QUADRAS  IRREGULARES

 

DEVERES E SONHOS

 

 

Grito

 

Um grito no vazio

Me percorre assaz,

Cheio de frio:

- Onde estou se não estás?

 

 

Procuro

 

Procuro, procuro

Para vislumbrar

O que mal me auguro:

Procuro-te para me encontrar.

 

 

Humanidade

 

Escolher

O que a humanidade resume:

- Quando escurecer

Dás-me lume?

 

 

Apaga

 

A palavra repetida

Apaga o que vive dentro da palavra.

E a lavra,

Ei-la perdida.

 

 

Fundura

 

A fé

Minha fundura lendo:

O amor não é,

É o que continua sendo.

 

 

Costas

 

Se as costa dobrem

A ceder,

Que o preço cobrem

De me erguer!

 

 

Abandona

 

O que não te abala

Dos pés à cabeça

Dos dias abandona na antessala,

Que ainda o pé naquilo te tropeça!

 

 

Ontem

 

Aquilo que ontem foste, pensaste, sentiste

É a tua cadeia.

- Volta e meia

Vê lá se já partiste.

 

 

Dizer-te

 

Dizer-te que não

Sempre foi sim

Ao que nos ameia para lá do travão

De qualquer fim.

 

 

Nunca

 

É de fazer a sortida

Mundo fora, sem parar.

Nunca é de fazer esperar

A vida.

 

 

Semente

 

Um mais um, depois

De unidos em todo o quesito,

Não são dois,

São a semente do Infinito.

 

 

Parede

 

Que a parede para separar

E dividir,

A intimidade ao preservar,

Sirva também para unir!

 

 

Aperta

 

Da vida

Que nos aperta

Só o amor à medida

Nos liberta.

 

 

Caído

 

Vida fora somos sempre um quase.

Que o quase nunca seja da ambição,

Que ninguém nunca não tentar apraze!

Louvo é o caído que tentou voar do chão.

 

 

Única

 

Tolerância

Não é maneira de viver:

É a única instância

Que houver.

 

 

Direito

 

Direito de magoares

Porque outros te magoaram?

É como o direito de te matares

Porque outros se mataram...

 

 

Monda-a

 

A injustiça,

Queiras ou não queiras,

Ocorre na tessitura da liça.

Monda-a das tuas jeiras.

 

 

Aceitas

 

Não tens sempre razão

E ter razão não vale nada

Comparado com o que ganhas na jornada

Quando aceitas não a ter, então.

 

 

Medo

 

O medo na viagem

Não é para parar,

É para pegar na coragem

E continuar.

 

 

Perda

 

A perda existe,

Dói até nos esfacelar.

Todavia, por mais que andes triste,

Aguenta a cura que custar.

 

 

Forte

 

Tudo pendendo do nível

Que o violente,

Forte não é o indestrutível,

É o resistente.

 

 

Íntima

 

A tua dignidade

Não é do que os mais em ti verão,

É a tua íntima verdade,

Reconhecida ou não.

 

 

Chegas

 

Chegas e é a vida.

Amo-te para sobreviver, destarte,

Dia a dia, de seguida,

Ao que não for amar-te.

 

 

Olhos

 

Que os olhos a que apeles

Se não queixem de olhar:

São eles

Que te farão andar.

 

 

Merece

 

Merece a vida, merece-te,

Que, em seguida,

Parece-te

Feita à tua medida.

 

 

Ressurreição

 

Qualquer ressurreição principia

Com alguém já morto a se deixar

Para um novo dia

Puxar.

 

 

Alguém

 

Toda a gente chora

Mas tudo pode mudar

Quando, nalguma hora,

Houver alguém com quem chorar.

 

 

Crescemos

 

Crescemos jogando-nos fora da alegria

E do riso.

É mania...

Que falta de juízo!

 

 

Conforme

 

Por mor da empatia,

Alegras ou entristeces

Cada dia,

Conforme a cara que lhe ofereces.

 

 

Rasga-te

 

Quando não tens nada,

O pouco, mesmo fortuito,

Rasga-te no cotio uma estrada,

É muito.

 

 

Perene

 

Que este seja meu perene compasso:

Espero,

Quero

- E faço!

 

 

Arrependimento

 

Quanta felicidade se perdeu

Pelo fio

Que se ninguém teceu

Dum arrependimento tardio?

 

 

Vadiagem

 

Vadiar por vadiar

É uma vadiagem oca,

Nem vale a pena escapar

Da toca.

 

 

Nunca

 

Se bem nos orientamos,

Nunca perdemos:

Ou ganhamos

Ou aprendemos.

 

 

Ir

 

É não somente

Estar,

É ir permanentemente

Que é de saborear.

 

 

Lágrimas

 

As lágrimas que hão-de ser,

Para que hão-de servir

Se na tua pele é que é de aprender

A chorar e a rir?

 

 

Podes

 

Por quê ser aldeia

Se podes ser mundo?

Para quê palavra meia

Se com ela tudo inundo?

 

 

Basta-me

 

Para te amar tempo bastante

Basta-me este requisito

Adiante:

O Infinito!

 

 

Prefere

 

Prefere para melhor a mudança,

Que, só mesmo com preferir,

O que ela alcança

Desata a surgir.

 

 

Agradecer

 

Um abraço basta

Para agradecer a mágica trama

De toda a casta

De quem ama.

 

 

Dancemos

 

Dancemos além da dor,

Lambendo as feridas,

Que as lágrimas sejam do teor

De efémeras recaídas!

 

 

Daqui

 

No dia de ao amor voltar

Irás discernir

Que daqui, deste teu lar,

Nunca lograste sair.

 

 

Trilhos

 

Que as mãos te corram distâncias,

Teus dedos marquem estradas,

Todos os trilhos em ânsias

De madrugadas!

 

 

Dimensão

 

Quem amar sem medo

O medo assusta

Com a dimensão infinita e frágil – justa

Que aponta a dedo.

 

 

Servo

 

Se mandas em mim, amor,

Continua a mandar.

Antes teu servo servidor

Que teu refém, no mundo sem lugar.

 

 

Grande

 

Do Infinito tudo sinais

Em cena,

A vida é grande demais

De tão pequena!

 

 

Nenhum

 

Seja lá o que for a que acedo,

Seja lá o que for de que disponho,

Nenhum medo

Pára o sonho.

 

 

Capacidade

 

Fazer a diferença

É às vezes ter

A capacidade em presença

De deitar tudo a perder.

 

 

Ouvido

 

Temos sempre tudo a ganhar,

Apesar de ao ouvido quenquer

Passar a vida a nos rezingar

Que temos tudo a perder.

 

 

Acima

 

Quando acima de mim te coloco,

É acima de mim me colocar:

Então é que desemboco

Acima de mim no lugar.

 

 

Viver

 

Viver bem

É reordenar-me

Ao que aí vem

E então encantar-me.

 

 

Aumenta

 

Quem é grande

Aumenta os mais:

De cada um expande

Todos os tentáculos existenciais.

 

 

Grande

 

O grande a sério

Não tem medo

Dos grandes, que em seu império

É que às almas grandes acedo.

 

 

Alto

 

Os que vivem na lua,

Mais alto que os píncaros da serra,

É que valer a pena farão a tua

Vida na terra.

 

 

Deixámos

 

Deixámos de tentar

Quando

Deixámos de sonhar,

Nem esperando.

 

 

Mata

 

A doença

Que mata mais, em resumo,

É a presença

Da falta de rumo.

 

 

Murcha

 

Quando o corpo já te não responder,

Murcha a pele,

Trata de preferir ser

Para além dele.

 

 

Arranca

 

Que o que nos distinga

Seja a incapacidade de fazer de conta,

Que o que vinga

É o que nos arranca as entranhas de ponta a ponta.

 

 

Somos

 

No amanho

Do que somos e seremos,

Somos do tamanho

Das palavras que nos dizemos.

 

 

Continuar

 

Corre até ficar sem ar,

Já que assim

É que podes continuar a respirar

Vida até ao fim.

 

 

Mágoa

 

Que a mágoa não ocupe tudo,

Nem a tristeza

Seja o conteúdo

Da sina que seria de beleza!

 

 

Forma

 

O corpo é adorável

E tanto mais quanto mais nos ferra.

É a forma encontrável

De Deus na terra.

 

 

Encontrei

 

Encontrei um caminho,

Olhei-a, vi o rumo,

Perdi-me nela, de repente, de mansinho...

Mundo além, tudo o mais é fumo.

 

 

Nada

 

O mundo existe

Quando nos apaixonamos

Que é quando nada dele persiste

E o outro lado vislumbramos.

 

 

Mata

 

Nada mata mais

Que o amor.

Sorte demais

É que ressuscito melhor.

 

 

Harmonia

 

Mantemos a harmonia, de tudo apesar,

Coesos em conjunto,

Concordando em discordar

Sobre qualquer assunto.

 

 

Glória

 

A glória final,

Sempre esquiva,

É uma vitória pessoal

E colectiva.

 

 

Preferível

 

Os factos enfrentar

Sem batota

É preferível a ruminar

A derrota.

 

 

Violência

 

O cúmulo da violência contém

Uma forma imprevista:

Alguém impor a alguém

Seu próprio ponto de vista.

 

 

Satisfaz

 

O orvalho vale por ser orvalho,

Não pela rega que dispensa.

O trabalho satisfaz antes pelo trabalho,

Nunca apenas pela recompensa.

 

 

Olha-me

 

Olha-me como se eu existisse,

Aqui,

Como se nada mais bulisse,

- Olha-me de dentro de ti!

 

 

Guarde

 

Guarde, perene, num feixe

De memória:

- Nunca deixe

Que outrem escreva a sua história!

 

 

Último

 

Para que o último transporte

Em paz nos alcance,

Que o significado da morte

A morte contrabalance!

 

 

Imóvel

 

Mesmo imóvel, se dentro cheio,

Um homem é o Infinito

No recheio

Que concito.

 

 

Espírito

 

A imensidão

É para o espírito, não para os olhos.

Estes só encontram escolhos

No trilho aflito.

 

 

Germinando

 

A memória do céu,

De verdade,

És tu e eu

Germinando Eternidade.

 

 

Poesia

 

A poesia só é

Quando o poeta

Que em cada um tal detecta

O lê.

 

 

Acreditar

 

Acreditar é uma forma de sonho,

Só quem crê no sonho logra sonhar.

Velhice não são anos de que disponho,

É mais falta de sonho, os pés a tropeguear.