SONETOS

 

 

Natal

 

Teus pais perderam os pais

E o Natal não acabou.

Continua o lar que amais

Da família em sobrevoo.

 

O Natal é ocasião

De, rodeados de amor,

Vivermos de amor à mão,

A tecer dele o teor:

 

Época de perdoar,

Redescobrir a alegria,

O clima que a idade, a par,

 

Nos fez perder dia a dia.

Não podes, pois, parar nunca:

- De Natal a vida junca!

 

 

Problema

 

Problema não é estar só,

Problema é findar sozinho:

Aquele é o físico pó,

Este é o coração maninho.

 

Na cidade mais povoada

É que sozinho me vejo:

Não estou só na manada,

Não tenho é os laços que almejo.

 

Nos passeios apinhados,

Só vejo espaços vazios

Entre os acotovelados,

 

No mar ignotos navios.

Mais que nunca esbarro mais?

- Menos ligo a estranhos tais!

 

 

Folha

 

Folha que de árvore cai

Derrotada da invernia

Vai sentir-se, de tão fria?

A planta não diz um ai.

 

Se pudera, falaria:

“Na vida nada se esvai,

O ciclo não pára, vai

Recalcetar toda a via.

 

Em mim tu manténs-te viva,

Fizeste-me respirar,

Deste sombra a quem passar,

 

És minha seiva furtiva.

Por mais que findes em pó,

Tu e eu somos um só.”

 

 

Perco

 

Quando perco uma batalha

Ou quando tudo perdi,

A tristeza que me calha

Retalha-me a bisturi.

 

Depois o momento passa,

Descubro uma força ignota

Que em mim há e me ultrapassa,

Que a mais-valia conota.

 

Vejo então: sobrevivi,

Alegre do que me lavra.

Quem não vê diz: eu perdi

 

E a tristeza o escalavra.

Só, porém, é interrompido

O duelo que é assumido.

 

 

Momento

 

O momento de caído

É de descansar, curar

Onde quer que fui ferido

E de melhor me equipar.

 

Um dia um novo combate

Me bate à porta da vida.

O medo toca a rebate?

É de a mão manter erguida

 

Ou os sonhos findarão

Ali tombados no chão.

Lembro-me do sofrimento

 

Que vivi, torno-o fermento.

Não vou tolerar sequer

Poder voltá-lo a viver.

 

 

Trilhei

 

Trilhei vezes incontáveis

O meu gesto do bom-dia

E os mesmos inumeráveis

Indivíduos que nem via.

 

Pois bem, hoje é diferente:

Os bons-dias educados

São bênçãos de toda a gente,

Que estão vivos, são dotados!

 

Que enorme importância têm,

Temos todos, viva onda,

Mesmo se a tragédia vem

 

Nos ameaçar na ronda.

De súbito descobri

Quão vivo é quanto vivi.

 

 

Reina

 

O amor reina e ninguém sabe

Onde ficaria o trono,

Pois descobri-lo só cabe

A quem tiver dele o abono.

 

Terei coragem de abrir

A porta do santuário,

Por mim além então ir

Trôpego, ignorante e vário?

 

Acolher-lhe o atractivo

E pôr-me a servir a quem

Tanto me atrai e põe vivo

 

Sem mo escravizar também?

Como à prima vez, que eu veja

Que alma em meu corpo viceja!

 

 

Primeira

 

Se cada hora vivi

Como a primeira da vida,

Então dos dias colhi

Mil surpresas sem medida.

 

Este eu que não foi criado

Por meu pai, por minha mãe,

Nem por minha escola dado,

De quanto vivi provém.

 

É dele que me esqueci

Gradualmente na rotina,

Autómato para ali,

 

Tal se tal me fora a sina.

É o que me imponho seguir:

Vou-me outra vez descobrir.

 

 

Oferenda

 

É uma oferenda divina

O sexo, todo um ritual

De transformação inclina

Ao novo a inovar no igual.

 

O êxtase anda ali presente

Do final com toda a glória,

Mas o fito ameia à frente,

Que mais finda, por memória,

 

Percorrer com o meu par

A estrada do território
Ignoto e bem singular

 

Onde abrimos o cibório

Que de nós mostra o tesoiro

De mirra, de incenso e de oiro.

 

 

Amizade

 

Amizade é noutrem fé

E não de renúncia um acto.

É o laço que te dá pé

Para inteiro ser de facto.

 

Não procures ser amado

Nunca então a qualquer preço.

Não tem preço o amor: é dado

Ou nem de amor é um começo.

 

Teu amigo não é quem

Atrair o olhar de todos,

Deslumbrado, que ninguém

 

Como ele dá tantos bodos.

É quem te apoiar na via

Que for a tua magia.

 

 

Procurar

 

Quem procurar o sucesso

Não o encontra na sequência:

O fim não é dum processo,

É só mera consequência.

 

Dele obsessão não ajuda,

Ao só confundir caminhos.

Prazer de viver que acuda

Morre em pauis tão maninhos.

 

Procura amar os demais

No que em concreto requeiram.

Se os logras dos pantanais

 

Da vida de que se abeiram

Afastar, então é certo:

Vives do sucesso perto.

 

 

Pilhas

 

Nem todos com pilhas de oiro

Do tamanho de colinas

São ricos com tal tesoiro...

- A tal julgá-los te inclinas?

 

É rico apenas aquele

Que da energia do amor

Viver, dos ossos à pele,

Mesmo sem de bens senhor.

 

Sem amor e rico em bens?

É um pobre que à frente tens

Que nos bens vem compensar

 

O que em amor lhe faltar:

Quanto mais bens acumula

Mais miséria o estimula.

 

 

Teoria

 

Uma teoria fanática

Com ortodoxia rígida,

Carregada de dogmática,

Leva à repressão mais frígida.

 

De pronto justificamos

Relaxamento moral

E alegres abandonamos

A liberdade total.

 

O poder vai corromper,

O medo vai-se agravar,

Toda a linguagem, qualquer,

 

Finda por se adulterar.

É o caminho, desde início,

Abismal do precipício.

 

 

Fogo

 

Para quem a vida é um jogo

Em que a vitória de algum

É de algum outro a derrota

 

Não há como apagar fogo

Do mundo em canto nenhum,

Fora o que em seu nome anota.

 

Então, um dia qualquer,

O fogo a arder no vizinho,

Já que o nem olha sequer,

Finda por queimar-lhe o ninho.

 

E, se for o presidente

De alguma grande potência,

Se o trilho não muda urgente,

Há-de levá-lo à falência.

 

 

Aceitar

 

Aceitar o que ocorreu

É o mais natural do mundo:

Algum cão já resistiu

A tal caminho, no fundo?

 

E o que achamos que devia

Ter ocorrido e o não fez

Devo aceitá-lo algum dia,

Que ontem não volta outra vez.

 

O rancor pelo passado,

Tenha ou não ele ocorrido,

É pô-lo aqui ao meu lado,

 

De hoje a mandar no sentido.

O morto a mandar no vivo

É o que sou, se não me esquivo.

 

 

Acolher

 

Nunca devo acolher nada

Só porque uma maioria

De gente esperta e mui grada

Acredita em tal teoria.

 

Só progredimos se enterro,

Ante mil ouvidos moucos,

Na prova factual o erro

Da chusma dos sábios loucos.

 

E não é o iconoclasta

Que, por sê-lo, tem razão.

A questão é que não basta

 

Ser quem é para a adesão:

Ou tem razão ou não tem.

- Para tal que importa quem?

 

 

Humor

 

Humor como escudo

Não terá piada.

Aí ficar mudo

É o que mais agrada.

 

Esconder no riso

Aquilo que dói

Mania sem siso

É o que sempre foi.

 

A brincar não salvas

Do que nos magoa.

Joga fora às malvas

 

O teu acto à toa.

O que for a sério

Enfrenta-o e fere-o!

 

 

Última

 

A ternura

É a última a se perder

Na secura

Do cotio a ser.

 

O carinho

É o último a se perder

No caminho

Onde for deixando de ser.

 

O amor cria o rito,

A liturgia,

Mas perde o Infinito

 

Quando só aquilo anuncia:

Por trás fica o portal da paixão

Que nos atiraria à imensidão.

 

 

Máquinas

 

Porque as máquinas não param

Muitos amores se perdem,

Que por mor delas pararam,

Sem tempo algum que lhes herdem.

 

A máquina a descansar

Um pouco tudo curava.

Mas não pára, que lugar

Não tem nem para uma trava.

 

Máquina não quer abraço

Nem beijo, termo bonito,

Feio embora seja o traço

 

Do dia que lhe debito.

A linha de produção

Sou eu mas sem coração.

 

 

Ninguém

 

Ninguém torna

A uma felicidade perdida:

Nesta jorna

É outra já minha mão estendida.

 

Mudei.

Se for feliz,

É outra, de raiz,

A felicidade que auferirei.

 

Tentar retornar

Bem poderei,

Mas sei

 

Que sou outro tempo e outro lugar.

O actor sabe que a função

Não pode nunca ter real repetição.

 

 

Bem

 

Ninguém tem direito

De querer que esteja

Tudo bem a eito

Na vida que almeja.

 

Também eu não tenho

De trazer ninguém

A sofrer do lenho

Que a vida me tem.

 

Amar é fazer

Tudo para não

Pôr quem eu quiser

 

A sofrer em vão.

A quem amo acudo:

Da dor todos mudo.

 

 

Sempre

 

Há sempre, entre quem nos ama,

Quem nos pretenda livrar

Do que livrar-nos, na trama

Da vida, não quero a par.

 

Quem queira saber de nós

Mais do que nós saberemos:

Mais nosso bem sabe após

Do que nós imaginemos.

 

Amam-nos mas é demais,

Amam para além da conta.

Porque os amamos tais quais,

 

A um faz-de-conta isto aponta.

- É o que havemos de fazer

Para além sobreviver.

 

 

Derrotando

 

Só espero não ser feliz

Por ir derrotando assim

Dentro em mim tua raiz,

Porque te derroto em mim.

 

Quando amamos a vitória

Por derrotarmos alguém,

Amamos só por vanglória.

Ganho assim que ganho tem?

 

Estou feliz por amar

Ainda quem eu quiser

Dentro em mim obliterar,

 

Quem eu quiser esquecer.

Feliz por não ser tão tu

Põe-me o amor por ti a nu.

 

 

Alimentar

 

Amarás muito a alimentar teu ego,

A ser melhor, já que és melhor em tudo:

Melhor marido, amante igual e aludo

A querer ser o melhor pai que adrego.

 

Lutas por isso, que não há sossego

Num amanhã que vá trair o entrudo

De tuas lutas pelo cume agudo

Onde te vês crucificado a prego.

 

E para ti não vai haver depois

Um amanhã quando algo ali perderes

Ou, sem perder, ao ver que há outros sóis,

 

Que o teu navio é um na infinda frota.

Sem amanhã irás findar ao seres

Tu mergulhado na final derrota.

 

 

Meias

 

A meias não há um amor

Como mapa dum horário

De operários do que for

Multinacional fadário.

 

Amamos a tempo inteiro,

Que amar todo o tempo ocupa.

Quem quebra o selo, ligeiro,

Não o vê mais, nem à lupa.

 

Depois de o jogo findar,

Não há como ter recurso

Para o jogo retomar,

 

Que o rio seguiu seu curso.

Morta a zona de conforto,

Não há mais rega neste horto.

 

 

Livres

 

Os que se amam nunca se amam

Senão se amam separados,

Cada um a si: proclamam

Livres ser para ser dados.

 

Amo-te a amar-me melhor,

Amo-me a melhor te amar.

No cruzamento do amor

É que o trilho é de trilhar.

 

Vamos caminhar felizes

No rumo à felicidade.

Quão mais firmes as matrizes,

 

Mais firme o trilho que a invade.

Nunca perde este limiar:

Só iremos mesmo ganhar.

 

 

Opostos

 

Somos opostos, portanto

Temos de ter em comum

Planos, projectos a postos:

Juntos, aí somos um.

 

Só então é que amar resulta,

Com individualidade,

Com espaço a cada oculta

Propensão que a cada invade.

 

Amar é juntos estarmos

E construir então juntos,

Acaso juntos falharmos

 

Na aposta em muitos assuntos.

É caminhar separado

De mão dada em todo o lado.

 

 

Preciso

 

Preciso de te deixar

Em inteira segurança

Na areia da beira-mar,

Onde a maré não alcança,

 

Para poder-me afogar

Descansado, nesta dança

Da vida a morte a chamar

Perto já de minha frança.

 

Já não há mais, a seguir,

Rameira alguma a trepar,

Não há mais onde subir:

 

Não há mais como escapar.

Do lado de lá prometo

Sempre andar sob o teu tecto.

 

 

Debaixo

 

Quando amamos, nós findamos

Sempre debaixo do amor:

Ele lá em cima nos ramos,

Nós no estrume sem valor.

 

Somos funcionários dele,

Dele os lacaios submissos,

Súbditos a pôr-lhe a pele

Aos ombros dele inteiriços.

 

Se o não podemos amar,

Temos então de fugir

E de fugir sem parar,

 

Para o lado até cair.

Mesmo então é tão potente

Que até à morte é presente.

 

 

Sou

 

Sou o que faz que aconteça,

Não sou o que me acontece.

A vida é instrumental peça,

Não o que o destino tece.

 

Corda que salva da queda

É também corda que enforca.

O destino que suceda

Decido eu se é rede ou forca.

 

O sopro que apaga a vela

Também reaviva a chama.

Nada é só duma parcela,

 

Do que eu faço é também trama.

Sou bem mais, enquanto vou,

O que eu fizer do que sou.

 

 

Empatia

 

Empatia de amizade

É o que ao fim salva o amor.

Quando a agrura nos invade,

Desentendidos um ror,

 

Quando abisma uma lacuna,

Só o amigo de quem ama

Consegue unir o que os una,

A chamar quem sempre chama.

 

Mais fundo até vai amar,

Mais dentro porque sentiu

O que sentirá seu par,

 

Vive o que outro em si viveu.

Vai no lugar doutro amar

E sente do outro o lugar.