POEMAS IRREGULARES
AFECTOS E CONTRADIÇÕES
Espalhados
Um governo,
Uma vez evacuado,
Já não é governo nenhum:
Um corpo terno,
De órgãos espalhados por todo o lado,
Nem sinal é de corpo algum.
Falta-lhe o botão de campainha
E a linha
Que o contínuo traria
Ao toque de qualquer fantasia.
Um organismo
Não é uma colecção,
É um abismo
Que nunca tem decifração.
Perpassa
Não és o teu corpo, não,
És o teu acto
Que nele perpassa então,
Em construção
Ou desacato.
O corpo faz parte da criadagem:
Basta uma cólera mais viva,
Um amor que te cativa,
Dum ódio feroz a triagem
E, sem mais haver ponderado,
Logo o corpo é sacrificado.
O corpo é meu,
Portanto, não sou eu.
Somos
Somos laços,
Não conceitos:
Damos abraços,
Apertamos peitos.
As palavras destes traços
São engaços:
Sem elas a arrecadar os pleitos
Tudo são vazios espaços.
Totalitários
Os totalitários
(Nazis,
Sectários partidários...)
Podem exterminar milhões de vidas em segundos.
Qualquer mãe,
Porém,
Põe os pontos nos is:
Apenas ela cria vida, novos mundos.
Quem é que, afinal,
Mais vale?
Longe
Nem sempre serei capaz
De ir tão longe quanto pedes,
De ir atrás
Do que precedes.
Irei fraquejar
E cair,
Incapaz quantas vezes de ganhar,
Ao ir!
Após, porém, cada derrota
Manter-me-ei vivo
Rompendo nova rota,
Furtivo.
Muitas vezes tocarei na ferida
Em carne viva que não queria,
Jamais desistirei, porém, da avenida
Só porque em enganei na via.
Desistir
Só porque me perdi,
Porque é mais fácil e dói
Construir?
O que construí
Já foi,
Só me resta o porvir,
Na areia do tempo minhas pegadas
Pelas estradas
A partir.
Peço-te
Peço-te amor?
Peço-te é desassossego:
Quando o amor for,
A nada mais terei apego.
É uma vida
De tal modo desprendida
Que, de repente,
Sei lá mais o que é da gente!
Preenche
Preenche por todos os lados?
É o amor.
Amores, porém, por inteiro integrados
Perderam o calor,
São o toque de finados,
É o vazio interior.
Um vazio vivido
É o amor já diluído.
O amor não é leve,
É pesado:
Quem o teve
É por dentro esmagado.
E é o que é libertador:
De mim
Nada mais resta, assim,
Sou por inteiro amor,
No fim.
Existes
Existes em teu corpo
Com teu imo.
Que é que mais encorpo:
Coloco no cimo
Teu cadáver ambulante
Ou teu íntimo que faz que ele se levante?
Aquele vejo,
Este pressinto,
Naquele me calejo,
Neste quantas vezes me minto!
Fecho os olhos e vejo-te assim,
Não no corpo, no íntimo de mim.
Vejo-te em corpo mas do mais é só imagem
E é assim que juntos vamos em viagem.
Pior
O pior do mundo são os coitadinhos.
Não vem isto de fora, é de dentro.
Impede de tentar,
Colher os azevinhos
Sem se picar.
E assim esboroa
Uma pessoa
Até ao centro.
Já nem esbraceja, afogada
Na rica sopa de coentro
Que a vida lhe serviu de entrada.
Deixo
Deixo para trás
O aquém do que pude ser,
O aquém ineficaz
Do sonho que vier.
A minha certeza
É a do aquém da Beleza.
Fui sempre um quase,
O chamiço
Que nunca ardeu a noite inteira
E, por isso,
Continua na base
Da fogueira
Que tem o enguiço
De nunca ser de vez ateada,
Qualquer que seja a jornada.
Todavia, o tição
Ninguém mo tira da mão.
E a ponta de calor
Larga para trás um vago rasto de fulgor.
Valer
Há-de valer a pena
Ouvir
Para em minha arena
Poder prosseguir.
Não há nenhum mal
Em cair,
A não ser que a tal ponto abale
Que até me venha a impedir
De algures ir.
Isto, sim, seria mau sinal.
Pode sempre, porém, ser
Apenas o momento de aprender.
Murmura
“Amo-te” – murmura cada esquina.
“Adoro-te” – escorrega da janela
Que se inclina,
Enquanto ensina
Inteirinha do amor a sequela.
E ninguém ao dinheiro apela!
(Perante tal vivência é uma latrina...)
- É que ao longe cintila mesmo uma estrela.
Hoje
Ontem jovem
Com os mil sonhos do mundo.
Hoje, velho, mal me movem
Os quase-sonhos do fundo.
Sou feliz
E sabe sempre a tão pouco!
A vida é doente da matriz
No cabouco.
Às vezes sabe a demais
E é urgente deixar.
Olhamos dentro e para trás
Tentando decifrar
E é de louco:
Pouca luz tem o lugar...
No fim é tudo igual
E tudo diferente:
É o sinal
Da gente.
Falou
A pessoa
Falou demais
Quando magoa:
As palavras são os sinais
De quanto amais,
Não a perversão
De quem quer ter alguém à mão.
O problema das coisas
Não é das coisas, não,
É do uso que lhes dás quando nelas poisas
Tua mão.
Fazer doer a outrem o que te dói
É imbecil.
Sempre, todavia, foi
Receita de muitos mil.
Confessa-o, fá-lo às vítimas entender,
É o caminho de se te perdoar,
Se ao invés
Alguma vez
Se refizer
O teu itinerário de magoar.
Tentar é o carreiro de ir
Até algum dia conseguir.
Um dia entenderemos todos
Que somos todos isto:
Um quisto
Que, apertado, explode a rodos
O pus
Que nos espelha pestíferos e nus.
Mostra
Se amas, di-lo,
Mostra que amas.
Não é um mero codicilo,
São do livro inteiro as tramas.
Por dentro do amor
É simples ser feliz,
Basta amar um ror
E não temer amor de qualquer cariz.
Quando foi
Que uma dor
Te jogou à cama?
Não foi o amor:
O amor só dói
Quando se não ama.
Incapacidade
O imutável,
A incapacidade de sentir
Que o mundo é maleável,
Dum dia para o outro há-de conseguir
Virar do avesso:
Basta que tu mudes
Algum tropeço
A que te grudes.
Trago
Trago o mundo inteiro escondido
Debaixo de meus braços.
Quantas vezes hei tremido
E recusado abraços!
Falta sempre algo
Quando falta amor.
Queria ser o fidalgo
Sob o braço protector
Dum pai-senhor,
O filho,
Não o caudilho
Salvador.
Jamais isto irei lograr
Se nem a mim me logrei salvar.
Carências
Tantas carências no ar
E tantos trilhos
E tantos sarilhos
Para as colmatar!
Amar é decidir
Que fartar primeiro
E que derradeiro
Me irá pungir:
A mãe e as lágrimas perdidas,
O pai e a tentativa
Ter, furtiva,
A urdir vidas
E quantos desafios mais
Dos dias pelas estradas reais...
Tanto amor no mundo!
(De vez em quando
Que basta fecundo
E jucundo
Para nos irmos suportando...)
O que mais importa
É que nada tem importância nenhuma:
É a porta
Da sabedoria suma.
Se eu morrer,
Nada se altera,
O mundo continua a correr
Ignorando-me, de era em era.
Alguém a amar-me, todavia, restará,
Do vazio com a dor.
O meu tamanho é o dacolá,
De quanto preenche o meu calor
O frio de quem
Me tem
E me perdeu,
Sem mais vestígio
Meu
Do que o fastígio
Duma vida
À lareira do amor
Eternamente aquecida.
Grande
O grande homem
Para a grande mulher
Não é o invencível sequer,
É o que se deixa perder,
Que o tomem
Porque quer,
Porque fitos
Mais altos o consomem:
Do amor os infinitos
Adoráveis requisitos.
Marca
O grande homem é tão diferente
Que nem marca a diferença:
Ele presente
É dela a presença.
E é para todos,
De mil e um modos,
Uma sentença.
Nenhum
Nenhum amor é para destruir.
Se me anulei a mim
Para só te querer a ti,
Ditei meu fim.
De mim ao sair
Para em mim ocupares meu lugar,
Por dentro já morri
Sem sequer reparar.
Larguei meu governo
Para te pôr a governar:
Meu vínculo com o eterno
Desatou a murchar.
E principiei a viver no inferno.
Requer
Até o amor desgovernado
Requer governo,
Senão
Tudo é destruição,
Tudo é canibalizado
No gosto superno
Da mútua aniquilação.
Quero mais e mais de ti,
Queres mais e mais de mim.
Não há carne que alivie
Tanta fome, assim.
Em lugar de amor,
Somos o terror
Da mútua final
Anulação total.
Tempo
Há tanto tempo que lá fora te deixei,
Como é que cá dentro te não abandonei?
Cedo ainda a ouvir como irás,
A atender o teu telefonema...
Acaso doravante do meu invés serei capaz?...
Cumprirei meu lema?
Vivo em ti,
Vives em mim
Ainda aqui,
Gema rejeitada,
Esmigalhada
No meu chão de serrim.
Aprendi, porém,
Que nunca fomos amor,
Fomos sempre um aquém
A destruir-nos com furor
E horror.
Onde o amor faz mais,
Fizemos menos,
Cada dia mais pequenos
E letais.
Em vez de nos tornar melhores,
Tornou-nos piores.
O amor não se explica,
Faz-nos bem.
Não é aquilo que apenas complica
E, de mal em mal, cada dia me tem
Mais refém.
Quem assim ama demais
Não ama nada,
Tem trocados os sinais
Da estrada.
Nunca fomos um nós,
Apenas um eu mais outro eu
E um ao outro se consumiu
Até morrer de indigestão após.
Ao amar, um mais um faz tudo.
Ao mal amar, um menos um faz nada:
Este é o resumo de entrudo
De nossa falhada
Jornada.
Velhos
Os velhos têm o mundo contra eles
Ou deles com pena,
Têm caruncho debaixo das peles
E o íntimo cheio de gangrena.
Queixam-se de que o tempo passa
E são eles que lhe abandonam a carcaça.
Então, o clima
É de que lhes corre por cima.
Engolem o tempo, não o digerem:
Como lhes resta pouco, preferem
Não viver vivendo,
Não ser enquanto ainda vão sendo...
Os velhos
Que se deixaram atar pelos artelhos,
Que há velhos cuja idade
Nunca emurchece a mocidade.
Como há jovens que germinaram tão velhos
Que deles as ideias
Andam cheias
De retorcidos chavelhos.
Vivemos
Somos insuficientes
Mas completos.
Nada nos falta
Na vida cheia de presentes
E falta-nos tudo
Nos sonhos secretos.
Jovens, vivemos a presença em alta;
Velhos, a ausência a doer num osso agudo.
A juventude é a ribalta,
A velhice, o balcão mudo
Na festa
Que vida à vida empresta.
Presta-lhe
Um adulto
É uma ambição
Inacabada.
A criança, então,
Presta-lhe culto:
Aprende a estrada
E a jogada.
E mais: sabendo sempre que não,
Logo de entrada.
Estranha
É estranha a impotência,
Obriga-nos a voar.
Das mágoas a ocorrência
Leva-nos então
À perfeição.
Procuro o ar
Quando caí no chão
E parei de respirar.
É estranho
Como da perda nos vem o ganho.
Quando
Quando me irrito,
Não devo.
Se me precipito,
É que me atrevo,
Não que o requisito
De ultrapassar o conflito
O requer
Por uma via qualquer.
Teimo, insisto,
Quando apenas
Isto
É maligno quisto
Da ternura a meio das cenas.
Sei que tudo apaga quanto inflames
Mas é o que por ora tenho para que ames.
Procurar
O que mais nos faz tremer
É sobretudo querer
Procurar não encontrar
Quem amo e não quero amar.
De quanta gente à mistura
Terei eu de ir à procura
Até conseguir deixar
Quem amo de procurar?
Que loucura, que loucura
O peito dentro a sangrar!
Brota
Quando a vida nos brota à frente,
Um segundo é espera demais:
A gente
Joga-se-lhe atrás
De repente.
Há lá tempo de pensar!
Pensar é outro tempo e outro lugar...
Insuficiência
A insuficiência que superar à mão
Preserva quem a acata.
A perfeição
(Eterna ilusão
Periodicamente
Renascente)
Mata.
Por mais que a aliste,
Jamais existe.
O pobre coitado vive do ganha-pão,
O rico poderoso, não.
Aquele esfalfa-se em carne viva,
Este refastela-se no que se lhe esquiva.
Aquele robustece,
Este perece.
Mantenho
O conflito preserva,
A harmonia mata.
Quando mantenho de reserva
O trilho da mata
E o jogo no conflito,
É à nova corrida que concito.
Quando na harmonia a erva
Atulha o chão,
A vida, não tarda, é serva
Da podridão.
Nem conflito sem saída,
Nem harmonia que me adormente à partida.
Difícil o bastante
Para ser desafiante,
Fácil quanto baste
Para ao muro proibido impor meu desgaste.
Toda a paz é o fruto
Duma guerra ultrapassada,
Equilibrada
Pelo produto
Da jornada.
Tempos
Há que tempos a não via!
Deu para entender
A magia:
Nunca havia
Deixado, afinal, de a ver.
Sentia a falta dela
Como o rasgado traço
Da janela
Que lhe abria à frente o mundo.
Que o abria até o cósmico espaço
Mais profundo.
Entre eles, porém, apenas ausência
Era por ora a viável vivência.
Amo-te
Amo-te e é tudo.
O mais é o milho miúdo
Das galinhas
Com que nutrimos o poleiro onde te aninhas
A germinar ovos de Páscoa
Com que temperamos para a vida
Qualquer áscua
Por ela requerida.
De viver a melhor arte,
A mais importante,
É amar-te,
O resto vem adiante.
Longe
Viver longe de quem amo,
Que motivo o justifica?
Pais, irmãos, família, amigos...
São muitos galhos do ramo
Que a vida desmultiplica
E todos são meus abrigos
E todos para a vida abrem postigos.
É tão fácil a mensagem,
O telefonema,
A visita ao correr duma viagem,
Uma tarde na praia a saborear a calema!...
Quem finda de procurar
Os demais
Deixa de encontrar.
Ora, teria vivido mais...
Cada
A cada amigo,
Que são poucos, quase ninguém,
Digo:
Cada um dos mais é um pelém
Comparado contigo.
Quando tenho amigos tais
De que preciso mais?
Meus
Os meus que já nos deixaram
Doem, por dentro a agarrar-me,
Ao lembrar-me
Do que fomos, cujos dias findaram
Do que poderíamos viver
E já não pode ser,
Do que por fazer ficou
E, todavia, se rematou...
Tudo o que a viver havia
Vivemo-lo, contudo, até ao derradeiro dia.
Apenas
O amor
É a vida.
Sem ele nem ela seria atingida,
Nem que seja pelo amor mais tísico,
O que vier se propor
Como apenas físico.
Até neste um mínimo de atracção
Tem de tocar o coração.
E é uma migalha de amor que acontece
Quando alguém lhe obedece.
Pobrezinho, sim,
Mas o derradeiro rasto de mim.
O incapaz de amar
Nem gente é nem animal,
É um vírus no ar:
Quem o respirar
Acabará mal.
É o triste estado
Da rotina enfadonha e cinzenta
Em que nada é do agrado
E nenhum sonho acalenta.
E nada inventa.
Desta sorte
Tudo é apenas morte
Lenta.
Inveja
A inveja do lado bom
É a pegada da ambição
A apostar
Em laborar,
Para atingir de oiro o tosão.
A inveja do lado mau
É a que pega no varapau
E desata a malhar estupidamente
Na gente.
Estupidez de calhau
Disfarçado de inteligente.
Vive
Nunca se vive de novo,
Que só se vive uma vez.
E um amor perdido não tem renovo
De frente nem de través,
É de vez!
Perdão
Por só agora te ter descoberto,
Eu que me cria desperto!
Afinal, não.
Saboreámos cidades,
Os mares,
Um vale de eternidades,
Odoríferos palmares...
A melhor parte da vida
A me embair
E ninguém a aplaudir,
Quando só à felicidade a palma é devida...
Vivemos o inesquecível,
Todo ele irrepetível.
Quando caíste,
Caí logo por ti,
Esperando que tu, a mão em riste,
Ainda me ampararias ali.
Somos tão um só,
Como deviremos pó?!
Repetir-te em outrem é impossível,
Sou eu, só e triste,
A repetir-me o irrepetível.
O que é contigo
Só contigo pode ser.
E tanta gente em perigo
Por não o entender!
Mapa
Na vida a oportunidade
É onde não houver destino,
Mapa da possibilidade
A perder de vista,
Com que atino
Ou desatino,
Em busca de minha pista.
Nascemos
Nascemos uns alegres
Vadios.
À medida que te integres,
Queimam-se-te os pavios
E já não corres.
Gradualmente, pelos fios
Dos cotios,
A vitalidade escorres.
Gradualmente, pelos novos atavios,
Morres.
Alvorada
Um dia qualquer,
Numa alvorada louçã,
Vai deixar de haver
Amanhã.
Vais acordar
E, quando te sacodes,
Hás-de reparar
Que acordar já não podes.
Bom seria
Que acordes antes de tal dia.
Lonjura
Quanta lonjura entre nós!
Tu, mulher de carreira.
Eu, homem de chinós,
De paletós,
Sem eira nem beira,
- De toda a pátina de pós
Dos avós.
E, primeiro,
Sem tolerar qualquer esbulho,
No topo cimeiro,
O meu ancestral orgulho!
- De indivíduos quanto quinhão,
De sujeitos quantas resmas
Se perderão
Em nome das imagens balofas delas mesmas!
Já
Uma casa
Onde já não há quem se ama
Já não tem um bater de asa,
Já não aquece uma brasa
Nem à noite abre uma cama.
Tenso
Do arrepio,
É um espaço imenso
Cheio de vazio,
Por mais diminuta
Que seja a gruta.
Separam-se
Separam-se os pais.
Porque é que se separam,
Quando, se bem reparam,
Há tantos sinais
De coisas boas, no porvir,
Para os unir?
- A criança não entende
E a tanta culpa tanto então se rende.
Adulto
Um adulto chora
Com medo de chorar,
Não vá outro humano reparar
Que o animal que nele mora
Ainda não perdeu o lugar.
Não vê que, por este engano,
Devém inumano.
E que um humano inteiro
Se enraíza do animal no atoleiro.
Ficaria mais fraco?
Ao contrário,
Aquela força fingida, em resumo sumário,
Não vale um pataco.
Mais lhe valera
Ser o bem frágil que nos enternecera.
Sobreviver
Sobreviver é o normal,
É a vida?
Não, é a primordial
Medida.
Maior que ela
Só dar a vida por quem precisar dela:
Quando o amor for tamanho
Que perdê-la
For um ganho.
Adultos
Os adultos a se separar
Quando há tanto para os juntar,
Até aquele pé
Teimoso no canapé
Que provocou a lonjura
Que doravante entre eles se apura...
Pese embora a saudade
Que os hoje invade,
É tarde demais
Para os sinais
De cura.
Ou não:
Quem quer dar a mão
Atenta
Da fornada ao pão
Que a masseira do íntimo de cada um fermenta?
Descobri-te
Descobri-te num jeito de olhar
E tu também, se calhar.
Sabia lá o que aquilo era!
Mas, quando o amor chega,
É uma esfera
Tão sem pega
Que não tem como o lera.
Só assim, porém,
É amor também.
Distracções
Entre as distracções de dois,
Bem no meio,
Vem depois
O amor.
É o recheio
Do fulgor.
- E o vazio finda cheio.
Enquanto
A vida acontece, madura,
Na viela
Enquanto andamos à procura
Dela.
O amor que, enfim,
É imortal,
Mata-se, afinal,
Assim.
Sobretudo
Amar é, sobretudo,
Colocar quem amo sobre tudo
O resto.
O sortudo
Dirão alguns que tem cabresto.
E ele, no gozo,
Mudo
Como um miúdo
Glorioso:
Crêem os mais que não presto?
Eu, porém,
Tenho o todo de tudo,
Com o meu ousio,
E o que eles têm
É um cesto
Vazio.
Criatura
Para além de sermos
Cada qual criatura incomparável,
Vivemos nos ermos,
Cada um nos termos
De seu inextricável
Torrão,
No clima
Duma criatura acima
De qualquer comparação.
E sempre o amor nos arrima
Para este chão.
Indivíduos
Os indivíduos são assim:
Por mais que os conheça,
Meu saber tropeça
Em incógnitas até ao fim.
Sempre imprevisíveis,
A si próprios estranhos,
Têm nas incógnitas os ganhos,
Aos outros inatingíveis,
Do império
Sobre o mistério.
Por dentro das peles,
É de vez só de cada um deles.
Coisas
O segredo
Das coisas em redor
É não terem medo.
Seja lá como for,
Eu mais quanto viva,
Tudo ao risco se esquiva,
Ninguém nele põe o credo.
E assim é que eu sucedo
Numa via alternativa.
Encontrarmos
Nos arraiais
Andamos todos juntos
Sem nos encontrarmos mais,
Cada qual metido com os próprios assuntos.
Nos prédios igualmente
Vive junta tanta gente
Que, nem vasculhando a mesma montra,
Se encontra:
Um quer clientes,
Outro quer prazer,
Outros, que ninguém os ouça, sequer,
Outro, em seu abono,
Tem apenas repentes
De sono...
Nem batendo mutuamente com as testas
Abrimos uns aos outros do imo as frestas.
Pior
O pior de amar
Não é o que obriga a fazer,
É o que impede, singular:
É que nem pensar
Logramos
Quando amamos,
Sequer.
E que tormenta a ocorrer,
A fustigar-nos os ramos!
Queria
Queria saber perdoar
Para viver melhor,
Mas há contas e contas por pagar,
As famílias a contrapor...
E nem um diferente olhar,
Um diferente abraço
Quando cuido saltar
Fora do laço.
O amor, ao me dar sentido,
Acaba por me pôr tolhido.
Mas um tolhido tão liberto
Em cada acerto!
Tira
Só o amor que tira a respiração
Nos impede de respirar:
Só a quem ama embarga então
O medo de perder quem amar.
Se nenhum amor existe,
A respiração persiste,
Sem nada importar,
Nem sequer ter ar.
Coragem
A coragem falha às vezes, de receio.
Quero fazer, dizer, conseguir
E fico a meio,
Sem além ir.
Tudo por mor
De autodefesa:
Quero o amor maior
E, quando ele vem,
Fujo, feito de caça presa,
Mata além.
É grande demais,
Por demais avassalador.
Consome-me até às funduras mais
Viscerais,
Nenhuma parte de mim,
Interior ou exterior,
Uma vez na rede presa,
Logra, ao fim,
Findar ilesa.
Amar
Com tamanha grandeza
É poder magoar
Com igual vileza.
Falto-me tanto!
Quantas vezes um degrau além,
Porém,
É a certeza
De que é verdadeiro o encanto
Que me advém!
E aquilo de que me esquivo
Será que me mantém
Vivo?
Amo-te cheio de medo...
- Do amor a trama,
Tarde e cedo,
É sempre assim que ama.
Retomar
Retomar a palavra do amor,
Porque o amor dói,
É retomar a dor
Que é e será desde o primeiro momento em que foi.
Mas também a euforia
Que é um mundo novo
Cada novo dia
A germinar do ovo.
Doer-me
Ei-la ali,
A doer-me o suficiente
O aprazível
Bisturi,
Para interminavelmente
Devir inesquecível.
Ei-la ali, amorosamente
Terrível.
Antes
Antes do tempo ela chega,
No momento
Certo.
Aí, desperto,
Que a carne da realidade me pega
E obnubila o pensamento.
Que casa tão pequena
Para duas histórias tão grandes!
As palavras param na cena,
À espera do que mandes.
A felicidade são palavras paradas
À espera de mexer
As terras lavradas
De colheitas a haver.
Quando chegar a hora
Que já nem demora.
Certeza
Quando tive a certeza de a não amar,
Comecei a amá-la.
Veio o corpo dela, o cheiro dela e dela o luar
E, de repente,
Tudo em frente
Me regala.
É a festa de toda a gente
Vestida de gala
Que, inesperadamente,
Dos olhos à mente
Me arregala.
O mundo inteiro é diferente!
Corro, indigente,
E faço a mala,
A deixar-me ir na corrente...
- Como não amar a magia
Doutro mundo noutro dia?
Lei
A lei não entende a vida,
Não diz que nasci
No dia em que a vi
Com olhos de alvor,
Do lar na lida,
Quando me pungiu o amor.
A lei não sabe amar.
Sabe lá bem
O que é o fulgor
Dum raio de luar,
Do cachão do mar
Por nós os dois
Além
A trombetear!
A lei apaga os sóis
Que acendemos ao juntos caminhar.
Intromete-se
O orgasmo
Intromete-se no interior
Da dor
E é um pasmo:
Mais além que o que agrade,
Vivido com amor
É felicidade.
Carência
Sem amor, o sexo
É uma carência qualquer,
Sem passado nem futuro conexo,
Como o apetite de comer.
Um prato de arroz,
Um livro que me alheou do mundo,
Um filme que me tolheu a voz...
- Tudo é um orgasmo então pouco fecundo.
Orgasmo a sério,
No meio da teia do amor
Inaugura um império,
Embora quem ama nem o vá supor.
Esborrato
Por mais que tente apagar-te,
Só te esborrato aqui dentro.
Se me concentro,
Surpreendo-te, destarte,
A alastrar-te
Como mancha
Que não pára, por toda a parte,
Que se engancha
Em nova dor,
Por trás de cada pendor.
Toda a dor do parto
De mim que a vida inteira acarto
É uma dor de amor.
Pior
O pior da vida
É estares apaixonado sem medida
E, do outro lado,
Alguém sem medida por ti apaixonado,
E, um dia depois,
Já não serem mais dois
Mas apenas um,
Que a teu lado já não resta mais nenhum.
O pior da vida é resistir
À morte dum amor que deixou de te sorrir.
O corpo continua
A bulir
Quando já morreu toda a rua
Por onde era de ir.
Como dói
Quando o que fizera a vida existir
Já se foi!
Existes
Existes tu, depois eu.
Sei lá bem quem és,
Sei lá bem quem sou!
Perco-me de mim em mim:
Devo fazer de meu,
Talvez,
O que nunca colidiu,
Nunca chocou,
Assim,
Das gaivotas com o voo
Das marés
Que trepam pelo teu peito
No teu estranho jeito.
Mas porque é que colidimos?
Eu também gosto de mar
E de voar
Aos cimos
Contigo a par...
Temos tanto que nos une!
Será que a sorte nos pune
Por nos darmos tão bem?
Já reparaste
Que eu dou-me e tu dás-te
Sem fronteiras para além?
E depois é um termo, um gesto,
Uma desatenção, uma atenção demais
E explode o que não presto
E saltas de teus varais...
Sei lá bem donde vem isto,
O vulcão que nos empedra a lava em xisto!
E nós sem saber que regra
Em nós o integra!
Em que ficamos
Quando, perdidos os remos,
Nunca sabemos
Onde estamos?
Imprevisto
O imprevisto devolve a atenção
Ao que me correr diante.
Se fora apenas o costumeiro ramerrão
Fatigante,
Ninguém precisaria
De estar atento algum dia:
Ligo o piloto automático
E é prático.
Não é, porém, o modo melhor
De à vida me propor.
É ser um semi-vivo meio esquecido
Em coma induzido.
O imprevisto, sem medo
(Nem o podes evitar),
Explora tu no que tem para te dar
Sempre bem cedo:
É a vida desregrada
A espicaçar-te a pegada.
Quase toda a felicidade
Vem-te dum imprevisto
Que te provoca e agrade.
E o mais dela
É do que ainda nem hajas visto
De tua mísera viela.
São
A vida são obstáculos,
Deixa-me ferido,
Mói-me a paciência,
Leva-me do amor aos pináculos
E deixa-me por dentro despido,
Traído
À primeira saliência
De penedia
Na via...
Contra-ataca tu decidido,
Que o que a vida vale,
Afinal,
É nisto que é medido.
Quando ripostas, ela recua,
Amansa,
Parece ingénua criança
A brincar na rua.
Mas não confies, que ela nunca se amestra.
Mal te distrais,
Logo te defenestra
E no abismo cais.
Todavia, por desagradável
Que seja até demais,
É sempre inestimável.
Amar
Amar é de loucos
E de heróis também.
Requer uma coragem que bem poucos
Têm.
Quantos um exército derrotam
E depois choram, cachorros abandonados,
Quando o amor com que vida fora trotam
Embotam
E lhes escorrega entre os dedos enregelados!
Há os que o agarram de frente,
Felizes e coitados,
Enormes e desgraçados
Faróis de marés de gente.
Tão pouco na vida isto nos eleva
Que nem cremos ser real!
E não é, que a treva
É bem maior que a luz do fanal.
Todavia, desde quando
Apenas existe
O que eu for tocando?
E que só o que ali persiste
Me confere consistência
À existência?
Desde quando?
Ou que requeiro que a ciência
Comprove
O que dentro em mim me move?
Ora, é apenas isto o que, infinitamente fecundo,
Move o mundo.
Escravo
Ser escravo prefiro, a teu pé
Se a teu pé me quiseres,
Em teus braços, se é
Onde me preferes...
Onde me queres aí eu estar
É quanto me basta
Para não querer, em lugar,
Lugar doutra casta.
Sou do lugar onde respiras
Porque só amo, todas as horas,
Da chaminé as espiras
Donde moras.
Mil
Se aqui estiveras, dirias
Para continuar:
- Faz-te à vida, que há mil outras vias
Por explorar!
E eu diria
Que não tens razão,
Porém, seguiria
A tua imposição.
Para saberes
Do amor o rosto mero:
O que tu quiseres
É sempre o que mais quero.
Morrer
Morrer, quando vivenciado,
Dois indivíduos requer:
O que morre para o outro lado,
O que deste lado continua a viver.
Se este não aceitar a partida
Da parte de fora de si
Que o outro era, o além-aqui,
Finda a viver meia vida.
Rachado ao meio,
Requer viver outra vez
Mas não roda nunca neste entremez
Nenhuma roda de sorteio.
Herói
Herói é quem,
Tendo tudo,
Tem também,
Quando preciso,
O juízo
De deitar fora o sobretudo
E ficar um pelém
Que arrisca tudo perder
À procura de tudo ganhar.
Quem o não fizer
É que perdido há-de andar,
Sem o saber
Sequer.
Há muito porventura se perdeu:
Paz a tal alma, fora,
Embora,
Eternamente do céu.
Felicita
Felicitador
É que felicita, com palmadinhas de amor,
O costado
Do felicitado.
Passa a vida, em qualquer lugar,
A felicitar:
“Parabéns, conseguiste!
Quem diria
Que alguém o lograria!
Mas aquilo diz-te muito, diz-te...”
Os felicitados, ao invés,
Passam a vida a criar motivos de felicitações,
De tudo através,
Sejam quais forem dos dias os baldões.
Ouvem que pode não dar
E depois os parabéns.
Ou que alto demais andam a sonhar
E depois: “que força tens!”
O felicitador felicita,
Não concita
Outra matriz.
- O felicitado é feliz!
Ausência
Ausência da tua voz
No silêncio,
Ausência de já não sermos nós.
Penso o que penso.
Pense-o
Embora
A toda a hora,
É no denso
Silêncio
De tua voz
Que meu pensamento mora.
Mas já não somos nós!...
Nem eu sequer, após,
Neste vazio
De seres tu em mim
A pensar, assim.
De mim resta algum fio?
Encheste-me a cabeça
E nela a vida inteira me tropeça.
Na ausência de nós,
Que serei eu sem voz?
Abraçar-me
Sou tão teu
Que, quando te abraço,
O abraço não é o meu,
É este meu teu braço
A levantar-me o véu
Duma pontinha de céu.
Se bem vi,
Assim,
Ao abraçar-me a ti,
Em ti me abraço a mim.
Tão de ti sou por todo o lado
Que, quando te abraço,
Nem há para dois espaço:
Sinto-me abraçado.
Quando
Quando te amo, estou a amar-me,
Tudo o que quero é o que te quero,
Tudo o que sinto, o que te sinto.
Tudo o que existo é o carme
Em que me existes, poema mero,
Carne e sangue que me pinto.
Como separar
O que a mim amo do que eu amar?
Dilacere
A dor
Que te atormenta,
Dilacere lá o que for,
É sempre uma ferramenta.
Como a alegria
É uma ferramenta
Com a garantia
De que ultrapassaste a tormenta.
Paixão
Tudo começa
Com a paixão que já não aconteça.
Com a maturidade
A apagar fogos
Que, sem alternativas nem jogos,
Irão morrendo, idade a idade.
Amar é aquilo?
A partilha funérea,
A escravidão silente ao sigilo,
A violência etérea
Duma repressão de vida
Camufladamente,
Embora mutuamente,
Assistida?
- Amo-te o suficiente
Para não te querer nunca tão ausente.
Busca
O louco
Busca o prazer
No muito e no pouco,
Sem ligar sequer
Ao preconceito,
Pois apenas desprezá-lo toma a peito.
E é uma alegria
Lavar a loiça,
Pintar uma gelosia,
Enxotar a galinha que na horta retoiça...
Nada lhe importa
O valor externo
Que o acto tem,
Vale é a porta
Para o gozo interno
Que daí provém.
- Assim o louco todo o dia
É o mago da sabedoria.
Derradeiro
O corpo é o derradeiro a morrer.
Recipiente,
Não precisa do conteúdo para ser.
E é um ente
Que perdura milhões e milhões de anos
Sem a entidade presente
Que nele viveu assente,
Até do tablado do mundo ter cerrado os panos.
O corpo mantém-se vivo
Da terra no cósmico arquivo.
Quem nele viveu,
Só do outro lado no misterioso gineceu.
Fomos
Já fomos e desistimos,
Morremos há muito
E ainda aqui estamos, num tempo gratuito.
No corpo garantimos
Continuar por aqui,
Tal se nada houvera ocorrido.
E nada ocorreu em mim nem em ti
Que de fora pode ser percebido:
A mesma casa, os mesmos gestos,
Os mesmos corpos, iguais aprestos...
O que nos muda ninguém vê,
Ninguém vê o que o mundo muda.
E somos nós quem lhe acuda
Ou ninguém o põe de pé.
Ninguém, porém, o vê de fora,
É tudo igual a toda a hora.
Ainda te amo, por mais que nem acaso o queira.
Eu bem me tento
Mas apenas à tua beira,
Amando-te, me aguento.
- E assim é nossa vida inteira.
Ocorre
Ocorre o futuro
Todos os dias.
Que me trará não auguro
Para além de fantasias.
Se eu não quiser ser mais um,
Que margem de porvir me dará
Para não ser rotineiro nenhum
Como tantos por aqui, por acolá?
Quero o imponderável, a surpresa,
A euforia de estoirar toda a represa.
Quero amar, dançar, trepar o monte a pino,
Imaginar e realizar o que imagino.
Mudar o mundo com a ajuda
Do artista que muda.
Fazer o que me apetece
Contra quanto me aborrece:
Contra a comunidade,
O que for imposto,
Contra o professor que me não persuade,
Contra quem não sabe nada
Mas não perde o gosto
De me acusar
De eu nada saber, de entrada,
Recusando-me lugar.
Sou a rebelião
Contra o que só pode ser.
Como então
No meu vazio me conter?
Em que margem de porvir
O futuro me permite construir?
- Somos sempre o indeciso
Adolescente,
Eu e toda a gente,
Perenemente em busca de siso.
E perenemente inseguros
Do que nos imporão nossos futuros.
Solidão
Ninguém adivinha
Onde estou,
A solidão acontece.
Os doutra idade
Ignoram os da minha.
Então sou
Um palerma refece,
Perfil da incapacidade,
Medida
Duma altura falida...
E aqui vou,
Na própria dúvida perdido,
Em mim mesmo tão fechado
Que nem no que anda em redor tomo sentido,
No mundo com que hei cortado.
Nem reparo que há outros assim,
Aqui mesmo ao lado,
Com dúvidas iguais,
Iguais inquietações.
Tão perto de mim
E eu aos baldões,
Sem reparar nos sinais!
E eis como a vida inteira sou o adolescente
Modelo de toda a gente.
Penso
Penso demais
E demais questiono.
Não devia magoar-me jamais
A questão sem abono:
Ignorar quem sou,
Porquê, por quem, de quem...
Magoa, porém,
Que é por onde vou.
A música ouvir,
Um texto ler,
A mensagem que acolher...
- Porque não sorrir,
De tanto às vezes doer?
E quanto magoa!
Não
me iludo:
Às vezes magoa tudo.
De quanta dor doa,
Perco-me da estrada.
Que irá ser minha jornada?...
Tal é a vida inteira,
Não é palermice:
Da criança, ao adolescente, à velhice,
Todos talhados na mesma madeira.
Asfixia
Um muro à frente, à volta um muro,
Uma rua fechada,
Asfixia constante e eu sem seguro
Para a jornada.
A garganta da vida apertada,
Um medo silencioso,
A opressão camuflada
Por detrás do gozo.
Tudo ou nada
À porta de entrada.
Do pessimismo a cobertura
No bolo do conforto.
Quanta amargura
E eu no horizonte não vislumbro porto.
Sento-me para sofrer
E a sofrer me fecho.
Tanto a doer
Sem final desfecho!
Corpo sempre em obras,
Horas e horas de estudo,
Colegas cruéis a roubar-me as sobras,
Amor, nada ou bem correspondido,
Sempre a falar mudo,
Meio ou todo sem sentido...
Desejo nunca saciado
Na incompreensão dos mais
E sempre os pais,
Biológicos ou outros que tais
A amear do passado...
Tanto para sofrer
E tão pouco para rir!
E eu sempre a imitar outro qualquer
Na hora de ir:
Ponho a família à gargalhada
Com a minha piada,
Os colegas encantados
Com meus contos tresloucados,
Brinco por fora
Enquanto dentro de mim outro mora.
Aguento
Porque tento, tento, tento...
O optimismo é uma trabalheira
E é sempre oco, de qualquer maneira.
Crescer é grave
E o peso da gravidade
Dia a dia me enterra, suave,
Em maior profundidade.
E eu que não paro de crescer,
Eterno adolescente,
Desde que nasci até morrer,
Quer por dentro quer por fora em mim atente!
Apetece-me a adultez
E a pequenez,
O que não tenho ainda
E o que já não tenho, perdido à vinda.
Sou sempre o intermédio do caminho,
No meio de todos para aqui sozinho.
Relevante
O intelectualóide produz
Só de relevante o ódio.
A crítica é que o traduz:
Tudo é mau, trepado ao pódio,
É horrível,
Tudo indecente, terrível...
Tudo é burro,
Uma trampa
Que em cada dia se estampa
No zurro
De quem não sabe nada,
Nada pensa na jornada.
Ninguém vê pitada,
O país, o mundo inteiro é uma desgraça,
Tudo a acabar na negra traça
Do iminente fim da estrada.
Toda a gente cheira mal,
A comida anda estragada
E até mesmo o vendaval
Venta ao invés do que agrada.
Água esfria
Ou aquece
Quando a gente a quereria
Ao invés do que acontece.
Que civismo?!
Tudo uma quadrilha de ladrões!
Ninguém ajuda ninguém a puxar o autoclismo
Deste mundo de senões.
- O intelectualóide
É deveras desgastante.
Adiante,
Além do tablóide,
Que aqui não há real que se implante,
É tudo artificial celulóide!
Derrotista
O derrotista sistémico
É um paspalho,
Falhado académico
A tentar fugir ao rebotalho.
Débil profundo,
Permite aos demais
Entenderem qual o lado fecundo
Dos pendores da vida reais.
Quando me sinto menos bem,
Logo encaixo
Dum falsário o discurso que tem.
De imediato na corrente me enfaixo
Do saber que convida
E tem a vida.
O derrotista é o cão
Furibundo
A esgravatar da casota no chão
Do mundo.
Onde
Onde uma ponta de ficção
No meio de tanta verdade?
A verdade é uma traição,
Uma fraude,
Não existe,
Por muito que seja triste.
É tão valorizada!
E é uma mentira pegada...
É, inelutavelmente, mera aproximação,
Fatalmente truncada.
Não merece andar à frente, pois,
Duma possível ficção
A dois.
Quando a ficção se partilha,
Desta meia verdade a quilha
Cruza da vida a barra estreita
E é disto que a felicidade é feita.
Estúpido
O estúpido é ressabiado,
Morre de inveja.
Tudo o que vir é malvado,
Tudo o que é feito é mal feito,
Por melhor que seja
E até lhe dê jeito.
Se não foi ele que fez,
É de má rês.
O comentário odiento
É da vida dele o confortável assento.
E é o que o invade
De úlceras, colapsos cardíacos,
De infelicidade.
Os estúpidos são tão maníacos
Que não aguentam quem tem dedos para criar
E não apenas para os mais a dedo apontar.
O ressabiamento aponta na lonjura
A felicidade
Que nunca o persuade,
Sempre a uma distância segura.
Vaidade
A vaidade torna o estúpido
Infinitamente cúpido:
Exibe que sabe mais
E que mais tem,
Mais pode do que os demais
E logra mais também...
Fica muito deprimido
Quando alguém
Lhe confidencia ao ouvido
Que não é, em todo o continente,
Nem ela a mais bela, nem ele o mais inteligente.
É tudo maquilhagem
À superfície da mente.
Para a profundidade qualquer viagem
Finda permanentemente
Ausente.
Deixar
Queria deixar de ser eu,
Embora ser eu nem consiga.
Tenho de meu
Apenas a briga:
Sou uma espécie de mim,
Uma simulação,
Personagem de intriga
E paixão,
Improvisando o papel até ao fim.
E acabo tropeçando no palco,
Caindo no catafalco.
Cima
Por cima do que quiseres,
Ama.
O amor só desiste após venceres.
Consome, dilacera, abraça, aperta,
Até que tudo acama
Na praia dantes deserta.
Até lograr, no final,
O papel principal.
No jogo da apanha
Da humanidade
É sempre ele que ganha.
Por muito que a consumação seja estranha,
De verdade,
O amor é, por derradeiro,
Do Universo inteiro
A finalidade.
Varreres
Não tinhas o direito
De entrar por mim adentro,
Varreres tudo a eito
Como se fora lixo,
Ocupares de minha vida o centro,
Sem de mim restar um nicho.
E depois ires embora,
Sem um aceno:
Entraste, amaste, magoaste e foste
Na hora.
E eu para aqui fiquei, perdido no terreno,
Solitário poste
De estrada
Abandonada.
A aguardar que tudo voltaria
Um dia,
Que fora brincadeira,
Que não tinhas ido, naquela tarde
Derradeira,
Em fuga cobarde...
Mas nem por sangrar
Tanta hora dolorida
Deixas de ser o par
De minha vida.
Fera
Amar, deveras amar
É nos braços te imaginar
De quem, fera no fojo,
Até te mete nojo:
Tenho nojo de haver-te pertencido,
Mas o que eu daria para voltar ao que haja sido!
Nojo do teu beijo,
Nojo do teu abraço,
Nojo do intérmino cortejo
Do teu embaraço...
Nojo de tudo o que é teu!
O pior é que tudo o que é meu
Continua disponível para ti.
Disponível para o nojo que tu és
Nojo que és para aí,
Definitivamente a pisar-me com os pés.
Tenho-te nojo e saudade
Em completa paridade.
Sendo
Para ser eu, só sendo teu,
Entregar-me todo ao todo que em mim agarras,
Ao céu
De tuas garras.
A paz de nossos corpos e vivências
É a única guerra construtiva,
As suaves violências
Da vida esquiva.
Quenquer que seja,
Se alguém ser almeja,
Ou ama inteiro assim
Ou já se perdeu do fim.
É preciso a coragem
De querer sempre amar
Ou a viagem
Não terá lugar.
Celebrante
O celebrante diz
“Oremos!”
E a tua palavra condiz:
“Amemos!”
E todo o mundo ajoelha
Na laje onde fulge esta centelha.
Bem mais que a do milenário torpor,
És a palavra do Senhor.
Como seria sem amor viver?
Teria, assim,
De viver, eu como quenquer,
Sem mim.
Somos tão nós que, depois,
Se morres tu, morremos os dois.
Não é dos afazeres:
Para matar-me, basta morreres.
Precisamo-nos para além do razoável.
Mas a razão
Não é prioritária
Na função,
Antes serventuária
Eficazmente interminável.
Cintilam
Quem se ama,
Se me ponho a reparar,
Tem sempre tão pouco, tanta lama
Para nos dar!
Mas é na lama que, belas,
Cintilam as estrelas,
As únicas ao meu alcance,
Para onde quer que os olhos lance.
Tinha
Ela tinha um marido
Mas faltava-lhe o gemido
A entrar-lhe pela flébil alma.
E era aí que o outro chegava
Em cada furtiva e brava
Escapadela de colher a palma.
E ele tinha uma mulher
Que era daquela a melhor amiga.
Um dia qualquer
Foi a briga.
Os amantes na cama furtiva,
A mulher a abrir a porta
E a fechá-la, esquiva
E meia morta.
O divórcio desuniu
O que afinal não andava unido.
Cada qual para seu lado fugiu,
Sem rumo nem sentido.
Cada qual viveu sozinho
No meio de variegada companhia.
Viveu a vida inteira
Sem mais beira
De ninho,
A olhar a lonjura vazia.
Aprenderam que o amor não se partilha
Nem completa.
Morreu cada um em sua ilha
Discreta.
Há muito já que tinham morrido,
Porém,
Nos portos da vida onde deles o bramido
Nunca chegara dalém.
Jovem
Uma jovem a despir-se
É o filme dum herói qualquer
A redimir-se,
Ao ter,
De repente,
De salvar toda a gente.
Um corpo velho é o defeito
Inesperado:
Aquele pedaço deslocado
Bole-me no peito,
Abre-me a ferida do lado.
Excita
Doutra maneira:
Põe a vida à compita
Da morte com a leira.
A vida acaba
Quando deixamos de fazer,
Trancando a aldraba,
O que da fundura nos aprouver.
Decidir
A idade
A decidir a companhia
É a realidade
Mas é uma arrelia.
Como num jardim zoológico,
Por espécies divididos,
Não vá o equilíbrio ecológico
Levar a que uns pelos outros sejam comidos...
Ecossistema equilibrado
Quando o que importa é a sensação,
O toque sonhado
No coração.
Senão
De castigo,
Não quero ninguém comigo.
- A idade não define
O que em comunidade nos combine.
Simples
Tudo é simples e nós complicamos:
Hierarquias, linguagens, dinheiro, estatutos...
E estranhamos
Os produtos!
Com tais maneiras
Não há caminhos rectos:
Erguemos barreiras
À livre circulação de afectos.
Tão espertos
Quão parvos,
Como nos desertos
Encontrar-vos?
Vemos
Vemos um lugar,
Como um estado de vida,
Sempre a comparar
Com o que queríamos encontrar,
Nunca na forma devida
De facto por eles revestida.
Então o juízo de valor
É o que esta arbitrariedade for.
Perdido
De olhar perdido, ele ali na estrada.
Ela perdida sempre, de ignorada.
- Amo-te – diz ela.
- Também te amo - diz ele, de olhar perdido na janela.
- Como na lua-de-mel –
Insiste ela.
- Igual – confirma ele,
Sem reparar na nódoa que isto suja na lapela.
- Adorei amar-te.
- Também.
E, enquanto ela se atém,
Ele parte.
- Destarte,
Nem ele nem ela serão nunca ninguém.
Monogamia
Monogamia passageira
É poligamia à beira.
Monogamia enquanto vai dando
É uma articulação esgarçando.
Monogamia
Ou para sempre é
Ou é fantasia
E ninguém porá de pé.
Até pode falhar,
Mas não pode estar dentro com um pé de fora,
À espera do que calhar
A toda a hora.
Ou apostas para a vida
Ou a aposta é fingida.
E ambos apostam
E não um apenas:
Ambos escolhem de quem gostam,
- Isto é que equilibra do lar as empenas.
Um ama e prende,
Outro não ama e prende na mesma?
Quanta escravatura rende
Do casal esta abantesma!
Só para ter,
Possuir,
Prender
E ser
Um nome, um estatuto das alturas do nadir?
- Do amor não entenderam nada
De como ele rasga a estrada.
Milénios
O inventor,
Inesperadamente,
Inventou
O amor.
De repente
Parou:
- Não é que o mundo, por todo o lado
Há milénios já que o tem inventado?!
Corre então a inventar
A imortalidade,
Mais uma vez sem reparar
Que é a mesma realidade:
A morte
Nada aniquila,
Muda o transporte
Do corpo minúsculo
Para o inumerável músculo
Do inteiro Universo
Com que finalmente
Infinitamente
Converso.
Mover
O amor
Faz mover a multidão
E o ódio, o mesmo chão
Àquele a se contrapor.
Ódio é um amor demente
A tomar conta da gente.
Um amor mexe com tudo,
Ninguém sabe donde vem
Nem que conteúdo
Dele brotará vida além.
Subverte sempre a razão,
Nem sabemos dela então.
O amor crucifica
Para não ser crucificado,
Ama para ser amado,
Cheio quando com nada fica.
Do ódio a fúria
É para vencer a incúria
Dum amor que preza,
Que só quer como presa.
Fere
Só para ajudar a curar
Quem quer
Amar.
Ateia o fogo pela paga
De ser o herói
Que o apaga
De tudo quanto dói.
Para arderem os dois
Juntos depois.
Morrerem um no outro juntos
E assim resolverem todos os assuntos.
A ressurreição perfeita
Na perfeita morte
E, desta feita,
Vergar de vez a sorte.
O motivo
De raiz:
Morrer feliz,
A única maneira de estar vivo.
A multidão elimina
Para eternizar:
O amor mata a sina
E gera-nos, em lugar.
Deveras
Amar
É deveras singular.
Mesmo que ame toda a gente
É só um de cada vez
Concretamente.
Não é um revés,
É que todo o universal
É em cada singular que se revela,
Na harmonia total
Que visa como sua final
Longínqua estrela.
Beleza
A beleza é um perigo vadio,
Sem dono.
Não é do atavio
E o mono é sempre mono.
A beleza é um perigo
Mas a vida que interessa
É sempre ao abrigo
De tal promessa.
E é irresistível,
O que é negativo,
Ao nível
Do que é vivo:
Desistimos de continuar,
Insistimos em ceder.
E a cedência, a par,
É perigo a ocorrer.
Venha alguém explicar
Porque é que sigo,
Tão sem ponderar,
Inimigo tão de mim amigo!
Diabólico
Diabólico é esperar
Um prazer
Que não chega nunca mais.
Expectativa ao gerar,
Principia a ser
Já nos devaneios virtuais.
Mas logo nos consome,
Nos aperta
Com a fome
Duma campina deserta.
Torna-se então imparável,
O que é bom
E mau também:
Aguilhoa-me à corrida interminável,
O que pode dar o tom
Que combina com alguém,
Ou torna-me refém,
A mim ou outro qualquer,
E então em dor devém
Todo e qualquer prazer.
Todos
Somos todos tão iguais,
Cada qual
Aos demais,
Trepado embora aos picos,
Coberto embora de requintes,
Que cheira tão mal
O fumo dos ricos
Como o fumo dos pedintes.
Tanto o da solarenga lareira
Como o da aborígene fogueira,
O do mísero velório
Como o do faustoso crematório.
Todos iguais
No rio dos derradeiros
Sinais,
Os definitivamente verdadeiros.
Continua
A vida é um barco,
Sempre a deixar entrar água,
Em perigo de se afundar.
No charco,
Entre alegria e mágoa,
Continua a navegar.
Enquanto à tona,
A fé louca nos abona
E, apesar dos apuros,
Sentimo-nos seguros.
Medo
O rapazinho
Tem medo de não ser amado
E, vida fora, adivinho,
Põe o amor de lado,
Não vá o diabo tecê-las
E ele é que sofre as sequelas...
Tentou, desesperado,
Que o amassem. E finda indignado:
Pressente que o amor é gratuito,
Não pode ser ganho.
O verdadeiro, fortuito,
Quando o apanho,
É incondicional aceitação:
Vive de perdão.
Ninguém nunca fica à altura
Do que ele apura.
Mas é isto, apenas isto que realço
Quando lhe persigo a figura.
Tudo o resto é falso.
Porque
Porque não és tu amado?
Sabes, mas não acreditas:
És amado em todo o lado
Por trás de todas as fitas.
Nem sequer a indiferença
É sentença.
Quando cais em desgraça,
Vê bem quanta trama te abraça.
E é assim todo o mundo:
O amor é o pano de fundo.