O  FARDO  E  A  LEVEZA

 

 

 

 

BARTOLOMEU  VALENTE

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Aroeira, 2020

 

 

 

 

 

 

 

 

O  POVO  LEVEIRO

 

 

 

Falta

 

A falta de confiança

Pode bem ser superada

Quando no empenho se alcança

Subir um pouco a parada.

 

 

Importara

 

Se a gente se concentrara

No que importara na vida,

Nem uma cana restara

Da pesca que nos convida.

 

 

Música

 

A música nunca ouves,

A maravilhosa peça

Que canto para que a louves

Dentro de minha cabeça?

 

 

Inútil

 

Inútil é quem terá

Corpo, mente e coração

E nunca deles fará

Qualquer utilização.

 

 

Retornar

 

Aquele que de viagem

Retornar ao sítio seu,

Por igual que seja a imagem,

Nunca é igual ao que partiu.

 

 

Busca

 

Pela busca de equidade,

O que um escol de hoje tem,

Amanhã, em paridade,

Há-de ter qualquer pelém.

 

 

Paciência

 

A paciência, termo amargo,

Transforma-se num produto

Que, quando lhe aguento o fardo,

Terá sempre um doce fruto.

 

 

Informação

 

Quem a informação domina

Que à vida se lhe coaduna

Pode evitar a ruína

E, ao invés, fazer fortuna.

 

 

Topo

 

Os do topo fruirão

De tudo o que é bom na vida?

O medo apaga o vulcão

Da fartura lá fruída.

 

 

Segredo

 

Para um segredo seguro,

Ao que o detiver convence-o

A preservar-lhe o apuro

Com um eterno silêncio.

 

 

Acalma

 

Quando uma demanda

Arder com fervor,

A resposta branda

Acalma o furor.

 

 

Limitas

 

Limitas a vida

Medo ao cultivar

De alguma medida

Que ninguém domar.

 

 

Será

 

Vai ser anho, vai ser fera

Que opera o que me destina?

- Sei lá bem que é que me espera

Ali ao virar da esquina!

 

 

Sozinho

 

Sozinho, a mente reflecte,

Colhe ideias e vê luzes.

Mais gente, não. Se intromete:

Mais vozes, mais te reduzes.

 

 

Seguir

 

Trilho de contentamento

Da natureza é vizinho:

É seguir cada momento

O nosso próprio caminho.

 

 

Pensamento

 

Qualquer pensamento a sério

Trata permanentemente

Da verdade em vez do império,

Ao romper caminho em frente.

 

 

Razão

 

Quando um ego anda amarrado

A querer só ter razão,

Nunca razão alcançado

Há-de ter mas divisão.

 

 

Meta

 

A meta de discutir

É ganhar ao concorrente

E não a de discernir

A verdade honestamente.

 

 

Esbarro

 

Do pensamento a parede

Em que esbarro e onde me esfrego,

De pedestal a ter sede,

É a parede do meu ego.

 

 

Pensar

 

Pensar argumentativo

E quão mais opositor

Mais um ego mostra ao vivo

E mais trai o pensador.

 

 

Neutra

 

Nunca é neutra a discussão,

Nunca, portanto, objectiva.

A luz é só de explosão

Dos incêndios que motiva.

 

 

Rápidos

 

Nós muito rápidos somos

A julgar precipitados,

Das emoções nos assomos

Por mãos próprias agrilhoados.

 

 

Finda

 

O pensamento académico

Finda numa explicação.

O real é mais polémico:

É de mundos geração.

 

 

Redunda

 

Optimismo em demasia

Redunda em geral fracasso.

Mas quem espera em porfia

É quem vence, a cada passo.

 

 

Especulador

 

O especulador precisa

De ter noção da vantagem

Potencial de quanto visa

Ao esperar a triagem.

 

 

Alma

 

Alma de qualquer projecto

É a visão que o sonho anima:

Rompe além de qualquer tecto,

Mesmo antes, já vê de cima.

 

 

Noção

 

Ninguém faz seja o que for

Sem a noção do valor

 

E sempre além tendo em vista

Aquela final conquista.

 

 

Esperam

 

Àquilo que esperam deles

Dão os indivíduos jeito:

Se à criatividade apeles,

A criar prestarão preito.

 

 

Progresso

 

Uma possibilidade

Mais que o possível será,

É o progresso que me invade:

Ainda não é, sendo já.

 

 

Ideia

 

Tempo além a ideia nova

Sempre é uma flor delicada:

É de a proteger da geada

Do hábito que ma reprova.

 

 

Atitude

 

Atitude criativa

Implica ter de aceitar

Que existe uma alternativa

Que algo pode melhorar.

 

 

Trepar

 

Procurar alternativa

É crer que há várias maneiras,

Além do que o uso arquiva,

De trepar pelas ladeiras.

 

 

Grudado

 

Tão grudado a um problema

Andarei que o sigo em frente

Mesmo se esgotei o tema,

Em vez de a mim ser presente.

 

 

Fecham-se

 

Uma ideia muito certa

Ou desperta entusiasmo

Ou do êxito a porta aberta

Fecha-se ao murchar o pasmo.

 

 

Alvo

 

Se o pensamento vagueia,

Alguém pegue no alvo então:

- Não se dispersem na areia,

Virem nesta direcção!

 

 

Contra

 

O bom pensador evoco

Contra o que é mau pensador,

Que aquele se atém ao foco

E este vagueia ao sabor.

 

 

Pergunta

 

Fazer a pergunta certa

É porventura o melhor,

Que o acerto em nós desperta

De entender seja o que for.

 

 

Ora

 

Perguntar pode ir à pesca

Ou ser pergunta certeira:

Ora tenteia, arabesca,

Ora num alvo se esgueira.

 

 

Urge

 

Um problema é uma pergunta,

Urge defini-la a sério

Ou só areia se junta,

Sufocamos-lhe ao mistério.

 

 

Emoção

 

A emoção feita visível

Livra-nos da prisão dela,

Que lhe embota o insofrível

Aguilhão com que atropela.

 

 

Peito

 

De peito aberto, ou então

Que é que tudo vai valer?

Se alguém fecha o coração,

Mais lhe valera morrer.

 

 

Bom

 

Quem é bom mais bons ajuda

Em perene prontidão.

Nem conta o que quer que muda:

- Livro-me da escuridão.

 

 

Caras

 

As caras dos que salvar

Falhei vão sempre comigo

Toda a vida a verrumar

Meu intérmino castigo.

 

 

Curta

 

A vida é curta demais

Para permitir que o medo

Interfira nos sinais

Da dita que a mim concedo.

 

 

Ligação

 

Nossa ligação ao Todo

Ignorando, é só ganância

O que nos finda de engodo:

- E é de nos matar ter ânsia.

 

 

Ego

 

O meu ego é a disfunção

De só referir a mim

Tudo o que não é senão

O Cosmos em meu patim.

 

 

Curtas

 

A religião dominante

Contra curtas minorias

É dum triunfalismo impante?

- Nestas vão luzir os dias...

 

 

Identificado

 

Identificado à forma,

Mentalidade, rotina,

Perco-me em norma da norma

Que é ler vida em cada esquina.

 

 

Ligado

 

Tudo está ligado a tudo

E à frente daquele veio

Onde tudo a que me grudo

Se une à raiz donde veio.

 

 

Usar

 

Ao usar o pensamento,

Sou dominado por ele

E aquilo que era fermento

Finda-me em bolor na pele.

 

 

Findar

 

Terei de usar pensamento,

Tem nele próprio beleza.

Mas é preciso o tormento

De findar de alma ali presa?

 

 

Reduz

 

A palavra a realidade

Reduz ao que a mente entende

E é mui pouco, de verdade.

- O mais além quem aprende?

 

 

Palavra

 

A palavra são uns sons.

Como é que pode explicar

Quem somos, nos mil e um tons,

E o Cosmos que ande a visar?...

 

 

Subjaz

 

Eu não sou o conteúdo

Que tiver em minha mente,

Sou a consciência que a tudo

Lhe subjaz perenemente.

 

 

Vivo

 

Não vivo na realidade,

Que, se a vivera, era viva,

Mas no conceito, em verdade,

Que dela, abstracto, se esquiva.

 

 

Sentes

 

Se não sentes vida em ti,

Como em vazio repoisas?

Vais encher decerto aí

O vazio de mil coisas.

 

 

Auto-estima

 

Auto-estima dependente

Daquilo que possuir

É de si viver ausente,

Nas coisas a se esvair.

 

 

Penso

 

O ser tem de ser vivido,

Nunca pode ser pensado.

Quando o penso, então, traído,

Por um conceito é trocado.

 

 

Dados

 

O meu eu é o pensamento

E não os dados pensados.

Quando o ignoro, no momento,

De mim me perco aos bocados.

 

 

Coisas

 

Posso às coisas dar valor

E poderei gostar delas.

Mas apegar-me é um pendor

Que impede o voo às estrelas.

 

 

Aceito

 

Quando aceito qualquer perda

É que supero o ego em mim:

Sou eu, sem que qualquer cerda

Me tolha o pé de ir ao fim.

 

 

Poder

 

Às coisas não me apegar

Dá-me um poder bem maior

Do que a elas me grudar:

Preso, após como me opor?

 

 

Útil

 

Dá-me a vida uma experiência,

A mais útil no momento.

Como o sei? Pela evidência

De ser onde aqui me assento.

 

 

Vir

 

Se eu não vir além do ter,

Então vivo condenado

A vida inteira a correr

Mais e mais esvaziado.

 

 

Apego

 

O apego às coisas desfaz-se

Se deixo, em minhas sequelas,

De tentar a minha face

Encontrar (e de vez) nelas.

 

 

Custa

 

Custa a ver uma evidência

Que a paz me traz em sossego:

Eu sou uma consciência

Que consciência tem do apego.

 

 

Fome

 

Uma fome insaciável

É um ego a não ter bastante,

Com a mente incontrolável

A comer tudo adiante.

 

 

Nunca

 

O ego não sabe o que quer,

É o que não quer e que existe:

Qualquer agora que houver...

Quer outro que nunca aviste.

 

 

Andar

 

Hei-de andar sempre, procuro

Ou por mim ou por meu ego:

Por mim, o Infindo inauguro;

Pelo ego, a coisas me apego.

 

 

Procurar

 

Um ego que predomina

Chega a procurar doenças,

Que através delas domina

Os mais delas com sentenças.

 

 

Vivência

 

Quando eu me identifico

Com a vivência interior,

Não sou corpo nem me fico

Por nada que este eu não for.

 

 

Vera

 

Minha vera identidade

Será minha consciência,

Não as coisas que lhe agrade

Dar-me dela na existência.

 

 

Apenas

 

Não sou isto nem aquilo

Nem nenhum trilho onde vou,

Nem enervado ou tranquilo,

Sou apenas isto: eu sou!

 

 

Abrir

 

Terei de me abrir às lidas

Ou findarei a murchar:

De persianas corridas,

O sol não consegue entrar.

 

 

Uno-me

 

Criativa inteligência,

Consciência incondicionada:

Uno-me aí na coerência

De me acolher em jornada.

 

 

Ignora

 

Muito há quem se identifica

Tanto com mente mentada

Que ignora que ele é quem fica:

Ele é o mentor da empreitada.

 

 

Direi

 

Muitas vezes direi “eu”

Mas é o meu ego a falar,

Que de si o eu se esqueceu,

Ao ego fundido a andar.

 

 

Rótulo

 

O rótulo negativo

Que na testa prego a alguém

É que do ego dele vivo,

Não do eu que sonha e tem.

 

 

Desço

 

Desço do rótulo ao nome,

À gritaria e ao berro,

A vivência após me some,

- Como ego em morte me encerro!

 

 

Ira

 

Quando o queixume reage

De ira em mais perturbação,

É o ego ali que mais age,

Mais se fortalece então.

 

 

Apontar

 

O pensamento é o meu dedo

Aqui a apontar a Lua,

Não é a Lua. Não lhe acedo,

Nunca cai na minha rua.

 

 

Vivemos

 

Vivemos com a loucura

Pela identificação

Com crenças, com a emoção...

- Meu ego é a minha figura.

 

 

Quero

 

Eu quero a paz, todos querem,

Mas um termo é bem capaz,

Daqueles que fundo ferem,

De me enraivar contra a paz.

 

 

Presente

 

Sou presente aqui-agora,

Não ontem nem amanhã.

Nem poderei noutra hora

Abrir ao mundo a manhã.

 

 

Amarras

 

Quando estou presente a mim,

Corto amarras do passado

Que me prenderão sem fim:

Sou eu, não de mim traslado.

 

 

Sentes

 

Se te sentes superior

Ou inferior ante alguém,

É teu ego a se te impor:

Emociona e à mão te tem.

 

 

Atingi

 

Não atingi a mestria

Se com mendigos e reis

Não usar de igual fasquia,

Eu fiel a seus eus fiéis.

 

 

Dentro

 

Não sou meu pensamento ou emoção,

Sou sempre a consciência que subjaz.

Embora em simultânea aparição,

Sou quem por dentro anima, empurra atrás.

 

 

Representar

 

A representar papéis

Terei de me recusar,

Ao ser eu moldando as leis,

Sem me ser elas a atar.

 

 

Traz

 

O ego traz separação,

A separação traz dor.

É um doente em mim, então,

Não sou eu, seja o que for.

 

 

Latente

 

Tenho uma insatisfação,

Mágoa latente sem fonte?

Se espreitar, um ego então

Escondido há no horizonte.

 

 

Sentir-me

 

Sentir-me eu em paz

E ser eu quem sou:

Um o outro traz,

São o mesmo voo.

 

 

Paz

 

Findo em paz comigo mesmo

Se a paz fizer, congruente,

Com o momento que, a esmo,

Constitui o meu presente.

 

 

Empolado

 

Muito há quem se dê gratuito

A nobres causas comuns

E é um ego embalado e muito,

Não o eu que crêem alguns.

 

 

Alienado

 

Alienado, queimo em brasa

Sem nunca me discernir:

Quererei chegar a casa

Sem nunca lá me sentir.

 

 

Difícil

 

Conhecer a conjuntura

Difícil que me lesar

Primeiro degrau de cura

Será para a ultrapassar.

 

 

Maioria

 

A maioria do planeta

Acumula lentamente

O que a vida lhe acarreta:

Que fardo carrega a gente!

 

 

Arquétipo

 

Cristo é o arquétipo humano

Que personifica a dor

Mais o vigor transmundano

De além o homem a transpor.

 

 

Ditadura

 

Toda a ditadura é estranha

Por sentir-se ameaçada

Da vida pela maranha

Por ela não controlada.

 

 

Presença

 

Se a meditação praticam,

O corpo de dor decresce,

A fátua mente erradicam

- E o imo rejuvenesce.

 

 

Birra

 

Quando a criança voltar

À birra sem fundamento,

Acaso é só perguntar:

“Voltou daquilo o tormento?”

 

 

Presente

 

Quando a criança domina

A dor ou a frustração,

Mais a ser presente inclina

Seu eu que em si manda então.

 

 

Fonte

 

Fonte de toda a abundância,

Onde és? Não te encontro assim!

- Busco-a lá fora com ânsia

E, afinal, é dentro em mim.

 

 

Parte

 

A abundância que procuro

Lá por onde quer que vou

Nesta instância não a auguro,

- Faz parte de quem eu sou.

 

 

Vive

 

De todo o enfraquecimento

Que percepcione onde viva,

Qualquer que seja o momento,

Vive o ego na defensiva.

 

 

Auto-repara

 

O ego automaticamente

Auto-repara em acção

A forma que talha em mente

Do eu e é sempre traição.

 

 

Demasiado

 

A comédia faz-nos rir.

Nada demasiado a sério

É de levar a seguir:

Tudo passa, até um império.

 

 

Origem

 

Não procures da alegria

A origem, feita uma coisa.

Teu imo é que alegra o dia:

Ante o que escreves é a loisa.

 

 

Solta

 

Quando um som, uma paisagem,

Um toque solta a magia,

Sente ampla do imo a voragem,

Fundo e fonte de tal dia.

 

 

Alegria

 

A alegria de viver

É do simples e banal.

Quem busca outro algo qualquer

Perde o que importa, afinal.

 

 

Tudo

 

Tudo o que insignificante

A todo o mundo parece

Afinal é o importante

E que o mundo inteiro esquece.

 

 

Germina

 

Do que não tem importância

Germina a felicidade,

Não da interminável ânsia

Que a vida inteira me invade.

 

 

Aqui

 

Nem no passado delida

Nem no porvir que demora,

O propósito da vida

É ser vida aqui agora.

 

 

Vivo

 

Tudo o que fizer quer tempo,

Porém, o tempo demora

E eu vivo sempre a destempo,

Só vivo mesmo no agora.

 

 

Ansioso

 

Quando estou ansioso, tenso,

Meu exterior me domina,

Já no meu imo não penso,

De oiro me perdi da mina.

 

 

Objectivo

 

Ter um objectivo em mente

Ausenta-me do presente?

 

Ao invés, se não me alieno,

É ali que o semeio em pleno.

 

 

Maturidade

 

Criança que muito sofre

Transmuda-se num adulto

Que guarda o secreto cofre

Da maturidade oculto.

 

 

Transparecer

 

Se transparecer no idoso

Tudo o que o imo lhe induz,

Devém então radioso,

De sabedoria é luz.

 

 

Tiver

 

Eu só poderei perder

Algo que tiver, meus pomos,

Não posso perder meu ser:

Não perdemos o que somos.

 

 

Fundo

 

Quanto mais fundo viver

Com consciência de mim

Mais disfuncional vai ser

Meu ego no meu confim.