QUADRAS REGULARES
OS SONHOS
Humilde
Um humilde sapateiro
Sonha que pregará pregos.
E, nos buracos e regos,
Forja ali o mundo inteiro.
Dói
Quando dói não conseguir,
Só o amor então consegue,
É o que então nos junta ao ir
Ao sonho que alguém persegue.
Longe
O amor é longe. A lonjura
É o que atrai a si a trama
Da corrida onde se apura
A cordura de quem ama.
Perder
O que mais assusta
É perder o sonho:
É o que a morte custa
Que na vida aponho.
Casa
Casa rica em solidão
É como todas as casas:
Sempre aquela mesma mão
A todos soltando as asas.
Alguém
Alguém novo é um novo risco,
A oportunidade nova
Para a fome ou o petisco
Dum amor que é posto à prova.
Pintar
O que te não pintar sonho,
Que ilusão te não trouxer,
Que asas de teu pé risonho
Vai do chão raso acolher?
Sentir
O que não te apaixonar
Não te faz sentir menino,
Adolescente a trepar,
Vivo a lavrar o destino.
Debicar
O homem é a pardalada
A debicar por miúdo.
E eis que deste quase nada
Afinal fizemos tudo.
Essência
A essência humana é querer
Aquilo que nunca tem
E querer, quando o tiver,
O que não tiver além.
Só
Não olhes só para o sonho,
Não sonhes só com quanto olhes:
As franjas que justaponho
Todas no meio as recolhes.
Nunca
O displicente não sabe
Nunca o que for euforia.
No porvir nunca então cabe,
Dele nunca nasce o dia.
Poisar
Poisar não é uma traição,
É o outro lado do sonho,
O forno onde cozo o pão
Que depois na mesa ponho.
Voares
Era de voares comigo
E rebolámos no chão.
Ao voar sei lá que persigo,
- Mas voamos até mais não!
Procurar
Ao procurar donde vim
E para onde é que vou,
Se me tira donde estou,
Já me inaugurou meu fim.
Político
Se o político é só bolso
E a lei for medida à nota,
Como é que a lonjura embolso
Sem perder-me em qualquer cota?
Afastar-se
Quem de tudo for capaz
De afastar-se por amor
Tem já o Infinito atrás
Através dele a se impor.
Corpos
Há dois corpos que se querem,
Há dois corpos que se têm.
Quaisquer almas que o conferem
Que mais querem para além?
Encontro-me
Quando o prazer acabou,
Encontro-me a sós comigo:
Se foi do amor ao abrigo,
Que sabor ao grande voo!
Esta
A maior profundidade
Que um amor poderá ter:
Uma noutra identidade
Mais esta na outra a ser.
Descobre-se
Ele, o eterno insatisfeito,
Quando ela lhe oferta tecto,
Olha de repente o peito
E descobre-se completo.
Dás-me
Dás-me tudo quanto podes,
Quanto podes a mim amas.
Assim é que ao mundo acodes,
Salva-lo do tronco às ramas.
Escrever
Ao escrever, eu sublinho,
Na mensagem que ali vem,
O valor que eu adivinho
Que o que a vida oferta tem.
Virem
Do grande a felicidade
Felicidade é acrescer,
Aos poucos, nos que ela invade
Por grandes virem a ser.
Fim
No fim do amor o que custa
É o sonho que ali sonhava
Todo findar cinza à justa,
Quando o Infindo ali ameava.
Relacionamento
Relacionamento fundo
É a verdade pequenina
Conter nela todo o mundo
E mais do porvir a sina.
Perde
Aquele que perde os sonhos
É o que fica ali parado,
Sempre a caminhar medonhos
Passos para nenhum lado.
Erga
Dum sonho a brotar
Que se erga uma casa,
Não deixe de voar
Só por falta de asa!
Altura
Tenho medo, muito medo,
Nunca estou à altura dela.
Mas inda bem que sucedo
Dela por mão feito estrela.
Lonjura
Uma vida só de errância
Pode não ser vida errada,
Quando a lonjura, a distância
For trilho de luz buscada.
Vai
Um amor sempre acontece:
Para onde vai não sabe,
Sabe que vai mas esquece
O mundo onde já não cabe.
Pés
Que os pés não parem a dança!
A maneira de buscar
O Infindo que não se alcança
É sempre recomeçar.
Cair
Se eu cair, não me descaia,
Desfrute, não só aguente,
Nunca abdique de além-raia,
Seja quem eterno tente!
Aprendam
Aprendam todos a andar,
Corram e sonhem ao salto
Da berma além do planalto
E nunca temam saltar!
Pico
Quero o pico da montanha,
Mesmo se a queda acontece.
A dor pode ser tamanha
Mas que euforia se esquece?
Quero
Eu quero tanto ter tudo
Como quero a própria vida,
Pagando em choro, contudo,
A franquia que é devida.
Novidade
A novidade do dia,
Um gelado, um gesto, um termo,
De ti súbito faria
Mundo novo em homem ermo.
Prova
Gostar de acordar,
Em qualquer idade,
Prova, singular,
A maturidade.
Basta
Vivermos tem de espantoso
Que ocorre todos os dias.
Basta estarmos e que gozo,
Mesmo a dor tem mil magias!
Gostar
Gostar de todos os dias
Como a uma criança agrade
Provará que as fantasias
Tecem a maturidade.
Beleza
A beleza invade,
Deixa a vida plena
Na simplicidade
Calma e bem serena.
Arte
Arte de tornar a vida
Agradável e feliz
É a sabedoria ouvida
Doutro mundo na matriz.
Voa
Quem voa depois da morte
É sempre de árvore folha
E é tamanha a minha sorte
Que é o que eu da morte recolha.
Dentro
Por dentro da escravatura
A liberdade restar
Irá que ninguém segura
De livre poder sonhar.
Verga-te
Quando cantas, o entusiasmo
Verga-te a infelicidade,
Abre-te os olhos de pasmo
A um mundo outro e outra idade.
Campo
Campo de concentração,
Vivemos aqui a prazo.
Sem esperança e ficção
Quem à vida ia dar azo?
Ténue
A luz ténue, no limiar
Desta fresta que te acoite,
Enquanto a aurora a tirar
Anda, lenta, a pele à noite...
Admiro
Admiro quem abandona
As precauções para ir,
Tal quem da vida se adona,
Sonhos próprios perseguir.
Transparecer
Para um acto fervoroso
Importa o significado
Transparecer, doloroso
Embora, ao sacrificado.
Inércia
Há muitos que são inertes
Mas a inércia é desespero
Quando agoirento despertes
Sem um horizonte vero.
Milhares
Eu tenho milhares de anos
Atrás de mim a ajudar.
Como é que inda há tantos danos
De enganos fora a driblar?