SEXTILHAS  REGULARES

 

MISCELÂNEA

 

 

 

Desencadeia

 

Basta o alpinista tossir,

Desencadeia a avalancha

E, na brancura a sorrir,

O inferno é o que desengancha.

- A questão crítica é um nada?

Mas traz noite ou alvorada.

 

 

Testemunha

 

Ser testemunha, que horror!

Como ser?! Não participa...

Se participa, o que for

Má testemunha o indica.

Não há como dar a volta

À inverdade aqui envolta.

 

 

Amar

 

Amar e não ser amado,

Mas que desgraça de vida!

Mas amar e ser amado

É catástrofe em seguida...

- Não há como contentar-me,

Quer me desarme, quer arme.

 

 

Amo-te

 

Amo-te e não é a ti

Mas a mais do que tu és:

Amo o sonho em que te vi

A voar de asas nos pés.

Amo sempre aquilo além

Que até o fôlego me tem.

 

 

Cremos

 

Cremos na realidade

Com toda a seriedade,

 

Quando dela a melhor parte

No sonho é que se reparte.

 

Só o adulto não vê isto:

Que só criança é que existo.

 

 

Integras

 

Hei-de um dia ver o sol

Onde só te vejo a ti.

Tudo integras que em ti bole,

Todo o meu agora-aqui.

Um dia, porém, vai vir:

E é o mundo inteiro a sorrir.

 

 

Ninguém

 

Que ninguém todo se entregue

Sem ali tudo entregar

Nem pare no que congregue

Sem tudo ao menos tentar

E que faça e ao mundo legue

Tudo quanto ouse sonhar!

 

 

Grande

 

O grande intelectual

Não impõe que tem razão.

Que é que isto importa, afinal?

Tem razão ou então, não.

Não é razão só pensar

Que alguém o vá validar.

 

 

Ver

 

Por todo o lado há um só

Com outro só mesmo ao lado

E ninguém limpar o pó

Vem deste pó levantado.

Vai só ver que é pó traído

Quando já for pó caído.

 

 

Juntos

 

Quanto não tinha e já tenho!

Juntos nos vamos à luta

E o que custa cada ganho

E quanta, quanta disputa!

E quanto o amor é maior

Quanto mais de puxar for!

 

 

Antes

 

Não pararei nunca

Antes de chegar,

Desistir não junca

Trilhos que eu tentar.

Solitário voo?

Que importa? Além vou!

 

 

Hoje

 

Vamo-nos querer

Cada dia-a-dia,

Hoje a requerer

De ontem a maquia.

E atemos os laços

Do tempo nos traços.

 

 

Nem

 

Nem quem mande nem mandado,

Se humilhador, se humilhado.

 

Que quem roube seja então

Só actor que faz de ladrão.

 

Que o mundo seja a utopia

Onde quem chore se ria!

 

 

Lágrimas

 

Que as lágrimas da saudade

Encontrem as da alegria

E a frieza que me invade,

Vulcões de enorme ardentia,

Que o que é bom contrabalance

O mal já fora de alcance!

 

 

Requer

 

Dum amor qualquer urgência

Requer muita paciência,

 

Que exige maturação

Dum amor plena a função,

 

Até no corpo de alguém

Viver tal no que se tem.

 

 

Falta

 

Falta de tempo não há,

No tempo é falta de si,

Falta de vida acolá

Na vida que é o tempo ali.

O que, portanto, haverá

É apenas menos de si.

 

 

Amar

 

Amar é sempre a metade

Que vale a pena viver.

A outra metade, ao lado,

Que logo nos persuade

Que por igual vai valer

Como amar – é ser amado.

 

 

Inefável

 

Estão tão apaixonados

Que as palavras nunca o dizem,

Tão de inefável toldados.

Quando, enfim, o concretizem,

Em lugar de sumidades,

Só dirão trivialidades...

 

 

Puxa

 

O que puxa para trás

E que te leva a ter medo,

Sempre com um mas tenaz

E um contudo por segredo

Abandona no caminho,

Nem teu é nem teu vizinho.

 

 

Inclui

 

O que não inclui amor

Nem emoção lá vivida,

Tão de intelectual teor

Que é maquinal a saída

Atira para a valeta,

- Não és tu nem te interpreta.

 

 

Jurar

 

O que jurar que é impossível

Sem nunca pedir desculpa,

Com uma vergonha incrível

De tentar, que o mói a culpa,

Quem não aguentar ceder,

- Não és tu, outro é qualquer.

 

 

Paço

 

Num paço viver

É poder sonhar

Sempre que eu quiser

Sem a mais olhar:

A pobreza doira

E a dor nem agoira.

 

 

Máquina

 

A máquina de costura

É do tempo aquela máquina

Que o porvir nos inaugura

Do passado com a pátina.

E que assim torna presente

O presente eternamente.

 

 

Sou

 

Eu sou a insuficiência,

A falha no meu caminho,

O engano por excelência...

- Como ser do amor vizinho?

Contudo, ele é que me impele

Sempre a gerar-me outra pele.

 

 

Vem

 

Ela vem comigo

Como eu vou com ela:

De mero mendigo,

Sou rei duma estrela.

- Tão simples, assim,

A vida, por fim.

 

 

Infiltra

 

Cara feia de tristeza

Traz mais infelicidade

Que duma guerra a dureza,

Que infiltra a realidade:

Todos ao fim findarão

Uns tristes, queiram ou não.

 

 

Cara

 

Ter cara feia ou bonita

Depende do dono dela

Muito além do que concita

A natura no que é bela.

Porque ser alegre ou triste

Vem do que eu na vida aliste.

 

 

Ficar

 

Se ficar contigo,

Ao amar-te assim

O mais que consigo

É ficar sem mim.

E ficar mais eu

Tal nunca ocorreu.

 

 

Pudera

 

Se eu pudera, então faria

Tudo bem muito mais vezes

E o que te contentaria

E as horas todas do dia

Varreria teus reveses...

- E eis que a vida era alegria!

 

 

Criança

 

A criança rindo

Que comande o mundo,

Mesmo que bem-vindo

Seja o velho, ao fundo,

Protegendo-a dentro

Bem de si no centro.

 

 

Quer

 

Não se quer o que se tem

Mas o que nunca se teve

E o que se perdeu também

Com seu sofrimento breve.

Mesmo a sofrer, impedir

Tudo nos faz de cair.

 

 

Melhor

 

Quem crê que o melhor cantor

É aquele que mais afina

Não entende patavina

De música nem de amor:

É que é onde a emoção mora

Que é grande uma voz canora.

 

 

Noutra

 

Um a chorar numa sala,

O outro noutra a chorar.

Que importa uma acto que iguala

Se nada os puder juntar?

O espaço é inutilidade

E a lágrima, atrocidade.

 

 

Tempo

 

O tempo no teu olhar

Pára e a mim me eterniza.

O relógio vai andar

Mas já me não realiza.

Aliás, dele me esqueço,

Deste real mero tropeço.

 

 

Bela

 

És bela mas a beleza

Por dentro aflora de ti.

Acima inefável preza

Algo infindo por ali.

E de vez devém credível

Acreditar no impossível.

 

 

Sol

 

Amar é ter a certeza

De o mundo não ser redondo:

É só o que teu nome preza.

E o sol nasce ou se irá pondo

Conforme te vais virando,

O mundo em ti revelando.

 

 

Exprime

 

O corpo exprime vivsível

De alma a interioridade.

Se eu a quiser ver, credível,

Noutrem, eis como se invade.

Em mim, não: minha vivência

Capta em mim toda a evidência.

 

 

Livre

 

Bem mais livre do que a sós,

Quando um qualquer noutro existe

É que vida a mais após

Vem dos dois quando um persiste.

Onde um estiver são dois

Mas ninguém tal vê depois.

 

 

Larga

 

Larga os hábitos escuros!

A segurança absoluta

Só te traz na vida apuros,

Dela é podre toda a fruta.

Toca na linha vermelha,

Vê de além que aurora espelha!

 

 

Esquece

 

Seja lá qual for o corpo que passa,

Nada te esquece cá dentro de mim:

És tu sempre quem naquele perpassa,

Como se em todos viveras assim.

Quando a morte chegar tem menos voz

Que aquele momento em que fomos nós.

 

 

Rasga

 

Somos a imortalidade

Que nos era destinada.

Qualquer amor de verdade

Rasga perene uma estrada,

Uma semente do Infindo

Por onde eterno irei indo.

 

 

Deixam

 

Os filhos são sempre os donos

De nossa vida completa.

De sê-lo, aos novos abonos,

Deixam de forma discreta.

E nós para aqui ficamos

Sem sermos donos nem amos.

 

 

Lindos

 

Filhos lindos de morrer

É deveras exaltante.

Ter de ver-nos fenecer

É que é de vez irritante,

Haja embora uma outra vida

Do outro lado da lida.

 

 

Orgasmos

 

Quem não ama é um amputado,

Não tem orgasmos na vida

Com outrem nem com o mundo,

Na conta que lhe é devida.

Vive a tristeza dum fado

Que todo ele era jucundo.

 

 

Custa

 

Um orgasmo em corpo inteiro

Ainda inteiro não é:

Muito custa pôr de pé

Toda a vida no braseiro!

Na vida estão sempre meias

As taças de viver cheias.

 

 

Abdiques

 

Nunca abdiques duma dor

Só porque uma dor te dói.

Viver dói mas tem valor,

Dói o querer que constrói,

Sermos dói mas vale tudo:

- Sem ser, nem a mim me acudo.

 

 

Ir

 

Deixa-te ir com a corrente,

Porém não te afogues nela.

Centra-te, se é pertinente,

Distrai-te, se é uma janela.

Ninguém dirija teus passos,

Governa tu teus espaços.

 

 

Doer

 

Vai doer muito andar vivo.

Esperas até que passe?

Perdes a cabeça, esquivo?

Há quem a dor então cace:

O prazer nunca depura

A maligna criatura.

 

 

Duvida

 

Quem duvida, tudo aprende.

Quem não, é que sabe tudo

E tudo ignora, o que tende

A torná-lo surdo-mudo.

Então, na surdez final,

É o mudo de vez total.

 

 

Cantar

 

Cantar na rua,

Dançar à chuva...

Talvez a Lua

Amadure uva

Da sobremesa

Que a vida preza.

 

 

Resiste

 

Um amor resiste a tudo

Menos à não-tentativa.

Tens de esfalfar-te a miúdo

Para amar de forma viva,

Que é rastejar e voar

Qualquer vontade de amar.

 

 

Odeio

 

Odeio quanto não pudera ter,

Odeio o meu vazio, que amo o que és.

E, se uma obrigação há de escolher,

Além de amar-me, quero-te de vez.

Se não fora ser eu, na vida a esmo,

És o que eu gostaria de ser mesmo.

 

 

Fora

 

Não fora eu ser eu até à morte,

Iria agora já para teus braços.

Apertas tal se o mundo, desta sorte,

Em minha pele finda, fim dos traços.

Dir-te-ia eu que te amo até aos ossos

E que em mim dos céus vais riscar esboços.

 

 

Fazes-me

 

Se me tenho de olhar, para mim olho

E fazes-me tão mal quão bem me queres:

Vais embora se dói o que eu acolho,

Mas todo o parto dói de novos seres.

Ninguém logra findar com minha vida

E vivo me manter na mesma lida.

 

 

Tudo

 

Tudo a discutir problemas

E mil soluções, a rodos...

E no fim serão os lemas:

Tudo igual, nos mil e um modos.

- Se a cabeça ainda perdeis,

Mil cabeças cortareis!

 

 

Rendido

 

Queria a sensação de precisar-te,

O meu corpo rendido ali à espera.

E descobrir-te inteira em cada parte

Quando inteira chegavas doutra era.

Queria-me sentir vivo a valer

Para te sentir viva em mim viver.

 

 

Sentir

 

Se o amor que se olha

Se sentir pequeno,

Que o maior acolha,

Desbrave o terreno:

Na virgem floresta

Um mundo outro atesta.

 

 

Valem

 

Todas as palavras,

Mesmo as mais horríveis,

Valem o que lavras

Nas lavras vivíveis:

Colocamos nelas

O lodo e as estrelas.

 

 

Sou

 

Sou mesmo o que nunca fui

E o que jamais volta a ser,

Preso entre o mundo que rui

E o que espera acontecer.

Sou sempre um adolescente,

Por mais maduro que assente.

 

 

Eterna

 

A mulher que eu amo

Nunca será minha,

Que o que eu nela aclamo

É eterna adivinha:

Final solução

Só do Além no chão.

 

 

Fio

 

Perdido por mais que eu ande,

Por mais que corra perdido,

Que o voo já não comande,

Procuro o fio partido:

- Um dia sonho a ficção

Ao que vivo a dar a mão.

 

 

Acreditar

 

Ingenuamente acreditar na gente

E não olhar ao que te alguém contar,

Que mostrar tente o que alguém for somente

Ou não lograr conseguir ser a par...

- Tenta agradável só reter o fiável

Notável mapa deste olhar estável.

 

 

Dentro

 

O que anda dentro da norma

E nunca fora de si,

Da vida se desinforma

E de nada vale aí.

Só vale a pena viver

O que lá fora estiver.

 

 

Tentação

 

Não é a tentação que te seduz,

És tu que em ti te sentes já tentado.

Sentes a tentação, o que traduz

Que dentro da traição já vais levado.

A tentação te mexe, cobra viva,

Pois toda a tentação é tentativa.

 

 

Corra

 

Muitas vezes preferia

Que tudo lhe corra mal:

Para casa voltaria

Precisando-me real.

Pousa em meu ombro a cabeça,

Sou de seu repouso a peça.

 

 

União

 

A união é diferente

Entre dois que se adorarem

Quando um, repentinamente,

Vê os sonhos a fracassarem.

Precisa o outro de mim

Muito mais que assim-assim.

 

 

Sucesso

 

Podemos ser eu e ela

Sem sucesso pelo meio,

Que ele magoa, em procela,

Quando se lhe perde o freio.

Pode ser uma lonjura

Que entre quem se ama se apura.

 

 

Aparte

 

Viver bem é uma questão

Muito além do que suceda

Em sofrimento: é de em leda

Transformar minha visão.

Se a focar no lado bom,

De bom tudo pinta o tom.

 

 

Vindo

 

Sina não é o que há-de vir,

É o que está vindo na hora:

Enquanto vês que porvir,

Marca-te o futuro agora.

A sina não se imagina,

Faz-se à mão do que a domina.

 

 

Muda

 

Cada dia muda tudo,

Muda tudo eternamente

Pela razão evidente

De que, miúdo ou graúdo,

Tudo aquilo que se faz

Nunca vira para trás.

 

 

Morto

 

O pior a acontecer

A quem morto é por querer

É uma possibilidade

De outra vez vida ocorrer,

Que a vida assusta, em verdade,

Mais que morto se viver.

 

 

Nova

 

Os lábios e o corpo dela

São uma filosofia

Toda nova na viela

Da vida que mal corria.

De repente tudo unido,

Faz mesmo a vida sentido.

 

 

Pardal

 

Um pardal a menos

No piar diário,

Corte dos pequenos

Da festa ao fadário?

Menos um que voa?

Mundo mais à toa!

 

 

Sentes

 

Só sentes o que não tens

Se, perante a deficiência,

Não vês mais nenhuns aléns,

Prisioneiro duma ausência:

No buraco ali me enfio,

De mim mesmo ao fim vazio.

 

 

Rotinas

 

Há rotinas excitantes,

Por mais que repetitivas,

Imprevisíveis instantes

De novas emoções vivas.

Ora, o emocional vivível

Será sempre irrepetível.

 

 

Percepções

 

O que fazes e o que sentes

São percepções diferentes:

 

De repente realizas

No térreo o que divinizas.

 

É sempre bem terrenal

Mas nele vês outro real.

 

 

Matar

 

O pequeno-almoço

É matar saudades

Deste mundo moço

No que bem te agrades,

Primeiro no lar

E no resto a par.

 

 

Trilharmos

 

Se trilharmos os caminhos

Pelos outros já trilhados,

Chegamos sem mais padrinhos

Onde já foram chegados.

Que é dos olhos adivinhos

Que nos perseguem nos fados?

 

 

Deveras

 

O deveras impossível,

Como irei eu desejá-lo?

Melhor é ignorar o incrível,

Bastar-me com meu regalo.

Mas ele pica-me dentro:

- Como ignorar o meu centro?

 

 

Dar

 

Dar é a recompensa.

Ser bem recebido?

Menos que se pensa

Faz nenhum sentido.

Só valor em alta

Tem se fizer falta.

 

 

Bondade

 

A bondade tem magia:

Não custa nada a ninguém;

Muda os homens, dia a dia,

Um de cada vez, porém.

Um nada tem descendência

De infindável consequência.

 

 

Viável

 

Más leis e bons funcionários?

Inda é viável governar.

Porém, com maus funcionários,

Nem o melhor legislar,

Com toda a muda que muda,

Nos serve de alguma ajuda.

 

 

Vemos

 

O que vemos com os olhos

É deveras limitado.

Estás aterrorizado?

Ao lado, alguém vence escolhos.

Aquilo que te alanceia

É paz noutrem, volta e meia.

 

 

Fricção

 

Sempre o progresso é gerado

Por fricção de antagonismos:

Trepamos para o telhado,

Aqui com a mão direita,

Além com a esquerda afeita,

Até escapar aos abismos.

 

 

Contradição

 

Fatalmente nos afecta

A contradição final:

A realização completa

É a destruição total.

Mas a plenitude giza

Um imo que a lá realiza.

 

 

Afastar

 

Eis a forma grácil

De afastar o míssil

De nosso pendor

Acumulador:

Deitar fora é fácil,

Encontrar, difícil.

 

 

Nunca

 

Porque me preocupar

Com o que não poderei

Nunca por nunca mudar?

Não penso em tal, é de lei,

E, por mais que não me acuda,

Por dentro de mim ajuda.

 

 

Cantas

 

Quando cantas absorvido,

Esqueces-te do lugar

Porventura apodrecido

Que apodrece teu cuidar

E abres-te ao desconhecido

Onde além o sol raiar.

 

 

Osso

 

Quando eu der um osso a um lobo,

Ele transforma-se em cão.

Deixa de morder então,

Brincalhão que nem um bobo.

Como qualquer lobo humano,

Assim é que evito o dano.

 

 

Repare

 

Há quem só repare no alvo,

No colectivo final:

Cada um, terreno calvo,

Nada lhe importa, afinal.

Ora, é neste que cultivo

O derradeiro motivo.

 

 

Entramos

 

Quando lemos um poema,

Entramos num outro mundo:

Transcendemo-nos por lema,

Escapamo-nos, no fundo.

Não tolhemos a desgraça

Mas melhor ela trespassa.

 

 

Dia

 

Um dia nós desmaiamos

Porque alguém cortou um dedo.

Um dia após, caminhamos

Sobre bebés, num degredo,

Mortos que já nem sentimos:

Tudo aquilo é o que já vimos!

 

 

Buscando-me

 

Sempre junto a ti sentado,

Dias e semanas e anos,

Buscando-me em todo o lado...

Que é que terei encontrado?

Enganos e desenganos,

- Mas sou mais eu um bocado.

 

 

Desejo

 

O desejo de matar

Nunca morre, nunca morre.

Mas de frente é de se olhar

E, se o amor me socorre,

Sempiterno e sem abalo,

Será mesmo de perdoá-lo.

 

 

Entalharás

 

Entalharás tua marca.

Deixa as gerações futuras

Saberem que, embora parca,

Tua presença inauguras.

Saberão, no que persiste,

Que, no mínimo, exististe.

 

 

Buscamos

 

Somos todos prisioneiros,

Um vazio nos aperta:

Buscamos nos atoleiros

A verdade que liberta.

E a verdade inalcançável

É apenas aproximável.

 

 

Prefere

 

Prefere proteger

Aquilo em que acredita

Ou antes aprender

O que a verdade dita?

A verdade que, em suma,

De vez se não consuma?...

 

 

Sacristão

 

O sacristão que a graça abandonou

Desempenha o papel honestamente,

Ritos que o conteúdo abandonou,

Que Deus abandonou de ir para a frente.

- Tal vai o nosso mundo caminhando

Sem descobrir razão de andar andando.

 

 

Linda

 

Se acho linda uma mulher,

Não há modo de exprimi-lo.

Vejo-a sorrir e ao meu ver

A razão vai dividi-lo,

Desmonta-lhe o rosto em partes...

- Não vê o sorrir com tais artes.

 

 

Conhecer

 

Conhecer não é saber,

Demonstrar nem explicar:

É uma visão alcançar.

E como é duro aprender!

É que primeiro convém

Partilhar do que aí vem.

 

 

Aldeia

 

Uma aldeia a sonhar alto

Pela voz dum cão de guarda,

Único num sobressalto

Da noite do linho em carda,

Tudo a dormir no relento

Dum luar de encantamento...

 

 

Súbita

 

A súbita aparição

De mim diverso de mim

Sou eu mesmo ali, no fim,

A erigir a construção:

Fui a preparação lenta

Que este dia o fruto inventa.

 

 

Sacrifício

 

Sacrifício sem grandeza

É se apenas for suicídio.

É belo quando a beleza

For tolher à vinha o oídio,

Se é lutar até à morte

Para os vivos terem sorte.

 

 

Civilização

 

Civilização são crenças,

Costumes, conhecimentos,

Lentamente em nós pertenças,

Séculos de sedimentos,

Trilhos para alguma parte

Que o espaço-tempo acarte.