QUADRAS REGULARES
OS DEVERES
Casal
De pequenos bem pequenos
Se obram os grandes sinais.
Num casal que é mais ou menos
Anda um menos sempre a mais.
Orgulho
Se o orgulho se intromete
Numa relação humana,
É um terceiro que reflecte
Roubá-la aos dois de que emana.
Ama
Alguém como ama demais,
Se demais é sempre o amor?
É que, se demais não for,
Nem de amor terei sinais.
Limites
O que junta é recusar
Os limites juntamente,
Sem se embora ultrapassar
Nunca os limites da gente.
Trocando
Quando nos mata a preguiça,
O que junta é reagir,
Trocando tudo o que enguiça
Por tudo onde a vida rir.
Conforto
Vamos desaparecendo
No conforto: tudo integra.
Mas o amor menos vai sendo:
O amor nunca segue a regra.
Procura
Amar é continuar
À procura, em todo o lado,
De quanto, em nenhum lugar,
Quererá ser encontrado.
Optimismo
Optimismo não é o meio
Copo vislumbrar já cheio.
É optimismo, em lugar,
Sempre enchê-lo sem parar.
Acidente
O acidente que sofri,
A lágrima que chorei:
Recomecei tudo aí,
Tempo é semente da grei.
Mudança
A mudança a que me esquivo,
Sempre a tremer e a temer...
A mudança mantém vivo:
É uma escola de aprender!
Terei
Viver é ter tanto membro
Que por mais amputações
Com que em vida me desmembro
Terei sempre outras opções.
Irás
Quando eu já tiver morrido,
Irás tu na meia viagem.
Dá-lhe então todo o sentido:
Faz disto a tua vantagem.
Sentido
Da vida o sentido
Sentido não faz?
- É que é bem capaz
De ser proibido...
Travão
Quem te pede precaução,
Para pôr travão te avisa.
Vê lá bem se tua mão
Antes não te ele escraviza!
Comedido
Relativamente bom,
Razoavelmente agradável,
Comedido, de bom tom...
- Não tens outra terra arável?
Joga-o
O que só traz proibição,
Te impede de respirar,
Te comprime sem razão
Joga-o fora de teu lar.
Instinto
Se te traz más emoções
E teu instinto o rejeita
Nem sabes por que razões,
Afasta-o, tudo é maleita.
Torna
O que te torna orgulhoso
E logo após prepotente,
Da entrega te impede o gozo...
Que tenda ali tens assente?
Escolhas
Entre as escolhas que houver,
Mais que as mais fará sentido:
É só aquilo que nos ler
O que merece ser lido.
Mandante
Aqui jaz o abutre
Mandante das mãos:
Não caço o que as nutre,
Varro-as dos desvãos.
Doermos
Mormente se juntos for
Vida evocar dos defuntos,
Doermos juntos a dor
Hão-de ser de amor assuntos.
Porta
O pessimista acerta um dia,
Um dia o optimista acerta.
Ninguém por ti decidiria
Que porta fecha ou quer aberta.
Tímido
Tímido ser é defeito
Se o gesto que não tiver
Impedir tanto o sujeito
Que impede de mais viver.
Tentação
Seja a tentação tenaz,
O mundo embora acinzente,
Nunca deixes para trás
O que faz ir para a frente.
Grátis
Vidas grátis não existem.
Merece, pois, a que tens
E queres, onde persistem
Motivos de parabéns.
Ausência
O que é sempre intolerável
É sempre ausência de luta
Até onde for viável
Pelo bem que se desfruta.
Voes
É bom que voes. Então,
Vê lá bem onde aterrar:
Voar é mais que erguer do chão,
É chão ter onde poisar.
Trilhos
É dum novo povo
Trilhos percorrer:
Para um amor novo
Novo renascer.
Repara
Para que o mal não suceda
Nunca então irás tentar?
Repara que evita a queda
Só quem para trás ficar...
Porta
Uns dos outros precisamos,
Pois, seja em que época for,
Por ser felizes ansiamos
E esta é a porta para o amor.
Importa
O que mais importa à lida
É levar-nos rumo ao fim:
Já estragámos tanta vida,
Vem tirar-me a mim de mim!
Parte
Que o orgulho na palavra
Ou a vaidade no gesto
Não sejam da melhor lavra
Nem parte de meu apresto!
Multidão
Que a multidão lute,
Que inocente esmurre
E que eu só dispute
O que desemburre!
Depressa
Depressa nos apressemos,
Deixa lá os mais assuntos,
Vê o pouco tempo que temos
De estar para sempre juntos!
Movo
Que importa correr o mundo
Se só me movo ao desenho
Dele impresso em mim, fecundo,
Apenas quando te tenho?
Quero
Eu quero o todo de tudo,
Interminável, seguro:
Com medo ou sem medo, acudo
Sempre a trepar todo o muro.
Mudar
Mudar uma vida, além
De mudar o que andar mal
É mais ainda, afinal,
Mudar mesmo o que andar bem.
Prenda
Que nunca alguém um abraço
Venha algures a comprar,
Que é prenda em gratuito laço
Que todos poderão dar.
Abraço
Que um abraço nunca os braços
Seja apenas de quenquer,
Que as linhas todas e traços
Partilhe quantos houver!
Abraça
Que quem abraça abraçado
Seja em troca, sem medida,
Seja um lado todo o lado
E a vida inteira, em seguida!
Festa
Que o corpo seja um prazer,
À festa um perpétuo sim!
Ninguém se vá comprazer
Numa vida assim-assim.
Farto
Ando farto de aguentar.
Tenho medo de não ter,
Porém, com que me fartar
Se de aguentar não tiver.
Falte
Que nunca te falte a mão
Que te acalente ao deitar,
Pois ela vai ser então
A que leva a levantar.
Digas
Não digas não ao afecto,
Não fique um ai por gemer,
Nem grito gritado ao tecto:
- É que és tu a acontecer.
Fiques
Nunca tu fiques a meio
Quando quiseres o todo,
Um pedaço sem recheio
Quando inteiro for teu bodo.
Afaga
Afaga a mão de quem amas
E sê a mão afagada
De quem te quer. Sob as ramas
Da selva rasguem a estrada.
Falte
Que nunca falte a visão
Que for capaz de chorar:
Vai ser, em cada desvão,
A que te faz continuar.
Tratam
Todos tratam de matar
Aquilo que faz doer,
Poucos tratam de afastar
O que impede de vencer.
Coloco-te
Coloco-te num espaço
Onde devia estar eu?
Têm razão: meu abraço
Me abraça no abraço teu.
Redor
Quem é grande o que mais quer,
Além de grande ser bem,
É que em redor quem houver
Bem grande seja também.
Entre
Entre poesia e loucura
É assim que terei de ser
E a vida que se procura
Que um dia venha a ocorrer.
Final
Ao amor sempre convence-o
Com o tição que luzir:
No final é só silêncio
Se nada houver que sentir.
Viver
Viver é fazer,
Às vezes, também
O que muito bem
Nos apetecer.
Quanto
Quase quanto faz morrer
Podia ser evitado
Se lá chegar se puder
Uns minutos atrasado...
Promete
Promete não prometer
Nada a ninguém, nem a mim
Que o prometi não fazer
E agora aqui te amo assim.
Desiste
Desiste do que desgasta,
Dispensa o que não te importa.
Só o que a favor for nos basta,
Nunca o que as asas nos corta.
Tentar
Cada um seja pessoa,
Tudo gente que se veja,
Que nenhum desista à toa
Sem tentar mesmo o que almeja.
Acreditar
Acreditar no destino
É uma forma de preguiça:
A nada tocar me inclino,
Vou na onda que me enguiça.
Sofrer
Se só sofrer amanhã
Podes, no tempo que foge,
Porque hás-de assar na sertã
Logo todo o dia de hoje?
Negócio
A vida é toda ela
Um negócio a ser ganho,
Vaga a vaga da procela,
Todos os dias de amanho.
Quedas
Mesmo que eu me não levante
Do chão onde rastejar,
Há sempre quedas avante,
Mais vale erguer-me e voar.
Tenho
Há meio morrer
Sempre à vida esquivo.
Tenho de viver?
- Que então seja vivo!
Prender
Só quem ama e for amado
Deve prender e ser preso.
Tal prisão liberta o fado
Dum par a voar coeso.
Desgraça
Não tenhas medo do medo
E põe todo o mas de parte,
Repressão põe no degredo,
Que degreda qualquer arte!
Caos
Tu, indivíduo comum,
Sê hoje o caos total:
Vais acordar no incomum
O equilíbrio sem igual.
Lavar
Procuramos a banheira
A lavar a humilhação
Da busca nunca certeira
De o lodo largar no chão.
És
És uma incapacidade
Se dela te não libertas,
A seres tu de verdade
Nas portas ainda abertas.
Vive
Como sempre a vida foge,
Nem verdade outra entrevês.
Vive a vida como se hoje
Fosse da primeira vez.
Erra
Quem faz erra muita vez
Mas pior erro perfaz,
Erro embora que nem vês,
Aquele que nunca faz.
Simples
Deveria ser tornado
Tudo o mais simples possível,
Garantindo um alto nível
Ao não ser simplificado.
Cultivar
Cultivar a gentileza
Regula tanto a emoção
Que no fim o que mais preza
É salvar-me o coração.
Velho
O velho sempre amparar
É respeitar esta aposta:
O velho gosta de estar
Com aqueles de quem gosta.
Ocorrerão
Quando as pessoas se juntam
Em vez de manterem-se ilhas,
No que quer que então assuntam
Ocorrerão maravilhas.
Retribui
Se alguém se sente escutado,
Retribui esse favor:
Pensa do ouvinte o melhor,
Com parecer ponderado.
Agrupam-se
As pessoas semelhantes
Agrupam-se normalmente
Para objectivos distantes
Se atingirem mais à frente.
Crer
Que teu crer a violência
Rejeite contra quenquer,
Como a violência que houver
Contra ti, em consequência.
Guião
Para a Humanidade vim
Com o guião dos guiões:
- Temos todos de pôr fim,
Todos, às desuniões.
Pendor
Quando o pendor progressista
Assume o conservador,
Faz que o crescimento exista
Seguro e de si senhor.
Ninguém
Que ninguém possa vergar
Doutro qualquer o destino
Contra esta pedra angular:
- O querer deste com tino.
Cada
Cada homem tem direito
Dele próprio ao destino,
Enquanto não pisa a eito
O doutrem com o seu hino.
Combate
Combate bem sucedido
Será o que houver apanhado
O outro desprevenido
Onde nunca era atacado.
Ajuda
Mais vale saber
Que andar às escuras,
À escolha a fazer
Ajuda o que apuras.
Nades
No que não podes mudar
Não nades contra a corrente,
Sê como um peixe a nadar,
Deixa-te levar em frente.
Vive
Às vezes até ser bobos
É o melhor que se aconselha.
Quando é viver entre lobos,
Ninguém pode ser ovelha.
Pegar
Temos de pegar ao colo
Toda a nossa própria vida
Ou de mim nunca descolo
A culpa nela vivida.
Começo
Quando começo a ser eu,
Tal parece ameaçar-te...
Quando é que alguém entendeu
Que é ninguém de ninguém parte?
Artista
O artista deve inspirar-se
Nas experiências de vida:
Criatividade a alçar-se,
Ei-la, na justa medida.
Gestos
Somos sempre muito loucos,
Sempre em gesta repetente
À espera, nos gestos ocos,
Dum efeito diferente.
Agarrado
Àquele a quem não perdoo
Findo agarrado bem preso.
Se gratuito amor lhe doo,
Fico livre e findo ileso.
Agarrar-me
Agarrar-me a uma revolta
É como tomar veneno
À espera de que, na volta,
Alguém morra do que enceno.
Erguer
A régua, o esquadro, o compasso
Usamos a erguer o mundo,
O que é vencer, passo a passo,
Todo o inimigo: o infecundo.
Prudência
A prudência quer coragem
Para ganhar o que for,
Não só não perder na viagem:
Prudente é ser vencedor.
Conserto
Se a máquina se fendeu
Já sem conserto nenhum,
Então o homem cai do céu,
Todos salva do jejum.