O FARDO ANCESTRAL
Coisas
Quando eu me identifico
Com as coisas que são minhas,
Nenhum eu já pontifico,
Perdi-me em vielas vizinhas.
Eu sou quem rasga os caminhos
Interiores e exteriores,
Não me confundo com ninhos
Onde à vida armo os amores.
Nenhum brinquedo sou eu,
Por mais que produto meu.
Vida fora a confusão
Jamais me larga da mão
E assim findo prisioneiro
Das armas de meu armeiro.
Tempo
Quem tem o ego reforçado
Pela doença demora
Mais tempo a recuperado
Vir dela de vez embora.
Uns até nem recuperam:
É uma nova identidade
Que com a doença obtiveram,
Falsa personalidade.
E são crónicos doentes,
Jamais de seu eu agentes.
Colados de vez a ela,
Ignoram do eu a janela:
Eu não sou nunca a doença,
Por mais que ela ao fim me vença.
Dedica
Quem dedica a vida inteira
A trabalhar altruísta
É de si mais que se abeira
Ou já se perdeu de vista?
Foi para fugir de si
Ou foi para se encontrar
Que todo se aplica ali,
É seu eu ou um ego a par?
É uma imagem que de si
Anda ali a cultivar
Ou é uma entrega ao que ali
Lhe vier da vida a calhar?
É mesmo um eu que ali vivo
Ou mais ego que cultivo?
Matreiro
Este meu corpo de dor,
Esperteza primitiva,
Matreiro bicho a se impor,
Tudo faz para que viva.
Para então se alimentar,
Qualquer vivência de dor
É o que vai utilizar:
Cresce logo com pavor.
Toda a ideia negativa,
Drama numa relação,
Infelicidade activa
São o seu real pendão.
Desgraça eu junto a desgraça
Em tudo por onde passa.
Busca
Que é que existe dentro em mim
Que busca a infelicidade
Por meu princípio, meu fim,
Só quer negatividade?
Noutrem fácil reconheço
Tal pendor de negridão.
Mas em mim, onde começo
Tal trilho a arder de carvão?
A infelicidade mina:
Não só não quero que acabe
Como outrem até fulmina,
O que até faz que lha gabe:
É que assim o ego alimento
De tal perverso tormento.
Meio
Para o ego o momento aqui presente
É mero meio de atingir um fim.
Foca-me o olhar nalgum porvir ausente,
Mais importante que o concreto, assim.
Não existe o futuro, só na forma
De eu o representar na minha mente.
É um pensamento que a cabeça, em norma,
Confabula e coloca à minha frente.
Nunca estamos, portanto, agora aqui,
Entregues a um estado que é de sítio,
Sempre ocupados a tentar dali
Atingir de algum modo um outro sítio:
Quando andamos apenas no presente
Sem nada para trás nem para a frente.
Acordo
Quando acordo de manhã,
Sonho da noite passada
Foi só sonho, coisa vã.
Mas em si é um real nada.
Quando a morte se aproxima,
Talvez olhe para trás:
Desta vida o real clima
Foi um sonho ou foi veraz?
Mesmo agora, se olho as férias
Transactas, o dia de ontem,
São idênticos às lérias
Que os sonhos da noite contem...
Da morte quando acordar
Sonho é o que teve lugar?
Egóica
Não tentes fortalecer
Tua egóica identidade
Exibindo-te, a querer
Sobressair na cidade,
Ser especial, causar
Decerto boa impressão,
Exigir de qualquer par
Prestar-te muita atenção...
Abstém-te até de exprimir
Tua própria opinião
Quando outrem se faz ouvir,
Aprende as que antes terão:
Aprendes como se sente,
Cresces então como gente.
Importa
O que não pode ser visto
Com os olhos e através
Do qual vêem quanto alisto
- É quanto importa de vez.
O que ouvido ser não pode
E através do qual o ouvido
Ouve tudo o que me acode
- É o que importa e faz sentido.
O que nunca com a mente
É pensado e através
Do qual ela tudo invente
- É o que não sofre revés.
Sou eu, sim, presente aí:
Vivo-me, nunca me vi.
Controlo
Qualquer rede social,
Tomada inteira pelo ego,
Quer o controlo total
Sobre nós, com todo o apego.
Adormece-nos, nos torna
Por inteiro inconscientes
E jornaleiros à jorna
Eis-nos ao ecrã presentes.
E um potencial enorme
Finda todo inexplorado
Tão mais quão mais se conforme
Aos ecos do lucro dado.
E eu que ali pretendia
Do Infindo trepar a via!
Manietado
Toda a rede social
Quer-me prolongadamente
Manietado ao canal,
Gaiola de oiro contente.
Mais que pôr-me inconsciente,
Passividade é total,
Suga-me a força indolente,
Nem sou eu, sou o outro igual.
Terei de fazer a escolha
E não deixar-me escolher
Pela aleatória recolha
Do que calhar que vier.
Senão, ali pelo meio,
Já nem sou, a mim alheio.
Lonjura
A lonjura interior,
Se a procuras, não a encontras:
Era um objecto supor
A capturar pelas montras.
É o dilema de quem busca
Espiritual plenitude:
A iluminação ofusca,
O efémero não a ilude.
O reino de Deus quem tenta
Na terra concretizá-lo
Nunca entendeu que o que inventa
Dos céus contraria o abalo:
Não mora lá fora nunca,
É o que o íntimo nos junca.
Agir
Meu agir, quando imbuído
Do intemporal de meu ser,
É um êxito garantido,
Lavra fundo quanto houver.
Se meu fundo não fluir
Em meu agir e se não
Estiver presente ao ir,
Quanto fizer é um senão.
Perco-me em quanto ocorrer,
Perco-me nos pensamentos,
Colado ao que acontecer,
Sou o exterior dos momentos.
E eu, que sou interior,
Perdi-me seja onde for.
Interromper
Interromper a ida ao exterior
Quando não deveria acontecer
Tem o potencial revelador
De a vida interior oferecer.
São momentos de então se despertar.
Tudo ocorre na vida como deve,
Conforme o fito cósmico estelar
Que mal adivinhamos que conteve.
Destruir nosso fito exterior
Pode conduzir muitos a encontrar
O seu próprio destino interior
Que depois ao externo irá levar
Mas mais profundo então, em sintonia
Do íntimo com o apelo de magia.
Perdido
O que é perdido no âmbito das formas,
No mundo externo ou no interno, em mim,
Posso ganhá-lo ao nível doutras normas:
No eu, na minha essência em meu patim.
Ferido curador, cego profeta
Da lenda antiga mostram que anular
As formas dentro e fora leva à meta
De nossa intimidade revelar.
A grande perda muda em abertura
Para o espírito, no núcleo puro.
Quando é o instável tudo o que se apura,
Nunca mais valorizo ali o apuro.
A nadas me agarrando, pelos jeitos,
Nunca mais perseguir irei tais feitos.
Velhice
A vinda da velhice era oportuna,
Não fora se perder tragicamente.
O ego a identifica velozmente,
Com o retorno a si a coaduna,
Como de algo exterior faz que me muna.
A concha egóica endureceu, fremente,
Contrai-se em vez de abrir-se e a mim me mente:
Tudo é lamento e queixa, medo que una
À comiseração, à ira e culpa,
À censura e demais emocionais
Estados negativos e mentais,
Estratégia de fuga que me inculpa.
Acabo prisioneiro em todo o lado
Apenas de memórias do passado.
Sentirei
Sentirei satisfação
Ao agir todo presente,
Quando um meio nunca são
Meus actos dum fim ausente.
Um acto desempenhado
Não me irá satisfazer:
Da vitalidade é o grado
Fluir que só nele houver.
Vitalidade sou eu,
Propriedade é do que sou:
A alegria que me deu
É de ir sendo em quanto vou.
Tudo o que me satisfaz
Liga ao Ser que em mim subjaz.
Gesto
No meu gesto rotineiro
Em que nunca estou presente,
Se presente findo inteiro,
O alerta sinto silente.
De repente, o enfadonho
Que dantes era enervante
Principia, como em sonho,
A dar sabor ao instante.
O que der satisfação
Não é meu acto exterior
Mas, a fluir para a acção,
Minha consciência interior.
Em tudo quanto faria
É do ser ter a alegria.
Suba
Que te não suba à cabeça
A grandeza que em ti passa,
Que no ego sempre tropeça
Quem não vir que ele anda à caça.
O que foi extraordinário
É o que através de ti vem
Para o mundo pobre e vário,
Não és tu, que és um pelém.
Sou orifício da flauta
Por onde perpassa o sopro
Do Cosmos que ignora pauta:
Dele o canto ouve no assopro.
Ignora-me então a mim:
Só o Infindo é tudo, assim.
Leva
O entusiasmo é sintonia
Com a criatividade
Do Cosmos a ter por guia
Que leva à grandiosidade.
Possuído por um deus,
Não farei nada sozinho.
O importante de actos meus
A sós nem eu o adivinho.
Um entusiasmo constante
Traz à vida uma energia
Criativa fulgurante.
De fazer tenho, em meu dia
De jeira na rega e monda,
É de cavalgar a onda.
Salvação
A salvação da utopia
Num futuro projectado
É da mente uma mania
Que nos há sempre enganado.
A mente é por mim criada
Mas após, a criatura
Quer-me idêntico, à chegada,
Dela à moldada figura.
Se me deixo aí prender,
Não sou eu mas sim meu ego
Que quem sou pretende ser,
Me acorrentando ao apego.
Só liberto da utopia
Pode madrugar meu dia.