A  LEVEZA  SUBTIL

 

 

 

Compreensão

 

 

A crença de que espírito serei

Não é compreensão espiritual.

É que isto é um pensamento, no final,

Não vivência de mim quando me sei.

 

Entendo quando vejo claramente

Que quanto percepciono, penso ou sinto

Ou quanto experimento e a mim me pinto

Jamais é quem eu sou, ali presente.

 

Não me posso encontrar no que estiver

Constantemente em mim a fenecer.

 

 

Sou

 

O que eu sou é uma luz de consciência

Por onde as percepções, toda a experiência

 

Todos os pensamentos, emoções

Vão e vêm e correm aos baldões.

 

O que fica é meu ser, eu verdadeiro,

Esta essência de mim que tudo joeiro.

 

Quando a mim me revejo deste jeito,

Tudo o que em vida ocorre e tomo a peito

 

Relativa importância tem então,

A absoluta jamais que teve em vão.

 

Honro sempre o que ocorre, mas o evento

Perde em seriedade, peso e alento.

 

Sou capaz de sentir meu ser vital,

O eu-sou, pano de fundo radical?

 

Em todos os momentos sou raiz

Que alimenta do mundo o seu cariz.

 

Sinto em mim que sou esta consciência

Ou perco-me do mundo na escorrência?

 

 

Reforço

 

De quem cuido que sou reforço a imagem.

Não sou eu mas meu ego a identidade

Fantasma que em mim há, na tecelagem

Do que ao meu pensamento mais agrade,

A ma impor, assumindo o meu controlo,

Ensombrando a alegria com tal dolo.

 

Nunca, a partir daqui a ligação

Terei ao ser, à fonte, enfim, a Deus.

O meu ego é impelido de atenção

Perseguir, dominar a terra e céus,

Lograr todo o poder e de ter mais,

Sem nunca saciar fomes que tais.

 

E precisa de ter um sentimento,

Perante os mais, de alguma distinção,

Uma separação cujo fermento

Há-de após culminar na oposição.

Um ego não persiste sem postigos

Por onde desconfia de inimigos.

 

 

Gratuito

 

O ego não é gratuito, quer obter

Alguma coisa doutrem, dos eventos...

Escondido interesse tem de haver,

Que sente a insuficiência dos proventos.

Se ainda lhe não chega, a sensação

É de carência a ter de encher-se então.

 

Um ego usa as pessoas, conjunturas

Para atingir aquilo que deseja.

Mesmo quando o lograr, dele o que apuras

É que nada sacia o que ele almeja.

De metas fatalmente ali frustradas,

São constantes angústias as jornadas.

 

Em toda a actividade puja o medo,

O de não ser ninguém, não-existência,

O pânico da morte... Não sucedo

Nunca em vida de modo que a potência

Elimine este medo. Dissimulo

Com o afecto, uma compra... - e o ganho é nulo.

 

Nunca nos satisfaz esta ilusão.

Apenas a verdade de quem somos,

Se assumida a animar cada função,

Nos pode libertar de tais assomos

De medo em que me perco de mim mesmo,

Num ego o eu matando em tudo a esmo.

 

 

Caem

 

Alguns famosos caem no mesmo erro

Da ficção colectiva e dela à imagem

Se identificam com o mesmo aferro

Que se ela fiel fora na triagem

Ao que deveras são. E aquilo mente:

Uma ilusão os cobre, permanente.

 

Pior é que desatam realmente

A se considerar superiores

Frente a qualquer mortal, a toda a gente...

Terminam alienados dos pendores

Tanto dos outros como deles mesmos,

De solidão queimados nos torresmos.

 

Da popularidade mais e mais

Dependendo em contínua correnteza,

Rodeados apenas pelos tais

Que alimentam a imagem de grandeza,

De criar findarão sempre incapazes

Relações genuínas eficazes.

 

 

Relações

 

Envolvido o famoso em genuínas

Relações é difícil com quenquer.

Pelo ego a genuína não afinas,

Não cria imagens falsas sem saber,

 

Há um fluir de atenção bem transparente,

Sincera e consciente para o par.

Não implica carência ali presente,

Ao invés, é gratuita e singular.

 

A atenção consciente é só presença,

Fulcral para uma autêntica união:

Partilhar a alegria da sentença

Que a vida generosa houver à mão.

 

Um ego ambiciona alguma coisa,

Se crê que nada obtém é indiferente,

O interesse que tem risca da loisa,

No caminho abandona toda a gente.

 

Na relação egóica predomina

Uma necessidade por avença.

Frustrada após, é ira, a queixa a mina

E a mágoa, no final, é indiferença.

 

 

Atenção

 

Se atenção positiva não lograrem,

Os egos buscar vão alternativa

À negativa então que provocarem:

Muita criança o faz de forma viva,

Porta-se mal, que quer ter atenção

E deste modo a tem, queiram ou não.

 

Alguns egos levar ao crime irão

Quando andam à procura de ter fama.

Pela notoriedade e punição

Têm a atenção dos mais, quem contra clama.

“Digam-me que eu existo, relevante,”

- Implicam – “que não sou vazio hiante!”

 

São as versões extremas mais letais

Do que são, afinal, egos normais.

 

 

Vítima

 

De vítima o papel muito comum

Dum ego, compaixão, pena, interesse

Dos mais por seus problemas lhe oferece.

Ser ofendido como mais nenhum,

Magoado se queixar e assim por diante

Compensa o que é ser nulo em cada instante.

 

Quando eu me identifico com a história

Em que papel de vítima me dei,

Não quero que ela acabe, extinta a glória,

Com meus problemas nunca findarei.

É que do ego a final, final verdade

É que eles são a sua identidade.

 

Se ninguém quer-me ouvir a história triste,

Repito-a interminável na cabeça,

De mim mesmo a sentir que a pena existe,

Tratado iniquamente pela avessa

Vida, pelos demais, sina e por Deus...

E eis como findo alguém: o ego é dos meus!

 

 

Relacionamento

 

Num relacionamento que era amor

A representação é bem frequente,

A atrair e manter meu par quem for

O que me faz feliz daqui em frente,

Me irá fazer sentir especial

E o que preciso satisfaz total...

 

Represento o papel que tu quiseres

Que eu seja e representas, por teu lado,

O que eu te quiser ver. E ao manteres

Este implícito acordo, ambos andamos

A cumprir o inconsciente que em nós manda

E nem o vislumbramos da varanda.

 

A representação árduo trabalho

Acarreta. Os papéis nunca mantidos

Indefinidamente são no esgalho

Desta vida em comum, nos seus sortidos.

As máscaras aí, ao cair, trocam

Dois egos nus que em ira desembocam.

 

Necessidade fruste, corpo em dor

Contra o par apontado, o companheiro,

Por não ter conseguido contrapor

O medo e a carência por inteiro.

Tudo parte integrante da noção

Da identidade egóica no desvão.

 

 

Tribos

 

À medida que as tribos evoluíram,

A civilização triou funções:

Governante, guerreiro então saíram,

Lavrador, mercador, os artesões...

Desenvolveu-se a escada dentre classes

Para que teu degrau nunca ultrapasses.

 

A função determina a identidade,

Do berço dependendo onde nasceu,

Quem é aos olhos doutrem de verdade

E quem aos próprios olhos for de seu.

O papel da função era a pessoa

Aos olhos doutrem e que em si ecoa.

 

Poucos na história humana deram conta

Da irrelevância de qualquer sistema

Para identificar, em quanto aponta,

Temporal, limitado que é por lema,

A luz intemporal de mim que emano,

Que brilha eterna em cada ser humano.

 

 

Parabéns

 

Dou parabéns a quem ignora o que é.

Perguntarão: é bom andar confuso?

Na confusão se eu perguntar que vê,

Diz cada qual: “não sei...” E, sem abuso,

Nem vê que esta resposta nunca tem

Nenhuma confusão nela, porém.

 

Há confusão apenas se afirmar:

“Não sei mas lá saber eu deveria.”

Pior: “não sei mas devo desvendar.”

E se deixar de crer, porém, que um dia

Tem de saber quem é, ter um conceito

De identidade preso ali ao peito?

 

Conseguirá deixar de procurar

A identidade sua em pensamento?

Aquele que deixar de acreditar

Que tem de ler quem é nalgum momento,

A confusão que o doma logo esquece

E, de repente, ali desaparece.

 

Totalmente aceitando que se ignora,

Num estado de paz e lucidez

Vai penetrando inteiro, desde agora,

O que próximo então do que é de vez

O leva, o que jamais conseguiria

Atingir por conceitos algum dia.

 

 

Infelicidade

 

Quando infelicidade há dentro em mim,

Primeiro reconheço que ela existe.

Nunca “sou infeliz” afirmo, ao fim,

Que a infelicidade que persiste

Nunca tem nada a ver com quem eu sou,

Nem donde eu chego nem por onde eu vou.

 

“Noto infelicidade em mim, cá dentro”

- É aquilo que direi, dela a tirar-me.

Vejo após que razão a pôs no centro,

Evento em que me encontro e me desarme...

Posso ter de partir para mudar

O conjuntura ou outra recriar.

 

Se então nada puder, encaro os factos:

São como são aí, posso acolhê-los

Ou me martirizar com os impactos.

Motivo do infeliz são sempre os elos

Que o pensamento cria com o evento:

Nunca um evento em si é meu tormento.

 

Terei de ser consciente do que penso,

Isolá-lo do evento, neutro nele:

Este é aquilo que for, lá fora denso,

Existe o facto e o que penso dele.

Em vez de histórias me contar, eu cinjo-

-Me aos factos e de os ser já me não finjo.

 

“Estou arruinado” – é mesmo história.

“Nada me resta na matriz bancária”

- É mero facto de eu reter memória.

Os factos encarar traz força vária:

O que eu penso é que mais cria a emoção

Que sinto dum evento ante a lesão.

 

 

Procura

 

Nunca procures a felicidade,

Quem a procura nunca a encontrará.

Felicidade é esquiva em toda a idade

E a busca é antítese do que haja lá.

 

Já da infelicidade libertar-se

É atingível agora de imediato:

É só encarar os factos sem disfarce,

Sem história inventar em que as mãos ato.

 

Toda a infelicidade encobre o estado

De bem-estar e paz interior,

A fonte natural que me há gerado:

Eis a felicidade a me propor.

 

 

Criancice

 

Muito adulto a criança aprisionar

Irá na criancice toda a vida.

Então com velhos vamos deparar

Em criancices fora do lugar,

São velhos de crianças à medida.

 

Seremos nós capazes de ocupar

Função de mãe ou pai cumprindo bem?

Será de convertê-las sem confiar

Num papel continuado que eu herdar,

No qual serei actor, mas eu, ninguém.

 

É crucial à função satisfazer

Carências das crianças, evitar

Cada qual de em perigo se envolver,

Mostrar que deverá ou não fazer,

Sem se identificar com isto a par.

 

Quando isto se tornar a identidade

A função devém logo exagerada,

Domina toda a personalidade:

Darei com mimos tais que é insanidade,

Protejo tanto que a vida é abafada...

 

De repente serei controlador

E tão autoritário que a revolta

É o custo de crescer em meio à dor.

Por me identificar com um actor,

Em troca de ser eu, daquilo à solta.

Quando é que serei eu, meu imo invisto

A intuir um homem novo em lugar disto?

 

 

Progenitor

 

Quando um progenitor só desempenha

Papéis, a identidade permanece

Activa muito após o que desenha

Deixar de ser preciso ao que se tece.

Os pais já não conseguem de ser pais

Deixar, quando as crianças não são tais,

 

Adultas já serão defronte à vida.

Capazes não serão de abandonar

De ser imprescindíveis a guarida

Onde se sentem bem, ao filho a dar.

A ideia de que sei o que é melhor

Não logram pôr de lado, ao tal propor.

 

Papel de pai ou mãe, se é compulsivo,

Autêntica não há mais relação.

Definem-se tais pais por tal motivo,

Com medo de perder o que serão,

Só de perder ao terem o papel

De pais a que o ambiente os sempre impele.

 

Se quiser influir no filho adulto

E for contrariado, a criticar

Desata reprovando, tal se estulto

O filho fora, até se ele inculpar.

E tudo é tentativa inconsciente

De o papel falso ter constantemente.

 

À tona preocupados mui parecem

Com os filhos e crêem sempre nisso.

Por trás o que os ocupa e nunca esquecem

É preservar da imagem o chamiço,

De modo a garantir a identidade

Fictícia a que o papel os persuade.

 

Motivações egóicas narcisismo

São sempre e pelo próprio interesse,

Por mais bem disfarçadas por um sismo

Ameaçador que após nunca acontece.

Enganam toda a gente com o apego,

A começar por quem detém o ego.

 

 

Confundindo

 

Se como pai ou mãe se identifica

Alguém, se confundindo no papel,

Pode uma plenitude por que apele

Crer que através dos filhos autentica.

Seu ego irá tentar manipular

Então os filhos por que tem de olhar:

 

“Quero que chegues onde não cheguei,

Que alguém sejas no mundo, que também

Eu através de ti alguém serei.

Nunca me desiludas! Vida além

Eu me sacrifiquei tanto por ti,

Que, quando em ti reprovo o que em ti vi,

 

É para te sentires constrangido,

Culpado, ao meu desejo ao fim cedendo,

Que a ti sei o melhor que é dirigido.

Continuarei a amar-te: vais fazendo

Tu aquilo que sei que era o melhor

Que para ti a vida anda a propor.”

 

Quando consciente torno este inconsciente,

Apercebo-me logo: mas que absurdo!

Todo o ego que por trás a tudo é surdo

Devém então visível de repente.

A disfunção revela-se diante

E o mal que a todos faz será gritante.

 

 

Dominados

 

Se teus pais são dois egos inconscientes,

Por egos dominados que em ti mandam,

Não lhes grites que são de tal agentes,

Escravos a cuidar que te comandam.

Os egos tomarão a defensiva

Atitude em que cada sobreviva.

 

Basta reconhecer que são os egos

Que os levarão a agir de tal maneira,

Não quem no imo serão dos aconchegos.

Os egóicos padrões da vida inteira

Dos egos se dissolvem por milagre

Se não me oponho no imo e os não consagre.

 

A minha oposição só lhes dá força.

Se não se dissolverem, aceitar

Um tal comportamento e o custo a que orça

Poderei de meus pais e não ligar,

Com compaixão, sem ter de reagir

Que eles não são aquilo a lá bulir.

 

 

Aprovar-me

 

“Os meus pais aprovar-me deveriam

O meu comportamento, compreender-me,

Como sou me aceitar.” Porque deviam?

Não o farão se seu poder enferme

Duma incapacidade para tal,

Se dentro aquilo não lhes der sinal:

 

A consciência deles inda não

Trepou para activar esta missão

 

Se ainda não lograrem se deixar

De se identificar com seu papel.

“Não poderei sentir-me em meu lugar

Feliz e satisfeito em minha pele

Sem ter a aprovação, não dos iguais,

Mas, com compreensão, a dos meus pais.”

 

Ora, que diferença verdadeira

A aprovação ou não faz de quenquer?

É sempre uma inconsciente e vã peneira

Esta auto-imagem falsa do ego a ser.

Emoções negativas origina,

Fruste infelicidade é disto a sina.

 

É mim próprio devir, sem mais querelas,

Que me à felicidade abre as janelas.

 

 

Pensamentos

 

Alguns dos pensamentos que me passam

São interiorizada a voz dos pais:

“Não és bastante bom, vê os que ultrapassam.

Não vais a lado algum com jeitos tais...”

Se minha consciência reactivar,

Reconheço o que é voz em meu lugar.

 

É um pensamento antigo, do passado,

Dele condicionado e ao meu dispor.

Não preciso de tê-lo acreditado,

Uso ou não, como entendo que é melhor.

É minha antiguidade, não mais que isso,

De velharia a trato, é o compromisso.

 

A consciência activa é uma presença,

Sou eu a mim presente agora aqui.

E apenas neste agora dou sentença,

O inconsciente de antanho dissolvi.

Dentro de mim sou eu quem revigora,

De tudo em mim disponho a toda a hora.

 

 

Mote

 

A relação com pais primordial

É sempre e dá-me o mote às subsequentes.

É o teste da presença principal

De mim a mim em todas as sementes.

 

Quão mais longe é o passado partilhado

De mais presença mim hei precisado.

 

Senão eu andarei a reviver

O passado sem conta. E sem eu ser.

 

 

Mágoa

 

Muita criança a mágoa guarda havida,

Aos pais a ira por faltar, no laço

Ser ele autêntico em partilha haurida,

Uma presença com humano traço.

Relacionar-se com papéis, carência

É na criança, embora, em pais, consciência.

 

Podemos dar nosso melhor, que tal

Com tudo certo, por si nunca chega.

É que fazer jamais, na vida real,

Basta se ignoro o ser em mim que achega.

Não sabe um ego nada do que é ser,

Crê que me salva se eu de vez fizer.

 

Se, dominados pelo ego, cremos

Que se fizermos cada vez mais, mais

Acabaremos, com os nossos remos,

De acumular do viajante os cais,

Cremos que algures no futuro plenos

Nos sentiremos, sem de angústia trenos.

 

Tal nunca ocorrerá, que acabaremos

Por nos perder em actos de fazer.

O mundo inteiro a se perder o vemos,

De fazer tanto sem raiz em ser.

E, nesta via, o que deveu ser útil

Tornará o mundo cada vez mais fútil.

 

 

Traz

 

Como se traz duma família ao meio

O ser que atarefado anda perdido?

A relação com nossos filhos leio

Que por mil freimas muito se há sumido.

Ora, o segredo é dar-lhes atenção,

O coração presente ao coração.

 

Não atenção às formas, meras freimas,

De fazer actos ou de avaliar.

“Já fizeste os trabalhos tira-teimas?

Come o que tens no prato em teu lugar!

O quarto arruma, lava os dentes, faz

Isto ou aquilo como a nós apraz!”

 

Que é que é preciso laborar depois?

- É o que resume a vida em muito lar.

Ligar à freima ocupa tudo, pois,

E é imprescindível ter o seu lugar.

Mas, se for única a existir ali,

O primordial perdeu-se: o imo em si.

 

Meu ser e o deles findam encobertos

Pelo fazer de mil acções atadas,

Ocupações do mundo a ter acertos...

E nós perdidos entre as mil jornadas!

Uma atenção informe é inseparável

De meu ser com o deles partilhável.

 

Ao ajudar, olhar, ouvir os filhos,

Tranquilo alerta para estar presente,

Sem almejar de partilhar os trilhos

Para além nunca, no momento assente,

Deixo de ser só pai ou mãe então,

De mim presença entrando em comunhão.

 

Então seremos, por detrás dos factos,

Os nossos eus a partilhar impactos.

 

 

Toda

 

Toda a função, todo o papel que agir

Desenharão a dimensão humana.

Tem seu lugar, dignificada é de ir,

Mas por si só não chega, mais que lhana.

A vida plena e verdadeira é mais

E salta fora de quaisquer varais.

 

A dimensão humana insuficiente

Do esforço não depende do que actuar.

É que por trás existe o ser agente,

Sou eu tranquilo, consciente, a par.

A dimensão humana são produtos

Que eu crio, moldo, de mim meros frutos.

 

E dimensão humana é teia em formas,

O ser do eu é informe e actua normas.

 

Ser eu em minha dimensão de humano

Interligado é como eu nela emano.

 

 

Feito

 

No feito humano superior aos filhos

(Maior, mais forte, mais saber, fazer...)

Sem dúvida serei ante quenquer.

Quando esta dimensão der meus atilhos

Únicos que conheço à minha vida,

Sentir-me-ei superior ao filho em lida,

 

Embora inconsciente. E tornarei

Meus filhos inferiores, de igual modo

Inconsciente de tal. Não há de todo

Igualdade entre mim e os filhos que hei.

Porque apenas atendo ali às formas,

Iguais nunca seremos por tais normas.

 

Aos filhos há-de haver aqui amor

De humano, intermitente, limitado,

Às vezes possessivo, angustiado,

Que aqui desnivelado é nosso teor.

Só para além das formas iguais somos,

No ser que somos delas nos assomos.

 

Na dimensão sem forma dentro em mim

É que amor verdadeiro pode haver

No relacionamento que tiver.

Na presença que sou, meu eu assim,

Noutrem me reconheço, na família,

E eles amados sentem-se, em vigília.

 

 

Reconhecer-me

 

Reconhecer-me noutrem é o amor.

A diferença em nós entremostrada,

Como a ilusão no agido é aprisionada,

Rasteira humana de ignorar o autor.

 

Ânsia de amor desde o bebé presente

É a de reconhecido se sentir,

Não do que opera ao nível de ir e vir,

Antes do ser que ele é, do actor agente.

Não é reconhecer o que pratica,

É vê-lo ali neste acto que o explica.

 

Se os pais só virem o acto e não o autor,

Os filhos vão sentir que a relação

Plena não é, que falta o coração,

O mais vital, e então só resta a dor.

Dignificar dos actos dimensão

Negligencia o ser que exprimirão.

 

Todo o ressentimento como a dor

Perguntam: porque não me reconheces?

Dos pais o amor vital serão as preces

Ao deus que nos habita, do eu palor.

 

 

Cósmico

 

Deus é o amor do cósmico espectáculo,

A vida única existente em tudo:

Por trás, por dentro e para além pináculo

De quanto existe, a se mostrar lá mudo.

 

O amor implica a dualidade eterna:

Quem ama e quem é amado, ambos sujeitos.

Por isso o amor é conhecer, nos jeitos,

A unicidade em dualidade terna.

 

Assim Deus nasce na mundana forma:

O amor o mundo torna menos denso,

Mais transparente àquele Deus que enforma,

Íntima Luz que nele sinto e penso.

 

 

Eficazes

 

Eficazes seremos no que agirmos

Se o agir for obrado pelo que é,

Não como meio de adaptar que virmos

A minha imagem ao que pus de pé.

A minha identidade nunca são

Papéis que represento pelo chão.

 

De identidade são noções fictícias

Os papéis que assumir anos além:

Confundidos comigo, são primícias

Dum ego que a mim próprio não me tem.

Poderosos do mundo, a identidade

É a do papel de cada, da inverdade.

 

Incônscio jogador em jogo egóico,

O jogo se lhe antolha o que é importante.

Porém, é destituído, paranóico

De algum vero propósito adiante.

É história que produz muito ruído,

De todo destituída de sentido.

 

 

Famosos

 

No mundo dos famosos, só papéis,

Quem não projecta a imagem tida em mente

E opera por quem for, indiferente,

Quem não aparentar ter mais anéis

Destaca-se de forma tão notável

Que a diferença faz num mundo instável.

 

São eles portadores de consciência

Nova, por este agir fortalecida,

Em virtude de ao Todo andar unida

E desta sintonia haurir premência.

A influência ultrapassa mui de longe

Os actos e as funções, tal a dum monge.

 

Destas pessoas a presença mera

Transforma aqueles com que cada opera.

 

 

Executo

 

Se não me identifico com papéis

E me executo como sinto eu ser,

Não há um ego a tolher-me nos batéis

De actos de marinhagem que eu fizer.

Não cultivo interesses paralelos:

Defender, reforçar de ego meus elos.

 

Os meus actos detêm bem maior

Poder de me centrar na conjuntura.

Uno com ela findo, não no teor

De hábitos meus que o meio configura...

Não tento ser ninguém em especial:

Sou eu, na plenitude mais total.

 

Somos mais poderosos, eficazes,

Quão mais nós próprios, integrais em pleno.

Não de procurar sê-lo, ladravazes,

Mas de sê-lo espontâneos, sem aceno.

Sempre que procurar ser isto, aquilo,

Represento um papel, o ego perfilo.

 

“Sê tu próprio” ser pode um bom conselho,

Mas o ego dá-lhe logo a volta inversa:

“Como poderei sê-lo?” E destrambelho,

Que a mente traça o plano, na conversa.

Da estratégia deriva um outro guião:

Outro papel, o ego a manter-me à mão.

 

É uma pergunta errada: eu sou eu mesmo.

Não vou acrescentar nada ao que sou

E nada é de fazer, no mundo a esmo,

Para eu ser eu mesmo que aqui estou.

Não sei quem sou? Pois não. Qual é o problema?

Se à vontade sentir-me, sem mais lema,

 

Eu sou quem sobra, aquele enigma eterno,

Sou o ser que subjaz ao que é humano,

A potencialidade em grau superno

E nunca o definido onde eu me emano.

Sou a energia pura que unifica

Tudo em que toca, molda e que me explica.

 

 

Definir-te

 

Deixa de definir-te a ti e aos mais:

Não vais morrer, irás ressuscitar.

Outrem te definir? É não ligar,

Estão-te a limitar, com jeitos tais.

 

Sempre que interagires com alguém,

Não sejas só função, só tal papel,

Sê presença consciente perante ele,

Sê do fundo os afectos que te advêm.

 

Sê tu, nunca a falaz definição,

Pois um conceito nunca trilha o chão...

 

 

Carência

 

O ego terá carência de papéis,

Tem de representar, deste erro instante:

“Não sou bastante bom, sou de ouropéis

E vem logo outra chusma ali adiante...

Buscarei o papel de me ir obter

O requerido para eu próprio ser,

 

Que terei de ter mais para ser mais...”

Não podemos ser mais que quanto somos,

Que sob o corpo e a mente, enquanto tais,

Unos somos da vida com assomos,

Unos com o ser do imo que se alonga,

Do dedo do Infinito ponta oblonga.

 

Na forma, superiores a uns somos

E a muitos outros somos inferiores.

No imo, de nada disto nós dispomos,

Nem mais nem menos são nossos teores.

Tal reconhecimento é de humildade

E de auto-estima vera que persuade.

 

Para o ego visões contraditórias,

Somos o mesmo, sem as vis vanglórias.

 

 

Negatividade

 

Há negatividade em mim, cá dentro?

Terei de andar alerta às emoções,

Aos pensamentos, quando em mim me adentro,

Às infelicidades em meu centro,

Acaso às mais subtis, quase ilusões.

 

Atento aos pensamentos que as fundarem,

Que as vão justificando ou explicando

E que as, na actualidade, originarem,

No instante em que, consciente conta dando,

De quanto negativo a incubar ando

Verifico os esforços fracassarem,

 

Logro, afinal, é ser bem sucedido:

Até ter tal consciência, a identidade

Minha com esta noite tem mentido,

Fundindo-me ao meu ego em quanto lido,

Sem eu tomar consciência da inverdade.

 

Eu me identificar jamais irei

Agora com acções ou pensamentos:

São o que são, não eu que aqui me sei.

Não vou negá-los, são os meus momentos,

Reconhecido deles nos fermentos,

Mas não sou eu que sou quem dita a lei.

 

Antes eu era aqueles pensamentos,

Emoções, reacções... Porém, agora

Sou presença consciente e aqui, de fora,

Observo lúcido os demais eventos.

 

 

Livre

 

Um dia findarei livre do ego:

Quem o diz é meu ego espertamente.

Do ego libertar-me, fundo pego,

Não é freima demais, antes sossego:

É só de tudo em mim andar consciente.

 

Andar consciente de emoções e sonhos,

De pensamentos e utopias de oiro,

Corram eles alegres ou medonhos.

É de reter das crenças os medronhos

Sem se embriagar do alvor com o tesoiro.

 

Fazer não é questão, questão é ver.

E ver com atenção. Neste sentido,

Para me libertar, nada a fazer:

Quando eu de mim consciência retiver,

As rédeas tomo e opero então erguido.

 

Maior do que a esperteza do ego meu

É meu eu consciente enfim liberto,

Em cada trilho a me lavrar o céu,

Maior inteligência que ocorreu

Quando me distingui do que acoberto.

 

Tudo em meu interior é impessoal,

Tomo-o em conta como o demais mundo.

Nunca me identifico então com tal,

É da interioridade um estendal:

Parte dela, com ela eu não me fundo.

 

A história pessoal é mera história,

Conjunto de emoções e pensamentos,

Secundária tal qual qualquer memória,

Não vem cimeira aqui cantar vitória,

Da consciência a comandar momentos.

 

Sou a luz da presença aqui presente,

Consciência que antecede e é mais profunda

Que qualquer pensamento, emoção, tente

Embora qualquer deles, quando atente,

Ser tomado por mim, o eu que os funda.

 

 

Luta

 

Após a luta, a mente humana cria

Mil e uma histórias logo a se acalmar.

“Nem acredito no que a mim faria!

Esteve perto de me ali cegar...

Julga que é domo acaso disto tudo?!

Nunca respeita meu querer ser mudo,

 

Privacidade de ninguém aceita,

Nunca mais volto a confiar-me dele.

Irá tentar outra partida atreita

A arreliar-me no que a mim me impele.

Não lhe permito nada disto agora,

Uma lição vou dar-lhe, não demora...”

 

Ininterrupta continua a mente

A cogitar, falando dias, meses...

E, para o corpo, continuar em frente,

Sempre lutando, sem ver mais reveses,

É lei contínua, uma emoção gerando

Que vai a mente uma vez mais lançando.

 

E tudo é um ego da emoção doirado

Que a maioria dos humanos vive.

Qualquer evento do tufão tomado

Jamais um fim de vez terá que arquive.

Maquinações dum ego em minha história

Nunca de mim irão mover a glória.

 

 

Monges

 

Tanzan e Ekido, monges zen andavam

Na estrada longa de batida terra,

Toda encharcada das monções que davam

Chuvadas fortes da campina à serra.

 

Junto a uma aldeia uma donzela vêem

Que atravessar bem pretendia a estrada.

A lama é tanta que o quimono, crêem,

Findar iria com seda enlameada.

 

Tanzan se apresta a pegar nela ao colo

E transportou-a para o outro lado.

O seu caminho seguem, neste solo,

Sempre em silêncio, norma em seu estado.

 

Horas mais tarde, quando ao templo tornam

Onde instalados a viver laboram,

Ekido ter-se não se tem e adornam

O caso em termos que em mais zen vigoram:

 

“Porque levaste a rapariga ao colo,

Ao outro lado da enlameada estrada?

Papel de monge não é o desse rolo,

Não deveremos jogar tal jogada.”

 

Tanzan parou e, sem quaisquer demoras,

Lhe retorquiu ao comentário tolo:

“A rapariga larguei já vão horas.

Ainda estás com ela aí ao colo?”

 

A vida ameia como Ekido a tem,

De abandonar sempre incapaz, cá dentro,

Montes de tralha que de antanho vem:

É o mundo inteiro a ter perdido o centro.

 

 

Continua

 

Através das memórias o passado

Continua bem vivo dentro em nós.

É delas através que, com cuidado,

Aprendo com os erros, sigo após.

 

Só quando estas memórias, pensamentos,

Nos dominam inteiros, se transmudam

Num fardo problemático, alimentos

De nossa identidade a que se grudam.

 

Agrilhoada ao passado, é uma prisão

Tal personalidade encurralada.

De nossa identidade é uma noção,

Crendo que o julgo ser. E é uma fachada.

 

Este pequeno eu é uma ilusão

Que encobre a verdadeira identidade:

Minha presença ao mundo em mutação,

Meu eu sempre informal e sem idade.

 

 

História

 

Nossa história mental e emocional

É permanantemente revivida.

Todos bagagem carregamos tal,

Inútil, todavia, à nossa vida.

Assim nos limitamos todos nós

Com mágoa, culpa, hostilidade após.

 

O nosso pensamento emocional

Na identidade nossa se transmuda.

Às emoções antigas cada qual

Finda preso, que a elas quem acuda

A fortificar cria a identidade

Que buscamos perdida em cada idade.

 

 

Países

 

Países onde os actos de violência

Sofrida ou perpetrada, colectiva,

Foram milénios fora uma tendência,

Maior corpo de dor neles se arquiva.

Formarão a geral mentalidade

Por todos partilhada em sociedade.

 

Os mais do mundo juvenis países,

Mais abrigados da loucura histórica,

Mais saudáveis têm as matrizes.

O seu corpo de dor não é alegórica

Fantasia que aos outros lhes aluda,

Mas pesa menos em quenquer que acuda.

 

Na vida de cotio há violência

Em cada um, daquela pertinência.

 

Menos corpo de dor, mais frágil o ego,

Mais fácil superá-lo e ter sossego.

 

 

Pequeno

 

Sou um pequeno eu sempre carente

Com as carências nunca satisfeitas?

A falsa percepção de eu ser este ente

Distorce as relações a tal sujeitas:

Cremos que não há nada para dar,

O mundo e toda a gente a se negar.

 

Toda a realidade é baseada

Na visão ilusória de quem são,

O que de negativa afecta a estrada,

Toda arruinando ali a relação.

Se a carência fizer de quem sou parte,

Sempre carente irei ler-me, destarte.

 

Em vez de conhecer o que de bom

Em nossa vida existe florescendo,

Na carência centramos todo o tom.

Ora, saber do bom que já vai sendo

É a base imprescindível que, sem ânsia,

Faz surgir entre nós toda a abundância.

 

Aquilo que julgamos que nos negam

É aquilo que negamos nós ao mundo.

Andamos a negá-lo, que se apegam

A nós crenças de ser tudo infecundo:

Ao crermos ser pequenos, germinar

Faremos nada haver então que dar.

 

 

Quanto

 

Quanto cuido que os mais me irão negar,

- Estima, ajuda, afecto, acolhimento... –

É o que então eu por mim lhes irei dar.

Não tenho nada disto de momento?

Vou agir tal se o tenha aqui à mão

E logo tudo aqui brota do chão.

 

Então, pouco depois de pôr-me a dar,

Começo a receber magicamente.

Ninguém receber pode quanto, a par,

Não der primeiro generosamente.

O que de mim sair me determina

O que em mim há-de entrar da mundial mina.

 

Em mim já tenho tudo o que cuidar

Que o mundo não me dá, mas, se impedir

De fluir tudo por quanto é lugar,

Nem já discernirei de o possuir.

O que inclui a procura da abundância

Que exclui por via qualquer outra instância.

 

Jesus diria: “dai, dar-se-vos-á.

Uma medida cheia, transbordante,

Recalcada é lançada desde já

Para o vosso regaço, vida adiante.”

De tal maneira abunda esta medida

Que, morto, ressuscito de seguida.

 

 

Primeiro

 

Reconhece primeiro esta abundância

Da vida exterior, toda a riqueza

Que germina em redor com elegância:

Do sol calor sentir como te preza,

As magníficas flores do florista,

Do fruto suculento o sumo à lista,

 

Chuva que tamborila nos telhados...

A abundância da vida a residir

Na pegada dos passos teus trilhados.

Reconhecê-lo acorda o que a dormir

Dentro de ti abunda e que deserto

Parece enquanto em ti não for desperto.

 

Depois deixa-o sair por ti além.

A um estranho sorrir é já saída

De ti ao mundo, o que a um dador convém.

Pergunta-te que podes dar na lida,

Como ser útil a quenquer que seja

Ou numa conjuntura que te alveja...

 

Não terás de ter nada e vais sentir

Que és abundante consistentemente:

A abundância só chega ao que a possuir.

É a lei universal de toda a gente:

Abundância ou carência, interiores

Germes são do que a sério no imo fores.

 

 

Curiosidade

 

Há quem curiosidade insaciável

Sobre si próprio tenha, a querer mais.

Fascinado, um rosário interminável

De anos emprega a decifrar sinais.

Esmiuça a infância de desejos, medos,

A levantar-lhe o véu de mil segredos,

 

Camadas e camadas sobrepostas,

Da personalidade o perfil dando,

Do carácter as malhas recompostas...

Muito após, tais anais finalizando,

“Isto é tudo” – dirás – “que há sobre mim,

Isto é mesmo quem sou, sei-o por fim.”

 

Satisfeito de início, logo mudo:

A incompletude disto me apunhala,

De algo mais a suspeita, em pico agudo,

Me fere o peito, tal perdida bala.

Há mais, bem mais além-factualidade

Sempre outro sou – sem fim profundidade.

 

 

Saber-me

 

Conhecer algo sobre mim não é

Saber-me a mim que aquilo pus de pé.

 

De fora o que de mim for desvendando

São conteúdos que vim acumulando.

 

É a mente que terei condicionado

Por tramas e tramóias do passado,

 

De mim tudo o que aprendo é sobre mim,

Não é nunca quem sou, no meu confim.

 

Não são meus conteúdos minha essência,

Aquilo é de meu ego a existência.

 

Conhecer-me é saber-me ser eu mesmo,

Jamais idêntico a um conteúdo a esmo.

 

É verdade que em todos transpareço,

Nenhum me esgota ou mede quanto eu meço.

 

 

Indivíduos

 

Dos indivíduos a maior fatia

Pelos conteúdos se define em vida:

Tudo o que pensam, percepcionam, ia

A quanto agirem debitar a lida.

É o conteúdo que a atenção absorve,

Identifica-os: é o além que os sorve.

 

A “minha vida” quando a digo, não

É a minha vida que serei aqui

Mas a que tenho ou aparento então.

É o conteúdo referir que vi:

Idade, estado, relações, saúde,

Labor, dinheiro, emocional virtude...

 

A circunstância interior, externa,

Nosso passado e o porvir ignoto

São conteúdos: todo o evento aderna

No cais que sou e donde tudo anoto,

Outro e diverso do que aqui me advenha,

Donde encaminho a frota ali que tenha.

 

Que existirá do conteúdo além?

O que permite que o conteúdo seja

Domínio íntimo que a mente tem,

Que escolhe, enjeita, impõe que meta almeja:

O eu informe que dá forma a tudo,

Distinto tanto quanto ali me grudo.

 

 

Mestre

 

Mestre Hakuin, na cidade japonesa,

Goza de grande estima, que o procura

Quem busca orientação: quem mais o preza

Quer duma espiritual doença a cura.

 

Um dia a adolescente, do vizinho

Filha bela, engravida. Quando os pais,

Irados e severos, sujo o ninho,

Perguntam quem é o pai de arranjos tais,

 

Confessa a filha que é o mestre zen.

Correm a confrontar eles Hakuin:

Gritos, acusações, quanto o condene,

Que a filha o proclamara pai assim.

 

O mestre reparou em tal mistério

E comentou apenas logo: “a sério?!”

 

O escândalo espalhou-se na cidade

E além dela, tal de uso é nestes casos.

A reputação finda (isto persuade...)

E ninguém mais o busca em nenhuns prazos.

 

Não se preocupa o mestre, inabalável.

Nasce a criança, os pais dão-lhe o bebé:

“És o pai, toma e vê como é agradável!”

Tomou-a com amor, nela com fé.

 

Um ano após, arrependida, a mãe

Confessa aos pais que o verdadeiro pai

É o moço jovem lá dum talho além.

Aflitos correm a Hakuin, num ai,

 

Pedem desculpa mais o seu perdão.

“Nós lamentamos, o bebé queremos.

A nossa filha confessou que não

É da criança o pai. Por ela viemos...”

 

Ao devolver-lhes o bebé-mistério

O mestre proferiu somente: “a sério?!”

 

À falsidade, à boa ou má notícia

Responde o mestre como à sã verdade:

Deixa o momento ser. Não há malícia.

O drama humano assim nunca o invade.

 

É o momento presente tal como é,

Nunca um evento tem fulgor pessoal.

Jamais é vítima de alguém ao pé,

Poder sobre ele nada tem real.

 

À mercê só ficamos do que ocorre

Se resistirmos ao que ocorre então,

Determinar se deixo que me forre

O mundo do que eu for por sua mão.

 

O mestre tomou conta do bebé:

Não resistir do mal faz bem até.

 

Como é que um ego reagia ali,

Perante eventos a matá-lo em si?

 

 

 Relação

 

A relação primordial de nossa vida

É com o agora mais as formas que reveste:

O que acontece, o que aqui é, sempre em corrida,

Sempre mutável mas que as roupas do aqui veste.

 

Disfuncional se a relação for com o agora,

Reflectir-se-á nas relações e conjunturas

Que vida além encontraremos sem demora.

Definir o ego é no esqueleto que o depuras:

 

Disfuncional é a relação com o presente.

Este é o momento em que podemos decidir

Que relação queremos ter e ser vigente

Com o presente, este momento a já fugir.

 

 

Atinjo

 

Quando atinjo consciência de mim mesmo,

A mim próprio presente, ao ser presença,

De decidir capaz, na vida a esmo,

Serei da relação a ter na imensa

 

Cachoeira a despenhar-se do presente.

Quero-o ter por aliado ou inimigo?

Presente é vida, intérmina corrente,

Com ela é a relação que aqui lobrigo.

 

Quando decido que o momento quero

Ter por aliado devo dar o passo:

Torno-me comparsa, acolho com esmero

E com nenhum disfarce me embaraço.

 

Em breve logo chegam resultados:

Torna-se a vida aliada, mui prestáveis

Os bons ambientes, cooperantes fados...

Só uma escolha: e as vidas são amáveis!

 

 

Transformar

 

Transformar o presente em meu aliado

De meu ego é o fim sempre, que é incapaz

De entrar em sintonia com o dado

Que aqui for, consonância com veraz

Vida, na correnteza inestancável

Do agora de mareta inextricável.

 

O ego ignora, resiste e desvalora

O agora, já que em tempo se baseia,

Quão mais forte o ego, mais o tempo mora

E nos domina a vida em maré cheia:

Passado é só o pensado e o é o futuro,

Creio-me aquele e este é o que inauguro.

 

Do passado tracei a identidade,

No futuro tratei de a realizar.

O medo, expectativa e ansiedade,

A mágoa, a culpa, a ira irão entrar...

 - Só darei cabo dispo quanto assente

Meu eu nas águas vivas do presente.

 

 

Obstáculo

 

Se o meio do presente é muito duro

Meu ego como obstáculo mo encara.

Pretende ultrapassá-lo com apuro

E tudo é impaciência, fruste escara.

 

A frustração, o stresse é, na cultura,

De muita gente o quotidiano real,

A tal ponto que, ao fim, se configura

Que deles é o estado mais normal.

 

A vida deste agora, ei-la problema

E nós vivemos deles todos cheios.

De resolvê-los temos nós, por lema,

De ser felizes a cumprir anseios,

 

Só para nos sentirmos realizados

E principiarmos a viver deveras.

Assim pensamos, de ego bem pejados,

Mas é um problema que atrás doutro esperas.

 

Mal o presente como um muro encaras,

Logo os problemas não terão mais fim.

“Sou o que queiras” – são da vida as caras –

“Como me tratas, trato-te eu assim.

 

Vês-me problema? Sou-o para ti.

Muro que afasta? Serei muro então...”

Não é o agora uma atitude em si,

Eu é que imponho quantas tenho à mão.

 

 

Momentos

 

O momento presente é o que acontece.

Como continuamente vai mudando,

Cada dia em milhares, larga messe

De momentos diversos se entretece.

O tempo é intérmina cadeia andando

 

De bons momentos, de momentos maus.

Não há nunca, porém, vários momentos:

É sempre este momento a saltar vaus,

A vida é sempre agora, nos calhaus

Que mudam a constante nos eventos.

 

A vida desenrola-se no agora:

O passado, o porvir apenas são

Se nos lembrarmos deles, na demora,

Ou se os anteciparmos nesta hora.

Logo, um eterno agora é o que serão.

 

 

Parece

 

Porque é que nos parece que há momentos?

O momento presente é confundido

Com o que ocorre: conteúdo aos centos.

O pavilhão do agora, aos pensamentos

Parece o que acontece. Eis-me iludido.

 

O que no espaço dele desenrola

Aquele espaço não será jamais.

Presente e conteúdo fundo em bola,

Origem da ilusão do tempo em mola,

A estender-se em meu ego mais e mais.

 

Assim de mim me perco e não sou eu

A viver-me mas quanto apareceu.

 

 

Tomarmos

 

Tomarmos consciência do silêncio

É ligar-nos à informe, intemporal

Dimensão dentro em nós. O imo convence-o

A levar-nos além do ego actual,

Quer o leve impregnado da natiura,

Quer já da matinal, ligeira alvura,

 

Quer do intervalo mudo de entre sons...

Silêncio não tem forma e conscientes

Por qualquer pensamento, sem os tons,

Não o podemos ser, sempre impotentes.

O pensamento é forma. Significa:

Silêncio tem o que em silêncio fica.

 

Se estiver em silêncio, o pensamento

Arredado findou de minha mente,

Se este silêncio ouvir for o que tento.

Sou o que fui antes de feito gente,

Sou o que for após deixar de o ser:

Consciência eterna, nada a ma tolher.

 

 

Propósito

 

Com a sobrevivência garantida,

O propósito, o fito é a medida.

 

Muitos sentem-se presos à rotina,

A cela de cotio é deles sina.

 

Muitos crêem que a vida passa ao lado,

Que ao lado passou e que há findado.

 

Outros são limitados por trabalho,

Família a sustentar, da vida o galho.

 

Alguns são consumidos pelo stresse,

Outros do tédio, em fatal quermesse.

 

Alguns se perdem no que muito fazem,

Outros na estagnação, que nada aprazem.

 

Alguns quererão prosperidade,

A crer que daí vem a liberdade,

 

Outros que a liberdade já viveram

Sentido em vida então nunca tiveram...

 

- O primário propósito da vida

Não é externo, é do imo a luz vivida.

 

Não é nunca, portanto, o que fazemos,

Mas o que somos, que consciência erguemos.

 

 

Enquanto

 

Enquanto consciência não tiver

Do que em meu imo for, do que é meu ser,

 

Continuo a buscar significado

Em actos do porvir ou do passado.

 

Continuo do tempo prisioneiro,

Do espaço em celas a viver ronceiro.

 

Qualquer satisfação que encontre aí

Finda em desilusão que sempre vi:

 

Invariavelmente destruída

Há-de ser tempo fora, de seguida.

 

Só temporariamente e relativo

Vale do espaço-tempo um fim que arquivo.

 

 

Filho

 

Se um filho significa a tua vida

Onde o significado irá parar

Quando de ti já não mais precisar

Nem ouvidos te der à fé delida?

 

Se os outros são quem dá significado

À vida que tiveres, dependente

Ficas de os outros terem melhorado

Para a vida pintar de algo contente.

 

Se for sobressair, bem sucedido,

Que ocorrerá se nunca enfim ganhares,

Se de sorte a maré te houver perdido,

Como é fatal em mil e um patamares?

 

Só de imaginação e de memórias

Vives. Significado pouco dão

E tristes serão sempre estas vanglórias

Que dentro ecoam sempre um oco vão.

 

 

Propícia

 

Toda a velhice é uma propícia fase

Para uma consciência florescer.

Para os perdidos do exterior na base

Será um tardio e bom retroceder

 

A casa do imo, ao eu presente agora,

Quando desperta o íman interior.

Intensificam muitos cada hora,

De despertar culminam o fulgor.

 

De repente a ladeira para a morte

Não é tragédia mas a grande sorte.

 

 

Expansão

 

A expansão da vida natural,

O movimento externo a se exprimir,

É do ego usurpação tradicional,

Com os meninos logo a competir:

“Olha o que eu já consigo bem fazer!

Nem tu consegues nem, aliás, quenquer.”

 

É já o ego a tentar sobressair,

Idêntico a tornar-se ao fito externo,

Com os“mais do que tu a prosseguir,

Fortalecendo-se do truque eterno

De se robustecer diminuindo

Os mais que pelos trilhos vão surdindo.

 

 

Crescendo

 

Crescendo a consciência de mim mesmo,

Deixa de controlar-me o ego a vida,

Sem velhice nem mais tragédia a esmo

Para nós acordarmos de seguida.

Quando a auto-consciência além borbota,

O abanão de espertar já se nem nota.

 

É voluntariamente que se abraça

O itinerário de abrir bem os olhos,

Embora nos achemos no que enlaça

O ciclo exterior de ir aos abrolhos

Em crescimento ou expansão corrente,

Função dos trilhos em que a vida assente.

 

Quando este ciclo mo largar meu ego,

A espiritual dimensão vem ao mundo.

No movimento externo eu a delego

(Palavra ou acto, criação que inundo...)

Tão poderosa como em meu retorno:

Meu eu informe mundo fora entorno.

 

 

Inteligência

 

A inteligência humana, afloramento

Da universal razão, ínfima em mim,

Tem sido distorcida em meu fermento

Pelo meu ego, a envenenar-me assim.

É inteligência a me servir loucura

E mundo fora muita tem procura.

 

O átomo dividir requer saber.

Usá-lo a construir bombas atómicas

Seria uma comédia das mais cómicas

Se não fora a tragédia prometer.

A inteligência pode ser bem louca

Ou então revelar-se muito pouca.

 

É inofensiva a estupidez dum burro,

Porém, a estupidez inteligente

É perigosa, não a apago a murro,

Quão mais esperta mais perigo aumente.

Ameaça hoje em dia, à evidência,

Nossa (e de tudo o mais) sobrevivência.