ALIJAR O FARDO
Quando
Quando morremos, entramos
No íntimo de quem amamos.
Não é simplesmente: acaba,
Mais ninguém bate na aldraba.
É ler o amor todo errado
Não ler que ele não tem lado,
Que mais a fundura unimos
Desde a hora em que partimos.
Até com a equivalência
Para o bem ou mal, na anuência,
A pender continuamos
Para o que na vida amámos.
Incrível
Se incrível for o louvor
A quem um louvor merece
Desmerece do pendor
Em que o louvor acontece,
O crédito empalidece
De quem for merecedor.
Ocorre com as pessoas
Como de eventos às loas,
Aos apegos ideológicos
Como aos frémitos teológicos...
Por igual às Escrituras,
Sacras demais se as apuras:
A Bíblia, se inquestionável,
Sem crédito, é descartável...
Ao Corão igual sucede:
Leva o jiadista à parede...
Certeza
Quando alguém tem a certeza
De que sabe o que Deus quer
E, a partir de tal, só preza
Cumpri-lo, dê no que der,
Torna-se no que, no fundo,
É o perigo-mor do mundo.
E é o mesmo na ideologia:
Mata-nos o dogma o dia.
Sabe
Julgava então que sozinho
Podia mudar o mundo,
Nem via o caixão de pinho
Debaixo dos pés, ao fundo.
Sabe agora que acabar
Pode tudo de repente,
Sem tempo de alumiar
O cigarro, ao fim, da gente.
Um já morto, outro a morrer,
Quem sabe que sorte ter?
Órion
Órion é a constelação
Do nome que nós lhe damos.
O nome jamais então
É o de Deus ao que visamos.
E assim é desde o Universo
À partícula que verso.
É um mundo desencontrado:
Não domino nem um dado...
Tenda
Há quem tenda o pensamento
A usar para se exibir
Ou a atacar o elemento
Que à frente lhe irá surdir,
Dele a impar com a derrota
Nem que seja por batota.
É a levar a nossa avante,
Mostrar como sou esperto.
Não é a dar-me bem adiante,
Mas de antagonista acerto.
É decidir discordar
Só para antagonizar.
- Como o ego é tão obstrutivo
De quanto é pensar ao vivo!
Criticar
Criticar é bem mais fácil
Do que antes ser construtivo:
Pode a cadeira ser grácil,
De abatê-la eis um motivo;
Pode ela ser doutro modo,
Se o quiser, destruo-o todo...
- Erguê-la, porém, de pé,
Aí outro é o lamiré.
Encurralados
Encurralados na noite,
Não vemos o sol do dia:
Queima um olhar que o acoite,
Que o não vê, só o fantasia.
Como ser equitativo
Se o não reconheço ao vivo?
Má sorte a dos galileus,
Mortos por trazerem céus...
Razão
A razão cria padrões,
Neles tudo após encaixa.
Criar são provocações
A saltar fora da caixa.
O pensador o que adora
É eterno findar seguro.
Se crias, a toda a hora
Vai findar ele em apuro.
Criar é assumir os riscos
E, às vezes, ganho petiscos.
Trilha
Sempre a ideia é constrangida
Pela trilha antes trilhada,
Quilha na rota seguida
Outrora, esteira provada:
Só neste constrangimento
Corro seguro do vento.
Mas findo ali prisioneiro,
Para o novo sem luzeiro.
Ignoras
Doença, miséria, morte,
Ignoras já ter por par...
Só o que imaginas à sorte
São tuas pedras de andar?
Imagina diferente,
Nem que os mais morram de medo:
É o medo deles premente,
Não é o teu, o do teu credo.
Se o medo lhes alimentas
Com o teu, que vida inventas?
Não te resta então mais nada,
Só cair no pó da estrada.
Focos
Todas as religiões
São focos de divisão,
Todas traem a união,
Fito das sacras missões.
São germe de violência,
Culto de ódio na existência.
Eis, pois, como é que o pecado
A todas há dominado.
Devieram ideologias,
Sistemas de crenças, credos,
Práticas de liturgias,
Leis e normas em enredos
Que ofertam identidade
Falsa ao fiel a que agrade.
Criaram um deus à imagem
Dos homens que sempre são:
O Inefável, na triagem,
De ídolo é uma concepção.
Fatalmente então meu deus
É divergente dos teus:
É o que matar justifica
Outrem que diversifica...
- Quando é que um outro pendor
Lhes dominará o teor?
Passam milénios e não
Há nunca esta conversão...
Religião
A religião não é
Nunca espiritualidade:
Põe-lhe um sistema de pé
Com tudo o que mais agrade.
Depois o sistema fica
E só ele pontifica.
O espírito, de repente,
Não mais se encontra presente,
Trocado por crenças, gestos
E por mil e um aprestos.
Quem ao espírito dado
For, logo é crucificado.
Não foi só com Jesus Cristo:
- Com mil cristos depois disto!
E não por mão de pagãos:
- Por judeus, crentes, cristãos...
Qualquer verdade absoluta
A todo o mundo executa,
Porque, além de que delira,
É, neste âmbito, mentira,
Mas tal crente não tolera
Quem no absoluto não crera.
E, em nome da religião,
Logo os crimes sacros são:
Toda a espiritualidade
Podre materialidade.
Hoje
Hoje a espiritualidade
Anda a ser redescoberta
Fora das religiões.
Não é regredir, maldade,
É um passo em frente de alerta
Contra os vazios sermões.
A rotina não maltrata:
Por dentro, lenta, nos mata.
Rígida
A mais rígida estrutura,
Mais difícil de mudar,
É a que mais breve se apura
Que finda a se esbarrondar.
É nas físicas, mentais
E nas institucionais.
Nas civis, nas religiosas,
Nas pessoais em que te entrosas...
E será sempre por dentro:
Explodirão desde o centro.
Toda a vida foi assim
E há-de ser até ao fim.
Até o Cosmos, no big-bang,
Mostra que anda-nos no sangue.
Nova
Nova espiritualidade
Não é nova religião,
Ideologia que agrade,
Mitologia em acção...
Antes é o fim de tudo isto,
De sistemas e de crenças:
Em conteúdos não insisto
De pensamento ou sentenças.
É o retorno à origem deles,
À fonte primordial,
Ao poder do imo a que apeles,
Ao teu criador portal.
Não me identifico então
Com nenhuma criatura
Que brotou de minha mão,
Mas com a mão que a depura.
Não sou o que ouço na mente,
Sou quem se apercebe disso,
Quem o crie, quem o invente,
Quem ata e desata o liço.
Anterior ao pensamento,
Sou consciência geradora,
O lugar onde fermento,
Modelo a obra de agora.
Findo então de vez liberto
De qualquer apego à forma,
Livre para talhar certo
O que o Infindo conforma.
Ego
Ego é identificação
Com uma forma absoluta,
Seja a duma concepção,
Duma emoção, da conduta...
Absolutizando eu algo,
Lá me prendo e além não galgo.
Assim me cortei do Todo:
Troco por mim dele o modo.
Cortei-me então dos demais
Na Fonte de originais.
É o pecado original,
A ilusão feita fanal.
Após gero o sofrimento,
Do errático trilho ao vento:
Choco, absoluto, os demais
Que absolutos dão iguais,
Todos crendo submeter
Os mais ao seu próprio ser.
Quando assumo este papel,
Sou Caim que mata Abel
E é por toda a eternidade
O fado da humanidade.
Atingirei
Atingirei novos céus
Fundo vislumbrando o imo,
Rompendo-lhe opacos véus,
Visando trepar ao cimo.
Construirei nova terra
Dali colhendo as sementes
Que planto em tudo o que encerra
A vida haurida entrementes.
Vida interior reflectida
É Terra ao Céu mais erguida.
Palavras
As palavras têm feitiço.
Hipnotizado por elas,
Lanço a uma coisa um enguiço:
Um rótulo. E são janelas
Que creio que abri com isso.
É falso: só pintei telas.
Sei lá bem aquilo o que é
Só porque imprimi lá o pé!
Superficial
Tudo quanto percepciono,
Sinto e penso é uma camada
Superficial que eu abono
Ao real, tal dele entrada.
E nem entrada sequer
Do real isto há-de ser:
Nem a ponta do icebergue
É provável que isto albergue.
Agarrar
Quando agarrar uma pedra
Deixando-a ser sem um nome,
A admiração em mim medra,
Largo espanto me consome:
É um milagre aqui-agora
E mais logo em tudo mora.
É que podia não ser
E, afinal, é – e eu a ver!
Logo
Meu ego, ao me aprisionar
Em minhas crenças, meus actos,
Logo a tudo ei-lo a alargar,
Ao pensamento e aos pactos
Com os demais que encontrar,
Como se aí me esgotara
No que em tudo realizara.
Falsifica sempre, enfim,
Que eu sou gerador de mim,
Não me reduzo ao produto
Que crio nem que executo.
Sou antes aquela fonte
Que gera todo o horizonte.
Manifestação
Meus actos e meus conceitos
São manifestação minha,
Onde a meu rosto dou jeitos
A quem fora me adivinha.
São aquilo onde apareço,
Não sou eu mas o que teço.
Contudo, eu (como os mais)
Reduzo-me a tais sinais,
Mas é sempre uma mentira
O que dali se confira:
Quem se mostra a uma janela
Não se confunde com ela.
É o mesmo com o Universo:
Mostra Deus que é o seu reverso,
Não é só quanto aparece
Mas quem mostra no que tece.
Eu (como Deus) sou um rio
A manar em corropio.
Primeiro
Primeiro me identifico
Com meu corpo (e não sou eu).
Depois então verifico:
Sou do sexo como o meu.
A seguir tenho alguns bens,
Traços meus a que te aténs.
Depois sou duma nação,
Uma religião e raça,
Membro duma profissão...
Mais um leque que me traça:
Sou pai, mãe, irmão, marido
E o mais que haja em tal sentido.
Sou passado acumulado,
Mais saber e opiniões,
Os gostos que hei cultivado
Como as minhas aversões...
Sou eu com a minha história,
Com ou sem mesmo memória.
Sou esta rede enredada
Que os mais espelham de mim,
Ao tropeçarmos na estrada,
Complexidade sem fim,
Pensamentos em corrente
Compulsiva em minha mente.
Atado neste cordame,
Como ver que não sou eu
O que de mim eu derrame
Mas donde aquilo nasceu?
- Eu não sou nunca a jornada,
Sou o empreiteiro da estrada.
Vender
Vender o que ninguém quer
É questão de convencer
O potencial comprador
De que tal vai-lhe acrescer
A aura de grão senhor.
Corre logo um corropio
A preencher o vazio.
Por isso a publicidade
Se enche da vã divindade
Do cantor, futebolista,
Do locutor mais em vista...
Todos vão participar
Da aura que os rodear?...
- E eis como a vida vazia
De mais vazio enche o dia.
Nunca
Nunca um ego é pessoal,
Não é nunca quem eu sou
Nem quem és tu, afinal,
É o monte que se ajuntou
Nas lavras de cada qual.
Por mais que seja brilhante,
Não é quem o leva avante.
Como pessoal se eu tomá-lo,
Vou ao erro alimentá-lo.
Leito
Muitos, no leito de morte,
Ao largarem tudo ali,
Descobrem então o norte:
Nada é o seu ser em si
Com quanto às costas transporte
De fortuna ou de miséria:
Ele é só quem cobra a féria.
Larguei
Larguei os bens materiais?
Logo se apodera o ego
De quaisquer espirituais
A que sem ver eu me apego
E vai-me inchar meus trejeitos:
Sou melhor que os mais sujeitos!...
E assim deitei a perder
Tudo o que pude crescer.
Desejo
O ego é um desejo de ter
Que se não farta jamais:
Dura um momento o prazer,
Logo cansa e então quer mais.
Buraco de incompletude,
Que é que insatisfeito o mude?
Não tenho o suficiente?
Suficiente então não sou
E então corro sempre em frente
Sem nunca levantar voo.
Solidez e permanência
São do de fora carência?
Nunca me logro encontrar
Através do que tiver.
Quem nisto não reparar
Vai tentar sempre mais ter
E a carência não termina:
Ter mais mais ter determina.
Satisfação transitória
Vai gerar maior carência.
Vive o ego da vanglória
De encher o vácuo de ausência.
E a fátua necessidade
De dependência me invade.
Mal-estar
Mal-estar, inquietação,
Negro tédio, ansiedade
Produz a insatisfação
De qualquer necessidade.
Se é carência estrutural,
Nenhum recurso lhe vale.
Mas, se tiro o campo ao ego,
Nenhuma carência pego.
Ficam-me as que são reais,
Não as falsas, só mentais.
Conteúdo
Um conteúdo é substituível,
Um ego, não, é irremível.
Enquanto não reconheço
Este modo de pensar
Dentro de mim, o que meço
É quanto ele se alargar.
Findo dele inconsciente,
Creio em quanto ele me diz,
Feito escravo obediente
A agir pelo seu cariz.
Ao ego nenhum conteúdo
O satisfará de vez.
Então, enquanto não mudo,
Desfaço-me no entremez.
E nunca serei feliz,
Que jamais o satisfiz.
Quem
Quem sou eu? Sou meus objectos,
Por meu corpo a principiar,
De meu sexo os mil aspectos,
Papéis a desempenhar?
Uma vida realizada
É realizar tal jornada?
Sou a física aparência,
Sou a força ou a fraqueza,
A fealdade ou beleza
Onde aos mais ganho evidência?
Tenho uma auto-estima fraca
Se de feio alguém me ataca?
A minha imagem mental
Que disto tiver comanda
E como como animal
Ou não como e estico em banda?
E nem no corpo reparo
A corrigir como o encaro?
Se assim for, desgraça a minha
Quando o corpo me definha.
Moldei minha identidade
Por minha corporeidade.
Tudo o que exterior me for,
Transitório, murcha o teor.
Equiparar corpo ao eu
É buscar sofrer de seu.
O meu eu não tem matéria:
- É o que a molda e cobra a féria.
Perco
Quando não me equiparar
Ao meu corpo, ao definhar
Não me perco a identidade,
De auto-estima a densidade.
A dimensão informal,
Minha luz de consciência,
Mais transparece, fanal
Através de tal falência:
Quão mais findar esvaído
Mais se vê quem dá o sentido.
Fácil
Com meu corpo a identidade
É fácil de ultrapassar:
Em minha interioridade
É de inteiro a vivenciar.
Minha vivência sou eu
Gerindo um mundo que é meu,
Sem física dimensão:
Vivo-me por dentro então.
Eu sou o mentor de mim
No íntimo que orquestro assim.
Pelo corpo exteriorizo
Planos que no mundo viso
E com ele executando
Os vou, ao ir caminhando.
Forma
O ego é identificação
Com uma forma qualquer,
Exterior ou interior.
Ora, não sou eu então,
Que sou sem forma de ser,
Delas todas moldador,
Sem nunca me reduzir
A nenhuma qualquer delas.
Quando me aí procurar,
Vou-me perder, a seguir,
Se me sentar às janelas.
De vez quando me assentar,
Findarei lá prisioneiro,
Já não corro o mundo inteiro.
Traí o que sou na fonte
E perdi meu horizonte.
Eu sou, por mim, peregrino
A talhar qualquer destino.
Não me reduzo na lida
A nenhum a que dei vida.
Perdeu
Consciência de si quem tome
Há só quem já perdeu tudo:
Perdeu os filhos com fome,
A posição social,
A reputação real,
Até a física figura...
Foi num desastre ou na guerra
Que sem nada alguém se apura,
Em conjuntura que aterra.
Da estrada então no limite,
De repente outro é o palpite.
Não tem mais a identidade
Detrás, foi-lhe retirada.
Agrade-lhe ou não lhe agrade,
É a si presente a jornada:
De tudo ver-se despido
De repente faz sentido.
Ele existe para além
De tudo o que se perdeu:
Jamais findará refém
Do com que se confundiu.
- Findo em paz, aí sucedo,
Livro-me de vez do medo.
Perda
Se ocorre uma perda trágica,
Vou resistir ou me rendo?
Se resisto, perco a mágica
Ocasião, não a vendo.
Se me rendo, então aceito
O que existe e presto preito.
Acolá findei amargo,
Tenho aqui de sábio o cargo.
Aqui findo aberto à vida,
Acolá fechei-me à ida.
Pregas
Todo o mundo anda cosido
Às pregas que tem em mente,
Do diabo possuído
De não ver que é diferente:
Ele é quem tira e quem põe,
É quem da mente dispõe.
Não é, pois, quem anda a mando
Do que está sob comando.
Que o pensador é o pensado
É o que pensa quem consciência
Disto inda não tem tomado:
Toma o ego a presidência
E ele corre escravizado
A cuidar que é um bom soldado.
Quem manda nele é o passado,
Que a mente é o já elaborado:
Quem dá ordens é a cultura,
A educação recebida,
Das origens o que apura,
A herança atrás acolhida...
Tudo é um padrão persistente,
Repetitivo, insistente.
E o sujeito não repara
Que, ele ausente, é-lhe o ego a cara.
São
Um ego são pensamentos,
Emoções habituais,
Memórias de mim fermentos
Que me identificam, tais
Que digo “eu e a minha história”,
Tanto em perda como em glória.
São habituais papéis
Que desempenho sem ver,
Colectivas marcas fiéis
De nação, da fé que houver,
Ou de classe social,
Ou dum político aval...
O ego tem marcas pessoais,
Ora são opiniões,
Ora são bens materiais
Ou de exterior os padrões,
Ressentimentos antigos
(Sou melhor do que uns amigos)...
Seja qual for o conteúdo,
A estrutura atrás é a mesma:
Me identifico com tudo,
De mim me corto na resma
De coisas com que confundo
O que sou com um tal mundo.
É identidade precária
A que confundir assim:
Tudo é efémero na vária
Mole que transita em mim.
Para então sobreviver,
Luto, o ego a proteger.
Para este eu falsificado,
Penso o outro diferente
Olhando-o então de lado,
Um inimigo em semente.
Então sou crítica e queixa:
De mim perdido eis a deixa.
Missão
A missão da religião
É tão-só me dar a mão
Até eu ver o caminho
E trilhá-lo após sozinho.
Se se quer eternizar,
Nunca entendeu seu lugar.
Dali para a frente, o aviso
Serei eu do que é preciso:
Não serei Deus nem os céus,
Vão sendo eles nos pés meus.
Pois até hoje nenhuma
Isto entendeu que a resuma.
É um pecado universal:
De contrição, nem sinal...
Ofendo-me
Ofendo-me da ganância,
Com a desonestidade,
A falta de integridade,
Com quem faz a manigância,
Com quem agiu, com quem disse,
Com quem não logra fazer
Que fito devia ter,
Com tudo o mais que se visse...
Meu ego adora tudo isto.
Em lugar de perdoar
A inconsciência que grassar,
Toma-a pelo outro que avisto.
Feita dele identidade,
Nem reparo na inconsciência
Com que meu ego a evidência
Trapaceia da verdade.
Quantas vezes nem a falta
Daqueloutro ali existe!
Mas o erro crasso persiste,
Só vejo o inimigo em alta.
E, mesmo que a falta ofenda,
Ele ela não vai ser nunca,
Doutros grãos a lavra junca,
Se calhar nem se lhe arrenda.
Ele é sempre quem o fez
E o que o pode desfazer,
Não se esgota no que quer
Que seja feito de vez.
Ele como eu um além
Somos de todo este quadro.
Qualquer eu é sempre um adro
De o templo implantar que advém.
Encará-lo
Doutrem quando uma expressão
Vejo que não é pessoal,
Deixo de encará-la então
Como tal sendo, afinal.
O eu dele separo dela
E ao eu dele é que isto apela.
De repente vem-lhe à tona
Tal eu perdido na zona,
Confundido, baralhado
Com tudo em que haja incarnado.
Vezes
Às vezes de proteger
Tenho-me de inconscientes
Mas podê-lo-ei fazer
Sem como inimigos ler
Nunca os eus de tais agentes.
Distinguir-lhes o eu dos feitos
Muda em mim os meus trejeitos
E apela a eles que assim
Se encarem também por fim.
Muda
O ego muda a conjuntura
Num inimigo a abater:
Não devia acontecer,
Não quero ter tal figura,
Eu nunca quis colher isto,
É injusto ser tão malquisto!...
O grande inimigo do ego
É sempre o instante presente,
Da própria vida a corrente
Que me não deixa em sossego.
Se a ela adiro, gratuito,
Sou eu, não ego fortuito:
Não me confundo jamais
Com nenhum dos meus bornais.
Erro
Um erro, a deficiência
Devem ser comunicados
A apelar à competência
De virem ser reparados.
Com os factos, todavia,
Sem julgamento à porfia.
Quando digo ao empregado
Que é de aquecer minha sopa,
Não é de ego isto um traslado,
É facto que quenquer topa.
Se grito: “como se atreve...?”
É meu ego duro e breve.
Meu ego o que mais adora
Ver-se ofendido é na hora.
Morto
Há quem a vida à procura
Corra do que negativo
Cada dia lhe assegura,
Morto a acreditar que é vivo.
São viciados em ira,
Constante perturbação,
Como aquele que delira
De drogas na escuridão.
Negativo reagir
Reforça uma identidade
Às arrecuas a ir
Contra si pela cidade.
Impedir
O outrora não tem poder
De impedir nenhum agora.
Só a mágoa que eu dele houver
Me traz bloqueio ou demora.
E ela é apenas a bagagem
Que carrego da viagem.
Poderei jogá-la fora,
Com juízo, a qualquer hora.
Criticar
Criticar, reagir contra,
Queixando, faz-me importante:
Quão mais um outro é um bilontra
Tão mais incho o peito, impante.
O meu ego é superior,
Cresce bem nestas pegadas:
Poderei nem o supor,
Nas costas dou-me palmadas.
Do político me queixo,
Do empregado preguiçoso,
Do trânsito com desleixo,
Do rico ganancioso,
Dum ex-cônjuge, um colega,
Dos homens e das mulheres...
- E aquilo que a mim se pega
Superior é aí me veres:
Se me queixo, é que estou certo
E o resto do mundo, errado.
Incha o ego, incha, já perto
De um balão ser estoirado.
Traços
As minhas opiniões,
Pontos de vista, juízos
De valor são os salões
Onde meus traços precisos
Identifico. Senões,
Porque cuido que sou eu
E não: sou quem construiu.
Como os construí, um dia
Deito abaixo o que ali via.
Eu sou a força que em norma
O velho em novo transforma.
E não sou novo nem velho,
Nem sequer um bom conselho.
Sou a energia que tenta
Alimentar e alimenta,
Que se pode ver em tudo
Sem ser dele um conteúdo.
Crença
A crença de que sou eu
O detentor da verdade,
Razão é a do lado meu,
A dos mais é opacidade,
Corrompe o comportamento
Ao ponto da insanidade.
Séculos fora o tormento,
Uma individualidade
Queimar viva na fogueira
Só porque divergiria
Da tal tese verdadeira
Foi tido por moral via,
Porque a vítima era errada.
E era errada de tal modo
Que só de morte matada!
A verdade é, pois, o engodo.
Nos massacres do Camboja
Entre os milhões que tombavam
Um grupo aparte se aloja:
Quantos óculos usavam!
Para o dogma superior,
Parte eram dos instruídos,
Cada um explorador
Dos camponeses traídos.
E a verdade consistia
Só em leque de pensamentos,
Que não temos outra via
De iluminar os momentos.
Nenhum dado, de tal jeito,
Interior ou exterior,
Se entende, pois, a preceito,
Só lhe figuro o teor.
O real, qualquer que seja,
Sempre, fatal, ultrapassa
O que a mente dele veja,
Vago traço que o retraça.
Fito
Uma verdade absoluta,
Uma absoluta moral
São o fito da conduta,
Não o que atinjo ao final.
Sendo sempre aproximável,
Não é nunca consumável.
Itinerário infinito
É o que sou, da vida o fito.
E mesmo para além dela
A plenitude à janela
Plenifica-me, inefável,
Não esgota o Inesgotável:
A Verdade é mais além
E mais além, sempre o Bem.
Doutro modo nem havia
Céu nenhum, só fantasia.
Buscam
Buscam verdade absoluta
Onde ela jamais existe:
Na doutrina, ideologia,
Em mil regras de conduta,
Histórias que em resma aliste...
Em comum são igual via:
- Tudo meros pensamentos.
Um pensamento apontar
Poderá para a verdade,
Não é a verdade. E os ventos
Que pode desencadear
São, errando, a atrocidade.
Religião
Toda a religião é falsa
Como toda é verdadeira.
Se eu a utilizar como alça
De alçar a Verdade inteira,
Sempre falsa é tal peneira:
É uma religião dum ego,
De tradições mero apego.
Se só ali mora a verdade,
Torna-se uma ideologia,
Duma superioridade
Ilusão e fantasia.
Vai dividir as pessoas
E termina no conflito:
É o invés dela que ecoas,
Do que perfilhar por fito.
Ao serviço da Verdade
Que Infinda nos ultrapassa,
Ao invés, será na herdade
Do mundo um sopro de graça:
Devém rede de sinais,
Mapas deixados por quem,
Mais desperto do que os mais,
Ajuda a acordar também
Para a interior dimensão
Tudo quem o queira então.
Consuma a libertação
Nela de todo e quenquer
Duma identificação
Com qualquer forma que houver,
Todas a manufactura
Só que o tempo nos apura,
Meros meios com que avanço
Para o Infindo, a cada lanço.
Imo
Em meu imo há um Cristo interno,
Um Buda por natureza,
Um Atman, um deus que eterno
Me habita na singeleza.
Eis a dimensão que em nós
A tudo nos ata os nós.
Uno aí sou com a vida
No fundo imo pressentida.
Uno aí sou com o Todo,
Gérmen de Deus deste modo.
Certo
De eu estar certo o princípio
E de o outro estar errado,
De boa vontade equipe-o
Embora, é um transtorno atado.
Enraizou-se onde o conflito
Entre nações, raças, tribos,
Religiões ou qualquer mito
De ideologia tem cibos.
Tornou-se de longa data,
Endémica dor, extrema.
Cada qual consigo empata,
Identificado ao lema.
Incapazes de entender
Ambos outra perspectiva,
Outra história tudo a ler,
Por igual válida e viva.
Ambos donos da verdade,
Vítimas se consideram
E o outro, pura maldade
Que nem gente é, vituperam.
Desumanizado assim
O outro como inimigo,
Podem matá-lo, por fim,
Sem remorso nem castigo.
Não sentem-lhe a humanidade
Nem sequer o sofrimento,
Do cárcere da verdade
Cada qual preso ao frumento.
Vir
A ganância, o egoísmo,
Exploração, crueldade,
A violência – são o abismo
Onde o planeta se evade.
Se não vir a disfunção,
Personalizo-os então.
Fabrico uma identidade
Para um indivíduo, um grupo:
“Eis dele a realidade”,
“Eis o que são que eu apupo”...
É meu ego a dar a mão
A uma mistificação.
Nenhum deles se confunde
Com aquilo que ele faz.
A visão que isto fecunde
É ver que ele está por trás.
É por trás do saco às costas
Que comuns temos apostas.
Não é ler-me superior,
Reagir a condenar,
Contra o inimigo o ardor
Indignado projectar.
Isto satisfaz meu ego,
Noutro e em mim gerando o apego.
Entre mim e o outro cresce
Então a separação
E mais diferença acresce
À que detrás vinha então.
A humanidade evidente
Que é comum já ninguém sente.
Também
Tudo aquilo que me ofende
E a que noutrem mais reagir
Também em mim a haver tende
E em mim o ataco, ao agir...
- Todavia, é tudo ego,
Nem em mim nem noutrem pego.
Não tem nada a ver com ele,
Não tem nada a ver comigo,
Com o eu dele a que eu apele,
Com meu eu que trago a abrigo.
Só me ofende se confundo
Nosso eu com o que há no mundo.
Tudo aquilo é apenas ego,
Mudo se dele despego,
Se me não identifico
De nada com o salpico.
Eu e o outro a animação
Seremos da vida então:
A mão então dar podemos
E outros trilhos trilharemos.
Proteger
Posso ter de proteger-me
Ou de proteger alguém,
Mas cuidado com o germe
De ego que com isto advém:
Se erradicar quero o mal,
Como ele acabo, afinal.
O combate à inconsciência
À inconsciência me atrai:
O derrotado à ocorrência
Da desforra logo vai.
Aquilo que combatemos
Afinal fortalecemos.
Aquilo a que resistimos
Em toda a linha persiste.
Guerra à droga, ao crime ouvimos,
À pobreza, ao cancro, insiste...
Ao tratar como inimigo
Acrescento o que persigo.
Guerra é forma de pensar.
Se eu ganhar, novo inimigo
Irá dela germinar,
Nunca mais encontro abrigo.
Há sempre correlação
Entre a mente e o mundo chão.
Quando somos dominados
Por um bélico pensar,
Distorcemos os mil dados
Com que temos de lidar.
Só vejo o que quero ver,
Vejo mal o que vier.
Tudo era bem diferente
Se eu encarara ali tudo
Como a tarefa emergente,
O desafio a que acudo,
Eu em diálogo no mundo,
Semeando o que vir fecundo.
Sempre
O ego é sempre a insanidade
Que há-de ter a mente humana.
Assim vê-lo, a identidade
De ninguém é, que me engana.
Então não vou reagir
A ele, pois, a seguir.
Daí, com o eu do outro,
Não com dele a produção,
Poderei ter meu encontro,
A ver se ela é boa ou não.
Eu com eu nos entendemos
E além mais ir poderemos.
Poderei ter compaixão.
Todos doença da mente
Vivemos, irmão a irmão,
E curá-la é que é premente,
Nossos eus atando em nós,
Eu mais tu somando um nós.
Reagir, confundindo os planos,
É que é uma fonte de danos.
Alguém
Alguém que me acusa de algo,
Não me conhece o valor,
Invade os campos que galgo,
Põe-me em causa o meu teor,
Disputa por um dinheiro...
- E a ira tolhe-me inteiro!
Ouço-me a voz irritante
Ou estridente ou roufenha,
A defender num instante
A posição que ali tenha,
Justificando, atacando,
A inculpar a quem não mando.
É o momento da inconsciência,
Algo em mim entrou em guerra,
Sente ameaçada a vivência,
Quer sobreviver, se aterra,
Reivindica a identidade
Na vitória que ter há-de.
Esqueci-me: não sou eu
Em tudo aquilo a que adiro
E a que apelidar de meu.
Ao confundir-me, me firo:
Creio, ao perdê-lo, perder-me,
E torno-me é disto um verme.
Buscando
Quando um ego entrou em guerra,
É apenas uma ilusão
Buscando a sobrevivência.
Ao erro a ilusão se aferra
De que estou eu em questão,
Eu que luto na pendência.
Ora, eu sou a consciência,
O espectador que repara,
Presença cuja evidência
Mal vejo, não se separa
Do que numa intervenção
Esteja acaso em questão.
Se com isto me confundo,
Já não sou eu, sou um ego
Atolado bem no fundo
Do lodo que houver no pego.
Se me distingo, na luta
Não me escravizo à disputa.
Liberto deste domínio,
Não sou mais ego, sou eu,
Dum poder novo o fascínio
Logo a mim me preencheu,
Maior que o ego ou a mente,
Sou eu mesmo independente.
Tomando consciência do ego,
Do ego me irei libertando.
No poder do agora pego,
Sou presente respirando.
A minha presença aqui
Não é o que ontem já vivi.
Presença de mim a mim
Na minha presença ao mundo,
Este é o derradeiro fim
Da vida humana que fundo:
O poder de aqui-agora
Gerir com quanto ali mora.
Frágeis
São frágeis as estruturas,
As formas, crenças, eventos...
Se aquilo ser te afiguras,
Volátil és como os ventos.
Contudo, tudo findado,
Eis-te aí de pé postado,
- Então, se não és aquilo,
Que é que és tu, no teu sigilo?
Famosos
Alguém se evidenciar
Notando por acidente
Famosos de que anda a par
É o ego ali a tentar
Ser maior que toda a gente.
Como não fora importante,
É-o de empréstimo adiante.
Nem repara na mentira
Da identidade que tira.
Dos eus deveras o empório
Ri de todo este simplório.
Desgraça
Desgraça de ser famoso
É que em si o que ele for
Obnubilado é do gozo
Do colectivo esplendor
Da imagem edulcorada
(Que dele nem terá nada).
Todos quase evidenciar
Querem sua identidade
(Que é mental imaginar)
Junto à individualidade
De alguém que for elevado
Entre outrem, por algum lado.
Podem nem saber que não
Andam nele interessados.
Querem é sua noção
De si bem robusta, dados
Que lhes darão, desde o início,
Um monumento fictício.
Acreditam que através
Do famoso podem ser
Mais do que são. É um revés:
Não se completa quenquer
Só pela imagem mental
De quem pôs num pedestal.
Contradição
Há contradição grotesca
Entre o que o vulgo projecta
Como vida principesca,
Nobres feitos, visão recta
De alguém no cume da fama
E o que ele é na pobre trama
Do que em seu cotio for,
Do que é de operar senhor.
Todos uns pobres coitados
Somos dos quatro costados.
E famoso que o merece
É quem isto nunca esquece.
Desempenha
O ego quer algo de alguém
E desempenha um papel
Visando o que dali vem:
Ora é um bem por que ele apele,
A sensação de poder,
Ora bem na própria pele
Se sentir mais que quenquer,
Ser tido por especial,
Gratificação que houver
Acolher como sinal
De como ele é grandioso...
E quase sempre é normal
Que nem dê conta, gozoso,
Do papel que desempenha:
Ele é o papel precioso.
Subtis alguns que ele tenha,
Óbvios outros são aos mais,
Não a ele a quem convenha.
Chamam a atenção uns tais,
Para que os demais reparem.
O ego alimentos reais
Retira dos que atentarem.
De energia ignora a fonte
Que do imo as bicas jorrarem.
Dentro em nós sem horizonte,
Fora é que vai procurar.
Presença a si sem ter ponte,
Numa forma a vai buscar:
Admiração, elogio,
Reconhecimento, altar,
De admiração desfastio...
De algum modo ser notado
É que à vida por um fio
O atém: ei-lo confirmado!
Tímido
Tímido, se tu não gostas
De dar nas vistas, um ego
Tens ambivalente às costas:
Tanto tem desejo cego
Como receio total
Da atenção do outro, afinal.
Ele teme que a atenção
Possa revestir a forma
De qualquer reprovação
Ou crítica, o que, por norma,
Lhe enfraquece a identidade,
Tira a força que lhe agrade.
O medo aí da atenção
É mais que a necessidade
Que dela irá ter então.
A imagem faz que degrade,
Com o juízo negativo
De inadaptado furtivo.
É de ego a imagem pensada
Quer a de “eu sou o maior”,
Quer “não presto para nada”.
Sob o positivo ardor
É tudo o medo gritante
De não ser bom o bastante.
Sob o negativo anseio
É anseio de ser maior,
De ser o melhor do meio,
Ante os mais a contrapor.
Por detrás da confiança
Medo é de que o não alcança.
O tímido inadaptado
Que se sente inferior
Tem o desejo velado
De um dia ser superior.
Entre os extremos oscila,
E é tudo ego o que perfila.
Papéis
Diferentes indivíduos
Representam diferentes
Papéis no mundo assumidos:
Somos todos divergentes.
Pouco importa que função
Desempenhamos então.
Se nos identificamos
Com ela de tal maneira
Que a nós já não dominamos
E ela nos domina inteira,
Tornamo-nos num papel:
Não sou mais eu, sou só ele.
De mim findo inconsciente.
Se me apercebo de tal,
Crio a lonjura presente
De mim ao que é meu sinal:
É a minha libertação
Do papel e da função.
Se nos identificamos
Totalmente a um papel,
Um comportamento olhamos
Tal se eu fora a minha pele:
Eu, fundido a meu império,
Demais lá me levo a sério.
E aos outros mais atribuo
Esta mesma confusão
Quando com eles actuo:
São só os papéis que terão.
Para um médico um paciente
Serei: deixei de ser gente.
Muitos
Há papéis predefinidos
Com os quais se identificam
Muitos, muitos, de imediato.
Encontram neles sentidos
E egos são que pontificam
Sem o eu nunca em nenhum acto.
As interacções humanas
Algo desumanizadas,
Pouco autênticas findando,
Afastam como praganas
As pessoas programadas,
Nunca a si aos mais se dando.
Estes papéis esquemáticos
Dão noção de identidade
Que de algum modo conforta.
Apesar de serem práticos,
Perdemo-nos, na verdade,
Dentre eles, trancada a porta.
Na hierárquica estrutura,
Igreja, Estado, Governo,
Logo as funções se transmudam
Em identidade pura.
Todo o interagir interno,
De invisível, grita: acudam!
Arquétipos
Arquétipos sociais
Dão papéis padronizados:
De casa donas iguais,
Machos duros, calejados,
A sedutora, o artista
Como inconformado à vista,
O culto que para o público
Exibe literatura,
Música de bom repúblico
Como outrem de alta costura
Exibe da veste a trama
Ou carro topo de gama...
E o papel de adulto então?
Levamo-nos muito a sério
A nós e à vida em questão.
Desta pressão sob o império,
Descontracção e alegria
Destes papéis não são guia.
Mudas
Aquele que andar desperto
Detecta mudas subtis
Na postura, com o acerto
Àqueles com quem condiz:
Uma é a fala ao presidente,
Outra, ao porteiro presente.
São diferentes papéis:
Não actuo como um eu
Com outro trocando anéis
Mas com o posto que é o seu.
E assim é com toda a gente:
Filho, marido, parente...
Quando numa loja entrar,
Num restaurante, num banco,
Nos correios... – o lugar
Impõe papéis onde abanco
Predefinidos adiante,
A que obedeço constante.
Vou actuando um papel
E o vendedor, o empregado
Por igual o que os impele
É o papel que lhes é dado.
Cada qual me trata assim
Pelo meu papel a mim.
Os eus não se encontram nunca,
São as imagens mentais
Dum lado e doutro o que junca
As redes todas sociais.
Se aos papéis me identifico,
De afecto e laços abdico.
Capaz
Quem não for capaz de ver
Além do papel social,
Da identidade mental
Que ele colar em quenquer,
Sem encontrar semelhança
Em todo o humano que alcança,
Inda não entendeu nada
De quem é na humana estrada.
Tem de ir até à fundura
Que iguais todos nos figura:
Na intimidade desse eu
É que igual aos mais se viu.
Aí pode dar a mão
Ao mundo a talhar do chão.
Dor
Depressão, esgotamento,
Reacção exagerada
São o frequente tormento
Duma dor dissimulada.
Chego mesmo à negação
Ante mim de haver lesão.
É um papel desempenhado
Por indivíduos que ignoram
Que eles são um outro lado,
São um eu com que laboram
Tudo o que lhes acontece,
Cultivando a própria messe.
Nunca são a própria dor,
São quem se lhe irá impor.
Filhos
Se tu tens filhos pequenos,
Faz o melhor que puderes:
Ajuda em quaisquer terrenos
De semeadura que houveres,
Dá o norte de orientação,
Presta toda a protecção...
Mais importante que tudo:
Dá espaço de autonomia.
Que de miúdo a graúdo
Corra por si todo o dia:
Lugar de ser. E ser tudo.
Creres
Creres tu que és tu quem sabe
O que é melhor para um filho,
Mal na infância ainda cabe,
Para os dois é, após, sarilho.
Quanto mais ele crescer,
Menos tal é verdadeiro:
É ele a tornar-se o ser
Dele próprio por inteiro.
Quanto mais expectativas
Crias do que for melhor
Mais mortas as trilhas vivas
Imporás do que ele for.
Mais prisioneiro da mente
Vais ficar em cada dia,
Em vez de ficar presente
Ao filho que se anuncia.
E ele precisa de ti
Deveras doutra maneira.
Mas tu estás demais aí
E ele a sós à tua beira.
Cometem
Os filhos cometem erros,
Vão aguentar sofrimentos.
São humanos, nossos berros
Marcam-nos os nascimentos.
Erros, porém, muitas vezes
São-no apenas para o modo
De pensar que são reveses
E, afinal, são novo bodo.
O que é um erro para ti
É o que então têm de fazer,
De experimentar ali,
Hora de autêntico ser.
Dá tua máxima ajuda,
A melhor orientação,
Sabendo que crescer muda,
Ou filho adulto é um anão.
Poupar
Não era maravilhoso
Poupar de vez os teus filhos
A quanto for doloroso?
Não era: só traz sarilhos.
Eles não evoluiriam
Enquanto seres humanos
E fúteis permaneciam,
Do exterior presos a enganos.
O sofrimento nos leva
A mergulharmos mais fundo,
A buscar a fuga à treva,
A amanhecer luz no mundo.
O sofrimento é causado
De identificar-me a formas
E as desgasta, doutro lado,
Mal com tal te não conformas.
Se vês que não és a dor
Com que a sofrer te fundiste,
O teu ego sofredor
Já consciente destruíste.
Tu como teu filho, então,
Tomareis em mão tal dor
A ver se a ultrapassarã:.
De sofrer é outro o teor.
Ultrapassar
A humanidade é um destino
De ultrapassar sofrimentos,
Não na forma dos fermentos
Que eu como um ego imagino.
Do ego o pressuposto errado
É que eu não devo sofrer.
E o erro transfiro ao lado
A qualquer filho que houver.
A raiz do sofrimento
É sempre este pensamento.
A dor tem um fito nobre:
A consciência evoluir,
Eliminar o ego pobre
E eu ser eu a seguir.
O Cristo crucificado
É a marca do trilho dado.
Representa os homens todos
Como todas as mulheres:
Trocas os falsos engodos
Ressuscitado até seres.
Resistir ao sofrimento
É criar o ego maior
Num itinerário lento
Quando o ego é de se transpor.
Quando este é o eliminado,
Acolhido o sofrimento,
Tudo corre acelerado,
Dor consciente do momento.
Podemos aceitar dor,
A minha ou doutro qualquer,
Pais, filhos, seja quem for,
- É a dor freima a empreender.
A forja na dor sofrida
Luz da consciência é vivida.
Cegueira
Quem pelo ego é dominado
Não vê quanto faz sofrer:
É o caminho adequado
À conjuntura que houver.
Na cegueira é incapaz
De ver quanta dor inflige
A si, aos demais atrás...
Nunca tal questão o aflige.
A infelicidade é doença
Do ego vinda sem polémica,
Do mundo inteiro pertença
Em proporção epidémica.
É equivalente interior
À poluição mais completa
Que andamos todos a impor
Igualmente no planeta.
Estados
Os estados negativos,
Ira, ansiedade, ódio, mágoa,
Ciúme, inveja... – de arquivos
Dum ego são corrente água.
Mas por negativos não
São dele reconhecidos
E justificados são
Como certos e assumidos.
O pior é que causados
Crê que por outrem serão
Ou por exteriores fados,
- Pelo próprio é que não!
Distinguir
Um ego não é capaz
De cindir a conjuntura
Da interpretação que faz,
De como reage na altura.
“Que dia horrível!” – diremos,
Sem repararmos que o vento,
O frio, a chuva que vemos
Horrível não são tormento:
São o que são e mais nada.
Horrível é a reacção
Que lhes tenho na jornada,
A resistência, a emoção
Interior que lhes aplico
A partir da rejeição.
O bom e o mau verifico,
Afinal, que nada são,
Só pensamento que assim
Por minha mão os conforma.
Negatividade em mim
É meu ego a tomar forma.
Enormemente
Ira e mágoa fortalecem
Sempre enormemente um ego,
Separações robustecem,
Às diferenças no apego.
Criam posição mental
De justiça irrefutável,
Aparência feita real,
Quando em tudo nada é fiável.
Se fora capaz de ver
Quão mal os meus órgãos findam,
O coração a bater,
O estômago onde nos brindam
Náuseas, dores e as defesas
A cair por todo o lado,
É claro que somos presas
Do inferno naquele estado.
São formas de sofrimento,
Já não temos mais lazer
Em meio a tanto tormento,
Pusemos termo ao prazer.
Pendor
Sempre que nos encontramos
Num estado negativo,
Por um pendor desejamos
Aquilo em nós bem activo.
Algo agradável o vemos
Ou então acreditamos
Que permitir que cheguemos
Nos vai aonde queiramos.
Senão, quem desejaria
Ser infeliz ou os mais
Pôr infelizes na via
Da vida em trânsitos tais?
Quando o negativo em mim
Vejo que tira prazer
Daquilo ou dum útil fim
Que crê que poderá ter,
De meu ego cônscio fico.
Com o ego assim descoberto,
Com tal não me identifico
Da consciência a coberto.
Findo o ego a enfraquecer
Com tudo o que em mim distorça
E a consciência a crescer
Ganha então em mim mais força.
Transcendo
Se vejo, neste momento,
Que crio o meu sofrimento,
Transcendo as limitações
De estados e reacções
Pelo ego condicionados
Que nos têm aprisionados.
Abro nisto infinidades
De mil possibilidades,
Modos mais inteligentes
De lidar em quaisquer frentes.
Livre findo de abdicar
Da infelicidade alvar,
Ao descobrir, de repente,
Que ela é pouco inteligente.
Negatividade é parva:
É um ego que em mim escarva.
O ego pode ser esperto,
Inteligente, nem perto.
A esperteza os próprios fins
Persegue mais seus afins.
A inteligência vê o todo
Que é maior que aonde rodo.
Neste todo as coisas dadas
Todas vão interligadas.
A esperteza é o interesse
Próprio que em nós permanece,
A união ao todo furtas,
Preso sempre a vistas curtas.
Mui político, empresário
É um esperto salafrário.
Muito poucos são agentes
Deveras inteligentes.
Por esperteza o logrado
Dura tempo limitado
Como a prazo, fatalmente,
Sempre é contraproducente.
Predominar
Impaciência, irritação,
Tédio, nervosismo e mais,
Angústia latente dão
A predominar então
Da vida em muitos quintais.
Nem sabemos donde vêm
Nem que os anda a alimentar.
Mas sempre na mente têm
Suportes que mal se vêem
E que é urgente detectar.
Aí então despertamos,
No momento esclarecidos.
Com a mente nos deixamos
De identificar, nos ramos
Em que nos quer ver mordidos.
Crenças
Há crenças inconscientes
Que me trazem mal-estar,
Pensamentos cá presentes
Com que eu troquei de lugar.
Vivo a sonhar acordado
E eles são meu negro lado.
Se à tona nunca os trouxer,
Vão ser meu ego escondido,
Toda a vida a me torcer
Até me ter espremido
De mim mesmo, de meu eu
Que assim neles se perdeu.
Sentir-me
Se algo tem de acontecer
Na vida para poder
Sentir-me em paz realizado,
Se sofro por tal evento
Não vir inda à mão do vento,
Não ser dele bafejado,
E se o sofrimento meu
Leva o que não ocorreu
Ali a ocorrer de vez,
Será então de tomar tento:
Escravo do pensamento
Sou numa vida ao invés.
Quem manda em mim é meu ego
E jamais terei sossego.
Outrora
Algo outrora me ocorreu
Que não devia ocorrido
Ter e que então me feriu.
Sofro inda aqui por mor disso.
Não houvera acontecido
E hoje eu seria um chamiço
A arder no lume da paz
Que não tenho e mais me apraz.
- Se hoje eu vivo a vida assim,
Manda-me o passado em mim.
Nem é vida: são os mortos
À vida a dar trilhos tortos.
Impede
Algo anda agora ocorrendo
Que não devia ocorrer.
É quanto em paz eu entendo
Que me impede de viver.
- Momentos de tal jaez
É que me matam de vez:
São o meu ego escondido
A ter-me à mão lá prendido.
Devias
Tu devias fazer mais,
Que então me sentia em paz.
Sofro por, sendo capaz,
Feito não teres jamais.
Talvez o meu sofrimento
Te leve a fazer o aumento...
- Tal jeito de outrem mandar
É meu ego a comandar,
Comigo na identidade
De meu eu sem mais verdade.
Se eu for um eu por inteiro,
Noutrem não mando, leveiro,
Dou-lhe a mão no que ele queira,
Só disponível à beira.
Ontem
Aquilo que tu fizeste,
Disseste ou não conseguiste
Fazer num ontem agreste
Impede, em negro despiste,
Por mais que eu seja capaz,
De hoje aqui sentir-me em paz.
- Quem assim cuida e se exprime
Dum ego não se redime:
Confunde emoção e facto,
Só do vácuo sente o impacto,
Sem se olhar ali de fora
Para acudir, desde agora,
Com quanto seu eu quiser
Operar no que ocorrer.
Sentir
Aquilo que estás agindo
Ou aquilo que não fazes
É o que me vem impedindo
De em paz nos sentir capazes.
- Isto é o ego em nossos laços,
Nosso eu disto não tem traços:
Nunca a paz íntima vem
Senão de mim, mais ninguém.
Nem eu nem o outro somos
O que fazemos nem pomos.
Não nos identificamos
Com o que aos trilhos legamos.
Afirma
O ego afirma que talvez
No porvir sentirei paz,
Se ocorrer certo entremez
Se obtiver o que me traz,
Se me transformar naquilo
Que a mim me porá tranquilo...
Ou que nunca poderei
Sentir-me em paz, que ocorreu
Algo outrora que nem sei
E o caminho me tolheu...
É o que, pelo ego, demora
A sentir-me em paz agora.
O ego não vai saber nunca
Que a oportunidade mora
De a paz viver que nos junca
Precisamente no agora.
Se calhar o medo tem
De o descobrirmos também.
É que a paz comigo, enfim,
Do ego significa o fim.
Adora
Um ego adora sofrer
Com a realidade ao pé.
Ora, o real é tudo o que é,
Em cada momento a ser.
O ego é sempre oposição
À correnteza do chão.
O ego é negatividade,
A infelicidade adora.
Provoca com gravidade
Em nós, noutrem, toda a hora,
O inferno que nós nem vemos
Que, afinal, é o que faremos.
Provocar o sofrimento
Sem o nós reconhecermos
É inconsciente tormento
De viver sem nós vivermos.
É de inteiro dominados
Sermos do ego nos cuidados.
Dum ego a incapacidade
De a si se reconhecer
É incrível opacidade
Que o leva então a fazer
O que nos outros condena
Sem reconhecer tal cena.
Quando anda determinado,
O ego nega enfurecido,
Tem astuto argumentado,
Se autojustifica erguido,
Para perante quenquer
Todo o facto distorcer.
Fá-lo-ão assim as pessoas
E as empresas o farão
E os governos que abençoas...
Se o mais falha, é uma agressão
Verbal e, ao fim, corporal
Do ego o último sinal.
Findar
A findar o sofrimento
Que atormenta a humanidade,
De há milhões de anos tormento,
É por mim, por ti que ele há-de,
Com responsabilidade,
Morrer a qualquer momento.
E não tolera demora:
Deverá ser mesmo agora!
Fortalecer
Vou fortalecer meu ego
Se, doente, então me queixo,
Com pena de mim me apego
E ressentido me deixo.
Se, ao definir-me, eu assente:
“Que é que sou? Sou um doente.”
Fica o mundo a já saber
Com que identifico o ser.
Mas é uma asneira pegada:
Meu ser é a minha pegada?!
Fundo
Há o doente mais amável,
Mais delicado e simpático:
Mais fundo entendeu e fiável
Quão o imo é frágil e prático.
É uma interior alegria
De quem entreviu magia,
Distinto ao ser da doença,
O eu que lhe sofre a sentença.
Mas nunca se identifica
Com ela que se lhe aplica.
Antes ele é que a enfrenta
Como quanto em vida o tenta.
Pensamento
Repetitiva, automática,
Do pensamento é a corrente,
Involuntária, acrobática,
Mental energia prática,
Sem alvo nenhum à frente.
Eu não penso o pensamento,
O pensamento me pensa.
Não é da vontade o vento,
Nem de escolha há provimento,
Por si em si se condensa.
Neste nível basilar
Grande número de gente
É como logra pensar.
“Eu penso” é neles falsear
Toda a espontânea corrente.
Ninguém “eu digiro” diz
Nem “circular sangue faço”:
A digestão não a fiz
E a circulação condiz...
Igual de pensar é o traço.
Voz
A voz dentro da cabeça
Tem vida própria. A maior
Parte de nós de tal peça
Vive à mercê, que tropeça
Na força dela a se impor.
Dominados pela mente
Que acúmulo é do passado,
Revivemos permanente
O que outrora foi presente,
Pesadelo continuado.
À mente identificado,
Nunca de tal conta dou.
Se o soubera, já deixado
De ser dela dominado
Lograria, a ser quem sou.
Só sou mesmo dominado
Se confundo quem domina
Comigo, ao pôr-me de lado.
Quando me houver transformado
Já nele, por minha sina.
Humanidade
A humanidade é o domínio
Da mente, sem conhecer
Que o que ali guardou no escrínio
E lhe mantém o fascínio
Igual não é dela ao ser.
Uma identificação
Total com a mente é falsa.
É sempre um ego em acção
Que é tanto mais forte quão
Mais como mente alto se alça.
O pensamento não passa
Dum dado meu interior,
Ínfimo pendor que grassa
Do íntimo por toda a praça,
E eu sou eu, dele a dispor.
Liberto
Quando me liberto do ego,
Tudo é paz, vitalidade
E de alegria um sossego
Que faz, quando a tal me entrego,
Que viver tem validade.
Germino amor, compaixão,
Brota a criatividade...
Sou eu próprio em acção
A gerir a vida então,
Tiro ao ego a validade.
Idêntico aqui não sou
Ao que crio, onde me dou.
Sou sempre eu, um mais-além,
Não me esgoto no que vêem.
Viva
Há quem viva sempre preso
A um qualquer modo de vida,
Alheio a si mas coeso
Com a grilheta de peso
Que o identifica em lida.
Alheados de si, do mundo
Que ali lhes girar à volta,
Rosto tenso e não jucundo,
Ausente, absorto, infecundo,
São só pensamento à solta.
Não ouvem nem ninguém vêem,
Ao presente não presentes,
Só passado ou porvir lêem,
Que são só mente não crêem
Mas daqui vão sempre ausentes.
Quando muito criam ponte,
Desempenhando um papel,
Doutrem para o horizonte.
Idênticos a tal fonte,
Nunca são na própria pele.
A maioria alienada
Vive de quem é deveras.
E tanto identificada
Com a ilusão incarnada
Que só fingimento esperas.
Inteligência
Qualquer organismo vivo
Tem inteligência sua,
Planta, animal, a Lua,
O Cosmos enorme e esquivo...
A razão é universal,
Não só minha nem mundial.
É o que unifica e mantém
Um corpo, todo e qualquer,
Os alimentos retém,
O oxigénio faz sorver...
Na Galáxia cumpre as leis
Deste Universo onde andeis.
Não sou quem no corpo manda,
É inteligência basal:
Em respostas o comanda
No meio ambiente geral.
É assim na planta a florir
Tal na Terra ao deixar-se ir.
O mais curioso em nós
É que nós, para além disto,
Temos a mente, onde após
O inteligente registo
Desencadeia emoções
Protagonistas de acções.
Não sinto grande emoção
Dum carro alheio roubado.
Porém, se for meu, então,
Sinto-me mesmo agitado.
Da mente a noção de meu
É que à muda procedeu.
É incrível a quantidade
De emoções que dum conceito
De nada por fim se evade,
Cruza toda a vida a eito,
Até o Homem definirmos
Pela razão que ali virmos.
Faz
O corpo nunca distingue
O facto do pensamento,
Faz que o pensamento vingue
Tal se a um facto fora atento.
Se pensar preocupado,
O corpo lê que há perigo,
Mesmo que esteja deitado
No conforto dum abrigo.
Bate o coração depressa,
O músculo se contrai,
A respiração opressa
Desembesta, a correr vai...
Quando é uma ficção mental,
A energia acumulada
Não tem escape no real,
Fere o corpo em retirada.
E então, se me identifico
À mente desenfreada,
Trepa a ansiedade ao pico,
É do ego toda a jornada.
E eu fiquei pelo caminho
Sem ver quanto estou sozinho.
Desencadeia
A nossa mentalidade
Desencadeia respostas
Com tanta velocidade
Ao que gostas e não gostas
Que a mente nem tempo tem
De voz dar ao que convém.
Vem de condições de antanho,
De infância acaso esquecida:
“Se confio, perco o ganho”,
“Ninguém me respeita a vida”,
“Não terei valor nenhum
Diante de qualquer um”,
“O dinheiro nunca chega”,
“A vida só desilude”,
“Abundância em mim não pega”,
“Não mereço amor que ajude”...
- E o preconceito fabrica
O real que se me aplica.
Quebra
A voz do ego quebra, instante,
O bem-estar natural.
A pressão que aguento adiante
Não é de externo sinal,
É ameaça proveniente,
Prioritária, da mente.
Um corpo a um ego preso
Só lhe vai corresponder
À disfunção de que ileso
Nada ali salvo há-de ser:
Emoções bem negativas
Só dali vêm compulsivas.
E eu findo barco à deriva,
À cachoeira sem esquiva.
Equilíbrio
Uma emoção negativa
No corpo é toxicidade,
O equilíbrio desmotiva
Na disfunção que o invade.
Medo, tristeza, ansiedade,
Ira, ódio, aversão,
Ciúme, inveja, má vontade...
- Um tal leque de emoção
Prejudica a energia
Que o corpo é no dia-a-dia:
Logo afecta o coração,
O sistema imunitário,
Hormonas, a digestão...
Não pára neste sumário
A gradual destruição
De tão negro itinerário:
Alastra o mal às pessoas
Com quem eu laços tiver
E destas, em mais coroas,
Em cadeia, por quenquer...
Um termo conta a verdade:
Tudo é uma infelicidade.
Revigoram-nos
As emoções positivas
Revigoram-nos e curam.
Mas umas têm negativas
Escondidas no que apuram.
É que umas virão dum eu,
Outras dum ego virão.
Um ego chama “amor meu”
E é uma posse de ladrão.
Irá criar dependência
Que se transmuda adiante
Em ódio, por excelência,
Porventura, num instante.
Expectativa criada
Num porvir a ocorrer,
Do ego sobrevalorada,
No invés se irá converter.
Será desapontamento,
Desilusão quando ao fim
Terminar aquele evento,
Não responde ao ego assim.
Num dia, enaltecimento
Far-nos-á sentir felizes:
No seguinte, o esquecimento
Deprimidos tem matizes.
O prazer da grande festa
Transmuda-se, na ressaca,
Amanhã, no que não presta,
Onde troquei de casaca.
Quando um ego me domina,
À ladeira positiva
Corresponde, mal declina,
A que afunda, negativa.
Identificada
Emoção do ego gerada,
Identificada à mente,
À vertente externa dada,
É mudada de repente:
O exterior é sempre instável,
A todo o instante mutável.
As emoções mais profundas,
Do eu manifestações,
Mais que emoções são fecundas:
São de Eu Ser aparições.
As outras têm opostos,
Estas, não, são de ser gostos.
Amor, paz e alegria
Serei eu no meu Ser-guia.
Nunca
As emoções negativas
Sempre terão recidivas.
Se não forem encaradas
De frente e desmascaradas
Naquilo que são deveras:
Não eu mas minhas esperas,
Como tudo o mais na vida,
E um desafio em seguida.
Se delas fugir, então,
Para trás me deixarão
Resíduos de dor perdidos
Que acordarão, descabidos,
Vida além, a cada esquina
Que para eles se inclina.
Resíduos
Resíduos de dor deixados
Para trás por forte mal,
Se enfrentados no total
Não foram, reajustados
E depois ultrapassados,
Formam um campo de minas
Em nós que já não dominas.
É mais que uma dor de infância,
É a que for se acrescentando
Na adolescência, na instância
Duma adultez se arrastando,
Quanta vez, por mão dum ego
Que, com falsa identidade,
Nunca me deixa em sossego...
E é a vida que me persuade.
Nascem
Todos os recém-nascidos
Nascem com corpo de dor.
Uns, alegres, bem-queridos,
Parecem nem tal supor.
Outros a infelicidade
Carregam dentro de si.
Parece que a humanidade
Lhes desembocou ali.
Uns, para lhes dar amor,
Atenção suficiente.
Noutros a grita supor
Não faz motivo aparente,
Parece que até desejam
Que infelizes como eles
Todos em redor lá sejam,
A rasgar em dor as peles.
E quantos a dor do meio,
De pai, mãe e da família
Incarnam no íntimo seio,
Plena empatia em vigília!
O corpo físico cresce
E, nesta mesma medida,
O corpo de dor acresce
Dor a crescer na corrida.
Íntimo
Criança com corpo intenso
De dor, nunca ultrapassado,
Adulto não me convenço
Que será mais realizado.
Só porque o corpo se apresta,
O imo contra se encabresta?
É de aguardar o contrário.
Se o corpo de dor mais pesa,
O íntimo é o turiferário
Que toma lugar à mesa,
Todo o espírito congraça,
Diante a pô-lo na praça.
Presos ao corpo de dor
Muitos ficam. Outros mais
Mais não sofrem o pendor
De infelicidades tais.
De despertar que motivo
Mais forte há do que então vivo?
Mártir
O corpo mártir de Cristo,
Distorcido em agonia,
Donde o sangue lhe escorria,
Sou eu que ali algo existo.
Algo em mim é consonante
Radicalmente com isto,
É o espelho posto adiante
Mostrando que imo revisto.
Eis o meu corpo de dor,
No interior mal entrevisto,
Às claras a se ali pôr
Onde a consciência conquisto.
Quando o vejo a ele em mim
É que findo motivado
À dor a que ando agarrado
A impor-lhe de vez o fim.
Fome
O corpo de dor desperta
Quando, à fome, quer comer
Ou quando um evento aperta
O ego onde ele se esconder.
Quando é de se alimentar,
Qualquer minúsculo evento
É estímulo que bastar:
Dito e feito, em pensamento...
De repente, estou pensando
E tudo é tão negativo
Que nem consciência tomando
Vou donde me vem o arquivo.
É uma onda de emoção,
Humor sombrio e pesado,
Ansiedade sem razão,
Ira em pendor inflamado...
Pensamento é energia
E o corpo de dor se aumenta
Em mim também desta via,
Desde que em negra tormenta.
Pensamento de alegria
Não serve nunca tal fito.
Ao do que é mau só confia
Do alimento o requisito.
Um pensamento feliz
Corpo de dor não digere,
Só do de negro matiz
Se engorda o que a dor confere.
Desencadeia
Um pensamento habitual
Desencadeia a emoção
E uma emoção, em geral,
Pensá-la requer então.
Do corpo de dor o afecto
Inverte o diálogo logo
Prende o pensamento ao tecto
Do vão onde lhe arde o fogo.
De vez perdido o controlo,
O conceito é negativo,
Tudo é dor que desenrolo
Vida fora sem motivo:
São histórias de tristeza,
Ansiedade, ira na vida,
Em outrem, no que outrem reza,
No que imagino em seguida...
Tudo é um tom acusador,
De censura, de lamento,
Da fantasia o teor
Logo é do tom mais cinzento.
Se nos identificamos
Com tudo o que esta voz diz
E em tudo isto acreditamos,
Como não ser infeliz?
Pensamentos distorcidos
De infelicidade à toa,
Se deles somos tolhidos,
Isto a desgraça instalou-a.
Laços
Muitos laços afectivos
Episódios destrutivos
Viverão por intervalos
Regulares, com abalos.
É doloroso à criança
Assistir à violência
Emocional entre os pais.
E são milhões o que alcança,
Mundo fora, esta pendência,
Em pesadelos reais.
É a forma de transmissão
Comum do corpo de dor,
Geração a geração,
Depois de cada estertor.
Após é a paz relativa
Dum e outro progenitor
Na fronteira coerciva
Do ego que ali é o senhor.
Até à nova explosão
Que tudo arrasar no chão.
Íntima
Na íntima relação,
Os corpos de dor, às vezes,
De espertos, são mui corteses,
Discretos, até que vão
Ter no contrato assumida
A relação para a vida.
Não nos casamos apenas
Com uma esposa, um marido,
Mas por igual com as penas
Do corpo de dor vivido,
Ele com o dela, assim,
E ela com o dele, ao fim.
Pode ser um grande choque,
Após a lua-de-mel,
Descobrir do mal o toque
Na muda que ambos impele
Noutra personalidade
A conviver que os invade.
Devém áspera uma voz
Que estridente nos acusa,
Culpa, grita ou fere, atroz,
Que dum qualquer nada abusa,
Ou que, ao invés, de repente,
Finda totalmente ausente.
Se olhamos olhos nos olhos,
Já não existe luz neles,
Um véu desceu por antolhos
E quem rumo a quem te impeles,
A quem de amor prestas culto
Inteiro agora anda oculto.
Quem nos retribui o olhar
É um total desconhecido,
Hostilidade a jogar,
Ira, amargura, o gemido,
Do corpo de dor a gala,
Não do meu cônjuge a fala.
É a realidade torcida
Do corpo de sofrimento,
De hostilidade imbuída,
De ira e medo, num intento
De a todos dor infligir
E mais dor dali fruir.
Rosto
Do cônjuge o rosto vero
É aquele que nunca vi,
De dor este corpo mero
Que só me magoa ali?
Não é o verdadeiro rosto,
É o do sofrimento imposto.
Tomou-lhe dele o controlo,
Pode ser só temporário.
Mas com sensatez arrolo
Que é melhor optar, sumário,
Por quem corpo de dor denso
Por demais não tenha extenso.
Gastar
Se eu fora doutro planeta
Ou do nosso em outra era,
Julgaria que era peta,
A inverter uma quimera,
Gastar no entretenimento
Só para ver sofrimento.
Como é que o filme violento
Atrai tanta, tanta audiência?
É que dele o alimento
É o da humana dependência
De querer sentir-se mal,
Ver-se um infeliz total.
Que é que dentro em nós adora
Sentir-se mal crer que é um bem?
Corpo de dor que em nós mora
É que tais caminhos tem:
Negra ideia, pessoal drama,
Cinema ofertam-lhe a cama.
Corpos de dor argumentam
E tais filmes realizam,
Pagam quando os apresentam,
Quando apreciá-los visam...
É tal circuito completo
Que fecham neste projecto.
Aumentar
Hoje em dia a violência
Tende a aumentar, palco egóico,
Corpo de dor de excelência
Travestido até de heróico,
Aos píncaros elevada
Logo antes da derrocada.
Se a história revela a origem,
Os efeitos dos dois lados,
As inconsciências que vigem
Por detrás dos golpes dados,
Geração a geração
Transmitindo a sem-razão,
Então pode despertar
A Humanidade alheada:
É espelho, perante o olhar,
Da insanidade mostrada.
Reconhecer a loucura
É o caminho para a cura.
Filme
Filme que não alimenta
Corpo de dor é anti-guerra,
Do real mostra a tormenta
Como o mal que nos aterra,
Não como um pendor normal,
Desejável, no final.
Filme que exalta a violência,
As emoções negativas
A gerar como tendência,
São vitaminas activas
A alimentar o ego doente
Da Humanidade presente.
E toda a imprensa tablóide
De vez sensacionalista
Não é humana, é humanóide,
Gerar doentes tendo em vista.
Más emoções são delícias,
Vendem mais do que as notícias.
Noticiários
Noticiários em geral
Tendem a desenvolver
Quaisquer notícias do mal
Muito mais que o bem que houver.
Quão mais finda o mal pior,
Mais mexe o apresentador.
O entusiasmo negativo
Espicaçado é ao vivo
Pela comunicação.
O corpo de dor então,
Dentro em nós, num povo, um quisto,
É quem mais adora isto.
Dimensão
A dimensão colectiva
Do corpo de dor cá dentro
Vários matizes activa
Conforme é arrabalde ou centro.
Tribos, nações, raças, todos
Sofrem dor de vários modos.
Alguns mais se identificam
Com a dor que sofrerão,
Outros, menos, pontificam
Que de geri-la terão.
Porém, qualquer elemento
Do povo é disto fermento.
Alguns ao corpo de dor
Mais aumentam o teor.
Outros recusam este ego,
O eu desligam do apego
E são quem protagoniza
Mundo no sonho que visa.
Antanho
O judeu tem bem marcado
De antanho o corpo ferido,
O ameríndio trucidado
Foi do colono aguerrido,
O afro-americano herdado
Tem do escravo o pé tolhido...
Vítima e perpetrador
Ambos são da violência
Sempre o herdeiro sofredor:
Um aqui, ante a iminência,
Outro mais tarde, ao furor
De efeitos da proveniência.
O que fizermos aos mais,
A nós faremos, tais quais.
Fundiu
Que importa ao corpo de dor
Saber se é meu, se é comum?
Deveio de mim senhor,
Aos dois nos fundiu só num,
Só posso transcender isto
Se em responsabilidade
Por meu íntimo eu invisto,
De meu eu com a verdade.
O meu estado interior
Por mim protagonizado,
Sem noutrem a culpa pôr
Nem me fundir com um dado.
Doutro modo continuo
A alimentar o meu ego,
Em dor confundido em duo,
Escravo do meu apego.
O perpetrador do mal
É uma inconsciência humana.
Se a desmascaro, o sinal
É perdão que não me engana.
Deixo logo de ser vítima,
Emerge o meu vero ser,
Autonomia legítima
Da presença, o meu poder.
Em vez de culpar as trevas
À superfície, produz
O meu eu, então em levas,
O que é deveras a luz.
Trintona
A trintona sofredora
Muda o sorriso polido
Num esgar de dor, na hora,
Em soluço convertido.
A ira e tristeza nela
Frustram-na numa procela.
Fora em criança abusada
Por um pai sexualmente
Violento em cada jornada,
Toda a vida impunemente.
O presente não magoa,
É um passado que atordoa.
Filtra a dor sofrida outrora
A conjuntura de vida,
Toda a vida, vida fora,
É parâmetro e medida.
Dor e mente que a joeira
Identificam-na inteira.
A trintona não percebe
Que o corpo de dor reforça
Quando a mente o assim concebe,
Lhe empresta a íntima força.
Carrega o fardo que a diz
Profundamente infeliz.
Em vez do filtro que ideio,
É sentir directa a dor,
Sem fugir e sem receio,
A magoar seja o que for.
“Doa o que doer, aceito
E nada dali rejeito.
A minha infelicidade
Por eu estar infeliz
É nova camada que há-de
Acrescer à de raiz.
Se eu aceito a de partida,
Solvem-se ambas em seguida.”
Se não te importas de estar
Infeliz, que é que acontece
À infelicidade a par?
Não és tu, dela em quermesse:
Da infelicidade à volta
Há um espaço, dela à solta.
A aceitação interior
Do que estamos a sentir
Cria um espaço em redor,
Livro o eu do que lá vir.
A emoção não mais controla
O que penso e o eu descola.
A partir daqui, presente
Ao momento que perpassa,
A trintona indiferente
Finda ante a própria desgraça.
Todo o seu corpo de dor
A desmoronar vai pôr.
É apenas um campo mais
A cultivar com seus planos
De desenraizar reais
Ervas ruins que só de enganos
Infernizam nossa vida,
Destruindo-a sem saída.
Rabugice
Rabugice, isolamento:
Corpo de dor da criança.
Mal-humorada um momento,
Recusa-se a interagir,
Senta-se ao canto que alcança
Com o brinquedo que vir
Ou fica a chuchar no dedo,
A bebé tornando a medo.
Ou é um ataque de choro
Ou fúria destruidora,
Ou de gritaria um coro...
Ao chão se atira onde mora:
Basta um desejo frustrado
E desaba-lhe o telhado.
De repente, o anjo de oiro
É um monstro de mau agoiro.
Sempre herda da humanidade
Corpo de dor colectivo
E do lar se persuade
A mimetizar o arquivo:
A criança ei-la reflexo
Do imo dos pais conexo.
É uma dor insuportável
O drama parental ver,
A loucura intolerável
À frente dela a ocorrer.
Identifica-se então
Com tal dor fatal à mão.
Não se deixam enganar
Por quem diz que não podemos
Ante elas nos guerrear.
Tudo aquilo que escondemos
Fica de rabo de fora:
Contido, mais apavora.
Corpo de dor reprimido
Intoxica ainda mais,
Pelos miúdos absorvido.
Corpos de dor dará tais
Que pesados vida fora
São nosso mundo de agora.
Berrarem
Muita criança ante os pais
A berrarem entre os dois:
- “São malucos estes tais.
Como vim, em que arrebóis,
Aqui parar, por que fado?
Não havia um outro lado?!”
E com tão simples postura
Têm o princípio da cura:
Conscientes da insanidade,
Já tanto ela as não persuade.
Lidar
Como lidar com a dor
Que inferniza os nossos filhos?
Primeiro é de ver melhor
À dor como prendo atilhos.
Estou presente a geri-la
Ou me identifico a ela?
Acolá prendo-a na fila,
Aqui sou da fila dela.
Acolá tenho-a na mão,
Aqui ela tem-me a mim.
Sou eu naquela versão,
Sou ego na outra, ao fim.
Ora, se eu não lidar bem
Com a dor que em mim houver,
Como é que ao filho que a tem
O irei poder socorrer?
Perguntar
Quando a criança amainou,
Perguntar: que aconteceu?
Que é que em ti se então passou?
Depois desapareceu?...
- Ajuda-a a se distinguir
Do ego de dor que sentir.
Para gerir dá-lhe a mão
Ao que ocorrer nela então.
Momento
Dado o momento presente
Ser tudo aquilo que existe
Se eu o acolho interiormente,
Nem passado nem porvir
Alteram o que lhe aliste.
Como infeliz me sentir?
Estou presente de todo,
Dele acolho inteiro o bodo.
A vida cósmica habito,
Nela uno e sem conflito.
Causa
Corpo de dor infeliz
Sempre é desproporcional
À causa que lhe é matriz.
Reacção exagerada
Eis a marca principal
De lhe ver a mascarada.
Quem se identifica a ela
Nunca dá pela esparrela.
É fácil dar com motivos
De sentir-se preocupado,
Zangado, magoado, triste,
Receoso... Seres vivos
São um mundo ameaçado,
Mal se crê como é que existe.
Qualquer nada irrelevante
Que quenquer ignoraria
Devém a causa gritante
De infeliz ser todo o dia.
Não é causa, foi gatilho:
Causa é de outrora o sarilho.
Emoções acumuladas
Se deslocam para a mente
Enormemente ampliadas
E, como não são domadas,
Explodirão de repente.
Se com tal se identifica,
Um eu como ego claudica.
Manda
Se for meu corpo de dor
E não eu quem manda em mim,
É meu ego a se propor
Por mim se trocar, por fim.
Um evento que estimula
Sofre uma interpretação
Que tudo nele regula
Do ego pela distorção.
Devém tão emocional
Que a mente afunda, em geral.
Olhamos para o presente
Com os olhos do passado
Que em nós habita latente
E nos houver destroçado.
O que vejo ou o que sinto
Nada é do evento, é distinto.
O que houver neles comum,
Será tão amplificado
Que o exagero é que algum
Alimento há-de ter dado
Ao corpo de dor: viceja
Nisto mesmo, é o que deseja.
Crê
Aquele que é dominado
Dum corpo de dor intenso
Crê que há bem interpretado
O torcido historial denso.
E, quanto mais negativas
As emoções numa história,
Impenetrável a esquivas
Mais se revela à memória.
Jamais é reconhecida
Como uma história, afinal,
Pelo ego antes assumida
Como sendo ela o real.
Quando inteiramente presos
Às ideias e emoções
Fundidas em elos coesos,
Libertar-nos, que ilusões!
Nem sequer adivinhamos
Que algo há para além daquilo.
E assim nos acorrentamos
Do pesadelo ao sigilo.
Presos ao privado inferno,
Para nós é a realidade.
Outra, nem sequer do eterno,
Há por onde alguém se evade.
Toda a nossa reacção
E por mais que seja horrível,
É a única a ter à mão:
Única a cremos possível.
Mundo
O mundo se certifica
De que não nos enganamos
Em como cada autentica
Como cuida que sejamos:
Mostra-nos o que é importante
Para nós, vida adiante.
É um facto que mal reajo
A indivíduos como a eventos,
Quando o desafio é o trajo
Revestir eu dos momentos.
É o melhor indicador
De eu ser mau entendedor:
Certo em contextos benéficos,
Sempre é errado nos maléficos.
Pendor
Quanto mais pendor egóico
Há de mim no que em mim leio
Mais nos mais lerei de heróico
Quanto egóico têm no seio:
As algemas da inconsciência
Conquistam toda a evidência.
As faltas (como as julgamos)
Tornam-se então para nós
A identidade que olhamos.
Do ego deles o retrós
Entretece toda a imagem
Do que são e como reagem.
Tanto quanto de ego os leio,
O ego os lê, sem mim no meio.
Viverá
Quem de si é inconsciente
Viverá seu próprio ego
Pelo reflexo presente
Noutrem, ao ego no apego.
Quando nos apercebemos
Daquilo a que mal reagimos,
É que dentro em nós o temos,
Se calhar só nós possuímos...
Começo a ter consciência
Então de meu próprio ego.
Faço aos outros, é evidência,
Em tudo o que lhes pespego,
Aquilo que julgaria
Que cada um me faria.
- Começo então a deixar
De por vítima me olhar.
Revela
Ninguém revela quem somos,
Nem eu revelo quem sou:
Só de conceitos dispomos,
Não são parte de meu voo.
Quem nós somos não requer
Crença alguma nele atada.
A crença que acaso houver
É um obstáculo, de entrada.
Não é crer nem conhecer,
Porque já somos quem somos.
Só que, sem eu entender,
Na ribalta não nos pomos.
Não se manifesta à luz
O que é nossa natureza.
Sou pobre que não traduz
Os milhões que a conta reza,
Potencial que nunca arranca
Sempre ignorado na banca.
Julgo
Aquele que julgo ser
Ao modo como tratado
Julgo ser doutro qualquer
Anda sempre interligado.
Queixam-se muitos dos mais
Que os não tratam bem deveras:
“Não me respeitam os tais,
Nem a atenção dão que esperas,
Não ligam ao meu valor,
Tomam-me sempre por certo...”
Se alguém simpático for,
Desconfiam dum aperto:
“Querem é manipular-me,
A aproveitar-se de mim,
Ninguém vai querer amar-me...”
- Nem verão que assim é o fim.
Comum
Muito comum é o presente
Tratado como inimigo.
Quando detestar o assente
Sabor que tenho comigo
Quando me queixo constante
De tudo o que me rodeia,
Ou digo mal adiante
Do que dali nos ameia
Ou de quanto já ocorreu,
Tudo em meu imo é: “devias
Fazer o que é dever teu”,
Ou “querias, não querias?...”
São culpas e acusações.
Discutimos com o que é,
Eis a questão das questões.
Vida é um inimigo ao pé
E a vida diz: “guerra queres?
É guerra que tens então...”
O exterior que referes
O imo reflecte em teu chão.
Se o real vês como hostil,
Farás que tal se perfile.
Relação
Qual a minha relação
Com o momento presente?
Só sou aí: como então
Posso dele andar ausente?
É mero meio que eu uso
Para tornar ao passado
Que de tanto mal acuso,
Sem ver que foi enterrado?
Ou a apontar ao futuro
Que só na cabeça auguro,
Sem nenhuma realidade
A que agarrar-me em verdade?
Ou será mesmo um obstáculo
Que me impede de atingir
Da vida o vero pináculo
Da luta até lá subir?
Será o presente o inimigo
Que me impede o que persigo,
Que me obriga a andar ausente
De mim permanentemente?
Enquanto eu não exorcizo
Estas e outras mil patranhas
Nunca mais ganharei siso,
A cair do ego nas manhas.
É que o presente sou eu,
A vida que por mim corre.
Quem o acolhe faz de seu
Um eu que nunca mais morre.
Vejo
Quando me vejo presente
Em pensamento e em acção,
O disfuncional então
Salta-me evidente à frente.
Aí começo a surgir,
Deste ego a capa a despir.
Constatando a disfunção,
Começa a se diluir:
A escolha em primeira mão
É minha. E por decidir.
Posso transmudar o agora
Num aliado sem demora.
Então é que serei eu
E o ego já se sumiu.
Refeições
Como podemos negar
Do tempo a realidade?
Refeições a preparar
Uma casa a erguer no ar,
Um livro que a noite invade...
Daqui para ali é de ir,
É tempo para crescer,
Novos rumos assumir,
Lançar de agora o porvir,
Novas lições aprender...
Tudo aquilo que operamos
Tempo consumir parece.
Tudo a ele sujeitamos
E, a seu tempo, mal contamos,
De nos matar não se esquece.
Como um rio enraivecido
Consigo é que nos arrasta.
Incêndio, lá consumido
Tudo será desabrido
Por chamas de toda a casta.
Mas o mais estranho disto
É que é sempre o conteúdo
Que no palco dele avisto.
Eu sou quem vê, não o visto,
O eterno agora ante tudo.
Encontrei
Encontrei uma família
Amiga de longa data.
A mãe quase era mobília
Da sociedade, a nata.
Mas que é do oiro e da prata
Das tardes do chá de tília?
Apoiada na bengala,
Parecia ter mirrado.
A filha, de festa gala,
Agora, após ter criado
Três filhos, rosto cansado,
Pregada parece em tala.
Correram mais de vinte anos,
Foi o que o tempo lhes fez.
E comigo os desenganos
Delas iguais são talvez...
- Por fora só danos vês,
Por dentro eu sou eu, sem danos.
Sujeito
Tudo sujeito parece
Dos tempos à correria,
Todavia o que acontece
Só no agora encontra via.
Dos tempos a realidade
Tem provas circunstanciais
Em cachão que tudo invade
De margens aluviais:
A maçã que apodreceu
É o meu rosto envelhecido
Comparado ao que foi meu
Meio século volvido...
Nunca encontramos, porém,
Do tempo a prova directa,
A do tempo em si ninguém
A vive em vida concreta.
A vivência é do presente,
Melhor, do que nele ocorre:
Sem isto ninguém o sente,
O tempo é um nada que morre.
- Só o agora aqui assente
Em mim vivo eternamente.
Apagar
Não posso cuidar meu ego
Ter de vir a eliminar,
Para então depois tratar
De o apagar em sossego.
Tudo aquilo que obteria
Mais era insatisfação,
Mais íntima gritaria,
Pois temos a sensação
De nunca mais lá chegarmos,
Ainda não atingimos
Esse estado que visarmos
Sem ego que nunca vimos.
Se do ego a libertação
É um objectivo futuro,
A nós damos tempo então
E é mais ego que inauguro.
Uma forma disfarçada
De ego pode-me ocorrer
Numa espiritualizada
Busca para o remover.
Quando der mais tempo a mim
Para de anulá-lo ter,
Ao ego é que o dou, por fim,
Vai-o mais fortalecer.
É que o passado e o futuro
É que são do falso eu,
Da mente fabrico impuro
Que lhe alimenta o escarcéu.
Tudo é da nossa cabeça
E nunca existe lá fora
Numa indispensável peça
Em obra que se labora.
Ao invés é um muro opaco
Para saber-me deveras:
Horizontal, tempo é o caco
De eu correr pelas esferas.
Na vertical, cá no fundo,
É que eu me encontro, afinal:
Só me acedo e tudo inundo
Do presente no portal.
Eliminar
Tempo eliminar não é
Fora do tempo viver,
Que relógio ter ao pé
Prático é permanecer:
Marcar até uma consulta
Quer do tempo a turbamulta.
Ninguém opera no mundo
Sem o tempo verdadeiro,
Todo um horário fecundo
Marcando o chão do carreiro.
Terei é de eliminar
O que o ego preocupar:
Todo o passado e futuro
De factos, crenças, valores
Onde nunca me inauguro,
Que a pegada são que fores.
Toda a relutância em ser,
Que é ser uno com a vida,
Em sintonia a viver
Do presente na corrida.
Este ser é inevitável
E só aqui sou eu viável.
Eu sou este agora ciente
De que o ser sou do presente.
Mudo
Quando o “não” habitual
Ao presente mudo em “sim”,
Permitindo que o actual
Seja como for, assim,
O tempo logo dissolvo
E meu ego ao nada volvo.
Meu ego, ao sobreviver,
Força passado e porvir
Mais importantes a ser
Que o presente, em seu devir.
Não tolero ser adiado
Do agora que o há sugado.
Só por um breve momento,
Até conseguir obter
O que desejar do evento.
Nada o vai satisfazer,
Contudo, nem um instante,
Nem muito tempo adiante.
Quando ele comanda a vida
De dois modos infelizes
Iremos ser, em seguida:
O primeiro é, nas matrizes,
Não conseguir a que queira;
Segundo é não tê-la inteira.
Sempre
Sempre o agora toma forma
Naquilo que é, que acontece.
Se no imo resisto, em norma,
Forma em que o mundo aparece
É barreira impenetrável
Separando, intolerável,
Eu de mim (enquanto sou
Para além da forma alguém),
Da vida, o informe voo
Único que sou além.
Quando meu sim interior
Deste agora à forma eu for,
Toda a forma se converte
Na larga porta de entrada
Que, informe, comigo acerte.
No termo desta jornada,
O fosso que entre os dois tece
Mundo e Deus, desaparece.
Negativo
Se negativo reajo
De agora à vida presente,
De meio lhe visto o trajo,
De pedra no trilho assente,
De inimigo a ter em conta,
Reforço a meu ego a ponta:
Toda a minha identidade
É a da forma que me invade.
Reactividade é um efeito,
Findo nela viciado.
Quão mais a reactivo atreito,
Mais findo à forma algemado.
Quão nela me identifico
Tão meu ego fortifico.
Na forma não transpareço,
Não brilho e de mim me esqueço.
Existe
Sem ir contra resistindo,
O que existe além da forma
Em mim vai logo emergindo,
A presença que a conforma,
Silente poder maior
Que o fogo-fátuo que for
Minha breve identidade
Perdida em factualidade,
Baseada em forma, a pessoa.
É quem eu sou de raiz,
Mais fundo que o traje à toa
Que em mundo de formas fiz.
Por dentro, por trás de todas
Sou o eu que lhes tece as modas.
Estou
Quando estou aqui presente
À correnteza do agora,
A presença, permanente,
Flui de dentro para fora
E transmuda o que fazemos
Além do que até visemos:
É qualidade e poder.
Presente estou no que faço,
Disto um meio ao não fazer
Rumo a um fim que além lhe traço,
Dinheiro, fama, vantagem,
Qualquer fútil outra imagem.
Se, ao invés, me satisfaz
Por si, fulgor, alegria
No que pratico me traz,
É o que lhe empresta a magia.
Como posso estar presente
Se alheado dele, ausente?
Só se o tomo como aliado
É que o cabouco de base
De acto eficaz hei montado
Que em corpo inteiro se case
Com a positividade
Que a escuridão nunca invade.
Forma
A forma é limitação.
Cá estamos para vivê-la
E para a superação,
Mal visemos outra estrela.
Quem por aquela se fica
Incônscio de si se aplica.
Algumas limitações
Podem ser ultrapassadas
Do exterior nos alçapões.
Outras, não, querem jornadas
Para no íntimo aprender
A com elas conviver.
Todas podem-nos manter
Presos à resposta egóica,
Infelizes a nos ter,
Mesmo na postura estóica.
Mas poder-me-ei elevar
Acima de tal limiar:
Entrego-me àquilo que é.
A limitação mo ensina:
Vertical porei de pé
Outra dimensão que empina
O que horizontal esbarra
Da parede com a barra.
Mergulho em profundidade,
Germino então para o mundo
Um ser doutra qualidade,
Dum valor que nem tem fundo.
Doutra forma ficaria
Sem manifestar-se ao dia.
Tornaram-se curadores
Muitos que a tal se renderam.
Espirituais mentores,
Altruístas devieram.
Diminuem dor humana,
Limpam quanto o mundo dana.
Culpa
Se alguém me culpa ou critica,
Meu eu no ego enfraquece,
Meu ego todo se pica
Dele a reparar a messe,
A noção enfraquecida
Da identidade atingida:
Auto-justificação,
Defensiva, acusação...
O facto de outro indivíduo
Ter ou não razão, que importa?
Não releva nem resíduo
Dum ego à trancada porta.
Preservação é que conta
E da verdade, nem ponta.
Apenas interessado
Em preservar-se há ficado
E preservo um eu mental.
Mesmo responder aos gritos,
Atitude tão normal,
Se um condutor, entre aflitos,
De idiota me chamou,
O ego é que reparou.
Um mecanismo comum
É a ira que temporário
Aumento do ego incomum
Logra no seu calendário.
Tudo ao ego faz sentido
E é disfuncional, medido.
No fim é violência física
Ou uma auto-ilusão
Que nos mata mais que a tísica,
De fantasia um cachão
De aventuras majestosas
Que nunca na vida gozas...
Meu ego é sempre a traição
Do vinho meu e meu pão.
Mesa
Na mesa da vida,
É na derradeira
Cadeira sentar,
Que pode, em seguida,
A outra cadeira
Alguém te chamar.
Teu ego de lado
Põe, que anda enganado:
Quem se exalta andou,
Por fim, humilhado;
É quem se humilhou
Que finda exaltado.
Olho
Olho para o céu à noite,
Brilha a Lua e as estrelas,
Via Láctea que as acoite
Aos biliões, loiras e belas.
Tudo são de facto objectos
No espaço a flutuar sem tectos.
Se não ficarmos calados
Contemplando o espaço imenso,
Não vemos mesmo, toldados
Acaso do que ali penso,
Acaso os astros só vejo
A que dar nomes almejo.
Todavia, em meu abraço,
Vejo objectos mais espaço.
Sempre este desaparece
Da astronomia na messe.
Emoção
Se uma emoção há de espanto
Olhando o espaço insondável,
Joguei ali para o canto
De explicar a interminável
Ânsia, consciente então
Dos astros. Que imensidão!
O espaço é mesmo infinito!
Interiormente em paz,
Reparo, aqui interdito,
Na vastidão que me traz
Inúmeros (mal se alistem...)
Astros que em tal seio existem.
O espanto de biliões
Não é de mundos lá fora
A existir sem ilusões.
Na profundeza antes mora
Que abarca, este odre sem peles,
Toda a infinidade deles.
Espaço
O espaço não percepciona
Ninguém, que o não pode ver,
Ouvir, tocar, saborear,
Cheirar, nem de fruta é tona,
Corrente fora a correr
Do rio da vida ao mar.
Então como irei saber
Que há um espaço? É singular!
Do espaço a natura é o nada,
Portanto ele não existe
Como existe tudo o mais.
Somente uma coisa dada,
Forma que nele persiste,
Existe e nos dá sinais.
Nomeá-lo espaço é por chiste,
Não é um objecto jamais.
Dentro
Algo dentro em nós afim
É do espaço e logro assim
Tomar de tal consciência.
Não é a duma percepção,
Que ele não tem forma em chão
Donde lhe colha a evidência.
Como apreender tal nada?
- Apreendo-o pela ausência
De caminheiros na estrada.
Minha consciência de mim,
Leito de rio em jornada,
Só no fundo a intuo assim:
Sou quem fica no vazio
Se de tudo me esvazio.
E no fim esta vivência
É a minha clarividência.
Consciência
Ter consciência do espaço
Que não é coisa nenhuma,
É o nada que cônscio abraço
Sem abraçar coisa alguma.
É consciência da consciência,
Do meu espaço interior,
Outro trilho de evidência
À percepção a se impor.
Em mim o Universo aqui
A ter consciência de si.
Nada
Se nada encontram os olhos
Para ver, tal nada é visto
Como espaço, espaço aos molhos,
E ao fim nada é o que sei disto.
Quando os ouvidos não ouvem,
Que nada haverá de ouvir,
Nada com que se comovem,
Dirão silêncio existir.
Quando os sentidos, montados
A percepcionar a forma,
Com a ausência confrontados
Dela são, nada os deforma,
Mas a consciência informe
Que subjaz à percepção,
Que ao cordão delas enorme,
Experiências de roldão,
A todas tornou possíveis,
Salta então demais à vista:
As formas, por mais incríveis,
Não a apagam mais da lista.
Contemplando a infinidade
Na madrugada silente,
Em sintonia me invade
O mistério do presente.
É a profundeza do espaço
Minha própria profundeza.
Informe silêncio é traço
De quem sou mais que o que reza
Tudo o que eu protagonize
Na vida que realize.
Doença
A doença da humanidade:
Tudo absorto no que ocorre,
Na hipnótica variedade
Do intérmino corre-corre,
Tudo preso ao conteúdo
Ignorando o continente,
O que fica além de tudo,
Toda a forma, toda a mente.
Tudo no tempo embrulhado,
Ignorando a eternidade,
Perenidade do fado,
Origem, fim, sua herdade.
Da eternidade é que os pomos
Pulsam em meu coração:
É o real vivo que somos,
Temo-la em nós sempre à mão.
Estupa
Numa estupa da montanha,
Na China, junto a Guilin,
Para quem o pico ganha
Há uma prenda, no confim:
Dois caracteres gravados
Que quererão dizer Buda.
São dois porque, com dois lados,
Dizem tudo a que ele acuda.
Um deles quer dizer homem,
Um outro quer dizer não.
Ora, quando ambos se somem,
É o budismo todo à mão.
Segredo fundo da vida,
Os dois vectores do real:
Ser e nada – forma haurida
E transcendê-la, ao final.
E é reconhecer que a forma
Não é quem sou: eis a norma.
Rei
Um rei do Médio Oriente,
Sempre, sempre dividido
Do desânimo à alegria,
Qualquer nada, de repente,
Perturbá-lo muito via,
Ou, num inverso sentido
Intenso lhe reagia.
Então a felicidade
Rápida se transformava
Em decepção, desespero.
Farto de tal realidade,
Farto de si, procurava
De saída um rumo vero.
Um sábio chamou do reino
Com fama de iluminado
(De sábio não tinha treino
Este rei desesperado).
“Como tu queria ser.
Podes dar-me algo que traga
Serenidade, equilíbrio
Aos anos que hei-de viver?
O que queiras dou-te em paga,
Sem usar qualquer ludíbrio.”
O sábio pondera então:
“Talvez te poossa ajudar.
Mas tão elevado é o custo
Que teu reino todo não
Bastava para o pagar.
Dou-to em prenda, mas é justo
Que exija que o tens de honrar.”
O rei deu-lhe garantia
E o sábio logo partia.
Dias mais tarde voltou
E logo ao rei ofertou
Com toda a simplicidade,
Uma caixa feita em jade.
O rei abriu-a, encontrou
Um singelo anel doirado
No veludo do interior.
Inscrito, ele soletrou,
Atento, o que lá gravado
Era o dito com valor:
“Também isto irá passar.”
Após largo meditar,
Ponderando, perguntou:
“Que é que isto aqui quer dizer?”
O sábio respondeu:”use
Sempre este anel que lhe dou.
Ocorra quanto ocorrer,
Com bem ou com mal se cruze,
Antes de tal o dizer,
Toque neste anel e leia
A inscrição: é o que o premeia.
É desta forma capaz
Que findará sempre em paz.”
Também isto irá passar:
Quando alguém meditar nisto,
Em paz, certo, irá findar...
- E em paz com todos existo.
Isto
“Também isto irá passar”
Pode, em conjuntura adversa,
Algum conforto alcançar.
Mas pode também, na inversa,
Reprimir de bem gozar:
Ao notar que é passageiro
Não se goza por inteiro.
A contenção é importante:
Todo o extremo mata o instante.
Não
Não resistir ao evento
É unir-me sem me fundir
Ao que traz este momento.
Não julgar é conseguir
Ao Todo me unir, tentando
Transparecê-lo em devir.
A impermanência logrando
Vislumbrar em tudo a ir
É o desapego a meu mando.
Liberdade é de mão dada
Com a vida iluminada.
Efemeridade
A transitoriedade
Não impede o gozo bom
Nem o mal que nos invade.
Tem um fito doutro tom:
Que se torne consciente
A efemeridade assente
Em tudo quanto decorre
Perante mim: tudo morre.
Nosso apego diminui,
Deixei, em certa medida,
De identificar-me àquilo.
Mais goza quem de tal frui:
Se é efémero, tudo em ida,
Se muda, é que então, tranquilo,
Desfrutarei do prazer
Enquanto o prazer durar,
Sem o medo de o perder,
Sem ânsia do que aguardar.
Quando nos desapegamos,
Ficamos logo em vantagem
Para ver o que ocorrer
Da vida nos vários ramos,
Sem findar, nesta abordagem,
Prisioneiros do que vier.
Somos aquele astronauta
Que o planeta Terra vê
Do espaço na infinda pauta
E o paradoxo lhe lê:
Preciosidade é brilhante,
Porém, que insignificante!
Ver que tudo irá passar
Traz consigo o desapego,
Faz a dimensão entrar
Do mundo interior que nego.
Ao não resistir, julgar,
Desapegado, em sossego,
Vou meu eu enfim ganhar.
Fatalmente
Quando não me identifico
Totalmente com as formas,
A consciência, quem sou,
Delas não tendo o salpico,
Delas se livra das normas,
Livre ando por onde vou.
Brotou lonjura interior
E com ela uma quietude,
Paz subtil, do imo um palor
Que mal semelha virtude.
Em redor de cada evento
Criou-se um espaço aberto.
O emocional momento
Não finda de mim tão perto.
Nem a dor sequer dói tanto
Como se nela me implanto.
E entre mim e o pensamento
Despontou uma lonjura.
Sopra-me dali um vento
Que noutro mundo se apura:
Das formas o turbilhão
É deste mundo, a paz, não.
Paz é do mundo onde ocorrem:
Vive do imo, as formas morrem.
É um outro lado de Deus:
Uma ponta em mim dos céus.
Imo
Se a amplidão do imo é perdida
Ao não ser reconhecida,
Torna-se o mundo absoluto,
Pesado e sério produto
Que deveras quem o intui
Logo vê que não possui.
Se o não vir dali ausente,
Ameaçadora vertente
Reveste, do gesto mero,
E é o sítio do desespero.
Coisas
A vida da maioria
Será um atravancamento
De coisas em cada dia:
As materiais de momento,
As que fazer, que pensar...
A nada mais há lugar.
As mentes andam pejadas,
Uma atrás doutra surgida,
De ideias emaranhadas.
De objectos mente sortida
Esboroa-se na estrada,
Vida desequilibrada.
A consciência dum objecto
Deve contrabalançada
Ser de saber do sujeito
Que por ele rasga estrada,
Consciência consciente
Dela própria e não ausente.
É a via da sanidade,
Para que ela volte ao mundo
A cumprir da humanidade
O destino mais fecundo.
Assim é que evoluir
A humanidade pode ir.
Incómodo
Se um evento me incomoda,
Do incómodo a causa não
É do evento ou situação,
É que a perspectiva toda
Perdi da minha função.
É que me deixei prender
À consciência dum objecto,
Sem ciente permanecer
Do íntimo que não tem tecto,
Minha fundura interior,
Tempo sem lugar de o pôr.
- Ver eu que tudo transita
Este pendor me concita.
Sentir-me
Quando estou mui fatigado,
Poderei sentir-me em paz
E muito mais relaxado
Que o que o hábito me traz.
O pensamento amainou,
Já nem lembro o problemático
Que a mente me fabricou,
Dominou meu labor prático.
Nada quero em meu abono,
Vou a caminho do sono.
Quando tomo uma bebida
Espirituosa, uma droga,
Também relaxo, em seguida,
Calmo, se me não afoga.
Menos sobrecarregados
Pela mente, vislumbramos
Festa de ser sem cuidados,
Até cantamos, dançamos...
Mas o preço é, de evidência,
Resignar-me à inconsciência.
Consciência da fundura
De meu imo nada a ver
De embriaguez com loucura
Há-de ter nunca em quenquer.
Ambas para além da mente
Saltam, tendo isto em comum.
Uma trepa acima, em frente;
Desce outra, sem imo algum.
Uma leva ao passo adiante
Numa consciência humana;
Outra regride a montante,
Vegeta atrás e nos dana.
Uma cai do humano grito,
Outra trepa ao Infinito.
Atenção
Atenção de curta dura
Torna a nossa percepção,
Como toda a relação,
Superficial, impura.
É tudo insatisfatório:
Tudo aquilo que façamos
Onde não nos empenhamos
É sem qualidade, inglório.
Qualidade, em todo o lado,
Quer atenção no cuidado.
Correr
O distanciamento
Ao meu pensamento
Tanta vez o sinto!
Contudo o desminto...
Mente entorpecida
Do correr da vida
E condicionada
A identificada
Ser com os objectos
Não vê neles tectos.
Julga inicialmente
Tornar-se consciente
Impossível fito:
Como tal quesito?
Isto significa
Que não conseguimos
Ser de nós conscientes:
Mente só se aplica
Àquilo que vimos,
Não a nós, videntes.
Somos distraídos,
Por formas movidos.
E, quando pareço
Consciente de mim,
Como objecto meço
O que sou assim.
Temos consciência
É dum pensamento:
Em todo o momento
Primo pela ausência.
Perdas
Se não perdes a vigília
Toda em insatisfação,
Desespero, depressão,
Ânsias e preocupação
Ou noutra qualquer quezília
Que em estado negativo
Sugar quanto em ti for vivo;
Se logras apreciar
As nuvens cruzando o céu
Ou contigo a sós ficar
Sem estímulo buscar
Que não seja o mundo teu;
Se um desconhecido tratas
Com gentileza sentida
Sem lhe cobiçar as pratas
Nem qualquer paga devida;
- Em ti abriste a amplidão,
Nem que seja só um postigo.
Da mente a corrente então
Deixou de ser teu abrigo.
Sentes logo o bem-estar,
A paz vívida, subtil,
Dum nada a te contentar
À festa que se perfile
Na alegria de viver
Que ao Todo partilha o ser.
Nadas
Porque é que a felicidade
Vem de nadas mal visíveis?
É que a causa de verdade
Não vem de dados sensíveis,
Sempre de fora de nós,
- Cá dentro é que ata os cipós.
O dado externo é o gatilho,
O disparo é cá de dentro
Que solta da festa o brilho:
Só o entendo se em mim entro.
Se pequena a coisa for,
Mais tamanho ao interior.
É da fundura interior,
Consciência não algemada,
Vivência do imo ao palor
Que a alegria faz entrada,
Dali é que pura emana
E sobre o mundo dimana.
Consciente da pequenez,
E, silêncio dentro em mim,
Alerta a todo o entremez,
Olho, oiço e findo, assim,
Inteiramente presente,
- Inauguro a festa à frente.
Sou
Eu sou. Aqui disponível
A ser o que quer que seja.
Eu sou. Aqui, noutro nível
Que o de tudo em que me veja.
Eu sou. Quietude do aqui
Neste agora que vivi.
Eu sou. Descoberto, exposto,
Despido, nem tenho rosto.
Eu sou: ventre de criação,
Toda a forma tenho à mão,
Não me transfundo em nenhuma,
Como nenhuma me esgota.
Eu sou. Eu, somente, em suma,
Sempre caminho e sem cota.
Mestre
O mestre zen caminhava
Pelo trilho da montanha
Com o aluno que não dava
Com o mistério que entrava
Zen adentro a quem o apanha.
Chegam junto a um cedro antigo,
Sentam-se-lhe sob a copa,
Tomam refeição no abrigo
De arroz, legumes e trigo
Que o espírito não dopa.
O jovem monge que ainda
Não encontra a chave ao zen
Pergunta, a refeição finda:
“Mestre, como entro na linda
Vivência que o zen ordene?”
Silêncio o mestre mantém.
Correram vários minutos,
O aluno mal se contém,
Ansioso aguarda, porém,
A resposta com os frutos.
O mestre então vida ganha:
“Consegues ouvir o som
Do caudal desta montanha?”
Eis que o discípulo apanha
Como chapada a questão:
Não tinha tido consciência,
Na montanha, dum caudal.
Pensara demais na ausência
Sua do zen ante a essência
Para poder dar por tal.
Quando tenta o som ouvir
A mente ruidosa acalma.
Não ouve nada, a seguir,
Mas, no alerta a lhe subir,
Um murmúrio vago empalma
Dum curso de água distante:
“Agora consigo ouvi-la.”
Ergue o mestre o dedo diante
Com dócil olhar chispante:
“Entra aqui no zen, tranquilo.”
O discípulo é aturdido,
Fulgor de iluminação:
O que era o zen há sabido
Desde sempre, sem sentido
Saber que o sabia então.
Continuam o caminho
Num silêncio muito cheio:
Torna-se o monge adivinho
Da variedade do ninho
Do mundo que trilha a meio,
É como a primeira vez
Que tudo à frente lhe corre.
Mas a mente, de través,
Rasteira-lhe, lenta, os pés,
Joga-o abaixo da torre.
E de novo ele pergunta:
“Tenho aqui vindo a pensar.
Que é que ao que me disse junta
Se eu, com audição defunta,
Nada ouvira murmurar?”
O mestre parou e olhou
Para ele e, em sigilo,
O sábio dedo voltou,
Como quem nunca parou:
“Entra aqui no zen, tranquilo.”
Distinto
Um ego perguntaria:
Como pode a conjuntura
Bastar-me em quanto eu queria
Ou em que é que a mudaria
Noutra que aquilo me apura?
Meu eu, distinto do dado,
Presente a ele desde o imo,
Pergunta, pelo seu lado:
À conjuntura votado,
Presenteio-a com que mimo?
Nem sequer faço a pergunta.
Alerta, em silêncio, aberto
Ao que for, comigo junta
Trago a fundura que me unta
Meus rodízios a dar certo.
Olho, ouço e uno findo
À conjuntura em questão.
Em vez dum não, reagindo,
Com ela me irei unindo:
Daqui brota a solução.
Nem sou eu que estou olhando,
Em mim é uma quietude,
Meu alerta vigiando.
E de mim vem germinando
A resposta de virtude.
Este meu agir correcto
Entra em sintonia ao Todo.
Em quietude, discreto,
Permaneço, sob o tecto
Do alerta, perene modo.
Ninguém grita, triunfante
No gesto de “eu fiz aquilo!”,
Nem ulula, rua adiante,
Braço ao alto, provocante:
“Que todos saibam, eu fi-lo!”
Vem
Toda a criatividade
Vem da fundura interior.
Quando numa realidade
Ocorre vir-se a transpor,
Terei de atento me pôr,
Não venha a minha egoidade
Surgir a trocar-me as voltas.
Se reivindicar os loiros
Das obras vida além soltas,
Retoma o ego os tesoiros,
De meu imo a luz dos oiros
Das trevas se apaga envoltas.
Parte
A maior parte da gente
Só perifericamente
Repara no que a rodeia,
Mais se o seu meio envolvente
Familiar for que lhe ameia.
A voz dentro da cabeça
Nem repara em que tropeça,
Absorve a maior porção
Da atenção que vida peça
Em cada gesto ou acção.
Alguns sentem-se mais vivos
Quando viajam, festivos,
Por sítios desconhecidos,
Países fora de arquivos
De passos seus e sentidos.
Então a sua experiência
Mais ocupa a consciência
Do que ocupa o pensamento.
Tornam-se, nesta vivência,
Mais presentes ao momento.
Outros inda permanecem
Dominados, não se esquecem
Da voz dentro da cabeça.
Distorcidos acontecem
Por juízos, de peça em peça.
Não chegam a ir deveras
A lado algum das esperas.
Anda o corpo a viajar
E eles sempre, pelas eras,
Dentro da mente a cuidar.
Realidade
É a realidade geral,
Mal algo é percepcionado,
Ser logo ali rotulado,
Comparado, interpretado
Pelo que pareça igual,
Obra do ego, eu ilusório
Que ali gosta, além desgosta,
É mau, é bom, logo aposta...
- Tudo encostado à congosta
Do objecto em largo empório.
Em tudo o sujeito é ignoto,
Não tem braços, mal é um coto.
Desperto
Só desperto interiormente
Se deixo de rotular,
Compulsivo, inconsciente,
Se consciente reparar
Nisto quando isto acontece:
O de fora nem me aquece.
Sempre o ego continua
A ocupar o seu lugar
Rotulando toda a rua,
De consciência a dormitar.
Se isto deixar de existir
O imo à tona finda a vir.
Presente o imo antes ausente,
Já me não domina a mente.
E desponta logo a aurora
Da alegria vida fora.
Escolhe
Escolhe um objecto aí
Sem ter nada que te prenda,
Nem que memórias te renda,
Nada, somente ele em si.
Descontraído e alerta,
Concentra a tua atenção
Em cada pormenor vão,
Nada mais por ti acerta.
Se vier um pensamento,
Não te deixes envolver
Por nenhum, dê no que der.
Só a percepção de momento.
Que a voz dentro da cabeça
Não tire mais conclusões,
Não faça comparações,
Que de compreender se esqueça.
Alguns minutos depois,
Deixa o olhar vaguear
Por quanto houver no lugar,
Alumbrado com teus sóis.
Depois ouve os sons presentes,
Água, aragem, passarinhos
Ou do homem tons adivinhos...
Nada interpretes, só sentes.
Atenção descontraída
Mas alerta logo junca
A vida aqui, como nunca,
Da riqueza que se olvida.
Então sentimos a calma,
Subtil, quase imperceptível.
Silêncio de fundo, audível,
É paz: todo o sabor de alma.
Obstáculo
O obstáculo maior
De descobrir a lonjura,
Amplidão do interior
Dum eu na raiz mais pura,
Do sujeito de experiência,
É ficarmos absorvidos
Tanto desta na vivência
Que findamos lá perdidos.
A mim perdido me ponho
Dentro do meu próprio sonho.
Somos tão arrebatados
Por pensamento, emoção,
Por cada experiência alados
Que o onírico é o meu chão.
A humanidade perdida
Há milénios anda em vida.
Quem vai descobrir-se em si
No meio do frenesi?
Respirar
Quanto mais superficial
Respirar, mais anormal.
E, quanto mais consciente,
Mais fundura natural
É natural que lhe assente:
É porque em mim descobri
O que sou e lhe assenti.
Não ando a me destruir
A asfixiar-me, a seguir,
O que, aliás, ocorreria
Se ao acaso for na via.
Vulgo
Vive o vulgo distraído
No corropio pensante,
Identificado ao fio
Da voz dentro murmurante,
E a própria vitalidade
Não sente em si que o invade.
Não ser capaz de sentir
A vida que nos anima,
Que somos no tempo ao ir,
É de privação um clima
Maior do que outro qualquer,
O pior que acontecer.
Procuramos substitutos
Ao bem-estar interior,
A encobrir ao mal os frutos
De não sentirmos vigor,
Vitalidade presente
Mas sem darmos conta à mente.
Uns vão a correr às drogas,
Ou à música em ribombos,
A perigos onde afogas,
Ou do sexo andar aos tombos...
Drama até de coração
Substitui má sensação.
O disfarce mais comum
Deste mal-estar de fundo
É sonhar íntimo algum
Relacionamento fecundo:
Aquele par de raiz
Que me irá fazer feliz.
É uma causa mui frequente
De funda desilusão.
E as pessoas, geralmente,
Quando à tona os males dão,
Jogam culpa por inteiro
A quem for o companheiro.
Consciência
Toma consciência de ti
Em tua vitalidade,
No corpo onde ela te invade,
Membro a membro sente-a aí:
És tu a vivenciá-la
No agora em que te regala.
Não és a vitalidade,
Ela é uma forma de ti,
É tua propriedade
A ti tão colada ali
Que quase, por um nadinha,
Teu eu nela se adivinha.
Vivência
A vivência de meu corpo
Não é sólida, de espaço.
O físico desencorpo,
Da vida nele olho o traço,
Razão que o cria e sustém,
Fusão que une ao mais-além.
Quando tomo consciência
Da vivência em mim da vida,
De si própria a inteligência
Capta o trilho na avenida.
Da vida inapreensível
É a consciência possível.
Solidez
A solidez da matéria
É um engano dos sentidos.
O corpo físico gere-a
Com vácuos descomedidos.
Entre os átomos, vazios,
Vazios por dentro deles,
Imensos, olhando os fios
De matéria por que apeles.
Esta quase não é nada,
O espaço vazio, tudo.
E o Cosmos é imagem grada
Do que em nós é por miúdo.
Da Terra à Lua, um segundo
Demora a luz a chegar.
Oito minutos do mundo
Requeiro o Sol ao captar.
E são quatro anos e meio
À Próxima de Centauro.
Se para Andrómeda ameio,
Vou ser mais que um dinossauro:
Dois vírgula quatro milhões
De anos demora a chegar
A luz aos nossos balcões,
Tal Galáxia após largar.
E só são os siderais
Corpos chegados a nós.
Já nem falo dos demais
Que infindos seguem após.
Tudo é feito de vazio
Com, ligeira, uma excepção.
Vejo tudo ao arrepio:
Como me engana a visão!
Físico
O corpo físico é forma,
Mas informal, visto ao perto.
Porta de entrada que informa
Que o imo anda ali decerto,
Seio que dá vida a tudo,
Fonte não manifestada
Que manifesta a que acudo:
A tudo, ao correr da estrada.
É vida que tudo informa,
De tudo o que vejo é norma.
Há quem lhe chame de Deus
E em mim são os dedos seus.
Reino
Pensamentos e palavras,
Tudo do reino da forma,
O informe como exprimir?
Quando, dentro em minhas lavras,
Um pensamento me informa:
“Meu imo logro sentir!”,
É sempre a falsa excrescência
Dum pensamento em vivência.
O que deveras decorre
É que a consciência de eu ser
É a consciência a se entrever
A si no que nela ocorre.
Se deixo de confundir
Quem sou com a temporária
Forma de mim, de exprimir,
- Do infindo a raiz primária,
Do eterno, do Deus-em-mim
Pressentido em meu confim,
Através de mim caminha
E é meu guia em toda a linha.
E, mais fundo, me liberta
Da dependência da forma.
Não é crer que a forma certa
Não era a que ali me informa,
Que isto torna a ser conceito,
Não é do eu seu próprio peito.
É só viver-me presente,
Eu sou o perene voo
Que nas asas se pressente:
Em tudo vivo que eu sou!
Deveras
Sou deveras consciente
Do que esteja a acontecer
No momento aqui presente,
Do agora em si nele a ser
Como a fundura interior
De mim vivo, intemporal,
Este seio acolhedor
De tudo ir sendo, afinal?
Se consciência sou do abraço
Do agora que aqui sou vivo,
Dentro, de súbito, esquivo,
Mais vital sinto meu traço.
Temos no corpo de entrar
Para transcender-lhe o enguiço,
Descobrir que não sou isso,
Mas sou disso o respirar.
Nisso encontro o trampolim
Do salto além rumo ao fim.
Corropio
No corropio em rosário
Dos eventos em cadeia,
Tudo muda, num fadário
De detritos numa cheia.
Quando algo percepciono
(Mais se não for familiar),
Antes de tornar-me dono
Há o momento de alertar.
Momento da percepção
Ou da vivência momento,
Ambos as mãos lá se dão:
Dado e meu distanciamento.
Do pensamento a corrente,
Suspensa ali num instante,
Permite entrever presente
O eu captando algo adiante.
Permite gozar a vida,
Sentir a ponte interior
Com o humano mal mantida
E a natureza em redor.
Findamos livres do ego:
O ego é falta de consciência
Do interior, ao dado apego
Sem do imo ver a evidência.
Mente
Quando percepcionas coisas
Sem a mente interferir,
No mundo em redor tu poisas
Fresco, novo e vivo a rir.
Quão mais capturas a vida
Pelo filtro dos conceitos,
Mais morta, insípida lida
Do mundo ela com os jeitos.
É no instante inaugural
Que sou eu, bem visceral.
Enquanto
Enquanto aguardas que ocorra
O importante em tua vida,
Talvez o importante morra
Na valeta da avenida:
Não te apercebeste aí
Que ocorreu dentro de ti.
Ocorreu na distinção
Entre ti e o pensamento,
A mente e tu em acção,
A consciência e o momento...
Tu és o lado de dentro
De quanto ocorre em teu centro.
Quando assim tu te autenticas
Num mundo outro pontificas.
Punho
Há quem no íntimo desperte
E o punho espantado aperte,
Incerto do mundo externo:
Como tombar neste inferno?
São os do Monte Tabor,
Da colina da Ascensão:
“Como é bom aqui, Senhor!
Monto a tenda neste chão...”
Sentem-se mesmo alheados
No meio de humanos prados,
Numa terra de ninguém
Entre os dois mundos que têm.
Não são dominados do ego
Mas o eu não se integrou
Nas vidas inda, em sossego,
E os dois mundos não juntou.
Ora, só há plenitude
Se o meu imo o exterior mude,
Íntimo e externo ao irem
Os dois num só se fundirem.
Momento
O teu propósito aqui
É estar no momento agora
Até mudares daí
Noutro momento, na hora.
E assim sucessivamente,
Sempre, indefinidamente.
A vida é feita em cadeia
Deste agora que semeia.
Nem há na vida outra estrada
Senão no agora a rasgada.
Fitos
Os outros ajudar,
Tomar conta dos filhos,
Lutar por excelência
São fitos a tentar
No mundo dos cadilhos
Externos, de evidência.
Porém, é relativo,
Impermanente, instável.
Ao íntimo, motivo
É de os ligar, fiável.
Só então será profundo
O seu fluir no mundo.
Vivo
Se não vivo em sintonia
Com meu fito mais profundo,
Qualquer outro que eu geria,
Céu embora criaria,
Pertence ao ego infecundo
E pelo tempo bandido
Acabará destruído.
Mais tarde ou mais cedo, o invento
Vai findar em sofrimento.
Implica
Meu propósito primário
Implica que eu bem separe
Pensamento e consciência:
Aqui só, livre, o sumário
Do que sou, no que me ampare
Me atrai de íntima fulgência.
Aí o tempo é negado,
No eterno agora enraizado:
Apenas o agora existe,
Só em memória o mais persiste.
O passado e o futuro,
Tempo dos práticos fins,
Da viagem que inauguro,
Do que recordo e afins,
São no agora decididas
Mil chegadas e partidas.
O presente aqui fluindo
Destrói o hábito enraizado
De na mente buscar-me, indo
O pleno ao porvir sonhado
Procurar, sempre ignorando
Que ando só o presente andando.
Nunca além a plenitude
Encontro, disto em virtude:
Vivo apenas o presente,
No mais vou de mim ausente.
Consideras
Se consideras aquilo
Que estás fazendo ou o ponto
Onde andas o principal
Fito da vida, o sigilo,
Negas o tempo que conto,
Tens maior poder final.
Nega o tempo no que fazes:
Isto traz-te a ligação
Do íntimo ao exterior,
Entre teu ser e o que aprazes.
Do tempo esta negação
Nega o ego que em ti for.
O que quer que tu fizeres
Fá-lo-ás bem e por demais,
Pois teu agir se converte
No atento centro que queres.
Teu agir são mil caudais
Do imo que ao mundo se verte.
Há deveras qualidade
Naquilo que empreenderes,
Na mais humilde atitude:
Folhear um livro que agrade,
Cruzar o átrio dos deveres...
- Vives tudo em plenitude.
Teu propósito axial
É viver agora aqui,
Incarnando ali teu sonho.
O derivado, afinal,
Em tudo quanto vivi,
É se inteiro aí me ponho.
Perdido
Perdido em coisas pequenas
Hei medo de esperdiçar
A vida em inúteis cenas
Sem às grandes dar lugar?
As maiores sempre surgem
Quando as mais pequenas são
Valorizadas quando urgem,
Cuidadas no húmus do chão.
A vida de toda a gente
Em nadas é sempre assente.
A grandeza é uma abstracção
Mental: é sempre ilusão.
Fantasia favorita
Do ego quando ele em mim dita.
O sustento da grandeza
Valorizar é o pequeno
Que o presente pouco preza,
Não perseguir dela o aceno.
É que o presente momento,
Que é quase insignificante,
Esconde nele o fermento
Do maior que surge adiante.
Um átomo é quase nada
Mas tem um poder enorme.
Só lhe acedo pela estrada
Que ao presente se conforme.
O poder, pelo presente,
Do fundo é que acede a mim
E, através de mim, corrente,
Banha o mundo até ao fim.
Sementinha
A sementinha pequena
Nada deseja, germina.
Sempre é toda inteira, plena
Em cada instante da sina.
Do Cosmos a vida toda
Quer que árvore venha a ser?
Ela em si nem se incomoda
E se limita a crescer.
Em uníssono com vida,
Não se preocupa, ansiosa.
Se prematura a convida
A morte, morre gozosa.
Entrega-se calma à morte
Tal como se entrega à vida.
Arreigada ao ser, a sorte
É eterna esta informal ida.
Natureza
A natureza é um poder
Com que perdemos contacto:
Cosmos criativo a ser
E nós nem vemos tal facto.
Quando nós em sintonia
Vivemos com tal saber,
Bem mais alto se veria
O ímpeto admirável ser.
A natureza traduz,
Embora em manchas, a Luz.
Encontras
Se te encontras com alguém,
Não seja pela função,
Pelo papel que ambos têm,
Dá-te inteiro na atenção.
Sê tua presença alerta
No aqui-agora desperta.
A razão primordial
Com outrem de interagir
Secundariza: é a final
- Comprar, vender, competir...
O encontro mútuo entre os dois
É o que mais conta em quem sois.
Isto é que é o mais importante,
Mais que o tema da conversa,
Mais que objectos, bens e adiante...
O ser íntimo que versa
Passa à frente então, jucundo,
De tudo o que houver no mundo.
Não é negligenciar
Aquelas necessidades.
Ao invés, que deslizar
Vão com tais facilidades
Que, ao envolver todo o ser,
Tudo tem bem mais poder.
Este campo de vivência
Unificador de humanos
É o factor de previdência
Mais importante e sem danos
Das relações em renovo
De implantar um mundo novo.
Sucesso
Sucesso não é atingir
Aquilo a que me propus,
Nem ganhar nem conseguir
De prosperidade luz.
Tudo é do sucesso efeito,
Não é o sucesso do pleito.
A noção convencional
Aponta só o resultado
Do que for feito, afinal.
E que será o combinado
Do que labor árduo der
E da sorte que vier,
Determinação, talento,
Sítio certo em hora certa...
De peso embora elemento,
Não deixará porta aberta
A entender a essência disto,
Só doutro pendor bem visto.
Tornar-te bem sucedido
Nunca poderá ocorrer,
Tornar-te não é o sentido,
Só podes sê-lo ou não ser:
É que é o momento presente
Ser ou não bem ocorrente.
Em tudo quanto fizermos
Há um pendor de qualidade,
No mais simples que empreendermos.
Implica atenção, verdade,
Requer que a consciência atente,
Requer presença presente.
Lutas
Se tu lutas numa empresa
Com muito stresse e tensão
Até que um produto preza
Vir ganhar-te um dinheirão,
Sucesso é convencional,
Porventura nada real.
Se os anos que ali sofreste
De atitudes negativas
A ti como ao mundo encheste,
Encheste de chagas vivas
De tal modo todo o ambiente
Que nem vê-lo to consente.
Se te prendeste ao futuro,
Se fins justificam meios,
Que um só são nem vês no apuro
Que envenena teus recreios,
Nem verás que teus produtos
São envenenados frutos.
Não trarão felicidade
À humanidade que exploras.
O efeito é da actividade
Que ali levou, negras horas.
Contaminado, o que trais
É infelicidade mais.
Perpetuas, inconsciente,
A infelicidade à frente.
Fito
O nosso fito exterior
Espalha-se pelo espaço,
Pendurado tempo fora.
O nosso fito interior,
Primário no meu abraço,
Nega o tempo, é sempre agora.
Como concilio os dois?
Vendo que o rumo de vida
Pende deste passo aqui,
No agora assenta o depois.
Só existe ele em toda a lida,
Toda a atenção, pois, aí!
Para onde irei seguir
Sei-o bem, mas é primário
Neste agora me enraizar.
Aonde me dirigir
Derivado é secundário
No agora deste lugar.
E o que encontrar no destino
Depende da qualidade
Do passo único de agora.
O que o porvir tem no tino
Vem de quanto eu de verdade
Sou no agora quem cá mora.
Causa
Isto por causa daquilo
É como a mente fragmenta
A realidade. E é o estilo
Que o uno nunca alimenta.
Mas da Natureza o modo
É ser uno com o Todo.
Nosso destino é trazer
Mas consciente, a unicidade
Fundida à totalidade:
Em sintonia viver
Com a Mente universal
Que do imo me faz sinal.
Usa
Do Universo o interior Uno
Usa meu imo a criar
Eventos em que coaduno
Meu eu dele ao patamar.
O entusiasmo a inspiração
Espicaça criativa
Muito para além então
Do que alguém por aqui viva.
Alguns
Para alguns, o movimento
De expansão e crescimento
Para o exterior sensível
É de vez interrompido
Por um retorno impelido
A morrer da forma ao nível.
Umas vezes temporário,
Outras permanente e vário:
Uma criança não deve
Enfrentar decerto a morte.
Mas dos seus ou dela a sorte
Nem sempre em tal se deteve.
Na criança deficiente
Restringe-se gravemente
A expansão nela da vida.
E há muito jovem também
Em que a vida se detém
Por algum mal compelida.
Assim a meta exterior
Vem-se afinal contrapor
A tomá-la por suprema.
Toda a vida interior
Aponta no imo o motor
Com que o barco mais atrema.
Disfunção
Sem a disfunção egóica,
Nossa inteligência fica
Numa sintonia estóica
Com a universal que implica
O impulso para criar
Tudo por todo o lugar.
Iremos participar
E agora conscientemente,
Nas formas que haja a criar.
Não crio, é a grande Mente
Que criar irá por fim
Formas através de mim.
Não me identifico então
Com o que criar acaso
Nem me perco na tensão
Do que ali fizer a prazo.
Pode haver muita energia,
Mas não tensão, só magia.
Da tensão à intensidade
É a lonjura do ego ao eu.
A tensão é de egoidade
Marca de que renasceu.
Negativo olho os pináculos?
- Ando-me a criar obstáculos.
Criará
Do ego a carência
Criará inimigos
De inversa tendência,
Contrários pascigos.
Quão maior o pego
Mais desassossego,
Mais separação
Entre a gente então.
Agir que não causa
Uma oposição
Do bem comum causa
Serve em servidão.
É sempre inclusivo,
Jamais exclusivo.
Junta apara a apara
E nunca separa.
Não beneficia
Nunca o seu país,
Que à Humanidade ia
Regar a raiz.
Minha religião?!
São todas então!
Nem à espécie minha
Algo só destina,
Todo o Cosmos vinha
Nos alvos da sina:
Toda a Natureza
Em tudo é o que preza.
Agir
Todo o agir é derivado
Quando for bem ordenado.
Primeiro, na criação,
É saber de mim então.
Aparte do acto e do esforço,
Do mundo o que cria o escorço
É a consciência de mim,
Do que sou e com que fim.
Se não há muda interior
E no ego embarcado for
Com obra identificado,
Por melhor que haja operado,
Não faz qualquer diferença,
Já lavrei minha sentença:
Serão versões diferentes
Dum mundo igual de indigentes,
Tudo expressão exterior
Do ego que eu apenas for.
Sono
O ego humano representa
Nosso sono universal,
Onde a consciência se ausenta,
Se identifica ao formal
(Tudo o que ela construiu)
Onde nunca se esgotou,
Com que não se confundiu
E que nunca é o Eu que sou.
É estranho outrem ver-me assim,
Mais estranho, eu ver-me a mim.
Cria
A consciência cria a forma,
Porém, sem se perder nela.
Ideias, agir, a norma...
- Do Infindo tudo é janela.
Mantém auto-consciência
Da forma ante a experiência.
Então porquê continuar?
Pela alegria que der:
Para quem desperto andar,
A consciência que tiver
Cruza nele, sem conflito
Todo o gozo do Infinito.
Actividade
A actividade desperta
O fito exterior alinha
Com o interior, alerta
A onde prende a gavinha,
Para aquilo que operemos
Transluzir do imo o que lemos.
Através do agir desperto,
Convertemo-nos num só
Com o externo fito aberto
Do Cosmo, atado cipó:
Através de nós consciência
Flui para o mundo sapiência.
Flui no nosso pensamento,
Inspira-o. Flui no que faço,
Guia o acto do momento,
Poder onde me ultrapasso...
Nem sequer é o que eu fizer,
É um modo a vir doutro Ser.
Primo
Se o primo fito de agir
É a corrente de consciência
Pelo meu acto fluir,
Do primado uma questão
Logo ocorre em consequência:
Bem ou mal, que decisão?
- A consciência que me invade
Determina a qualidade.
Em qualquer que seja o evento,
Faça eu o que fizer,
A consciência é o elemento
Primário em conta a ter.
Conjuntura, intervenção
Derivadas sempre são.
A vitória do porvir
Pende donde o agir vier:
É o ego a lá reagir
Ou antes o meu alerta
Com consciência a crescer,
Com a consciência desperta?
O verdadeiro sucesso
Vem deste estado de alerta
Da consciência ao processo
De mais e mais ser desperta,
Não do ego e do pensamento,
Que em mim são podre fermento.
Níveis
A três níveis teu caminho
Trilharás de despertar.
Primeiro aceita o cadinho
Com que ele te aguilhoar.
Depois frui satisfação
De tudo o que te trouxer,
Que os trilhos por onde vão
Visarão, por fim, prazer.
Finalmente, é de entusiasmo
O teu cume de alegrias
Quando teus olhos de pasmo
Do Infindo espreitam magias.
Temos de andar sempre atentos
A que, em todos os momentos,
Num qualquer deles vivamos
Os roteiros que exploramos.
Embora
Embora sem ter prazer
No que andamos a fazer,
Pelo menos acolhamos
Que é o que de fazer tenhamos.
Aceitar diz: por agora
É o que de mim quer demora;
É, pois, de boa vontade:
Faço-o, embora não me agrade.
Acolher interiormente
Tudo aquilo que acontece
Leva a aceitar paciente
Dar ao caso o que merece.
Não ficarei satisfeito
De mudar o pneu furado
De noite, à chuva sujeito,
Mas posso tê-lo aceitado.
Assim, ao agir capaz,
Então é que findo em paz.
Parece estado passivo
Mas é criador e activo,
Traz ao mundo algo de novo:
Consciência de mim em ovo
Que só corre mundo fora
Se meu agir a não gora.
Sinto
Se me sinto satisfeito
Por fazer isto ou aquilo,
É entender mal o meu jeito,
O jeito meu com que fi-lo.
Nunca me vem a alegria
Daquilo que ali fizer,
Flui de mim, por esta via,
Para o mundo, em frente a ser.
A crença de que a alegria
Vem da actividade ou de algo
Pede ao mundo em que confia
Que a traga ao degrau que galgo.
O mundo nunca a dará.
E é uma frustração constante
Em que tantos vivem já,
Pois tudo os trai adiante.
Novo
Um novo mundo floresce
Quando alguém aconteceu
Com toda a energia do eu
A transbordar para a messe,
Auto-consciência inteira
Da Força de que se abeira.
Semeou-se então no mundo
E tudo toca no fundo,
A vislumbrar na penumbra
O Infinito que o deslumbra.
Domina
Auto-consciência desperta
O ego vai substituir,
Irá dominar, alerta,
A vida inteira, a seguir.
Então uma actividade
Há muito tempo em rotina
De súbito expandir-se há-de
Maior que de outrora a sina.
O poder da consciência
Põe-lhe o traço da evidência.
O ego é o que me aprisiona.
Livre, viver é uma fona.
Muitos
Muitos de actos criativos
Satisfarão muitos mais
E limitam-se, mui vivos,
Ao que muito os satisfaz,
Nem querem algo atingir
Nem noutrem qualquer devir.
Músico, escritor, artista,
Professor ou construtor,
Inventor ou cientista...
- Às vezes, nem de supor
É que serão quem serão,
Tão apagados se irão.
Súbita ou gradualmente,
Uma onda criativa
Flui para o que ali semente,
Expandindo a obra, altiva,
Para além do imaginado
E afecta todo o povoado.
Além da satisfação,
Advém uma intensidade
A tudo quanto farão
E uma criatividade
Que transcende o que um humano
Pode atingir em seu plano.
Entusiasmo
Entusiasmo é alegria,
Bem mais que satisfação,
Em tudo quanto ousaria
Dentro e fora, na função.
Mais um sonho de magia,
Um objectivo em acção
Que atingir, dia após dia,
Eu tentarei desde então.
A meta atractiva aumenta
O coração a pulsar,
A intensidade alimenta
Toda a obra em que operar.
Somos flecha disparada
Rumo ao alvo irradiante,
Toda a percorrida estrada
É alegria a todo o instante.
Vendo
Quem me está vendo de fora
Julga que ando sob tensão.
Mas, se entusiasmo em mim mora,
É o invés de tal lição.
Se julgar mais importante
Atingir meu objectivo
Que obrar no que tiver diante,
Stresse então em mim activo.
O equilíbrio da alegria
Com tensão estrutural
Perde-se no que o desvia
Para a tensão, no final.
Se há stresse, o ego retornou
E andar-me-ei a desligar
Do poder que nos formou
Do Cosmos, tudo a animar.
Em vez dele, fica em mim
A tensão carente egóica:
É de laborar sem fim,
Com fixidez paranóica.
Sempre o stresse diminui
A qualidade, a eficácia,
Seja o que for onde influi
Casca adquire coriácea.
Leva a emoções negativas,
Às ansiedades, à ira...
Doenças degenerativas
São dele o veneno em mira.
É tudo o invés da alegria
Que me leva a saltitar
Da floresta pela via
Que o melro guia a cantar.
Admirar
O entusiasmo dá poder
A tudo o que dele é feito.
Os mais podem ali ver
E admirar em ti o efeito.
Sabes, porém, que por ti
Nada poderás fazer.
Contra o ego, tudo aqui
Partilha a festa que houver.
O entusiasmo não se opõe
A nada nem a ninguém.
Não conflituoso, põe
A mesa a todo o que vem.
Sem vencedor nem vencido,
Tudo nele é inclusão,
Sem exclusão do caído.
Não tem nunca precisão
De usar nem manipular
Alguém, seja lá quem for.
Em si poder de criar,
Nunca tem de se propor
Ir pedinchar energia
A uma fonte secundária.
O ego carente é que iria
Enfraquecer qualquer área.
O entusiasmo partilha
A sua própria abundância.
Quando em algo encalha a quilha,
Nunca ataca, antes, sem ânsia,
Rodeia, sem resistência,
Com compreensão transforma
O adverso em útil. Na essência,
Do inimigo o aliado forma.
Retira
O entusiasmo mais o ego
Nunca podem coexistir,
Um retira ao outro o emprego.
O entusiasmo sabe onde ir,
Em profunda consonância
Com o momento presente,
Fonte vital de abundância,
De alegre ser e potente.
O entusiasmo não quer nada
Porque nada lhe faz falta.
Uno com a vida, a estrada,
Com o dinamismo em alta,
Por mais que em actos diversa
Do entusiasmo inspirados,
Perdidos não nos dispersa
Mas une, bem integrados.
E há um palácio silencioso
Mas profundamente vivo
Em meio ao bosque frondoso
Onde para a paz me esquivo
Que, de tudo fonte estável,
É inefável de raiz
E é quem faz tudo o que fiz:
É deus-em-mim, o Intocável.
Através
Através do entusiasmo
Entro em sintonia plena
Com o exterior que plasmo
Como do Universo a cena.
Porém, não me identifico
Com aquilo a que me aplico.
No mar do mundo navego
Sem, contudo, ser um ego.
Sem a identificação,
Não existe mais apego:
De sofrer esta lesão
Finda, trocada em sossego.
Finda a onde criativa,
A tensão diminui, viva.
A alegria permanece
Das criações pela messe.
Uma outra onda mais tarde
Pode vir onde o entusiasmo
Renovado de novo arde,
De alegria em novo espasmo.
Física
O entusiasmo é o poder
Que à física dimensão
O plano mental transfere.
É a mente a criar então,
Não há carência envolvida
Nem ego, nesta medida.
Não manifesto o que quero,
Só manifesto o que tenho.
Obter por esforço mero
Nunca foi de grande ganho.
Peço ao Imo cósmico: eis
Como obtenho e obtereis.
Pulsão
A pulsão para o exterior,
Formas do mundo sensível,
É desigual no fervor
Com que trepa em cada nível.
Alguns sentem forte impulso
De se envolver, de criar
E de construir a pulso,
Certos fins para alcançar,
Criar impacto no mundo.
Se forem inconscientes,
O ego domina-os, profundo,
Do próprio proveito agentes.
Reduz-lhes isto a energia,
Requerem cada vez mais
O esforço de quem confia
Só dele efeitos que tais.
Porém, se forem conscientes,
Serão muito criativos:
O mundo brilha em pingentes
Deles feitos, todos vivos.
Irem
Pessoas introspectivas
Irem para o exterior
Não irão, são sempre esquivas,
Seu motivo é doutro teor.
Preferem retorno a casa
Do que da casa sair.
Não vão incendiar-se em brasa
Nem o mundo redimir.
Se tiverem ambição,
É busca de independência
Com algo que venha à mão,
Tudo o mais é uma excrescência.
Alguns mui difícil julgam
Adaptar-se a este mundo.
Se um canto encontram, promulgam
Seu abrigo aí jucundo.
Outros sentem-se impelidos
A se integrar num mosteiro.
Alguns tornam-se bandidos,
À margem do mundo inteiro.
Muito há quem na droga tombe,
Que este mundo dói demais...
E há quem, curador, arrombe
Para o Ser os mil portais.