DO FARDO À LEVEZA
Capaz
Há um poder
Que nunca serei capaz de compreender,
Nem sequer tudo o que produz
E que de mil maneiras o traduz.
É o que nos forma e nos molda:
Sei lá bem que é que o solda!
Pressentimos o poder
E nunca o conseguimos ver.
Deduzimos, deduzimos
E nunca de vez o atingimos.
Mas que alumbramento
Quando o véu vislumbro do que além é meu sustento!
Enfadonho
O rapaz
Mais enfadonho e sem graça
É capaz
Duma aura de encanto
Que de luz o trespassa
Tanto quanto
Eu suspeitar que já perdeu o porto
E vai findar em breve morto.
Crepúsculo
Do crepúsculo a infinita solidão
É a imensa
Presença
Do Universo inteiro a me dar a mão
Como quem, sem protocolo,
Ternamente
A mim presente,
Me pega ao colo.
Viável
Sejam quais forem as asneiras
Da vida,
É sempre viável encontrar maneiras
De ela ser redimida.
Nunca no total?
Sim, é de modo parcial.
Mas quando é que alguma totalidade
É da nossa realidade?
Todas
Quando toda a gente
Vê todas as direcções,
De repente
Há soluções.
E há consenso,
Não divisão,
Num imenso
Degrau em frente
De comunhão.
Muda
Pensar construtivamente
Põe-me assente
Na muda para a melhoria:
É uma positiva via.
Escolho o pendor, pois, positivo
Preterindo o negativo:
Da ladeira ali triada
É que do porvir nos rompe a estrada.
Pensamento
O pensamento vagueia
E rodeia.
Reage, instante a instante,
Ao que lhe surdir adiante.
E desemboca no sonho
Onde na fundura incônscio me ponho,
Sem de nada saber
Sequer.
Levar a vida dormida
É ir acordado por esta avenida:
Não tem rumo nem objectivo.
Se, porém, desperto,
Derivo
Da vida para o campo aberto,
Imponho o freio e a meta:
Farei que a mente o real acometa.
Então é que pesco do rio
Ideias mil a fio.
Perseguem
Sempre nos perseguem as provações.
Pouco importa.
O modo como reagimos aos senões
É que alimenta ou corta
Os pomos
Daquilo que somos.
Aí é que perco ou ganho
O meu tamanho.
Pregou
Pregou Buda um dia
Um sermão em silêncio:
Pegou numa flor que ali floria
E contemplou-a.
A um monge apenas, a um, convence-o
E logo este sorria,
Cantou uma loa,
E a mensagem passaria
A vinte e oito mais
E estes a outros que tais...
Eis do zen a origem da mestria:
O que contradiz a razão
E a razão desafia
A correr até mais não.
Aí é que a magia
Afloramos à mão,
Sem de vez a dominarmos nenhum dia.
Flor
Uma flor é mensageira,
Na beleza que ela incarna,
Passageira,
Dum mundo além,
A alvorecer na mágica lucarna
Que de nós abeira,
Connosco um instante emparceira
E no infindo logo dilui o que contém.
Pedra
A pedra tem uma iluminação
Ao devir cristal.
A planta tem uma iluminação
Ao abrir em flor.
E o animal,
Ao abrir ao amor.
E o homem?
O homem salta da matéria
Onde os pés se lhe somem
E mais que em viagem sidérea,
Voa pelo interior
De si, dos mais, do mundo inteiro
E devém parceiro
De seu próprio senhor:
Aflora o Infinito
Onde lhe ecoa o eterno grito.
Espírito
De repente
Devenho consciente
Do espírito que anima toda a criatura,
Desde aqui até do Cosmos à derradeira fundura.
Cego,
Antes vivia no pego
Da exterioridade.
Ora, que há nela que me agrade?
Ou nela vislumbro a maravilha
Ou nem sequer sou uma ilha.
Não tenho estrada,
Não sou nada!
Sofre
Do espírito o nosso jeito
Normal
Sofre dum defeito
Fundamental:
Nasço a encarar-me a mim
Como o centro do mundo.
E no fundo
É assim:
Na derradeira fundura
O que a vista apura
É que sou uma incarnação
Da energia cósmica em acção.
Neste confim
Que me inunda
O Todo me funda
E eu não sou nada por mim.
Depois confundo tudo
E tomo-me pela pedra angular
Amiúdo,
Sem no equívoco reparar.
Aí me condenei,
De mortos o mundo semearei
Até que me chegue a vez, então,
E não terei salvação.
Poderei, porém, tomar consciência
Daquela matriz viva que me gera
E obrar em convergência
Com o que de mim espera.
Atinjo a iluminação,
Rasgo o trilho da salvação
E fermento
O fim gradual do sofrimento.
Serei mentor da libertação
Minha e dos mais,
Levando a despertar então
O mundo inteiro
Para o verdadeiro
Farol dos sinais.
Humanidade
Da humanidade o maior feito
Não é de arte, ciência ou tecnologia:
Não é o filme a que presto preito,
Não é o big-bang da astronomia
Nem a nave espacial que da Terra me despediria...
É o reconhecimento da disfunção
Deste ego que todos os dias, em loucura,
Me enterra no chão,
Sem qualquer vislumbre de felicidade futura.
Erro
Se eu não acreditar
No que ele acredita,
Em erro devo andar,
O que me concita
Um tiro na testa,
Para eu de vez deixar de ser besta.
Quem é detentor da verdade
É assim que persuade.
Modelos
A minha história
E os modelos como a leio
São mera memória
De enleio
Ou de receio,
Nunca nada tem a ver
Com quem eu sou enquanto ser.
Passeei-me por aí,
Dei uns retoques aqui ou ali,
Sem nunca me confundir
Com o que fui emalhando na esteira
De minha pegada passageira,
Ao ir em frente, ao ir...
Tudo se reduz ao que de mim ficou,
Eu sou quem vou.
Descobrir-me
Passar a vida à procura
De mim
E descobrir-me a figura,
No fim,
Perenemente aqui à mão,
A toda a hora,
No íntimo de cada demão
Com que vim tecendo o chão
De minha aurora
Com tantos anos de demora!
Por dentro de cada apresto
Afinal, eu sou, enquanto ignoto criador,
O vivo motor
De todo o gesto.
Pergunto
Não pergunto à minha mente
Que é que sente,
Que ela então não sente nada,
É um vazio em minha estrada.
É uma mera ferramenta
De que disponho em meu imo.
Com ela leio o que me alenta
Dentro e fora, da estrela ao limo.
Não é a minha identidade:
Eu sou eu e esta egoidade,
Sem física dimensão
É que toma tudo à mão
Do exterior, do interior
E de tudo é senhor
Sem admitir confusão.
Sem rosto,
Mas sempre aqui no posto,
A retraçar, do mundo nas loisas,
O rosto de todas as coisas.
Forma
Eu sou
Quem não tem forma nenhuma
Porque sou eu que dou
A forma às coisas, uma a uma,
Com os enérgicos estos
De meus gestos.
Eu sou o ser informe
Que se conforme
A estes meus restos.
Não os sou de todo,
Sou quem lhes deu o modo
E continua a caminhada.
Sou o vento
Que dança a todo o momento
Burilando a poeirada
Da estrada.
Confunde
Quando me confundo
E me confunde todo o mundo
Com tudo aquilo que irei fazendo,
Aí me rendo
E me entalo
Nas baias entre que estalo,
Confundido
Com a pegada de meu rasquido.
E então identificar-me
Com o que tenho adquirido?
Toquem o alarme!
Não sou carro nem sou casa,
Não sou fato
Nem sapato
Nem perfume...
Nada disto sou eu, a brasa
Com que, à lareira do mundo,
Cá do fundo
Ateio o lume.
Imagem
À imagem e semelhança de Deus,
Eu, aqui, sou este eu informe,
Pai criador que tudo forme
Dos gestos seus.
E tudo é Filho, dos sábios aos sandeus,
Da energia
Que sou e de mim irradia
E por meu corpo fecunda
A vida inteira que tudo inunda.
E, nesta geração interminável
De minhas criaturas,
Sou o Espírito intocável
Que, dos sentidos na panela das farturas,
Cozinho e renovo
O admirável
Mundo novo.
Vou sendo Deus
Aqui,
Não nas alturas dos céus,
Aliás, como Ele em si.
Procuro
Procuro minha identidade
Nas formas que crio?
Então sou meu ego, não a verdade
Da energia que irradio.
Procuro-me e me perco
Nas formas de que me cerco.
Não sou deveras nenhuma,
Mas a energia que através de todas se consuma.
Em nenhuma delas ela se esgota,
Antes é quem constrói e mexe de todas a imparável,
Interminável
Frota.
Uma vez um barco construído
E jogado ao mar,
Reencontro de novo meu sentido
No barco seguinte a aparelhar.
E é assim
Num itinerário sem fim.
Só o Infinito
É meu último fito.
Eu sou isto:
O informe,
Conforme
Em tudo existo.
Finalmente
Das formas exteriores
Facilmente me distingo.
Das interiores,
Mal vingo.
Modelos de pensamento
Brotam permanentemente
Na consciência,
Uns duradoiros, outros de momento,
E vivo assente
Deles na consistência.
Esta voz dentro de mim
Ainda não sou eu,
É corrente
De rio sem fim
Ao dispor meu:
Modelo-a como modelo o barro,
Mesmo se com ela fatalmente
Esbarro.
É uma faculdade interior,
Não sou eu, dela senhor.
Quando me identifico com ela,
Com as emoções com que me arrepela,
Caí no pego,
Não sou eu mas o meu ego.
Sou o que lá transfundi,
Não o eu em si.
Findo aprisionado neste perto
Quando sou o longe que através de tudo desperto
Outro pensamento,
Fermentando outro fermento
Rumo à lonjura:
Eu, não nenhuma figura.
Apenas sou
E por todas elas então me vou.
Apenas
Eu sou consciência sem forma,
Apenas: eu sou.
Eu, quem dita a norma
De tudo o que me expressou.
Se com qualquer forma me confundo
Em que me transfundo,
Não sou eu, sou meu ego
E, perdido de mim,
Procurando-me algures por qualquer confim,
Nunca mais terei sossego.
Quando
Quando critico
Ou condeno,
A mim próprio me amplifico
Num aceno:
Sou melhor,
Sou superior
A tudo quanto ali dreno...
Eis porque um mero argueiro
É prioritário a um travejamento inteiro.
Estratégia
Queixume,
A estratégia favorita
Que o ego traz a lume
Para se fortalecer na desdita.
Uma história que ele inventa
Com que a mim e aos demais tenta.
E eu, sempre que acredito nela,
A mim fecho-me a janela.
E não desdigo a desdita,
Alongo-lhe indefinidamente a fita.
No queixume me comparo
Ao que no outro reparo:
Um ego com outro ego,
Nem meu eu nem dele pego.
Se recuara até aqui,
O golpe de bisturi
Cortaria qualquer deixa
Para a queixa:
Eu e ele, criadores
Das divergências,
Senhores
Somos de tais excrescências:
Dá para as reformular,
Rejeitar,
Inovar,
Sintetizar,
Até para tolerar
A contradição nos termos,
Até vermos
Que caminhos
Definharão pelos ermos
Ou antes, fecundos,
Adivinhos
Irão ser de novos mundos.
Permanente
Um ressentimento longo
Devém mágoa,
Estado permanente que prolongo
Dos dias contra os rios
De corrente viva de água,
Do fogo purificador dos desafios
Contra a frágua.
A mágoa é um ego enquistado
Que tudo domina por todo o lado.
As mágoas colectivas
Sobrevivem séculos, milénios
Na mentalidade duma tribo, nação,
Nas forças vivas
Que activam projectos, iniciativas e convénios,
Alimentando o turbilhão,
Numa intérmina confluência
Da violência.
Mágoa
A mágoa, emoção negativa,
Provém dum evento de antanho
Tão longínquo às vezes que nem arquiva
O que na memória apanho.
História recontada do que alguém me fez
Ou me fizeram,
A contagiar cada entremez
Das pegadas que dia além proliferam.
Distorce a percepção do evento
Ante mim a ocorrer,
Influi no modo como falo, enjeito ou acalento
Quem me aparecer,
Piora o relacionamento
Em que assente
O momento
Presente.
A mágoa forte contamina
A vida a que me entrego
E por ela me domina
Permanentemente
O ego.
Honesto
Se for honesto comigo,
Entendo que mágoas guardo,
A quem, em lugar de perdão, atiro o dardo,
Um inimigo.
Mondarei pensamentos e emoções
Que a mágoa alimentam,
Identifico respostas que lhe seguem os pendões
E acrescentam
Sementeiras que a mim e aos mais nos atormentam.
Troco tudo pelo perdão
A quem me magoou,
Mesmo que não
Às atitudes que ali protagonizou.
Perdoo-lhe o eu, não o ego
Que me feriu
E nos destruiu
O sossego.
Não confundindo os dois,
Se ele também os não confundir,
Poderemos logo abraçar-nos depois,
A seguir.
Fronteira
Queixume,
Mania de criticar,
Reagir contra tudo o que calhar
Assume
Uma fronteira de separação
Entre mim e os outros, em vez de união.
É o que permite a sobrevivência
Do ego em minha existência.
Ele é a soma de meus produtos,
Diversa da dos mais nos atributos.
Se comigo a confundo
E a dos outros com eles também,
Jamais então me fundo
Com ninguém.
Força
A maior força dum ego
É ter razão.
E é sempre uma identificação
Dum eu com uma atitude mental:
Ponto de vista com que me cego,
Opinião,
Juízo de valor,
História que tomo por real...
Sem sequer supor
Que outra perspectiva
Melhor
Porventura a cativa.
Preciso de alegar
Que os demais andam errados
Para poder reforçar
Minha identidade,
Confundida com meus traslados,
Meu ego, em vez de mim de verdade.
Eu, de tudo aquilo o criador,
Confundido com a minha criatura,
Sem ao menos supor
Que outro sou porque eterno inventor
Da aventura.
Pretensa
Ter razão
Coloca em pretensa superioridade
A minha posição
Em relação
À da vulgaridade.
Quão mais alta
A que nesta for considerada
Em falta,
Tão mais me agrada.
O ego delira
Com tal sensação
E daí retira
Mais energia
De implementação.
Não tarda o dia
Em que me tira
O tapete do chão...
Existe
Existe o facto
E há quem o negue.
Ora, não há pacto
Que com isto me congregue:
Tenho razão
E sei que a tenho.
Afirmá-lo não é dar a mão
Ao ego que detenho.
Se apenas o facto verifico,
Não me identifico
Com nenhuma atitude mental.
Ele é o que for
E eu registo-lhe o sinal
Sem mais supor
Nem propor.
Meu ego, porém, infiltra-se facilmente:
“Acredita que sei!”, “porque não crês em mim?”
- Eis já meu ego ali, rente,
A misturar-se assim.
O que era mero sinal
Deveio questão pessoal:
Sinto-me diminuído,
Ofendido...
É meu ego, não sou eu
Quem ali agiu:
Troquei de reduto,
Já não sou eu, sou aquele meu produto.
Rebenta
O ego tudo transforma
Numa questão pessoal:
Rebenta a emoção,
Por norma,
A atitude defensiva,
A agressão,
No final.
É a verdade que não tem esquiva?
A verdade não precisa
Do defensor
Que em prol dela ao negador
Visa:
A luz é o que for
Sem ligar nada a ninguém,
Nem no aplauso nem no desdém.
Não é a verdade que ali defendo,
É a imagem que de mim entendo.
E a imagem não sou eu,
É a minha ilusão
Que na mente criei e me correspondeu
Encafuando-me dela na prisão.
Assim, até o facto finda
Numa distorção,
Com meu ego na berlinda
E eu dele em reclusão.
Nunca
O ego confunde
Opiniões e pontos de vista
Com o facto que abunde.
Na mesma lista
Não faz nunca a distinção
Entre evento e reacção.
É um perito
Da percepção selectiva,
Com o fito
De alimentar o quesito
Da interpretação distorcida,
Sempre activa,
Dele inconverso modo de vida.
A consciência distingue
O facto da opinião.
O pensamento, para que o ego vingue,
Não.
A consciência lê a conjuntura
Como distinta da ira
Que em meu íntimo configura.
Daí perguntar que é que eu prefira
No leque largo das reacções
Que podem originar as situações.
Ao recuar,
A consciência permite-me abarcar
A paisagem alargada
Na curva da estrada,
Em lugar
Da perspectiva limitada,
Ao sabor do vento
Do pensamento,
Na jornada
Viciada
Do momento.
Perigo
Se eu estou certo e tu, errado,
O perigo está consumado:
Na relação interpessoal,
Entre nações,
Tribos, religiões,
- Em todo o lado,
Afinal.
O mundo inteiro finda separado,
Cada qual
Vilipendiado
Pelo vizinho do lado.
No lar ou na rua
Todos crerão que os mais lhes furtaram a Lua.
Declarada ou discreta,
Toda a terra
Enceta
A guerra.
Relativismo
O relativismo moral,
Longe de ser o pior mal,
É o maior bem:
Preserva o Absoluto
Contra quem
O confunde com qualquer nosso produto.
Melhor ainda:
Tira-lhe o poder
De por Ele se passar e O pretender ser,
Como sempre ocorreu na História advinda.
Assim
Findou de vez a Inquisição
E os que mais mortes nos darão
Se à pretensa moral absoluta não pusermos fim.
Sabe
O ego é identificação
De mim com uma forma qualquer.
Ele sabe que nenhuma pode ser
De permanente duração.
Tudo é efémero no mundo:
Neste atoleiro me afundo.
Daí a insegurança
Em torno do ego:
Não terei mais sossego
Se eu for apenas isto em minha dança.
O ego é um permanente
Indigente,
Por mais que o contrário adiante,
Simulando ir exteriormente
Confiante.
Estruturas
Perigo:
Na vida todas as estruturas são instáveis.
Quanto mais nelas me abrigo,
Confundido,
Menos duráveis
E com elas me esbarrondo sem sentido.
No fim, quando em penúria,
Meu ego ainda não cede,
Ainda em fúria?
Matou-me à fome e à sede
E não vê
Que me mantenho aqui de pé:
Não sou o ego de meus aprestos,
Sou o eu que opera os gestos
E modela o mundo,
Não aquilo que por aí fora de mim inundo.
Sou o autor
Da obra,
Ela é o que de mim sobra.
Sou o criador,
Não a criatura que me desdobra.
Contas
Quando contas uma novidade
A alguém,
Donde te provém
A alegria que te invade?
Sejam boas novas ou más,
Teu ego incha o peito,
Que, deste jeito,
Tu mais saberás,
De momento,
Que o outro elemento.
Sinto-me um nadinha superior
E tanto mais quão mais alto o outro for.
A coscuvilhice
Tem isto de sandice,
E então se for negativa
Implica a moral superioridade
Que, altiva,
A mim me motiva
Contra doutrem a negatividade.
Ele não merece
Mais consideração...
- Meu ego cresce, cresce
E eu, enquanto eu, findo rasteirinho ao chão.
Sabe
Quando alguém tem mais,
Mais sabe de verdade
Ou tem mais capacidade
Do que eu com meus bornais,
Finda o ego ameaçado,
Sente-se menos,
De identidade truncado,
Com haveres muito pequenos.
Tenta-se restabelecer
Diminuindo, criticando,
Depreciando
O valor que outrem tiver,
O saber
Ou a capacidade
De qualquer individualidade.
Se não pode competir,
Tenta então sobressair
A outrem se aliando
Quando
Para os mais ele for importante:
É da importância dele comparticipante.
O ego é sempre mesquinho,
Serve vinagre e nunca vinho.
Só dele liberto, o eu
Nos trará o azul do céu.
Definir
Alguém se definir por pensamento,
Para além de disfarce
De momento,
É limitar-se.
Nenhum conceito,
Por mais ínfima que seja a realidade,
Presta à realidade o preito
Da totalidade.
É sempre uma abstracção
Que um cadáver do real nos deixa à mão.
Para além do facto
De ser mental representação
Que do corpo vivo ao impacto
É traição.
Jovens
Muitos dos jovens recusam
Os papéis padronizados
Que acusam
De os deixarem truncados.
O velho mundo enfrentam
E o novo acalentam.
Por pouco
Que fermentem de nosso mundo louco,
É sempre um passo em frente na cura
Da loucura.
De cada geração a nova aurora
Amanhece no mundo antes uma hora.
Insanidade
A insanidade do sistema social,
Quando em vez de vida traz morte,
Evidencia, desta sorte,
Que pendores tem de letal.
Por aqui convida,
De vez,
A ordem estebelecida,
À sensatez:
A reinventar a vida.
Relaciono
Não sou eu que me relaciono com alguém,
Mas a imagem que tenho de mim
Que jogo à procura da que doutrem me vem
E ele, correspondendo por fim,
Não é ele deveras, mas dele a imagem que tem
A responder à que tiver de mim.
O meu eu e o eu dele
Nunca se encontram, portanto.
Quem penso que sou é que o eu impele
E eu, por trás, fico ao canto.
O mesmo com ele ocorre,
A imagem de si é que até mim discorre.
Ele, por trás,
É quem o faz.
Se nos identificamos
Com isto que trocamos,
Mero medianeiro daquilo que somos,
Um ao outro nos enganamos:
Eu e ele somos outros e mais
Que aqueles pomos,
Que as atitudes ocasionais,
As posições ou as posturas:
Somos quem cose e descose todas estas costuras.
É verdade que nunca deveras nos unificamos,
Mas através da partilha
Um ao outro nos apontamos
Entrevistos por detrás da maravilha.
Relações
Nas relações das pessoas
As pessoas vivem ausentes,
Perdidas nos personagens presentes
No palco das loas,
Nas partilhas prementes
Das broas.
As identidades delas
São ficções.
Quando espreitas às janelas
O palco esvaziado,
Não há deveras relações,
Cada eu finda no personagem aprisionado.
Leva ao conflito o vazio,
De tanto frio.
Jogo
O jogo da vida se desenrola
No instante presente,
Nenhum outro campo da bola
O consente.
Feita a paz com o momento,
Escolher poderei qual o tento.
Melhor: a vida, assim,
Poderá rematá-lo através de mim.
Tal arte de viver, em seguida,
Revela o segredo da felicidade
Que me invade:
- Ser uno com a vida,
Neste transitório agora
Que por aqui nunca demora.
No fim,
Não sou eu que vivo a vida
De mim saída,
Ela é que me vive a mim.
A vida é a bailarina
E eu, a dança, do mundo a cada esquina.
Disfunção
Todo o ego é patológico, faz doer,
Disfunção que só o próprio quer
E mais ninguém.
Quando doença mental advém,
É tão vincada
Que para todos é certeza revelada.
Para todos menos para essa
Desgraça de pessoa
Que, à toa,
Dela padeça.
Minta
Há quem minta ocasionalmente,
A parecer mais importante,
Especial,
A melhorar a imagem perante toda a gente,
Inventando conhecidos famosos vida adiante,
Grandes feitos em geral,
Capacidades ignotas,
Bens materiais de oníricas rotas,
Seja o que for que o ego entenda usar
Para se identificar.
O vazio do ego a querer ser e ter mais
Leva ao mentiroso compulsivo.
O que conta de si, dele a história e sinais
É imaginação
Ao vivo,
Fictícia construção
Dum ego a fugir ao terror
Fingindo ser superior.
Auto-imagem imponente,
Exagerada,
Engana muitos ocasionalmente
Mas finda em breve desmascarada:
Para todos, em geral,
É da mente
Doente
Neblina matinal.
Busca
A esquizofrenia,
A paranóia
É o fim da via
Dum ego em busca de bóia.
História fictícia
Pela mente
Inventada
Para, com esta blandícia,
Compreender o medo persistente
Duma assentada.
Crença de que alguém ou toda a gente
Conspira
Constantemente,
Tendo-me em mira
Para me controlar
E matar.
História com consistência e lógica inerente
Para levar outrem a acreditar.
Há organizações e nações inteiras
Com crenças paranóicas nas leiras.
O medo do ego desconfia
Dos mais que encontrar ao correr da via,
Sublinha a diferença,
Salienta as falhas,
Destas lavra a sentença
Da identidade deles nas podres calhas,
Transmuda os outros, com tais enganos,
Em monstros desumanos.
Dos outros o ego precisa
Mas tergiversa no dilema
De os adorar e temer,
De tal guisa
Que nunca terá sistema
De a contradição resolver.
Os outros são o inferno
É do ego o lema
Eterno.
Todos os por ele dominados
Vivem o inferno nalguma medida:
Os demais assim interpretados
Germinam-lhes os problemas da vida.
O ego é sempre incapaz
De ver isso:
O outro é que todo o mal faz
E faz gorar qualquer compromisso.
Centro
Todo o ego há crido
Que pelos outros é espiado,
Ameaçado
E perseguido.
Tanto mais sente, perverso,
Que é o centro do Universo:
Tudo em redor dele gira,
É deveras importante,
Alvo imaginário da mira
De tantos, pela vida adiante.
Sentir-se a vítima
De tantos enganada
Torna legítima
A auto-imagem edulcorada.
Na história
Ilusória,
Tanto de vítima tem papel
Como de herói potencial
Que salva o mundo a granel
Ou derrota as forças do mal.
A alucinação é o ponto de chegada
De qualquer vestígio de ego na peugada.
Colectivo
O ego colectivo de tribos e nações,
Religiosas organizações
É também a paranóia
De nós contra os outros, os maus,
Tomada pela jóia
Que justifica lapidá-los a calhaus.
É a origem da maior parte do dano
Do sofrimento humano.
A Inquisição a queimar na fogueira,
As duas guerras mundiais,
As purgas de cada ditadura matreira,
A guerra fria a espezinhar rivais,
Conflitos sem fim
Do Médio Oriente e outros assim
- São a história da humanidade
Quando a paranóia colectiva a invade.
Inconscientes
Quanto mais inconscientes do ego
Nações, grupos, indivíduos ou eu,
Mais se apegam e me apego
Ao golpe físico sandeu.
A violência é a primitiva
Tara de o ego se afirmar,
A provar
Que anda certo e o outro errado,
Sem esquiva
Nem comum tratado.
A discussão facilmente
Leva à violência,
Cuja ausência
Se pretendia
Do diálogo pela via
Assente.
Dois exprimem opiniões
Que divergem entre si.
Como cada um se identifica com as próprias razões,
Aniquilam-se mutuamente logo ali:
Andam a defender a própria identidade,
Não o erro nem a verdade.
Se identidade e mente se fundirem,
Defendo minha sobrevivência
Contra os que divergirem:
É no que culmina a minha inconsciência.
Torno-me turbulento,
Nervoso, zangado,
Defensivo,
Agressivo...
Terei de ganhar naquele momento
Ou findarei aniquilado.
E é tudo uma ilusão.
O ego ignora
Que a mental posição
E tudo o mais em que a interioridade labora,
(A emoção,
A utopia que da lonjura me namora,
Os laços e os afectos,
Os projectos...)
- Tudo, seja o que for,
O ego ignora que não sou eu,
Eu, o único gestor,
Dentro e fora de mim,
De tudo o que ocorre e ocorreu
Do princípio ao fim.
O ego confunde o eu
E a obra:
Para ele “Os Lusíadas” são Camões,
Nem repara que Camões morreu,
Da era de quinhentos aos baldões,
E “Os Lusíadas” são dele uma sobra.
Óptimo
Quem é óptimo no que fizer
Pode ver-se livre do ego
Num emprego
Qualquer.
O labor trepa de laboral
A prática espiritual:
Ele vive integralmente presente
Em quanto opera.
Retorna, porventura, ao inconsciente
No resto da vida mera?
A presença de si ao mundo
Vive confinada então
A um recanto fecundo,
Com o Todo em comunhão.
Educadores, artistas,
Enfermeiros,
Médicos, cientistas,
Assistentes, criados, cabeleireiros,
Comerciantes, vendedores...
- Quantos, sem pretenderem defender a identidade,
Se entregam, empreendedores,
Ao momento que os invade,
Integralmente
No que exigir deles o presente:
Unos com o agora,
Uno cada um com o que labora,
Unos com a freima que executam,
Unos com aqueles para quem labutam!
Influem tanto sobre os mais
Que ultrapassam o papel que desempenham:
Os egos enfraquecem em todos os canais
Que ao encontro lhes venham.
Até os egos mais fortes
Desatam a relaxar,
Baixam a guarda nas ameias dos fortes
E os papéis egóicos abandonam a par.
Se opero sem ego,
Tendo a ser incrivelmente bem sucedido
Naquilo a que me entrego
Inteiramente envolvido.
Em harmonia com o que opero,
Quando com o agir me fundo,
Erijo e libero
Um novo mundo.
Sabotar
Há quem,
Tecnicamente do melhor,
Tenha um ego que lhe vem
Sabotar, permanente, o labor.
Parte da atenção
É do trabalho,
Outra parte tem-no à mão
E leiloa-o a retalho:
Exige o reconhecimento,
Esbanja a energia
Com ressentimento,
Se não atingir cada dia
O suficiente:
É o que, perdido em tal dança,
Obviamente,
Nunca alcança.
Pior: existe alguém
Que mais reconhecimento que eu obtém?
Ou mais lucro? Ou mais poder?...
O trabalho, assim,
É um meio qualquer
Para
atingir um fim.
O labor, quando isto o persuade,
Não pode adquirir grande qualidade.
Quando há dificuldades, obstáculos,
Nada corre como era de esperar,
Os mais ou a conjuntura não se prestam a colaborar,
- Tombam os egos dos pináculos:
Em vez de corresponderem ao presente,
Unos com o que advém,
Reagem contra permanentemente,
Separando-se de tudo, sem ir mais além.
Sente-se cada um individualmente ofendido
Ou magoado,
Em queixume ou ira o vigor é consumido,
Desbaratado,
Quando poderia ter resolvido
O impasse criado,
Não fora ter sido
Pelo ego envolvido
Indevidamente desviado.
Esta oposição,
Ainda por cima, cria
Novos obstáculos na via
Em questão.
Há muito quem seja, através das eras,
O pior inimigo de si próprio deveras.
Prejudico
Prejudico o meu trabalho
A outrem ao recusar
A mão
Dar
Ou a informação,
Mesmo até do que valho
Ou não,
Ou ainda ao enfraquecê-lo, insidioso,
Não vá ser mais bem sucedido
Ou mais crédito obter
Do que eu,
Quebrando-me o gozo
De ter o píncaro atingido
Que eu quiser,
O meu privativo céu.
A entreajuda é contra o ego,
A não ser que algum interesse escondido,
Dele para o sossego,
Ali haja por baixo de mão diluído.
O ego nunca entende
Que, quanto mais outrem incluo,
Mais mundo além alegremente fluo
E mais tudo rende,
Após,
Mais ligeiramente vindo até nós.
Quando a ajuda é pouca ou nenhuma
E obstáculos erguemos nos caminhos,
A mão que o Universo, pela vida, nos dá, em suma,
É uma coroa de espinhos:
É que cortámos deste modo
A união ao Todo.
O ego sente que não tem
E não é o suficiente.
Daí que o êxito de alguém
O sinta como se lhe fora roubado.
De repente,
É a sua chaga do lado.
Nunca descobre
Que o ressentimento contra o êxito de alguém
Reduz a hipótese que nos sobre
De termos êxito também:
Para atrair a boa sorte
É de acolhê-la onde quer que a vejamos,
A fim de que sejamos
Dela finalmente algum dia o transporte.
Difícil
Como é difícil viver comigo mesmo,
O ego foge ao insatisfatório da individualidade
Reforçando a identidade
Com qualquer grupo a esmo:
Nação, partido, empresa,
Instituição, clube, seita,
Gangue, equipa – o que quer que ele preza
E, desta feita,
Não há mais nenhum eu definido
Em nenhum outro sentido.
Cada um por inteiro se dissolve
Na imagem fictícia de que se envolve
E nunca dá conta da mentira
Com que nisto delira.
É de si próprio o alheamento mais rasteiro:
Ali de ninguém deveras me abeiro
E, tendo porventura alguém em mira,
De ninguém me inteiro.
Arquiva
Um ego que é colectivo
É tal e qual
Um ego pessoal
No que arquiva no arquivo:
Cria relações conflituosas,
Tem de ter inimigos,
Quer ter mais e soma grosas,
Quer ser mais lá nos pascigos,
Tem de estar certo e os mais, errados,
Não pára e só tem actos falhados,
De satisfeito a vida nunca
As pegadas lhe junca...
Entra em conflito,
Ego colectivo contra ego colectivo,
Em incônscio rito,
Pois apenas a oposição responde ao motivo
De lhe definir o limite,
A própria identidade, conforme lhe palpite.
E aí vem o sofrimento
Que o colectivo então sofre,
Em lugar do prometido cofre
De todo o linimento.
Talvez agora despertem
E entendam, nesta altura,
Que o colectivo sob que se acobertem
Tem, afinal, um grave pendor de loucura.
Despertar
É penoso despertar de repente
E verificar que o colectivo
Com que me identifiquei,
Para que trabalhei,
É uma loucura presente
Em mim ao vivo.
Alguns devêm cínicos, azedos
E negam doravante quaisquer credos.
Adoptaram rapidamente
Outra rede de crenças,
A de a toda e qualquer negar avenças,
Quando a anterior como ilusória
Tombou arruinada.
Nem reparam do próprio ego na vitória
Ali consumada:
Não lhe enfrentaram a morte no ovo
Fugiram e incarnaram-no num novo.
Em lugar de se identificarem com qualquer
Postura,
Era consigo próprios que é quem as cria,
Pode remover
E transfigura,
Dia a dia,
O eu sem imagem,
O sujeito energia
De toda a viagem.
Moles
O ego colectivo habitualmente,
Mais do que cada indivíduo que o constitui
É inconsciente
E como inconsciente flui.
As multidões,
Moles egóicas temporárias,
Podem cometer atrocidades várias
Que os corações
De cada um individualmente
Nunca cometeriam, ao ir em frente.
As nações comportam-se dum modo
Que, num indivíduo qualquer,
Seria diagnosticado, sem dúvida sequer,
Como psicopático de todo.
Tantas vezes
Que mais não somos que de rebanho reses.
Grupos
Quando a consciência de si emergiu,
Se distinguiu
De quanto vida além protagoniza,
Por onde perpassa
E através do qual o Infindo visa,
Sempre além de quanto enlaça,
- Logo se impeliu
A criar grupos que seguem o mesmo desvio.
Não serão egos colectivos
Enquanto fiéis a tais motivos,
Não se identificam
Com nada nem com isto em que palpitam.
Não procuram nenhuma forma então
Para definirem quem são.
O alerta, porém,
Tem
De ser permanente,
O ego tenta assumir o controlo
Infatigavelmente,
Colando cada um ao bolo
Que cozinhar
Para partilhar
De presente.
Transcender o ego humano
É do grupo o vital fito,
Identificando-o em qualquer engano,
Em qualquer quesito.
Só trazendo-o à consciência
O mato, com a transcendência
Evidente do eu em mim,
A identidade sem identidade,
A minha radical verdade
Na fundura sem fim.
O colectivo egóico atrai
Para a inconsciência e o sofrimento.
O colectivo lúcido vai
Amassar o fermento
Que acelera a vária
Muda para a festa planetária.
Nasce
O ego nasce da divisão
De mim em duas partes:
Uma, a do eu, intérmina impulsão
Que tudo opera e interliga em união;
Outra, a do ego, que me identifica
Erroneamente
Com tudo a que aquele se aplica,
Os produtos de que o eu foi semente.
E aqui aprisiona
O eu que apenas lá viera à tona.
O ego é esquizofrenia
Da dupla personalidade
Que da vida invade
A via.
Vivo de mim com a imagem mental,
Identidade conceptual
Com que, sem nenhum abono,
Afinal me relaciono.
A própria vida
É concebida
Separada
De quem sou
Quando apontada
Como a minha, onde estou,
Por onde vou,
Aperreado entre as baias
Que me dou,
Ao submeter-me dela às aias.
Quando digo a minha vida,
Entrei no reino da ilusão:
Duas realidades serão
Eu mais ela, em seguida.
Se creio ser ela,
Então,
Irei perder-me ao perdê-la:
A morte é o fim sumário
De meu tesoiro imaginário.
A morte seria uma ameaça,
Quando, afinal, é uma realidade aparente:
Tudo, na verdade, passa,
Mas eu passo por tudo, ao transitório indiferente.
No ego fragmento
A vida
Mas cada segmento,
De qualquer sorte,
Não tem realidade nenhuma
No corte
Que assuma.
A noção
De “minha vida” é uma ilusão.
Ali me apego
De mim comigo à separação:
Aí é que caio no pego
Do meu ego,
Aí é que me perco de meu chão.
Vivo
Se eu e a vida somos dois,
Então vivo separado
Das coisas, dos seres, das pessoas...
Como poderei depois
Ser eu nalgum traslado,
Se de mim, vida, nada ecoas?
Como viver
Separado de ser?
Não há uma “minha vida”,
Que vida não tenho:
Eu sou a vida que devenho,
Um só com ela, dos anos na avenida.
Com ela unido,
Jamais unificado,
Muito menos confundido,
Eu sou a vida em todo o lado
E nela animo a perene festa de gala,
Por jamais me esgotar
Em nenhum empreendido patamar,
Indefinidamente a ultrapassá-la.
Longe de ser dela o ego prisioneiro,
Eu sou o libertário de todo o píncaro cimeiro.
Hábito
Podemos aprender a quebrar
O hábito de acumular
Emoções antigas,
Voando do passado,
Enterrando-lhe no esquecimento as brigas,
O crivo da memória cada dia mais peneirado,
Voltando a focar a atenção
Continuamente
No instante presente,
Com inteiro coração,
De mim com meu imo radical,
Meu eu primitivo, intemporal.
Em lugar de ficar ao filme preso
Dum passado mentalmente leso.
Aí, eu presente, agindo,
Sou minha vera identidade,
Não qualquer pensamento interiormente poluindo,
Qualquer emoção estrangeira que me invade.
Nada
Nada outrora
Ocorrido
Pode lograr ter-me impedido
De estar presente agora.
Por muito que a emoção
Arredia
Me tenha à mão,
Ao correr do dia.
Sou eu quem manda,
Não o que, dum passado qualquer a mando,
Nos anda
A furtar o comando.
Nada de antanho me pode impedir
De estar presente agora,
Inteiro aqui a agir.
Que poder, pois, naquilo mora?
Criança
A criança a emoção negativa
Sente como em demasia avassaladora.
Leva a que a não viva,
Tentando-lhe uma esquiva,
Ao fugir
A toda a hora
Para a não sentir.
Em muito adulto
Esta criança continua,
Num estulto
Modo de fugir ao que actua
Na dolorida
Vida
Da rua.
A dor, sem ser reconhecida,
Por dentro continua
E vai aflorando, ao correr dos anos, travestida
De ansiedade, ira, violenta explosão,
Doença, má disposição...
Interfere e prejudica
Qualquer relação íntima com que implica.
Todos transportamos ao colo
O miolo
Da criança ferida que fomos antigamente.
Crescemos
Fatalmente
No mundo em que vivemos.
E o mundo é mesmo inconsciente.
Incarnado
O corpo de dor individual
Quantas vezes é o colectivo
Incarnado no pessoal!
A História é o arquivo
De guerras tribais, escravatura,
Pilhagens, violações, tortura
Violência...
Permanente e global demência
Sem motivo.
Esta dor mantém-se viva
Na mentalidade colectiva,
Diariamente alimentada
Por permanentes conflitos mundiais
E dramas interpessoais,
Jornada a jornada.
É tão antigo
E permanente
Que, provavelmente,
Já fará parte de nosso umbigo.
Carrego
Em muita gente
O corpo de dor é latente.
Ignoro então
Facilmente
Que carrego em mim tal vulcão
Adormecido,
Em nuvem escura envolvido.
Pode aí ficar
Um dia, um mês, anos inteiros...
E eu sem por nada dar
Nos meus viveiros...
Até ser ele acordado
E desencadeado
Pelo vento
Inesperado
De algum evento.
Aí expludo
E, não o vendo,
Nada de mim entendo,
Amiúdo.
Mau
Porque não parar de vez
O mau pensar?
Meu corpo de dor vive através
De mim,
Por mim próprio a fazer-se passar:
Pôr-lhe fim é pôr-me fim,
Enquanto o acreditar.
Pior:
A bem ver,
Para o corpo de dor
A dor é prazer.
Ele devora, voraz,
Cada convicção dolorosa
Que muito deveras o satisfaz.
E como goza!
Entre a dor
E o pensamento
Forma-se um círculo vicioso
De fervor
E tormento.
Mutuamente os coso
No mútuo alimento:
Pensamento gera dor
E dor gera pensamento.
Se em mim isto é o que integro,
Findo todo negro.
Inteiro
Meu corpo de dor,
Uma vez por inteiro reabastecido
(Já gritei,
Explodi,
Bati,
Desabafei...),
Torna a se repor
No estado latente escondido.
Para trás larga um organismo sem cor,
Esgotado,
Magoado,
Ferido,
Condenado à sentença
De qualquer doença.
Meu corpo de dor é, afinal,
Mais que importuna visita,
O meu mental
Parasita.
Tentar
Se com outrem viver,
Meu corpo de dor irá tentar provocá-lo,
Ao cônjuge ou outro íntimo qualquer,
Espicaçá-lo,
Para se alimentar melhor
No drama posterior.
Adoram os corpos de dor
Os íntimos e famílias:
Deles extraem seu maior
Alimento de quezílias.
É difícil resistir
Doutrem ao corpo de dor
Se, determinado, persistir
Em levar a reagir
Seja lá quem for.
Descobre facilmente o ponto vulnerável
E, se mal sucedido à primeira vez,
Repetirá, infatigável,
Até ultrapassar o revés.
Doutrem o corpo de dor
Quer despertar o nosso
A fim de cada um se pôr,
Mutuamente,
A alimentar, da dor com o osso,
O outro, daí para a frente.
Embriaguez
A embriaguez activa
O corpo de dor do embriagado,
Muda-lhe a personalidade numa agressiva
E esta é que finda com tudo controlado.
Radicalmente inconsciente,
Reabastece o corpo de dor habitualmente
Pela violência
E os sarilhos
Contra cônjuge e filhos
E ele próprio, porém, prima pela ausência.
Uma vez sóbrio, logo se arrepende,
Trejura
Que jamais repetirá.
A intenção é pura
No que dele depende,
Não conta é com o ego que explodir por acolá.
Quem fala e promete
Não é quem violenta,
Estoutro logo lhe tira o tapete
E tudo se repete
Deste ao mandado,
Contra o que o outro, vero eu, tenta,
Mísero malogrado.
Até que este eu devenha presente
Ao ego viciado
E dependente
E se lhe imponha
Com a força medonha
Requerida
Para não ir outra vez de vencida.
De modo a nunca mais se deixar
Com tal ego identificar.
Qualquer
Qualquer corpo de dor quer
Ambos atingir:
Sofrer
E dor infligir.
Perpetrador
Ou vítima,
É uma figura sempre ilegítima,
Em nosso mundo interior.
Em qualquer caso
Sempre se alimenta
Da violência física ou emocional do que, ao acaso,
Vida fora tenta.
Alguns casais apaixonados
São deveras atraídos
De seus corpos de dor pelos traslados
Complementarmente fundidos.
Encaixa o sádico no masoquista,
Na perfeição, à primeira vista.
Tal casal em estado de graça,
No foro interno,
Não passa
Dum inferno.
Gato
Como o gato adormecido,
Sempre atento,
Logo arrebita o ouvido
Ao assobio do vento
Nem sequer por mim pressentido,
O corpo de dor latente,
Igualmente.
Morrão
Das cinzas debaixo,
Logo entra em acção
Mal o estímulo adequado
Lhe encaixo,
Inesperado.
E me domina
Se, distraído,
Lhe não leio a derradeira sina,
Sob meu mando mantido
E destruído.
Nunca
Muita gente
Carrega
Um corpo de dor tão potente
Que nunca adrega
De o ter latente.
Podem sorrir e falar
Educadamente,
Que logo lhes irei sentir a fervilhar
A infelicidade presente
Sob a translúcida capa,
À espera do adequado evento
Para, à socapa,
Voar ao vento.
Aguardam o próximo indivíduo
Para culpar
Ou confrontar,
O próximo nada erguido
Com solenidade
Para lhes causar
Infelicidade.
Deles o corpo de dor é um insatisfeito,
Tem sempre fome:
Finda atreito
A que cada um, em redor, por inimigo tome.
Vive
Para quem vive da dor,
A questão irrelevante
Fica desproporcionada num instante,
Os demais ao próprio drama ao sotopor.
Envolvem-se em banais
Inúteis tempestades judiciais
Contra indivíduos e organizações,
Fatais
Responsáveis por todos os tufões.
São consumidos por ódio obsessivo
Por um ex-cônjuge ou companheiro,
De cujo motivo
Nunca me inteiro.
Incônscios da dor que carregam,
Ao evento ou conjuntura
A entregam,
Seja qual for deles a figura.
Nunca distinguem entre acontecimento e resposta:
A infelicidade provém do exterior,
Da eventualidade ali posta,
Seja lá qual for.
Alheios ao próprio interior,
Nem irão saber
Sequer
Que, perdidos das raízes,
Vivem radicalmente infelizes,
Perenemente a sofrer.
Prol
Por vezes são activistas
Em prol de nobres causas
Os que do sofrimento cultivam listas
Sem pausas.
Poderão ter vitórias iniciais
No trabalho.
Da negatividade o malho,
Porém, tem energias tais
Que devém urgente a busca inconsciente
De inimigos,
De gerar conflitos.
Cresce a oposição, com atritos
Dentro até dos próprios abrigos.
Onde quer que estejam inventam razões
De sentir-se mal.
Encontram, pois, o que procuram, ao menor sinal
Dos respectivos pendões.
Suprimido
Suprimido o princípio feminino
Há milhares de anos,
O ego traçou-nos o destino,
Mais e mais dele ao engano
Clandestino
E ao dano.
Identificamo-nos mais e mais com as obras,
Sem discernirmos que são de cada eu as sobras.
A mulher tem ego.
Porém, mais unida à raiz,
Ao corpo que lhe impõe o mistério da matriz,
Tem menos apego
À mente,
No homem prevalente.
Mais atenta à interioridade,
À inteligência do organismo,
Desperta a intuitiva faculdade
Na sondagem do íntimo abismo.
Aquilo a que dá forma vida além
É menos rígido e compactado,
Permitindo a abertura que convém
Às demais formas de vida, no estendal,
Por todo o lado,
Do mundo natural.
Mais rápida intui o eu
Em tudo o que houver de seu.
Civilizações
Nas civilizações antigas,
As mulheres eram respeitadas
(Sumérios, Egípcios, Celtas...),
Não por serem esbeltas
Quando de amor as lobrigas,
Mas por serem sagradas.
Que é que faz o homem sentir-se
Pela mulher ameaçado?
O ego dele, mais e mais a exibir-se
Por todo o lado.
O ego via
Que só deteria
Controlo total
Através da forma masculina.
Para o conseguir, no final,
Pelo mundo fora determina
Confiscar todo o poder
À mulher.
E eis-nos aqui chegados,
Do ego planetariamente dominados.
Qualquer vislumbre do eu,
Só indo contra a maré
Alguém o porá de pé
E, mesmo assim, apodado de sandeu.
Dominou
Através dos milénios,
O ego dominou o homem e a mulher,
Nos convénios
Dos modos de ser.
Menos a ela, porém,
Que, por via mais profunda,
Com o eu dela fecunda
O mundo que aí vem.
Nunca dela o eu criador muito se identifica
Com o ego criado que para trás lhe fica.
Suprimido
Suprimido o feminino
Até por muita mulher,
É vivido como outro destino
Qualquer.
Para muitas é uma sacral
Dor emocional.
Delas integra o corpo de dor
Como a dor acumulada
De partos, violações, escravatura,
Assassinatos, tortura,
História além perene penhor
Da humana estrada.
Quando com isto se identifica,
Eis como o ego a cada uma se aplica.
E como pelo caminho se perdeu
Seu íntimo eu.
Entregou-se-Te
O corpo
Hirto:
É um morto.
Entregou-se-Te em corpo e espírito.
Na vida aqui
É como um aborto
Que arquivo.
Em Ti
Um meio-morto
Finalmente é Vivo!
Descubro
De meu corpo de dor a libertação
Principia
Quando descubro que tenho em acção
Um corpo de dor que como sendo eu próprio se anuncia,
A ilusão
Com que inconsciente me identifico cada dia.
Depois retomo a faculdade
De estar aqui presente e agora alerta,
A dar conta do manancial de negatividade,
A escorrer doridas emoções, torneira aberta
Em mim ao vivo
Quando activo.
Uma vez reconhecido,
O corpo de dor já se não logra passar por mim,
Nem vivo permanecer
Por mim mantido
Assim,
A se fortalecer
Através de minhas pegadas
No trilho das jornadas.
Quebro
Aqui presente,
Consciente,
É que a meu corpo de dor então
Quebro a minha identificação.
Não identificado com ele,
Deixa ele de me conseguir
Controlar a mente, a seguir.
Nunca mais se impele
Com o alimento
Do meu pensamento.
Vai murchando
Lento e lento,
Perdendo a energia,
Que o não ando
A adubar dia a dia.
Minha mente
Já não é ensombrada por emoções,
As percepções
Do presente
Já não são distorcidas
Pelas outrora sofridas.
A energia
Presa ao corpo de dor
Liberta-se da desviada tranvia,
Transmuda-se em mim,
Por fim,
Senhor
De meu mundo interior
E de quanto, por esta via,
No mundo em redor
Reordeno e reunifico cada dia.
Doravante alimenta
Minha consciência atenta.
Quantas vezes o mais sábio, o mais iluminado
É quem se libertou
Dum corpo de dor imenso que o maltratou
Do outro lado!
Cruzo
O nosso geral
Estado emocional
Nunca pode por inteiro
Ser escondido
De cada parceiro
Com que, mais ou menos destemido,
Me cruzo na avenida
Da vida.
Emano em redor
O meu tónus interior
E todos, da consciência ao nível subliminar,
Mesmo sem querer,
O irão captar,
O irão absorver.
Poderão nem o sentir,
Mas o modo de reagir
Vai dali proceder.
Desencadeia afectos,
Alimenta sentimentos
E de cada um os projectos
Vivem de tais elementos.
Depois a palavra
E os papéis a desempenhar
Tomam conta da lavra
A gradar
E a mente
Devém o centro da gente.
Continua tudo,
A nível inconsciente,
A ser sentido, contudo,
E a inclinar para a ladeira correspondente.
Apercebemos
Quando nos apercebemos, de repente,
De que o corpo de dor
Mais dor busca, inconsciente,
Algo de mau, insistente,
A nos propor,
Compreendemos quanto condutor
Se mata por acidente.
Se dois,
Com corpos de dor activos,
Se encontram num cruzamento,
Têm, pois,
Todos os motivos
Para o mútuo abalroamento.
Inconscientemente,
Do ego aquela peça
Insiste, persistente,
Em que o acidente aconteça.
O ego da fúria ao volante
Devém violento
Por qualquer nada que o pique, irrelevante,
Basta
O outro ser lento,
Ou outro nada de igual casta.
Temporariamente
Muita violência
É de indivíduos normais
Temporariamente com demência,
A maníacos iguais.
Nos tribunais:
“Esta atitude não é tipicamente
De meu cliente.”
E o réu:
“Não sei que é que me deu...”
Ninguém informa o juiz:
O corpo de dor estava nele activo,
Ele não sabia, de raiz,
Nem o que estava a fazer,
Nem o motivo.
Na verdade não foi ele que agiu,
Como quenquer,
Foi, na sua pele,
O corpo de dor por ele.
Dominados
Dominados pelo corpo de dor,
Não somos responsáveis pelo que faremos?
Responsável é o ego demolidor,
Não o eu que por trás dele seremos,
Escravo daquele senhor,
O senhor dos íntimos demos.
Temos, porém, o dever
De ser conscientes.
Quem não evoluir deverá sofrer
A consequência,
Entrementes,
Da própria inconsciência:
Não vive em sintonia,
Adverso,
Com o ímpeto evolutivo da magia
Do Universo.
Inconsciência
A inconsciência humana
E o sofrimento
Que dela dimana
Estão em sintonia
Da evolução cósmica com o momento
Que brandamente nos guia,
Quando incapaz de suportar
O tormento,
Principio a despertar.
Meu ego em corpo de dor
Tem, pois, lugar
No plano abrangente
Que o Universo me anda a propor
A vida inteira, insistentemente.
A ver se, com o aviso,
Ganho juízo.
Forte
Quem tem um corpo de dor
Forte e activo
Com que se identifica
Emana em redor
Um sofrimento subtil, esquivo,
E tão desagradável fica
Que todos a fugir
Desatam a seguir.
Mesmo sem saberem porquê
Até o ar sabe ao ego que é.
Uns sentem-se atacados,
Outros agridem.
Por mais esforços que envidem,
Não são, porém, em regra, reconfortados:
Os actos, por igual mal envolvidos,
Por seu próprio corpo de dor são remetidos.
Encontram-se então no mesmo inferno irmanados,
Não há portões escondidos
Por onde os presos sejam resgatados.
Atrai
Quem a vida vive aos gritos
Atrai conflitos.
Só com uma forte presença agora aqui
Alguém não irá reagir
Ao que vier dali,
Consigo a bulir.
Por vezes a mera presença
Torna outrem capaz de deixar
De se identificar
Com o corpo de dor que incensa
E principia a despertar.
Pode durar pouco
Mas a semente do sábio desatou a germinar
No louco.
Confidencia
Quando alguém
Me confidencia a dor que tem,
Confundido com o sofrimento,
É de ouvi-lo atento,
Por inteiro presente a ele,
Sem reagir ao que o impele,
Sem lhe alimentar
Mais emoções à flor da pele
Deste ego que o dominar.
De repente
Poderá descobrir-se distinto da dor que sente.
Bem mais poderoso
É estar presente
Que quanto puder
Dizer ou fazer:
Aí é que meu eu ao dele coso.
Fica de fora
Toda a dor que nele mora.
E que, porque o domina,
A vida lhe determina.
Raio
De repente há um vislumbre
E o raio de luz passou,
Mas o que entremostrou
Bastou a que me deslumbre.
Assim na natureza
Como no íntimo que a gente preza.
Todo o entulho da cabeça
Por um instante afastado,
O mecanismo da mente parado
Quando na luz tropeça,
As emoções por ele teleguiadas
Todas paralisadas,
Surge uma amplidão interior
Nunca entrevista,
Antes ocupada das ideias pelo fragor,
De emoções à lista.
Disponível salão pejado de potencial
Eis-me eu aí, o manancial.
Entende
A mente
Não me entende, Eu presente.
Interpreta-me mal,
Como insensível, distante,
Sem compaixão,
Sem implementar nenhuma ligação...
Quando, afinal,
Só me não ligo ao que aparece diante:
Não ao pensamento e emoção,
Mas ao mais profundo
Onde radicarão.
Aí me fundo,
Aí vasculho,
A fim de dar rumo
Ao oiro e à lama daquele entulho,
A calcetar os trilhos secretos do aprumo
Do píncaro sumo.
Daí, informe,
É que dou forma a tudo,
Conforme
O eu informe de todos os mais,
A que como um só, uno, me grudo,
No amor dos amores universais.
Atenção, compaixão?
Naquilo, não!
Aqui é que lhes incarno os verdadeiros sinais.
Requer
Meu corpo de dor
Requer de mim a inconsciência,
Tal se ele fora eu.
Não tolera o fulgor,
Em consequência,
Da presença de mim.
Assim,
É dono meu.
Até ao momento
Em que diante dele me apresento:
Quando dele me distingo,
Como ego mingo
E, pelo menos de momento,
Como um eu vingo.
Crescer
Se uma criança crescer num ambiente
Em que o dinheiro
É o drama e o conflito recorrente
De cada parceiro,
Absorve o medo dos pais
Que irá ser desencadeado
Sempre que uma questão monetária der brado,
Ao menor dos sinais.
Preocupada fica
Ou zangada,
Mesmo quando se aplica
A quantias de nada.
Por detrás da preocupação
Ou ira
É de sobrevivência a questão,
Do medo violento de que fugira.
Muitos indivíduos espirituais
Gritam, culpam, acusam
Agentes bancários pessoais,
A pretexto de que dos dinheiros abusam...
O dinheiro pode activar,
Afinal,
O corpo de dor e causar
Inconsciência total.
Abandonado
Quem na infância for negligenciado,
Abandonado pelos progenitores,
Configura um corpo de dor desencadeado
Por qualquer evento que lhe evoque os horrores,
A dor primordial
Do abandono total.
Um amigo que atrasa uns minutos,
Um cônjuge que tarda
Desencadeiam absolutos
Ataques sem guarda.
Se algum o abandonar ou morrer,
A dor é tanta
Que espanta
Não deitar tudo a perder.
Nada natural
Portanto, à conjuntura real.
Ânsia profunda,
Depressão
De longa duração,
Ira obsessiva – tudo abunda,
Da vida o chão
Todo inunda.
Enquanto
O eu não se impuser deste ego ao pranto,
Com a consciência
De que o eu não é tal insolência,
Não resta nem um recanto
De fugir à insolvência.
Miúda
A miúda sexualmente abusada
Cria um corpo de dor
De tal teor
Que, da mulher na madrugada,
Toda a dor é activada
Com o marido
Confundido
Com igual abusador.
Pior,
Atrai-a a relação sado-masoquista
Que na mesma dor invista
E chama-lhe paixão,
Dor com dor em mútua atracção,
A promover o engano.
Tudo dano
Do coração,
Até que os esmague no chão
O desengano.
E acaso acordem,
Que outras madrugadas outra aurora bordem.
Miúdo
O miúdo indesejado
E da mãe abandonado
Vive em ânsias de amor e atenção
E com um ódio entranhado
Por lhe recusar aquilo por que desespera em vão.
Adulto,
Toda a mulher lhe desencadeia
A carência por que pranteia
E logo ele lhe presta culto.
Perito a seduzir,
Quer quando rejeitado,
Quer quando acatado,
A ira contra a mãe, ao ressurgir,
Logo em contramão
Lhe sabota a relação.
Até que se logre distinguir
Do ego de dor que arrasta atrás pelo chão.
Até decidir
Ser ele,
Mais nada nem ninguém dentro da própria pele.
Estímulos
O meu corpo de dor
Que estímulos o activam,
Que eventos ou conjunturas
E com que pendor,
Que indivíduos o motivam,
Que dizem, que fazem, com que juras?...
Uma vez identificados,
Sei o que são
E fico alerta aos ventos desencaminhados
De cada estação.
Vem-me a reacção,
Mas eu, presente,
Calco-a com o tacão,
Não vá crer que me acorrente.
Domino a peça,
Não me domina ela a cabeça.
O saco de dor às costas,
Incapaz de me levar à inconsciência,
Tombo-o no chão pelas congostas,
Eu, aqui presente,
Minha medida de previdência
À medida que eu de vez em mim assente.
Sempre
Sempre que eu estou presente
Quando o corpo de dor surge,
O que mais urge
É furtar-lhe a energia que apresente.
Logo ele foge
E nem sei
Onde clandestino se aloje,
Só que tarde ou cedo o reverei.
Quando estiver menos consciente,
Menos presente,
Com uns copos bebidos,
A ver um filme de bandidos...
Uma irritação,
Uma ansiedade,
Qualquer má emoção
E logo ele há-de
Transpor a porta de entrada,
A pregar-me a bofetada.
Não me poderei dar férias
Que este ladrão
Mas não
Transmude em lérias.
Saco
Do saco de dor que carrego,
Que me identifica à frente e atrás,
Como me despego,
Capaz?
Controla-me a mente,
Distorce o pensamento,
Destrói o relacionamento,
Nuvem escura permanente
Sempre à nossa frente.
Torna-nos inconscientes de nós
Para nos identificarmos inteiramente
Com as emoções e a mente,
Após.
Torna-nos reactivos,
A agir e proferir qualquer barbaridade,
A fim de aumentar, em nós e no mundo, os arquivos
E os motivos
De infelicidade.
Como do antraz
Deste meu dolorido ego
Eficaz
Me despego?
Caos
À medida que a infelicidade cresce,
O caos cresce na vida.
Já o corpo não aguenta o stresse,
A doença, a disfunção
Aparecem de corrida,
De conflito uma situação,
Um drama
Que o saco de minha dor reclama
Para que algo negativo corra
E mais um pouco morra.
E a violência física porque não,
Perpetrada por minha mão?...
De repente, já basta de tanto negro cariz,
Já não conseguimos viver
Com nosso eu a ser
Tão infeliz.
Sandeu,
O corpo de dor faz parte,
Destarte,
Daquele falso eu.
A partir daqui, então, o eu verdadeiro
Querê-lo-ei inteiro.
Dominado
Dominado eu por meu corpo de dor
Sem o reconhecer como tal,
Ei-lo elemento integrador
De meu ego final.
Tudo com que me identifico,
A que me aprisiono,
A meu ego o aplico,
De meu eu o adono.
Meu corpo de dor
É, entre os mais poderosos, um pendor
Com que o ego se vai identificar,
Como do ego irá precisar
Para se poder
Fortalecer.
Esta aliança falha
Quando o corpo de dor é tão violento
Que a mente egóica calha
De ser corroída por tal elemento,
O curto-circuito o ego queima,
Deixando o eu de fora do tira-teima.
- Então poderei protagonizar, liberto,
Por mim gerido, o comportamento certo.
Fardo
Quando o fardo de dor me esmaga,
Poderei atingir o ponto
De sentir que a vida tudo estraga,
Intolerável, e com nada conto.
De raiz
Farto de ser infeliz
Já não consigo
Viver comigo.
A paz interior devém prioridade,
A dor obriga-me a deixar
De me identificar
Da mente com a carga de imaginária realidade,
As emoções que perpetuam
Meu eu infeliz quando me acuam.
Nem minha história infeliz nem minha emoção
Meu eu são.
Eu sou eu,
Elas, o fardo que sobre mim caiu.
Eu sou o conhecedor,
Não o conhecido.
O corpo de dor
Devém então impulsionador,
Em lugar da inconsciência onde me tem metido,
Do meu despertar,
Decisivo factor
Para eu procurar,
No presente
Viver integralmente assente.
Capazes
Quando voltam a cair
Na disfunção do sofrimento,
Muitos são capazes de decidir
Não se identificar com o pensamento
Da emoção
E ingressar na presença
De si a si, no evento
Em questão.
Não irão resistir à dor que se adensa,
Ficam em paz interior,
Unos com o que for
E alerta,
Dentro e fora a imprimir a via certa.
Via com que ninguém se confunde,
Por onde caminhando desperta
Para o mais-além que nele abunde.
Eu
Sou eu que digo e faço,
Por isso
Não me identifico com o que faço e digo.
Ultrapasso
O enguiço
De me pôr disso
Ao abrigo.
Num momento ali presente,
No seguinte desdigo e desfaço:
Eu sou o permanente
Ausente
Do laço.
Se ali momentaneamente me lobrigo,
Verdade é que me não caço,
Por trás do postigo.
Sou outro, diferente e mais
Que tudo o que envio nos meus postais.
E quem me vir,
Se com aquilo me confundir,
Não entendeu ainda nada
Do mistério desafiador da nossa comum jornada.
Libertar-me
Quanto tempo demora
A libertar-me do corpo de dor?
A hora
Depende de quão forte eu for,
Do peso que ele tiver agora,
De quanta decisão
Eu puser em acção.
Quantas vezes a vida inteira estertora,
A sugar-me o calor!
Qualquer, porém, que seja a demora,
Tem pouco valor.
O que importa
É não me identificar eu com ele:
Esta é que foi sempre a porta
De escapar ao inferno que me atropele.
E demora muito
A deixar
De eu com o corpo de dor me identificar?
Não há demora nenhuma:
É instantâneo e gratuito.
Em suma,
Quando ele se activa, esconso e fortuito,
Incônscio me pretendendo,
É só tomar consciência
Da evidência
De que é ele e não eu quem a dor está promovendo.
É quanto basta:
Eu e ele, distintos, já não somos da mesma casta.
Principia a transmutação:
A antiga emoção
Já me não trepa à cabeça,
A dominar o diálogo interno,
A acção
Que então
Encabeça
A interacção com outrem, mesmo o gesto terno...
Não irá conseguir,
Para se fortalecer,
De mim se servir,
Antes finda dali em diante a emurchecer.
A emoção antiga pode vir
A me agredir
Mas eu sei que não sou ela
E sacudo-a da lapela.
Não projectar a antiga emoção
Em qualquer nova situação
É encarar esta de frente
Directamente
No que ela for:
Nenhuma cauda de antanho lhe irei impor.
Por muito que custe,
Não mata: é só da vida o correcto ajuste.
Eu inteiro aqui presente
Aguentá-lo-ei perfeitamente.
A emoção não é o que eu sou,
É mero trilho por onde vou,
Por mais que doa
O que em mim ecoa.
Mero eco, por mais arguto,
Nunca é a mansão onde o escuto.
Errado
Quando meu fardo de dor sentir,
Nada de cuidar
Que algo errado há-de comigo andar
Para tal advir!
Torno-me um problema?
É com que o fardo mais atrema.
Ao invés, ao fardo reconhecê-lo
É acolhê-lo.
O mais torná-lo-ia arredio,
O que o engrossaria, fio a fio.
Acolher é sentir
O que ele estiver no momento a emitir,
É estar inteiro, na hora,
Abarcando os factos que revestir
Este agora.
Se o não fazemos,
Sofremos.
Ao operá-lo, porém,
Liberto a amplitude,
A vastidão potencial que sou também,
Abro-me à plenitude.
Sou inteiro, não um fragmento
Qualquer de meu intento.
Meu ego é que às peças
Me divide onde eu e tu tropeças.
Minha vera natureza emerge,
Apontada ao píncaro dos céus,
Para onde converge
Una com Deus.
Duvida
Aquele que for inconsciente
Nunca duvida de quem é:
Tem nome e apelido de gente,
Algo faz que o tem de pé,
Relata uma história individual,
Corpo num qualquer estado real
E mil outros dados se multiplicam
Com que se identificam.
Mesmo se a isto não me inclino
Porque sou alma imortal
Ou espírito divino,
Será que tudo isto não é sinal
Do mesmo por outro canal?
Conhecer-me a mim
Vai muito alé de factos, ideais, crenças
Ou algo afim:
Não há sentenças
Que limpem o terreno
Das demais de que ele é pleno.
Continuam todas a ser condicionamento
A que me sujeito como fermento.
Conhecer-me a mim
Não é nenhuma ideia
Que na mente me volite volta e meia,
Assim.
É enraizar-me no ser da última matriz
Sem me perder nunca na mente,
É ser raiz
Infinitamente.
Conhecer, ao invés, é configurar,
Traduzir:
É trair,
Que é meramente apontar.
Não sou a seta
No caminho,
Sou caminho para a meta,
Com todos, com tudo
E infinitamente sozinho.
No Infinito me mudo,
O único ausente
Que infinitamente presente
Em minha fundura adivinho.
Conhecer-me
Conhecer-me a mim
É enraizar-me,
Não perder-me sem fim
A conceptualizar-me.
É um acto,
Não um conceito
E o que vagamente capto
Ao lhe prestar preito.
Determina
O entendimento de quem sou
Determina o entendimento
De que precisões me alimento,
Do que importa, na vida por onde vou.
Ora, o importante
Pode perturbar e desorientar adiante.
É o melhor critério para validar
Quanto nos conheceremos:
O importante para nós não anda a par
Do que dizemos nem cremos,
É o que respostas e actos
De importante para nós revelam nos impactos.
Se as coisas pequenas me podem perturbar,
Então quem penso que sou é mesmo pequeno.
É nisto que inconscientemente ando a acreditar,
Sem sequer reparar
Que todas as coisas a que aceno
São pequenas: efémeras, tudo a passar...
Farto
Bem poderás afirmar: “sou um espírito imortal,
Estou farto deste mundo louco, a paz é o meu fanal.”
De repente, más notícias:
A bolsa caiu,
O negócio onde tudo eram blandícias,
Faliu,
O carro foi roubado,
A sogra chegou,
O cruzeiro foi cancelado,
Até o cônjuge te abandonou
E todos exigem mais dinheiro,
Que a culpa é tua por inteiro...
De repente vem a ira,
Mais ansiedade:
“Não aguento mais isto!” – teu ego delira,
Desesperado de verdade.
Acusa, culpas atira
Para os mais,
Ataca, defende, justifica
E tudo corre em reais
Automatismos, nem reflectir implica.
O mais importante agora
Já não é paz interior
Nem o espírito imortal decora
No escritório nenhum quadro de valor.
Negócio, perda, dinheiro, contrato...
- Isto é que importa de facto.
Importa para o eu pequeno
Com que procuro
Satisfação e seguro
No efémero onde me alieno
E que finda ansioso e zangado
Por não as obter por este lado.
Ao menos aqui descubro
Quem cuido que sou
E que de todos, até de mim, encubro,
Ao ir indo por onde vou.
Paz
Se a paz for o que almejo
Deveras,
É a paz que vir até mim vejo
Do fundo escuro das eras.
Se eu não for um eu pequeno,
Não reajo e fico alerta,
Sereno,
Quando o desafio comigo aperta.
Acolho evento e a conjuntura,
Uno com eles,
Sem me afastar em revoltas de má figura,
Vou à procura
Do que a melhor saída deles
Configura.
O estado de alerta
Traz-me a resposta
Mais certa
Para a indecifrável aposta.
Seria então forte e eficaz,
Sem transformar, com o perigo,
Uma conjuntura ou alguém capaz
Num inimigo.
Tomo
Quando tomo consciência
Do ego em mim,
Ignoro quem sou em minha existência,
Apenas delimitei um confim:
Resultou
Que sei quem não sou.
Derrubei, porém, o maior obstáculo
Para o conhecimento de mim
Poder ir trepando ao pináculo
No caminho sem fim.
Conteúdos
Quando eu me identifico
Com os conteúdos interiores e exteriores
Com que vida além fico,
Cuido saber dos valores
De bom e mau para nós,
Logo após.
Distingo cada eventualidade
Pela bondade ou maldade.
E é um fraccionamento
Da totalidade
Da vida.
Tudo nesta é interligado,
Cada evento
No lugar e na função devida
Dentro do todo inacabado
Da infinidade.
O todo é mais que a superfície aparente,
É mais que a totalidade
Das partes,
É mais do que a vida apresente,
É mais do que o mundo contiver,
Infinitamente além do que dele apartes
Para ser.
Fortuitos
Sob os encadeamentos
Fortuitos ou caóticos
De eventos
Em minha vida e no mundo,
Há propósitos despóticos
Em desenvolvimento profundo,
Uma ordem de maiores dimensões
Que mal supões.
A neve cai
Devagar
E cada floco vai
Para o devido lugar.
Cai a chuva
E cada pingo engorda
A uva
Que eu mais tarde morda.
Nunca entenderei a ordem a pensá-la,
Que isto é mera ideia da mente,
Não só doutra escala,
Mas de natureza diferente
E divergente.
A ordem maior
É da inteligência universal,
A consciência informe,
O configurador
Real
De quanto no real germine e forme.
Podemos ter dela, porém, um vislumbre,
Entrar com ela em sintonia,
Participar cônscio no que ali nos deslumbre,
De nosso derradeiro destino
A via:
Desenvolver o propósito divino.
Virgem
Na virgem floresta,
A mente apenas vê caos e desordem
Em redor.
Mal atesta
Que é que distingue o bem da vida do mal da morte,
Uma vez que as novidades mordem,
Com todo o vigor,
A matéria decomposta que no chão lhes caiba em sorte.
Só quando interiormente em paz,
Do pensamento calmo o ruído,
Entreveremos, sagaz,
A harmonia oculta,
O sagrado pressentido,
A ordem divina, inulta,
De maior amplitude,
Com tudo no lugar perfeito,
Onde, de tal em virtude,
Nada poderia ser diferente
Nem doutro jeito
Daquilo que é,
Fremente,
Da vida neste sopé.
Mal se vislumbra,
Mas como deslumbra!
Mente
A mente distende-se confortável
Num parque por homens construído:
Foi planeado por pensamento fiável,
Facilmente compreendido
Não desenvolvido
Espontaneamente
Por uma natureza demente.
Uma ordem ali impera
Que a mente lidera
E qualquer outra mente
Facilmente
Recupera.
A floresta é uma ordem incompreensível,
Ao caos similar.
Só além do bem e mal é inteligível,
Não a logramos decifrar
Senão além do pensamento:
Quando o abandonamos, logramos senti-la,
Intimamente em paz e alerta,
De tentar entender sem o envenenamento
Que dentro em sentido nos perfila,
Para explicá-lo sem nenhuma aberta.
Só então vislumbramos o sagrado,
A oculta harmonia
E o pináculo nunca imaginado:
Vivo naquilo integrado,
Nunca separado
Na raiz que nos germina cada dia.
Ao constatá-lo,
Integro-o conscientemente.
O maior abalo
Que ali cada um pressente
É que a natureza me convida
À sintonia com a totalidade da vida.
Há
Há nascimento,
Crescimento,
Saúde, prazer, vitória
E de tudo toda a glória.
E há perda, falha, doença, velhice,
Decadência, dor, morte
E o mais que se visse
De má sorte.
Isto é o mal, aquilo, o bem.
Aquilo é ordem, isto, desordem.
Apenas, porém,
Até que nos acordem.
Da vida o significado
Em geral é associado
Ao que ela tiver de bem.
Ando sempre ameaçado
Do mal pelo corredor do lado.
Depois, quando tudo falha,
A vida que houver vivido
É um monte de tralha
Sem sentido.
Afinal,
Não há nenhuma garantia
Que me elimine esta via:
Ela é que me elimina, fatal.
É uma perda, um acidente,
Doença, incapacidade,
Uma velhice demente,
Da morte a opacidade...
A desordem na vida
E a posterior destruição
Da importância dela mentalmente definida
Podem ser o portão
De entrada na ordem mais fina:
A compreensão
Da ordem divina.
Em mim
E para além, sem fim...
Loucura
Sabedoria do mundo,
Loucura ante Deus:
Definir o que é fecundo
Apenas por pensamentos meus,
O sentido
Apenas pelo que na mente for atingido,
Ignorando na primeira origem
Que sementeiras vigem.
São em definitivo ignoradas,
Apenas pressentidas,
Mal vislumbradas?
- Mas são as germinais estradas
De todas as vidas.
E o deslumbramento de todas as jornadas.
Isola
O pensamento
Isola uma conjuntura ou um evento,
Rotula-o de bom ou mau,
Tal se fora um ente segmentado,
Saltando a vau
O todo de que era um lado.
Confiando na mente em demasia,
O real devém fragmentado
Como as horas do dia.
A fragmentação
É, porém, uma ilusão.
Só nos parece real
Por andarmos presos a ela, afinal.
O Universo, contudo,
É um Todo indivisível,
Com tudo,
Por fado,
Interligado,
Onde nada existe exequível
Isolado
Em seu solitário canudo.
Tudo
Tudo com tudo ser interligado
Implica que bem e mal
São rótulos ilusórios, afinal,
No Todo dado.
Limitada perspectiva,
São verdade somente
Relativa
E temporariamente.
Sábio que em sorteio ganha
Automóvel de luxo,
Quando a família o apanha,
Mantém da sabedoria o capucho.
“Que bom, tens sorte!” – gritam à vez.
E ele:”talvez, talvez...”
Dias depois, um condutor embriagado
Choca com ele e ei-lo hospitalizado.
Comentam aqueles: “tiveste mesmo azar!”
“Talvez, talvez...” – é ele a ponderar.
Entretanto, de terras um deslizamento
Atira-lhe a casa ao mar.
“Que sorte em aqui estar!” –
- Comentam os mais o momento.
E ele: “talvez, talvez...” - continua a relativizar,
Cortês.
Sábio, ele recusa julgar
O que ocorrer.
Trata de o aceitar,
Acolher,
Tentando a sintonia consciente
Com a ordem maior da sina,
A inatingível,
Mal discernível
Ordem divina
Que é o que a cósmica Natureza
Infalivelmente preza.
A mente não entende o lugar
Dum evento aleatório
Na malha do todo.
Não há casualidade a emanar,
Porém, do envoltório,
Nada existe por si próprio, deste modo,
Isolado,
Em nenhum lado.
Meus átomos dentro das estrelas
Foram forjados.
Causas da mais ínfima das parcelas
São cadeados
Entrosados
Ao infinito.
Enlaçam no Todo em indiscerníveis
(e eu bem o cogito)
Cadeias incompreensíveis.
Voltar à causa dum evento,
Então,
É ir ao momento
Da criação.
Não podemos entender até ao fim nenhuma estrela,
Temos, porém, um vislumbre dela,
Cada vez mais deslumbrante
Pelo nosso trilho adiante.
Derradeiro
O derradeiro segredo:
Nada importa o que acontece.
Nem dentro nem fora de mim:
Nem sou meu credo
No que aquece ou arrefece,
Nem a muralha que protege meu confim,
Nem o que dentro dele aparece
Ou desaparece...
Nada:
Eu não sou a pegada,
Mas o pé que escolhe a estrada.
Que releva tudo o mais?
São os meus trabalhos manuais...
Que peso têm assim?
Apenas o de meu imprescindível trampolim.
Importa
Não me importa o que acontece,
Logo, de tudo me desligo:
Não me apetece
Como abrigo.
Não me ponho debaixo do chapéu
Do que, afinal, não sou eu.
Distingo-me, porém não me separo:
Aqui de fora
É que bem em tudo reparo
Agora.
E agora me preparo,
Sem demora,
Para entrar com tudo em sintonia:
Eu e tudo o mais
Somos do presente os arraiais,
A lista
De tudo quanto agora aqui exista.
A via
Do que sonho e quereria
Colhe dali as ferramentas materiais
E ideais.
Entrar em sintonia com o que é
Dentro e fora de mim
É correr de alternativas a feira
Por meu próprio pé
E assim
Escolher os itinerários que eu queira.
Não ofereço
Resistência interior ao que acontece.
Ao invés, aconteço
Através do que me oferece.
Não é bom nem mau,
É aquilo que for.
Pondero-lhe apenas o relevo para o vau
Que eu pretender transpor.
Então é que verifico
Se é bom ou mau
Para saltar das alpondras cada calhau
Do rio da vida a que me aplico.
Se não me identifico
Com nada que não eu,
Não poderei agir nas mudas vida além?
Ao invés, sintonizado o presente
E não o que já ocorreu,
É que permanente
Vislumbro o mistério que a vida contém,
Que me cruza, atrai e fermenta também:
Então, ao agir, germino canteiros de céu.
Chave
Não resistir
Do agora-aqui ao turbilhão diverso
É a chave para atingir
O infinito poder do Universo.
Aí, em tal momento,
O espírito é libertado
Do aprisionamento
A qualquer forma ou modelo dado,
Quer o do pensamento
Ou do comunitário estabelecimento
Herdado,
Quer o do porvir planeado.
O interior acolhimento
Da forma,
Do que é ou acontece,
É a negação da realidade absoluta que, em norma,
Se lhe reconhece.
Resistir
Torna o mundo e seus eventos
Mais reais, sólidos e duradoiros
Do que são, ao incluir
Nossa própria identidade como sendo tais elementos,
O ego em seus tesoiros.
Atribuir ao mundo e ao ego
Peso e relevo absolutos
Conduz a que muito a sério me apego
A tais produtos.
O jogo das formas é interpretado
Num modelo errado
Como luta pela sobrevivência.
Se tal for daquilo a inteligência,
Tal vai ser o triste fado
Da nossa vivência.
Todo
Todo o evento
Que ocorre,
Da vida qualquer forma, qualquer elemento
Morre:
É efémera toda a natureza,
Tudo é passageiro.
O que quer que seja que se preza,
Coisas, corpos, egos, pensamentos
O vergel e o lameiro,
Cojunturas, acontecimentos,
Emoções
Desejos, tramas,
Ambições,
Medos, dramas...
- Tudo finge ser importante
E morre logo adiante.
Dissolvem-se no nada
Donde vieram do agora-aqui para a parada.
Terão sido deveras reais
Ou apenas o sonho
Onde a jeito me disponho
Para a ilusão de mentiras tais?
Afinal, que tamanho,
Se dali, ao fim e ao cabo, nada apanho?
Em que riqueza à mão
Ali confio
Se no fim todo este chão
É vazio?
Existe
Existe o sonho,
Mais o sonhador que o sonha.
O sonho é uma efémera leira
De jogos de formas a que não me oponho,
Mesmo que, desperto, o queira,
Seja a leira medonha,
Seja risonha.
É um mundo real
Apenas na mente,
Não absolutamente,
No exterior, afinal.
Depois há o sonhador,
A realidade absoluta,
Por onde as formas vão e vêm,
Conduta
De que mal me apercebo eu, o condutor,
Preso à disputa
Que as formas entre si mantêm.
O sonhador não é a pessoa
Que faz parte do sonho.
Nem sequer o que, acordado, se identifica
E unifica
Em toda a forma boa
De que disponho
E que vida fora componho.
O sonhador é a base
Em que o sonho aparece,
Tão discreto que quase
Se esquece
E desaparece,
Mas é o imprescindível
Que torna o sonho possível.
Absoluto no relativo,
Intemporal no tempo fugaz,
Sou a consciência nas formas que vivo,
Das formas por dentro e por detrás.
O sonhador é a consciência
De tudo aquilo de que consciência detenho.
É a radical evidência:
Sou eu. E ali advenho.
Acordar
O nosso intuito
É acordar dentro do sonho,
O de acordado que ainda sonho muito,
Em pesadelo gratuito,
Mais ou menos medonho
E fortuito.
Uma vez desperto,
O drama do mundo pelo ego criado
Finda, esboroado
No deserto.
Peça a peça,
Outro sonho, fecundo,
Começa:
É um novo mundo.
Vida
A vida de todos nós
É um perene crescimento,
Expandido pelos contras e prós
Das formas, na maré de cada momento.
Mormente visível
Ao nos esforçarmos por transpor limites,
Uma debilidade invencível,
Monetários desquites,
Novas aptidões e saberes a adquirir,
Rompendo o porvir...
Ocorre quando, no acto criativo,
Trazemos a novidade ao mundo,
Melhorando-o, festivo,
Para nós e os mais, até ao extremo mais profundo:
Uma música, um poema, uma pintura,
Uma ajuda que prestamos,
Qualquer função que desempenhamos,
Empresa, organização, sistema que o mundo apura...
Aqui poderemos transparecer
E então o mundo inteiro vislumbra
O que é Ser
O Ser que o deslumbra.
Poluição
A poluição exterior
Acompanha a negatividade
Interior.
Encontramo-la em todo o lado, do campo à cidade,
Não apenas onde não há o bastante para a vida,
Mas sobretudo onde há demais.
Surpreendente?
Só para quem não atente
Em que o mundo rico lida
Com muito mais,
O que muito mais convida
A que se identifique
Com todas as coisas a que se aplique.
Vive perdido
Do conteúdo de ser
Tanto mais quanto mais distraído
Em ter, ter e mais ter.
Tudo finda em apego
A um desmedido
Ego.
Perdeu-se o Eu
E em todo o mundo rico é o que mais ocorreu.
Acreditam
Acreditam que dependem do que ocorre
Para serem felizes.
Então, dos eventos no corre-corre,
Perdem-se das raízes.
Em tudo
Perseguem da vida as efémeras formas
Ignorando o conteúdo,
A vivência do eu e as normas
Que protagonizar ela pode sobretudo.
Prendem-se ao instável do Universo
Que muda constantemente.
O presente
É arruinado por algo adverso
Que ocorreu e não devia
Ou não ocorreu e deveria.
Passa-lhes ao lado
A perfeição da vida mais profunda,
À vida inerente, sem traslado,
Mas que se traslada por tudo o que inunda
E fecunda,
Sempre aqui, discreta,
Sempre além do que acontece ou não,
Que dá forma à forma onde se intrometa,
Entre ambas sem confusão
Na fusão.
Em tudo,
Da forma é o conteúdo,
À superfície, invisível,
Mas permanentemente
Discernível
Da profundidade no nível:
O agora-aqui, o presente.
O perene corropio
Do rio
No aqui-agora assente,
Não é o rio a ser permanente,
Leito em terra eras além,
São os variáveis ventos
Das coisas e dos eventos.
O leito do rio
Perenemente estabilizado
É que não foi do tempo pelo fio
Tocado.
Alegria
A alegria de vida,
Alegria de ser,
Única felicidade que se consolida,
Não pode vir a mim por uma forma qualquer:
Um bem material,
Um feito individual,
Alguém de momento,
Um evento...
Nunca radica nem começa
Em algo que aconteça.
Nunca assim
Pode vir até mim.
Vem da dimensão informe
De dentro de meu imo,
Da vivência
De mim próprio, meu eu, quando eu forme,
Com integral consciência,
Meu itinerário, tempo fora, até ao cimo.
Quando
Quando alguém te criticar, acusar
Ou ofender,
Em vez de retaliar
Ou te defender,
Não faças nada,
Continua, impávido, vida fora pela estrada.
Com a auto-imagem diminuída,
Alerta ao que lá no fundo
Irás sentir, em seguida.
Primeiro o desconforto imundo
E sem ganho
Do encolhido
De tamanho.
Depois, uma grandeza interior
Intensamente viva
Se activa,
Irradia, discreta, em redor:
Ninguém a diminuiu,
Ficou maior.
Só quem eventualmente em ti reparou, o pressentiu
E viu.
Quem, diminuído, fica sem reacção absoluta,
Acolhendo de fora, incondicional, a disputa,
Ao ser tornado menos
Transmuda-se em mais:
Não defende os próprios terrenos,
Não reforça a imagem de si que de fora dê sinais.
Saltou para fora da identificação
Com a forma, qualquer que seja,
Para fora da imagem mental que viceja
De cultivo em nosso torrão.
Ao tornar-me menos para o ego,
Vou-me expandir como eu,
Salto além do pego
Que me prendeu,
Crio espaço e lonjura em redor, à minha beira,
Para o ser que sou tomar a dianteira,
O verdadeiro ser
De meu poder.
Quem sou para além, por dentro e por trás da forma
Pode brilhar, de feição comedida
Através do que transforma
Na forma aparentemente enfraquecida.
Bem Jesus dizia, porventura a esmo,
Palestina fora, antes do desenlace:
“Nega-te a ti mesmo!”,
E “dá a outra face!”.
Bem compreendido,
Como faz sentido!
Gente
Não encorajo abusos,
Nem me transmudo em vítima
De incônscios usos
De gente naquilo lídima.
Há momentos
De impor a alguém
Que me deixe em paz,
Porém,
Sem fermentos
De ego por trás.
Não é por reacção
Que brigo,
É pela correcta acção
Perante o que acolho ao meu postigo.
Dizer que não,
Firme e claro,
A alguém sem negatividade,
Então,
É um não raro,
Um não de alta qualidade.
Universo
O Universo é de dois o abraço
Na infinita esplanada:
Os astros e o espaço,
As formas e o nada.
Assim somos nós
Em cada laço
De nosso retrós:
A forma
E o tempo do eu onde cada uma se conforma.
A maior parte da multidão
A tal ponto de identifica
Da forma com a dimensão
Que por aí fica:
Percepções dos sentidos,
Emoções, pensamentos vividos...
A outra metade escondida
Finda ausente da vida.
A identificação com as formas é o apego
Que os mantém prisioneiros do ego.
O eu finda ausente
Quando, afinal, é o único perenemente presente.
Configuro
Vemos, ouvimos,
Tocamos,
Sentimos,
Pensamos:
Apenas metade
Da minha realidade.
É a forma que para trás abandonamos:
O transitório mundo.
Eu que, à luz da minha íntima lanterna,
A configuro, fecundo,
Eu agora-aqui que, na corrida, tudo inundo,
Eis, em semente, a vida eterna.
Permite
Como o espaço vazio
Permite que tudo exista,
Como, se não silencio,
Nenhum som se conquista,
Também eu não existiria
Sem a dimensão vital informe
Que dentro e fora de mim conforme
Cada dia.
É o deus-em-mim, o ser radical
Que configura toda a minha existência,
A animá-la, visceral,
A minha essência
Que em corropio aparece
No que acontece.
No primeiro plano,
A existência.
No segundo, a vitalizá-la, sem engano
De energias o cano
Da minha essência.
Eu a ser,
Só por dentro da existência a se entrever.
Eu, a vida
Que, ausente, a mata
Se se desata
Da lida.
Apreciar
Poderei apreciar e honrar
As coisas deste mundo
Sem uma importância lhes dar,
Um significado
Que não têm, no fundo,
Como lhes daria
Se identificado
Com elas me via.
Poderei participar
Na dança da criação,
Ser activo sem apego ao resultado,
Sem exigir, despropositado,
Ao mundo o que o mundo não tem à mão:
Fazer-me sentir realizado,
Feliz, seguro,
Contar-me quem sou no que nele procuro.
Não mo pode o mundo dar
E, ao abandonar
Tal expectativa,
O sofrimento que criaria
Com exigência tão impositiva,
Chega em mim
Por esta via,
Ao fim.
Este sofrimento deriva
De sobrevalorizar a forma
Com inconsciência da amplidão superior
Que me conforma
O domínio interior.
Quando esta se me apresenta,
Desfruto de vivências, experiências e prazeres
Sem neles me perder como quem neles assenta,
Sem apego interior a nenhuns seres,
Sem nunca me viciar
Neste mundo, meu par.
Consciência
A consciência das coisas,
Percepções dos sentidos, pensamentos, emoções,
Tem por trás destas loisas
O suporte que lhes supões:
Uma consciência mais profunda,
A de que é consciente de toda a barafunda,
Paz interior alerta
Ao corropio das coisas diante da porta aberta.
É de toda a gente
E ninguém é dela consciente.
Lonjura
A lonjura de mim a tudo,
Do mundo exterior ou interior,
Liberta-me do ego, seja qual for
Seu estilete agudo,
Livra-me das coisas deste mundo
Materialista, feroz e infecundo.
Inaugura-me a mim na interioridade, donde inteiro
Ao mundo dou significado verdadeiro.
Objectos
O que vejo, ouço, toco, saboreio e cheiro
São objectos de percepção.
E de muitos mais me abeiro
Do dia-a-dia na função.
Em paralelo diria
Da tristeza, da alegria,
Do ódio, da paixão,
Da acalmia, da violência
De qualquer outra emoção,
Que todos eles são
Objectos da íntima vivência.
Quem é, todavia, o sujeito
De todo este mundo, que o leva tão a peito?
Sou eu, diria alguém
Que decerto um nome tem,
Uma profissão, uma idade,
Um estado social, uma família,
Uma nacionalidade
E que, perante tudo, estaria em vigília...
E, contudo, tudo isto é errado:
Tudo isto são conceitos,
Ainda o objecto percepcionado e vivenciado,
Não o sujeito dos preitos
Na lista identificado.
Daquilo tudo não é nenhum
O eu de cada um.
Dois
Todo o mundo da experiência
Tem dois planos de referência:
A percepção dos sentidos, exterior;
A vivência da sensibilidade interior.
Os conceitos com que nos retratamos
São pensamentos,
Objectos da mente com que lidamos
A todos os momentos.
E tudo o que digamos sobre nós,
Sejam quais forem os aspectos,
São de pensamento objectos,
Não os sujeitos, pois.
São experiência,
Nunca o sujeito dela.
Podemos aos milhares multiplicar-lhe a abrangência,
Aumentamos a complexidade com a insistência,
Jamais o sujeito aflora na tabela.
O sujeito é anterior a ela:
Sem ele, a seguir,
Ela nem poderia existir.
Assim
Sujeito sou eu,
A consciência?
Quem assim me definiu
Logo nisto me perdeu
Toda a evidência:
É que isto são pensamentos
E eu, objecto deles.
Não sou o sujeito dos fermentos
Por dentro daquelas peles.
Não há modo de responder
Ao que eu deveras devo ser.
Não poderei ser conhecido,
Tentar fazê-lo é inútil,
Exercício fútil
De quem ignora andar perdido.
O conhecimento é dual:
Sujeito e objecto,
Quem conhece e o que é conhecido.
Conhecer-me, afinal,
É o projecto
De em objecto mudar-me o sentido.
Ora, isto conseguido,
Nunca serei eu, em concreto,
Ali vivendo o vivido.
Eu, o sujeito sem o qual
Nada pode ser conhecido,
Percepcionado,
Sentido
Nem pensado,
Tenho de permanecer, afinal,
Eternamente incognoscível.
Não tenho forma alguma, o que, fatal,
Me torna de vez indiscernível.
Sem mim, porém,
O mundo a que dou forma, a seguir,
Nem
Poderia existir.
Sou a amplitude luminosa que inventa,
Onde o mundo surge e assenta.
Sou a vida que sou,
Intemporal, eterno.
Quanto ocorre neste voo
Materno
É relativo e transitório:
Prazer, dor, perda e ganho,
Quanto largo e quanto apanho,
O nascimento e o velório...
Sou o agora
Onde a eternidade mora.
Conhecer-me
Nunca poderei conhecer-me a mim,
Meu eu de raiz,
Mas tomo consciência, por fim,
De mim próprio no que fiz.
Sinto-me directo no vento
De qualquer evento,
Em todo e qualquer lugar,
Sempre dele fermento,
Independentemente donde me encontrar.
Sou a minha presença neste agora
À trela
Da palavra ou actividade que em mim mora
Como eu moro nela.
Sou o eu que lhe subjaz,
Dela por trás.
Sou o pano de fundo vivo
Onde acontece
Toda a experiência, pensamento,
Sentimento
Que perenemente
Arquivo
Na messe
Da minha mente.
Descubro
Descubro a fundura
Interior
Criando a ruptura
Na corrente de consciência:
Eu sou o corredor
Dela na aparência,
Seja qual for
O fulgor
Da sua opulência.
Sem tais fendas,
O pensamento devém repetitivo,
Insípido morto-vivo
Desprovido, em minhas tendas,
De qualquer criatividade
Como é o da generalidade.
Quanto dura o hiato
Pouco importa:
Entreabri a porta
E daí desato a cultivar cada vez mais de mim a horta.
Atende
Atende à respiração.
Tem poder transformador
Bem maior
Que os cursos que tenhas à mão:
Dá-te gratuita ali
Consciência de ti.
Pára-te a corrente de consciência
Nesse nada que em ti mora:
Podes entrever-te na demora,
Na pausa eis-te aí, és uma evidência.
Atender
Atender à respiração
Afasta-nos a atenção
Da mente e cria lonjura:
Aí olhamos a fundura.
Embora toda a consciência
Já esteja em mim presente,
Não é manifesta.
Sapiência
É trazer a ausente,
Por esta fresta,
À consciência de si,
Em toda a pegada
Da jornada.
Então, finalmente, aqui,
Eis que me li.
Respiração
Uma respiração consciente
É suficiente
Para criar distanciamento
Onde anteriormente
Apenas avio
O intérmino arrepio
Do pensamento.
Aí poderei vislumbrar a lonjura,
De mim a fundura
Que perante tudo tenho.
Aí
Consciente de mim devenho,
Nem serei mais nada neste agora-aqui,
Que o resto, memória ou antecipação,
É mero pensamento
Que do chão varri
Deste momento.
A respiração ocorre por si,
Não sou eu que a faço,
Observo-lhe o traço
Autónomo no meio do frenesi.
Na breve interrupção
Entre cada respiração,
Quem mora aí,
Que nada é que as liga,
Que perdura por este agora
Fora,
Invisível formiga
Que persiste?
- Sou eu, sou eu quem ali
Existe!
Mal
Respirar quase não tem forma,
O ar ninguém o vê, mal o sentimos:
É de nossos imos
O símile exterior, por norma,
Espontâneo, sem convénios
Há milénios:
Deus soprou em Adão
O espírito, no paraíso.
E cá vamos, de Deus com este tição
Em nosso imo, donde o Infinito viso.
Obriga-me
Estar consciente
De respirar
Obriga-me a estar
Presente,
A chave maior
Da muda interior.
Não poderei pensar
E estar consciente
De respirar
Concomitantemente.
Respirar obriga a parar
A corrente
Da mente
Quando em respirar
Atente.
Em vez de estar em transe
Ou meio a dormir,
Atentar em respirar faz que alcance
A vigília mais desperta de que poderei fruir.
Não fiquei abaixo do pensamento
Mas acima.
É o momento
E o clima
De trepar ao cimo:
- Atingi meu imo.
Dependência
Uma dependência vive dentro em nós
Como uma entidade,
Subpersonalidade
Que nos domina após.
Chega a dominar a mente:
A voz dentro da cabeça
De repente
Não é nossa, é de alguém em que a gente
Tropeça.
Defenderá que quem teve um dia duro
Mereça
Uma prenda boa.
Depois de tanto diário apuro,
Como negá-lo, neste mundo à toa?
Se me identifico com esta voz interior,
Dou comigo
A ir ao bolo de chocolate maior
E a consciência desobrigo:
A inconsciência sabe melhor.
Ou de repente então,
Sem reparar,
Vejo-me de cigarro na mão
Ou a beberricar...
Como é que isto veio aqui parar?
Não tenho explicação.
A dependência
Adora a inconsciência.
Padrão
Perante o padrão compulsivo,
Fumar, empanturrar-se,
Beber, aprisionar-se
Ao televisor,
Ao computador,
Seja lá de algema
Qual for
O tema,
Quando o interior
Impulso
Lhe tomar o pulso,
Pare e respire
Conscientemente.
Contra a mente
Conspire.
Depois olhe a compulsão
Que dentro de si o quer ter à mão.
Sinta-a conscientemente,
Continue a respirar,
Aí presente.
Tal ânsia compulsiva até pode findar.
Pode, porém, continuar
A dominá-lo.
Não a transforme num problema:
Integra-lhe a experiência,
É como outro qualquer desafio à consciência,
Como qualquer outro abalo
De vida no sistema.
É só estar presente
Em seu agora
Inteiramente,
Por maior que seja a demora.
Quão mais aumentar a consciência
Mais diminui o padrão da dependência.
Pergunte quem está a falar:
É a dependência, em seu lugar.
Enquanto ciente
Disto,
Visceralmente presente
Como observador malquisto
Da mente,
Menos provável é que o engane no que almeja
E o leve a agir como ela deseja.
Encaminho
Quando encaminho a atenção
Da minha respiração
Para o meu corpo inteiro,
A vitalidade
É por onde me abeiro
De minha interioridade.
Não é meu eu ainda
Mas onde aflora
Em mim, aqui agora,
Na primeira berlinda.
Quando
Quando estiver
A ouvir alguém,
Se uma pausa fizer
A olhar pelo céu além,
Ou então, à minha beira,
Para uma árvore, uma flor,
Para a minha companheira,
Filho, seja quem for,
- Sinto, concomitante,
A vitalidade em mim, tempo adiante.
Parte da consciência informe continua
E outra, disponível, a palmilhar a rua.
Meu eu no corpo ancora
Para manter-se presente no agora.
Não me irei mais perder em emoções,
Pensamentos – exteriores situações:
Serei eu a mim vizinho
Perenemente a caminho.
Brota
Quando vivencio ou percepciono,
Seja o que for que sinta, pense ou experimente,
A consciência corre em meu abono,
Brota na forma que me alente.
Reencarna num pensamento,
Num sentimento,
Numa percepção da experiência,
Numa íntima vivência...
Ciclo perene de renascimentos
Em contínuo a ocorrer,
Apenas nestes momentos,
Pelo poder de eu ser o perene agora
Dele sair iremos poder,
Sair a toda a hora.
Acolhendo por inteiro
Qualquer forma que brote em minha demora,
Intimamente me sintonizo, leveiro,
Com a fundura de mim, a amplidão que em mim mora,
Essência
Do momento, minha íntima vivência.
Através da aceitação
Crio distanciamento,
Alargo a lonjura de meu porão
De acolhimento.
Já não me identifico com a forma,
Mas com a fundura inesgotável deste abraço.
É a verdadeira perspectiva que me conforma,
Equilibra a vida em tudo quanto nela congraço.
Urgência
A interioridade
Aflora
Sempre que eu abandonar
A urgência de realçar
A minha identidade
Que na forma mora
E ali cativa demora.
A urgência pertence ao ego,
Não é deveras urgência,
Mero apego
De emergência.
Quando renuncio
A identificar-me ao corropio,
Emerge o distanciamento interior,
É aí que o eu é senhor.
Torno-me assim
Eu em Mim.
O ego cuida que me perco
E é do contrário que me acerco.
Temos de nos perder ali
Para nos encontrarmos, cada um em si.
Reduzida a importância de quem somos
Numa forma qualquer,
Emerge o que, para além de tais gomos,
Descomunais sejam embora os tomos,
Cada um é, no seu radical ser.
De sem dimensões, pequenos,
Aliás,
Tornamo-nos menos
Para podermos ser mais.
Sublinhar
De mim sublinhar a identidade
Na forma em que ela incarnou:
A falsidade
Do que sou.
Exigir reconhecimento por algo que fiz
E ficar magoado ou zangado
Porque, de raiz,
Não mo hão dado...
Chamar a atenção
Falando de meus problemas,
De doenças que tiver à mão,
Ou armando uma cena com que tremas...
Dar a minha opinião
Sem ninguém ma pedir
E ela ser indiferente para a questão
A definir...
Preocupar-me com o modo como outrem me vê
E não com ele,
Usá-lo como meu lamiré,
Do ego a inchar-me a pele...
Testar a boa impressão nos mais
Pelos meus conhecimentos,
Bens materiais,
Aparência, estatuto social e demais
Ventos...
Engrandecer meu ego
Indignando-me com algo ou alguém,
Num perene apego
Ao que não vale um vintém...
Levar tudo a peito,
Sentindo-me ofendido,
Trejeito
Que nem para mim fará sentido...
Demonstrar ter razão,
Que outrem é o erro encarnado,
Em queixume de ocasião
Inútil, de enfatuado...
Desejar
Vida adiante
Todo o mundo a me considerar
E eu a ser importante...
- Eliminar isto
Não é me aniquilar,
É, finalmente, tomar
Consciência de que existo.
E não sou qualquer coisa,
Sou a loisa
Em que qualquer coisa registo.
Nossa
A nossa vida tem
Um propósito interior
E também
Um exterior.
O interior é o que sou,
Meu ser primário.
O exterior é o que agir vou,
Secundário.
Ambos em sintonia
Viver deveria.
Ambos interligados tanto vão
Que não poderei viver um e o outro, não.
Poderei, porém,
Vivê-los também
Em contradição:
Enquanto um na loja da vida se avia,
O outro à fome murcharia.
De mim depende
Operar o que melhor me rende.
Imo
De meu imo o fito
É despertar,
Despertar-me para o Infinito,
Gradualmente a semear
Neste lugar.
E partilhá-lo com quantos fite,
Que vida fora para a festa concite.
É o propósito do Todo,
Do Universo,
Na cozedura cósmica do bodo
De que partilho desde o berço.
O nosso propósito exterior
É o de encontrar e viver em sintonia
Com o interior,
De cuja final fasquia
Depende
O que um êxito consistente rende.
Dessintonizados,
Lograremos porventura alcançar
Algum êxito intercalar,
Mas todos serão por fim exterminados.
E a alegria
De momento
Que se pretendia
Finda em tormento.
Despertar
Despertar interiormente
É uma muda,
O eu distancia-se da mente,
A consciência se desgruda
Do pensamento,
Com ele já não confundida a todo o momento.
É um itinerário permanente,
O novo estado da consciência
Penetra gradualmente
Em tudo,
Da existência
Até da interioridade ao conteúdo.
Tudo o que fizer e transformar
Na lida
Há-de integrar,
Integrar num todo a vida.
Perder
Em vez de me perder nos pensamentos,
Enclausurado na mente,
Reconheço-me como consciência permanente
Que ao pensamento subjaz,
Lhe suporta os elementos,
Que o faz.
Perde a mente autonomia,
Com intuito próprio que me domina,
Comanda cada dia,
Minha sina.
A consciência enfraquece
A hegemonia do pensamento,
A qual doravante emurchece,
Mais submissa a cada momento.
Em lugar
De à nossa vida
A mente comandar,
Finda ao serviço do consciência,
Com a conveniência
Devida.
Eu de mim consciente,
Afinal,
Sou a ponte
Para o horizonte
Da inteligente
Mente
Universal.
Sou a presença estendida
Da íntima Presença, no Universo
Contida,
De tudo no reverso
Intuída,
Que o cria e sustém
Como a mim também.
Consciência logicamente anterior,
Em mim e para além,
Interior
E fundamento,
Fermento
De todo o amor
E de todo o pensamento.
Itinerário
O itinerário de interiormente despertar
É um dom divino:
Não tenho o poder de o inventar,
De em mim o implantar,
Torná-lo meu destino.
Poderei intimamente acolhê-lo,
Modelá-lo,
Mais um humilde elo
Da cadeia do Infinito no meu intervalo.
Cuidado, porém, com o ego:
Do trilho tenta apoderar-se,
Tornando-se então maior, mais importante.
Caí no pego,
Enganado pelo disfarce,
Em vez de dar um passo adiante.
Acrescentei à mente
O conceito de despertar
E, com tal imagem presente,
Tento com ela me configurar.
Viver de acordo com a imagem
Minha ou doutro qualquer
É a alienação duma romagem,
Não é autêntico viver.
Dádiva
Por dádiva divina
Terei o primeiro vislumbre da consciência de mim
Que me inclina
A entrever-me até ao fim.
Tendo início,
Nunca mais é invertido
Mas pode ser arrastado
Ao precipício,
Pelo ego ao ser retardado,
Quando a ele convertido.
Por vezes toca o sino
A rebate
Do destino
Que me abate,
Ao reparar no pensamento negativo constante
Que mantenho vida adiante.
De repente a consciência
Tem consciência do pensamento,
Com a evidência
De que não é ele, em nenhum momento.
A consciência é a sala
Na qual os pensamentos se apresentam
E fazem a própria gala
Durante o que ali assentam.
E é a consciência então consciente
De que tal
É o real
Ali presente.
Vislumbre
Quando um vislumbre de auto-consciência
Devém presente,
Não é nenhuma evidência
Da mente
Que, confusa, prima pela ausência.
Logramos aí criar presença
No distanciamento, lonjura,
Com nossa indiscernível fundura
Densa.
Temos então a responsabilidade
De escolher:
Ou continuar a viver
Tal se nada ocorrera na realidade,
Ou reconhecer
Que da consciência o afloramento
É um mais alto patamar
Para eu em mim fermentar,
Lento.
Abrir-me à consciência emergente,
Trazer-lhe a luz ao mundo
Devém repentinamente
O propósito da vida mais fecundo.
Impedem-me
O stresse, a ansiedade,
A negatividade
Impedem-me de atingir
O poder que hei-de haurir.
A ilusão de andar cindido do poder
Que comanda o Universo
Retornou, sem eu querer,
Ao meu berço.
Sozinho me torno a sentir,
A lutar contra,
A tentar atingir,
Sem conseguir,
Os oiros duma qualquer montra.
Tudo porque, de repente,
Virei costas ao presente.
Cuidei que era mais importante
O que me surdiu diante.
Ignorei a prioridade,
Momentaneamente,
Da minha interioridade.
Um erro de nada,
Um pé em falso,
E é um mundo inteiro em derrocada
De sofrimento descalço.
Centrado
Centrado no momento presente,
Acedo ao poder da vida,
Tradicionalmente
Deus-em-mim, à minha curta medida.
Abandonando o momento,
Renego o poder,
Deus deixa de ser o real fermento
Do meu viver,
Fica-me dele, no final,
Um mero conceito mental.
Não é a fé que conta:
É se aquilo em mim desponta,
Real,
Ou ao invés me desaponta,
Que o murcho, da raiz à ponta,
Com meu erróneo fanal.
Fiel
Sê fiel à vida,
Fiel a teu propósito interior.
Presente por inteiro e sem medida
Ao que teu presente for,
Teu agir
Irás imbuir
Do poder espiritual
De teu íntimo fanal.
Nem mudas, se calhar,
O que fazes,
Mas o modo de actuar,
Contigo feitas as pazes.
O teu fito é permitir
A teu íntimo fluir
Para tudo o que fizeres
Mundo além, por ele ao seres.
Teu objectivo secundário
É o que aqui queiras atingir
Ao cumprir
Tal fadário.
Propósito não é futuro:
É o aqui que eu inauguro,
O meu fundo.
Aqui é que à terra lanço,
Fecundo,
A semente de Infinito que alcanço.
E meu imo já mo sente
No aqui-agora presente.
Perene
Eu sou.
E sou auto-consciência
Num perene agora em voo,
De tudo vendo a aparência,
Primeiro fora de mim,
Depois por dentro, por fim.
Quando me identifico inteiramente
Com o pensamento,
Ignoro que sou radicalmente
O presente,
O momento.
Aí me perco
Da mente
No cerco.
Quando me identifico com conjunturas mentais
Ou emocionais,
Com carências,
Medos,
Credos,
Ausências,
Tudo a impelir meu ego,
Perco-me no desassossego
Das desmultiplicações
De tantas posições.
E continuo perdido
Nas acções
E reacções
Ao que houver acontecido.
Duma falsa identidade
Tudo então finda imbuído,
Já nada me persuade
À alegria singela de ser,
Ao agora ir sendo.
Procuro substitutos no prazer,
Até na dor me corroendo...
No estado de esquecimento
De mim,
O êxito é uma ilusão de momento,
Breve no fim.
Mesmo que atinja grandes feitos,
Logo o vazio infeliz
Me esvazia os peitos
E novo problema me rasga nova cicatriz.
Trajecto
O meu trajecto no mundo
Vai variar, interminável,
De mim a outrem e ambos afundo
Em cachoeira inesgotável.
Sujeito ao tempo, irá no tempo variar,
Mais tarde ou mais cedo por outro a se trocar.
Quando o interior desperta
E a ele me dedico,
O exterior com ele acerta,
Seja o que for a que me prontifico.
Para uns é ruptura repentina,
Para outros, gradual
E a sina
Mudou de sinal.
Às vezes, a muda
Provém duma luz
Aguda:
É isto que doravante minha vida traduz.
Súbito reconhecimento
No fulgor dum momento.
Advém da consciência da fundura,
Não do pensamento que depois a apura.
Uns irão abandonar
Um ambiente de trabalho,
Outros, um lar
Onde dum lar não resta negalho...
É prudente,
Antes de questionar
O que mundo além deve mudar,
Comigo coerente,
Então verificar
O que não é bom, já não funciona,
Incompatível com a interioridade,
Vindo após esta à tona
Impor aquilo a que o imo, da fundura, persuade.
Muda
A muda interior
Poderá ser induzida
Pelo exterior.
Um encontro de corrida
Que traz novas oportunidades
Duma vida expandida
Por inesperadas herdades...
Um obstáculo,
Um conflito
Que perdura no pináculo
Tempos e tempos, maldito,
E que de súbito nos abandona
Ou se desmorona...
Amigos que nos acompanham
Na fermentação interior
Ou que outro caminho apanham,
Seja lá para onde for...
Uns laços se desintegram,
Outros se aprofundam:
Poderei despedir-me donde me empregam
Ou atar novos nós que em meu imo se fundam...
Pode um cônjuge abandonar
Tudo a seguir
Ou então atingir
Novo grau de intimidade no lar...
- De repente,
Tudo pode parecer negativo.
Mais à frente,
Afinal, germinou uma semente
E é já o mundo novo ao vivo.
Inseguro
Quando a mim me reconverter,
Findo inseguro, incerto:
Que fazer?
Contra o ego já desperto,
Sem ele me controlar,
A segurança exterior,
Sempre ilusória,
Requeiro-a menos um ror,
A par,
Evento de má memória.
Vivo então na insegurança,
À vontade com a incerteza:
A possibilidades infindas me lança
Ter deixado de ser daquilo presa.
Já o medo me não domina,
Não me impede de oiro a mina
Da mudança
Em tudo o que ela me alcança.
O obstáculo mais danoso
Ao que é nobre e grandioso
É a procura da segurança.
A incerteza inaceitável
Transmuda-se em medo.
Quando aceitável,
É maior vitalidade,
Vigilância de todo o credo
Às claras ou em segredo.
E é inesgotável
Criatividade.
Fatal
A reconversão
Não é fatal mudar de vida.
Muitos não o farão,
Contudo continuarão
Na corrida.
Para eles, o como não é questão,
Mas o quê
Onde imprimirão
O pé.
Correm já pelo canal
Que o imo lhes traz ao mundo,
Não requerem outro, que igual
Seria, no fundo.
São já manifestação
Do mundo novo em gestação.
Uno
Ser uno com o que é,
O agora-aqui que vivemos,
Não é contra a muda fincapé,
Incapazes de perseguir o que queremos.
É o contrário:
É auscultar a fundura de mim,
Sentir o toque primário
Das profundezas donde vim,
E atrair-me ao reajuste
Da vida, custe o que custe.
Sintonizo-me de raiz
Com o Todo, minha matriz.
E o Todo, no agora que sou,
Através de mim incarna, fecundo
Por onde vou
No mundo.
Todo
O Todo é tudo o que existe,
Do micróbio à Galáxia, ao Universo,
Mais a vivência da interioridade que persiste
Em mim, em ti, no animal, na planta, no reverso
Do Cosmos inteiro,
O ribeiro
Onde bebe a minha raiz
Na matriz.
E tudo é Um
Na rede interligada
E tudo é comum,
Ninguém vive em jejum
Do Infinito na morada.
Entrevejo
Não entrevejo a unidade,
Percepciono tudo separado,
Cada objecto, uma individualidade
Num espaço irmanado
Mas desintegrado.
Apenas quando, de repente,
Não interpreto nem rotulo mentalmente,
Deixando-me surpreender
Pelo que vier,
Vislumbro a magia
Duma interligação que uniria
Tudo com tudo,
Deixando-me fascinado, mudo.
Emoção dum Infindo
Lindo,
Vivido
Para além de qualquer busca de sentido.
Compulsivo
Pensamento compulsivo, em corrente
Sem pausa,
Permanente,
É de divisão causa:
Tudo desunido no conceito
Que me toma a peito.
Ali preso,
Logo para mim o Universo se desintegra,
Nada com nada coeso,
Findo incapaz de sentir a união,
Em regra,
Que entre tudo existe,
O comum chão
Em que cada um se aliste.
Os pensamentos
Reduzem a realidade
A fragmentos
Sem vitalidade.
Tal visão
Origina muito pouco inteligente
Acção,
Extremamente
Destrutiva
Para que sobreviva.
Deslumbramento
Mais fundo que a interligação
Que entre tudo existe,
Quando dum deslumbramento a emoção
Nos conquiste
E da rotina, inesperada, nos despiste,
Vislumbramos o nó
Em que todas as coisas são uma só.
Intuímos a fonte da vida
Por trás da fachada
Manifestada.
Amor-saber intemporal,
Energia escondida
A manifestar-se real
Como Universo
A desenvolver-se íntegro pelo tempo disperso.
Ser
O Todo é constituído
Pelo ser mais a existência
Em que o ser se manifesta.
O ser a existir mantido
É captado por cada sentido
No espaço exterior, incumbência
A que cada sentido se apresta.
Cada ser da minha interioridade
(Emoções, pensamentos, fantasias,
Valores, utopias...)
É captado pela interna sensibilidade
No tempo íntimo de cada vivência.
Interna ou exterior, toda a existência
É manifesta.
Manifesta o ser inefável
Que atesta
E, por esta fresta,
É captável,
Embora, na inteireza, sempre indecifrável.
Manifesta, no fundo,
Que o Todo é Deus no mundo.
Parte
Quando estiver em sintonia
Com o Todo, torno-me parte consciente
Da interligação existente
Do Todo ao fito que visa e amplia
Cada dia:
No mundo inteiro a emergência
Da auto-consciência,
A ponte vivida entre o eu
E o céu.
Então o evento espontâneo,
O encontro ocasional
Com qualquer inesperado coetâneo,
Coincidências,
Ocorrências
Em sincronia especial,
Aparecem
Com frequência tal
Que entontecem.
É uma conexão não-causal,
Da fundura,
Ao invés da dos fenómenos, superficial,
Que a experiência dos sentidos configura.
Manifestação íntima ou exterior
Duma inteligência
Por trás do mundo da aparência,
Ligação de fundura maior
Do que a que a mente
Logra captar à frente.
Podemos, porém, participar
Conscientemente
Do desenvolvimento
Ali a desabrochar
Deste movimento.
Seremos um minúsculo rito
Do Infinito.
Cosmos
O Cosmos inteiro se formou
Há quinze mil milhões de anos
No Big-Bang que estoirou
E o dispersou
Em todos os planos.
Desde então vem-se expandindo,
Diversificando,
Complexificando,
Desunindo...
Dentro de quatro milhões de anos
Tudo se irá inverter:
Da corrida para fora não haverá mais planos
Nem danos,
Tudo para dentro de novo a correr.
E, quando findar,
Novo Bib-Bang tudo irá recomeçar.
E o prescrito
É que assim é ao Infinito.
O Universo é como nós,
Respira:
Inspira, expira,
Expande, contrai...
Só que não vai
Repousar no fim, após.
Com que fito?
Exteriormente cria os astros – todas as formas
Em harmonia e conflito,
Em conformidade com mal vislumbradas normas.
Interiormente
Desperta consciências
Para o presente
Informe, permanente,
Que subjaz às impermanências.
E ambos os pendores em mim funde
Quando os fundo,
Transformando assim o mundo
Que me inunde.
Quanto ao mais,
Que este infinito cósmico for,
Jamais
Serei dele senhor,
Nem sequer após o transporte
Da morte:
Dum corredor
Ao infinito
A que me habilito
Jamais definitivamente serei senhor,
Sou definitivamente menor.
E a minha plenitude
Não requer tal virtude.
Todavia, aqui agora
Tenho a tarefa atribuída:
Concilio interior e exterior a toda a hora,
O mundo e Deus num – a meta prometida.
Verdade
Não existe verdade absoluta
Em mim.
Em si, todavia, sim:
É o fim
De toda a minha disputa:
É a nossa condição permanente:
Assim
Será indefinidamente.
Não há conceito nem fórmula matemática
Para o Infinito:
Quando os uso, delimito,
O inverso do que pretendia,
Na prática,
A minha via.
Não há fuga possível a tal temática:
Todo e qualquer pensamento
É um fragmento:
Aquilo trai
Aquilo a que a busca vai.
Todo o pensamento é uma perspectiva,
Não transporta
A coisa viva,
É sempre uma coisa morta.
Apenas o Todo
É verdadeiro
Mas não há nenhum modo
De o pensar nem exprimir por inteiro.
Diremos
Diremos que o sol nasce,
Diremos que há pôr-do-sol.
E quanta beleza o mundo pasce
Do poente ao arrebol!
É mentira,
Mas a verdade relativa
Quem ma tira
Mata o melhor que em mim viva.
Alheio
“A minha vida”, que mentira
Eu sou a vida que vivo
E quem ma refira
Como alheio a mim arquivo
Não vê que ambos somos um:
Se a retira de mim, não resta nenhum.
“A minha vida” não existe,
Sendo ambos um, não há mais nada que aviste.
Eu em mim.
E é da conversa o fim.
Manifestação
A manifestação sensível-vivencial
E o retorno à não-manifestação,
Expansão e contracção,
Eis o pulsar universal,
O afastamento, ao bater de asa,
E o retorno a casa.
Reflecte todo o Universo,
Do Big-Bang ao Big-Crash,
A escola adulta após a creche,
Do coração o cronómetro terso,
Expansão, contracção,
De respirar
A inalação
E exalação
De ar...
Até o sono
E a vigília:
Retorno à fonte, sem sonhos nem dono,
Acordar de manhã
Para a sertã
De alimentar a família.
A plenitude
Dum passo para outro passo
Requer a virtude
Deste compasso.
Pêndulo
O pêndulo, no vaivém
De afastamento e retorno,
Também convém
Da vida ao multímodo contorno.
Vindo do nada,
Brotei no mundo.
Ao nascer, desatei a correr na estrada
De me expandir, jucundo:
Cresce o físico e o conhecimento,
Actividades e bens próprios do momento,
Experiências,
Intérminas vivências...
A vida devém mais complexa,
Conexa
Ao expandir das influências.
Tudo é dedicar-me
Ao propósito exterior.
E é o caminho em que o ego se arme,
Identificando-me de tudo aquilo com o teor.
O ego rouba-me este meu fito
De crescimento
E, ao contrário da natureza que não entra em conflito,
Sabe lá quando é o momento
Do rompimento!
Voraz demais,
Quer sempre mais...
Então, quando parece que o objectivo
Logrei atingir,
Desata, imperativo,
O retorno a vir.
E ao vaivém
Não o parará nunca ninguém.
Retorno
O retorno se inicia:
Familiares e amigos a morrer...
O meu mundo esvazia,
Lento a deixar de ser.
O corpo me enfraquece,
Meu campo de influir decresce.
Lonjura contrai,
Já não controlo nada.
Em vez de agir no que aí vai,
Age o que aí vem na minha peugada,
O mundo me atrofiando,
Lento, sem quê nem quando.
A consciência que me identificava
Com quanto trilho fora
Deixava
Vive o ocaso agora,
É o domínio do ego a dissolver-se
Em tudo aquilo que verse.
Ficará por aí minha poltrona,
Eu já lá não me sentarei.
Apenas o vazio abona
Que algum dia por aí transitei.
Voltei
Para o lugar donde anos atrás vim,
Eu, sem saber nada de mim.
Cada
Cada forma de vida, cada ser
É um mundo
Em que o Universo vivencia o que entender
De seu íntimo fecundo.
Quando uma forma qualquer
Acaba,
Acaba um mundo
Do Cosmos na aba,
Na fundura ao fundo.
Dissolver
O retorno na vida de alguém,
Debilidade a dissolver a forma,
Envelhecimento, morbidez,
Incapacidade, perda, também
Se transforma
Muita vez
Num enorme potencial
De despertar espiritual:
A consciência vai deixar
De com a forma se identificar.
A vivência espiritual diminuta
Da contemporânea cultura
Leva poucos a reconhecerem
Que a oportunidade ali os escuta,
Irão só ali verem
Da vida a usura,
Algo errado a ocorrer
Que não deveria ser.
Deles a vida,
Já detrás perdida,
Não há-de então ter
Mais saída.
Civilização
A civilização actual
É muito ignorante
Quanto à condição humanal
E, quanto mais ignorante for
A nível espiritual,
Mais adiante
Há-de sofrer um ror.
Para muitos, a morte
É um tema abstracto:
Não fazem ideia de qual
A sorte
Da postura humana,
Ao impacto
Da condenação
Que a dana
Na dissolução.
O velho
É trancado em lar:
O cadáver vivo já nem conselho
Pode dar.
O morto
É maquilhado
E polido:
É um horto
Bem tratado.
- Só que nunca terá florido!
Formas
Quando a morte é uma abstracção,
A vida é definitivamente parda
Quando a dissolução
Todas as formas dela aguarda.
É o choque, a incompreensão,
O desespero perante o informe,
Um medo enorme.
Tudo perde o sentido.
O fito da vida era acumular,
Ter êxito desmedido,
Construir, inventar,
Dos sentidos o prazer
E se proteger...
Tudo movimento para o exterior,
Auto-identificação com a forma a que me apego,
Seja lá qual for:
Tudo é o ego.
Quando o mundo e a vida
Caem aos pedaços,
Não identificam nenhuma saída
Nos traços.
Todavia, lido no fundo
Interior,
Mora aqui um significado mais profundo
Do que a infrene corrida para o exterior:
Ignorado
Na fundura do cimo
Encontra-se o imo
Inexplorado.
Sinais
Aos primeiros sinais de envelhecimento,
Perda ou tragédia pessoal,
A vertente espiritual
Encontra o momento
De irromper na vida
Donde fora varrida.
O propósito interior
Emerge
Quando cai por terra o exterior
E da vida na jornada
Em cacos se submerge,
Desfeito em nada.
A concha do ego, ao falir,
Principia a abrir.
É o retorno a mim,
Com a dissolução da forma, seja qual for,
Assim,
Sempre a mim exterior,
Seja a do mundo da experiência,
Seja a do mundo da vivência.
Ambas por meus dedos construídas,
Doravante são pelo tempo demolidas.
Nenhuma sou eu,
Ambas de mim sombras projectadas
Pelas estradas
Que a vida percorreu.
Na cultura antiga, o ancião
Era venerado e respeitado.
Era a sabedoria à mão,
Partilhava da profundidade a dimensão
Que doravante se há velado,
Sem a qual nenhuma civilização
Perdura muito em nenhum lado.
Hoje em dia
Que tudo se identifica com o exterior,
Ignorado o interior
Como mera fantasia,
O velho é um inútil insulto
À busca da mais-valia
A que prestamos culto.
A ênfase da velhice muda do fazer para o ser
E a civilização actual,
Perdida no fazer,
Ignora que ser, afinal.
Pergunta, num repente insubmisso:
“Ser?! Que farei com isso?...”
Faúlha
A consciência cósmica partilha
Uma faúlha dela comigo
E a auto-consciência que abrigo
Brilha.
Eu sou este agora
Perene
No mais íntimo de mim.
A consciência que em mim mora
Demora
O tempo que pene
Nas aventuras da vida,
Até que eu chegue ao fim
.
Introduzo-lhe do tempo-espaço a medida
Quando eu e ela somos apenas presente
Eternamente.
Consciência
A consciência é a razão
Que organiza e unifica
De todas as formas cósmicas e mundiais
A multidão
Que se multiplica,
Sem de si nos dar jamais
Qualquer explicação.
Cria,
Sendo informe apresto,
Todo o mundo manifesto.
E eu, pela mesma via,
Aponho-lhe o traço de meu gesto.
Propriedade
A consciência pura,
Propriedade do eu que sou,
Só existe à mistura
Do que quer que seja que pensou:
Em todo o objecto pensado há o pensamento
Mais quem o pensa no momento.
Quem pensa modela toda e qualquer forma
De pensamento que produz.
Como o transforma,
Deforma,
Conforma,
Nunca a ele se reduz.
É uma outra realidade
Que aquela invade,
Não tem forma nenhuma
Que por si assuma
E a resuma:
É o informe no formado,
Amplidão interior, presença
Onde íntimo cumpro, por meu lado,
A sideral sentença:
Universo é o rosto manifestado
Da Infinita Intimidade de que é pertença.
Encarna
A consciência que sou encarna numa qualquer forma
De pensar, querer, agir
E por dentro tanto se transforma,
Esconde, camufla, de si ao prescindir,
Que parece que adormeceu
E tudo devém onírico no tempo meu.
Com as formas tanto se identifica
Que à auto-consciência nada mais se aplica.
Passo a ser o jardim
Tempo além cultivado
Mas eu, por mim,
O jardineiro que dele teve o cuidado,
Cheguei ao fim,
Nem eu nem ninguém por mim há dado.
Limitado,
A meus frutos exteriores e mentais,
Sou meu ego consumado,
Nada mais.
Perdi-me de mim:
Na fundura de meu imo,
Doravante vedado cimo,
Não fui, não sou nem serei nunca assim.
Incapaz
Se incapaz for de sentir
Pelo evento
Acolhimento,
Pare quanto houver de agir.
É que não anda a assumir
A responsabilidade
Do que importa de verdade:
De si que consciência ouvir.
Se de si não tem consciência
Como um eu
Que se assumiu,
Terá logo a consequência:
Responsável de seguida
Não logra ser pela vida.
Entrego
Se me entrego à conjuntura
Que acolhi,
Em paz findo na fundura
Do imo em si.
Aumenta a vitalidade
Que me invade
E, em acção,
Gera-me satisfação.
Hoje em dia o que motiva
O agir de alguém
É a carência, embora tantas vezes furtiva,
A aguilhoar tempo além.
Deriva
Da ilusão
Do ego
De sermos um fragmento desligado,
Sem o aconchego
Do poder disseminado
Por toda a criação.
Ora, a satisfação
Liga-me ao poder criativo
Do Universo vivo.
É o cordão
Umbilical
De mim à Energia universal.
Momento
Quando o momento presente,
Não passado nem futuro,
For o centro em que a vida tudo semente,
A faculdade de sentir-me satisfeito
Inauguro
E a qualidade de vida trepa ao parapeito.
Em tudo o que houver,
A alegria
É o dinamismo do ser,
A magia.
Sempre que se manifesta
Através da fundura do imo
Do Infinito o inefável cimo,
É uma festa.
Nunca terei de esperar
Algo significativo
Para satisfeito andar
No que vivo.
Da alegria o intenso significado
É de tudo então derivado.
Esperar para começar a viver
É ilusão comum
Da inconsciência que houver
Em cada um.
Expansão e mudança
Em nosso mundo exterior
É o que mais provável alcança,
Quando positivo for,
Satisfação
Durante quanto agir,
Em lugar de adiá-la para um incerto porvir.
Permissão
Não é de pedir
À mente
Para senti-la no que obrar à frente.
Só múltiplas razões dali obterei
De andar insatisfeito:
“Agora não, talvez amanhã, não sei,
Poderás sentir algo de jeito...”
Amanhã que nunca chegará
Se não me satisfizer no que operar já.
Além
Estar auto-consciente
É a porta
Para a alegria de ser
Que me transporta
Sempre para além da mente
E do que ela contiver
E do que ela me apresente
Como o que eu deveria ser.
Escapo a isto
É que deveras existo.
Então, existir
É toda a alegria a poder fremir.
Aponta
De repente, um dia,
O meu interior desperto
Desperta para a magia
Dum exterior com acerto
E aponta a via.
É um grande sonho,
Um objectivo mágico
E logo a correr me ponho,
Antropofágico:
Nada de mim
Me importa mais, assim.
Já por ali manquejava
Em medida diminuta
E que gozo já me dava
Daquilo a escuta!
Só que doravante
Pasmo
Do que vislumbro adiante
E todo sou entusiasmo.
Sou pelo Deus possuído:
Tudo, arrebatador, mudou de sentido.
Dissolve
Quando em mim
Tudo se dissolve enfim,
O entusiasmo se apaga:
O exterior é o mundo que ele afaga.
Quando o exterior se desfaz,
Apenas a minha entrega
Ao íntimo do Infinito é capaz
De me alinhar com a refrega
Em que tudo que não eu se me arrasa,
- É o meu retorno a Casa.
Entrego tudo e aceito
E a acalmia vai germinando em meu peito.
Como todo o fim, o derradeiro
É também o princípio, o cimeiro.
Cortando tudo a eito,
É o deveras primeiro,
De Tudo pioneiro,
Do Todo no peito
Finalmente inteiro.
Satisfeito
Satisfeito com o que fizer,
Com um sonho a implementar,
Tudo se transmuda em entusiasmo.
O presente a ocorrer
É o lugar
Onde o sonho plasmo.
Doutro modo não estaria,
Afinal,
Em sintonia
Com o propósito
Universal.
O sonho não me prolonga,
Forma oculta de ego:
Escritor de obra longa,
Actor sem sossego,
Multimilionário empresário...
Nem é ter isto ou aquilo:
Mansão perto do mar,
Empresa de viver tranquilo,
Conta bancária a abarrotar...
O sonho é de agir
A ligar-me à humanidade
E, nela, ao Todo onde a realidade
Fremir.
É de inspirar a multidão,
Enriquecer vidas
Perdidas.
Aí enriqueço então,
Em todos os sinais,
A fundura do bulcão
Em mim e nos mais.
Somos aquela abertura
Donde a energia flui da fonte
Informe de toda a vida,
À procura
Do horizonte
Onde a todos aproveite desmedida.
Irrelevante
O irrelevante aparente
De repente
É dotado
De fundo significado
Quando algum espiritual agente
O houver abordado.
Traz o silêncio da interioridade
A este mundo,
Presente
À corrente
Realidade
Da maior fundura do fundo.
Existe ali auto-consciência
E, portanto, qualidade
Em tudo, desde a mais banal ocorrência.
Tudo finda dotado
Duma aura de sagrado,
Pois é o sagrado a caminho
Que quase ali adivinho.
Como cada um é um fragmento vivo
Do humano colectivo,
Estes fermentam o mundo
Dum jeito bem mais profundo
Do que à superfície é visível
Das vidas ao nível.
Consciência
Eu sou.
Mas quem sou eu?
Sei lá quem sou!
Fui consciência dum mundo todo meu
Que depois se quebrou
Quando me resistiu.
Aí
Atingi
A consciência do eu:
Consciência da consciência que vivo.
Sou aqui este permanente agora:
Nele tudo arquivo,
Tudo em mim mora.
Tudo em mim reúno,
Em mim tudo é uno:
Tudo é um
No um único que sou,
Pois que não sou mais nenhum.
Tudo é, por igual, representação na mente
Onde com tudo estou
Permanente.
Sou outro que a mente, porém, onde os dados estão
E os dados da mente as coisas não são.
Sou equilibrista
Entre dois mundos
Donde mal se avista
De ambos quais serão os furtivos fundos.
Unificando tudo em mim,
Tendo a unificar tudo, dentro e fora, até ao fim.
Como tudo represento,
Tendo ao todo de tudo, até que em mim tome assento.
Sou a flecha disparada
Ao duplo alvo
Daquele amor e daquele saber,
Num agora permanente
De jornada,
Vida além pelo monte calvo,
Ente
Num perene presente,
Faúlha a arder
Aqui agora,
Onde eterno demora
O arrebatamento de Ser.