ALIJAR  O  FARDO

 

 

 

Quando

 

Quando morremos, entramos

No íntimo de quem amamos.

 

Não é simplesmente: acaba,

Mais ninguém bate na aldraba.

 

É ler o amor todo errado

Não ler que ele não tem lado,

 

Que mais a fundura unimos

Desde a hora em que partimos.

 

Até com a equivalência

Para o bem ou mal, na anuência,

 

A pender continuamos

Para o que na vida amámos.

 

 

Incrível

 

Se incrível for o louvor

A quem um louvor merece

Desmerece do pendor

Em que o louvor acontece,

O crédito empalidece

De quem for merecedor.

 

Ocorre com as pessoas

Como de eventos às loas,

 

Aos apegos ideológicos

Como aos frémitos teológicos...

 

Por igual às Escrituras,

Sacras demais se as apuras:

 

A Bíblia, se inquestionável,

Sem crédito, é descartável...

 

Ao Corão igual sucede:

Leva o jiadista à parede...

 

 

Certeza

 

Quando alguém tem a certeza

De que sabe o que Deus quer

E, a partir de tal, só preza

Cumpri-lo, dê no que der,

 

Torna-se no que, no fundo,

É o perigo-mor do mundo.

 

E é o mesmo na ideologia:

Mata-nos o dogma o dia.

 

 

Sabe

 

Julgava então que sozinho

Podia mudar o mundo,

Nem via o caixão de pinho

Debaixo dos pés, ao fundo.

 

Sabe agora que acabar

Pode tudo de repente,

Sem tempo de alumiar

O cigarro, ao fim, da gente.

 

Um já morto, outro a morrer,

Quem sabe que sorte ter?

 

 

Órion

 

Órion é a constelação

Do nome que nós lhe damos.

O nome jamais então

É o de Deus ao que visamos.

 

E assim é desde o Universo

À partícula que verso.

 

É um mundo desencontrado:

Não domino nem um dado...

 

 

Tenda

 

Há quem tenda o pensamento

A usar para se exibir

Ou a atacar o elemento

Que à frente lhe irá surdir,

Dele a impar com a derrota

Nem que seja por batota.

 

É a levar a nossa avante,

Mostrar como sou esperto.

Não é a dar-me bem adiante,

Mas de antagonista acerto.

É decidir discordar

Só para antagonizar.

 

- Como o ego é tão obstrutivo

De quanto é pensar ao vivo!

 

 

Criticar

 

Criticar é bem mais fácil

Do que antes ser construtivo:

Pode a cadeira ser grácil,

De abatê-la eis um motivo;

Pode ela ser doutro modo,

Se o quiser, destruo-o todo...

 

- Erguê-la, porém, de pé,

Aí outro é o lamiré.

 

 

Encurralados

 

Encurralados na noite,

Não vemos o sol do dia:

Queima um olhar que o acoite,

Que o não vê, só o fantasia.

Como ser equitativo

Se o não reconheço ao vivo?

 

Má sorte a dos galileus,

Mortos por trazerem céus...

 

 

Razão

 

A razão cria padrões,

Neles tudo após encaixa.

Criar são provocações

A saltar fora da caixa.

 

O pensador o que adora

É eterno findar seguro.

Se crias, a toda a hora

Vai findar ele em apuro.

 

Criar é assumir os riscos

E, às vezes, ganho petiscos.

 

 

Trilha

 

Sempre a ideia é constrangida

Pela trilha antes trilhada,

Quilha na rota seguida

Outrora, esteira provada:

Só neste constrangimento

Corro seguro do vento.

 

Mas findo ali prisioneiro,

Para o novo sem luzeiro.

 

 

Ignoras

 

Doença, miséria, morte,

Ignoras já ter por par...

Só o que imaginas à sorte

São tuas pedras de andar?

 

Imagina diferente,

Nem que os mais morram de medo:

É o medo deles premente,

Não é o teu, o do teu credo.

 

Se o medo lhes alimentas

Com o teu, que vida inventas?

 

Não te resta então mais nada,

Só cair no pó da estrada.

 

 

Focos

 

Todas as religiões

São focos de divisão,

Todas traem a união,

Fito das sacras missões.

São germe de violência,

Culto de ódio na existência.

 

Eis, pois, como é que o pecado

A todas há dominado.

 

Devieram ideologias,

Sistemas de crenças, credos,

Práticas de liturgias,

Leis e normas em enredos

Que ofertam identidade

Falsa ao fiel a que agrade.

 

Criaram um deus à imagem

Dos homens que sempre são:

O Inefável, na triagem,

De ídolo é uma concepção.

 

Fatalmente então meu deus

É divergente dos teus:

 

É o que matar justifica

Outrem que diversifica...

 

- Quando é que um outro pendor

Lhes dominará o teor?

 

Passam milénios e não

Há nunca esta conversão...

 

 

Religião

 

A religião não é

Nunca espiritualidade:

Põe-lhe um sistema de pé

Com tudo o que mais agrade.

Depois o sistema fica

E só ele pontifica.

 

O espírito, de repente,

Não mais se encontra presente,

 

Trocado por crenças, gestos

E por mil e um aprestos.

 

Quem ao espírito dado

For, logo é crucificado.

 

Não foi só com Jesus Cristo:

- Com mil cristos depois disto!

 

E não por mão de pagãos:

- Por judeus, crentes, cristãos...

 

Qualquer verdade absoluta

A todo o mundo executa,

 

Porque, além de que delira,

É, neste âmbito, mentira,

 

Mas tal crente não tolera

Quem no absoluto não crera.

 

E, em nome da religião,

Logo os crimes sacros são:

 

Toda a espiritualidade

Podre materialidade.

 

 

Hoje

 

Hoje a espiritualidade

Anda a ser redescoberta

Fora das religiões.

Não é regredir, maldade,

É um passo em frente de alerta

Contra os vazios sermões.

 

A rotina não maltrata:

Por dentro, lenta, nos mata.

 

 

Rígida

 

A mais rígida estrutura,

Mais difícil de mudar,

É a que mais breve se apura

Que finda a se esbarrondar.

É nas físicas, mentais

E nas institucionais.

 

Nas civis, nas religiosas,

Nas pessoais em que te entrosas...

 

E será sempre por dentro:

Explodirão desde o centro.

 

Toda a vida foi assim

E há-de ser até ao fim.

 

Até o Cosmos, no big-bang,

Mostra que anda-nos no sangue.

 

 

Nova

 

Nova espiritualidade

Não é nova religião,

Ideologia que agrade,

Mitologia em acção...

 

Antes é o fim de tudo isto,

De sistemas e de crenças:

Em conteúdos não insisto

De pensamento ou sentenças.

 

É o retorno à origem deles,

À fonte primordial,

Ao poder do imo a que apeles,

Ao teu criador portal.

 

Não me identifico então

Com nenhuma criatura

Que brotou de minha mão,

Mas com a mão que a depura.

 

Não sou o que ouço na mente,

Sou quem se apercebe disso,

Quem o crie, quem o invente,

Quem ata e desata o liço.

 

Anterior ao pensamento,

Sou consciência geradora,

O lugar onde fermento,

Modelo a obra de agora.

 

Findo então de vez liberto

De qualquer apego à forma,

Livre para talhar certo

O que o Infindo conforma.

 

 

Ego

 

Ego é identificação

Com uma forma absoluta,

Seja a duma concepção,

Duma emoção, da conduta...

Absolutizando eu algo,

Lá me prendo e além não galgo.

 

Assim me cortei do Todo:

Troco por mim dele o modo.

 

Cortei-me então dos demais

Na Fonte de originais.

 

É o pecado original,

A ilusão feita fanal.

 

Após gero o sofrimento,

Do errático trilho ao vento:

 

Choco, absoluto, os demais

Que absolutos dão iguais,

 

Todos crendo submeter

Os mais ao seu próprio ser.

 

Quando assumo este papel,

Sou Caim que mata Abel

 

E é por toda a eternidade

O fado da humanidade.

 

 

Atingirei

 

Atingirei novos céus

Fundo vislumbrando o imo,

Rompendo-lhe opacos véus,

Visando trepar ao cimo.

 

Construirei nova terra

Dali colhendo as sementes

Que planto em tudo o que encerra

A vida haurida entrementes.

 

Vida interior reflectida

É Terra ao Céu mais erguida.

 

 

Palavras

 

As palavras têm feitiço.

Hipnotizado por elas,

Lanço a uma coisa um enguiço:

Um rótulo. E são janelas

Que creio que abri com isso.

É falso: só pintei telas.

 

Sei lá bem aquilo o que é

Só porque imprimi lá o pé!

 

 

Superficial

 

Tudo quanto percepciono,

Sinto e penso é uma camada

Superficial que eu abono

Ao real, tal dele entrada.

E nem entrada sequer

Do real isto há-de ser:

 

Nem a ponta do icebergue

É provável que isto albergue.

 

 

Agarrar

 

Quando agarrar uma pedra

Deixando-a ser sem um nome,

A admiração em mim medra,

Largo espanto me consome:

É um milagre aqui-agora

E mais logo em tudo mora.

 

É que podia não ser

E, afinal, é – e eu a ver!

 

 

Logo

 

Meu ego, ao me aprisionar

Em minhas crenças, meus actos,

Logo a tudo ei-lo a alargar,

Ao pensamento e aos pactos

Com os demais que encontrar,

Como se aí me esgotara

No que em tudo realizara.

 

Falsifica sempre, enfim,

Que eu sou gerador de mim,

 

Não me reduzo ao produto

Que crio nem que executo.

 

Sou antes aquela fonte

Que gera todo o horizonte.

 

 

Manifestação

 

Meus actos e meus conceitos

São manifestação minha,

Onde a meu rosto dou jeitos

A quem fora me adivinha.

São aquilo onde apareço,

Não sou eu mas o que teço.

 

Contudo, eu (como os mais)

Reduzo-me a tais sinais,

 

Mas é sempre uma mentira

O que dali se confira:

 

Quem se mostra a uma janela

Não se confunde com ela.

 

É o mesmo com o Universo:

Mostra Deus que é o seu reverso,

 

Não é só quanto aparece

Mas quem mostra no que tece.

 

Eu (como Deus) sou um rio

A manar em corropio.

 

 

Primeiro

 

Primeiro me identifico

Com meu corpo (e não sou eu).

Depois então verifico:

Sou do sexo como o meu.

A seguir tenho alguns bens,

Traços meus a que te aténs.

 

Depois sou duma nação,

Uma religião e raça,

Membro duma profissão...

Mais um leque que me traça:

Sou pai, mãe, irmão, marido

E o mais que haja em tal sentido.

 

Sou passado acumulado,

Mais saber e opiniões,

Os gostos que hei cultivado

Como as minhas aversões...

Sou eu com a minha história,

Com ou sem mesmo memória.

 

Sou esta rede enredada

Que os mais espelham de mim,

Ao tropeçarmos na estrada,

Complexidade sem fim,

Pensamentos em corrente

Compulsiva em minha mente.

 

Atado neste cordame,

Como ver que não sou eu

O que de mim eu derrame

Mas donde aquilo nasceu?

- Eu não sou nunca a jornada,

Sou o empreiteiro da estrada.

 

 

Vender

 

Vender o que ninguém quer

É questão de convencer

O potencial comprador

De que tal vai-lhe acrescer

A aura de grão senhor.

Corre logo um corropio

A preencher o vazio.

 

Por isso a publicidade

Se enche da vã divindade

 

Do cantor, futebolista,

Do locutor mais em vista...

 

Todos vão participar

Da aura que os rodear?...

- E eis como a vida vazia

De mais vazio enche o dia.

 

 

Nunca

 

Nunca um ego é pessoal,

Não é nunca quem eu sou

Nem quem és tu, afinal,

É o monte que se ajuntou

Nas lavras de cada qual.

 

Por mais que seja brilhante,

Não é quem o leva avante.

 

Como pessoal se eu tomá-lo,

Vou ao erro alimentá-lo.

 

 

Leito

 

Muitos, no leito de morte,

Ao largarem tudo ali,

Descobrem então o norte:

Nada é o seu ser em si

Com quanto às costas transporte

De fortuna ou de miséria:

Ele é só quem cobra a féria.

 

 

Larguei

 

Larguei os bens materiais?

Logo se apodera o ego

De quaisquer espirituais

A que sem ver eu me apego

E vai-me inchar meus trejeitos:

Sou melhor que os mais sujeitos!...

 

E assim deitei a perder

Tudo o que pude crescer.

 

 

Desejo

 

O ego é um desejo de ter

Que se não farta jamais:

Dura um momento o prazer,

Logo cansa e então quer mais.

Buraco de incompletude,

Que é que insatisfeito o mude?

 

Não tenho o suficiente?

Suficiente então não sou

E então corro sempre em frente

Sem nunca levantar voo.

Solidez e permanência

São do de fora carência?

 

Nunca me logro encontrar

Através do que tiver.

Quem nisto não reparar

Vai tentar sempre mais ter

E a carência não termina:

Ter mais mais ter determina.

 

Satisfação transitória

Vai gerar maior carência.

Vive o ego da vanglória

De encher o vácuo de ausência.

E a fátua necessidade

De dependência me invade.

 

 

Mal-estar

 

Mal-estar, inquietação,

Negro tédio, ansiedade

Produz a insatisfação

De qualquer necessidade.

Se é carência estrutural,

Nenhum recurso lhe vale.

 

Mas, se tiro o campo ao ego,

Nenhuma carência pego.

 

Ficam-me as que são reais,

Não as falsas, só mentais.

 

 

Conteúdo

 

Um conteúdo é substituível,

Um ego, não, é irremível.

 

Enquanto não reconheço

Este modo de pensar

Dentro de mim, o que meço

É quanto ele se alargar.

 

Findo dele inconsciente,

Creio em quanto ele me diz,

Feito escravo obediente

A agir pelo seu cariz.

 

Ao ego nenhum conteúdo

O satisfará de vez.

Então, enquanto não mudo,

Desfaço-me no entremez.

 

E nunca serei feliz,

Que jamais o satisfiz.

 

 

Quem

 

Quem sou eu? Sou meus objectos,

Por meu corpo a principiar,

De meu sexo os mil aspectos,

Papéis a desempenhar?

Uma vida realizada

É realizar tal jornada?

 

Sou a física aparência,

Sou a força ou a fraqueza,

A fealdade ou beleza

Onde aos mais ganho evidência?

Tenho uma auto-estima fraca

Se de feio alguém me ataca?

 

A minha imagem mental

Que disto tiver comanda

E como como animal

Ou não como e estico em banda?

E nem no corpo reparo

A corrigir como o encaro?

 

Se assim for, desgraça a minha

Quando o corpo me definha.

 

Moldei minha identidade

Por minha corporeidade.

 

Tudo o que exterior me for,

Transitório, murcha o teor.

 

Equiparar corpo ao eu

É buscar sofrer de seu.

 

O meu eu não tem matéria:

- É o que a molda e cobra a féria.

 

 

Perco

 

Quando não me equiparar

Ao meu corpo, ao definhar

 

Não me perco a identidade,

De auto-estima a densidade.

 

A dimensão informal,

Minha luz de consciência,

Mais transparece, fanal

Através de tal falência:

 

Quão mais findar esvaído

Mais se vê quem dá o sentido.

 

 

Fácil

 

Com meu corpo a identidade

É fácil de ultrapassar:

Em minha interioridade

É de inteiro a vivenciar.

Minha vivência sou eu

Gerindo um mundo que é meu,

 

Sem física dimensão:

Vivo-me por dentro então.

 

Eu sou o mentor de mim

No íntimo que orquestro assim.

 

Pelo corpo exteriorizo

Planos que no mundo viso

 

E com ele executando

Os vou, ao ir caminhando.

 

 

Forma

 

O ego é identificação

Com uma forma qualquer,

Exterior ou interior.

Ora, não sou eu então,

Que sou sem forma de ser,

Delas todas moldador,

 

Sem nunca me reduzir

A nenhuma qualquer delas.

Quando me aí procurar,

Vou-me perder, a seguir,

Se me sentar às janelas.

De vez quando me assentar,

 

Findarei lá prisioneiro,

Já não corro o mundo inteiro.

 

Traí o que sou na fonte

E perdi meu horizonte.

 

Eu sou, por mim, peregrino

A talhar qualquer destino.

 

Não me reduzo na lida

A nenhum a que dei vida.

 

 

Perdeu

 

Consciência de si quem tome

Há só quem já perdeu tudo:

Perdeu os filhos com fome,

A posição social,

A reputação real,

Até a física figura...

 

Foi num desastre ou na guerra

Que sem nada alguém se apura,

Em conjuntura que aterra.

Da estrada então no limite,

De repente outro é o palpite.

 

Não tem mais a identidade

Detrás, foi-lhe retirada.

Agrade-lhe ou não lhe agrade,

É a si presente a jornada:

De tudo ver-se despido

De repente faz sentido.

 

Ele existe para além

De tudo o que se perdeu:

Jamais findará refém

Do com que se confundiu.

- Findo em paz, aí sucedo,

Livro-me de vez do medo.

 

 

Perda

 

Se ocorre uma perda trágica,

Vou resistir ou me rendo?

Se resisto, perco a mágica

Ocasião, não a vendo.

Se me rendo, então aceito

O que existe e presto preito.

 

Acolá findei amargo,

Tenho aqui de sábio o cargo.

 

Aqui findo aberto à vida,

Acolá fechei-me à ida.

 

 

Pregas

 

Todo o mundo anda cosido

Às pregas que tem em mente,

Do diabo possuído

De não ver que é diferente:

Ele é quem tira e quem põe,

É quem da mente dispõe.

 

Não é, pois, quem anda a mando

Do que está sob comando.

 

Que o pensador é o pensado

É o que pensa quem consciência

Disto inda não tem tomado:

Toma o ego a presidência

E ele corre escravizado

A cuidar que é um bom soldado.

 

Quem manda nele é o passado,

Que a mente é o já elaborado:

 

Quem dá ordens é a cultura,

A educação recebida,

Das origens o que apura,

A herança atrás acolhida...

Tudo é um padrão persistente,

Repetitivo, insistente.

 

E o sujeito não repara

Que, ele ausente, é-lhe o ego a cara.

 

 

São

 

Um ego são pensamentos,

Emoções habituais,

Memórias de mim fermentos

Que me identificam, tais

Que digo “eu e a minha história”,

Tanto em perda como em glória.

 

São habituais papéis

Que desempenho sem ver,

Colectivas marcas fiéis

De nação, da fé que houver,

Ou de classe social,

Ou dum político aval...

 

O ego tem marcas pessoais,

Ora são opiniões,

Ora são bens materiais

Ou de exterior os padrões,

Ressentimentos antigos

(Sou melhor do que uns amigos)...

 

Seja qual for o conteúdo,

A estrutura atrás é a mesma:

Me identifico com tudo,

De mim me corto na resma

De coisas com que confundo

O que sou com um tal mundo.

 

É identidade precária

A que confundir assim:

Tudo é efémero na vária

Mole que transita em mim.

Para então sobreviver,

Luto, o ego a proteger.

 

Para este eu falsificado,

Penso o outro diferente

Olhando-o então de lado,

Um inimigo em semente.

Então sou crítica e queixa:

De mim perdido eis a deixa.

 

 

Missão

 

A missão da religião

É tão-só me dar a mão

 

Até eu ver o caminho

E trilhá-lo após sozinho.

 

Se se quer eternizar,

Nunca entendeu seu lugar.

 

Dali para a frente, o aviso

Serei eu do que é preciso:

 

Não serei Deus nem os céus,

Vão sendo eles nos pés meus.

 

Pois até hoje nenhuma

Isto entendeu que a resuma.

 

É um pecado universal:

De contrição, nem sinal...

 

 

Ofendo-me

 

Ofendo-me da ganância,

Com a desonestidade,

A falta de integridade,

Com quem faz a manigância,

 

Com quem agiu, com quem disse,

Com quem não logra fazer

Que fito devia ter,

Com tudo o mais que se visse...

 

Meu ego adora tudo isto.

Em lugar de perdoar

A inconsciência que grassar,

Toma-a pelo outro que avisto.

 

Feita dele identidade,

Nem reparo na inconsciência

Com que meu ego a evidência

Trapaceia da verdade.

 

Quantas vezes nem a falta

Daqueloutro ali existe!

Mas o erro crasso persiste,

Só vejo o inimigo em alta.

 

E, mesmo que a falta ofenda,

Ele ela não vai ser nunca,

Doutros grãos a lavra junca,

Se calhar nem se lhe arrenda.

 

Ele é sempre quem o fez

E o que o pode desfazer,

Não se esgota no que quer

Que seja feito de vez.

 

Ele como eu um além

Somos de todo este quadro.

Qualquer eu é sempre um adro

De o templo implantar que advém.

 

 

Encará-lo

 

Doutrem quando uma expressão

Vejo que não é pessoal,

Deixo de encará-la então

Como tal sendo, afinal.

O eu dele separo dela

E ao eu dele é que isto apela.

 

De repente vem-lhe à tona

Tal eu perdido na zona,

 

Confundido, baralhado

Com tudo em que haja incarnado.

 

 

Vezes

 

Às vezes de proteger

Tenho-me de inconscientes

Mas podê-lo-ei fazer

Sem como inimigos ler

Nunca os eus de tais agentes.

 

Distinguir-lhes o eu dos feitos

Muda em mim os meus trejeitos

 

E apela a eles que assim

Se encarem também por fim.

 

 

Muda

 

O ego muda a conjuntura

Num inimigo a abater:

Não devia acontecer,

Não quero ter tal figura,

Eu nunca quis colher isto,

É injusto ser tão malquisto!...

 

O grande inimigo do ego

É sempre o instante presente,

Da própria vida a corrente

Que me não deixa em sossego.

 

Se a ela adiro, gratuito,

Sou eu, não ego fortuito:

 

Não me confundo jamais

Com nenhum dos meus bornais.

 

 

Erro

 

Um erro, a deficiência

Devem ser comunicados

A apelar à competência

De virem ser reparados.

Com os factos, todavia,

Sem julgamento à porfia.

 

Quando digo ao empregado

Que é de aquecer minha sopa,

Não é de ego isto um traslado,

É facto que quenquer topa.

Se grito: “como se atreve...?”

É meu ego duro e breve.

 

Meu ego o que mais adora

Ver-se ofendido é na hora.

 

 

Morto

 

Há quem a vida à procura

Corra do que negativo

Cada dia lhe assegura,

Morto a acreditar que é vivo.

 

São viciados em ira,

Constante perturbação,

Como aquele que delira

De drogas na escuridão.

 

Negativo reagir

Reforça uma identidade

Às arrecuas a ir

Contra si pela cidade.

 

 

Impedir

 

O outrora não tem poder

De impedir nenhum agora.

Só a mágoa que eu dele houver

Me traz bloqueio ou demora.

E ela é apenas a bagagem

Que carrego da viagem.

 

Poderei jogá-la fora,

Com juízo, a qualquer hora.

 

 

Criticar

 

Criticar, reagir contra,

Queixando, faz-me importante:

Quão mais um outro é um bilontra

Tão mais incho o peito, impante.

 

O meu ego é superior,

Cresce bem nestas pegadas:

Poderei nem o supor,

Nas costas dou-me palmadas.

 

Do político me queixo,

Do empregado preguiçoso,

Do trânsito com desleixo,

Do rico ganancioso,

 

Dum ex-cônjuge, um colega,

Dos homens e das mulheres...

- E aquilo que a mim se pega

Superior é aí me veres:

 

Se me queixo, é que estou certo

E o resto do mundo, errado.

Incha o ego, incha, já perto

De um balão ser estoirado.

 

 

Traços

 

As minhas opiniões,

Pontos de vista, juízos

De valor são os salões

Onde meus traços precisos

Identifico. Senões,

Porque cuido que sou eu

E não: sou quem construiu.

 

Como os construí, um dia

Deito abaixo o que ali via.

 

Eu sou a força que em norma

O velho em novo transforma.

 

E não sou novo nem velho,

Nem sequer um bom conselho.

 

Sou a energia que tenta

Alimentar e alimenta,

 

Que se pode ver em tudo

Sem ser dele um conteúdo.

 

 

Crença

 

A crença de que sou eu

O detentor da verdade,

Razão é a do lado meu,

A dos mais é opacidade,

 

Corrompe o comportamento

Ao ponto da insanidade.

Séculos fora o tormento,

Uma individualidade

 

Queimar viva na fogueira

Só porque divergiria

Da tal tese verdadeira

Foi tido por moral via,

 

Porque a vítima era errada.

E era errada de tal modo

Que só de morte matada!

A verdade é, pois, o engodo.

 

Nos massacres do Camboja

Entre os milhões que tombavam

Um grupo aparte se aloja:

Quantos óculos usavam!

 

Para o dogma superior,

Parte eram dos instruídos,

Cada um explorador

Dos camponeses traídos.

 

E a verdade consistia

Só em leque de pensamentos,

Que não temos outra via

De iluminar os momentos.

 

Nenhum dado, de tal jeito,

Interior ou exterior,

Se entende, pois, a preceito,

Só lhe figuro o teor.

 

O real, qualquer que seja,

Sempre, fatal, ultrapassa

O que a mente dele veja,

Vago traço que o retraça.

 

 

Fito

 

Uma verdade absoluta,

Uma absoluta moral

São o fito da conduta,

Não o que atinjo ao final.

Sendo sempre aproximável,

Não é nunca consumável.

 

Itinerário infinito

É o que sou, da vida o fito.

 

E mesmo para além dela

A plenitude à janela

 

Plenifica-me, inefável,

Não esgota o Inesgotável:

 

A Verdade é mais além

E mais além, sempre o Bem.

 

Doutro modo nem havia

Céu nenhum, só fantasia.

 

 

Buscam

 

Buscam verdade absoluta

Onde ela jamais existe:

Na doutrina, ideologia,

Em mil regras de conduta,

Histórias que em resma aliste...

Em comum são igual via:

 

- Tudo meros pensamentos.

Um pensamento apontar

Poderá para a verdade,

Não é a verdade. E os ventos

Que pode desencadear

São, errando, a atrocidade.

 

 

Religião

 

Toda a religião é falsa

Como toda é verdadeira.

Se eu a utilizar como alça

De alçar a Verdade inteira,

Sempre falsa é tal peneira:

É uma religião dum ego,

De tradições mero apego.

 

Se só ali mora a verdade,

Torna-se uma ideologia,

Duma superioridade

Ilusão e fantasia.

 

Vai dividir as pessoas

E termina no conflito:

É o invés dela que ecoas,

Do que perfilhar por fito.

 

Ao serviço da Verdade

Que Infinda nos ultrapassa,

Ao invés, será na herdade

Do mundo um sopro de graça:

 

Devém rede de sinais,

Mapas deixados por quem,

Mais desperto do que os mais,

Ajuda a acordar também

Para a interior dimensão

Tudo quem o queira então.

 

Consuma a libertação

Nela de todo e quenquer

Duma identificação

Com qualquer forma que houver,

 

Todas a manufactura

Só que o tempo nos apura,

 

Meros meios com que avanço

Para o Infindo, a cada lanço.

 

 

Imo

 

Em meu imo há um Cristo interno,

Um Buda por natureza,

Um Atman, um deus que eterno

Me habita na singeleza.

Eis a dimensão que em nós

A tudo nos ata os nós.

 

Uno aí sou com a vida

No fundo imo pressentida.

 

Uno aí sou com o Todo,

Gérmen de Deus deste modo.

 

 

Certo

 

De eu estar certo o princípio

E de o outro estar errado,

De boa vontade equipe-o

Embora, é um transtorno atado.

 

Enraizou-se onde o conflito

Entre nações, raças, tribos,

Religiões ou qualquer mito

De ideologia tem cibos.

 

Tornou-se de longa data,

Endémica dor, extrema.

Cada qual consigo empata,

Identificado ao lema.

 

Incapazes de entender

Ambos outra perspectiva,

Outra história tudo a ler,

Por igual válida e viva.

 

Ambos donos da verdade,

Vítimas se consideram

E o outro, pura maldade

Que nem gente é, vituperam.

 

Desumanizado assim

O outro como inimigo,

Podem matá-lo, por fim,

Sem remorso nem castigo.

 

Não sentem-lhe a humanidade

Nem sequer o sofrimento,

Do cárcere da verdade

Cada qual preso ao frumento.

 

 

Vir

 

A ganância, o egoísmo,

Exploração, crueldade,

A violência – são o abismo

Onde o planeta se evade.

Se não vir a disfunção,

Personalizo-os então.

 

Fabrico uma identidade

Para um indivíduo, um grupo:

“Eis dele a realidade”,

“Eis o que são que eu apupo”...

É meu ego a dar a mão

A uma mistificação.

 

Nenhum deles se confunde

Com aquilo que ele faz.

A visão que isto fecunde

É ver que ele está por trás.

É por trás do saco às costas

Que comuns temos apostas.

 

Não é ler-me superior,

Reagir a condenar,

Contra o inimigo o ardor

Indignado projectar.

Isto satisfaz meu ego,

Noutro e em mim gerando o apego.

 

Entre mim e o outro cresce

Então a separação

E mais diferença acresce

À que detrás vinha então.

A humanidade evidente

Que é comum já ninguém sente.

 

 

Também

 

Tudo aquilo que me ofende

E a que noutrem mais reagir

Também em mim a haver tende

E em mim o ataco, ao agir...

- Todavia, é tudo ego,

Nem em mim nem noutrem pego.

 

Não tem nada a ver com ele,

Não tem nada a ver comigo,

Com o eu dele a que eu apele,

Com meu eu que trago a abrigo.

Só me ofende se confundo

Nosso eu com o que há no mundo.

 

Tudo aquilo é apenas ego,

Mudo se dele despego,

 

Se me não identifico

De nada com o salpico.

 

Eu e o outro a animação

Seremos da vida então:

 

A mão então dar podemos

E outros trilhos trilharemos.

 

 

Proteger

 

Posso ter de proteger-me

Ou de proteger alguém,

Mas cuidado com o germe

De ego que com isto advém:

Se erradicar quero o mal,

Como ele acabo, afinal.

 

O combate à inconsciência

À inconsciência me atrai:

O derrotado à ocorrência

Da desforra logo vai.

Aquilo que combatemos

Afinal fortalecemos.

 

Aquilo a que resistimos

Em toda a linha persiste.

Guerra à droga, ao crime ouvimos,

À pobreza, ao cancro, insiste...

Ao tratar como inimigo

Acrescento o que persigo.

 

Guerra é forma de pensar.

Se eu ganhar, novo inimigo

Irá dela germinar,

Nunca mais encontro abrigo.

Há sempre correlação

Entre a mente e o mundo chão.

 

Quando somos dominados

Por um bélico pensar,

Distorcemos os mil dados

Com que temos de lidar.

Só vejo o que quero ver,

Vejo mal o que vier.

 

Tudo era bem diferente

Se eu encarara ali tudo

Como a tarefa emergente,

O desafio a que acudo,

Eu em diálogo no mundo,

Semeando o que vir fecundo.

 

 

Sempre

 

O ego é sempre a insanidade

Que há-de ter a mente humana.

Assim vê-lo, a identidade

De ninguém é, que me engana.

Então não vou reagir

A ele, pois, a seguir.

 

Daí, com o eu do outro,

Não com dele a produção,

Poderei ter meu encontro,

A ver se ela é boa ou não.

Eu com eu nos entendemos

E além mais ir poderemos.

 

Poderei ter compaixão.

Todos doença da mente

Vivemos, irmão a irmão,

E curá-la é que é premente,

Nossos eus atando em nós,

Eu mais tu somando um nós.

 

Reagir, confundindo os planos,

É que é uma fonte de danos.

 

 

Alguém

 

Alguém que me acusa de algo,

Não me conhece o valor,

Invade os campos que galgo,

Põe-me em causa o meu teor,

Disputa por um dinheiro...

- E a ira tolhe-me inteiro!

 

Ouço-me a voz irritante

Ou estridente ou roufenha,

A defender num instante

A posição que ali tenha,

Justificando, atacando,

A inculpar a quem não mando.

 

É o momento da inconsciência,

Algo em mim entrou em guerra,

Sente ameaçada a vivência,

Quer sobreviver, se aterra,

Reivindica a identidade

Na vitória que ter há-de.

 

Esqueci-me: não sou eu

Em tudo aquilo a que adiro

E a que apelidar de meu.

Ao confundir-me, me firo:

Creio, ao perdê-lo, perder-me,

E torno-me é disto um verme.

 

 

Buscando

 

Quando um ego entrou em guerra,

É apenas uma ilusão

Buscando a sobrevivência.

Ao erro a ilusão se aferra

De que estou eu em questão,

Eu que luto na pendência.

 

Ora, eu sou a consciência,

O espectador que repara,

Presença cuja evidência

Mal vejo, não se separa

Do que numa intervenção

Esteja acaso em questão.

 

Se com isto me confundo,

Já não sou eu, sou um ego

Atolado bem no fundo

Do lodo que houver no pego.

Se me distingo, na luta

Não me escravizo à disputa.

 

Liberto deste domínio,

Não sou mais ego, sou eu,

Dum poder novo o fascínio

Logo a mim me preencheu,

Maior que o ego ou a mente,

Sou eu mesmo independente.

 

Tomando consciência do ego,

Do ego me irei libertando.

No poder do agora pego,

Sou presente respirando.

A minha presença aqui

Não é o que ontem já vivi.

 

Presença de mim a mim

Na minha presença ao mundo,

Este é o derradeiro fim

Da vida humana que fundo:

O poder de aqui-agora

Gerir com quanto ali mora.

 

 

Frágeis

 

São frágeis as estruturas,

As formas, crenças, eventos...

Se aquilo ser te afiguras,

Volátil és como os ventos.

Contudo, tudo findado,

Eis-te aí de pé postado,

 

- Então, se não és aquilo,

Que é que és tu, no teu sigilo?

 

 

Famosos

 

Alguém se evidenciar

Notando por acidente

Famosos de que anda a par

É o ego ali a tentar

Ser maior que toda a gente.

Como não fora importante,

É-o de empréstimo adiante.

 

Nem repara na mentira

Da identidade que tira.

 

Dos eus deveras o empório

Ri de todo este simplório.

 

 

Desgraça

 

Desgraça de ser famoso

É que em si o que ele for

Obnubilado é do gozo

Do colectivo esplendor

Da imagem edulcorada

(Que dele nem terá nada).

 

Todos quase evidenciar

Querem sua identidade

(Que é mental imaginar)

Junto à individualidade

De alguém que for elevado

Entre outrem, por algum lado.

 

Podem nem saber que não

Andam nele interessados.

Querem é sua noção

De si bem robusta, dados

Que lhes darão, desde o início,

Um monumento fictício.

 

Acreditam que através

Do famoso podem ser

Mais do que são. É um revés:

Não se completa quenquer

Só pela imagem mental

De quem pôs num pedestal.

 

 

Contradição

 

Há contradição grotesca

Entre o que o vulgo projecta

Como vida principesca,

Nobres feitos, visão recta

De alguém no cume da fama

E o que ele é na pobre trama

 

Do que em seu cotio for,

Do que é de operar senhor.

 

Todos uns pobres coitados

Somos dos quatro costados.

 

E famoso que o merece

É quem isto nunca esquece.

 

 

Desempenha

 

O ego quer algo de alguém

E desempenha um papel

Visando o que dali vem:

 

Ora é um bem por que ele apele,

A sensação de poder,

Ora bem na própria pele

 

Se sentir mais que quenquer,

Ser tido por especial,

Gratificação que houver

 

Acolher como sinal

De como ele é grandioso...

E quase sempre é normal

 

Que nem dê conta, gozoso,

Do papel que desempenha:

Ele é o papel precioso.

 

Subtis alguns que ele tenha,

Óbvios outros são aos mais,

Não a ele a quem convenha.

 

Chamam a atenção uns tais,

Para que os demais reparem.

O ego alimentos reais

 

Retira dos que atentarem.

De energia ignora a fonte

Que do imo as bicas jorrarem.

 

Dentro em nós sem horizonte,

Fora é que vai procurar.

Presença a si sem ter ponte,

 

Numa forma a vai buscar:

Admiração, elogio,

Reconhecimento, altar,

 

De admiração desfastio...

De algum modo ser notado

É que à vida por um fio

O atém: ei-lo confirmado!

 

 

Tímido

 

Tímido, se tu não gostas

De dar nas vistas, um ego

Tens ambivalente às costas:

Tanto tem desejo cego

Como receio total

Da atenção do outro, afinal.

 

Ele teme que a atenção

Possa revestir a forma

De qualquer reprovação

Ou crítica, o que, por norma,

Lhe enfraquece a identidade,

Tira a força que lhe agrade.

 

O medo aí da atenção

É mais que a necessidade

Que dela irá ter então.

A imagem faz que degrade,

Com o juízo negativo

De inadaptado furtivo.

 

É de ego a imagem pensada

Quer a de “eu sou o maior”,

Quer “não presto para nada”.

Sob o positivo ardor

É tudo o medo gritante

De não ser bom o bastante.

 

Sob o negativo anseio

É anseio de ser maior,

De ser o melhor do meio,

Ante os mais a contrapor.

Por detrás da confiança

Medo é de que o não alcança.

 

O tímido inadaptado

Que se sente inferior

Tem o desejo velado

De um dia ser superior.

Entre os extremos oscila,

E é tudo ego o que perfila.

 

 

Papéis

 

Diferentes indivíduos

Representam diferentes

Papéis no mundo assumidos:

Somos todos divergentes.

Pouco importa que função

Desempenhamos então.

 

Se nos identificamos

Com ela de tal maneira

Que a nós já não dominamos

E ela nos domina inteira,

Tornamo-nos num papel:

Não sou mais eu, sou só ele.

 

De mim findo inconsciente.

Se me apercebo de tal,

Crio a lonjura presente

De mim ao que é meu sinal:

É a minha libertação

Do papel e da função.

 

Se nos identificamos

Totalmente a um papel,

Um comportamento olhamos

Tal se eu fora a minha pele:

Eu, fundido a meu império,

Demais lá me levo a sério.

 

E aos outros mais atribuo

Esta mesma confusão

Quando com eles actuo:

São só os papéis que terão.

Para um médico um paciente

Serei: deixei de ser gente.

 

 

Muitos

 

Há papéis predefinidos

Com os quais se identificam

Muitos, muitos, de imediato.

Encontram neles sentidos

E egos são que pontificam

Sem o eu nunca em nenhum acto.

 

As interacções humanas

Algo desumanizadas,

Pouco autênticas findando,

Afastam como praganas

As pessoas programadas,

Nunca a si aos mais se dando.

 

Estes papéis esquemáticos

Dão noção de identidade

Que de algum modo conforta.

Apesar de serem práticos,

Perdemo-nos, na verdade,

Dentre eles, trancada a porta.

 

Na hierárquica estrutura,

Igreja, Estado, Governo,

Logo as funções se transmudam

Em identidade pura.

Todo o interagir interno,

De invisível, grita: acudam!

 

 

Arquétipos

 

Arquétipos sociais

Dão papéis padronizados:

De casa donas iguais,

Machos duros, calejados,

A sedutora, o artista

Como inconformado à vista,

 

O culto que para o público

Exibe literatura,

Música de bom repúblico

Como outrem de alta costura

Exibe da veste a trama

Ou carro topo de gama...

 

E o papel de adulto então?

Levamo-nos muito a sério

A nós e à vida em questão.

Desta pressão sob o império,

Descontracção e alegria

Destes papéis não são guia.

 

 

Mudas

 

Aquele que andar desperto

Detecta mudas subtis

Na postura, com o acerto

Àqueles com quem condiz:

Uma é a fala ao presidente,

Outra, ao porteiro presente.

 

São diferentes papéis:

Não actuo como um eu

Com outro trocando anéis

Mas com o posto que é o seu.

E assim é com toda a gente:

Filho, marido, parente...

 

Quando numa loja entrar,

Num restaurante, num banco,

Nos correios... – o lugar

Impõe papéis onde abanco

Predefinidos adiante,

A que obedeço constante.

 

Vou actuando um papel

E o vendedor, o empregado

Por igual o que os impele

É o papel que lhes é dado.

Cada qual me trata assim

Pelo meu papel a mim.

 

Os eus não se encontram nunca,

São as imagens mentais

Dum lado e doutro o que junca

As redes todas sociais.

Se aos papéis me identifico,

De afecto e laços abdico.

 

 

Capaz

 

Quem não for capaz de ver

Além do papel social,

Da identidade mental

Que ele colar em quenquer,

Sem encontrar semelhança

Em todo o humano que alcança,

 

Inda não entendeu nada

De quem é na humana estrada.

 

Tem de ir até à fundura

Que iguais todos nos figura:

 

Na intimidade desse eu

É que igual aos mais se viu.

 

Aí pode dar a mão

Ao mundo a talhar do chão.

 

 

Dor

 

Depressão, esgotamento,

Reacção exagerada

São o frequente tormento

Duma dor dissimulada.

Chego mesmo à negação

Ante mim de haver lesão.

 

É um papel desempenhado

Por indivíduos que ignoram

Que eles são um outro lado,

São um eu com que laboram

Tudo o que lhes acontece,

Cultivando a própria messe.

 

Nunca são a própria dor,

São quem se lhe irá impor.

 

 

Filhos

 

Se tu tens filhos pequenos,

Faz o melhor que puderes:

Ajuda em quaisquer terrenos

De semeadura que houveres,

Dá o norte de orientação,

Presta toda a protecção...

 

Mais importante que tudo:

Dá espaço de autonomia.

Que de miúdo a graúdo

Corra por si todo o dia:

Lugar de ser. E ser tudo.

 

 

Creres

 

Creres tu que és tu quem sabe

O que é melhor para um filho,

Mal na infância ainda cabe,

Para os dois é, após, sarilho.

 

Quanto mais ele crescer,

Menos tal é verdadeiro:

É ele a tornar-se o ser

Dele próprio por inteiro.

 

Quanto mais expectativas

Crias do que for melhor

Mais mortas as trilhas vivas

Imporás do que ele for.

 

Mais prisioneiro da mente

Vais ficar em cada dia,

Em vez de ficar presente

Ao filho que se anuncia.

 

E ele precisa de ti

Deveras doutra maneira.

Mas tu estás demais aí

E ele a sós à tua beira.

 

 

Cometem

 

Os filhos cometem erros,

Vão aguentar sofrimentos.

São humanos, nossos berros

Marcam-nos os nascimentos.

 

Erros, porém, muitas vezes

São-no apenas para o modo

De pensar que são reveses

E, afinal, são novo bodo.

 

O que é um erro para ti

É o que então têm de fazer,

De experimentar ali,

Hora de autêntico ser.

 

Dá tua máxima ajuda,

A melhor orientação,

Sabendo que crescer muda,

Ou filho adulto é um anão.

 

 

Poupar

 

Não era maravilhoso

Poupar de vez os teus filhos

A quanto for doloroso?

Não era: só traz sarilhos.

 

Eles não evoluiriam

Enquanto seres humanos

E fúteis permaneciam,

Do exterior presos a enganos.

 

O sofrimento nos leva

A mergulharmos mais fundo,

A buscar a fuga à treva,

A amanhecer luz no mundo.

 

O sofrimento é causado

De identificar-me a formas

E as desgasta, doutro lado,

Mal com tal te não conformas.

 

Se vês que não és a dor

Com que a sofrer te fundiste,

O teu ego sofredor

Já consciente destruíste.

 

Tu como teu filho, então,

Tomareis em mão tal dor

A ver se a ultrapassarã:.

De sofrer é outro o teor.

 

 

 

Ultrapassar

 

A humanidade é um destino

De ultrapassar sofrimentos,

Não na forma dos fermentos

Que eu como um ego imagino.

 

Do ego o pressuposto errado

É que eu não devo sofrer.

E o erro transfiro ao lado

A qualquer filho que houver.

 

A raiz do sofrimento

É sempre este pensamento.

 

A dor tem um fito nobre:

A consciência evoluir,

Eliminar o ego pobre

E eu ser eu a seguir.

 

O Cristo crucificado

É a marca do trilho dado.

 

Representa os homens todos

Como todas as mulheres:

Trocas os falsos engodos

Ressuscitado até seres.

 

Resistir ao sofrimento

É criar o ego maior

Num itinerário lento

Quando o ego é de se transpor.

 

Quando este é o eliminado,

Acolhido o sofrimento,

Tudo corre acelerado,

Dor consciente do momento.

 

Podemos aceitar dor,

A minha ou doutro qualquer,

Pais, filhos, seja quem for,

- É a dor freima a empreender.

 

A forja na dor sofrida

Luz da consciência é vivida.

 

 

Cegueira

 

Quem pelo ego é dominado

Não vê quanto faz sofrer:

É o caminho adequado

À conjuntura que houver.

 

Na cegueira é incapaz

De ver quanta dor inflige

A si, aos demais atrás...

Nunca tal questão o aflige.

 

A infelicidade é doença

Do ego vinda sem polémica,

Do mundo inteiro pertença

Em proporção epidémica.

 

É equivalente interior

À poluição mais completa

Que andamos todos a impor

Igualmente no planeta.

 

 

Estados

 

Os estados negativos,

Ira, ansiedade, ódio, mágoa,

Ciúme, inveja... – de arquivos

Dum ego são corrente água.

 

Mas por negativos não

São dele reconhecidos

E justificados são

Como certos e assumidos.

 

O pior é que causados

Crê que por outrem serão

Ou por exteriores fados,

- Pelo próprio é que não!

 

 

Distinguir

 

Um ego não é capaz

De cindir a conjuntura

Da interpretação que faz,

De como reage na altura.

 

“Que dia horrível!” – diremos,

Sem repararmos que o vento,

O frio, a chuva que vemos

Horrível não são tormento:

 

São o que são e mais nada.

Horrível é a reacção

Que lhes tenho na jornada,

A resistência, a emoção

 

Interior que lhes aplico

A partir da rejeição.

O bom e o mau verifico,

Afinal, que nada são,

 

Só pensamento que assim

Por minha mão os conforma.

Negatividade em mim

É meu ego a tomar forma.

 

 

Enormemente

 

Ira e mágoa fortalecem

Sempre enormemente um ego,

Separações robustecem,

Às diferenças no apego.

 

Criam posição mental

De justiça irrefutável,

Aparência feita real,

Quando em tudo nada é fiável.

 

Se fora capaz de ver

Quão mal os meus órgãos findam,

O coração a bater,

O estômago onde nos brindam

 

Náuseas, dores e as defesas

A cair por todo o lado,

É claro que somos presas

Do inferno naquele estado.

 

São formas de sofrimento,

Já não temos mais lazer

Em meio a tanto tormento,

Pusemos termo ao prazer.

 

 

Pendor

 

Sempre que nos encontramos

Num estado negativo,

Por um pendor desejamos

Aquilo em nós bem activo.

 

Algo agradável o vemos

Ou então acreditamos

Que permitir que cheguemos

Nos vai aonde queiramos.

 

Senão, quem desejaria

Ser infeliz ou os mais

Pôr infelizes na via

Da vida em trânsitos tais?

 

Quando o negativo em mim

Vejo que tira prazer

Daquilo ou dum útil fim

Que crê que poderá ter,

 

De meu ego cônscio fico.

Com o ego assim descoberto,

Com tal não me identifico

Da consciência a coberto.

 

Findo o ego a enfraquecer

Com tudo o que em mim distorça

E a consciência a crescer

Ganha então em mim mais força.

 

 

Transcendo

 

Se vejo, neste momento,

Que crio o meu sofrimento,

 

Transcendo as limitações

De estados e reacções

 

Pelo ego condicionados

Que nos têm aprisionados.

 

Abro nisto infinidades

De mil possibilidades,

 

Modos mais inteligentes

De lidar em quaisquer frentes.

 

Livre findo de abdicar

Da infelicidade alvar,

 

Ao descobrir, de repente,

Que ela é pouco inteligente.

 

Negatividade é parva:

É um ego que em mim escarva.

 

O ego pode ser esperto,

Inteligente, nem perto.

 

A esperteza os próprios fins

Persegue mais seus afins.

 

A inteligência vê o todo

Que é maior que aonde rodo.

 

Neste todo as coisas dadas

Todas vão interligadas.

 

A esperteza é o interesse

Próprio que em nós permanece,

 

A união ao todo furtas,

Preso sempre a vistas curtas.

 

Mui político, empresário

É um esperto salafrário.

 

Muito poucos são agentes

Deveras inteligentes.

 

Por esperteza o logrado

Dura tempo limitado

 

Como a prazo, fatalmente,

Sempre é contraproducente.

 

 

Predominar

 

Impaciência, irritação,

Tédio, nervosismo e mais,

Angústia latente dão

A predominar então

Da vida em muitos quintais.

 

Nem sabemos donde vêm

Nem que os anda a alimentar.

Mas sempre na mente têm

Suportes que mal se vêem

E que é urgente detectar.

 

Aí então despertamos,

No momento esclarecidos.

Com a mente nos deixamos

De identificar, nos ramos

Em que nos quer ver mordidos.

 

 

Crenças

 

Há crenças inconscientes

Que me trazem mal-estar,

Pensamentos cá presentes

Com que eu troquei de lugar.

Vivo a sonhar acordado

E eles são meu negro lado.

 

Se à tona nunca os trouxer,

Vão ser meu ego escondido,

Toda a vida a me torcer

Até me ter espremido

De mim mesmo, de meu eu

Que assim neles se perdeu.

 

 

Sentir-me

 

Se algo tem de acontecer

Na vida para poder

Sentir-me em paz realizado,

Se sofro por tal evento

Não vir inda à mão do vento,

Não ser dele bafejado,

 

E se o sofrimento meu

Leva o que não ocorreu

Ali a ocorrer de vez,

Será então de tomar tento:

Escravo do pensamento

Sou numa vida ao invés.

 

Quem manda em mim é meu ego

E jamais terei sossego.

 

 

Outrora

 

Algo outrora me ocorreu

Que não devia ocorrido

Ter e que então me feriu.

Sofro inda aqui por mor disso.

Não houvera acontecido

E hoje eu seria um chamiço

A arder no lume da paz

Que não tenho e mais me apraz.

 

- Se hoje eu vivo a vida assim,

Manda-me o passado em mim.

 

Nem é vida: são os mortos

À vida a dar trilhos tortos.

 

 

Impede

 

Algo anda agora ocorrendo

Que não devia ocorrer.

É quanto em paz eu entendo

Que me impede de viver.

 

- Momentos de tal jaez

É que me matam de vez:

 

São o meu ego escondido

A ter-me à mão lá prendido.

 

 

Devias

 

Tu devias fazer mais,

Que então me sentia em paz.

Sofro por, sendo capaz,

Feito não teres jamais.

Talvez o meu sofrimento

Te leve a fazer o aumento...

 

- Tal jeito de outrem mandar

É meu ego a comandar,

 

Comigo na identidade

De meu eu sem mais verdade.

 

Se eu for um eu por inteiro,

Noutrem não mando, leveiro,

 

Dou-lhe a mão no que ele queira,

Só disponível à beira.

 

 

Ontem

 

Aquilo que tu fizeste,

Disseste ou não conseguiste

Fazer num ontem agreste

Impede, em negro despiste,

Por mais que eu seja capaz,

De hoje aqui sentir-me em paz.

 

- Quem assim cuida e se exprime

Dum ego não se redime:

 

Confunde emoção e facto,

Só do vácuo sente o impacto,

 

Sem se olhar ali de fora

Para acudir, desde agora,

 

Com quanto seu eu quiser

Operar no que ocorrer.

 

 

Sentir

 

Aquilo que estás agindo

Ou aquilo que não fazes

É o que me vem impedindo

De em paz nos sentir capazes.

 

- Isto é o ego em nossos laços,

Nosso eu disto não tem traços:

 

Nunca a paz íntima vem

Senão de mim, mais ninguém.

 

Nem eu nem o outro somos

O que fazemos nem pomos.

 

Não nos identificamos

Com o que aos trilhos legamos.

 

 

Afirma

 

O ego afirma que talvez

No porvir sentirei paz,

Se ocorrer certo entremez

Se obtiver o que me traz,

Se me transformar naquilo

Que a mim me porá tranquilo...

 

Ou que nunca poderei

Sentir-me em paz, que ocorreu

Algo outrora que nem sei

E o caminho me tolheu...

É o que, pelo ego, demora

A sentir-me em paz agora.

 

O ego não vai saber nunca

Que a oportunidade mora

De a paz viver que nos junca

Precisamente no agora.

Se calhar o medo tem

De o descobrirmos também.

 

É que a paz comigo, enfim,

Do ego significa o fim.

 

 

Adora

 

Um ego adora sofrer

Com a realidade ao pé.

Ora, o real é tudo o que é,

Em cada momento a ser.

O ego é sempre oposição

À correnteza do chão.

 

O ego é negatividade,

A infelicidade adora.

Provoca com gravidade

Em nós, noutrem, toda a hora,

O inferno que nós nem vemos

Que, afinal, é o que faremos.

 

Provocar o sofrimento

Sem o nós reconhecermos

É inconsciente tormento

De viver sem nós vivermos.

É de inteiro dominados

Sermos do ego nos cuidados.

 

Dum ego a incapacidade

De a si se reconhecer

É incrível opacidade

Que o leva então a fazer

O que nos outros condena

Sem reconhecer tal cena.

 

Quando anda determinado,

O ego nega enfurecido,

Tem astuto argumentado,

Se autojustifica erguido,

Para perante quenquer

Todo o facto distorcer.

 

Fá-lo-ão assim as pessoas

E as empresas o farão

E os governos que abençoas...

Se o mais falha, é uma agressão

Verbal e, ao fim, corporal

Do ego o último sinal.

 

 

Findar

 

A findar o sofrimento

Que atormenta a humanidade,

De há milhões de anos tormento,

É por mim, por ti que ele há-de,

Com responsabilidade,

Morrer a qualquer momento.

 

E não tolera demora:

Deverá ser mesmo agora!

 

 

Fortalecer

 

Vou fortalecer meu ego

Se, doente, então me queixo,

Com pena de mim me apego

E ressentido me deixo.

Se, ao definir-me, eu assente:

“Que é que sou? Sou um doente.”

 

Fica o mundo a já saber

Com que identifico o ser.

 

Mas é uma asneira pegada:

Meu ser é a minha pegada?!

 

 

Fundo

 

Há o doente mais amável,

Mais delicado e simpático:

Mais fundo entendeu e fiável

Quão o imo é frágil e prático.

É uma interior alegria

De quem entreviu magia,

 

Distinto ao ser da doença,

O eu que lhe sofre a sentença.

 

Mas nunca se identifica

Com ela que se lhe aplica.

 

Antes ele é que a enfrenta

Como quanto em vida o tenta.

 

 

Pensamento

 

Repetitiva, automática,

Do pensamento é a corrente,

Involuntária, acrobática,

Mental energia prática,

Sem alvo nenhum à frente.

 

Eu não penso o pensamento,

O pensamento me pensa.

Não é da vontade o vento,

Nem de escolha há provimento,

Por si em si se condensa.

 

Neste nível basilar

Grande número de gente

É como logra pensar.

“Eu penso” é neles falsear

Toda a espontânea corrente.

 

Ninguém “eu digiro” diz

Nem “circular sangue faço”:

A digestão não a fiz

E a circulação condiz...

Igual de pensar é o traço.

 

 

Voz

 

A voz dentro da cabeça

Tem vida própria. A maior

Parte de nós de tal peça

Vive à mercê, que tropeça

Na força dela a se impor.

 

Dominados pela mente

Que acúmulo é do passado,

Revivemos permanente

O que outrora foi presente,

Pesadelo continuado.

 

À mente identificado,

Nunca de tal conta dou.

Se o soubera, já deixado

De ser dela dominado

Lograria, a ser quem sou.

 

Só sou mesmo dominado

Se confundo quem domina

Comigo, ao pôr-me de lado.

Quando me houver transformado

Já nele, por minha sina.

 

 

Humanidade

 

A humanidade é o domínio

Da mente, sem conhecer

Que o que ali guardou no escrínio

E lhe mantém o fascínio

Igual não é dela ao ser.

 

Uma identificação

Total com a mente é falsa.

É sempre um ego em acção

Que é tanto mais forte quão

Mais como mente alto se alça.

 

O pensamento não passa

Dum dado meu interior,

Ínfimo pendor que grassa

Do íntimo por toda a praça,

E eu sou eu, dele a dispor.

 

 

Liberto

 

Quando me liberto do ego,

Tudo é paz, vitalidade

E de alegria um sossego

Que faz, quando a tal me entrego,

Que viver tem validade.

 

Germino amor, compaixão,

Brota a criatividade...

Sou eu próprio em acção

A gerir a vida então,

Tiro ao ego a validade.

 

Idêntico aqui não sou

Ao que crio, onde me dou.

 

Sou sempre eu, um mais-além,

Não me esgoto no que vêem.

 

 

Viva

 

Há quem viva sempre preso

A um qualquer modo de vida,

Alheio a si mas coeso

Com a grilheta de peso

Que o identifica em lida.

 

Alheados de si, do mundo

Que ali lhes girar à volta,

Rosto tenso e não jucundo,

Ausente, absorto, infecundo,

São só pensamento à solta.

 

Não ouvem nem ninguém vêem,

Ao presente não presentes,

Só passado ou porvir lêem,

Que são só mente não crêem

Mas daqui vão sempre ausentes.

 

Quando muito criam ponte,

Desempenhando um papel,

Doutrem para o horizonte.

Idênticos a tal fonte,

Nunca são na própria pele.

 

A maioria alienada

Vive de quem é deveras.

E tanto identificada

Com a ilusão incarnada

Que só fingimento esperas.

 

 

Inteligência

 

Qualquer organismo vivo

Tem inteligência sua,

Planta, animal, a Lua,

O Cosmos enorme e esquivo...

A razão é universal,

Não só minha nem mundial.

 

É o que unifica e mantém

Um corpo, todo e qualquer,

Os alimentos retém,

O oxigénio faz sorver...

Na Galáxia cumpre as leis

Deste Universo onde andeis.

 

Não sou quem no corpo manda,

É inteligência basal:

Em respostas o comanda

No meio ambiente geral.

É assim na planta a florir

Tal na Terra ao deixar-se ir.

 

O mais curioso em nós

É que nós, para além disto,

Temos a mente, onde após

O inteligente registo

Desencadeia emoções

Protagonistas de acções.

 

Não sinto grande emoção

Dum carro alheio roubado.

Porém, se for meu, então,

Sinto-me mesmo agitado.

Da mente a noção de meu

É que à muda procedeu.

 

É incrível a quantidade

De emoções que dum conceito

De nada por fim se evade,

Cruza toda a vida a eito,

Até o Homem definirmos

Pela razão que ali virmos.

 

 

Faz

 

O corpo nunca distingue

O facto do pensamento,

Faz que o pensamento vingue

Tal se a um facto fora atento.

 

Se pensar preocupado,

O corpo lê que há perigo,

Mesmo que esteja deitado

No conforto dum abrigo.

 

Bate o coração depressa,

O músculo se contrai,

A respiração opressa

Desembesta, a correr vai...

 

Quando é uma ficção mental,

A energia acumulada

Não tem escape no real,

Fere o corpo em retirada.

 

E então, se me identifico

À mente desenfreada,

Trepa a ansiedade ao pico,

É do ego toda a jornada.

 

E eu fiquei pelo caminho

Sem ver quanto estou sozinho.

 

 

Desencadeia

 

A nossa mentalidade

Desencadeia respostas

Com tanta velocidade

Ao que gostas e não gostas

Que a mente nem tempo tem

De voz dar ao que convém.

 

Vem de condições de antanho,

De infância acaso esquecida:

“Se confio, perco o ganho”,

“Ninguém me respeita a vida”,

“Não terei valor nenhum

Diante de qualquer um”,

 

“O dinheiro nunca chega”,

“A vida só desilude”,

“Abundância em mim não pega”,

“Não mereço amor que ajude”...

- E o preconceito fabrica

O real que se me aplica.

 

 

Quebra

 

A voz do ego quebra, instante,

O bem-estar natural.

A pressão que aguento adiante

Não é de externo sinal,

É ameaça proveniente,

Prioritária, da mente.

 

Um corpo a um ego preso

Só lhe vai corresponder

À disfunção de que ileso

Nada ali salvo há-de ser:

Emoções bem negativas

Só dali vêm compulsivas.

 

E eu findo barco à deriva,

À cachoeira sem esquiva.

 

 

Equilíbrio

 

Uma emoção negativa

No corpo é toxicidade,

O equilíbrio desmotiva

Na disfunção que o invade.

 

Medo, tristeza, ansiedade,

Ira, ódio, aversão,

Ciúme, inveja, má vontade...

- Um tal leque de emoção

Prejudica a energia

Que o corpo é no dia-a-dia:

 

Logo afecta o coração,

O sistema imunitário,

Hormonas, a digestão...

Não pára neste sumário

A gradual destruição

De tão negro itinerário:

 

Alastra o mal às pessoas

Com quem eu laços tiver

E destas, em mais coroas,

Em cadeia, por quenquer...

 

Um termo conta a verdade:

Tudo é uma infelicidade.

 

 

Revigoram-nos

 

As emoções positivas

Revigoram-nos e curam.

Mas umas têm negativas

Escondidas no que apuram.

 

É que umas virão dum eu,

Outras dum ego virão.

Um ego chama “amor meu”

E é uma posse de ladrão.

 

Irá criar dependência

Que se transmuda adiante

Em ódio, por excelência,

Porventura, num instante.

 

Expectativa criada

Num porvir a ocorrer,

Do ego sobrevalorada,

No invés se irá converter.

 

Será desapontamento,

Desilusão quando ao fim

Terminar aquele evento,

Não responde ao ego assim.

 

Num dia, enaltecimento

Far-nos-á sentir felizes:

No seguinte, o esquecimento

Deprimidos tem matizes.

 

O prazer da grande festa

Transmuda-se, na ressaca,

Amanhã, no que não presta,

Onde troquei de casaca.

 

Quando um ego me domina,

À ladeira positiva

Corresponde, mal declina,

A que afunda, negativa.

 

 

Identificada

 

Emoção do ego gerada,

Identificada à mente,

À vertente externa dada,

É mudada de repente:

O exterior é sempre instável,

A todo o instante mutável.

 

As emoções mais profundas,

Do eu manifestações,

Mais que emoções são fecundas:

São de Eu Ser aparições.

As outras têm opostos,

Estas, não, são de ser gostos.

 

Amor, paz e alegria

Serei eu no meu Ser-guia.

 

 

Nunca

 

As emoções negativas

Sempre terão recidivas.

 

Se não forem encaradas

De frente e desmascaradas

 

Naquilo que são deveras:

Não eu mas minhas esperas,

 

Como tudo o mais na vida,

E um desafio em seguida.

 

Se delas fugir, então,

Para trás me deixarão

 

Resíduos de dor perdidos

Que acordarão, descabidos,

 

Vida além, a cada esquina

Que para eles se inclina.

 

 

Resíduos

 

Resíduos de dor deixados

Para trás por forte mal,

Se enfrentados no total

Não foram, reajustados

E depois ultrapassados,

Formam um campo de minas

Em nós que já não dominas.

 

É mais que uma dor de infância,

É a que for se acrescentando

Na adolescência, na instância

Duma adultez se arrastando,

 

Quanta vez, por mão dum ego

Que, com falsa identidade,

Nunca me deixa em sossego...

E é a vida que me persuade.

 

 

Nascem

 

Todos os recém-nascidos

Nascem com corpo de dor.

Uns, alegres, bem-queridos,

Parecem nem tal supor.

 

Outros a infelicidade

Carregam dentro de si.

Parece que a humanidade

Lhes desembocou ali.

 

Uns, para lhes dar amor,

Atenção suficiente.

Noutros a grita supor

Não faz motivo aparente,

 

Parece que até desejam

Que infelizes como eles

Todos em redor lá sejam,

A rasgar em dor as peles.

 

E quantos a dor do meio,

De pai, mãe e da família

Incarnam no íntimo seio,

Plena empatia em vigília!

 

O corpo físico cresce

E, nesta mesma medida,

O corpo de dor acresce

Dor a crescer na corrida.

 

 

Íntimo

 

Criança com corpo intenso

De dor, nunca ultrapassado,

Adulto não me convenço

Que será mais realizado.

Só porque o corpo se apresta,

O imo contra se encabresta?

 

É de aguardar o contrário.

Se o corpo de dor mais pesa,

O íntimo é o turiferário

Que toma lugar à mesa,

Todo o espírito congraça,

Diante a pô-lo na praça.

 

Presos ao corpo de dor

Muitos ficam. Outros mais

Mais não sofrem o pendor

De infelicidades tais.

De despertar que motivo

Mais forte há do que então vivo?

 

 

Mártir

 

O corpo mártir de Cristo,

Distorcido em agonia,

Donde o sangue lhe escorria,

Sou eu que ali algo existo.

 

Algo em mim é consonante

Radicalmente com isto,

É o espelho posto adiante

Mostrando que imo revisto.

 

Eis o meu corpo de dor,

No interior mal entrevisto,

Às claras a se ali pôr

Onde a consciência conquisto.

 

Quando o vejo a ele em mim

É que findo motivado

À dor a que ando agarrado

A impor-lhe de vez o fim.

 

 

Fome

 

O corpo de dor desperta

Quando, à fome, quer comer

Ou quando um evento aperta

O ego onde ele se esconder.

 

Quando é de se alimentar,

Qualquer minúsculo evento

É estímulo que bastar:

Dito e feito, em pensamento...

 

De repente, estou pensando

E tudo é tão negativo

Que nem consciência tomando

Vou donde me vem o arquivo.

 

É uma onda de emoção,

Humor sombrio e pesado,

Ansiedade sem razão,

Ira em pendor inflamado...

 

Pensamento é energia

E o corpo de dor se aumenta

Em mim também desta via,

Desde que em negra tormenta.

 

Pensamento de alegria

Não serve nunca tal fito.

Ao do que é mau só confia

Do alimento o requisito.

 

Um pensamento feliz

Corpo de dor não digere,

Só do de negro matiz

Se engorda o que a dor confere.

 

 

Desencadeia

 

Um pensamento habitual

Desencadeia a emoção

E uma emoção, em geral,

Pensá-la requer então.

 

Do corpo de dor o afecto

Inverte o diálogo logo

Prende o pensamento ao tecto

Do vão onde lhe arde o fogo.

 

De vez perdido o controlo,

O conceito é negativo,

Tudo é dor que desenrolo

Vida fora sem motivo:

 

São histórias de tristeza,

Ansiedade, ira na vida,

Em outrem, no que outrem reza,

No que imagino em seguida...

 

Tudo é um tom acusador,

De censura, de lamento,

Da fantasia o teor

Logo é do tom mais cinzento.

 

Se nos identificamos

Com tudo o que esta voz diz

E em tudo isto acreditamos,

Como não ser infeliz?

 

Pensamentos distorcidos

De infelicidade à toa,

Se deles somos tolhidos,

Isto a desgraça instalou-a.

 

 

Laços

 

Muitos laços afectivos

Episódios destrutivos

 

Viverão por intervalos

Regulares, com abalos.

 

É doloroso à criança

Assistir à violência

Emocional entre os pais.

E são milhões o que alcança,

Mundo fora, esta pendência,

Em pesadelos reais.

 

É a forma de transmissão

Comum do corpo de dor,

Geração a geração,

Depois de cada estertor.

 

Após é a paz relativa

Dum e outro progenitor

Na fronteira coerciva

Do ego que ali é o senhor.

 

Até à nova explosão

Que tudo arrasar no chão.

 

 

Íntima

 

Na íntima relação,

Os corpos de dor, às vezes,

De espertos, são mui corteses,

Discretos, até que vão

Ter no contrato assumida

A relação para a vida.

 

Não nos casamos apenas

Com uma esposa, um marido,

Mas por igual com as penas

Do corpo de dor vivido,

Ele com o dela, assim,

E ela com o dele, ao fim.

 

Pode ser um grande choque,

Após a lua-de-mel,

Descobrir do mal o toque

Na muda que ambos impele

Noutra personalidade

A conviver que os invade.

 

Devém áspera uma voz

Que estridente nos acusa,

Culpa, grita ou fere, atroz,

Que dum qualquer nada abusa,

Ou que, ao invés, de repente,

Finda totalmente ausente.

 

Se olhamos olhos nos olhos,

Já não existe luz neles,

Um véu desceu por antolhos

E quem rumo a quem te impeles,

A quem de amor prestas culto

Inteiro agora anda oculto.

 

Quem nos retribui o olhar

É um total desconhecido,

Hostilidade a jogar,

Ira, amargura, o gemido,

Do corpo de dor a gala,

Não do meu cônjuge a fala.

 

É a realidade torcida

Do corpo de sofrimento,

De hostilidade imbuída,

De ira e medo, num intento

De a todos dor infligir

E mais dor dali fruir.

 

 

Rosto

 

Do cônjuge o rosto vero

É aquele que nunca vi,

De dor este corpo mero

Que só me magoa ali?

Não é o verdadeiro rosto,

É o do sofrimento imposto.

 

Tomou-lhe dele o controlo,

Pode ser só temporário.

Mas com sensatez arrolo

Que é melhor optar, sumário,

Por quem corpo de dor denso

Por demais não tenha extenso.

 

 

Gastar

 

Se eu fora doutro planeta

Ou do nosso em outra era,

Julgaria que era peta,

A inverter uma quimera,

Gastar no entretenimento

Só para ver sofrimento.

 

Como é que o filme violento

Atrai tanta, tanta audiência?

É que dele o alimento

É o da humana dependência

De querer sentir-se mal,

Ver-se um infeliz total.

 

Que é que dentro em nós adora

Sentir-se mal crer que é um bem?

Corpo de dor que em nós mora

É que tais caminhos tem:

Negra ideia, pessoal drama,

Cinema ofertam-lhe a cama.

 

Corpos de dor argumentam

E tais filmes realizam,

Pagam quando os apresentam,

Quando apreciá-los visam...

É tal circuito completo

Que fecham neste projecto.

 

 

Aumentar

 

Hoje em dia a violência

Tende a aumentar, palco egóico,

Corpo de dor de excelência

Travestido até de heróico,

Aos píncaros elevada

Logo antes da derrocada.

 

Se a história revela a origem,

Os efeitos dos dois lados,

As inconsciências que vigem

Por detrás dos golpes dados,

Geração a geração

Transmitindo a sem-razão,

 

Então pode despertar

A Humanidade alheada:

É espelho, perante o olhar,

Da insanidade mostrada.

Reconhecer a loucura

É o caminho para a cura.

 

 

Filme

 

Filme que não alimenta

Corpo de dor é anti-guerra,

Do real mostra a tormenta

Como o mal que nos aterra,

Não como um pendor normal,

Desejável, no final.

 

Filme que exalta a violência,

As emoções negativas

A gerar como tendência,

São vitaminas activas

A alimentar o ego doente

Da Humanidade presente.

 

E toda a imprensa tablóide

De vez sensacionalista

Não é humana, é humanóide,

Gerar doentes tendo em vista.

Más emoções são delícias,

Vendem mais do que as notícias.

 

 

Noticiários

 

Noticiários em geral

Tendem a desenvolver

Quaisquer notícias do mal

Muito mais que o bem que houver.

Quão mais finda o mal pior,

Mais mexe o apresentador.

 

O entusiasmo negativo

Espicaçado é ao vivo

 

Pela comunicação.

O corpo de dor então,

 

Dentro em nós, num povo, um quisto,

É quem mais adora isto.

 

 

Dimensão

 

A dimensão colectiva

Do corpo de dor cá dentro

Vários matizes activa

Conforme é arrabalde ou centro.

Tribos, nações, raças, todos

Sofrem dor de vários modos.

 

Alguns mais se identificam

Com a dor que sofrerão,

Outros, menos, pontificam

Que de geri-la terão.

Porém, qualquer elemento

Do povo é disto fermento.

 

Alguns ao corpo de dor

Mais aumentam o teor.

 

Outros recusam este ego,

O eu desligam do apego

 

E são quem protagoniza

Mundo no sonho que visa.

 

 

Antanho

 

O judeu tem bem marcado

De antanho o corpo ferido,

O ameríndio trucidado

Foi do colono aguerrido,

O afro-americano herdado

Tem do escravo o pé tolhido...

 

Vítima e perpetrador

Ambos são da violência

Sempre o herdeiro sofredor:

Um aqui, ante a iminência,

Outro mais tarde, ao furor

De efeitos da proveniência.

 

O que fizermos aos mais,

A nós faremos, tais quais.

 

 

Fundiu

 

Que importa ao corpo de dor

Saber se é meu, se é comum?

Deveio de mim senhor,

Aos dois nos fundiu só num,

 

Só posso transcender isto

Se em responsabilidade

Por meu íntimo eu invisto,

De meu eu com a verdade.

 

O meu estado interior

Por mim protagonizado,

Sem noutrem a culpa pôr

Nem me fundir com um dado.

 

Doutro modo continuo

A alimentar o meu ego,

Em dor confundido em duo,

Escravo do meu apego.

 

O perpetrador do mal

É uma inconsciência humana.

Se a desmascaro, o sinal

É perdão que não me engana.

 

Deixo logo de ser vítima,

Emerge o meu vero ser,

Autonomia legítima

Da presença, o meu poder.

 

Em vez de culpar as trevas

À superfície, produz

O meu eu, então em levas,

O que é deveras a luz.

 

 

Trintona

 

A trintona sofredora

Muda o sorriso polido

Num esgar de dor, na hora,

Em soluço convertido.

A ira e tristeza nela

Frustram-na numa procela.

 

Fora em criança abusada

Por um pai sexualmente

Violento em cada jornada,

Toda a vida impunemente.

O presente não magoa,

É um passado que atordoa.

 

Filtra a dor sofrida outrora

A conjuntura de vida,

Toda a vida, vida fora,

É parâmetro e medida.

Dor e mente que a joeira

Identificam-na inteira.

 

A trintona não percebe

Que o corpo de dor reforça

Quando a mente o assim concebe,

Lhe empresta a íntima força.

Carrega o fardo que a diz

Profundamente infeliz.

 

Em vez do filtro que ideio,

É sentir directa a dor,

Sem fugir e sem receio,

A magoar seja o que for.

“Doa o que doer, aceito

E nada dali rejeito.

 

A minha infelicidade

Por eu estar infeliz

É nova camada que há-de

Acrescer à de raiz.

Se eu aceito a de partida,

Solvem-se ambas em seguida.”

 

Se não te importas de estar

Infeliz, que é que acontece

À infelicidade a par?

Não és tu, dela em quermesse:

Da infelicidade à volta

Há um espaço, dela à solta.

 

A aceitação interior

Do que estamos a sentir

Cria um espaço em redor,

Livro o eu do que lá vir.

A emoção não mais controla

O que penso e o eu descola.

 

A partir daqui, presente

Ao momento que perpassa,

A trintona indiferente

Finda ante a própria desgraça.

Todo o seu corpo de dor

A desmoronar vai pôr.

 

É apenas um campo mais

A cultivar com seus planos

De desenraizar reais

Ervas ruins que só de enganos

Infernizam nossa vida,

Destruindo-a sem saída.

 

 

Rabugice

 

Rabugice, isolamento:

Corpo de dor da criança.

Mal-humorada um momento,

Recusa-se a interagir,

Senta-se ao canto que alcança

Com o brinquedo que vir

Ou fica a chuchar no dedo,

A bebé tornando a medo.

 

Ou é um ataque de choro

Ou fúria destruidora,

Ou de gritaria um coro...

Ao chão se atira onde mora:

Basta um desejo frustrado

E desaba-lhe o telhado.

 

De repente, o anjo de oiro

É um monstro de mau agoiro.

 

Sempre herda da humanidade

Corpo de dor colectivo

E do lar se persuade

A mimetizar o arquivo:

A criança ei-la reflexo

Do imo dos pais conexo.

 

É uma dor insuportável

O drama parental ver,

A loucura intolerável

À frente dela a ocorrer.

Identifica-se então

Com tal dor fatal à mão.

 

Não se deixam enganar

Por quem diz que não podemos

Ante elas nos guerrear.

Tudo aquilo que escondemos

Fica de rabo de fora:

Contido, mais apavora.

 

Corpo de dor reprimido

Intoxica ainda mais,

Pelos miúdos absorvido.

Corpos de dor dará tais

Que pesados vida fora

São nosso mundo de agora.

 

 

Berrarem

 

Muita criança ante os pais

A berrarem entre os dois:

- “São malucos estes tais.

Como vim, em que arrebóis,

Aqui parar, por que fado?

Não havia um outro lado?!”

 

E com tão simples postura

Têm o princípio da cura:

 

Conscientes da insanidade,

Já tanto ela as não persuade.

 

 

Lidar

 

Como lidar com a dor

Que inferniza os nossos filhos?

Primeiro é de ver melhor

À dor como prendo atilhos.

 

Estou presente a geri-la

Ou me identifico a ela?

Acolá prendo-a na fila,

Aqui sou da fila dela.

 

Acolá tenho-a na mão,

Aqui ela tem-me a mim.

Sou eu naquela versão,

Sou ego na outra, ao fim.

 

Ora, se eu não lidar bem

Com a dor que em mim houver,

Como é que ao filho que a tem

O irei poder socorrer?

 

 

Perguntar

 

Quando a criança amainou,

Perguntar: que aconteceu?

Que é que em ti se então passou?

Depois desapareceu?...

 

- Ajuda-a a se distinguir

Do ego de dor que sentir.

 

Para gerir dá-lhe a mão

Ao que ocorrer nela então.

 

 

Momento

 

Dado o momento presente

Ser tudo aquilo que existe

Se eu o acolho interiormente,

 

Nem passado nem porvir

Alteram o que lhe aliste.

Como infeliz me sentir?

 

Estou presente de todo,

Dele acolho inteiro o bodo.

 

A vida cósmica habito,

Nela uno e sem conflito.

 

 

Causa

 

Corpo de dor infeliz

Sempre é desproporcional

À causa que lhe é matriz.

 

Reacção exagerada

Eis a marca principal

De lhe ver a mascarada.

 

Quem se identifica a ela

Nunca dá pela esparrela.

 

É fácil dar com motivos

De sentir-se preocupado,

Zangado, magoado, triste,

Receoso... Seres vivos

São um mundo ameaçado,

Mal se crê como é que existe.

 

Qualquer nada irrelevante

Que quenquer ignoraria

Devém a causa gritante

De infeliz ser todo o dia.

 

Não é causa, foi gatilho:

Causa é de outrora o sarilho.

 

Emoções acumuladas

Se deslocam para a mente

Enormemente ampliadas

E, como não são domadas,

Explodirão de repente.

 

Se com tal se identifica,

Um eu como ego claudica.

 

 

Manda

 

Se for meu corpo de dor

E não eu quem manda em mim,

É meu ego a se propor

Por mim se trocar, por fim.

 

Um evento que estimula

Sofre uma interpretação

Que tudo nele regula

Do ego pela distorção.

Devém tão emocional

Que a mente afunda, em geral.

 

Olhamos para o presente

Com os olhos do passado

Que em nós habita latente

E nos houver destroçado.

O que vejo ou o que sinto

Nada é do evento, é distinto.

 

O que houver neles comum,

Será tão amplificado

Que o exagero é que algum

Alimento há-de ter dado

Ao corpo de dor: viceja

Nisto mesmo, é o que deseja.

 

 

Crê

 

Aquele que é dominado

Dum corpo de dor intenso

Crê que há bem interpretado

O torcido historial denso.

 

E, quanto mais negativas

As emoções numa história,

Impenetrável a esquivas

Mais se revela à memória.

 

Jamais é reconhecida

Como uma história, afinal,

Pelo ego antes assumida

Como sendo ela o real.

 

Quando inteiramente presos

Às ideias e emoções

Fundidas em elos coesos,

Libertar-nos, que ilusões!

 

Nem sequer adivinhamos

Que algo há para além daquilo.

E assim nos acorrentamos

Do pesadelo ao sigilo.

 

Presos ao privado inferno,

Para nós é a realidade.

Outra, nem sequer do eterno,

Há por onde alguém se evade.

 

Toda a nossa reacção

E por mais que seja horrível,

É a única a ter à mão:

Única a cremos possível.

 

 

Mundo

 

O mundo se certifica

De que não nos enganamos

Em como cada autentica

Como cuida que sejamos:

Mostra-nos o que é importante

Para nós, vida adiante.

 

É um facto que mal reajo

A indivíduos como a eventos,

Quando o desafio é o trajo

Revestir eu dos momentos.

 

É o melhor indicador

De eu ser mau entendedor:

 

Certo em contextos benéficos,

Sempre é errado nos maléficos.

 

 

Pendor

 

Quanto mais pendor egóico

Há de mim no que em mim leio

Mais nos mais lerei de heróico

Quanto egóico têm no seio:

As algemas da inconsciência

Conquistam toda a evidência.

 

As faltas (como as julgamos)

Tornam-se então para nós

A identidade que olhamos.

Do ego deles o retrós

Entretece toda a imagem

Do que são e como reagem.

 

Tanto quanto de ego os leio,

O ego os lê, sem mim no meio.

 

 

Viverá

 

Quem de si é inconsciente

Viverá seu próprio ego

Pelo reflexo presente

Noutrem, ao ego no apego.

 

Quando nos apercebemos

Daquilo a que mal reagimos,

É que dentro em nós o temos,

Se calhar só nós possuímos...

 

Começo a ter consciência

Então de meu próprio ego.

Faço aos outros, é evidência,

Em tudo o que lhes pespego,

 

Aquilo que julgaria

Que cada um me faria.

 

- Começo então a deixar

De por vítima me olhar.

 

 

Revela

 

Ninguém revela quem somos,

Nem eu revelo quem sou:

Só de conceitos dispomos,

Não são parte de meu voo.

 

Quem nós somos não requer

Crença alguma nele atada.

A crença que acaso houver

É um obstáculo, de entrada.

 

Não é crer nem conhecer,

Porque já somos quem somos.

Só que, sem eu entender,

Na ribalta não nos pomos.

 

Não se manifesta à luz

O que é nossa natureza.

Sou pobre que não traduz

Os milhões que a conta reza,

 

Potencial que nunca arranca

Sempre ignorado na banca.

 

 

Julgo

 

Aquele que julgo ser

Ao modo como tratado

Julgo ser doutro qualquer

Anda sempre interligado.

 

Queixam-se muitos dos mais

Que os não tratam bem deveras:

“Não me respeitam os tais,

Nem a atenção dão que esperas,

 

Não ligam ao meu valor,

Tomam-me sempre por certo...”

Se alguém simpático for,

Desconfiam dum aperto:

 

“Querem é manipular-me,

A aproveitar-se de mim,

Ninguém vai querer amar-me...”

- Nem verão que assim é o fim.

 

 

Comum

 

Muito comum é o presente

Tratado como inimigo.

Quando detestar o assente

Sabor que tenho comigo

 

Quando me queixo constante

De tudo o que me rodeia,

Ou digo mal adiante

Do que dali nos ameia

 

Ou de quanto já ocorreu,

Tudo em meu imo é: “devias

Fazer o que é dever teu”,

Ou “querias, não querias?...”

 

São culpas e acusações.

Discutimos com o que é,

Eis a questão das questões.

Vida é um inimigo ao pé

 

E a vida diz: “guerra queres?

É guerra que tens então...”

O exterior que referes

O imo reflecte em teu chão.

 

Se o real vês como hostil,

Farás que tal se perfile.

 

 

Relação

 

Qual a minha relação

Com o momento presente?

Só sou aí: como então

Posso dele andar ausente?

 

É mero meio que eu uso

Para tornar ao passado

Que de tanto mal acuso,

Sem ver que foi enterrado?

 

Ou a apontar ao futuro

Que só na cabeça auguro,

 

Sem nenhuma realidade

A que agarrar-me em verdade?

 

Ou será mesmo um obstáculo

Que me impede de atingir

Da vida o vero pináculo

Da luta até lá subir?

 

Será o presente o inimigo

Que me impede o que persigo,

 

Que me obriga a andar ausente

De mim permanentemente?

 

Enquanto eu não exorcizo

Estas e outras mil patranhas

Nunca mais ganharei siso,

A cair do ego nas manhas.

 

É que o presente sou eu,

A vida que por mim corre.

Quem o acolhe faz de seu

Um eu que nunca mais morre.

 

 

Vejo

 

Quando me vejo presente

Em pensamento e em acção,

O disfuncional então

Salta-me evidente à frente.

 

Aí começo a surgir,

Deste ego a capa a despir.

 

Constatando a disfunção,

Começa a se diluir:

A escolha em primeira mão

É minha. E por decidir.

 

Posso transmudar o agora

Num aliado sem demora.

 

Então é que serei eu

E o ego já se sumiu.

 

 

Refeições

 

Como podemos negar

Do tempo a realidade?

Refeições a preparar

Uma casa a erguer no ar,

Um livro que a noite invade...

 

Daqui para ali é de ir,

É tempo para crescer,

Novos rumos assumir,

Lançar de agora o porvir,

Novas lições aprender...

 

Tudo aquilo que operamos

Tempo consumir parece.

Tudo a ele sujeitamos

E, a seu tempo, mal contamos,

De nos matar não se esquece.

 

Como um rio enraivecido

Consigo é que nos arrasta.

Incêndio, lá consumido

Tudo será desabrido

Por chamas de toda a casta.

 

Mas o mais estranho disto

É que é sempre o conteúdo

Que no palco dele avisto.

Eu sou quem vê, não o visto,

O eterno agora ante tudo.

 

 

Encontrei

 

Encontrei uma família

Amiga de longa data.

A mãe quase era mobília

Da sociedade, a nata.

Mas que é do oiro e da prata

Das tardes do chá de tília?

 

Apoiada na bengala,

Parecia ter mirrado.

A filha, de festa gala,

Agora, após ter criado

Três filhos, rosto cansado,

Pregada parece em tala.

 

Correram mais de vinte anos,

Foi o que o tempo lhes fez.

E comigo os desenganos

Delas iguais são talvez...

- Por fora só danos vês,

Por dentro eu sou eu, sem danos.

 

 

Sujeito

 

Tudo sujeito parece

Dos tempos à correria,

Todavia o que acontece

Só no agora encontra via.

 

Dos tempos a realidade

Tem provas circunstanciais

Em cachão que tudo invade

De margens aluviais:

 

A maçã que apodreceu

É o meu rosto envelhecido

Comparado ao que foi meu

Meio século volvido...

 

Nunca encontramos, porém,

Do tempo a prova directa,

A do tempo em si ninguém

A vive em vida concreta.

 

A vivência é do presente,

Melhor, do que nele ocorre:

Sem isto ninguém o sente,

O tempo é um nada que morre.

 

- Só o agora aqui assente

Em mim vivo eternamente.

 

 

Apagar

 

Não posso cuidar meu ego

Ter de vir a eliminar,

Para então depois tratar

De o apagar em sossego.

 

Tudo aquilo que obteria

Mais era insatisfação,

Mais íntima gritaria,

Pois temos a sensação

 

De nunca mais lá chegarmos,

Ainda não atingimos

Esse estado que visarmos

Sem ego que nunca vimos.

 

Se do ego a libertação

É um objectivo futuro,

A nós damos tempo então

E é mais ego que inauguro.

 

Uma forma disfarçada

De ego pode-me ocorrer

Numa espiritualizada

Busca para o remover.

 

Quando der mais tempo a mim

Para de anulá-lo ter,

Ao ego é que o dou, por fim,

Vai-o mais fortalecer.

 

É que o passado e o futuro

É que são do falso eu,

Da mente fabrico impuro

Que lhe alimenta o escarcéu.

 

Tudo é da nossa cabeça

E nunca existe lá fora

Numa indispensável peça

Em obra que se labora.

 

Ao invés é um muro opaco

Para saber-me deveras:

Horizontal, tempo é o caco

De eu correr pelas esferas.

 

Na vertical, cá no fundo,

É que eu me encontro, afinal:

Só me acedo e tudo inundo

Do presente no portal.

 

 

Eliminar

 

Tempo eliminar não é

Fora do tempo viver,

Que relógio ter ao pé

Prático é permanecer:

Marcar até uma consulta

Quer do tempo a turbamulta.

 

Ninguém opera no mundo

Sem o tempo verdadeiro,

Todo um horário fecundo

Marcando o chão do carreiro.

Terei é de eliminar

O que o ego preocupar:

 

Todo o passado e futuro

De factos, crenças, valores

Onde nunca me inauguro,

Que a pegada são que fores.

 

Toda a relutância em ser,

Que é ser uno com a vida,

Em sintonia a viver

Do presente na corrida.

 

Este ser é inevitável

E só aqui sou eu viável.

 

Eu sou este agora ciente

De que o ser sou do presente.

 

 

Mudo

 

Quando o “não” habitual

Ao presente mudo em “sim”,

Permitindo que o actual

Seja como for, assim,

O tempo logo dissolvo

E meu ego ao nada volvo.

 

Meu ego, ao sobreviver,

Força passado e porvir

Mais importantes a ser

Que o presente, em seu devir.

Não tolero ser adiado

Do agora que o há sugado.

 

Só por um breve momento,

Até conseguir obter

O que desejar do evento.

Nada o vai satisfazer,

Contudo, nem um instante,

Nem muito tempo adiante.

 

Quando ele comanda a vida

De dois modos infelizes

Iremos ser, em seguida:

O primeiro é, nas matrizes,

Não conseguir a que queira;

Segundo é não tê-la inteira.

 

 

Sempre

 

Sempre o agora toma forma

Naquilo que é, que acontece.

Se no imo resisto, em norma,

Forma em que o mundo aparece

É barreira impenetrável

Separando, intolerável,

 

Eu de mim (enquanto sou

Para além da forma alguém),

Da vida, o informe voo

Único que sou além.

Quando meu sim interior

Deste agora à forma eu for,

 

Toda a forma se converte

Na larga porta de entrada

Que, informe, comigo acerte.

No termo desta jornada,

O fosso que entre os dois tece

Mundo e Deus, desaparece.

 

 

Negativo

 

Se negativo reajo

De agora à vida presente,

De meio lhe visto o trajo,

De pedra no trilho assente,

De inimigo a ter em conta,

Reforço a meu ego a ponta:

 

Toda a minha identidade

É a da forma que me invade.

 

Reactividade é um efeito,

Findo nela viciado.

Quão mais a reactivo atreito,

Mais findo à forma algemado.

Quão nela me identifico

Tão meu ego fortifico.

 

Na forma não transpareço,

Não brilho e de mim me esqueço.

 

 

Existe

 

Sem ir contra resistindo,

O que existe além da forma

Em mim vai logo emergindo,

A presença que a conforma,

Silente poder maior

Que o fogo-fátuo que for

 

Minha breve identidade

Perdida em factualidade,

 

Baseada em forma, a pessoa.

É quem eu sou de raiz,

Mais fundo que o traje à toa

Que em mundo de formas fiz.

Por dentro, por trás de todas

Sou o eu que lhes tece as modas.

 

 

Estou

 

Quando estou aqui presente

À correnteza do agora,

A presença, permanente,

Flui de dentro para fora

E transmuda o que fazemos

Além do que até visemos:

 

É qualidade e poder.

Presente estou no que faço,

Disto um meio ao não fazer

Rumo a um fim que além lhe traço,

Dinheiro, fama, vantagem,

Qualquer fútil outra imagem.

 

Se, ao invés, me satisfaz

Por si, fulgor, alegria

No que pratico me traz,

É o que lhe empresta a magia.

Como posso estar presente

Se alheado dele, ausente?

 

Só se o tomo como aliado

É que o cabouco de base

De acto eficaz hei montado

Que em corpo inteiro se case

Com a positividade

Que a escuridão nunca invade.

 

 

Forma

 

A forma é limitação.

Cá estamos para vivê-la

E para a superação,

Mal visemos outra estrela.

Quem por aquela se fica

Incônscio de si se aplica.

 

Algumas limitações

Podem ser ultrapassadas

Do exterior nos alçapões.

Outras, não, querem jornadas

Para no íntimo aprender

A com elas conviver.

 

Todas podem-nos manter

Presos à resposta egóica,

Infelizes a nos ter,

Mesmo na postura estóica.

Mas poder-me-ei elevar

Acima de tal limiar:

 

Entrego-me àquilo que é.

A limitação mo ensina:

Vertical porei de pé

Outra dimensão que empina

O que horizontal esbarra

Da parede com a barra.

 

Mergulho em profundidade,

Germino então para o mundo

Um ser doutra qualidade,

Dum valor que nem tem fundo.

Doutra forma ficaria

Sem manifestar-se ao dia.

 

Tornaram-se curadores

Muitos que a tal se renderam.

Espirituais mentores,

Altruístas devieram.

Diminuem dor humana,

Limpam quanto o mundo dana.

 

 

Culpa

 

Se alguém me culpa ou critica,

Meu eu no ego enfraquece,

Meu ego todo se pica

Dele a reparar a messe,

A noção enfraquecida

Da identidade atingida:

 

Auto-justificação,

Defensiva, acusação...

 

O facto de outro indivíduo

Ter ou não razão, que importa?

Não releva nem resíduo

Dum ego à trancada porta.

Preservação é que conta

E da verdade, nem ponta.

 

Apenas interessado

Em preservar-se há ficado

 

E preservo um eu mental.

Mesmo responder aos gritos,

Atitude tão normal,

Se um condutor, entre aflitos,

De idiota me chamou,

O ego é que reparou.

 

Um mecanismo comum

É a ira que temporário

Aumento do ego incomum

Logra no seu calendário.

Tudo ao ego faz sentido

E é disfuncional, medido.

 

No fim é violência física

Ou uma auto-ilusão

Que nos mata mais que a tísica,

De fantasia um cachão

De aventuras majestosas

Que nunca na vida gozas...

 

Meu ego é sempre a traição

Do vinho meu e meu pão.

 

 

Mesa

 

Na mesa da vida,

É na derradeira

Cadeira sentar,

Que pode, em seguida,

A outra cadeira

Alguém te chamar.

 

Teu ego de lado

Põe, que anda enganado:

Quem se exalta andou,

Por fim, humilhado;

É quem se humilhou

Que finda exaltado.

 

 

Olho

 

Olho para o céu à noite,

Brilha a Lua e as estrelas,

Via Láctea que as acoite

Aos biliões, loiras e belas.

Tudo são de facto objectos

No espaço a flutuar sem tectos.

 

Se não ficarmos calados

Contemplando o espaço imenso,

Não vemos mesmo, toldados

Acaso do que ali penso,

Acaso os astros só vejo

A que dar nomes almejo.

 

Todavia, em meu abraço,

Vejo objectos mais espaço.

 

Sempre este desaparece

Da astronomia na messe.

 

 

Emoção

 

Se uma emoção há de espanto

Olhando o espaço insondável,

Joguei ali para o canto

De explicar a interminável

Ânsia, consciente então

Dos astros. Que imensidão!

 

O espaço é mesmo infinito!

Interiormente em paz,

Reparo, aqui interdito,

Na vastidão que me traz

Inúmeros (mal se alistem...)

Astros que em tal seio existem.

 

O espanto de biliões

Não é de mundos lá fora

A existir sem ilusões.

Na profundeza antes mora

Que abarca, este odre sem peles,

Toda a infinidade deles.

 

 

Espaço

 

O espaço não percepciona

Ninguém, que o não pode ver,

Ouvir, tocar, saborear,

Cheirar, nem de fruta é tona,

Corrente fora a correr

Do rio da vida ao mar.

Então como irei saber

Que há um espaço? É singular!

 

Do espaço a natura é o nada,

Portanto ele não existe

Como existe tudo o mais.

Somente uma coisa dada,

Forma que nele persiste,

Existe e nos dá sinais.

Nomeá-lo espaço é por chiste,

Não é um objecto jamais.

 

 

Dentro

 

Algo dentro em nós afim

É do espaço e logro assim

Tomar de tal consciência.

Não é a duma percepção,

Que ele não tem forma em chão

Donde lhe colha a evidência.

 

Como apreender tal nada?

- Apreendo-o pela ausência

De caminheiros na estrada.

 

Minha consciência de mim,

Leito de rio em jornada,

Só no fundo a intuo assim:

 

Sou quem fica no vazio

Se de tudo me esvazio.

 

E no fim esta vivência

É a minha clarividência.

 

 

Consciência

 

Ter consciência do espaço

Que não é coisa nenhuma,

É o nada que cônscio abraço

Sem abraçar coisa alguma.

 

É consciência da consciência,

Do meu espaço interior,

Outro trilho de evidência

À percepção a se impor.

 

Em mim o Universo aqui

A ter consciência de si.

 

 

Nada

 

Se nada encontram os olhos

Para ver, tal nada é visto

Como espaço, espaço aos molhos,

E ao fim nada é o que sei disto.

 

Quando os ouvidos não ouvem,

Que nada haverá de ouvir,

Nada com que se comovem,

Dirão silêncio existir.

 

Quando os sentidos, montados

A percepcionar a forma,

Com a ausência confrontados

Dela são, nada os deforma,

 

Mas a consciência informe

Que subjaz à percepção,

Que ao cordão delas enorme,

Experiências de roldão,

 

A todas tornou possíveis,

Salta então demais à vista:

As formas, por mais incríveis,

Não a apagam mais da lista.

 

Contemplando a infinidade

Na madrugada silente,

Em sintonia me invade

O mistério do presente.

 

É a profundeza do espaço

Minha própria profundeza.

Informe silêncio é traço

De quem sou mais que o que reza

 

Tudo o que eu protagonize

Na vida que realize.

 

 

Doença

 

A doença da humanidade:

Tudo absorto no que ocorre,

Na hipnótica variedade

Do intérmino corre-corre,

 

Tudo preso ao conteúdo

Ignorando o continente,

O que fica além de tudo,

Toda a forma, toda a mente.

 

Tudo no tempo embrulhado,

Ignorando a eternidade,

Perenidade do fado,

Origem, fim, sua herdade.

 

Da eternidade é que os pomos

Pulsam em meu coração:

É o real vivo que somos,

Temo-la em nós sempre à mão.

 

 

Estupa

 

Numa estupa da montanha,

Na China, junto a Guilin,

Para quem o pico ganha

Há uma prenda, no confim:

 

Dois caracteres gravados

Que quererão dizer Buda.

São dois porque, com dois lados,

Dizem tudo a que ele acuda.

 

Um deles quer dizer homem,

Um outro quer dizer não.

Ora, quando ambos se somem,

É o budismo todo à mão.

 

Segredo fundo da vida,

Os dois vectores do real:

Ser e nada – forma haurida

E transcendê-la, ao final.

 

E é reconhecer que a forma

Não é quem sou: eis a norma.

 

 

Rei

 

Um rei do Médio Oriente,

Sempre, sempre dividido

Do desânimo à alegria,

Qualquer nada, de repente,

Perturbá-lo muito via,

Ou, num inverso sentido

Intenso lhe reagia.

 

Então a felicidade

Rápida se transformava

Em decepção, desespero.

Farto de tal realidade,

Farto de si, procurava

De saída um rumo vero.

 

Um sábio chamou do reino

Com fama de iluminado

(De sábio não tinha treino

Este rei desesperado).

 

“Como tu queria ser.

Podes dar-me algo que traga

Serenidade, equilíbrio

Aos anos que hei-de viver?

O que queiras dou-te em paga,

Sem usar qualquer ludíbrio.”

 

O sábio pondera então:

“Talvez te poossa ajudar.

Mas tão elevado é o custo

Que teu reino todo não

Bastava para o pagar.

Dou-to em prenda, mas é justo

Que exija que o tens de honrar.”

 

O rei deu-lhe garantia

E o sábio logo partia.

 

Dias mais tarde voltou

E logo ao rei ofertou

 

Com toda a simplicidade,

Uma caixa feita em jade.

 

O rei abriu-a, encontrou

Um singelo anel doirado

No veludo do interior.

Inscrito, ele soletrou,

Atento, o que lá gravado

Era o dito com valor:

 

“Também isto irá passar.”

Após largo meditar,

 

Ponderando, perguntou:

“Que é que isto aqui quer dizer?”

O sábio respondeu:”use

Sempre este anel que lhe dou.

Ocorra quanto ocorrer,

Com bem ou com mal se cruze,

Antes de tal o dizer,

Toque neste anel e leia

A inscrição: é o que o premeia.

É desta forma capaz

Que findará sempre em paz.”

 

Também isto irá passar:

Quando alguém meditar nisto,

Em paz, certo, irá findar...

- E em paz com todos existo.

 

 

Isto

 

“Também isto irá passar”

Pode, em conjuntura adversa,

Algum conforto alcançar.

Mas pode também, na inversa,

Reprimir de bem gozar:

Ao notar que é passageiro

Não se goza por inteiro.

 

A contenção é importante:

Todo o extremo mata o instante.

 

 

Não

 

Não resistir ao evento

É unir-me sem me fundir

Ao que traz este momento.

 

Não julgar é conseguir

Ao Todo me unir, tentando

Transparecê-lo em devir.

 

A impermanência logrando

Vislumbrar em tudo a ir

É o desapego a meu mando.

 

Liberdade é de mão dada

Com a vida iluminada.

 

 

Efemeridade

 

A transitoriedade

Não impede o gozo bom

Nem o mal que nos invade.

Tem um fito doutro tom:

Que se torne consciente

A efemeridade assente

 

Em tudo quanto decorre

Perante mim: tudo morre.

 

Nosso apego diminui,

Deixei, em certa medida,

De identificar-me àquilo.

Mais goza quem de tal frui:

Se é efémero, tudo em ida,

Se muda, é que então, tranquilo,

 

Desfrutarei do prazer

Enquanto o prazer durar,

Sem o medo de o perder,

Sem ânsia do que aguardar.

 

Quando nos desapegamos,

Ficamos logo em vantagem

Para ver o que ocorrer

Da vida nos vários ramos,

Sem findar, nesta abordagem,

Prisioneiros do que vier.

Somos aquele astronauta

Que o planeta Terra vê

Do espaço na infinda pauta

E o paradoxo lhe lê:

Preciosidade é brilhante,

Porém, que insignificante!

 

Ver que tudo irá passar

Traz consigo o desapego,

Faz a dimensão entrar

Do mundo interior que nego.

Ao não resistir, julgar,

Desapegado, em sossego,

Vou meu eu enfim ganhar.

 

 

Fatalmente

 

Quando não me identifico

Totalmente com as formas,

A consciência, quem sou,

Delas não tendo o salpico,

Delas se livra das normas,

Livre ando por onde vou.

 

Brotou lonjura interior

E com ela uma quietude,

Paz subtil, do imo um palor

Que mal semelha virtude.

 

Em redor de cada evento

Criou-se um espaço aberto.

O emocional momento

Não finda de mim tão perto.

Nem a dor sequer dói tanto

Como se nela me implanto.

 

E entre mim e o pensamento

Despontou uma lonjura.

Sopra-me dali um vento

Que noutro mundo se apura:

Das formas o turbilhão

É deste mundo, a paz, não.

 

Paz é do mundo onde ocorrem:

Vive do imo, as formas morrem.

 

É um outro lado de Deus:

Uma ponta em mim dos céus.

 

 

Imo

 

Se a amplidão do imo é perdida

Ao não ser reconhecida,

 

Torna-se o mundo absoluto,

Pesado e sério produto

 

Que deveras quem o intui

Logo vê que não possui.

 

Se o não vir dali ausente,

Ameaçadora vertente

 

Reveste, do gesto mero,

E é o sítio do desespero.

 

 

Coisas

 

A vida da maioria

Será um atravancamento

De coisas em cada dia:

As materiais de momento,

As que fazer, que pensar...

A nada mais há lugar.

 

As mentes andam pejadas,

Uma atrás doutra surgida,

De ideias emaranhadas.

De objectos mente sortida

Esboroa-se na estrada,

Vida desequilibrada.

 

A consciência dum objecto

Deve contrabalançada

Ser de saber do sujeito

Que por ele rasga estrada,

Consciência consciente

Dela própria e não ausente.

 

É a via da sanidade,

Para que ela volte ao mundo

A cumprir da humanidade

O destino mais fecundo.

Assim é que evoluir

A humanidade pode ir.

 

 

Incómodo

 

Se um evento me incomoda,

Do incómodo a causa não

É do evento ou situação,

É que a perspectiva toda

Perdi da minha função.

 

É que me deixei prender

À consciência dum objecto,

Sem ciente permanecer

Do íntimo que não tem tecto,

Minha fundura interior,

Tempo sem lugar de o pôr.

 

- Ver eu que tudo transita

Este pendor me concita.

 

 

Sentir-me

 

Quando estou mui fatigado,

Poderei sentir-me em paz

E muito mais relaxado

Que o que o hábito me traz.

 

O pensamento amainou,

Já nem lembro o problemático

Que a mente me fabricou,

Dominou meu labor prático.

 

Nada quero em meu abono,

Vou a caminho do sono.

 

Quando tomo uma bebida

Espirituosa, uma droga,

Também relaxo, em seguida,

Calmo, se me não afoga.

 

Menos sobrecarregados

Pela mente, vislumbramos

Festa de ser sem cuidados,

Até cantamos, dançamos...

Mas o preço é, de evidência,

Resignar-me à inconsciência.

 

Consciência da fundura

De meu imo nada a ver

De embriaguez com loucura

Há-de ter nunca em quenquer.

 

Ambas para além da mente

Saltam, tendo isto em comum.

Uma trepa acima, em frente;

Desce outra, sem imo algum.

 

Uma leva ao passo adiante

Numa consciência humana;

Outra regride a montante,

Vegeta atrás e nos dana.

 

Uma cai do humano grito,

Outra trepa ao Infinito.

 

 

Atenção

 

Atenção de curta dura

Torna a nossa percepção,

Como toda a relação,

Superficial, impura.

 

É tudo insatisfatório:

Tudo aquilo que façamos

Onde não nos empenhamos

É sem qualidade, inglório.

 

Qualidade, em todo o lado,

Quer atenção no cuidado.

 

 

Correr

 

O distanciamento

Ao meu pensamento

 

Tanta vez o sinto!

Contudo o desminto...

 

Mente entorpecida

Do correr da vida

 

E condicionada

A identificada

 

Ser com os objectos

Não vê neles tectos.

 

Julga inicialmente

Tornar-se consciente

 

Impossível fito:

Como tal quesito?

 

Isto significa

Que não conseguimos

Ser de nós conscientes:

Mente só se aplica

Àquilo que vimos,

Não a nós, videntes.

 

Somos distraídos,

Por formas movidos.

 

E, quando pareço

Consciente de mim,

Como objecto meço

O que sou assim.

 

Temos consciência

É dum pensamento:

Em todo o momento

Primo pela ausência.

 

 

Perdas

 

Se não perdes a vigília

Toda em insatisfação,

Desespero, depressão,

Ânsias e preocupação

Ou noutra qualquer quezília

Que em estado negativo

Sugar quanto em ti for vivo;

 

Se logras apreciar

As nuvens cruzando o céu

Ou contigo a sós ficar

Sem estímulo buscar

Que não seja o mundo teu;

 

Se um desconhecido tratas

Com gentileza sentida

Sem lhe cobiçar as pratas

Nem qualquer paga devida;

 

- Em ti abriste a amplidão,

Nem que seja só um postigo.

Da mente a corrente então

Deixou de ser teu abrigo.

 

Sentes logo o bem-estar,

A paz vívida, subtil,

Dum nada a te contentar

À festa que se perfile

Na alegria de viver

Que ao Todo partilha o ser.

 

 

Nadas

 

Porque é que a felicidade

Vem de nadas mal visíveis?

É que a causa de verdade

Não vem de dados sensíveis,

Sempre de fora de nós,

- Cá dentro é que ata os cipós.

 

O dado externo é o gatilho,

O disparo é cá de dentro

Que solta da festa o brilho:

Só o entendo se em mim entro.

Se pequena a coisa for,

Mais tamanho ao interior.

 

É da fundura interior,

Consciência não algemada,

Vivência do imo ao palor

Que a alegria faz entrada,

Dali é que pura emana

E sobre o mundo dimana.

 

Consciente da pequenez,

E, silêncio dentro em mim,

Alerta a todo o entremez,

Olho, oiço e findo, assim,

Inteiramente presente,

- Inauguro a festa à frente.

 

 

Sou

 

Eu sou. Aqui disponível

A ser o que quer que seja.

Eu sou. Aqui, noutro nível

Que o de tudo em que me veja.

Eu sou. Quietude do aqui

Neste agora que vivi.

 

Eu sou. Descoberto, exposto,

Despido, nem tenho rosto.

 

Eu sou: ventre de criação,

Toda a forma tenho à mão,

 

Não me transfundo em nenhuma,

Como nenhuma me esgota.

Eu sou. Eu, somente, em suma,

 Sempre caminho e sem cota.

 

 

Mestre

 

O mestre zen caminhava

Pelo trilho da montanha

Com o aluno que não dava

Com o mistério que entrava

Zen adentro a quem o apanha.

 

Chegam junto a um cedro antigo,

Sentam-se-lhe sob a copa,

Tomam refeição no abrigo

De arroz, legumes e trigo

Que o espírito não dopa.

 

O jovem monge que ainda

Não encontra a chave ao zen

Pergunta, a refeição finda:

“Mestre, como entro na linda

Vivência que o zen ordene?”

 

Silêncio o mestre mantém.

Correram vários minutos,

O aluno mal se contém,

Ansioso aguarda, porém,

A resposta com os frutos.

 

O mestre então vida ganha:

“Consegues ouvir o som

Do caudal desta montanha?”

Eis que o discípulo apanha

Como chapada a questão:

 

Não tinha tido consciência,

Na montanha, dum caudal.

Pensara demais na ausência

Sua do zen ante a essência

Para poder dar por tal.

 

Quando tenta o som ouvir

A mente ruidosa acalma.

Não ouve nada, a seguir,

Mas, no alerta a lhe subir,

Um murmúrio vago empalma

 

Dum curso de água distante:

“Agora consigo ouvi-la.”

Ergue o mestre o dedo diante

Com dócil olhar chispante:

“Entra aqui no zen, tranquilo.”

 

O discípulo é aturdido,

Fulgor de iluminação:

O que era o zen há sabido

Desde sempre, sem sentido

Saber que o sabia então.

 

Continuam o caminho

Num silêncio muito cheio:

Torna-se o monge adivinho

Da variedade do ninho

Do mundo que trilha a meio,

 

É como a primeira vez

Que tudo à frente lhe corre.

Mas a mente, de través,

Rasteira-lhe, lenta, os pés,

Joga-o abaixo da torre.

 

E de novo ele pergunta:

“Tenho aqui vindo a pensar.

Que é que ao que me disse junta

Se eu, com audição defunta,

Nada ouvira murmurar?”

 

O mestre parou e olhou

Para ele e, em sigilo,

O sábio dedo voltou,

Como quem nunca parou:

“Entra aqui no zen, tranquilo.”

 

 

Distinto

 

Um ego perguntaria:

Como pode a conjuntura

Bastar-me em quanto eu queria

Ou em que é que a mudaria

Noutra que aquilo me apura?

 

Meu eu, distinto do dado,

Presente a ele desde o imo,

Pergunta, pelo seu lado:

À conjuntura votado,

Presenteio-a com que mimo?

 

Nem sequer faço a pergunta.

Alerta, em silêncio, aberto

Ao que for, comigo junta

Trago a fundura que me unta

Meus rodízios a dar certo.

 

Olho, ouço e uno findo

À conjuntura em questão.

Em vez dum não, reagindo,

Com ela me irei unindo:

Daqui brota a solução.

 

Nem sou eu que estou olhando,

Em mim é uma quietude,

Meu alerta vigiando.

E de mim vem germinando

A resposta de virtude.

 

Este meu agir correcto

Entra em sintonia ao Todo.

Em quietude, discreto,

Permaneço, sob o tecto

Do alerta, perene modo.

 

Ninguém grita, triunfante

No gesto de “eu fiz aquilo!”,

Nem ulula, rua adiante,

Braço ao alto, provocante:

“Que todos saibam, eu fi-lo!”

 

 

Vem

 

Toda a criatividade

Vem da fundura interior.

Quando numa realidade

Ocorre vir-se a transpor,

Terei de atento me pôr,

Não venha a minha egoidade

 

Surgir a trocar-me as voltas.

Se reivindicar os loiros

Das obras vida além soltas,

Retoma o ego os tesoiros,

De meu imo a luz dos oiros

Das trevas se apaga envoltas.

 

 

Parte

 

A maior parte da gente

Só perifericamente

Repara no que a rodeia,

Mais se o seu meio envolvente

Familiar for que lhe ameia.

 

A voz dentro da cabeça

Nem repara em que tropeça,

Absorve a maior porção

Da atenção que vida peça

Em cada gesto ou acção.

 

Alguns sentem-se mais vivos

Quando viajam, festivos,

Por sítios desconhecidos,

Países fora de arquivos

De passos seus e sentidos.

 

Então a sua experiência

Mais ocupa a consciência

Do que ocupa o pensamento.

Tornam-se, nesta vivência,

Mais presentes ao momento.

 

Outros inda permanecem

Dominados, não se esquecem

Da voz dentro da cabeça.

Distorcidos acontecem

Por juízos, de peça em peça.

 

Não chegam a ir deveras

A lado algum das esperas.

Anda o corpo a viajar

E eles sempre, pelas eras,

Dentro da mente a cuidar.

 

 

Realidade

 

É a realidade geral,

Mal algo é percepcionado,

Ser logo ali rotulado,

Comparado, interpretado

Pelo que pareça igual,

 

Obra do ego, eu ilusório

Que ali gosta, além desgosta,

É mau, é bom, logo aposta...

- Tudo encostado à congosta

Do objecto em largo empório.

 

Em tudo o sujeito é ignoto,

Não tem braços, mal é um coto.

 

 

Desperto

 

Só desperto interiormente

Se deixo de rotular,

Compulsivo, inconsciente,

Se consciente reparar

Nisto quando isto acontece:

O de fora nem me aquece.

 

Sempre o ego continua

A ocupar o seu lugar

Rotulando toda a rua,

De consciência a dormitar.

Se isto deixar de existir

O imo à tona finda a vir.

 

Presente o imo antes ausente,

Já me não domina a mente.

 

E desponta logo a aurora

Da alegria vida fora.

 

 

Escolhe

 

Escolhe um objecto aí

Sem ter nada que te prenda,

Nem que memórias te renda,

Nada, somente ele em si.

 

Descontraído e alerta,

Concentra a tua atenção

Em cada pormenor vão,

Nada mais por ti acerta.

 

Se vier um pensamento,

Não te deixes envolver

Por nenhum, dê no que der.

Só a percepção de momento.

 

Que a voz dentro da cabeça

Não tire mais conclusões,

Não faça comparações,

Que de compreender se esqueça.

 

Alguns minutos depois,

Deixa o olhar vaguear

Por quanto houver no lugar,

Alumbrado com teus sóis.

 

Depois ouve os sons presentes,

Água, aragem, passarinhos

Ou do homem tons adivinhos...

Nada interpretes, só sentes.

 

Atenção descontraída

Mas alerta logo junca

A vida aqui, como nunca,

Da riqueza que se olvida.

 

Então sentimos a calma,

Subtil, quase imperceptível.

Silêncio de fundo, audível,

É paz: todo o sabor de alma.

 

 

Obstáculo

 

O obstáculo maior

De descobrir a lonjura,

Amplidão do interior

Dum eu na raiz mais pura,

 

Do sujeito de experiência,

É ficarmos absorvidos

Tanto desta na vivência

Que findamos lá perdidos.

 

A mim perdido me ponho

Dentro do meu próprio sonho.

 

Somos tão arrebatados

Por pensamento, emoção,

Por cada experiência alados

Que o onírico é o meu chão.

 

A humanidade perdida

Há milénios anda em vida.

 

Quem vai descobrir-se em si

No meio do frenesi?

 

 

Respirar

 

Quanto mais superficial

Respirar, mais anormal.

E, quanto mais consciente,

Mais fundura natural

É natural que lhe assente:

É porque em mim descobri

O que sou e lhe assenti.

 

Não ando a me destruir

A asfixiar-me, a seguir,

 

O que, aliás, ocorreria

Se ao acaso for na via.

 

 

Vulgo

 

Vive o vulgo distraído

No corropio pensante,

Identificado ao fio

Da voz dentro murmurante,

E a própria vitalidade

Não sente em si que o invade.

 

Não ser capaz de sentir

A vida que nos anima,

Que somos no tempo ao ir,

É de privação um clima

Maior do que outro qualquer,

O pior que acontecer.

 

Procuramos substitutos

Ao bem-estar interior,

A encobrir ao mal os frutos

De não sentirmos vigor,

Vitalidade presente

Mas sem darmos conta à mente.

 

Uns vão a correr às drogas,

Ou à música em ribombos,

A perigos onde afogas,

Ou do sexo andar aos tombos...

Drama até de coração

Substitui má sensação.

 

O disfarce mais comum

Deste mal-estar de fundo

É sonhar íntimo algum

Relacionamento fecundo:

Aquele par de raiz

Que me irá fazer feliz.

 

É uma causa mui frequente

De funda desilusão.

E as pessoas, geralmente,

Quando à tona os males dão,

Jogam culpa por inteiro

A quem for o companheiro.

 

 

Consciência

 

Toma consciência de ti

Em tua vitalidade,

No corpo onde ela te invade,

Membro a membro sente-a aí:

És tu a vivenciá-la

No agora em que te regala.

 

Não és a vitalidade,

Ela é uma forma de ti,

É tua propriedade

A ti tão colada ali

Que quase, por um nadinha,

Teu eu nela se adivinha.

 

 

Vivência

 

A vivência de meu corpo

Não é sólida, de espaço.

O físico desencorpo,

Da vida nele olho o traço,

Razão que o cria e sustém,

Fusão que une ao mais-além.

 

Quando tomo consciência

Da vivência em mim da vida,

De si própria a inteligência

Capta o trilho na avenida.

Da vida inapreensível

É a consciência possível.

 

 

Solidez

 

A solidez da matéria

É um engano dos sentidos.

O corpo físico gere-a

Com vácuos descomedidos.

 

Entre os átomos, vazios,

Vazios por dentro deles,

Imensos, olhando os fios

De matéria por que apeles.

 

Esta quase não é nada,

O espaço vazio, tudo.

E o Cosmos é imagem grada

Do que em nós é por miúdo.

 

Da Terra à Lua, um segundo

Demora a luz a chegar.

Oito minutos do mundo

Requeiro o Sol ao captar.

 

E são quatro anos e meio

À Próxima de Centauro.

Se para Andrómeda ameio,

Vou ser mais que um dinossauro:

 

Dois vírgula quatro milhões

De anos demora a chegar

A luz aos nossos balcões,

Tal Galáxia após largar.

 

E só são os siderais

Corpos chegados a nós.

Já nem falo dos demais

Que infindos seguem após.

 

Tudo é feito de vazio

Com, ligeira, uma excepção.

Vejo tudo ao arrepio:

Como me engana a visão!

 

 

Físico

 

O corpo físico é forma,

Mas informal, visto ao perto.

Porta de entrada que informa

Que o imo anda ali decerto,

 

Seio que dá vida a tudo,

Fonte não manifestada

Que manifesta a que acudo:

A tudo, ao correr da estrada.

 

É vida que tudo informa,

De tudo o que vejo é norma.

 

Há quem lhe chame de Deus

E em mim são os dedos seus.

 

 

Reino

 

Pensamentos e palavras,

Tudo do reino da forma,

O informe como exprimir?

Quando, dentro em minhas lavras,

Um pensamento me informa:

“Meu imo logro sentir!”,

É sempre a falsa excrescência

Dum pensamento em vivência.

 

O que deveras decorre

É que a consciência de eu ser

É a consciência a se entrever

A si no que nela ocorre.

 

Se deixo de confundir

Quem sou com a temporária

Forma de mim, de exprimir,

- Do infindo a raiz primária,

Do eterno, do Deus-em-mim

Pressentido em meu confim,

Através de mim caminha

E é meu guia em toda a linha.

 

E, mais fundo, me liberta

Da dependência da forma.

Não é crer que a forma certa

Não era a que ali me informa,

Que isto torna a ser conceito,

Não é do eu seu próprio peito.

 

É só viver-me presente,

Eu sou o perene voo

Que nas asas se pressente:

Em tudo vivo que eu sou!

 

 

Deveras

 

Sou deveras consciente

Do que esteja a acontecer

No momento aqui presente,

Do agora em si nele a ser

 

Como a fundura interior

De mim vivo, intemporal,

Este seio acolhedor

De tudo ir sendo, afinal?

 

Se consciência sou do abraço

Do agora que aqui sou vivo,

Dentro, de súbito, esquivo,

Mais vital sinto meu traço.

 

Temos no corpo de entrar

Para transcender-lhe o enguiço,

Descobrir que não sou isso,

Mas sou disso o respirar.

 

Nisso encontro o trampolim

Do salto além rumo ao fim.

 

 

Corropio

 

No corropio em rosário

Dos eventos em cadeia,

Tudo muda, num fadário

De detritos numa cheia.

 

Quando algo percepciono

(Mais se não for familiar),

Antes de tornar-me dono

Há o momento de alertar.

 

Momento da percepção

Ou da vivência momento,

Ambos as mãos lá se dão:

Dado e meu distanciamento.

 

Do pensamento a corrente,

Suspensa ali num instante,

Permite entrever presente

O eu captando algo adiante.

 

Permite gozar a vida,

Sentir a ponte interior

Com o humano mal mantida

E a natureza em redor.

 

Findamos livres do ego:

O ego é falta de consciência

Do interior, ao dado apego

Sem do imo ver a evidência.

 

 

Mente

 

Quando percepcionas coisas

Sem a mente interferir,

No mundo em redor tu poisas

Fresco, novo e vivo a rir.

 

Quão mais capturas a vida

Pelo filtro dos conceitos,

Mais morta, insípida lida

Do mundo ela com os jeitos.

 

É no instante inaugural

Que sou eu, bem visceral.

 

 

Enquanto

 

Enquanto aguardas que ocorra

O importante em tua vida,

Talvez o importante morra

Na valeta da avenida:

Não te apercebeste aí

Que ocorreu dentro de ti.

 

Ocorreu na distinção

Entre ti e o pensamento,

A mente e tu em acção,

A consciência e o momento...

Tu és o lado de dentro

De quanto ocorre em teu centro.

 

Quando assim tu te autenticas

Num mundo outro pontificas.

 

 

Punho

 

Há quem no íntimo desperte

E o punho espantado aperte,

 

Incerto do mundo externo:

Como tombar neste inferno?

 

São os do Monte Tabor,

Da colina da Ascensão:

“Como é bom aqui, Senhor!

Monto a tenda neste chão...”

 

Sentem-se mesmo alheados

No meio de humanos prados,

 

Numa terra de ninguém

Entre os dois mundos que têm.

 

Não são dominados do ego

Mas o eu não se integrou

Nas vidas inda, em sossego,

E os dois mundos não juntou.

 

Ora, só há plenitude

Se o meu imo o exterior mude,

 

Íntimo e externo ao irem

Os dois num só se fundirem.

 

 

Momento

 

O teu propósito aqui

É estar no momento agora

Até mudares daí

Noutro momento, na hora.

E assim sucessivamente,

Sempre, indefinidamente.

 

A vida é feita em cadeia

Deste agora que semeia.

 

Nem há na vida outra estrada

Senão no agora a rasgada.

 

 

Fitos

 

Os outros ajudar,

Tomar conta dos filhos,

Lutar por excelência

São fitos a tentar

No mundo dos cadilhos

Externos, de evidência.

 

Porém, é relativo,

Impermanente, instável.

Ao íntimo, motivo

É de os ligar, fiável.

Só então será profundo

O seu fluir no mundo.

 

 

Vivo

 

Se não vivo em sintonia

Com meu fito mais profundo,

Qualquer outro que eu geria,

Céu embora criaria,

Pertence ao ego infecundo

 

E pelo tempo bandido

Acabará destruído.

 

Mais tarde ou mais cedo, o invento

Vai findar em sofrimento.

 

 

Implica

 

Meu propósito primário

Implica que eu bem separe

Pensamento e consciência:

Aqui só, livre, o sumário

Do que sou, no que me ampare

Me atrai de íntima fulgência.

 

Aí o tempo é negado,

No eterno agora enraizado:

 

Apenas o agora existe,

Só em memória o mais persiste.

 

O passado e o futuro,

Tempo dos práticos fins,

Da viagem que inauguro,

Do que recordo e afins,

São no agora decididas

Mil chegadas e partidas.

 

O presente aqui fluindo

Destrói o hábito enraizado

De na mente buscar-me, indo

O pleno ao porvir sonhado

Procurar, sempre ignorando

Que ando só o presente andando.

 

Nunca além a plenitude

Encontro, disto em virtude:

 

Vivo apenas o presente,

No mais vou de mim ausente.

 

 

Consideras

 

Se consideras aquilo

Que estás fazendo ou o ponto

Onde andas o principal

Fito da vida, o sigilo,

Negas o tempo que conto,

Tens maior poder final.

 

Nega o tempo no que fazes:

Isto traz-te a ligação

Do íntimo ao exterior,

Entre teu ser e o que aprazes.

Do tempo esta negação

Nega o ego que em ti for.

 

O que quer que tu fizeres

Fá-lo-ás bem e por demais,

Pois teu agir se converte

No atento centro que queres.

Teu agir são mil caudais

Do imo que ao mundo se verte.

 

Há deveras qualidade

Naquilo que empreenderes,

Na mais humilde atitude:

Folhear um livro que agrade,

Cruzar o átrio dos deveres...

- Vives tudo em plenitude.

 

Teu propósito axial

É viver agora aqui,

Incarnando ali teu sonho.

O derivado, afinal,

Em tudo quanto vivi,

É se inteiro aí me ponho.

 

 

Perdido

 

Perdido em coisas pequenas

Hei medo de esperdiçar

A vida em inúteis cenas

Sem às grandes dar lugar?

 

As maiores sempre surgem

Quando as mais pequenas são

Valorizadas quando urgem,

Cuidadas no húmus do chão.

 

A vida de toda a gente

Em nadas é sempre assente.

 

A grandeza é uma abstracção

Mental: é sempre ilusão.

 

Fantasia favorita

Do ego quando ele em mim dita.

 

O sustento da grandeza

Valorizar é o pequeno

Que o presente pouco preza,

Não perseguir dela o aceno.

 

É que o presente momento,

Que é quase insignificante,

Esconde nele o fermento

Do maior que surge adiante.

 

Um átomo é quase nada

Mas tem um poder enorme.

Só lhe acedo pela estrada

Que ao presente se conforme.

 

O poder, pelo presente,

Do fundo é que acede a mim

E, através de mim, corrente,

Banha o mundo até ao fim.

 

 

Sementinha

 

A sementinha pequena

Nada deseja, germina.

Sempre é toda inteira, plena

Em cada instante da sina.

 

Do Cosmos a vida toda

Quer que árvore venha a ser?

Ela em si nem se incomoda

E se limita a crescer.

 

Em uníssono com vida,

Não se preocupa, ansiosa.

Se prematura a convida

A morte, morre gozosa.

 

Entrega-se calma à morte

Tal como se entrega à vida.

Arreigada ao ser, a sorte

É eterna esta informal ida.

 

 

Natureza

 

A natureza é um poder

Com que perdemos contacto:

Cosmos criativo a ser

E nós nem vemos tal facto.

 

Quando nós em sintonia

Vivemos com tal saber,

Bem mais alto se veria

O ímpeto admirável ser.

 

A natureza traduz,

Embora em manchas, a Luz.

 

 

Encontras

 

Se te encontras com alguém,

Não seja pela função,

Pelo papel que ambos têm,

Dá-te inteiro na atenção.

Sê tua presença alerta

No aqui-agora desperta.

 

A razão primordial

Com outrem de interagir

Secundariza: é a final

- Comprar, vender, competir...

O encontro mútuo entre os dois

É o que mais conta em quem sois.

 

Isto é que é o mais importante,

Mais que o tema da conversa,

Mais que objectos, bens e adiante...

O ser íntimo que versa

Passa à frente então, jucundo,

De tudo o que houver no mundo.

 

Não é negligenciar

Aquelas necessidades.

Ao invés, que deslizar

Vão com tais facilidades

Que, ao envolver todo o ser,

Tudo tem bem mais poder.

 

Este campo de vivência

Unificador de humanos

É o factor de previdência

Mais importante e sem danos

Das relações em renovo

De implantar um mundo novo.

 

 

Sucesso

 

Sucesso não é atingir

Aquilo a que me propus,

Nem ganhar nem conseguir

De prosperidade luz.

Tudo é do sucesso efeito,

Não é o sucesso do pleito.

 

A noção convencional

Aponta só o resultado

Do que for feito, afinal.

E que será o combinado

Do que labor árduo der

E da sorte que vier,

 

Determinação, talento,

Sítio certo em hora certa...

De peso embora elemento,

Não deixará porta aberta

A entender a essência disto,

Só doutro pendor bem visto.

 

Tornar-te bem sucedido

Nunca poderá ocorrer,

Tornar-te não é o sentido,

Só podes sê-lo ou não ser:

É que é o momento presente

Ser ou não bem ocorrente.

 

Em tudo quanto fizermos

Há um pendor de qualidade,

No mais simples que empreendermos.

Implica atenção, verdade,

Requer que a consciência atente,

Requer presença presente.

 

 

Lutas

 

Se tu lutas numa empresa

Com muito stresse e tensão

Até que um produto preza

Vir ganhar-te um dinheirão,

Sucesso é convencional,

Porventura nada real.

 

Se os anos que ali sofreste

De atitudes negativas

A ti como ao mundo encheste,

Encheste de chagas vivas

De tal modo todo o ambiente

Que nem vê-lo to consente.

 

Se te prendeste ao futuro,

Se fins justificam meios,

Que um só são nem vês no apuro

Que envenena teus recreios,

Nem verás que teus produtos

São envenenados frutos.

 

Não trarão felicidade

À humanidade que exploras.

O efeito é da actividade

Que ali levou, negras horas.

Contaminado, o que trais

É infelicidade mais.

 

Perpetuas, inconsciente,

A infelicidade à frente.

 

 

Fito

 

O nosso fito exterior

Espalha-se pelo espaço,

Pendurado tempo fora.

O nosso fito interior,

Primário no meu abraço,

Nega o tempo, é sempre agora.

 

Como concilio os dois?

Vendo que o rumo de vida

Pende deste passo aqui,

No agora assenta o depois.

Só existe ele em toda a lida,

Toda a atenção, pois, aí!

 

Para onde irei seguir

Sei-o bem, mas é primário

Neste agora me enraizar.

Aonde me dirigir

Derivado é secundário

No agora deste lugar.

 

E o que encontrar no destino

Depende da qualidade

Do passo único de agora.

O que o porvir tem no tino

Vem de quanto eu de verdade

Sou no agora quem cá mora.

 

 

Causa

 

Isto por causa daquilo

É como a mente fragmenta

A realidade. E é o estilo

Que o uno nunca alimenta.

Mas da Natureza o modo

É ser uno com o Todo.

 

Nosso destino é trazer

Mas consciente, a unicidade

Fundida à totalidade:

Em sintonia viver

Com a Mente universal

Que do imo me faz sinal.

 

 

Usa

 

Do Universo o interior Uno

Usa meu imo a criar

Eventos em que coaduno

Meu eu dele ao patamar.

 

O entusiasmo a inspiração

Espicaça criativa

Muito para além então

Do que alguém por aqui viva.

 

 

Alguns

 

Para alguns, o movimento

De expansão e crescimento

Para o exterior sensível

É de vez interrompido

Por um retorno impelido

A morrer da forma ao nível.

 

Umas vezes temporário,

Outras permanente e vário:

Uma criança não deve

Enfrentar decerto a morte.

Mas dos seus ou dela a sorte

Nem sempre em tal se deteve.

 

Na criança deficiente

Restringe-se gravemente

A expansão nela da vida.

E há muito jovem também

Em que a vida se detém

Por algum mal compelida.

 

Assim a meta exterior

Vem-se afinal contrapor

A tomá-la por suprema.

Toda a vida interior

Aponta no imo o motor

Com que o barco mais atrema.

 

 

Disfunção

 

Sem a disfunção egóica,

Nossa inteligência fica

Numa sintonia estóica

Com a universal que implica

O impulso para criar

Tudo por todo o lugar.

 

Iremos participar

E agora conscientemente,

Nas formas que haja a criar.

Não crio, é a grande Mente

Que criar irá por fim

Formas através de mim.

 

Não me identifico então

Com o que criar acaso

Nem me perco na tensão

Do que ali fizer a prazo.

Pode haver muita energia,

Mas não tensão, só magia.

 

Da tensão à intensidade

É a lonjura do ego ao eu.

A tensão é de egoidade

Marca de que renasceu.

Negativo olho os pináculos?

- Ando-me a criar obstáculos.

 

 

Criará

 

Do ego a carência

Criará inimigos

De inversa tendência,

Contrários pascigos.

Quão maior o pego

Mais desassossego,

 

Mais separação

Entre a gente então.

 

Agir que não causa

Uma oposição

Do bem comum causa

Serve em servidão.

É sempre inclusivo,

Jamais exclusivo.

 

Junta apara a apara

E nunca separa.

 

Não beneficia

Nunca o seu país,

Que à Humanidade ia

Regar a raiz.

Minha religião?!

São todas então!

 

Nem à espécie minha

Algo só destina,

Todo o Cosmos vinha

Nos alvos da sina:

Toda a Natureza

Em tudo é o que preza.

 

 

Agir

 

Todo o agir é derivado

Quando for bem ordenado.

 

Primeiro, na criação,

É saber de mim então.

 

Aparte do acto e do esforço,

Do mundo o que cria o escorço

 

É a consciência de mim,

Do que sou e com que fim.

 

Se não há muda interior

E no ego embarcado for

 

Com obra identificado,

Por melhor que haja operado,

 

Não faz qualquer diferença,

Já lavrei minha sentença:

 

Serão versões diferentes

Dum mundo igual de indigentes,

 

Tudo expressão exterior

Do ego que eu apenas for.

 

 

Sono

 

O ego humano representa

Nosso sono universal,

Onde a consciência se ausenta,

Se identifica ao formal

 

(Tudo o que ela construiu)

Onde nunca se esgotou,

Com que não se confundiu

E que nunca é o Eu que sou.

 

É estranho outrem ver-me assim,

Mais estranho, eu ver-me a mim.

 

 

Cria

 

A consciência cria a forma,

Porém, sem se perder nela.

Ideias, agir, a norma...

- Do Infindo tudo é janela.

Mantém auto-consciência

Da forma ante a experiência.

 

Então porquê continuar?

Pela alegria que der:

Para quem desperto andar,

A consciência que tiver

Cruza nele, sem conflito

Todo o gozo do Infinito.

 

 

Actividade

 

A actividade desperta

O fito exterior alinha

Com o interior, alerta

A onde prende a gavinha,

Para aquilo que operemos

Transluzir do imo o que lemos.

 

Através do agir desperto,

Convertemo-nos num só

Com o externo fito aberto

Do Cosmo, atado cipó:

Através de nós consciência

Flui para o mundo sapiência.

 

Flui no nosso pensamento,

Inspira-o. Flui no que faço,

Guia o acto do momento,

Poder onde me ultrapasso...

Nem sequer é o que eu fizer,

É um modo a vir doutro Ser.

 

 

Primo

 

Se o primo fito de agir

É a corrente de consciência

Pelo meu acto fluir,

Do primado uma questão

Logo ocorre em consequência:

Bem ou mal, que decisão?

 

- A consciência que me invade

Determina a qualidade.

 

Em qualquer que seja o evento,

Faça eu o que fizer,

A consciência é o elemento

Primário em conta a ter.

Conjuntura, intervenção

Derivadas sempre são.

 

A vitória do porvir

Pende donde o agir vier:

É o ego a lá reagir

Ou antes o meu alerta

Com consciência a crescer,

Com a consciência desperta?

 

O verdadeiro sucesso

Vem deste estado de alerta

Da consciência ao processo

De mais e mais ser desperta,

Não do ego e do pensamento,

Que em mim são podre fermento.

 

 

Níveis

 

A três níveis teu caminho

Trilharás de despertar.

Primeiro aceita o cadinho

Com que ele te aguilhoar.

 

Depois frui satisfação

De tudo o que te trouxer,

Que os trilhos por onde vão

Visarão, por fim, prazer.

 

Finalmente, é de entusiasmo

O teu cume de alegrias

Quando teus olhos de pasmo

Do Infindo espreitam magias.

 

Temos de andar sempre atentos

A que, em todos os momentos,

 

Num qualquer deles vivamos

Os roteiros que exploramos.

 

 

Embora

 

Embora sem ter prazer

No que andamos a fazer,

 

Pelo menos acolhamos

Que é o que de fazer tenhamos.

 

Aceitar diz: por agora

É o que de mim quer demora;

 

É, pois, de boa vontade:

Faço-o, embora não me agrade.

 

Acolher interiormente

Tudo aquilo que acontece

Leva a aceitar paciente

Dar ao caso o que merece.

 

Não ficarei satisfeito

De mudar o pneu furado

De noite, à chuva sujeito,

Mas posso tê-lo aceitado.

 

Assim, ao agir capaz,

Então é que findo em paz.

 

Parece estado passivo

Mas é criador e activo,

 

Traz ao mundo algo de novo:

Consciência de mim em ovo

 

Que só corre mundo fora

Se meu agir a não gora.

 

 

Sinto

 

Se me sinto satisfeito

Por fazer isto ou aquilo,

É entender mal o meu jeito,

O jeito meu com que fi-lo.

 

Nunca me vem a alegria

Daquilo que ali fizer,

Flui de mim, por esta via,

Para o mundo, em frente a ser.

 

A crença de que a alegria

Vem da actividade ou de algo

Pede ao mundo em que confia

Que a traga ao degrau que galgo.

 

O mundo nunca a dará.

E é uma frustração constante

Em que tantos vivem já,

Pois tudo os trai adiante.

 

 

Novo

 

Um novo mundo floresce

Quando alguém aconteceu

Com toda a energia do eu

A transbordar para a messe,

Auto-consciência inteira

Da Força de que se abeira.

 

Semeou-se então no mundo

E tudo toca no fundo,

 

A vislumbrar na penumbra

O Infinito que o deslumbra.

 

 

Domina

 

Auto-consciência desperta

O ego vai substituir,

Irá dominar, alerta,

A vida inteira, a seguir.

 

Então uma actividade

Há muito tempo em rotina

De súbito expandir-se há-de

Maior que de outrora a sina.

 

O poder da consciência

Põe-lhe o traço da evidência.

 

O ego é o que me aprisiona.

Livre, viver é uma fona.

 

 

Muitos

 

Muitos de actos criativos

Satisfarão muitos mais

E limitam-se, mui vivos,

Ao que muito os satisfaz,

Nem querem algo atingir

Nem noutrem qualquer devir.

 

Músico, escritor, artista,

Professor ou construtor,

Inventor ou cientista...

- Às vezes, nem de supor

É que serão quem serão,

Tão apagados se irão.

 

Súbita ou gradualmente,

Uma onda criativa

Flui para o que ali semente,

Expandindo a obra, altiva,

Para além do imaginado

E afecta todo o povoado.

 

Além da satisfação,

Advém uma intensidade

A tudo quanto farão

E uma criatividade

Que transcende o que um humano

Pode atingir em seu plano.

 

 

Entusiasmo

 

Entusiasmo é alegria,

Bem mais que satisfação,

Em tudo quanto ousaria

Dentro e fora, na função.

 

Mais um sonho de magia,

Um objectivo em acção

Que atingir, dia após dia,

Eu tentarei desde então.

 

A meta atractiva aumenta

O coração a pulsar,

A intensidade alimenta

Toda a obra em que operar.

 

Somos flecha disparada

Rumo ao alvo irradiante,

Toda a percorrida estrada

É alegria a todo o instante.

 

 

Vendo

 

Quem me está vendo de fora

Julga que ando sob tensão.

Mas, se entusiasmo em mim mora,

É o invés de tal lição.

 

Se julgar mais importante

Atingir meu objectivo

Que obrar no que tiver diante,

Stresse então em mim activo.

 

O equilíbrio da alegria

Com tensão estrutural

Perde-se no que o desvia

Para a tensão, no final.

 

Se há stresse, o ego retornou

E andar-me-ei a desligar

Do poder que nos formou

Do Cosmos, tudo a animar.

 

Em vez dele, fica em mim

A tensão carente egóica:

É de laborar sem fim,

Com fixidez paranóica.

 

Sempre o stresse diminui

A qualidade, a eficácia,

Seja o que for onde influi

Casca adquire coriácea.

 

Leva a emoções negativas,

Às ansiedades, à ira...

Doenças degenerativas

São dele o veneno em mira.

 

É tudo o invés da alegria

Que me leva a saltitar

Da floresta pela via

Que o melro guia a cantar.

 

 

Admirar

 

O entusiasmo dá poder

A tudo o que dele é feito.

Os mais podem ali ver

E admirar em ti o efeito.

 

Sabes, porém, que por ti

Nada poderás fazer.

Contra o ego, tudo aqui

Partilha a festa que houver.

 

O entusiasmo não se opõe

A nada nem a ninguém.

Não conflituoso, põe

A mesa a todo o que vem.

 

Sem vencedor nem vencido,

Tudo nele é inclusão,

Sem exclusão do caído.

Não tem nunca precisão

 

De usar nem manipular

Alguém, seja lá quem for.

Em si poder de criar,

Nunca tem de se propor

 

Ir pedinchar energia

A uma fonte secundária.

O ego carente é que iria

Enfraquecer qualquer área.

 

O entusiasmo partilha

A sua própria abundância.

Quando em algo encalha a quilha,

Nunca ataca, antes, sem ânsia,

 

Rodeia, sem resistência,

Com compreensão transforma

O adverso em útil. Na essência,

Do inimigo o aliado forma.

 

 

Retira

 

O entusiasmo mais o ego

Nunca podem coexistir,

Um retira ao outro o emprego.

O entusiasmo sabe onde ir,

 

Em profunda consonância

Com o momento presente,

Fonte vital de abundância,

De alegre ser e potente.

 

O entusiasmo não quer nada

Porque nada lhe faz falta.

Uno com a vida, a estrada,

Com o dinamismo em alta,

 

Por mais que em actos diversa

Do entusiasmo inspirados,

Perdidos não nos dispersa

Mas une, bem integrados.

 

E há um palácio silencioso

Mas profundamente vivo

Em meio ao bosque frondoso

Onde para a paz me esquivo

 

Que, de tudo fonte estável,

É inefável de raiz

E é quem faz tudo o que fiz:

É deus-em-mim, o Intocável.

 

 

Através

 

Através do entusiasmo

Entro em sintonia plena

Com o exterior que plasmo

Como do Universo a cena.

 

Porém, não me identifico

Com aquilo a que me aplico.

 

No mar do mundo navego

Sem, contudo, ser um ego.

 

Sem a identificação,

Não existe mais apego:

De sofrer esta lesão

Finda, trocada em sossego.

 

Finda a onde criativa,

A tensão diminui, viva.

 

A alegria permanece

Das criações pela messe.

 

Uma outra onda mais tarde

Pode vir onde o entusiasmo

Renovado de novo arde,

De alegria em novo espasmo.

 

 

Física

 

O entusiasmo é o poder

Que à física dimensão

O plano mental transfere.

É a mente a criar então,

Não há carência envolvida

Nem ego, nesta medida.

 

Não manifesto o que quero,

Só manifesto o que tenho.

Obter por esforço mero

Nunca foi de grande ganho.

Peço ao Imo cósmico: eis

Como obtenho e obtereis.

 

 

Pulsão

 

A pulsão para o exterior,

Formas do mundo sensível,

É desigual no fervor

Com que trepa em cada nível.

 

Alguns sentem forte impulso

De se envolver, de criar

E de construir a pulso,

Certos fins para alcançar,

 

Criar impacto no mundo.

Se forem inconscientes,

O ego domina-os, profundo,

Do próprio proveito agentes.

 

Reduz-lhes isto a energia,

Requerem cada vez mais

O esforço de quem confia

Só dele efeitos que tais.

 

Porém, se forem conscientes,

Serão muito criativos:

O mundo brilha em pingentes

Deles feitos, todos vivos.

 

 

Irem

 

Pessoas introspectivas

Irem para o exterior

Não irão, são sempre esquivas,

Seu motivo é doutro teor.

 

Preferem retorno a casa

Do que da casa sair.

Não vão incendiar-se em brasa

Nem o mundo redimir.

 

Se tiverem ambição,

É busca de independência

Com algo que venha à mão,

Tudo o mais é uma excrescência.

 

Alguns mui difícil julgam

Adaptar-se a este mundo.

Se um canto encontram, promulgam

Seu abrigo aí jucundo.

 

Outros sentem-se impelidos

A se integrar num mosteiro.

Alguns tornam-se bandidos,

À margem do mundo inteiro.

 

Muito há quem na droga tombe,

Que este mundo dói demais...

E há quem, curador, arrombe

Para o Ser os mil portais.