MISCELÂNEA

 

O  RISO

 

 

 

Impor

 

Sempre uma opinião

Razão de findar ferido

É o mais sem-razão sentido

Que um palerma tem então.

 

 

Aguentar

 

Viver

É aguentar cabrões e cabras

Que a vida tiver a oferecer.

- Até que os portões nos abras

E que não sejas um deles qualquer.

 

(O que dá no mesmo, aliás,

Como verás:

 

De nenhum portão

É chave um qualquer cabrão).

 

 

Distinga

 

Há quem o estado civil

Distinga nalguns matizes

De todos os outros mil:

Comenta apenas – “Felizes!”

 

 

Caso

 

Não busques outrem moldar

Nunca, nunca à tua imagem,

Não se vá o caso dar

De se atingir tal moldagem.

 

 

Moldagem

 

Respostas novas,

Só com novas questões.

A linguagem procura provas,

Obriga a pensar os mandriões.

 

 

Prende-te

 

Se saíres à rua

Toda nua,

Prende-te logo o cardápio

Da indecência.

Ao larápio

Que, na pendência,

Te roubou a roupa,

Todo o mundo o poupa:

Continua a monte,

De toda esta gente

Indiferente

Bem para lá do horizonte.

 

 

Giro

 

O filho é giro. O que irrita

É que ele sabe que é giro

E que pode fazer fita,

Que ao fim tem sempre retiro.

 

 

Rotina

 

Rotina do lar:

Dois clientes de café,

Um ao lado do outro a rilhar,

A milhas um do outro mesmo ao pé.

 

 

Princípio

 

No princípio era a curta lonjura

E rendilhávamos com palavras o dia

E cada um o fazia.

Depois, natural, do amor a ventura,

Com a naturalidade

Com que hoje vem o sono.

 

Quando é que nossa identidade

Trocou de dono

Com a facilidade

De hoje abonar amor por sono?

 

 

Parolo

 

Dos intelectuais labrego,

Parolo dos eruditos,

Nele o saber cai num pego:

Mostrar que sabe - eis os fitos.

E é sempre, em cada jornada,

Mostrar que não sabe nada.

 

 

Iluminado

 

O iluminado às escuras

Cuida que ele ao sol deu luz.

Quando deveras apuras

O que a pretensão traduz,

É um analfabeto tal

Que emoção nem tem real.

 

Afectos que dele capto

São de quem é mentecapto.

 

Amputado de empatia,

Traz noite, não luz do dia.

 

 

Intelectualóide

 

O intelectualóide odeia

O que for bem sucedido:

Se tem sucesso é mancheia

De esterco algures colhido.

Só o que não for conhecendo

Conhecer vai merecendo.

 

Mas conhecido mal for,

Deixa logo de ser bem,

Junta-se ao monte maior

De esterco que aponta além.

O intelectualóide visa

O inconforme, por divisa.

 

Salta-pocinhas na horta,

Nunca o conteúdo lhe importa.

 

Inconformado constante,

Salta sempre para diante.

 

- Nunca um diamante descobre

Sob a areia que o encobre.

 

 

Desata

 

O intelectualóide com sucesso

Desata a ser feliz

Como quenquer cujo progresso

Atingiu o cume por um triz.

O problema é que, quando ao cume o alço,

Reparo que sempre anda descalço.

 

 

Goza

 

A burrice

Não sabe nada de nada

Mas goza a todos com tudo.

Perde a vida na chatice

De procurar o fio de meada

E, à saída como à entrada,

São zurros só de surdo-mudo.

 

A burrice

Reprova todos os anos

E crê que não há danos

Na parvoíce.

 

Pelo contrário,

É para ela a grandeza

Que prova quanto o parvo é turiferário

Da esperteza...

 

Da tontice

Da burrice,

Que beleza!

 

Mora no parque da idiotia,

A espreitar ao longe o da iluminação

Que lhe negaceia todo o dia

A dizer não.

 

 

Sabe

 

Toda a gente tem mania

De que sabe mesmo tudo.

Tanto o do café da via,

O político de entrudo,

Como o pai, mãe ou a tia

Têm o termo acertado

A qualquer momento errado.

 

Um asno com ousadia,

Até eu tenho a mania...

 

 

Aqui

 

Se aqui não estivermos

Para rir,

De que vale fingir

De estafermos?

Mais vale de vez ir!

Talvez haja, do outro lado,

De juízo um bocado...

 

 

Último

 

Se viveres cada dia

Como o último, decerto

Um dia vem que anuncia

Que finalmente estás certo.

 

 

Afirma

 

Afirma com energia

Um disparate qualquer

E encontrarás todo o dia

Quem acaba em ti a crer.

 

 

Quinze

 

“Em quinze anos de casada,

Sempre fiel a meu marido,

Nunca dei a cabeçada.

Mas ontem tinha bebido,

Tive um caso repentino.

Que desgraça de destino!...

 

Mata-me a culpa, doutor,

Quero esquecer tal revés!”

Então o hipnotizador,

Num gesto consolador,

Afaga-lhe a rubra tez.

E a si murmura: “outra vez?!”

 

 

Criança

 

Dezembro. A criança mal

Se contém. Então declina:

“Vou confirmar se o Natal

É mesmo ao virar da esquina!”

 

 

Miúdo

 

O miúdo, de repente,

Confessa, todo carinho:

“Quero ser independente

Mas não consigo sozinho...”

 

 

Mandamento

 

Um mandamento ignorado

Aos dez terás de acrescer:

Deves manter-te calado

Se nada tens a dizer.

 

 

Segredo

 

Do casamento no cinquentenário

O segredo perguntamos

De ser tão longitudinário.

E logo o marido,

Perfeitamente convencido:

“É que ambos me adoramos.”

 

 

Partilhá-las

 

O meu pai foi comer ostras

E partilhá-las comigo.

Veio um prato com amostras,

Abriu uma e diz consigo:

“Lembram-me umas enojadas

Amígdalas infectadas.”

 

- E eis como findou sozinho

De ostras um monte inteirinho.

 

 

Miúdo

 

O miúdo, muito intrigado:

“Se à noite óculos tirares,

Como podes reparado

Ter no sonho que sonhares?”

 

 

Sentem-se

 

Negociantes e políticos

Sentem-se mais à vontade

Com aqueles que, somíticos,

Nunca dirão, de verdade,

Seja embora grave a peça,

O que lhes vai na cabeça.

 

Homens honestos serão

Mesmo a pior maldição

 

Que aos políticos lançar

Pode quem os enfrentar.

 

 

Adora

 

O soldado adora a acção,

O político, a palavra.

Enquanto um lavra o chão,

O outro a mente lhe lavra.

 

 

Incêndios

 

Os incêndios queimam vida,

Cinzas são fertilizante

E a vida nova, em seguida,

Brota mais regurgitante.

 

Por mais meios que se tomem,

É assim, mesmo que o não louve:

Hoje aqui serás um homem,

Amanhã és uma couve!

 

Nem sequer dispões da jeira

De escolher ser cerejeira!...

 

 

Olhar

 

Quando sobrecarregado

Pelo corpo em demasia,

Não há olhar ao céu virado,

Nem se ergue em terra a fasquia.

 

Acabo-me transformado,

Menos que em cão, num lagarto

E sem sinais doutro parto.

 

 

Vendiam

 

Eles vendiam esterco

Se isso lhes desse dinheiro.

Como esperar, se me perco,

Deles o amor dum parceiro?

 

 

Mestre

 

Diz o mestre carpinteiro

Ante a Mona Lisa pura:

“É de arte o ponto cimeiro,

Que beleza de moldura!”

 

 

Engrenagem

 

Quando uma engrenagem manda

Matar as vitelas prenhas,

Ninguém que abaixo comanda

Pode impedir estas senhas.

 

Ainda bem que são só estas.

Se desengrenara mais,

Abatia, além das bestas,

Coronéis e generais...

 

 

Absurdo

 

Há sempre quem se convença

De que um absurdo é coerente:

Há quem creia uma doença

Curar matando o doente.

 

 

ÍNDICE

 

 

Quadras Regulares – Os Afectos

 

Quadras Regulares – As Contradições

 

Quadras Regulares – Os deveres

 

Quadras Regulares – Os sonhos

 

Quadras Irregulares – Afectos e Contradições

 

Quadras Irregulares – Deveres e Sonhos

 

Quintilhas – Miscelânea

 

Sextilhas Regulares – Miscelânea

 

Sextilhas Irregulares – Miscelânea

 

Poemas Regulares – Os afectos

 

Poemas Regulares – As Contradições

 

Poemas Regulares – Os Deveres

 

Poemas Regulares – Os Sonhos

 

Poemas Irregulares – Afectos e Contradições

 

Poemas Irregulares – Deveres e Sonhos

 

Sonetilhos – Miscelânea

 

Miscelânea – O Riso