agora ê 'tou q'aje aqui cum'ò ti'Artur. O Chico era doente ou não?
E vai daí, a Luísa:
Eu creio deveras que era, Henrique, e bem fundo. E, na realidade prática, foi incurável. Ninguém pôs o dedo na ferida. Aliás, nem ele deixava, não é?
E vai daí, o Henrique:
E dicho que é que ambas, afinal, concluíro? Descubriro donde le beio a maleita? Se num foro os padres, atão quem foi?
E vai daí, a Luísa:
Ora exactamente, foi a conclusão a que chegámos. Aquilo não pôde ter a ver com religião nem com sacerdotes, senão nunca poderia virar para onde virou. O que ocorreu foi noutro domínio, com outros indivíduos ou com um indivíduo qualquer. Só o Chico poderia elucidar-nos, mas nunca o fez. E a tua cunhada, Henrique, morreu bem amargurada com este vazio, no escuro. Ele era um herói para ela, sem desfazer nos mais, que ela bem gostava de todos. Mas ele foi especial, correspondeu-lhe aos anseios mais fundos ao lograr licenciar-se, era um sonho realizado.
E vai daí, o ti'Artur:
E atão icho num chigou? Que é que o mocho queria mais? Já 'taba bem achima da gente todos daqui. Num le bastaba p'à chidade, p'à capital, era?
E daí, a Luísa:
Não, ti'Artur. Chegava bem para nós, para a mãe dele e acredito que até para ele próprio também. Não era daí o problema. Era como se ele tivesse um bicho a roê-lo por dentro. Fizesse o que fizesse, ele roía-o na mesma, sempre, até o matar antes da hora. Estas doenças moem assim. Não se vêem, parece que nem existem, mas matam tanto ou mais do que as outras. As doenças mentais são diabólicas, disfarçam-se e camuflam-se muito bem. Primeiro que se dê por elas e que depois as agarremos para as extirparmos é uma dor de cabeça. As do corpo tratam-se bem melhor, que as conseguimos identificar mais facilmente quase todas. Agora estas...
E vai daí, o Henrique:
E porque é que era pior che ficache cá co'a gente? Isto é nós aqui a falar, que nunca podia cher, os irmãos num che dabo, pronto, num é?
E vai daí, a Luísa.
Repara, Henrique, isso era dar a vitória ao diabinho que o moía por dentro. Ficaria derrotado o Chico no que ele mais queria, que era ver-se formado e ser alguém, como a mãe dele projectara. Então o mais provável seria, ao ver-se condenado à fatalidade, que a vida lhe perderia todo o sentido. Muitos, nesta situação, matam-se. Desesperam de haver qualquer rumo que lhes importe. Desinteressados de tudo, não encontrando qualquer valor em nada, ficam num vazio insuportável. Então preferem morrer e acabam com a vida. Mesmo aqui à volta há tantos casos! Ou são amores contrariados ou é isto, não é? Felizmente o Chico atirou-se à luta e ainda bem. Deu-lhe uma razão de viver que o alimentou até ao fim. Aguentou-se estes decénios todos, não foi? A vida daqui não lhe ia bastar.
E vai daí, o ti'Artur:
Mas p'ra ti chigou, Luijinha, num chigou? Atão... Que é que ele era a mais que tu, num é?
E vai daí, a Luísa:
Está bem, ti'Artur. Mas é assiim: o curso dele não era o meu, eu tinha trabalho aqui na região, ele não tinha. O problema, todavia, é outro: só o ficar por aqui decerto lhe iria lembrar a toda a hora o trauma que sofreu, pô-lo de novo em carne viva, obrigá-lo a reviver permanentemente a lesão, seja lá o que for, que o deve ter aterrorizado. Vocês estão a ver, isto iria dar cabo dele num instante. Ao menos sobreviveu ainda uns decénios. Pode não ter sido muito bom, mas sempre foi melhor que nada. Pena é não lhe ter bastado à cura, mas sem aquela saída tudo teria sido, de certeza, bem pior. É a minha convicção, pelo menos.
E vai daí, o Henrique:
'Squijitas estas moléstias de dòtores... E o tal bichinho que o roeu num cheria coija dos colegas por lá ou dos impregados e achim? Num chendo dos padres, num é?...
E vai daí, a Luísa:
Não parece que tenha sido por aí que o mal o atingiu, Henrique. É que ele viveu, no dizer da tua cunhada, permanentemente aterrado pelo risco de não ser capaz de dar conta do recado. Ela nunca lhe tinha visto isto antes. E é normal que não, ele era bom aluno, por isso é que se mexeram os pauzinhos para ele ir para padre. Na terra sempre esteve à altura, na escola, nos exames, em tudo. Só que lá no seminário, naquele ano, reprovou. A tua cunhada teve um desgosto de morte, ruíam todos os sonhos e os planos dela. Mas nunca sequer lhe ralhou, deu-lhe foi para chorar, mais nada.
E vai daí, o ti'Artur:
Atão foi daí, carago, num é prechijo buscar mais. Eu bem dijia que era coija lá da mãe...
E vai daí, a Luísa:
Sabe, ti'Artur, que ao princípio eu também pensei assim? Quando ela me desabafou aquele desgosto todo. Até ainda chorou outra vez, só de o lembrar, e tantos anos depois... E mesmo quando o Chico era já formado e professor na capital... Deu para entender como aquele desgosto a deve ter desmanchado por dentro, na ocasião. Foi uma dor do outro mundo, arrancou-lhe o coração. Parecia-me mesmo capaz de ser a origem, até porque o Chico lhe era demasiado chegado, a querê-la contentar em tudo. Isto explicava a raiva com que ele se atirou a estudar cá fora, no colégio, depois no liceu, por fim na Faculdade. Parecia um endemoninhado, quando a gente reparava naquilo. Ele não parava, não saía, não brincava, não passeava... Um colega que estudou com ele no Porto desabafou-me um dia que ele trabalhava num “ritmo diabólico”. Diz bem o que era , não é? Para vocês que não estudaram além da Primária talvez vos parecesse normal, mas para mim, não. Nunca precisei de semelhante frenesim e formei-me sem perder ano nenhum e com boa nota. Para quê aquilo?Quando a mãe dele me desabafou, tudo fez sentido. Era urgente compensã-la daquela dor de morte, o Chico era um bom filho e sempre a adorara. Para ele seria insuportável provocar-lhe tão medonho sofrimento. Daí atirar-se como um doido ao estudo, para vencer de vez e pô-la feliz.
E vai daí, o Henrique:
Já intendi, agora 'tá tudo 'xplicado, infermeira Luíja.
E vai daí, a Luísa:
Não está, não, Henrique. Sabes porquê?É que aquela fúria toda acabou por incomodar a tua cunhada, até por fim assustá-la. Era demais, era desequilibrada e já não tinha nada a ver com ela. A partir de certo ponto, começou ela própria a remar contra, a insistir que bastava, que o que era demais era moléstia. Só que ele não ouvia, não lhe ligava nada. E dava-lhe sempre a mesma estranha justificação: “tem de ser, senão eles agarram-me.” Era o chavão dele. Durante anos, ao que parece sempre, até à morte, não é? “Senão eles agarram-me.” Estão a entender? Não tem nada a ver com a mãe, mas com “eles”, sejam lá quem forem. A meu ver, no princípio, apegar-se ao estudo foi mesmo por ela, o Chico não conseguia doutro modo perdoar a si próprio a dor que lhe causara com a reprovação e o abandono do seminário. Mas isto era a camada superficial daquela maratona sem tréguas de horas agarrado aos livros. Por trás havia outra coisa. Por trás ele andava com isto a fugir de alguém que doutro modo o agarraria. Então quem eram “eles”? E porque é que teria a ver com estudo? E porque é que era tão aterrorizador?
E vai daí, o ti'Artur:
Ó Luijinha, e tens 'xplicachão p'a icho tudo? O Chico era danado de cumplicachão, pôcha!
E vai daí, a Luísa:
Ora, quem dera, ti'Artur! Mas alguma coisa eu e a mãe dele lográmos elucidar. Por exemplo, a primeira ideia de quem poderiam ser “eles”, é de que, se calhar, eram colegas, haveria por lá sabatinas como aqui na escola, competições porventura muito renhidas. Mas logo a hipótese caiu. Pelo modo desembestado como ele agia, com a ansiedade com que operava, teria de provocar-lhe mal-estar no convívio entre colegas. Ora, nem aqui, mesmo comigo, a nossa rivalidade gerou alguma vez nada parecido, nem entre os colegas de lá, com quem nalguns casos manteve ligações durante anos. Nada ia naquela linha. E então as recordações? Eram mesmo amistosas, divertidas, relativamente a todos. Não podia ser por aqui. Aquele “eles” não podiam ser colegas. Por outro lado, tudo ocorria no âmbito dos estudos. Então quem? E “agarrá-lo” como? Aqui é que ficámos sempre encurraladas num beco sem saída. Tinha de haver mais qualquer coisa... E não tínhamos forma de saber o quê nem com quem, dado o mutismo de sepulcro a que o Chico se remeteu, neste domínio, a vida inteira. A solução morreu com ele.E é pena, que poderia ajudar-nos a prevenir casos idênticos no futuro, com quaisquer outras potenciais vítimas, não é? Mas pronto.
E vai daí, o Henrique:
Ó infermeira Luíja, mas icho num pode ter chido tudo por mor de querer dar a pachada maior que a perna? Esgachou prò resto da bida, ficou manco de bez, chalbo cheja.
E vai daí, a Luísa:
Olha, Henrique, eu até fiquei mesmo tentada a bastar-me com tal explicação, mas a mãe dele, nunca. Teria razão? Há uma outra vertente a que ela toda a vida se agarrou e que, realmente... Pode ser que nos enganemos, mas aquilo não encaixa aí, na tentativa de ir longe demais e findar esgaçado na derrota. É que a realidade foi esta: ele veio mesmo desorientado com a reprovação, apesar de tão miúdo que ainda era. Vimo-lo todos. Tinha uma vergonha que o embaçava perante a aldeia inteira. Ele já era muito responsável e aquilo esmagou-o. Até aqui tudo bate certo com aquela explicação, não é? O problema é que a seguir, já não. Ele foi para o colégio, na transição, e voltou a ser o melhor aluno. O mesmo, logo depois no liceu. E voltou a não ter quebra nenhuma na Universidade. Ora bem, como é que tantos anos de sucesso não lhe apagaram aquela marca de ter perdido uma vez, esquecida e ultrapassada lá tão atrás? Se fora apenas aquele percalço, o caminho posterior teria apagado tudo, não é? Estaria mais que superado, evidentemente. Mas não, pelo contrário. Ficou definitivamente obcecado pelo terror de algum dia, nalgum domínio, não conseguir, lendo-se a ele próprio como um incapaz, à partida, condenado fatalmente à derrota. Isto foi como um vírus que lhe inocularam e que o matou lentamente. No fundo, ainda bem que ele não se deu por achado e lutou a vida inteira contra tal condenação, de facto iníqua. Senão, perdido o fio condutor da vida, ter-se-ia acaso finado ainda mais cedo. O facto, porém, é que este excesso desmedido não cabe na explicação. Tem de haver algo mais – era o estribilho da mãe dele e eu tendo a concordar com ela. O esquisito é que este aspecto se foca no campo dos programas e da aprendizagem deles, foi daqui que tudo partiu. Ora, quem lida com isto senão os alunos e os professores? Então, como os professores lá eram padres e nada do mal do Chico neles se projectou, bem como também não nos colegas, quem é que resta? Ninguém... Estão a perceber o mistério? Escapou-nos a todos alguma coisa no meio disto, não é? Por mim, julgo que não podíamos ir mais longe. Verrumámos até onde os dados que tínhamos à mão nos permitiam ir. Além, só com a chave final que aquele homem, o Chico, tão vítima, coitado, definitivamente nos recusou a todos.
E vai daí, o ti'Artur:
Ih, c'um carago! E foi cum icho que bochês moero a cabecha, tu e a mãe dele, durante a doencha que a lebou? Icho 'inda a matou mais chedo, atão num matou? Quem é que intende uma coija tão inredada? Ela tebe tento p'ra tal confujão? Oh, Luijinha!...
E vai daí, a Luísa:
Teve, teve, ti'Artur, foi o que mais a confortou naquelas semanas terminais. Cancro é cancro e não mexe com a mente, se não é da cabeça. Pena foi não termos logrado ir até ao fim, deslindando o caso. Isso é que seria uma injecção de saúde para ela, que Deus a tenha em descanso. Era uma boa mulher e uma boa mãe. Mas muito sofrida, coitada, muito sofrida. O grande sonho da vida dela pagou-o bem com sofrimento. E nem sequer estou a falar da doença que a levou. A do dia-a-dia moeu-a muito mais, muito mais.
E vai daí, o Henrique:
Chabe, infermeira Luíja, gostei mesmo desta cumbercha. Acho que agora intendo milhor o meu chobrinho que Deus tenha. Che os irmãos a oubiche, che calhar tinho acabado a tratá-lo doutro modo. Mas, enfim, a gente intende o que intende, ninguém pode dar mais do q'ò que tem, num é?
QUINTO QUADRO
Engalanada em festa, a sala de convívio do Colégio do Bonfim. À roda duma mesa enfeitada, um grupo de antigos alunos, agora anciãos. Movimento de convidados e convivas que ora se juntam, ora se afastam da roda formada pelos que ali se sentam. Memórias de antanho que todos evocam é o que os liga e anima. Um círculo do tempo na cadeia das gerações. O Faria, o Ramiro, o Renato e o Ernesto puxam fios do passado de oiro velho, da poeira das memórias.
E fez o Ramiro:
Esta homenagem ao Dr. Deodato... Eu mal me recordo dele, ficou-me a imagem dum toiro de força, aquela musculatura de atleta... Se calhar era tudo gordura e eu confundi, com dez anitos não podia ter grande discernimento, não é? Aqui o Faria é que se deve lembrar bem. Vocês nem imaginam! Aquele compêndio de Ciências era a grande âncora dele. Sempre que acabava de preparar as lições para o dia seguinte, vinha o ritual sagrado: abria o livro e ficava ali horas, se fosse preciso. Então com a Astronomia nem vos digo! A sonhar de olhos abertos. Aquilo agarrava-te mesmo, não é verdade? Eu, na carteira ao lado, olhava apenas, sem compreender. Como era possível um indivíduo evadir-se assim daquele salão de estudo, a voar pelos céus fora? Até me fazia inveja. Uma pessoa ali a gramar as horas de silêncio obrigatório e ele na maior, a volitar pelas nuvens, noutro mundo. Nunca percebi como é que tu conseguias, homem. Eu cá chateava-me e bem com aquele maldito horário de quietude vigiada, com o prefeito sempre de olho em cima.
E fez o Renato:
Ah, agora entendo, Ramiro, porque é que o Faria conseguia aqueles resultados esquisitos nos testes de Ciências. Foi sempre dezoito o ano inteiro, que era o vinte do Deodato, a escala dele terminava ali. Professor avarento, em nosso juízo infantil. Para os mais, como ouvimos hoje nesta evocação dele, um mestre exigente e rigoroso. Apesar de tudo, com este marrão, nem uma falha em nenhum momento. É obra, para um garoto de dez, onze anitos, não é? Atribuí tal feito ao medo que o mostrengo metia, pelo menos a todos nós. Tu não o temias, homem?
E fez o Faria:
Eu não, Renato, não sei porquê, porque, pelos vistos, para todos os mais era o terror em pessoa. Eu adorava aquela matéria deveras. O estranho é que foi a tal ponto que me esquecia dele, esquecia mesmo. Para mim, o Deodato não era nada, não existia. Não faço ideia nenhuma de como é que aconteceu isto, mas é a verdade. Não o procurei nem sequer tive consciência de tal fenómeno, apenas constato que foi o que me ocorreu. Ah! E o dezoito não foi no ano inteiro, no primeiro período não fui além do dezasseis. Depois, sim, nos dois períodos seguintes. E no exame final, pelos vistos, criei-lhe um problema: ele não conseguiu encontrar nem um ponto, nem uma vírgula, muito menos um erro para descontar alguma coisa. Então, ao que me contou o P. Alberto, teve de desculpar-se no Conselho de Turma porque, pela primeira vez na vida, tinha de atribuir a nota máxima.
E fez o Ernesto:
O quê?! O Deodato deu-te um vinte?! Não posso crer que um miúdo como tu dobrou aquela avantesma! Só essa me faria rir! Ah! Ah! Ah!
E fez o Faria:
Não, não! Deu-me dezanove, Ernesto, porque, na justificação que fundamentou a avaliação, o vinte é só para o professor. Mas parece que todos se divertiram com ele na reunião porque estava mesmo contrariado e sem saber o que fazer. Não parava de repetir que nunca nenhum aluno lhe criara um problema assim. Para ele, pelos vistos, era um problema ter alguém que sabia aquilo tudo. E eu não sei como mas, de facto, tinha decorado e entendido o compêndio inteiro, da primeira à última página. Foi o fascínio das ciências... e então da astronomia nem se fala!... Era o meu reino dos céus onde me refugiei sistematicamente durante o ano inteiro.
E fez o Ramiro:
Ó pá, quem me dera, durante a minha carreira toda de professor, que os meus problemas fossem a cada dia que os meus alunos soubessem tudo sempre! Quem dera a mim e a qualquer um! O Deodato seria e foi marcante e continua, pelos vistos, na memória do colégio, como uma grande referência. Agora que também tinha estranhas esquisitices, tinha! Um bom aluno é um problema?! Que diabo de atitude!
E fez o Renato:
Olha lá, ó Ramiro, isso não é uma característica dos génios? Não são eles que saem da porta de casa, tocam à campainha a pedir à empregada que veja lá dentro se já saíram, senão faz-se tarde para chegarem a horas? Então... Aquilo é muito menos, o Deodato distraiu-se e esqueceu-se de que andava aqui para os alunos aprenderem. Também é verdade que, se um aluno sabe tudo, o professor não é preciso para nada. Vais descobrir que ele estava era a ver que podia perder o emprego; os outros, tão tapadinhos, é que não entenderam...
E fez o Ramiro:
Ai, Renato, não perdeste a veia brincalhona, não é? Ainda bem. Tu sempre nos deste alegria de viver, mesmo nas aulas dele, com aquelas mímicas corrosivas. Eu cá tremia como varas verdes quando tinha de o enfrentar. Éramos tão pequenos! A mim, ele parecia-me um gigante, com aquele vozeirão que ele tinha e aquelas manápulas. De quê? Jogador de hóquei?
E fez o Ernesto:
Qual hóquei, Ramiro?! Lutador de boxe, de boxe, ora essa! Não te lembras? Eu não me chame Ernesto se não era!
E fez o Faria:
Também creio que era isso. Eu mesmo, apesar de adorar a matéria, lembro-me ainda do nervoso que senti quando ele me chamou a primeira vez. Depois daquelas tareias todas...
E fez o Ernesto:
Ah, foi a seguir a mim, ele tinha acabado de me dar uma chapada quando eu respondi errado a uma pergunta qualquer e mandou-me para o lugar. Depois sentou-se, pegou na caderneta e leu o teu nome. Mas foste-te a rir, Faria! Como é que estavas nervoso? O gajo até comentou: “olha para este, parece que vem para uma romaria. Sempre quero ver como é que irá na ida. Há-de ir para um enterro, vão ver se não vai!” E tu não ligaste nada, continuaste-te a rir para o brutamontes. Sabes, gramei mesmo aquele bocado, parecia o gato e o rato. O sacana perguntava e tu respondias certo. Outra vez e tu, zás! Nem sei quantas foram, o Deodato perguntou-te tudo o que lhe veio à cabeça, aquilo já não era a lição, era quanto se tinha dado e tinhas a matéria inteira na ponta da língua. Eh, pá, soube-me como nem imaginas, já que não me podia vingar, vingaste-me tu, não é? Aliás, vingaste a turma inteira, que já todos deviam ter apanhado quando chegou a tua vez, não sei. Aquilo era um corropio de bofetadas, uns atrás dos outros. Só parou contigo.
E fez o Renato:
E encravou de vez, Ernesto. Nem o chamou mais até ao fim do ano, não te lembras? O Deodato ficou envergonhado por haver um miúdo que o arrumou na prateleira. E depois, estás a ver, assim ele não podia continuaar a fazer exercício físico, faltavam-lhe os sacos para treinar os murros do boxe. Nesse ano deve ter começado a perder combates no ringue. O Faria maltratou-o mesmo, como é que ele podia ser um campeão se no horário dos treinos ficava para ali sentado à secretária, a engordar como um saco de batatas? Maltrataste o homem, estás a ver? Um atleta perdido.
E fez o Ramiro:
Ri-te, ri-te, Renato, temos de aproveitar agora, que a gente lá não se ria. A cara de espanto do homem ao fim das primeiras respostas! “Olha, afinal, ele sabe! Quem diria, hein?” E toca a massacrar com mais não sei quantas perguntas. Parecia desejar ardentemente que alguma encalhasse. O esquema dele não era a sequência questão-resposta, era mais questão-bofetão. Andávamos lá mais encolhidos que nem ratos, a ver se ele não reparava em nós. Falsa esperança. E ele parecia que adorava aquilo. Se calhar sentia-se frustrado quando não havia pretexto para os sopapos. Deve haver gente assim. Eu cá não conheci outro em toda a minha carreira. Também é verdade que os castigos físicos foram banidos da escola por lei e alguns infractores apanharam procedimentos disciplinares. Hoje o que nos ocorreu então seria inexequível. Mas naquele tempo...
E fez o Faria:
Naquele tempo, Ramiro, ele era um padrão de referência, o professor-tipo e mais ainda, um mestre-modelo. Ninguém mais conseguia os resultados espectaculares de aproveitamento que ele tinha. Não te lembras dos comentários acerca dos finalistas do colégio? Ele é que rebentava a escala nos exames nacionais. E nem sequer eram feitos aqui, era tudo no Liceu, naquela época. Ora, nem os de lá chegavam aos calcanhares dos alunos dele que iam de cá. Pouco faltou para ser considerado um fenómeno extraordinário, elevado aos píncaros da Lua. E aqui foi-o tanto que chegou até hoje.
E fez o Ernesto:
Pois é, Faria, e em grande parte deve-se a ti que encornaste aquele compêndio, naquele ano, daquela maneira. Para os docentes de então aquilo deveu-se à pedagogia dele. Foi o que constatei por cá nos anos seguintes, nalgumas visitas de passagem que aqui fiz. Falaram-me sempre no teu caso, que o Deodato passava o tempo a contar que tinhas sido o melhor aluno que tivera em toda a vida, uma coisa nunca vista e assim por diante. Ora, o curioso é que os colegas transferiam a perfeição do teu desempenho para ele, o mestre é que era exemplar, senão tu nunca terias conseguido nada. Estava ali o professor magnífico, o píncaro insuperável da docência, o protótipo da verdadeira pedagogia. É engraçado. E agora tu vens dizer que nem reparavas na existência dele, que o ignoravas por completo. Já estamos todos velhos e ei-lo transmudado no luminar do ensino. Tudo indica que está para durar. Tornou-se um mito, pelo menos cá para os do colégio, não é? Nem lhes passa pela cabeça como era aquele relacionamento connosco. Ou, se calhar, até passa, sei lá! E, se for este o caso, que raio de ideia terão do que é uma verdadeira relação pedagógica? Tratar miudagem daquela maneira...
E fez o Ramiro:
Ó Ernesto, isto é um colégio, acima de tudo. Está bem que, naquele tempo, funcionava aqui o primeiro ano do seminário, só porque éramos tantos todos os outubros que não cabíamos nos outros estabelecimentos. Só no nosso grupo, tão poucos anos depois da Segunda Guerra Mundial, éramos mais de trezentos. Uma multidão de miúdos, ainda por cima em internato e desenraizados da pobreza das nossas famílias e aldeias. Tinham de nos domesticar para não causarmos transtorno ao lucro do colégio. Ora, aí o terror do Deodato devia ter sido uma pedra angular em que eles se apoiavam. Quem se atrevia a pôr pé em ramo verde com um brutamontes como aquele pela frente? E a prova insofismável é que tinha resultados, não era? Que é que conta, ao fim e ao cabo, para o dinheirinho que entra? São as aprovações. Os alunos daqui batiam nos exames os das outras escolas todas, as insccrições ficavam garantidas, vinham as propinas que não deviam ser nada baratas, pagas pelos paizinhos dos colegiais, e pronto, já tínhamos todos a subsistência garantida. Por mim falo, que de minha casa nunca entrou cá nada, pois se nem tínhamos que comer e éramos tantos! Em garoto nunca me questionei acerca disto, mas lá que a direcção tinha aqui um berbicacho, tinha. Professores brutos como o Deodato deviam ajudar a resolvê-lo, calculo. Ou vós julgais que as notas da nossa turma teriam sido as mesmas sem o medo dele? E as do colégio? Eu nunca soube muito do que se passava com eles, mas pelo menos que ele os desancava do mesmo modo, isso chegou-me aos ouvidos. E que todos com ele piavam fininho, também. Não sei se vos lembrais duma noite, no refeitório, em que o P. Alberto leu um comunicado da direcção a expulsar um dos alunos mais velhos do colégio, um que armava em bom, feito engatatão. A razão é que ele de noite saíra sem autorização e passara largas horas fora, sabe-se lá onde ou com quem. No dia seguinte o que corria entre nós é que, antes de ser posto na rua, o Deodato o confrontara na aula e que o rapaz, armado em galispo, se virara a ele de navalha. Apanhara uma daquelas tareias que ficou memorável e só não acabou todo partido porque um boxista sabe onde e como bater. Mas que a gritaria tinha atroado a ala inteira e pusera aquelas turmas todas em sentido. De certeza que foi verdade. Gerir um internato, na idade de olhar para a sombra, não vai só com falinhas mansas. Calculai o que seria, se fosse à maneira do P. Vilela, lembrais-vos dele, no Português? Quando ele adormecia a meio da lição, sentado à secretária, e ficava ali a turrar, a turrar? E nós caladinhos que nem ratos, a deixar correr a hora, que era menos trabalho para a aula seguinte?...
E fez o Renato:
Eu julgo que aqui o Ramiro tem alguma razão e a gente precisa de lha reconhecer. Como ele foi professor, deve ter corrido tudo também a murro e a pontapé por esse País fora, não é? Ora, se a gente o condena, estais a ver, fica para ali com um sentimento de culpa que nem a absolvição o limpa. Às tantas é um daqueles que foram punidos por agir contra a lei. Confessa lá! Foste um dos castigados, não? Expulsaram-no do ensino, quereis ver? Ainda por cima ele não tem músculo nenhum, como é que se podia defender? Para correr com todo o Ministério da Educação a murro, só treinando com o Deodato. Aí era uma razia! O problema é que então já este andaria com o pé na reforma e, de velho, os músculos deviam cair-lhe como penduricalhos. Outros tempos, o mundo mudou muito, entretanto. E perdeu-se a boa pedagogia, não é, companheiro? Pão numa mão, pau na outra, lá diz o povo, na sua infinita sabedoria estúpida.
E fez o Faria:
Goza, goza, Renato, que aqui o Ramiro não se dá por achado. Agora, é verdade que o Deodato obtinha aproveitamentos escolares que punham em bico os olhos dos outros. Não duvido de que o factor do medo que ele incutia deve ter algo a ver com isto. No meu caso, porém, não foi tido nem achado, mas a matéria que me fascinou. E se contribuí para o mito, foi pena, mas também nem sequer tive qualquer consciência disso. Aquele professor, para mim, é como se nem sequer tivesse existido. E ainda bem, que não me estragou assim a poesia do sonho em que ali me refugiei. Agora aquilo pedagogia, valha-nos Deus! Que aqui o Ernesto confirme de sua justiça: nunca mais na vida pôde ver as Ciências à frente e, com medo de que outra avantesma idêntica lhe voltasse a aparecer pelo caminho, desistiu de continuar estudos e foi para bancário, a vida inteira a atender gente lá na vilória. Foi ou não foi? Conta lá!
E fez o Ernesto:
É, o que para mim mais pesava era isso. Olha que ainda hoje, Faria, eu não posso ouvir falar de Ciências que não me suba um calafrio pela espinha acima. É impressionante, ao fim de tantos anos! Marcou-me bem para a vida inteira e sempre pela negativa. Verdade é que naquele ano estudei que me desunhei para não apanhar porrada, mas, logo que me vi livre, tudo o que me entrou por um ouvido saiu pelo outro, eu nem podia pensar em tal matéria, que me davam logo dores de barriga. A sério! E agora topar com aquele homem transformado em herói e num modelo, poupem-me! Estes indivíduos deviam ter todos passado por aquelas aulas e na nossa idade de então para verem! Gostava de saber quantos lhe fariam a homenagem de hoje. Mas, enfim, pode haver para aí alguma série de doutores ainda que o foram à custa de ele os ter metido nos eixos. Havia alguns miúdos bem tortos do lado do colégio, turbulentos, agressivos. Por mim, tinha um certo receio duns tantos que andavam sempre à pancada.
E fez o Ramiro:
Ora aí está! De pedagogia, as aulas do Deodato não tinham nada. Quando muito, aquilo podia ser disciplina e só nalgum caso extremo. Olha, por exemplo, para o aluno que se atirou a ele de navalha em punho. Aí talvez dê resultados positivos, até pedagogicamente. Mesmo assim, em meu entender, apenas isso, é pouco, não chega. Tem de ser complementado com outras atitudes e relacionamentos que o enquadrem e lhe dêem novos rumos, sei lá, de companheirismo, de solidariedade, de respeito. Só pancadaria não vejo como pode levar ao que quer que seja de bom num itinerário educativo. Quando reportei pendores positivos foi para o colégio como instituição. Lá quanto aos alunos, o Ernesto não foi de certeza caso único. Cada um reage à sua maneira, claro. Eu por mim quis ser professor e, curiosamente, para não tratar nunca ninguém como ele nos tratava. Muitas vezes me lembrei do exemplo da brutidade para jamais o repetir. No fundo, também me marcou mas para eu ir ao contrário dele, não é? Aliás, aqui o Faria é a concretização do que para mim é o efeito duma pedagogia a sério: o entusiasmo pela matéria do programa. Com ele isto operou à margem do professor e, neste caso, ainda bem, que o Deodato podia ter dado cabo de tudo.
E fez o Faria:
Mas olha que também mais nenhuma disciplina me entusiasmou daquela maneira, não sei porquê.
E fez o Renato:
Mais nenhuma?! Nem sequer o Latim?! O P. Francisco era quase como teu pai, até o escolheste para teu padrinho de crisma e tudo... Eu cá estava sempre à espera de que ele um dia te dissesse: “vai chamar pai a outro!” Mas não, ele adoptou-te quase e tu, pimba, deste-lhe com os pés e foste-te embora: “vá chamar padre a outro!” Foi, não foi?
E fez o Faria:
Ó Renato, tu... Não, ficámos sempre amigos pela vida fora. Olha, com o Latim é que é o caso que o Ramiro referia. Se gostei daquilo foi mesmo pelo professor e pela relação que tinha connosco e comigo em particular. Ele foi de facto aqui o meu pai adoptivo, já que eu era órfão e sentia ainda muito a falta da presença paterna na minha vida. Não sei se estou a interpretar bem a pedagogia...
E fez o Ramiro:
Estás, Faria, estás. Já não me recordo dos resultados da turma em tal disciplina mas a ideia que me ficou é que, no geral, nos defendemos bem. Claro que tu bateste o recorde, mas isso foi como em tudo, eras o melhor do grupo. Agora, o que sinalizas é que eu julgo importante. Também para mim aquele relacionamento com o professor é que foi a chave. Como é que nós podíamos gostar duma língua morta doutra maneira? A ti tocou-te mais pela tua carência pessoal, mas a nós tocou-nos porque era um mestre cordato, tratava-nos com bonomia e gostava de nós. E depois, sabia daquilo como ninguém. Era uma beleza ouvi-lo, tanto no latim como nas histórias e pormenores do que nos textos aflorávamos. Foi sempre a magia duma infinidade de contos, de lendas e de episódios ilustradores altamente apelativos. Por mim falo, e eu não tinha o motivo que tu infelizmente tinhas, os meus pais só faleceram já eu estava quase no fim da carreira. Não, comigo foi só o mundo mágico daquelas aventura e de estranhos personagens, no contexto dum relacionamento em que todos nos sentíamos amigos e ele era o amigo mais velho e sábio. Nem me lembro de alguma vez ter havido um castigo naquelas aulas. Nunca houve, pois não? Nem mesmo tu, Renato, que eras o traquina-mor, sempre turbulento, conseguiste levá-lo a punir-te alguma vez, ou estou enganado?
E fez o Renato:
Não, não, tens razão, não consegui. Foi a minha frustração para a vida inteira. Estive quase a implorar-lhe: “professor, por amor de Deus, não me estrague a minha aura! Então eu sou o rebelde indomável e aqui não consigo nada?! Dê-me lá um castigozinho qualquer, vá lá!...”
E fez o Ernesto:
Agora fora de brincadeiras, até tu gramavas à brava aquele homem. Nem eras com ele o terrorista que a gente se habituou a ver permanentemente no resto. Não é verdade? Confessa lá!
E fez o Renato:
Claro que é verdade, Ernesto. Só que, para mim, gramar alguém implica infernizar-lhe a vida. Daí que eu não me sentisse no meu elemento com as aulas do P. Francisco. Não conseguia, que raio! Não é de uma pessoa ficar infeliz a perguntar-se, afinal, quem é? Ele foi um atentado à minha identidade. Se não fossem os outros, os Vilelas e companhia, eu tinha-me perdido...
E fez o Ramiro:
Aí é que bateste no ponto. Um mestre deveras toca tão fundo os discípulos que os muda por dentro, entram no relacionamento com uma personalidade e saem com outra, renovada e melhor, um patamar acima. Reinventada e reconstruída. Era este o desafio que todos sentíamos naquelas aulas. E foi o desafio que me marcou para eu tentar ser professor o resto da vida. Tudo ali contrastava com o Deodato, não é? Em vez do medo era a paixão. Ele entusiasmava-se mesmo com aquela matéria e era contagioso. Nós nem dávamos por isto e acabávamos tão fascinados como ele. É lá possível, com uma língua morta e uma miudagem ignara de campónios de dez anos! Visto agora à distância parece inacreditável, não?
E fez o Faria:
Dito dessa maneira, era ideal na aprendizagem. Aprender com prazer, transformar-se com alegria. Não deve ser nada fácil para um professor qualquer. E havia de demorar. Aí o Deodato teria razão, obtinha mais aprovações e com notas mais altas correndo tudo à bofetada. Este caminho não deve oferecer dificuldade de maior, qualquer um o pode seguir, basta ter aprendido num qualquer bando de rufias, cadastrado ou não. E depois terá uma outra vantagem: é homenageado como o grande mestre, o professor-modelo, cujas pautas de exame brilham mais que quaisquer outras. Aliás, em ditadura, como foi no nosso caso, isto até cozinha cidadãos ordeiros e obedientes, o rebanho da carneirada. E haverá sempre saudosistas do ditador dispostos a homenageá-lo e promovê-lo, mesmo por esta via enviesada. Se calhar, é o que está por trás da homenagem de hoje ao Deodato, era o mini-ditador na sala de aula.
E fez o Ernesto:
É isso que me deixa a dúvida, ó Faria. Não tivemos mais ninguém ao nível do P. Francisco. Também como o P. Vilela não houve outro, aproveitava as aulas para dormir e parecia que não pescava nada daquilo. Todos os mais estavam entre os dois, mas nenhum logrou atear-nos o fogo do entusiasmo, senão o de Latim. Ora, assim, que importa um modelo ideal quando, na prática, acaba por ficar inatingível? Como ele falha, abre a porta aos deodatos deste mundo. Eles, no fundo, vão pelo princípio de que, se não vai a bem, vai a mal. Então isto devém norma e, se calhar, a homenagem de hoje, afinal, fará todo o sentido. Professor bem sucedido, só à maneira do Deodato. O resto são fantasias bem intencionadas, paleio de beata delicodoce que ainda não entendeu nada e que anda a enganar a gente, para nos pôr, ao fim, desprevenidos, ao dispor dum boxista sádico qualquer, salvo seja.
E fez o Ramiro:
Por amor de Deus, Ernesto, nem tanto ao mar nem tanto à terra! O que tu dizes é verdade, concordo. Mas é o lado da questão de facto. E a de direito? Vamos resignar-nos? É uma fatalidade? Aquilo aconteceu-nos. De certeza que ocorreu, naqueles termos ou piores, em todo o lado, pelo País fora. Eu, quando abandonei o seminário, encontrei bem mais deodatos que franciscos, é verdade. Agora a realidade é esta: eles estão todos errados. Se é viável um francisco, então são viáveis mais. Aliás, todos podem ser franciscos, a potencialidade é universal, tanto quanto a dos deodatos. Depende da escolha de cada um ir por um pendor ou por outro. Podemos atingir mais ou atingir menos, mas o pendor é que é o mais importante. Os deodatos destroem a magia da cultura, o fascínio da descoberta, o deslumbramento de quem atinge um novo mundo. São traidores do sonho humano e destroem os alunos. Castram-nos por dentro e cortam-lhes as asas. Foi o que ele te fez a ti e, no fundo, a todos. Só o Faria lhe escapou porque foi tocado no íntimo pelas fadas daquele programa e o Deodato aí já não o atingiu.Tu, ao desistires de estudar, foste a incarnação perfeita do que estes docentes operam no interior de cada aluno. No fundo, bloqueiam-no contra tudo o que faz sentido na cultura, matam-na no coração dele. Pouco importa o que atinjam nos exames, é uma mentira, é a vitória da destruição, o massacre de toda e qualquer sabedoria. O conhecimento que pelo medo incorporamos é um saber morto. Ora, com cadáveres não se rege a vida, é um desfile de fantasmas trôpegos que metem medo e cheiram mal.
E fez o Renato:
Eh, pá, estás inspirado. Força! E qual foi o teu desfile, Ramiro? Aposto que foi de cosneteiros, a chamar todo o mundo para o circo. Sem ofensa, claro, estou a brincar. Mas com boa receita de bilheteira...
E fez o Ramiro:
Goza, goza, Renato. E, em termos de receita, gostaria de pedir meças aos que apostam nos deodatos, como estes aqui. É que, quando os alunos se entusiasmam, arrastam os pais e o que estes querem é ver os filhos felizes. Então aqueles pagam e pagam com gosto. Aqui quase apostaria se não é por desgosto. O mestre que se deixa galvanizar pelo fulgor doutro mundo que houver na matéria e que, simultaneamente, ficar fascinado pelos alunos na relação pedagógica, este, sim, abre portas inesperadas por dentro de cada um, inaugura em concreto reinos novos e entusiasmantes pelo trilho além de cada discípulo. Dá-lhe asas e põe-no a voar. Daqui brota mesmo vida. E de teor inesperado. Ninguém adivinha que universos germinarão a partir de tal vivência. O íntimo de cada qual é insondável e as sementes que nele espalha irão germinar revelações. Neste rumo constroem-se pessoas, libertam-se interioridades, despoletam-se energias. Daqui antevemos o germe do paraíso. No outro trilho era o inferno, não era? Os franciscos trazem na mão o facho a arder do Infinito. Por isso eu quis ser professor. Quem fermentou a ideia em mim foi o latim do P. Francisco, naquelas aulas encantatórias. Eu viajei mesmo entre os Romanos e os deuses deles, estive a julgar Catilina com Cícero, a cantar as armas e o varão com Virgílio, preocupado e de ouvido atento ao marulho do “erant rari nantes in gurgite vasto”, eram raros os navegantes no mar vasto. O que tu, Faria, sonhaste fora de aulas com as Ciências, sonhei-o eu nas aulas de Latim.
E fez o Faria:
Tivemos sorte, Ramiro, tivemos sorte. Já o Ernesto, tu, não. Bateu-te mais forte a mancha negra do Deodato. Mas tu até acabaste por passar a tudo, não foi? Mesmo a Ciências, contas tu, por mais que te horrorizassem. Se calhar, foi mesmo para escapar de vez ao terror daquilo. Terá sido a postura da maioria.
E fez o Ernesto:
Comigo foi de facto, Faria, foi. Tinha de fugir àquelas aulas, não é? Embora miúdo, entendi que não teria outra saída senão garantir a passagem, dê lá por onde der. Então fiz das tripas coração e tratei de não ficar atrás dos mais e lá passei. Mas ficou-me de emenda. Andava permanentemente a procurar onde estaria escondido outro deodato qualquer para dar cabo de mim. Não logrei ultrapassar isto nunca, foi por isso que aguentei mais dois anitos e acabei por pôr os pés à parede. Abandonei para nunca mais. Não conseguia confiar em nenhum professor, é a verdade. Assim não há saída.
E fez o Faria:
É o que me deixa mais perplexo, Ernesto. A teoria aqui do Ramiro é fascinante, ao menos para mim, e creio que é verdadeira. O rumo da vida dele, aliás, ilustra-o, para não dizer que o comprova. Mas continua de pé o problema: se a maioria dos professores dão em deodatos, se a meta ideal dos franciscos em concreto é inatingível, como justificar a escola? Não será de extingui-la, como há uns decénios chegou a ser propugnado? Tu, Ernesto, ao abandoná-la, é como se a votasses à morte, não é?
E fez o Ramiro:
Espera aí! Ao falares assim, Faria fazes-me lembrar aqui o Renato que, se pudesse acalhoar a escola, de certeza as acalhoaria a todas. Não é verdade? E com uma enorme gargalhada de escárnio, pois claro! O que eu vejo, depois duma vida inteira a trabalhar no sector, é outra coisa. Há vários aspectos a ter em conta. Primeiro, o de criar cidadãos adequados à ditadura, carneirinhos acéfalos a guiar o rebanho conforme os ditames do pastor totalitário, seja o do fascismo, o do liberalismo de corta-cabeças que nos impôs guerra civil mais de cem anos, seja o do despotismo iluminado do Marquês de Pombal, ou o da Inquisição a queimar o Judeu no Campo das Cebolas, ou o de D. João II a degolar, até pelas próprias mãos, quenquer que se lhe opunha. Isto para dizer que o soberano em Portugal acarinha a mais não poder qualquer deodato que lhe apareça, desde há mais de quinhentos anos, muito antes de as escolas actuais existirem. Convém-lhe um escol de gente que não pense pela própria cabeça, repetitiva, ordeira e obediente. São os deodatos que os formam, aos submissos. Entre nós isto vem de há séculos, há mais de quinze gerações. Ora, o hábito é uma segunda natureza, pelo automatismo da rotina. É por isto que eles são maioritários. Quer dizer, se apostarmos e apoiarmos de igual modo o pendor contrário, em breve a maioria pode ser outra.
E fez o Renato:
Acreditas nessa, Ramiro?! Bem me parecia que tu és um milagreiro! Quantas velas já acendeste a Sª. Rita? Ou ela andará distraída? Se calhar, com tantos ditadores nossos do lado de lá, já lhe cortaram a cabeça... Ai não, que lá já não têm cabeça para cortar!
E fez o Faria:
A vida sem o Renato não teria graça nenhuma. Mas compreendi o primeiro aspecto, Ramiro, e, para mim, creio que faz algum sentido. É normal que o cidadão que pense por ele seja incómodo ao poder, mesmo em democracia, não é? Embora vise o que é pretendido, senão é mais uma vez o rebanho que vai enfileirado, arrumadinho, para a mesa de voto. Quanto a este vector, estamos entendidos. E há mais, é? Quais, Ramiro?
E fez o Ramiro:
Por mim, destacaria pelo menos mais dois, Faria. Um é distinguir disciplina e aprendizagem, no contexto da relação pedagógica em aula. A confusão de ambas é a matriz do passado e não é inocente. Outro é o continuum, nos dois campos, a desenvolver entre o mal menor e o bem maior.
E fez o Ernesto:
É areia demais para a minha carroça. Lembra-te de que eu abandonei a escola. Troca lá isso por miúdos para um leigo na matéria poder entender, está bem?
E fez o Ramiro:
É simples, Ernesto. A disciplina é o respeito mútuo entre todos, alunos e professor, e o respeito de todos pelo objectivo de cada lição que é transmitir e assimilar conhecimentos e desempenhos. A aprendizagem é o itinerário de descoberta de saberes mais o complemento de actividades de criação e realização. São dois caminhos interligados e interdependentes, mas são sempre dois e não um apenas. Pouco importa distingui-los quando ambos se pautam pela pancadaria: se pisas o risco, apanhas porrada, se errares ou não souberes, porrada apanhas. E eis o Deodato transformado em ditador absoluto, com o mesmo poder e a mesma prática nos dois reinos. Assim, ei-los unificados em perfeita harmonia. Se pretendemos indivíduos adoradores do ditador-deus, aqui temos o caminho acabado e os deodatos são o seu profeta. Agora, se pretendemos cidadãos e não títeres, a questão é outra. A disciplina é um pressuposto duma aprendizagem a sério, significativa, com vitalidade. Então, terá de garantir-se mesmo com o recurso à autoridade, à imposição e às sanções que em cada caso concreto se tornarem imprescindíveis. Isto, porém, é apenas para disciplinar o grupo, para criar condições de aprender com sentido, com sabor e com sonho, se possível. Desencadeado o itinerário de aprendizagem, a única imposição aqui é a dos conteúdos programáticos nos prazos previstos. De resto, garantido previamente o respeito mútuo e o da respectiva etapa de escolarização, aprender tem como única sanção a avaliação a cada etapa e no fim da caminhada. Apenas ela é que recompensa ou pune, do exterior, o trilho que o aluno percorreu. Por dentro dele, é a gratificação que lhe vem do reconhecimento, quando atingiu a meta, ou a frustração por tê-la falhado. E tudo acompanhado pela alegria das descobertas, o deslumbramento da revelação, quando tudo é bem sucedido, ou então pela falta disto, com a decepção resultante, quando falha. E não há mais punição alguma no trilho de ensino-aprendizagem. É apenas uma avaliação rigorosa, de preferência contínua, para ser mais estimulante. Somente isto logra não estragar o que há de maravilhoso na cultura humana, unicamente por aqui o poético nos arrebata a todos, alunos e professores. Se cá no colégio tivessem sido fiéis a isto, nunca ali o Ernesto se teria visto obrigado a desistir de estudar, bem pelo contrário. Até porque ele nunca teve problemas com a disciplina. Aliás, praticamente nenhum de nós, À excepção talvez do Renato. Mas aquilo era mais fazer de bobo e bem nos divertia a todos.
E fez o Renato:
O quê?! Não concordo nada, não é nada democrático. Então agora o Deodato só me tinha a mim como pião das nicas? Para todos os outros as festinhas e para mim os sopapos? Ainda por cima os sopapos de vinte e tal num só, que os deodatos não fazem desconto? Não, não! Ele distribuía muito democraticamente a porradaria, era um verdadeiro democrata da chapada. Ou apanham todos ou não apanha ninguém, então como é?
E fez o Ramiro:
Fora de brincadeiras, Renato, sabes que se calhar tens razão, num certo sentido? É que nem tu precisavas de ser contido com castigos, se tudo fossem aulas de franciscos em vez de deodatos. Até tu te continhas ali dentro de limites toleráveis, para não estragar o gozo daquelas histórias todas. Ou nem sequer tinhas consciência, estavas tão deliciado como nós, num reino encantado. Era ou não era? Ora pois!
E fez o Faria:
Mas dizias tu, Ramiro, que havia um continuum nos dois pendores, o da disciplina e o da aprendizagem. Troca lá isso por miúdos, a ver onde ficam os vilelas dorminhocos.
E fez o Ramiro:
Ah, ficam nos alicerces, Faria. Nem disciplina nem aprendizagem. Deles é que podemos dizer que passam a vida a dormir, dali não vem nada de jeito em nenhum dos pendores. No outro extremo ficam os deodatos e os franciscos: uns conseguem tudo pelo reino do terror, outros, pelo do encantamento. Entre os dois extremos situam-se todos os restantes. Agora o interessante é que, como vimos entre nós aqui no caso do Renato, quando o fascínio das aulas nos empolga, a disciplina é atingida espontaneamente. Ninguém mais pensa em imposições nem castigos. Quer dizer, os deodatos acabam definitivamente ultrapassados, por inteiramente inúteis. Aliás, se ali intervierem, serão contraproducentes, destrutivos e tornam-se intoleráveis, de tão asquerosos.
E fez o Ernesto:
Espera aí! Então porque é que o P. Francisco não anulou o Deodato?
E fez o Ramiro:
Ó Ernesto, a questão é que o anulou tanto nas aulas dele que não encontrámos nelas vestígios sequer do Deodato. Nem para impor disciplina: esta foi, desde o princípio, um resultado espontâneo da abordagem dele. O problema é outro. É que ele era caso único, não é? Todos os mais ficavam a meio caminho disto, nos dois campos, e o P. Vilela nem sequer a caminho se punha, desatava a dormir sentado à secretária. Ora bem, quando um professor não consegue entusiasmar a turma, ocorrem dois efeitos negativos: tendem a aparecer comportamentos indisciplinados e o aproveitamento vai-se afundando. É aqui que as escolhas se impõem. O mais fácil é desatar a castigar os indisciplinados, sem reparar no que os provoca, o tédio maior ou menor daquelas aulas. Com a disciplina imposta à força, a tendência é a de transpor para o trilho do ensino-aprendizagem a mesma receita. E lá vêm as medidas violentas. Todos apanhámos reguadas na Primária, pelos erros no ditado, por falhar a tabuada... E lá desata a crescer o deodato que mora dentro de cada mestre. E lá vão os dois pendores misturados na mesma receita como se foram um só. É, por ora, ainda o rumo da maioria, infelizmente.
E fez o Ernesto:
Eu bem tinha razão quando larguei os estudos e arrumei a minha vida na banca. O que eu iria encontrar, na melhor das hipóteses, eram mil e um deodatos em miniatura.
E fez o Faria:
É bem verdade, Ernesto, e nem vejo como poderia ser doutro modo. A lei do mais fácil não pode inverter-se nem ignorar-se. Seria, aliás, um desperdício, não é? E como pode não ser qualquer outra alternativa um ingénuo angelismo? Confesso que não vejo. Aquilo vem de há séculos e por muitos séculos irá porventura continuar. Ou estarei enganado?
E fez o Ramiro:
Se calhar tens razão, Faria, quem o pode adivinhar? Agora o problema é que muito depende de nós. Pode tudo ir por aí ou não. Que é que terá mais força? O mais fácil ou o mais gratificante?
E fez o Renato:
Ora, mais força tem o Deodato! É cada murro no gratificante que ele até vê estrelas! É outra forma de ver o céu, não é? Já que pelo outro rumo também o vêem, ficam com a cabeça nas nuvens, assim acabam ambos empatados, Deus e o diabo. E entre eles o diabo que escolha!
E fez o Ramiro:
Este Renato não tem emenda! Pois comigo foi sempre o gratificante que teve mais força, dê o trabalho que der. E logo desde aqui, é curioso. Quando me arrepiava ao lembrar-me de qualquer violência em aulas do Deodato, eu logo tratava de evocar a última história que me entretivera em Latim, para apagar aquela emoção negativa e trocá-la pelo gozo positivo da narrativa desta. Aliás, até me habituei a pôr os livros das duas cadeiras juntos, a fim de poder distrair-me com o prazer das histórias dos romanos quando me atacava o pânico do que poderia cair-me em cima do outro lado. Foi a minha estratégia infantil de defesa. E a verdade é que em mim isto semeou o trilho da gratificação como o rumo da docência para o resto da vida.
E fez o Faria:
Bem, isso é o teu caso, Ramiro. E o resto? Encontraste mais alguém a sentir como tu? Uma excepção não faz a regra, não é? E como a maioria, ao que contas, não vai por aí...
E fez o Ramiro:
O mais bizarro é mesmo o que aqui ocorre, Faria. Queres crer que quando propus a alguém esta via, nunca houve um sequer que a recusasse? É verdade e é esquisito. Nem um. Todos adorariam ir pelo mais gratificante. Aliás, muitos mudaram de método e estratégias em aula, copiando os meus ou inventando outros, quando os alertei e mostrei que havia caminhos alternativos bem melhores que os tradicionais. Parece que há mesmo uma fome disto espalhada pelo sistema escolar, mais consciente nuns, menos noutros. Nos alunos, então, nem se fala! Só que nem fazem ideia do que é. Sentem-se desconfortáveis e gostariam de algo melhor. Mas em geral nem conseguem identificar o que é. Não admira, têm tão poucos pontos de referência para comparação, para verbalizar o problema e tomar consciência dele! Os professores, não, é apenas o maldito automatismo da rotina.
E fez o Ernesto:
Então, mas se eles não gostam, por que diabo é que não mudam? Que é que os impede? Já não há ditador nenhum a exigir que se forme uma carneirada... Ou há?
E fez o Ramiro:
Não, Ernesto, não há. Mas continuam dois obstáculos de monta, bem difíceis de transpor. O primeiro é o trabalho que dá mudar de hábitos. Na escola é como na nossa vida comum. Quantas vezes não jurámos propósitos de Ano Novo, Vida Nova? E depois continua tudo na mesma. É requerido um esforço descomunal para ir mudando. E, quando é, é apenas ir mudando: um itinerário desesperantemente lento, sem saltos bruscos como bem quereríamos, com a repetição automática dos já rejeitados gestos, atitudes, valorações, sentimentos... Mudar no relacionamento escolar é mudar na vida, não ocorre aparte nem com outras regras. Dá trabalho, é moroso, leva a falhas e erros, requer ajustamentos de precisão, atenção e cuidado com os pormenores críticos que, quando falta experiência, nos escapam. Até quando a temos, basta uma distracção e podemos deitar tudo a perder. Havemos de concordar que o caminho está pejado de pedras e de buracos. Ora, isto é o que desanima a maioria. Se fosse um salto imediato, já lá estariam todos, quase juro.
E fez o Renato:
Ah, não, essa não, Ramiro! Ao Deodato nunca o levarias, nunca! Isso era como pô-lo ao espelho aos murros às próprias ventas. Então ele iria perder alguma vez os sacos de treino? Não estás bom da cabeça! Isso é de algum soco que ele te deu e te deixou aí um qualquer parafuso com a rosca moída... Ó pá, com os deodatos, só camisas de força! Mais nada, mais nada!
E fez o Ernesto:
Vá lá, só mais uma dose de pancadaria no lombo deles, para equilibrar a balança, Renato.
E fez o Renato:
Boa, boa! E eu a dar-lha, Ernesto. O prazer que não era virar-lhe aquele nariz para as costas! Ah!
E fez o Faria:
Só tu para me fazeres rir! Mas dizias, Ramiro, que há um outro obstáculo. Qual, já agora?
E fez o Ramiro:
É uma realidade estranha que descobri. Surpreendeu-me e a vós decerto igualmente. É que os professores têm uma dificuldade enorme em ser criativos. Acreditam que se não for copiar o método e estratégias de alguém, no geral nenhum deles consegue dar um passo? Eles bem gostariam mas não vêem como. Não é por má vontade, por desinteresse ou por falta de energia e tempo para se dedicarem a isto. Não. É que não têm de todo esta faculdade de inventar, vislumbrar modelos novos de gerir as aulas com métodos mais apelativos, de descobrir propostas, recursos, atitudes, realizações que galvanizem os educandos. Os professores quase todos são destituídos de criatividade. É uma deficiência tremenda para este fito. Dominam em geral os modelos teóricos dos respectivos programas. Poderiam decerto dominar os doutro qualquer que se propusessem assimilar, creio. Ao menos, se não for de área curricular muito estranha à sua. E acabou aqui a respectiva capacidade. Isto foi um dos aspectos que mais me surpreenderam. Não há pensamento criativo, mesmo após um curso superior. É uma faculdade extremamente rara, ao menos entre nós. Ora, sem isto, generalizar os franciscos é deveras problemático.
E fez o Faria:
E daí? Qual é o problema de copiarem os bons exemplos? São mesmo para serem seguidos. Não foi o que fizeram os que reproduziram o que tu fazias? Isso é óptimo. Ou não?
E fez o Ramiro:
Só atécerto ponto, Faria. Os deodatos têm aqui uma grande vantagem: é que funciona o modelo único. Correm tudo à bofetada, seja na disciplina, seja na aprendizagem, seja na criança, seja no jovem, e pronto, fica tudo resolvido. Com os franciscos, é ao contrário. Não é apenas diferenciar disciplina de aprendizagem, com duas abordagens diferentes, uma predominantemente impositiva e sancionatória, quando imprescindível, outra apelativa e sem punições violentas que não sejam as afectivas derivadas da avaliação. Já isto é mais complicado, mas não termina aqui. O problema é que, relativamente aos alunos, o que opera numa idade já não toca ninguém noutra. Contar-nos contos, lendas, aventuras de heróis, deuses e fadas encantou-nos aos dez, onze anos e foi um sucesso pedagógico, uma vitória para todos, mestre e alunos. Pois quereis acreditar que, quando eu fui professor do Ciclo, logo no início de carreira, tratei de aplicar a receita e já não resultou? Melhor, deu bem com a turma dos mais miúdos que tinham aquelas idades. Com a turma mais velha, que já ia nos doze, treze, foi um fracasso completo. E sabem o que os agarrou? Que eu os pusesse a redescobrir, a reinventar o programa através de perguntas dirigidas à turma inteira, a partir dos dados da observação ou da experiência deles que levaram às descobertas. Nem imaginam a euforia que isto criava neles. Perfeitamente idêntica à que nós vivemos aqui com o latim cheio de histórias. Quer dizer, tem de se reinventar tudo, de modo a conformar as abordagens aos alunos em concreto, às idades e ao seu contexto familiar e cultural. É muito mais complicado.
E fez o Renato:
Eu não dizia? Deodatos um, franciscos, zero. Mas como já são tantos aspectos, isto deve ir quase nuns dez a zero, não? Ó Ramiro, mas que utopia! Assim nunca irá lá...
E fez o Ramiro:
Não matemos o sonho, Renato. Desde que é possível e desejável, porque não viabilizá-lo?
E fez o Ernesto:
Ora! Mas que grande carga de trabalhos! Ainda bem que eu me escapei daí! Do que eu me livrei!
E fez o Faria:
O que nunca entendi, Ernesto, é porque tiveste de ser tão radical. Nós todos gramámos o Deodato na nossa turma e só tu é que ficaste marcado assim.Ele nem sequer te bateu mais que a qualquer outro. Excepto a mim, pronto, que nunca me tocou. Fui a excepção única. Mas também aquilo me amedrontava, só que ir até ao abandono... E o Ramiro até se fez professor, por rejeição àquela prática, não é? Tivemos azar, fomos a única turma do seminário que o teve, de resto ele, como leigo, tinha era as turmas do colégio. Foi para completar-lhe o horário e porque acharam que os padres não eram grande coisa como professores na área das ciências. Só que as outras turmas tiveram-nos sem perderem nada e, nos anos seguintes do seminário, também. Foi mesmo pouca sorte nossa termos de gramar o civil troglodita do Deodato. Que lá quanto aos padres docentes, decerto por eles nunca terias abandonado. Nenhum era propriamente violento e até nos divertíamos com as sonecas do P. Vilela. Diz lá que não!
E fez o Ernesto:
Oh, claro, era o momento de me descontrair. Mas o que me deixou inteiramente em pânico não foi comigo, foi com o Franchisco (ele falava “achim”) que era o meu companheiro de carteira nas aulas do Deodato. Não sei se vos lembrais dele. Nós os dois estávamos na segunda fila, a contar da frente, do lado da janela. O Renato era ao fundo, ao lado do corredor e tu, Faria, era na terceira carteira, na segunda fileira a contar da porta. Isto ficou-me retido como numa fotografia. Parece que o tempo parou ali. E o Ramiro era à tua frente.
E fez o Faria:
Essa agora! Mas que raio é que te provocou isso? Aquilo foram todas as aulas o mesmo...
E fez o Ernesto:
Ó pá, nós éramos todos miúdos. Eu acreditei que ele ia mesmo morrer. Quando o Franchisco se sentou estava branco, branco. Eu estive sempre à espera de que ele desmaiasse, que era o que acontecia em casos assim. Já me tinha ocorrido uma vez na missa solene, na festa da padroeira. A gente parece que fica sem pinga de sangue. Quando ele voltou da casa de banho e se sentou à minha beira, eu ainda estava a tremer todo, nem tinha controlo. Olhei para ele e vi aquilo, ele parecia um fantasma. Não falou, não sorriu, nem olhou sequer, nada. Parecia um morto-vivo. Foi como um autómato, não estava ali, é como se tivesse ido para longe, não sei. Fez-me uma impressão! E nunca mais abriu a boca, que eu visse. Nem nos recreios, nem no refeitório, em aula nenhuma, nunca. Vós não reparastes? Não admira, se calhar nem vos lembrais dele, éramos tantos! E não era do vosso convívio. Aliás, nem do meu, só me marcou por sermos colegas de carteira naquelas aulas malditas, senão, se calhar, também não tinha dado por nada. Ainda por cima meteu-se consigo próprio daí para diante, nem deu mais para conviver, nem pouco mais ou menos. Também antes não era dos mais dados, não era como o brincalhão do Renato, mas andava por lá no meio da gente. A partir dali, nunca mais. Eu fiquei tão preocupado que procurei-o sempre até ao fim do ano, mas não valia de nada, ele fechava-se na concha, com uma cara abatida que me mortificava e nem sequer respondia. Creio bem que nunca mais abriu um livro nem estudou mais nada. Tanto quanto me lembro, reprovou a tudo, no fim, e desapareceu. Eu, pelo menos, não tive mais sinal dele.
E fez o Faria:
Agora é que eu estou mesmo perdido, ó Ernesto. De que raio estás tu a falar? Que diabo é que aconteceu que eu nem dei por nada? Nem eu nem mais ninguém. Eram as tareias do Deodato...
E fez o Ernesto:
Eram. Mas naquele dia foi pior, muito pior. Tu não podias ter visto, Faria, nem vós também, que ele ficou de costas para o vosso lado, com aquele corpanzil de gorila que tapava tudo. Só da minha fila é que podíamos ter observado a cena, mas se calhar só eu é que reparei e fiquei em estado de choque para o resto da vida. Todos enfiávamos o nariz no livro e no chão, não fosse a grande besta reparar em nós e chamar-nos a seguir. Não sei. Nem me lembro dos outros que podiam ter olhado, lá do nosso ângulo. Fiquei tão aterrorizado que este pormenor me escapou, no momento. O tempo parece que parou ali e fiquei lá preso até hoje.
E fez o Renato:
Eh, pá, tens de contar que diabo foi aquilo. Então ocorreu um episódio que eu nem sequer podia achincalhar, de tão horrendo, e a cena escapou-me?! Desembucha! E com todo o pormenor!
E fez o Ernesto:
Então, o Deodato ergueu-se, como de costume quando a gente não sabia, deu a volta à secretária, mas, em vez das bofetadas corriqueiras, pôs o Franchisco entre ele e o tampo, agarrou-o pelo peito da camisa como se fosse um boneco de trapos, levantou-o em peso...
E fez o Ramiro:
Agarrou-o pelos colarinhos?! No ar?!
E fez o Ernesto:
Foi, Ramiro. O Franchisco parecia desarticulado como um roberto, nem era um corpo de gente, com as pernas bambas, a dançar em suspenso. Vejo sempre a sequência inteira em câmara lenta, parece durar uma eternidade e foi tudo em segundos. Mas tínhamos dez anitos...
E fez o Faria:
Então e depois? Que é que o Deodato lhe fez? Eu não podia mesmo ver, as costas dele tapavam-me tudo. Mas de certeza que reparei, como nos outros casos, só que não tenho ideia...
E fez o Ernesto:
Não viste, Faria, como é que podias ter ideia? É que depois o Deodato dobrou-o de costas sobre o tampo da secretária. Eu convenci-me de que ele lhe tinha quebrado a espinha, tal foi a torção. Nem sei como não aconteceu, se calhar foi por sermos tão novitos. Se fosse agora, ficaríamos de imediato paralíticos, com uma fractura da coluna e a medula esmigalhada. E eu ali, a ver uma coisa destas e sem poder mexer uma palha! Foi a aflição maior da minha vida.
E fez o Ramiro:
Mas porque é que ele lhe dobrou a espinha sobre a secretária? Podia ter dado cabo do rapaz. O Deodato estava doido?
E fez o Ernesto:
Sei lá, Ramiro. Se calhar. Mas o pior foi a seguir. Lembrais-vos como era o punho fechado dele, uma marreta maior do que as nossas cabeças? Então, mal assentou as costas do Franchisco no meio da secretária, desfechou-lhe com a manápula direita um murro no meio da cara. O sangue espirrou para todo o lado. Aí eu pensei: pronto, matou-o! Fiquei siderado.
E fez o Faria:
Eiii!... Agora entendo porque fugiste a vida inteira à escola. Com um trauma destes aos dez anos... Ainda bem que nós não pudemos ver, senão, sei lá...
E fez o Ramiro:
Estou como tu, Faria. É de uma pessoa ficar parva! Como é que nos passou ao lado uma coisa destas?! Mesmo na nossa cara? Sacana de gajo aquele! O professor ideal...
E fez o Ernesto:
Oh, ele encobriu logo tudo muito bem. Se fosse crime, era o crime perfeito. Parou, mal viu a sangreira, resmungou uma coisa qualquer e levou imediatamente o Franchisco aos lavabos que ficavam mesmo ao lado da sala. Entrou segundos depois e continuou a aula como se nada fosse. Muito poucos deram por aquilo, se calhar só eu mais aquele desgraçado que foi como um porco para o matadoiro. Quanto a ele, voltou quase no fim da lição e nunca mais foi o mesmo. Dentro dele apagou-se-lhe uma chama qualquer. Eu, por mim, pirei-me da escola logo que pude, antes que me acontecesse o mesmo, que algum bandalho ainda me pusesse às portas da morte.
FIM