POEMAS REGULARES
Tempos
Em tempos de pandemia,
Com todo o confinamento,
Tudo é noite cada dia,
O entrudo levou-o o vento.
Mas contigo mão na mão
Há sempre sol pela estrada:
No meio da escuridão
És minha noite estrelada.
E, no meio da invernia,
És a réstea de Verão:
O amor veste a fantasia,
Que calor dás ao meu chão!
Rotina
Rotina é estabilidade,
Vital à sobrevivência.
Se à sensatez não agrade
A muda, então, de evidência,
É porque é mesmo sensato
Não buscar qualquer outro acto.
A vida em evolução
Quer, porém, que evoluamos.
E nós, o pé preso ao chão,
A tremer, nunca saltamos,
A cabeça aos ombros presa,
À ravina da incerteza.
Só quando a dor da existência
Nos deveio insuportável,
Fechamos, ante a evidência,
Os olhos, que é inadiável,
E sobre os ignotos ramos
Da ladeira então saltamos.
Melhor
Eu a mim me conquistar
É melhor do que ganhar
Mil batalhas.
Apenas então vitória
Cantarei em nossa glória
Sem mais falhas.
Vitória que retirada
Não pode ser por mais nada,
Nem por anjos,
Nem por demónios que eterno
O céu trocam pelo inferno
Sem os banjos.
Conhecer
Conhecer não é saber
Uma verdade absoluta
Da vida e morte, do ser,
É o que ajudar a viver
A enfrentar da vida a luta
Na teia do quotidiano.
Não é erudição livresca,
De ocas disputas o dano.
No coração mora humano,
É a boa vontade à pesca:
Se formos bons pescadores,
Eis-nos um dia senhores.
Canhestro
O jovem que é rejeitado
No primo canhestro amor
Diz em seu imo magoado:
“Hei-de encontrar noutro lado
Quem faça jus ao fulgor
De tudo aquilo que sinto.
A rejeição não é perca,
A rejeição é meu plinto
Donde salto ao que pressinto
Ser a festa que se acerca.”
Escada
Nem vencedor nem vencido
Há na escada do Universo:
Há o patim a ser subido.
Coração que nisto é terso
Finda livre de aceitar
O difícil sem pesar,
Sem se enganar, pura escória,
Com os momentos de glória.
Momento
O momento bom e o mau,
Ambos irão terminar,
Um ao outro a dar lugar,
Ao transpor da vida o vau...
Da carne até me livrar,
Do Outro Lado ao me encontrar.
Não que aqui finde este enleio,
É que assim o já não leio.
Lutador
Quando o lutador na arena
(Quer seja a da própria escolha,
Quer a que o fado lhe acena)
Estiver, alegre acolha
O combate que vier.
Que, se a honra mantiver,
Embora perca a batalha,
Nunca cairá derrotado:
O ânimo com que batalha
Findará sempre intocado.
Nunca culpará ninguém,
Que o que visa é o mais Além.
Derrotado
Derrotado não fracassa:
Perde a batalha ou a guerra,
Logo após tudo ultrapassa.
O fracasso é o que me enterra:
No buraco ao me enfiar
Não me deixa mais lutar.
Derrota é não conseguir
Agora o que muito quero.
Fracasso não permite ir
Para além do desespero,
Não me permite sonhar:
Não sofre quem não ansiar...
Ponho à derrota um final
Quando me empenho outra vez.
Fracasso, não, afinal:
Prendo a vida pelo arnês.
A derrota põe de pé
Meu novo entusiasmo e fé.
Nunca
Quem nunca foi derrotado
É porque nunca lutou.
Humilhações, desagrado,
Cicatrizes evitou,
O desamparo dos céus,
A duvidar de haver Deus.
Podem gritar com orgulho:
“Nunca perdi a batalha!”
Mas não perdem o gorgulho:
“Não ganhei uma que o valha...”
É o que nunca lhes importa:
Fecharam à vida a porta.
Fugiram para o recanto
De nunca ser atingido.
Negam à injustiça o pranto,
Ao sofrimento, um vagido...
Desafios de cotio,
Só de ganho certo o ousio.
Nunca ouviram um adeus
E também nunca: “Cheguei!”
Não sentem nos braços seus
O abraço de oiro de lei:
Ignoram o que é o perdido
Reencontrado e enfim fruído.
Sem
Sem solidão não há planta,
Animal que sobreviva
Nem há terra produtiva
Que tempo além seja tanta.
Não há criança que aprenda
Nem artista há-de criar,
Não há trabalho que renda
A crescer, se transmudar.
Solidão não é uma ausência
De amor mas o complemento:
O momento em que a evidência
Germina do que é fermento.
Vazio
O vazio não existe.
Mora um mundo gigantesco
Em nosso íntimo. O despiste
Quer meu gesto principesco
(Que nele mande deveras
Hoje e sempre, pelas eras),
Aguarda ser descoberto.
Ei-lo ali, a força intacta,
Mas é tão novo e tão perto,
Com poder que tanto impacta,
Que temos medo, à evidência,
De lhe acolher a existência.
Perguntei
Perguntei à flor do campo:
“Só dás flor igual a ti.
Vês-te inútil presa ao grampo
De mais nada haver ali?”
Responde a flor: “Eu sou bela.
A beleza, eis a razão
De eu viver como uma estrela
Caída do céu ao chão.”
Pergunto ao rio: “Tu corres
Sempre no mesmo sentido.
És inútil? Não acorres
A qualquer outro pedido...”
Responde o rio: “Não tento
Ser de útil o desafio.
Apenas o meu intento
É ser deveras um rio.”
Nada é inútil neste mundo,
Nem a folha ali tombada,
Nem o cabelo que ao fundo
Cai desta minha pegada,
Nem o insecto que matei,
Que me andava a incomodar...
Tudo, mesmo se o não sei,
Tem razão para ali estar.
“Sou inútil” – é resposta
Que a ti próprio tu te dás
Sem no inverso ler a aposta
No que, afinal, és capaz.
Breve
És em breve envenenado
E morrerás inda em vida
Por leres teu negro lado
Tapando à luz a saída,
Embora sigas a andar
Comer, dormir e atentar.
Não tentes, pois, útil ser,
Tenta ser tu próprio antes.
É o que basta a vida a erguer,
É a diferença que implantes.
Depressa nem devagar
Andes mais que o imo andar.
Ele é que vai-te ensinar
Qual a sua utilidade
Passo a passo, ao caminhar.
Ora é uma grandiosidade
Que muda a rota da História,
Ora um nada sem memória.
Sorris para alguém na rua?
Poderás ter salvo a vida
A um ignoto cuja lua
Mudou com tua medida:
Um sorriso a confiança
Lhe germinou da esperança.
Olhando
Mesmo olhando a vida inteira,
Jamais poderei saber
Se útil foste a alguma leira
Ignorada de quenquer.
Inútil nunca é uma vida:
Dos céus por algo é descida.
Os que farão bem aos mais
Não tentam ali ser úteis,
Tentam levar vidas reais
Sem vazios de horas fúteis.
Quase nem darão conselhos,
Vivem é de ágeis artelhos.
Vive o que sonhas viver
Sem os demais criticar,
Tua utopia a colher,
Pouco importa o que pesar.
Deus vê-te a melhorar isto,
De mil bênçãos dá-te o visto.
Quando
Quando a morte a ti chegar,
Irás ouvi-la dizer:
“Pai! – poderás perguntar –
Porque findas meu viver?
Mas no teu fim cá na Terra
Vou dizer-te o que isto encerra.
Encontrei-te a casa limpa,
A mesa posta e lavrado
O campo, as flores a grimpa
A erguer para o céu nublado.
Cada coisa em seu lugar,
Como tudo deve estar.
Compreendeste que o pequeno
É o responsável que alcança,
No gesto humilde e sereno,
Por fim a grande mudança.
É o motivo porque viso
Levar-te hoje ao Paraíso.”
Medo
Temos medo da muda, que julgamos
Que, após o sacrifício, todo o esforço,
Conhecemos o mundo e o dominamos.
Não sendo embora ele o melhor, o escorço,
Não nos deixando muito satisfeitos,
Não tem surpresas, a mudar trejeitos.
Não erraremos. Quando requerido,
As pequenas mudanças lá faremos
Para tudo no igual rumo e sentido
Continuar, tal qual como aqui o vemos.
As montanhas se fincam no horizonte,
Não saltam para os longes qualquer ponte.
As árvores já grandes transplantadas
Acabam, afinal, é por morrer.
Serei montanha e árvore enraizadas,
Sólidas, respeitadas por quenquer.
Mesmo que acorde à noite, a meditar:
“Que bom seria ser pardal a voar!
Ai quem me dera como o vento ser
Que ninguém sabe se ele vem nem vai,
Que muda o rumo de explicar sem ter
Para ninguém se se levanta ou cai.”
O sonho, lindo embora e com requinte,
Morrerá logo na manhã seguinte.
Lembramos que os pardais vão a fugir
Dos caçadores e aves, dos mais fortes
E a ventania às vezes destruir
No redemoinho vai da pedra os cortes,
Tudo em redor findar vai em fanicos,
O furacão arrasa até os mais ricos.
É muito bom sonhar que vai haver
Lugar para mais longe caminhar.
O sonho alegra, ao cada um saber
Que é bem capaz de mais que o que operar.
Não tem risco sonhar. O perigoso
É no real mudá-lo de que gozo.
Pegadas
Nas pegadas do caminho
Vem-me à mente uma pergunta:
Por usar meu descaminho
Fiz que outrem perca o carinho,
Sofra por mim dor que junta?
Mas quem ama o que quer ver
É quem ama a ser feliz.
Se num momento temer,
Logo contente há-de ser
De o outro ser o que quis.
- Fazer este quanto gosta
Fará os dois ganhar a aposta.
Sinto
Sinto às vezes desamparo,
Mas a estrada sente igual.
Ao conversar, não é raro
Ver de alguém partido o aro
Que ao caminho dera aval,
Descubro não andar só.
Companheiros de viagem
Partilham camaradagem
E, ao sacudirmos o pó,
Mais respostas dão coragem.
Todos mais sábios e vivos
Findamos e nada esquivos.
Horas
Em horas de sofrimento
O arrependimento instala
Na tenda a pala do vento
Que os olhos lento arregala.
Juro, porém, que amanhã
Darei só mais um passinho,
Posso da saída vã
Retornar pelo caminho.
Um passo, parca sentença,
Não vai fazer diferença.
Dia
Um dia, sem mais aviso,
O trilho não testa mais
O viajante conciso,
Generoso nos sinais.
O íntimo antes perturbado
Alegra-se da beleza
Que doravante é seu fado,
Nova paisagem que preza.
Cada passo, de automático,
Devém ora consciente
E o seguro, outrora prático,
Desafio hoje é ridente.
E continua as jornadas.
Já não há de tédio queixas
Mas de fadigas cobradas
Que são da aventura as deixas.
Ninguém desvia caminhos
Que se temia seguir,
Adoram-se os que, maninhos,
Se agora correm, ao ir.
Mesmo que o final destino
Seja um mistério total.
Embora erre o meu tino,
Deus vê uma coragem tal
Que me dará inspiração
Para tudo corrigir.
Não perturba a situação,
Mas medo de a não gerir.
A vontade imaculada
Outra já não tem opção.
Curvam-se os factos na estrada
Ante dela a decisão.
E qualquer dificuldade
É uma antiga ferramenta:
Define-me a identidade,
Sou quem é que Tudo tenta.
A fé mais transformação
Aproxima-me de Deus.
Não estou só no meu chão,
Sondam mistério os pés meus.
Temer
Como temer o amanhã
Se ontem alguém me cuidou?
Igual Presença louçã
Me toma em mãos para o voo.
Protege do sofrimento
Ou dá força contra o vento.
Mais longe do que cuidamos
Acabaremos por ir.
À estrela da manhã vamos
Trepando em nosso porvir.
E, afinal, chegar a ela
Será mais fácil sequela.
A morte atinge os que mudam
E os que não mudam também.
Quem muda diz: “Não se iludam.
Que festa que a vida tem!”
Quem só vive na rotina
Morre mais do que imagina.
Beleza
Beleza exterior bem pouco importa,
Que a interior, durável, é que conta?!
É grande a falsidade ali que exorta,
Senão, porque é que a flor à abelha aponta?
Porque é que um arco-íris se abre ao sol?
- A natureza quer do belo o rol.
A beleza visível é uma parte
Da beleza interior ali mostrada.
Vemo-la à luz dos olhos donde parte,
Não importa se é de alguém mal amanhada,
(“Um mal vestido” – diz um elegante)
Ou se nem liga a quem está diante.
Os olhos serão sempre o espelho de alma,
A reflectir o que usa andar oculto.
Mas além de brilhar reflectem, calma,
A paisagem de quem olhar inulto.
Operam como ali fiel espelho,
De quem os admirar sacro evangelho.
Se o imo do que observa for escuro,
Ele irá ver a própria fealdade.
Como em qualquer espelho ali apuro,
Devolvido em inteira identidade,
O reflexo seguro lá disposto
Do que for dentro e fora o próprio rosto.
Toda
A beleza é de toda a criatura.
Vem o perigo do juízo alheio:
Se me deixar levar, dele permeio
De mim a imagem que meu imo apura.
Nego a própria beleza porque os mais
Não podem ou não querem vê-la mais.
Ora, em vez de aceitar então quem sou,
Procuro imitar quanto haja em redor,
Ser o bonito que o mundão sagrou.
Meu imo então definha e o valor
Do querer diminui. Como adornar
O mundo inteiro se me traio a par?
Sei lá que o mundo é o que imagino ser!
Não sou quem sou, como é que o mais vou ver?
Já não sou mais brilho de Lua, não,
Mas poça de água que a reflecte ali.
O sol virá para beber do chão,
Tudo evapora, nada mais lá vi.
Só porque um dia alguém te diz: “És feio
E ela é bonita!” – mata teu recheio.
Tornar-me feio após me deixa amargo
E é noite qualquer dia a meu encargo.
Perder
A beleza ao perder que houver em mim,
Busco contacto em má sabedoria,
Ideias em pacote que, sem fim,
Procuram definir do mundo a via,
Em vez de respeitar da vida a sério
O desafio que é sempre o mistério.
Regras, regulamentos e medidas
E toda uma bagagem despicienda
Que um qualquer padrão buscam, convencidas,
Para o comportamento a pôr na agenda.
Falsa sabedoria quer dizer:
Que importa o belo? Ele não vai valer!...
Debaixo
Todo o ser criado
Debaixo do sol,
De aves à montanha,
Desde a flor ao rio,
Reflecte o que bole,
Mui maravilhado
Do belo que ganha
Na trama do fio,
Filigrana em chão
Do que é a criação.
Quando eu resistir
E não aceitar
Que outrem definir
Pode meu lugar,
Sou então, na lide,
Capaz de brilhar
Do sol que reside
Em meu imo a andar.
Logo o amor por perto
Perpassa e me diz:
“Nunca descoberto
Tinha teu cariz.”
Meu imo responde:
“Presta-me atenção,
Que eu estou sempre onde
Te findar à mão.
Foi preciso a brisa
Tirar-te a poeira
Da vista imprecisa
Para à minha beira
Me reconheceres.
Não me fujas, preza,
Que todo, ao me veres,
Cultivo a beleza.”
Reside
O belo não reside na igualdade,
Reside, inovador, na diferença.
Dos picos da montanha a variedade
É que imponente torna-lhe a presença.
Se a mesma forma de homem mão lhes dera,
Nem respeito inspirara ao que o vivera.
É aquilo que imperfeito nos parece
O que mais nos assombra e nos atrai.
Quando olhamos o cedro, alguém, refece,
De igual medida aos galhos ali vai?
Admiramos apenas que ele é forte
E é o que basta a nosso íntimo transporte.
Ao ver uma serpente, não direi:
“Rasteja pelo chão mas eu caminho
Com a cabeça erguida.” Ao invés sei
Que a pele é colorida e que adivinho
Quão elegante é o movimento dela.
- E é de maravilhar-me esta a janela.
Quando o camelo cruza no deserto
E nos conduz ao sítio onde chegar,
Não digo que tem bossas, dente aberto,
Antes que é tão leal que é de admirar.
E grato findarei por tanta ajuda:
Sem ele nem do mundo via a muda.
O pôr-do-sol mais belo é o céu traçado
De irregulares nuvens que só assim
Reflectir as mil cores há logrado
Que moldam todo o sonho que haja em mim
E que serão o verso sem palavras
Onde semeio as mais fecundas lavras.
Pergunta
Quem pergunta pelo rumo
E não vê que responder
Desata às vezes a ler
O que escreveram com sumo
Ao desafio que houver
Os que enfrentam o que assumo.
De súbito uma resposta
Parece ser a correcta
E apostam tudo na aposta
Que lhes promete ir à meta.
Findarão escravos dela,
Criam leis que obrigam todos
A viver nesta janela,
Quer tenha ou não tenha engodos.
Erguem templos, tribunais
Para aqueles que à verdade
Absoluta não vão mais,
“Vítimas de insanidade”.
Eis como assim se condenam,
Condenam o mundo inteiro.
Mais tarde ou mais cedo penam
Da derrota no lameiro.
Confundiram o conduto
Sempre aqui pobre e precário
Com o que era um absoluto,
Nunca à nossa mão, sumário.
Perguntar
Perguntar pelo sentido
Não faz sentido: é uma aposta.
Que importa quanto se gosta?
É o nosso fado vivido.
Quem entendeu a armadilha
Não perde tempo com ela.
Antes agir se perfilha
No rumo de alguma estrela.
Volta à infância a procurar
O que é que mais o entusiasma
E vai-se-lhe dedicar
Sempre em busca do que o pasma.
É que no entusiasmo mora
De vez o fogo sagrado.
Pouco a pouco o gesto agora
Descobre ao mistério atado
Que finda de vez além
Do conhecimento humano.
Respeita o mistério bem
Tentando não ter engano.
Nunca conhece o caminho
Mas percorre-o pela chama
Que o coração adivinho
Lhe incendeia e o conclama.
Usa a intuição se fácil
For conectar-se com ela
E a disciplina se, grácil,
Se esvaiu pela janela.
É louco? Como tal age,
Mas não é louco deveras:
Ao amor vero reage,
Que o querer não é de esperas.
Só o amor e a vontade
Lhe revelam o objectivo
E o rumo que, de verdade,
Segue aquele que for vivo.
Entender
Entender o objectivo?
Só do outro lado da morte,
Quando este estranho transporte
Todo o morto mostrar vivo.
Este é o caminho que é leve
E o fardo, suave e breve.
O fito é grande ou pequeno,
Muito longe ou mesmo ao lado,
Fiel ao imo e sereno,
Com respeito e sempre honrado.
Procuro-o com todo o esforço,
Treino, intuição, desde o escorço.
Concentro-me então na meta
Como em quanto haja em redor,
Em tudo quanto prometa
Um além por onde eu for.
Tenho às vezes de parar,
Sem força de continuar.
Corres para a meta que amas
E apenas a justificas
Por amá-la em tuas tramas.
Repousa. Quando te aplicas,
Ela corre a te encontrar
Quanto tu para a abraçar.
Pergunta
A pergunta por sentido,
Quer a ignores, quer respondas,
Quer a atendas tendo agido
Da vida a cortar as ondas,
Terá sempre iguais obstáculos
Da História pelos cenáculos.
Quem com humildade aceita
E coragem o insondável
Plano do Amor, via estreita
E de vez inominável,
É que sabe que anda perto
Do caminho que está certo.
Única
A única e vera escolha
É mergulhar no mistério
Da energia incontrolável
Que do amor eu recolha,
Sempre dele sob o império
Definitivo, inefável.
Posso crer que sofri muito,
Decidir que não mais dure,
Afastar o amor da porta.
Se o fizer, não é gratuito,
Eis aquilo que eu apure:
Para a vida a vida é morta.
A natura manifesta
O amor de Deus no Universo.
Apesar do que fizermos,
O amor sempre nos atesta.
Do mundo ensina o reverso:
Urge acolhê-lo em tais termos.
Tomo
Amo e tomo a decisão
Que deixei para depois.
Aprendo a dizer que não
Sem crer que é uma maldição
Quebrar gelo aos arrebóis.
E aprendo a dizer que sim
Sem temer as consequências.
Ignoro o que houver, enfim,
Feito amor mas que é serrim:
Amor outro, outras essências.
Cada encontro é diferente,
Tem as próprias agonias,
Êxtases que outro não sente.
Qualquer paralelo mente
À novidade dos dias.
Retorno
Quando amo e retorno ao lar,
Descubro que alguém ali
Já me estaria a esperar,
Já procurando, por si,
O mesmo que procurei
Com a mesma angústia que hei.
O amor são águas dum lago
Em nuvem se transmudando.
Ao céu trepam, vapor vago,
As lonjuras abarcando,
Mas conscientes de que um dia
Tornam à terra em magia.
Como a nuvem é o amor,
Sempre em chuva se transforma.
À terra um raio tractor
Atrai-a sempre de forma
Que, enquanto pula e desliza,
Todo o campo fertiliza.
Escolhas
As escolhas não são muitas.
A vida, a comunidade
Se encarregaram, gratuitas,
Da sina que lhes agrade.
Muito à mão, com algum tino,
Aí temos nosso destino.
E depois voltar atrás,
Se velhos, recuperar
Alguns momentos assaz
Perdidos junto do lar,
Ninguém pode, todavia:
- Para trás jamais há via!
Passarei
Passarei por um mendigo
Que me pedirá uma esmola.
Talvez lha dê e além sigo.
Porém, se bêbedo a imola,
Vou em frente e não lhe ligo,
Ouvindo-lhe o insulto insano
Sem que ele me cause dano:
- É a comunicar comigo.
Atinjo
Quando atinjo um vilarejo
Já, de velho, conhecido,
Vou entrar por onde eu vejo
Que nunca trilhado há sido.
Vou sorrir aos habitantes
Que cuidam que estarei louco:
“A guerra mudou o dantes
Neste que de homem tem pouco.”
Eu rio-me da toleima:
“Podem meu corpo acabar
Que meu íntimo em mim teima,
Ninguém mo destrói a par.”
Pude
Quando olho a pilha de coisas
Que não pude pôr em ordem,
Logo leio nestas loisas
Quantos passados me acordem.
Acabo por descobrir
Minha história em frente a ir.
Tudo ganha vida sua,
Contando histórias curiosas,
O antanho o porvir acua
Por vias mui saborosas.
Tanta via percorrida,
Entrada tanta e saída!
Sorrirei
Sorrirei sem culpa,
Rir não é pecado.
A alegria inculpa
Só quem é danado.
Evito sofrer,
Que muito se ilude
Quem a dor quiser
Cuidar que é virtude.
Queixar-me da vida
Porque é tudo igual,
Não tenho a medida
Que mude o sinal?!
Não me queixarei.
O primeiro dia
Hoje viverei
A fruir-lhe a magia.
E descobrirei
O que nem sabia
Sequer que existia...
- Hoje aqui sou rei!
Finde
Que eu finde sempre admirado
Com os meus mais simples gestos,
Como a estranhos ter falado
Sem reserva nos aprestos!
Com as emoções frequentes,
Como a do toque da areia
Na praia, por entre as gentes,
Ao vazar da maré cheia!
Com o momento mais terno,
Ao contemplar minha amada
Sonhando a fímbria do eterno
À minha beira deitada!
Sexo
Se apenas no sexo se unem
Só então se unem no prazer,
Da magia se desunem
Da maravilha que houver.
Relaxamento e tensão
Podem, contudo, andar juntos,
A dor e a alegria então
Viverão, são mais que assuntos.
Com coragem, sem palpites,
Ambos transporão limites.
Como é que a contradição
Ambos juntos solverão?
Cada, consigo em refrega,
Só tem um trilho: o da entrega.
É que na entrega o que li
É isto: “Confio em ti.”
Aqui nem só corpos junto,
Também almas, também almas...
E, com palmas ou sem palmas,
Mais e mais somos conjunto.
Tenso
Quando é dar e receber
Com igual intensidade,
O sexo tenso irá ser
E o corpo inteiro, em verdade,
Como a corda do violino
Pronta ali a ser vibrada.
O arco, porém, clandestino,
É a mente a ser relaxada.
Mas o guia do processo
É o instinto em fundo excesso.
Corpo e alma então se ligam
E uma divina energia
Se espalha no que antes brigam,
Não só na erótica via:
Cada fio de cabelo,
Cada recanto de pele
Emana de luz um elo
Que maravilhoso impele.
Os dois formam um só rio
Que corta um comum navio.
Tudo
No amor tudo é permitido
Quando por todos aceite,
Desde o conjugal vivido
Ao filial que eu ajeite,
Ao fraternal que supere
O cão e gato que impere...
O mesmo é com os amigos
E os vizinhos nos abrigos.
Até com a humanidade
Só o consenso é que persuade.
Entrega
No par, se um se entrega inteiro
E o outro responde igual,
Da vergonha o atoleiro
Se evapora, no final,
E apenas curiosidade
De quem somos nos invade,
Explorando tudo aquilo
De que não sei o sigilo,
O que em mim existiria
E eu nem sequer o sabia.
Amante
O verdadeiro amante pode entrar
No jardim da beleza sem ter medo
De ser de alguém julgado a condenar.
Corpos e almas não são dois em segredo,
Mas uma única fonte já erigida
Jorrando a verdadeira água da vida.
As estrelas contemplam corpos nus
Que doravante não terão vergonha.
As pombas, arrulhando gritos crus,
Imitam o que amor ali componha.
A selva se aproxima com cautela:
Mais selvagem do amor é a vida bela.
Tudo baixa a cabeça com respeito,
Submissão ao que for do amor trejeito.
Até o tempo ali deixa de existir:
À terra do prazer do amor ao ir,
Quando do vero amor nasço num grito,
Tudo é já uma semente do Infinito.
Sós
Nascemos sós e sós um dia morreremos,
Porém, enquanto aqui vivemos, de aceitar
Glorificar a fé nos outros todos temos:
Comunidade é a vida nossa a se amparar.
Capacidade ela nos deu de sobrevida,
Já era assim no tempo antigo das cavernas
E assim também eras além, nunca delida,
Nunca, até hoje, com conquistas mais supernas.
Os que cresceram e aprenderam já contigo
Respeitarás, tal como aqueles que ensinaram.
Chegará o dia de contar, da idade a abrigo,
A tua história aos que entretanto germinaram.
E continua a comunhão sempre a existir
E a tradição a se manter como convier.
Quem não partilha com os mais o que é de rir
E do desânimo o momento que ocorrer
Nunca conhece dele mesmo a qualidade
Nem o limite que a pegada então lhe invade.
Alerta
Mantém-te alerta ao perigo
Que ronda a comunidade:
Como indivíduo prossigo
O agir comum que me invade,
Consagro limitações,
Os preconceitos e medos.
É um preço alto que te impões:
Ser aceite sem ter credos.
Terás de agradar a todos
Para ser bem acolhido.
Isto de amor não são modos
Pelos mais com que hás vivido.
E é desamor por ti mesmo.
Respeitado, amado é quem
Se respeita em tudo, a esmo,
Não quem a si se não tem.
Não te vás tu conformar,
Portanto, com toda a gente.
De todos é que, em lugar,
Perdes o respeito à frente.
Procura
Procura os teus aliados,
Amigos entre os que são
Convictos do que farão,
De quem são nos passos dados.
Não quem pensar como tu,
Mas quem pensar diferente,
Aquele que segue em frente
Sem divergir ser tabu.
É bom não te convencer
De a razão ser de teu lado.
Se, apesar disto, abraçado
O tens, é amigo a valer.
Faces
Sempre a amizade é um pendor
Das muitas faces do amor.
Não se deixa o amor varrer
Das opiniões que houver.
Quer incondicionalmente
O companheiro, é presente
E cada um lavra a leira
Então à sua maneira.
Doutrem
Quem é bom não finda à espera
Doutrem para decidir
Qual o rumo de seguir,
Escolhe o norte, pondera
Sempre à medida que agir,
Mesmo sabendo, acertado,
Que pode ser arriscado.
É livre para mudar
De rumo sempre que a vida
Lho vier a exigir.
Novos trilhos desbravar
Irá, pois, nesta medida,
Arroteando o porvir..
Vai a aventura contar
E enriquecer desta teia
Toda a cidade e aldeia.
Se seguiram pela estrada
Perigosa, ao fim errada,
Nunca a ti te gritarão:
“Não vás tu por aí, não!”
Limitam-se a constatar:
“Segui o trilho de errar.”
Respeitam-te a liberdade
Como, em reciprocidade,
Tu a deles a respeitas.
- Eis de amigos as receitas.
Evita
Evita quem a teu lado
Só estiver pela tristeza,
A fingir-te confortado.
A si dirá: “Que beleza!
Sou mais sábio, sou mais forte,
Nunca iria deste ao norte.”
Mantém-te ao lado de quem
Curte a teu lado a alegria,
Ciúme, inveja não tem,
E é só feliz da magia
Que o alegra de raiz
De te ver a ti feliz.
Os que se julgam mais fortes
Evita, que, de verdade,
Escondem, nestes transportes,
A própria fragilidade.
A este pau de dois bicos
Quem se junta sofre os picos.
Junta-te aos que vulneráveis
Não temerem nunca ser.
Confiam neles, são fiáveis,
Sabem que todo e quenquer
Baqueia. Fragilidade?
Não, prova de humanidade.
Evita os que falam muito,
Propaganda antes de agir,
Que um passo não dão gratuito
Sem certeza de atingir
Que o passo que houverem dado
Será muito respeitado.
Junta-te a quem nunca diz
Quando cometeste um erro:
“Doutro jeito é o bom cariz.”
Quem nunca trepou ao cerro,
Então nunca pode estar
Em situação de julgar.
Evita o que busca o amigo
Por estatuto social,
A abrir portas que consigo
De abrir nem davam sinal.
São sanguessugas no abraço,
Chupam-te o sangue no laço.
Junta-te a quem tenta abrir,
Único, a porta importante:
Teu coração a bulir.
Nunca te procura adiante
Sem o teu consentimento
Nem te apunhala no intento.
Findei
Evita aqueles que dizem:
“Acabou, findei aqui.”
Tão mal a vida ajuízem
Que não têm alibi:
Vida e morte não têm fim,
Como é que eles são assim?!
Vida e morte, na verdade,
São degraus da Eternidade.
Discutindo
Evita os que se reúnem
Discutindo seriamente
Que trilhos os povos unem,
Com que escolha irão em frente:
Ante os outros brilharão,
Sabedoria a tostão.
Não entendem que ninguém
Logra controlar a queda
Nem dum cabelo que tem.
Enquadrar é bom, que veda,
Mas de janelas abertas
Do imprevisto às descobertas.
Junta-te ao que conta histórias,
Desfruta da vida alegre,
De olhar rindo de mil glórias.
É quem contagia, integre,
Descobre sempre um caminho
Onde só o erro adivinho.
Junta-te aos que farão luz
De amor se manifestar
Sem restringir, que o reduz,
Recompensas sem buscar.
Sem do medo ser contidos
De ser incompreendidos.
Elegância
A elegância é confundida
De epidérmica aparência.
Ora, é falsa esta evidência.
Uma frase aqui ouvida
Pode ser muito elegante
E outra ferir num instante.
Ambas serão sempre escritas,
Contudo, das mesmas letras.
Na elegante a flor penetras
Mesmo entre as ervas malditas,
Corre a gazela elegante,
Mesmo ao leão em fuga instante...
A elegância qualidade
É mais do que exterior,
É de alma um fugaz palor
Que no visível me agrade.
Na paixão mais turbulenta,
Ela ao fim inda acalenta,
Não deixa que o vero laço
Duma relação se quebre.
Não é roupa que celebre,
Mas de como a uso um traço.
Não é o punho duma espada
Mas a guerra terminada.
Supérfluo
O supérfluo descartado
Será elegância atingida,
Simplicidade assumida
Num único concentrado.
Quanto mais sóbria a postura,
Mais bela se então apura.
Que é que era a simplicidade?
É encontrar na percorrida
Via que mais nos agrade
Valores veros de vida.
Brancura de neve é cor
Única a tão linda a pôr.
Belo o deserto parece
De ser só pedras e areia.
Se me aproximo, então cheia
A vista logo aparece
De variedade tanta
Que a qualidade me espanta.
O simples extraordinário,
Afinal, se me revela.
Permite que cada estrela
Escondida no sacrário
Se manifeste, por fim,
Com emoção, dentro em mim.
Achega
Quanto mais o coração
Se achega à simplicidade
Mais amar sem restrição
Vai, sem medo da verdade.
Quanto mais amar sem medo,
Mais capaz de demonstrar
A elegância onde sucedo,
Em cada gesto a aflorar.
Ganhar
Há quem trabalhe só de obrigação,
Para ganhar o pão de cada dia.
Vendem lá o tempo que ali haja à mão,
O qual de volta nenhum mais teria.
Correm a vida inteira a entressonhar
Quando é que poderão vir descansar.
Quando isto chega já serão tão velhos
Que nem desfrutam o que a vida oferta.
Nunca assumir irão nos seus artelhos
Responsabilidade de obra certa.
Dirão, tal como à chuva quem se molha:
“É para mim fatal, não tenho escolha.”
Trabalho
Há quem trabalhe por ganhar a vida
Mas com amor, dedicação aos mais.
É uma oferenda feita já na ermida
Da vida à conta, a que bem pouco dais:
Duas cozinhas com igual ementa
Diversas são se amor ou não fermenta.
O amor não pode nunca ser lá visto
Nem pode sê-lo na servil balança.
Na diferença que em produto alisto
Acaso ao vê-lo nem a gente o alcança.
O que das horas fizer esta prenda
É compensado, rende sempre a renda:
Quão mais partilha o seu afecto, mais
O seu afecto multiplica em torno,
Do Cosmos mesmo as danças siderais
Da criação partilha no amplo forno.
Todo o indivíduo ao fim votado ao mesmo,
Serão a dança sideral a esmo.
Alguns
Alguns dirão: “Eu corrigir, ao ir,
Não poderei o que estiver errado.
Uma injustiça como então punir?”
Outros dirão:” Com meu suor regado
Será meu campo, de louvar a forma
Ao Criador que aqui me deu legado.”
Mas o demónio voz de mal conforma:
“Vais carregar o pedregulho ao topo
Desta montanha todo o tempo, é a norma.
Quando lá chegas, atingido o escopo,
Logo escorrega da ladeira abaixo.”
E quem o crer dirá, partindo o copo:
“Não tem a vida mais sentido, que acho
Que é repetir perene a mesma freima.”
Quem o não crer, diverso ergue outro facho:
“A amar a pedra passarei, na teima
De a carregar até do monte ao pico.
Viver-lhe ao lado então é prenda e dei-ma!”
Esta oferenda é uma oração. E fico
Já não ao frio mas do quente à queima
Do Amor Infindo a que eu então me aplico.
Sorte
A sorte injusta foi comigo então:
Enquanto alguns o sonho já palmilham,
Eu arroteio meramente o chão,
Ganho o sustento enquanto os mais rebrilham?
Porém a sorte com ninguém é injusta.
Amo ou odeio: sou da escolha a custa.
Quando eu amar, encontro em meu cotio
Tanta alegria como quem partiu
Do sonho em busca. Conhecer ninguém
Pode a importância ou que grandeza tem.
Eis o mistério da oferenda bela:
Ela é missão colhida em minha estrela,
A luz ao fundo que ao meu imo advém,
E nós teremos de fiar-nos dela.
Lavrador
Pode o lavrador plantar,
Não pode ordenar ao sol:
“Esta manhã vais brilhar.”
Nem à nuvem que além bole:
“Vem lá chover esta tarde!”
Ninguém liga a tal alarde.
Tem de operar o preciso:
Arar o campo, plantar
A sementeira com siso,
Paciência cultivar
E muita contemplação,
Entrega ao que os fados são.
Cruza acaso o desespero,
Vendo a colheita perdida
E julga que o labor mero
Foi, em vão, freima ferida...
Quem parte em busca dos sonhos
Também tem dias medonhos.
Morre
O poeta morre de fome
Se o pastor não existir.
E o pastor nem sequer come
Se o poema não bulir
Com o coração jucundo
Com que pastoreia o mundo.
A oferenda mútua parte
Do mútuo amor partilhado:
Os mais adoram amar-te
E amam-te por todo o lado.
Tanto é o amor que me impele
Que, às tantas, nem dou por ele!
Abre-se
A quem bate abre-se a porta,
Quem pede irá receber,
Quem consolo quer se exorta...
- Isto um dia há-de ocorrer!
Se não quando aqui à espera,
Tarde ou cedo colho o fruto
Da generosa quimera
Que partilho em meu conduto.
Milagre
Milagre é aquilo que vai
Contra as leis da natureza,
Um bem que do céu me cai
Quando uma crise me lesa,
Curas, visões, impossíveis
Encontros de acaso incríveis,
Intervenção no momento
Em que minha morte enfrento.
É, porém, mais fundo que isto:
Quando o coração revisto
Do mais incrível amor,
É o que nele mo vem pôr.
Aí sinto reverência
Pela graça da existência.
Conquistas
O milagre é cada dia,
Não repare embora nele,
Que a mente apenas veria
Feitos e conquistas dele.
Ocupado em demasia
No que o cotio atropele,
Nem a forma saberia
Como o caminho a que impele
Ele me alterou inteiro.
E assim nem dele me abeiro.
Quando sós e deprimidos
É olhar tudo em derredor:
Há verdura nos sentidos
E as estrelas, ao sol-pôr,
Abrem do mundo as janelas,
Aves cantam na lonjura
E uma criança, par delas,
Canta uma balada pura...
- Tudo, pois, que me rodeia
É um milagre de mão cheia.
Logremos
Logremos nós entender
Que há ladeiras importantes
A descobrir e colher
Sem ajuda implicar antes!
E que então desamparados
Não nos sintamos jamais,
Que Deus, por todos os lados,
Do mundo nos dá os panais.
E que pronto a interferir
Anda sempre (enquanto eu cismo)
Se o meu pé for a cair
Perigoso pelo abismo.
Horas
Todas as horas do dia
Que devia agradecer
O ansioso mudaria
Em maldição a ocorrer.
Quer o tempo mui depressa,
Ainda sem entender
Que então rápida, em tal pressa,
Por igual a morte o quer.
Para afastar a ansiedade
Todos buscam enganosos
Carreiros que, de verdade,
Os deixam mais ansiosos.
A mãe que aguardar o filho
Que tarde retorna ao lar
Vai logo o pior sarilho
Desatar a imaginar.
Com a ansiedade o convívio
Apenas a bem geri-la
É que nos trará o alívio
Que o tempo ao longe perfila.
Amada
A minha amada partiu,
Procurei-a na cidade,
Não a encontrei, já sumiu.
Ai que ansiedade me invade!
A cada esquina que cruzo,
A cada um que pergunto,
Sem notícias, que deduzo?
É vítima de que assunto?
Uma ansiedade normal
Dum amor forte e sincero
Transmudo assim no fanal
Dum infindo desespero.
Trabalhador
O trabalhador que espera
O fruto do seu trabalho
Noutras freimas logo opera,
Nova espera em novo galho?
Ânsia dum devém de muitos
E ele já não logra olhar
Nem o céu de astros gratuitos,
Nem as estrelas, a par,
Nem, a brincar, as crianças,
Da infância a pular as danças.
Escravo
Todo o escravo de ansiedade
Deixa de viver a vida,
O pior espreita à grade
Da prisão ali erguida.
Vai acompanhar boatos
E queixar-se de que o dia
Nunca mais acaba os actos
Que frustram o que queria.
É agressivo com amigos,
Com o lar, os empregados...
Comem mal pelos pascigos:
Ou glutões ou enfareados.
E de noite na almofada
Deitam a mente a esvair,
Todavia finda em nada,
Nunca lograrão dormir.
Ânsias
Quando das ânsias o véu
Não permite ver mais nada
Com olhos de corpo, o céu,
Só com os de alma em jornada.
E estes, turvos, não alcançam
Porque acaso não descansam.
Instala-se então o pior
Dos inimigos em mim:
A obsessão. E dispor
De mim irá logo assim.
Domina-me e meu destino
É buscar nadas sem tino.
A alegria de viver
Vai pertencer-lhe também.
Paz não tornarei a ter,
Que entusiasmo não me vem.
A obsessão o lugar
Acabou de lhe ocupar.
Espalho o medo no mundo,
Sempre em mim apavorado,
E, quão mais dele me inundo,
Sem porquê mais me hei finado.
É findar cheio de medo
Porque a medo mais eu cedo.
Meu labor era oferenda,
Hoje além vou dos limites.
Dizem-me exemplo que renda
Mas se enganam nos palpites.
Afasto-me ali de todos:
Dos meus, de mim e sem bodos.
Trabalho a mais, para não
Conseguir de vez pensar.
Para além da conta, então,
De viver irei deixar.
Mesmo o amor que era divino
Pertence hoje a tal destino.
Todos a quem eu amar
Se se afastam um momento,
Levam-me logo a pensar:
Vai-se embora como o vento,
Procura longes sinais,
Não volta atrás nunca mais.
Até meu filho é pertença
Desta ansiedade maldita.
Mil cuidados são a avença
Inútil que me concita
A prestar-lhe, contra a aposta
Da aventura de que gosta.
Eis o que o fará sofrer
De algo que me desagrade,
A culpar-se de não ter
Correspondido ao que me há-de
Pôr aqui a esperar dele
E que não sou eu nem ele.
Parte
Sempre alguma ansiedade
Faz parte de nossa vida.
Se deixas, ela te invade,
Controla tudo em seguida.
Quando a tens demasiado,
De frente olha, não de lado.
Não te preocupes já
Com o dia de amanhã,
É que ali já Deus está
À espera desde manhã,
A te dar as boas-vindas
Para mais paisagens lindas.
Se ânsias tentam convencer-te
A te ocupar de mil freimas,
Produtivo antes te alerte
Ver de estrelas as mil teimas,
A inspirar-te com o orvalho
Que fecunde teu trabalho.
Se te ameaçam com a fome,
Diz do fundo: “Nem de pão
Apenas quem o consome
Viverá de pés no chão,
Mas da palavra infinita
Que em mim mais céu me concita.”
Se afirmam que teu amor
Não retorna à tua vida,
Diz que ao gado anda a propor
No pasto a melhor comida.
Vai voltar e velarás
Pelo sono então em paz.
Se for que teu filho não
Respeita o amor que lhe é dado:
Cautela a mais coração
Destrói do imo ao passo dado.
Ora, viver é coragem
Que é de amor o acto em viagem.
Ouvimos
Ouvimos desde crianças:
“O que quiseres viver
É inviável, nunca alcanças!”
E, dos anos ao correr,
Acumulamos areias
De medos pelas ameias,
Mil culpas e preconceitos.
Temos de nos livrar disto
Doravante em quaisquer pleitos.
De quem amar não desisto,
Que, se ama, quer-me feliz
E então quer o que eu lá quis.
Os dias que virão cheios
Hão-de ser de romantismo:
Sente o vento em teus anseios,
Voa por cima do abismo
E alegra-te à liberdade
Da brisa que então te invade.
Mas não te esqueça a viagem
Longa que tens pela frente,
Não te inebrie a paisagem
A pôr-te por fim demente.
Se demais, podes cair
E teu cavalo sumir.
Atento
Quando tudo anda a dar certo,
O sonho mesmo ao alcance,
Mais atende ao encoberto
Que houver por detrás do lance.
Mesmo, mesmo a conseguir,
Culpa infinda irás sentir.
Vês-te prestes a chegar
Onde os mais não conseguiram
Pôr os pés nem a sonhar.
Não mereces que se firam
Quando a te entregar a vida
Andar tudo sem medida.
Esqueces que superaste
Tudo aquilo que sofreste
E da renúncia o desgaste...
Da culpa em ti que te investe,
Acabas por destruir
O que dói tanto a erigir.
É um paredão perigoso
Tão mais quanto tem em vista
Dum santo fingido o gozo:
Renunciar à conquista.
Mas quem é digno da vinha
Sabe que a não tem sozinha.
Respeita, portanto, a mão
Que para ali o levou,
Secreta no coração,
E que atento ele escutou.
É digno porque honra os passos
De quem nele imprime os traços.
Vaso
Cada vaso confiado
À lealdade é diverso,
Como é diversificado
Cada um, na frente e verso,
Como uma gota de chuva,
Como a pedra da montanha,
Como mesmo um bago de uva
De nenhum outro o ser ganha.
Às vezes, a prateleira,
Dum defeito inesperado,
Desprende-se e cai inteira:
A lealdade há falhado.
Então dirá para si
O dono do prejuízo:
- Amor e tempo investi,
Fui traído, mas que aviso!
A loja da lealdade
Vende e parte, solitário.
Nem sequer em quem lhe agrade
Confia, que o mundo é vário.
Há lealdades destruídas
Mas o melhor a fazer
É varrer cacos de vidas,
Tudo ao lixo a devolver.
E, a seguir, seguir em frente:
Outras terras, outra gente!
Desprende-se
Da lealdade a prateleira
Desprende-se muitas vezes
Dos homens além da jeira:
São terramotos soezes,
A guerra que a nós se abeira,
Ou tu que nem vês que leses
De ir à loja sem peneira
E logo quebres um vaso
Apenas por mero acaso...
Culpam-se então mutuamente
Do desastre que ocorrer:
“Devia alguém ter em mente
Que isto pode acontecer...”,
“Se eu, responsável, presente
Fora aqui, já nem sequer
Hoje este mal tinha à frente.”
E tudo é uma falsidade
Porque a verdade verdade
É que do tempo na areia
Todos vivemos cá presos
E a ninguém sequer ameia
Qualquer controlo. Nem coesos
Acendemos o chamiço
De poder dominar isso.
Prateleira
Da lealdade traída
A prateleira tombada
O tempo, logo em seguida,
A repõe lá reparada.
E qualquer vaso partido
É para o lixo varrido.
Fica então lugar vazio
Na reposta prateleira.
O traído logo o fio
Vê de subir à ladeira:
“Vou recobrir de obras de arte
Toda aquela nova parte.”
A tragédia ocasião
Deu-lhe para aproveitá-la.
Irá descobrir então
Como enfeitar nova gala
Com tudo o que nem sabia
Sequer até que existia.
Interior
De nosso interior a loja
De vasos de porcelana
É bela, que ali aloja
Originais, não engana,
Peças únicas à vista
De harmonia em nós que exista.
E tudo o que em mim houver
Não pode de mim sair
Por um destaque qualquer,
Que então finda a se partir.
Harmónica exposição
Só no todo é vista então.
Assim são homens, mulheres,
Tribos, povos, continentes,
Árvores, estrelas, seres
Ao Cosmos já pertinentes.
De íntimo assim preservado,
Sou mais que eu, sou todo o lado.
Compreendo
Com o todo em comunhão
Quando compreendo que existo,
Poderei sentar-me então
Com meu vizinho benquisto,
Ouvir-lhe o que quer dizer,
Contar-lhe o que ouvir quiser.
Não tenta nenhum dos dois
Impor as próprias ideias
Ao outro vizinho, pois.
Qualquer divisão é a meias,
Que por trás da divisão
O que existe é comunhão.
Todos são comunidade,
Não há ruas despovoadas
Mas a avenida que invade
Lonjuras que, assim atadas,
Repararão qualquer dano
Que nos fira desumano.
Creia
Um sábio quando quiser
O inimigo enfraquecer
Faz com que creia que é forte.
O inimigo, desta sorte,
Na armadilha cai um dia:
Então outro desafia.
E findará, desvalido,
Por ser enfim destruído.
Tirar
Um sábio que doutrem quer
Tirar o que possuir,
De presentes vai cobrir
Fazendas que ele tiver.
Tem este de olhar por tanto
Que de vista perde o resto,
Ocupado pelo apresto
De zelar de canto a canto.
Saltita por todo o lado,
Nem vê que anda a ser levado.
Plano
O sábio, se quiser ver
O plano dum adversário,
Finge um ataque qualquer,
Que logo a se defender
O força, em gesto primário,
Que todos vivem com medo,
Na paranóia geral
De que ninguém o meu dedo
Prende de amor com o credo,
Na braveza universal.
O adversário, de inseguro,
Reage violentamente
À provocação que apuro.
E as armas, pelo seguro,
Logo me expõe pela frente.
O sábio finda a saber
Os pontos fortes e fracos
Do inimigo que tiver.
Então irá resolver
Quando tudo pôr em cacos.
Ódio
Quando for prejudicado,
Devo perguntar-me a mim:
De ódio o coração inchado,
Devo-me arrastar, pesado,
A mim preso sempre assim?
Não é melhor lançar mão
Da qualidade do amor
Que levar vai ao perdão?
A ofensa o calor, então,
Esfria, ao pensar melhor.
Se o perdão se manifesta,
Aquele que me ofendeu
Vê-se pequeno e que resta
De reconciliar-se a fresta
E em leal se converter.
Sério
Quem ama a sério não diz:
“Tens de andar sempre a meu lado,
Tenho de cuidar de ti.
Somos leais de raiz
E tal sempre é o nosso fado
Rumo ao porvir que entrevi.”
Antes é quem entendeu
Que só pode lealdade
Haver onde há liberdade.
Sem medo de traição, viu
O sonho do outro, o aceita
E confiante respeita,
Porque a força que é maior
É, para ele, a do amor.
Vero
O vero amigo não diz:
“Magoaste-me, estou triste.”
Antes: “Eu não sei que fiz,
Que tu tanto me feriste.
Nem tu saberás decerto,
Mas amanhã, é o mais certo,
Sei que irei contar contigo
Para ajuda que requeira.
Não fico triste, ao abrigo
Vivo sempre à tua beira.”
O amigo entende: “És leal,
Separas o bem do mal.
Não há nada de pior
Do que aquele que confunde
Lealdade com um ror
De misturas, o que inunde
De erros, traições e feridas
As amizades hauridas.”
Armas
De armas a mais destrutiva
Não é bomba nem canhão
Que ao corpo tiram a vida,
Derribam a construção.
Mais destrutiva de todas
É a palavra e dela as codas.
Pode arruinar uma vida
E de sangue sem vestígios.
Não cicatriza a ferida
Nunca dela nos fastígios.
Da boca é de ser senhor
Quem dela escravo não for.
E nunca entrar em combate,
Que é campo sem vencedor.
Se o vil com termos te bate,
Não rebaixes teu valor,
Senão vais tombar nas trevas
E é aquele que então elevas.
Perdida
A lealdade é uma pérola
Perdida entre grãos de areia
Que só vai ver quem da mérula
Decifra o canto que ameia.
O semeador de discórdia
Cruza ali, dele o pé morde-a,
Mas ele não verá nunca
Aquela pequena jóia
Que unidos tem os que junca,
No mar da vida, uma bóia.
Nunca a lealdade é imposta
Por força, medo ou na aposta
De qualquer insegurança
Ou pela intimidação.
É uma escolha só que alcança
O de forte coração
Com coragem de fazer
Aos mais o que lhes convier.
Cuidado
Cuidado com a lesão
Que a ti próprio vais causar
Se deixas um coração
Cobarde e vil penetrar
Em teu mundo. Consumado,
Ninguém mais será culpado:
Foi-lhe a porta escancarada
Pelo dono da morada.
Caluniador
Caluniador, quão mais frágil,
Mais perigoso em acção.
Invulnerável então
Trata de ser e bem ágil
Contra os espíritos fracos
Que não se erguem contra o norte
Que os revendeu a patacos
A algum espírito forte.
Quem se não precatar dele
Larga-lhe na mão a pele.
Enfrenta
Se alguém te enfrenta por mor
De ideias ou de ideais
Achega-te sem temor,
Se é de acolher luzes tais.
A vida inteira é conflito
E às vezes precisaria
De alguém a o mostrar convicto
A todos à luz do dia.
Se é diálogo de surdos,
Então não vás, são chafurdos.
Lutes
Não lutes para provar
Que estás certo ou para impor
Ideias ou ideais.
O confronto ao aceitar
É para limpo te pôr:
Mente, vontade, mãos leais...
Do diálogo, ao findar,
Ambos sairão vencedores,
Os limites ao testar
E quão hábeis são mentores.
Mesmo que um cante: “Venci!”
E o outro, triste: “Falhei...”,
Ambos respeitam ali
A coragem que foi lei
E logo tempos virão
Em que avancem mão na mão.
Mesmo que, cegos dos danos,
Demorem mil e mil anos.
Limpa
Quando alguém aparecer
Apenas a provocar,
Limpa o pó que o pé tiver,
Toca em frente a caminhar!
Fala só com quem merece,
Não com quem usa artimanhas
A alongar guerra que esquece
Que findou. E assim a ganhas.
Importante
A mais importante guerra
Não é a do íntimo elevado
Que acolhe o que dite o fado
E o que dele se lhe aferra.
É a que o campo de batalha
Tiver da interioridade:
Aí bem e mal trabalha,
Amor e medo, quanto há-de
Coragem e cobardia
Revelar à luz do dia.
Regra
Os fortes são generosos
Sempre, em regra, na vitória.
Os fracos são tenebrosos,
Sempre à mão a palmatória,
E juntam-se em alcateia
A atacar os que perderam.
Ao mais frágil sempre ameia
O canino que tiveram.
Quando isto ocorrer contigo,
Pergunta, doutrem na pele,
Se gosta de, em teu abrigo,
Ter de vítima o papel.
Se a resposta for um sim,
Tê-lo-ás o resto da vida:
Presa fácil és assim
Se a coragem te é exigida.
Teu olhar de derrotado
É mais forte que a palavra
De vencedor simulado,
Todos verão tua lavra.
Se a resposta é não, resiste.
Melhor é reagir agora
Com as feridas que liste
Prontas a curar na hora.
Leve tempo e paciência
Embora tal resistência.
Tanto
Passarás noites em claro
A cuidar que não mereces
Tanto, tanto desamparo.
É injusto o mundo, que as preces
Te ignora, não te acolhendo
Como esperas te ir lá lendo.
Às vezes é envergonhado
Da humilhação que sofreste
Ante os colegas ao lado,
Ante quem amas: que preste
Nada em ti há que resulta,
O mundo inteiro te insulta?
Resiste, que então as hienas
Findarão por afastar-se,
Noutras vítimas as cenas
Focarão doutro disfarce.
Que estas então se convençam
Que é deste modo que vençam.
Rabino
Um rabino ancião, quando os judeus
Iam ser maltratados, acorria
À selva e de gravetos acendia
A fogueira sagrada pelos seus.
Oração especial então erguia
A Deus, a ver se o povo protegia.
E Deus, que nem precisa quem o sagre,
Logo operava então algum milagre.
Mais tarde, o seu discípulo seguia
O mesmo trilho na floresta igual:
“Deus do Universo, a reza especial
Eu sei mas não o lume que acendia!”
E pedia a Javé que o escutara,
Que o povo já lançavam numa algara.
E Deus, que nem precisa quem o sagre,
Logo operava então algum milagre.
A geração após, outro rabino,
Quando as perseguições via do povo,
À floresta acorria, num renovo:
“Ignoro qual o lume clandestino,
Nem sei qual é a oração, só o sítio lembro.
Ajuda-nos, Senhor, membro após membro.”
E Deus, que nem precisa quem o sagre,
Logo operava então algum milagre.
Meio século após, trôpego e gasto,
Reza o rabino: “Eu atear não sei,
Nem a oração, nem o lugar lembrei...
Conto esta história no desejo fasto
De que me escute Deus e que me ajude,
Mas não por mim, dos céus pela virtude.”
Como o milagre ainda acontecia,
Contem todos tal lenda cada dia.
Pedir-lhe
Um homem bate à tenda dum beduíno
A pedir-lhe fremente um grão favor:
“Preciso urgentemente do valor
De cinco mil dinares. Que destino!
Será que poderei contar contigo
Para saldar a dívida, ó amigo?”
Logo este e a mulher juntam quanto têm,
Todavia não é o suficiente.
Acorrem aos vizinhos, numa frente,
Até que o requerido ao lote advém.
Quando o amigo, por fim, se foi embora,
A mulher olha que o marido chora.
“Agora endividados com vizinhos,
Temes não conseguir vir a pagar?”
“Não. Este amigo é dos que são sem par
E eu não sabia de tão maus cadinhos
A aperreá-lo ali. Só me lembrei
Quando à porta bateu, tão mau me sei!”
Teremos de ajudar qualquer irmão
Antes de que ele tenha precisão.
Espada
Espalha pelo mundo uma invisível
Espada que degole a intolerância
Como a incompreensão, cuja ganância
Em prol de si quer tudo divisível.
Vai até onde as pernas te aguentarem,
Passa a palavra quando já falharem.
Se alguém não te quiser lá receber,
Volta pelo caminho donde vieste.
O pó do pé sacode e da tua veste,
Que com ele não tens tempo a perder.
É que ele é condenado a repetir
O erro por gerações sempre a seguir.
Mas bem-aventurados os que ouvirem
A mensagem, que o véu irá rasgar-se
Para sempre. Do oculto o grão disfarce
Abre a fresta de ler o que sentirem:
Desde então é-lhes tudo revelado
Que aos demais findará sempre ocultado.
Aprecio
Aprecio cogumelos
Mas não os sei distinguir:
Venenosos atropelos
Quais nos virão a servir?
Fio-me na escolha e perco
Do medo as mais das molduras.
Alimentam-nos de esterco,
Conservam-nos às escuras?
Políticos cogumelos,
Deles é que temo apelos:
Se lhes dermos sinecuras,
São veneno e não há curas.
Espalha
Quando se espalha a riqueza,
Todos findamos mais ricos:
O rico, o que mais a preza,
O pobre, dela aos salpicos.
Que o pobre, comprando mais,
Mais ao rico enche os bornais.
Mas outra riqueza além
Nos reconforta também:
Sentimos alegremente
Mais equidade entre a gente.
E mais subida outra advém:
Ao partilhar, cimentamos
Mais amor, mais nos amamos.
E se for gratuita, então,
A dádiva o que contém
É um mundo novo em botão.
Problema
Problema de envelhecer
É dentro sermos os mesmos
E fora tal se não ver.
Findamos encurralados,
Na geringonça em torresmos,
Pedaços desconjuntados.
Todavia, isto após,
Ainda ali somos nós.
Medo
Temos, como os animais,
Medo do desconhecido.
Se com pessoas tratais
E o ignoto se há sentido,
É fácil findar em guerra.
Ou parvoíce igual nos ferra...
Bem melhor é se reunir,
Uns doutros melhor saber,
Medo até ninguém sentir
E em frente juntos correr.
Assim é com as crianças
E o mesmo no mundo alcanças.
Vale
De que vale uma fortuna
Se é só medo de a perder?
Que importa a bolsa que reúna
Se escassez de afecto houver?
Que importa a boa saúde
Se os que amar estão doentes
Ou se a saúde me ilude,
Me sinto morto entrementes?
E o amor de minha vida
De que vale se duvido
Que me responda à medida
E amanhã tudo é perdido?
E ser mui bem sucedido
É que faz contigo as pazes?
Como, se, tudo medido,
Detestas mesmo o que fazes?!
Nenhum
Que será mais importante,
O interior ou o exterior?
Nenhum por si vai adiante
Do outro para se lhe impor.
Quando por dentro me mudo,
Tendo por fora a mudar.
Se algo fora pica agudo,
Vou-me por dentro alertar.
Se, porém, mais me limito
A um só dos lados, então
O outro que não concito
Finda em semente sem chão.
Há séculos anda o mundo
A ver de exterioridades
Sem dedicar um segundo
Ao imo que nunca invades.
Mais e mais somos robôs
Sem de amor laços nem nós.
Ruminar
Ruminar no que ocorreu
É voltar a revivê-lo
Sabendo que já morreu,
Só que é um sepulcro sem selo.
Se for um evento bom,
Ainda bem, tem luz no tom.
Pior é se é mesmo mau:
Transpô-lo, nem mesmo a vau.
Concordar
Aceitar o que acontece
Não é concordar com isso.
Vê que o que ocorre fenece,
Discorde embora do enguiço.
Viver sem aceitação
É que é estranha condição:
Embirrar com o passado
Se não pode ser mudado?!
- Aceitá-lo e que fazer
Depois disto é que é viver.
Circo
Não aceito porque é injusto
E o que é injusto não aceito:
Se neste circo me deito,
Não me ergo mais, nem a custo.
Tenho de aceitar primeiro,
Depois trilhar meu carreiro.
É que tenho alternativa:
Competência mais confiança
Gera quem no aceite viva.
E mais confiança o que alcança
É tornar mais competente
Quem o alvor buscar em frente.
Fujo
Se tiver medo de amar,
Ou fujo de todo o amor
Ou vou noutrem agarrar
Como lapa a asfixiar
Com o abraço do terror.
O medo é mau conselheiro
De amor qualquer verdadeiro.
O amor não flui veramente
Se o medo o ferir presente.
Protegem
O medo como a ansiedade
Protegem de todo o mal.
Só que às vezes não é real
O alerta à fatalidade.
E o que saudável nos era
Em doentio então se esmera.
Saudável enquanto advém,
Dispõe-nos ao que aí vem.
Mas, enquanto doentio,
Corta-me da vida o rio.
Provém
Uma vida realizada
Provém da contribuição
A melhorar a encontrada
Vida que tiver à mão.
Se alguém ajudar alguém
A transformar sua vida,
Anda a transformar também
O mundo inteiro em seguida.
É que o mundo são pessoas
E é o que forem, más ou boas.
Moléstia
Ninguém curará ninguém,
Seja a moléstia qual for.
Ninguém o poder que tem
Chega a ser de curador.
Um curador que é que faz?
Despoleta mecanismos
Com que cada um capaz
É de trepar dos abismos.
De curar é diferente
Qualquer maleita da gente.
Buscam
Todos buscam muito ter
Para então virem a ser.
Depois vão em procissão
Toda a vida ao beija-mão.
Enchem as rotas de barcas
Só para encherem as arcas.
E serão sempre infelizes,
Que trocaram as matrizes.
Buscarão sempre ter algo
Para após poder fazer:
Então, sim, o patim galgo
Para deveras eu ser?!
Não notam o caminho assim trocado:
“Se eu quiser ter fortuna, então primeiro
Terei de ser capaz. Vou ter dinheiro
Além do que preciso acumulado.”
Terei de ser primeiro, antes de ter.
E, mais ainda, tenho que fazer,
Que a fortuna não vem cair à mão
Sem em suor pagar cada estação.
De ser, pelo fazer, a ter cheguei
- Eis do caminho certo a certa lei.
Não pára aqui, porém, a rota inteira,
Que, ao ter, terei em mãos tudo o que dar.
Em afectos, em bens vou partilhar,
Como em aprendizagens quanto queira.
Se algum amor, um lar eu quero pleno,
Terei de ser capaz de tal aceno,
Depois terei de agir a tal conforme,
Bens e atitudes em cascata enorme
Que oferto a outrem, a fruir dos laços
Gratuitos, que os afectos dão abraços.
E o mais sublime deste itinerário
É a reciprocidade que inaugura:
Ao dar gratuitamente, o que se apura
É que recebo mais que o numerário.
Ser, fazer, ter para dar
E gratuito receber
- Eis o circuito que me irá formar:
É o Infinito a fermentar-me o ser.
Perdão
O perdão tem três caminhos
De livrar o coração
De pisar torrões maninhos.
Primeiro o outro da mão
Largo para o voo à solta
Que queira ter por quinhão.
Depois, é a mim que, na volta,
Solto do que me arrependo
E em mim guardo como escolta.
Ao Universo, enfim, lendo
A mim como sendo adverso,
Perdoo, me convencendo:
Nem pró nem contra, é diverso
Em factos que irei colhendo,
Com que em paz lido e converso.
Quem, leve, aos três níveis mude
Nunca mais dentro se ilude.
Nascer
Ao nascer somos amor,
A criança é toda entrega.
Ao crescer, perco o fulgor,
A dúvida então me pega:
Será que outro rumo adrega
O meu campo pôr em flor?
Lento, pois, perco o sentido
Do que deve ser vivido.
Daí que abater barreiras,
Os muros que ergo em redor,
Seja afinal o labor
Principal de minhas leiras.
Ponho-me
Eu, quando tomar
De mim consciência,
Fico a já saber:
- Poderei mudar
Perante a evidência
Ou não o fazer.
Se me identifico
Com o mal, complico:
Se o mal continua,
Ponho-me eu a mim
No olho da rua?!
Como, como assim?...
Mui custa lidar
Com mal a inundar
(E por culpa minha)
A vida maninha!
E eu sem podar
Nem uma gavinha!
Digo
Quando digo não a isto,
Isto torna-se a razão
De tudo por que eu existo?
Então todo o mundo alisto
E lhe imponho a rejeição.
É a fórmula por que então
Nada ganho do que invisto:
Trago o que não quero à liça
E o que quero logo enguiça.
Nasci
Não nasci para aprender
Porque isto é um fito intermédio.
Nem para curar meu ser
Com dentro ou fora um remédio.
Tudo isto tem pernas mancas,
Se ali ficas, logo empancas.
Nem é para libertar
Os meus mais fundos anseios,
Mundo além a os incarnar,
Que também isto são meios.
Qual, enfim, é o fim dos fins,
Que lhe nem vejo os patins?
- Ando aqui a semear
A sementeira infinita
De meu gesto a germinar,
Por que ao Cosmos lhe compita,
De era em era, um Universo
Mais e mais em Vida terso.
Todos
Andamos a evoluir
Todos muito lentamente:
Fora, no corpo que vir,
Dentro, no que cada sente.
Demorará milhões de anos
Até ver os novos planos.
Mas durante uma só vida
Temos de ambos a medida:
Podemos todos crescer
Fora e dentro, é só querer.
E, mesmo se o não quiser,
Não pode deixar de ser...
Todos se podem trair:
São travão, vão explodir!
A viagem continua,
Queira ou não quem vai na rua.
Custe-me
Custe-me o que me custar,
É urgente me libertar
Das algemas do passado.
Quando o grilhão é pesado,
É de arrumá-lo num canto,
Perdoar-me do desencanto,
Retomar em mãos a vida,
Atirando-me à subida.
Ao mudar-me então a mim,
Mudo em redor tudo assim.
Inferno
Tenho a outrem de perdoar
O inferno que arder em mim,
Outrem seja embora o lar,
Toda a aldeia, o mundo, enfim...
E, por fim, a mim perdoo
E a Deus por me impor tal voo.
Então, leveiro, consigo
Ser do Infinito um postigo.
Provar
Há quem, na vida interior
Não mude e nunca tem cura.
Quer provar seja a quem for
Que nele daquilo o teor
Não opera nem o apura.
É crer que ao íntimo o impele
Qualquer outro que não ele.
Não entende o que é um mentor,
Julga que é doutrem senhor.
Não vê que é sempre ele mesmo
Quem vive ou se perde a esmo.
Padrões
Tenho padrões de resposta
Que repito em todo o lado.
São estruturas da aposta
De vida que houver visado.
Os conteúdos fluirão
Mas as estruturas, não.
A minha taça de vinho
Pode servir nela o chá
Ou água do ribeirinho,
Até o licor entra lá...
E toma qualquer bebida
A forma dela à partida.
Se o problema em mim é a forma
E não o conteúdo dela,
Por mais que este mude, em norma,
Nunca mudo nada nela.
Então findo prisioneiro
Da estrutura o tempo inteiro.
Como esta é mais resistente,
Tendo para aos conteúdos
Fugir, nenhum persistente.
Mas, miúdos ou graúdos,
Todos no fim configuram
As taças que os emolduram.
E repito eternamente
Tudo o que de mim me ausente.
Conteúdos
As histórias recontadas
São os conteúdos que levo
Nas cestas do imo moldadas,
Meus padrões de mais relevo.
Se as cestas andam furadas,
Não são de histórias tapadas.
Mudarei tais estruturas
Se as quero a servir seguras.
Só que irão dar muita luta:
Sou eu de mim mesmo à escuta.
Se as erigi, derrubá-las,
Porém, posso em minhas valas
E outras, no lugar delas,
Pôr a trepar às estrelas.
Nadar
Se quem tem pouco dinheiro
Muito dinheiro quer mais,
Muda o labor por inteiro
Até nadar nos nabais
E mantém-se a achar que é pouco
O dinheiro que o põe louco.
Não é o dinheiro o problema,
É o molde que o tem por tema:
Ou por trás muda a moldura
Ou finda doente sem cura.
Mesmo mudando o conteúdo,
Igual o molda, contudo:
Se é trepar na profissão,
Trepa até cair no chão...
- Ou troca o que houver por trás
Ou nunca será capaz.
Põe-me
Põe-me o mundo no caminho
Tudo quanto precisar
A subir ao patamar
De que a seguir me avizinho.
Depois cabe-me escolher
Então percorrer ou não
O trilho que em frente houver
Rumo a uma nova mansão.
É que o mundo faz a parte
Que lhe compete por nós
E compete-nos após
Triar o que cada acarte.
Fazer
Ao fazer de coitadinho,
Os demais dão-me carinho.
Finda tão gratificante
Que mais não quero adiante.
E, depois de alguma prática,
É uma resposta automática.
Nem o tenho então em mente,
Já é escolha inconsciente.
Escolho
Como escolho responsável
Se nem tiver consciência?
Antes identificável
Impera estoutra ocorrência:
É que repeti outrora
O padrão a toda a hora.
O hábito então o tomou
E a mente nem reparou.
Sou responsável da mente
Que criei inconsciente.
Pergunte
Quando a questão importante
Estiver a discutir,
Para si pergunte, instante:
É diálogo ou monólogo?
Nem se atreva a prosseguir
Se ao seu lado o seu homólogo
Não entende que é um catálogo:
Escolher, só em diálogo.
Somos
Somos o nosso melhor
Quando aqui nos apoiamos
E não quando nos fechamos,
De erros de antanho por mor.
Se ajudamos a crescer,
Em comum nos educamos,
De mão na mão nos guiamos
À redenção que vier.
Se nos pomos a caminho
Em busca do eterno ninho.
Fugir
Fugir é de fracos
E (o que mais nos fere)
É uma bomba ao sonho.
Findamos em cacos,
Sem poder quenquer
Ver do que disponho.
Findo a não dizer,
Findo por não ser.
O não dito não
Deixa de existir,
Vai findar então
Maior a bulir.
Findo nele preso,
Jamais sou coeso.
Esconder maior
Tornou meu tumor.
Vontade
Há vontade de curar
Se à cura me movimento,
Actuo a o propiciar.
Não é, pois, deixar andar,
Ancorado contra o vento
No pantanal do mau cheiro,
Sem vontade de arriscar
Antes de ver com vagar
Para onde irei primeiro.
É não enjeitar fermento
Do que é todo o madrugar
Dum mundo novo a contento.
Faltar
Quando não nos faltar nada,
Sinto-nos inda incompletos.
É a perfeição na jornada,
Julgam outros, pela estrada,
No acolhimento dos tectos.
Farsa do casal perfeito,
Somos o que sonham ser.
Será um teatro sem pleito:
Cada um, connosco a jeito,
Projecta em nós o que quer.
Buscam-nos a se agarrar
Ao incapazes de obter,
Para virem a aguentar
Aquilo a que só lograr
Vão ser capazes de ser.
Seremos
Nós seremos o casal
Que ali todos querem ser.
Tu és aquela mulher
Que cada uma, afinal,
Quer ser, no meio da lida,
E eu ponho-a desvanecida.
E eu sou o homem que os demais
Querem ser, ainda por cima
Com a mulher que sublima
Da vida as agruras reais.
Todos te querem, pois, ter
Por sua própria mulher.
E nenhum deles nem delas
Dá conta da realidade:
Nós somos da identidade
Deles próprios as janelas.
E nós noutrem tal fermento
Jogamos fútil ao vento.
Acaso
Não ser eu apresentável,
Acaso é que desleixei,
Na corrente ir-me deixei...
Deixar ir é razoável
Quando me sentir seguro
No lugar que a mim me apuro?
Não há que inseguro mais
E não há mais perigoso
Que o seguro onde aportais:
Enganou-vos o repouso.
Quem repousa em segurança
Jamais o mais longe alcança.
Olhas
Olhas para os mais,
Encontras-te neles:
Nas joeiras vais,
No toque das peles,
No que vês... Assim
Sou eu mais em mim.
O outro sabe em pleno,
Sem que o atropele,
Quando sabe o aceno
Do que virmos nele.
E ver é uma escolha
Do que quer que eu colha.
Se eu vir o perfeito
Nem vejo que é um nojo
O que é sem defeito.
Como me despojo?
De olhar longe tenho,
Senão perco o empenho.
Vejo-nos
Vejo-nos este casal
Com tudo o que pode ter,
Com tudo o que pode ser,
Todavia, pelo vale
Indo além sem atingir
Tudo o que puder sentir.
Algo de ti falta em mim,
Em ti de mim algo falta.
Como trazê-lo à ribalta
Nem o sei viável, por fim.
Como conseguir buscá-lo
Sem ver para onde abalo?
Única busca impossível
É do que nem sei que seja.
E a procura que é que almeja
Se o que busca é inconcebível?
E assim será toda a vida,
Saída atrás de saída.
Ronda-me
Não sei quem sou, quem tu és,
Muito menos quem nós somos.
Ronda-me o mistério os pés.
Diz-mo tu quando o souberes,
Não há resposta nos tomos
Nem de homens nem de mulheres.
Em que estranho nos tornámos
Nos cumes onde trepámos?
Afinal eu sou mais eu,
Tu mais tu no que é de teu.
Fora ou além destes cimos
De mim, de ti que é que vimos?
Concreto
Com o concreto aqui perto
Não logro ver o fascínio
Que da lonjura há no escrínio,
Tudo, não tarda, é um deserto.
É num convento de monge
Que findo a me escapulir:
Preciso de ter-te longe
Para perto te sentir.
Então logro discernir
A fundura do mistério
Que sobre ti tem império
Te põe mágica a bulir.
Cuidar
Cada um para seu lado,
A cuidar de sua vida,
Só para não ter cuidado
De cuidar de nós em lida.
Tudo nos serve a fugir
Do que deixámos de amar
Mas de nada irá servir:
Ao que amo como escapar?
Fico sem ti, sinto falta;
Falta, quando estás aqui...
- Não é questão de ribalta,
Só em contradição te vi.
Prazer
O prazer chegou ao fim
E é o vazio, no final,
No leito de meu confim.
O prazer, de parco encontro,
De pouco serve, afinal,
Não nos juntou um ao outro.
Tem de ter outra matriz
Ou frustra-nos de raiz.
Alturas
Alturas há para ser
O que nos apetecer.
Do depois já sem cuidar
Nem do que iremos sentir.
É do sim ou não falar
Do fundo de mim que ouvir.
Da fundura que é guardada
Há muito tempo calada.
Medo
Altura de se atirar
Sem ter medo das alturas.
De altura certa cuidar?
Certa é aquela aonde apuras
Obrar a obra acertada.
Se operas o que for certo,
Eis a hora a tal azada.
Não é tarde nem é cedo,
Não está longe nem perto,
Actua certo sem medo!
Última
Pior é a porta a bater
Se é a última vez que bate.
E pior ainda há-de ser
Se isto sobre mim abate
A última vez que eu vir
Aquela porta a se abrir.
Bateste a porta. Ao bater
Nem reparaste que em mim
Corre o fecho de correr
O mundo e se fecha assim.
Muda tudo, desta sorte,
Na porta de vida e morte.
Termina
Quando um amor de verdade
Termina, eu num abismo
Não caio dum cataclismo.
Antes inteiro me invade,
Vivo nele, ele sou eu,
Caio de tudo o que é meu.
E sempre a cair mais fundo,
Nunca atinjo o derradeiro.
Não há fundo verdadeiro
Se do findo amor me inundo.
Sou sem fundo uma pessoa
Por aqui vazia à toa.
Vontade
Que vontade incontrolável
De que estejas infeliz!
Quero ver-te inconsolável
Como quem perde a raiz,
Já que não sei onde estás.
(Eu no inferno e tu em paz?...)
Queria ver-te a sofrer
Como a sofrer eu estou
Dum amor a se perder
Que inda vai por onde eu vou.
Que o mundo sintas ruir
Como a ruir o ando a sentir.
Não te quero feliz, não,
Se for ser feliz sem mim,
Se for largar o meu chão,
De mim parte nunca, assim.
Amo-te e, portanto, exijo
Teu amor por igual rijo.
Não
Terei dado um não a mim,
Um não a ti ao ter dado?
Findo sem porvir assim,
Do mundo mal pendurado,
Sem a nada ir agarrado,
Do fim antes indo ao fim?
Há tanta vida estragada
Porque algum dia a palavra
Trilhou pela trilha errada,
Parte a charrua na lavra!
Que a palavra salvadora
Salve a que é exterminadora!
Palavras
Palavras para salvar
Usa-as, não para matar,
Nem para ferir de leve,
Que ainda irão magoar
Alguém que de ouvi-las teve.
Em resumo, é para amar.
Tento amar-te, de carreira,
Sempre assim desta maneira.
Sentir-te
Estou a sentir-te longe
Mesmo ao lado, aqui ao pé,
Mais moído eu, feito monge,
Que de máquina o café
Que te sirvo, posto diante,
Tão perto quão tu distante.
Sinto-te a sair de mim
Como seringa sem fim.
O amor é sempre uma droga,
Ora me salva, ora afoga.
E vicia muito mais
Que quaisquer drogas que tais.
E eu que cri sempre em medida
Na hora da despedida!
Como haver comedimento
Se é tudo envenenamento?
Será
Que será mesmo pior?
Amar e não ser amado
Ou vida deste teor:
Quem ama e amado for,
Sem condições de existir.
Não terá nenhum porvir
De modo algum nalgum lado?
Ama-me, pois, ama já,
Não vá a maldição vir lá!
Final
O final dum amor mata.
É o amor aquela corda
Que pode salvar da queda
Que na vida nos maltrata
Ou que o pescoço nos morda
A enforcar, se tal suceda.
Temos de escolher a via
Que na vida a gente avia.
Amar-te
Como posso amar-te tanto
Quando me magoas mais
Que algum dia, mesmo em pranto,
Cri haver dores que tais?
Há uma dor só de quem ama
Como só o que ama feliz
Sente do amor toda a trama
Que quem não ama não quis.
A dor maior dum amor
É a do que embora se for.
Como a maior alegria
É o que faz nascer o dia.
Quem
Quem sou eu que inda consigo
Querer quem não quer amar-me?
Humilhado, espezinhado
E só dela quero abrigo
E que inteiro me desarme,
Que haja por mim cá ficado.
Quem sou eu que continuar
A amar quero quem não quer
Nem amar nem ser amada
Por mim? Loucura sem par!
Amor-próprio que irei ter
Em tão reles empreitada?
Onde é que eu, no meio disto,
Serei eu, onde é que existo?
Tivera
Que é que ia fazer de mim
Se eu não te tivera a ti
Para a ti eu me entregar?
Sou tua pertença, enfim,
Desde que em ti me investi,
De mim só sou um avatar.
Tudo o mais, desde meu imo,
És só tu em que me arrimo.
Tu é que ao fim me permites
Usar-me a mim. Eis-nos quites.
Antigamente
Antigamente, quando ia
Para cair, eu saltava.
Agora, quando saltar
Vou, caio. Diferencia
A idade que então mostrava
Da de velho a manquejar.
Ilustra que é fantasia
Pretender, em cada dia,
Hoje aqui me eternizar.
A via da eternidade
Deveras não é da idade,
De encarar é um certo modo
A vida aqui como um todo.
Totalidade, Infinito
São irmãos gémeos no grito.
Palavras
As palavras sempre são
Aquilo que nós seremos,
Embora queiram em vão
Contrariar o que diremos.
Poderão dizer que sim
Quando quero dizer não.
Quem tal sim ouvir de mim
O não é o que entende então.
A um entendedor de casta
Qualquer palavra lhe basta.
Eu vou nela e o sentido
Nunca de vez é escondido.
Levar
O amor sempre leva e traz,
Mas é levar sem trazer
O que for amor capaz,
Que um amor que volta atrás
Nem mesmo é um amor sequer.
Amor que atrás vem no fim
É um amor muito enganado,
É bem pouco amor assim.
Olhando bem seu confim,
É já um amor acabado.
Pressa
Na doença terminal
Terei pressa de ser eu.
Por mim ninguém fará tal,
Se eu não for, ninguém venceu.
Terei de sobreviver.
Todos e todos os dias
O deveriam dizer
E fazer. Não há mais vias.
É que todos condenados
Já somos mal somos nados.
Colada
Sou daquela geração
Em que a relação quebrada
Não era trocada, não,
Era colada ao serão
E de manhã retomada.
Por isto somos felizes
Perante quantos falhados
Não recolam os narizes
No dia-a-dia quebrados.
Troca-tintas são da vida,
No fim têm-na perdida.
Morrerão na solidão:
Não aprendem a lição.
Profundo
Um amor que se constrói
A nós é que nos destrói.
E o construído mais fundo,
Mais profundo é destruído.
De súbito é uma palavra
Que em nós destrói toda a lavra.
O furacão varre o mundo
E a nós varre é o sentido.
E findamos, por aqui,
Poeira, um nada de si.
Revela
A maleita o meu limite
Revela todos os dias.
A cada luta, o palpite
Melhora o que aguardarias.
Cada conquista, chegando,
Vai longe, me acrescentando.
A doença encolhe e faz
Crescer-me na proporção,
Com igual força capaz,
Intensidade, tensão.
Viver implica limites
Ultrapassar em desquites.
O amor à vida tem vidas,
Não da doença as recaídas.
Vez
A vida é tão passageira!
Sei lá que vez derradeira
É que olharei para alguém,
Que última frase vai vir
De alguém a que queira bem
E nunca mais vou ouvir!
Cada termo é decisivo
E há tantos para escolher!
Sei lá bem qual é o mais vivo
Dos trilhos a percorrer!
A vida é escolher à frente:
- Qual é o mais conveniente?
Abraço
Um abraço é solução
Quando a bala cruza o céu
E os abraçados no chão
Se encobrem com mútuo véu:
O volume é tão pequeno
Que encoberto é do terreno.
É o que um doente sem cura
Busca infrene na ternura.
Todo o humano é um incurável:
Busca então ser amorável.
Abolir
A pior falha da vida
É abolir de todo a falha.
E o erro é tudo, em seguida,
(Mesmo a errar tudo o que calha)
Fazer para não errar.
É a falha mais singular.
Ninguém quer correr um risco,
Todos querem é o petisco.
Ao chão cairemos todos
E lá se foram os bodos!
Medo
Medo de ser diferente,
O medo de ser estranho,
Termo dito erradamente,
Errar no lugar que apanho,
Usar um talher da treta
Pela ordem incorrecta,
Não findar daquela altura
Que alguém que tenho assegura...
Somos medo. O maior medo
É de ter medo: é segredo.
Tal como se o herói fora
Quem menos temera agora.
Só quem não é mesmo herói
É que não sabe que foi
O herói sempre quem mais teme:
Quem mais supera, mais treme.
Quem teme muito, a coragem
Que nos outros escasseia
Tem de ter para a voragem
Enfrentar que em frente ameia.
O amor por coragem ruma
Ou não é coisa nenhuma.
Homenageia-o
O amor pode amar alguém
Para que outro amor apague.
Homenageia-o, porém,
É estátua que tempo além
Mantém o que o tempo trague.
Forma de um amor esquivo
Ainda, afinal, manter vivo.
Como matar algo terno
A fim de o manter eterno.
Tendemos
Tendemos a ser
Aquilo que vemos
E o que parecer
Que a ver estaremos.
Entra-nos nos olhos,
Pelas almas entra:
A dor, nos refolhos,
Até nos esventra;
Se for alegria,
Eis-nos a cantar
De noite até o dia
No alvor despontar.
Teremos
Teremos de rir
Com todo o vigor
Só para impedir
Que a lágrima, a dor
Levem a melhor
Quando o sol surgir.
O amor, no final,
Vence, radical.
Momentos
Há momentos de ilusão
A segurar pelas pontas
Para nos manter em jogo.
Quantos não ganham então,
De vez já feitas as contas,
Porque creram, desde logo,
Que o já dado por perdido
Pode inda ganho ter sido?
E depois, jogando a esmo,
Afinal ganharam mesmo!
Impossível
Há vitórias por engano:
Por um diagnóstico errado
Alguém fez subir o pano,
O impossível foi domado.
Quando alguém quiser bem mais
Do que o que pode fazer,
Findará com feitos tais
Que obtém o que não puder.
Por vezes pode falhar,
Por vezes correrá mal.
Mas quem pode antecipar
Qual a corrida que vale?
Além
Quando o amor nos aparece,
Além de qualquer renovo
Em que ele em nós transparece,
Tudo aparece de novo.
É tudo a primeira vez
Que ele nos faz ver então:
Após amar é que vês
Com amor todo o teu chão.
Eis que inesperadamente
Tudo brilha com fulgor.
Tudo é mesmo diferente
Quando é visto com amor.
Cai
Cai sem medo, meu menino,
Ou com medo, que é melhor.
Mas que o medo clandestino
Não seja o que venha impor
Que tu nunca vais cair,
Que te tolhe até bulir.
Só cai quem tenta voar
Ou, pelo menos, saltar.
O salto inicia o voo,
Tal como a corrida, o salto.
E a caminhada onde vou
É a corrida onde inda falto.
Ignora, porém, tudo isto,
Se urgente for outro visto.
Mede, pois, a consequência,
Não vá medir-te ela a essência.
Nunca
Nunca deixes de querer
Só porque doer te pode,
De abraçar por poder ser
Difícil o fim que acode,
Nem acaso de beijar
Só por poder viciar.
Vicia-te no que gostas
E então gosta sempre muito,
Vicia-te nas apostas
Que teu imo quer gratuito,
Ensina os mais ao abrigo
De tais apostas contigo.
Não controles se o controlo
Só servir para apagar,
Prefere a luz no teu colo
A vida em ti a embalar,
Prefere o trilho ao obstáculo
Mas corre até ao pináculo.
Sê o que nunca poderias
Perdoar-te se o não foras.
Não cales, se tolhe os dias
E magoa com demoras.
Não largues o que salvar-te
Pode acaso em qualquer parte.
Nunca receies pedir,
Nem exigir, nem doar.
Sem saber embora onde ir,
Vai aonde te calhar.
É que, por sorte, os caminhos
Não dão em campos maninhos.
É que eles a ti vão dar
Desde que os corras inteiro,
Desde que contigo a par,
Em tu sendo o caminheiro.
Teus passos, de ti a abrigo,
Irão dar sempre contigo.
A alegria é andar connosco,
Não com o que os outros querem
Que nós sejamos, do tosco
Aos remates que preferem.
Quando nos desalienamos,
Somos nós no que queiramos.
Então há festa na ermida
Da romaria da vida.
Peço-te
Peço-te, não abomines
A imperfeição que calhar,
A insuficiência que mines,
Fragilidade a abalar...
Entende que somos isso
E é o que nos completa o viço.
O que nos falta é que faz
Que nós sejamos completos,
Somos o que a cesta traz
Mais os vazios repletos
De sonhos e fantasias
Que ao porvir encherão dias.
Por eles farás barulho,
Faz-te ouvir, chega a gritar,
Trepa ao palco onde há gorgulho,
Desata a arregimentar!
Diz o que pensas e sentes,
Sê-o inteiro, senão mentes.
Ali serás tudo o que és
E para sempre irás ser.
Sê do irresistível pés
Da sedução, a que houver
E do prazer não desistas,
Que isto ao prazer traz mais pistas.
Em tudo busca a alegria,
Que é o melhor que a vida hauria.
Perdoa
Perdoa, que inamovível
Não sejas, irredutível,
Como um calhau inflexível!
Muda, pois, jamais hesites
Quando é hora de mudar.
Orgulho em nossos palpites
Do lodo impede escapar.
Razão? Não vale uma fava
Se a felicidade entrava.
Ser aquele que vencer
Irá toda a discussão
Apenas nos vai dizer
Que ignora a que serve então.
Antes dá o braço a torcer
A tratar é de aprender.
Aprende então todo o dia
Que o que não logras fazer
Muito mais te ensinaria
Que o que é já de teu poder.
No ignoto é que se adivinha
Do porvir qual a bainha.
Perdoa, pois, que trepar
Vais a outro patamar
Com mais sol e mais luar!
Muda
Muda de forma e feitio
E muda de opinião!
Quem à forma nem um fio
Muda é bem quadrado então.
Se de feitio não mudo,
Então sou mesmo bicudo.
Quem não muda de opinião
É um burro teimoso à mão,
- Quem do teor disto for
Da encosta cai do pendor.
Incrível
É incrível como o cabelo
Pode mudar-nos por dentro,
O feio que vejo ou belo
Eco acorda até ao centro.
Vejo a vida como for,
Ou triste ou maravilhosa,
Fica-me na mão compor
Qual o cariz de que goza.
Ao menos em grande parte
Posso fazer com que seja,
No corte e risca que aparte,
Vida a vida que se almeja.
Sobrevivência
A sobrevivência é bela
Mas o que é mesmo bonito
É vivo estar, à janela,
Fresco a visar o Infinito.
A agarrar a vida inteira
Do começo ao fim do dia,
Tudo o que à frente se abeira
A moldar com fantasia.
Pode uma ocasião perder,
Nunca uma de viver.
Olhar
Quando um amor te permite
Olhar para um outro amor,
Não é de amor um palpite,
É de faltar-lhe fervor.
Um amor terá de estar
Onde eu entrar em falência,
A ocupar meu lugar
No lugar da minha ausência.
Amar é mais do que afecto:
É decidir dar-lhe um tecto.
Palavra
Uma palavra guardada
Pode ser uma doença,
Alastra a partir do nada
Até que em ti tudo vença.
Ao tomar conta de ti,
Já não te livras dali.
Então já não és quem és,
O que terias de ser
Para a palavra valer
O que valia de vez
Quando a escondeste de ti,
Em ti a incubar aí.
Era a murchá-la, não presta,
E em vez disto é uma floresta.
Mexer
Dum amor que é rejeitado,
O mal é que mexer dói.
Ocupa o quarto do lado,
Anexo em mim que me foi
Secreto dele talhado.
Por mais que menti-lo minta,
Nunca farei que o não sinta.
Contra vontade em mim vai,
Por mais que tenha repulsa.
Um amor nunca se extrai,
Um amor nunca se expulsa.
Só do tempo o tratamento
Lhe aplica o mortal unguento:
Anos após é que o nó
Desata e desfaz-se em pó.
Fica apenas a memória:
O afecto morreu sem glória.
Será
Um sonho amadurecido
Será um sonho realista?
Se em realista é vertido,
Sonho nem tem sonho em vista.
O realista é um parasita,
Olha para o que ali anda,
O que é já será o que cita,
Nunca o que vem doutra banda.
Ora o sonho é eterno grito
De quanto quero o Infinito.
Livrar
Como me livrar do amor
Se o desejo em corpo inteiro?
Com a dor, medo e pavor,
Meio incapaz, mau parceiro...
Como amar o que é pior
Que melhor é para mim?
Quem sou eu se apenas for
Esta insensatez sem fim?
O amor vai-te o poder dar
De até deixar de pensar!
Ganhar
Amar é ganhar perene,
Por mais derrotas que der.
Fica para sempre, infrene,
Não é só o ganho que houver.
Amor é vitória única
E vitória sobre tudo,
Vida, morte, o lar, a túnica...
E salva-nos, sobretudo.
Perco-me nele, contudo.
Mas amar tanto ilumina,
Tanto ao mundo muda a sina
Que amar, afinal, é tudo.
Falta
Não somos o que aprendemos,
Mas o que falta aprender,
Dia a dia o que exploremos,
Dos cumes mais longe a ver.
Andamos sempre a aprender,
Ao trepar mais alto à luz,
A olhar mais longe o Infinito.
A amarmos tudo e quenquer,
A amar-te, no que traduz
O Infindo que é o que em ti fito.
A lonjura veio ali
Para mais te ver a ti.
Meu trilho busca a colheita
Do Infindo em ti, terno, à espreita.
Olharei
Não olharei para trás,
A cuidar que andei demais
E já nem serei capaz
De aguentar os vendavais
Que o novo caminho traz.
É demasiado distante,
Demasiado inalcançável?
Olho o passo a dar adiante,
Saboreio o que é inefável.
Aprendo a amar o degrau
De alpondras. E salto o vau.
Mudar
Deve o amor mudar connosco,
Com o que formos mudando,
Com o que somos de tosco
Até o final toque dando.
O amor ao mudar nos muda,
Mas não devo desistir
Dum amor só porque aluda
A quão mudado ando a ir.
Desistir de ti não quero,
Eu quero é mudar contigo.
Comigo irás, obtempero,
Mudar por outro pascigo?
Tornar
Temos de nos entender,
É o que o amor sempre faz,
Que tem sempre de fazer,
A me tornar mais capaz.
Tem de nos tornar maiores,
Mais e mais eficientes,
Em tudo a sermos melhores,
Amplos mais nas mais vertentes.
É que o amor, cada dia,
A cada um mais amplia.
Portas
Sem haver portas fechadas,
Sem falta de explicação,
Sem orgulho nas fachadas.
Orgulho embrutece a mão
E, de espiras enredadas,
Asfixia o coração.
Findo um calhau tão de pedra
Que aí nada vivo medra.
Quando a gente ama é o mais fácil.
Mais fácil que era impossível,
Que o impossível é o grácil
Mais fácil no amor vivível.
Um impossível qualquer
É de amor não ocorrer.
Amar, do não existir
Fará que exista a seguir.
Mais que possível e viável,
De vez finda incontornável.
Aquilo não existia.
Mas, quando no amor o aliste,
Da noite então para o dia,
É o único que hoje existe.
Dir-nos-ão
Dir-nos-ão que a morte mata,
Irá matar minha rua.
A minha morte, barata,
Repousa, aquieta, flutua:
Adormece o meu pardal
De sonhar a maravilha,
Do outro lado do tal
Pendor outro desta ilha.
Não temo o lado escondido:
Sempre dele é que hei vivido.
Voar para lá, portanto,
Muito prazer, é um encanto!
Última
Amar como deve ser,
Como se a última vez
Quem amo pudera ver.
Deve amar-se então, talvez,
Tal se jamais ocorrer.
A dois e sem mais motivo,
Assim é que amor é vivo.
Então, mesmo sem assunto,
Quem amo mora a mim junto.
Pode
Amar não pode mais ser,
Nunca mais, condenação,
Não pode ser maldição.
Opção é das que eu tiver,
A mais importante delas,
Criadora até de estrelas.
Ora, eu tenho a liberdade
De escolher e escolher bem,
Escolher seguir além
Quem me faz bem de verdade.
E vencer a cobardia
Que me mata cada dia.
Cuides
Não cuides tu que incapaz
De esquecer alguém tal seja
Amar esse alguém, tenaz,
Contra quanto alguém deseja.
É apenas como obcecado
Por alguém alguém tomado.
Por alguém um obcecado
Nunca está com quem quiser:
Por outrem em todo o lado,
Nunca por si há-de ser.
A obsessão é egoísta
O amor é que é altruísta.
O amor é que é carinhoso,
Por si próprio um altruísmo,
Capaz de ceder, gozoso,
Feliz a dar-me ao que cismo.
Quem ama cede na trama
A tornar feliz quem ama.
Confessar
Confessar amor, saudade,
Fará que tudo transborde,
Salte fora de verdade,
Ganhe o volume que morde,
O volume que terão
E que inequívocos são.
Reprimir é implodir,
Explodir tudo cá dentro,
Rebentar tudo a seguir
De mim próprio bem no centro.
Explosão ou implosão,
Amar é igual salvação.
Muitos
Quem ama a muitos não ama
No campo do amor-paixão,
Ama a paixão cuja chama
Se apaga logo ao clarão.
Ama o fósforo a acender,
Quem lho acende nunca quer.
Mal o fósforo se apaga,
Adeus, que isto já não paga.
Mentira
Não sou destes ressentidos
Para quem o amor é embuste,
Mentira em surtos vividos
Que querem, custe o que custe,
Mas nunca recomendável.
É verdade mas dum jeito
De tal modo desejável
Que amar é também perfeito.
E é perfeito de, entretanto,
O amor também falhar tanto.
Fundura
Amar é também crescer
E crescer outrem fazer.
É ser feliz e pacífico;
Sem exaltar, é magnífico.
E um amor sem turbulência
Vai à fundura da essência.
Quem de angústias o viveu
Desta paz o preferiu.
Querer
Amar é querer o par.
A paixão quer umas horas,
Com urgência singular.
Amor calmo quer demoras,
Toda a vida a projectar:
Assim com novas decoras
A rotina a se esfriar.
Mudam-se ambos a desoras,
Quando nenhum já esperar.
Mudam até o mundo inteiro,
Tudo muda de lugar,
Lento, que o mundo é um viveiro,
Até um novo patamar.
É o que ao mundo enche o celeiro,
Todo o alqueire a extravasar.
Pronto
Amar é também querer
Andar pronto a entender
O que amar deveras for.
É também não exigir
O que amor não atingir,
Que não tem de ser amor.
O amor só terá de ser
O que ele de ser tiver.
Dois
A dois amor é saudade
Sempre em reciprocidade.
Mesmo se o par é presente,
Saudade é dum nós ausente
E que amanhã pode vir
Nos passos por dar, ao ir.
Qualquer pausa é respirar
Para o trilho retomar.
Mesmo a alegria da festa
Rumo ao porvir desembesta.
Na intérmina romaria,
Quem sabe, o Infinito, um dia...
Boa
Tu és tão boa pessoa,
Sejas lá quem tu bem fores!
No fundo não és à toa
Quem o seu crime apregoa,
A cena dos maus humores...
Debaixo da bebedeira
E por detrás da impulsão,
Há um coração que peneira,
A ajudar quem se lhe abeira,
A acolher um mundo irmão.
Quem te anda a roubar de ti,
Que não és quem vejo aí?
Traz
A vida traz tanta coisa!
Urge saber escolher,
Discriminar bem na loisa
O certo do erro que houver.
Muito difícil é o certo!
O certo pode magoar,
Ferir quem andar por perto
E marcas fundas deixar.
Mas, se o certo não actuares,
O mais certo é não amares.
Amar é o que é certo agir
Por amor de quem amamos,
Por mais que doa a seguir,
Que o errado que enfrentamos
Uma ocasião pareça
Que de nós todos mereça.
Quem eu amo é que merece,
Merece sempre o melhor.
Ora, o melhor aparece
No certo, seja o que for.
Fomos
Nós não fomos feitos
Um ao outro, nós.
Nós fomos desfeitos
Um no outro após.
Ir-nos desfazendo
Ao ir ao que amar
Foi o que foi sendo
Nosso caminhar.
Procura-te a ti
Antes de ir alguém
Procurar que aí
Te encha o vácuo bem.
Amar não é ter
Teu vazio cheio.
Não amar é ser
Vazio no meio.
Ou te amas primeiro
Ou nenhum amor
Vai amar-te inteiro:
Vácuo é sem valor.
Mudar
Amar não é opinião.
Não tem de mudar, portanto,
O que é fatal na emoção
Em que não mando nem planto.
Fere interminavelmente,
Nunca sou ali regente.
A emoção do amor ocorre.
Eu só serei responsável
De escolher se vive ou morre.
No mais ela é incontrolável.
Final
Tanto o amor nos engrandece
Que, ao final, nos envaidece.
Amar é atirar ao mundo
Amor do imo mais profundo.
Ninguém poderá conter
O que amar, nem se o quiser:
É grande demais o dado
Para em nós findar fechado.
Amo
Amo para ser feliz
E ser feliz é crescer.
Um amor tem a raiz,
Tronco a se desenvolver,
Mais mil projectos de ser...
Da emoção muda o cariz?
São as rameiras a encher
Tanto o céu que me a cerviz
Dobram do peso que houver.
Um amor que for a sério
Tem mais reinos que um império.
Perigo
Não olhes tu para trás
Nem ao perigo que traz!
Qual pode-ser-que-não-dê?!
Qual vê-lá-se-cais, o quê?!
Se caíres, é que voaste
Pelo menos uma vez.
A queda é uma pueril haste
Dum voo ainda em que crês:
Só quem ao voo ousar ir
É que consegue cair.
Sê
Sê capaz de ser maior
Do que quanto o mundo for!
Exige mais e mais pede,
Ordena mais, que não cede
Quem busca pelos quintais
Outros e outros vegetais.
A vida é tão curta, pois
Antecipa os arrebóis!
Ama
Ama quem amas, agudo.
Ama sempre. Sobretudo
Ama tudo, tudo, tudo!
Ama a gente e os animais,
Colinas e vegetais,
Ama o sol, Lua, as estrelas,
Quanto torna as coisas belas...
Vive inteiro o que puderes,
Vive, vive até morreres!