POEMAS  REGULARES

 

OS  DEVERES

 

 

 

Doer

 

Mudamos sempre de lado

Para o lado não dolente

E, afinal, o resultado

É doer dor diferente.

 

Prefiro doer igual,

A ver onde chega a dor.

Logo chegas e, afinal,

Tiras logo a dor da frente.

Um gesto esvai o que for,

 

Tal se do corpo quiseras

Libertar-me além das eras.

 

 

Prazer

 

Nunca o prazer é pecado

Sem um desprazer ao lado.

 

Nunca, pois, tu deixes de ir

Menos que a todo o porvir.

 

É que é o cume da alegria

Mais que mera fantasia.

 

Um orgasmo apenas cita

Tudo o que o Cosmos concita.

 

 

Flagelo

 

O maior flagelo de homem

É o do que quer ter razão.

Nisto todos se consomem

E tombam a sós no chão.

 

É onde a razão nos mata

O que era para viver:

Toda a amizade maltrata,

Mó de pedra a nos moer.

 

O que era sobre um assunto

É já de duas pessoas

Que se atirarão, por junto,

Uma à outra, sem mais loas.

 

Querer sair a ganhar

É bem pior que tu mesmo:

Ofendes, sempre a atacar,

E não és mais que um seresmo.

 

Mete a tua opinião

Onde mui bem te apeteça,

Não a metas noutro então

À força, que te tropeça.

 

Não deixes que ela te ordene,

Que te ordenha na tripeça,

Fará que outrem te condene,

Fugindo de ti à pressa.

 

Cada vez mais longe dói

E mais irrecuperável.

Nunca ileso ninguém foi

Ao retornar, nem saudável.

 

 

Contra

 

Contra quem vê diferente

E que diferente pensa

E quem diferente sente

Qual vai ser tua sentença?

 

Pede desculpa da dor

Que espalhaste em teu redor:

 

Talvez possas remediar

As lesões de ter lugar...

 

 

Discute

 

Discute na relação

Mas em nome só do amor,

Jamais em teu nome, não,

Nem do egoísmo redutor,

 

Nem de orgulho ou casmurrice

Ou de não querer perder...

Ficar por cima?! Tontice!

Que se te fique a dever?!...

 

Porque queres ter razão?!

Mania de saber tudo?!...

- Só para amar vale então

E amado ser, sobretudo.

 

Amar é só construir:

Um amor alevantado

Discute sem destruir

E aos píncaros é elevado.

 

Difícil terrivelmente?

Será normalmente o caso,

Mas só se amor se não sente

Não discute. E morre a prazo.

 

 

Apesar

 

Uma vida que se acata

Apesar-de-tudo, mata.

 

Então porquê aguentar

O que nunca me arrebata?

Melhor é não sossegar.

 

Dirão que a morte é sossego

Mas é a revolucionar

Que acaso ser eu adrego.

 

Eu quero mesmo é mudança,

Que sempre a estabilidade

Impede o que o sonho alcança.

 

Desistiram de verdade

Quantos, apenas de medo

De cair na escuridade?

 

Não estendo nem um dedo,

Que eu sou mendigo de tudo,

Não me calo, mesmo mudo!

 

 

Mil

 

Que por cada adeus

Que magoa os céus

 

Haja mil olás

De quem chegue e apraz!

 

Que cada desculpa

Do que ali se inculpa

Seja amor que traz!

 

 

Adulto

 

A criança é de cair,

O adulto é de levantar.

Ano após ano a seguir,

Não é mesmo de magoar?

 

Perdeste o emprego? Levanta!

Levanta se foi-se o lar!

Se foi o amigo que encanta,

Toca, toca a levantar!...

 

Mesmo se perdeste tudo,

Levanta, que é o fim do entrudo!

 

 

Cinzentismo

 

O cinzentismo dos dias

No ramerrame dos gestos...

De rotina contagias

Teus aprestos.

 

Repetir o irrepetível,

Utopia singular:

Atingir o inatingível...

- Onde a par?

 

Se procurar é o que temos

Com os disponíveis remos,

- É remar!

 

 

Termos

 

Quando gostares de alguém,

Não sejas só poucochinho,

Não te escondas sempre aquém

Do sabor do novo vinho.

 

Vai contigo todo inteiro,

O que és e sentes e dás...

Sê piroso, sê fagueiro,

Sonha quanto sonharás.

 

Aposta numa utopia,

Planeia o mundo em conjunto,

Imagina que o teu dia

Do Cosmos cria o assunto.

 

Não creias que há o impossível,

Nem sequer um improvável,

Que o amor é tão incrível

Que nele o inferno é saudável.

 

Vai até ao fim do mundo

Cada dia o dia todo.

É mais que viver a fundo:

- Viver é só deste modo!

 

 

Sinceridade

 

A sinceridade à frente

Será posta raramente

 

Como originário gesto

Mesmo antes de tudo o resto.

 

Antes possibilidade

Do que se pode dizer

Se pondera. A realidade

É o que dali provier.

 

Então é de seduzir,

Pôr à prova o encantamento,

Trilho desviado de ir

Testar o teor do fermento.

 

Só depois serei inteiro,

O estranho de mim abeiro.

 

Seduzir é a maior parte

Dum amor que se comparte.

 

 

Defeitos

 

Defeitos, só mesmo em ti.

Noutrem é desigualdade:

Não podes julgar ali

O que é singularidade.

 

Mantém-te íntegro, intocável

Naquilo que deves ser.

Construir-te a ti, viável

É apenas por teu querer.

 

Quem te vê não anda a ver-te,

Vê-se a si no que lhe dás.

Rejeita quanto converte

O mundo em dois, contra a paz.

 

Divide-te dividir,

É quanto tens de evitar.

Quem for amigo, a seguir

É amigo a multiplicar.

 

 

Poisa

 

Poisa em ti com atenção:

Tudo em ordem para voar?

Sem medo toca a lesão

Tal qual deve ser então,

Que assim a podes curar.

 

Cura-te antes de voares,

Solta-te após pelos ares.

 

Com variada precaução,

Que, se uma falha, outra tens

A que te agarrar então

Antes de tocar o chão,

A somar sempre mais bens.

 

Um morto aqui, na verdade,

Não é uma felicidade.

 

 

Apetece

 

Como me apetece a infância,

Lamber contigo um gelado

Na verdura duma estância,

O sol no alto pendurado

E os mais a rir das crianças

Que parecemos nas danças!

 

Quando crianças nos chamam

É que nos chamam felizes.

É triste quantos reclamam

Sem entender tais matizes:

Vão, se acordam, reparar

Que não logram acordar.

 

Seria calamidade

Um mundo de tal idade.

 

 

Finda

 

Finda o dia, acaba a noite,

Tanto para começar

Por parte de quem se afoite

E a gente sempre a findar!

 

Mas houve o beijo, houve o toque,

Enxadada na matéria

Dum corpo inteiro a reboque

E logo a luz é sidérea:

 

A carne é o húmus, mexida

Logo abre portas à vida.

 

 

Pés

 

Nunca os pés serão

Só de pisar chão,

 

Quem feliz voar

É com eles no ar,

 

Daí é que aterram:

O impossível ferram...

 

Dizem não ao louco

Onde tudo é pouco,

 

Prendem-no de amarras

Com o fim nas garras?

 

Que nunca a prisão

Dê fim aos que vão!

 

O passo por dar,

Com o medo a par,

 

Nunca finda aí,

O outro mundo é ali.

 

O passo já dado,

Com sonho finado,

 

Não mata a esperança

Que inda não se alcança!

 

De rasgar caminho

Para além do ninho

 

Que ninguém desista,

Buscando outra pista,

 

Traga o azevinho,

Aguente-lhe o espinho.

 

Além do que temo

Não mora só o demo,

 

Moram mil primícias:

Jardim das delícias...

 

Que importa o que tremo?

Sonho é vida: dê-mo!

 

Sempre é de ir em frente,

Com pés destemidos,

Gente atrás de gente

Por trilhos perdidos.

 

 

Vás

 

Não vás apenas por ir,

Apenas deixando andar.

Toda a vida há-de exigir

Que o tenhas de recusar.

 

Vai por um outro caminho,

Um outro lado do além.

Ser ou não ser adivinho

Que importa? É o porvir que vem!

 

É que deixar-te ir à sorte

Não é viver, é já morte.

 

 

Importa

 

Que é que importa mais poder

Se não tiver mais saber?

 

Ao mais saber, o que dói

É aquilo que nunca foi,

 

O que podia ter sido

E não foi, por mim perdido.

 

Como perdi tanto amor

Que só não foi, de eu me opor,

 

O possível que vedado

Eu tenho por tanto lado?

 

 

Sopro

 

Se aquilo de que precisas

Tanto tens já, porque vais

Buscar mais sopros de brisas

Da terra nos tremedais?

Pouco a pouco irás perder

O que precisas de ter.

 

A ganância contradiz

A saúde da ambição,

Uma de luz tem matiz

Onde a outra é escuridão.

Seja do que for, o gozo

Matas se és ganancioso.

 

Crês que podes exigir

Mesmo aquilo que já tens?

Querer mais é já cair

No vazio onde há reféns.

Não consegues mais que teres,

Afinal, o que quiseres.

 

E acabarás por perder

O que sempre, enfim, tiveste

E que fora, é bem de ver,

Mesmo aquilo que quiseste.

Toda a ganância, fatal,

É sempre de vez mortal.

 

 

Demora

 

Quem demora eternidades

A deixar de suportar

O que inda for aguentando

Mata possibilidades

De reconstruir o lar

Se explodir tudo arrancando.

 

Ou prefere uma implosão

Altamente dolorosa:

Permite a reconstrução,

Mas quanta dor no que goza!

 

Quem pouco tempo demora

A deixar de suportar

Explode logo na hora

E por igual arrasar

 

Pode o lar todo no chão

Ou a possibilidade

De o retomar do tufão

Deixa aberta, para a grade

O alisar de novo então.

 

- Quatro tipos de vizinhos

Do amor listam descaminhos.

 

 

Falhar

 

Se no amor a euforia

Falhar, falha o amor inteiro

E atrás dele toda a via

Da vida, em todo o quinteiro.

 

Se perco a respiração

Pelo que amar e não volto

A respirar, então, não,

Nada atiro ao resto solto.

 

Nem euforia nem nada:

Vegeto em cada jornada.

 

 

Crermos

 

O mais importante

É crermos na vida.

Se a qualquer instante

Toda vai perdida,

Basta um passo adiante

E logo a esquecida

Mina de diamante

Nos é prometida,

Tudo nos garante.

De mão estendida,

Agarro o que encante

À minha medida

E tudo é brilhante

Logo em minha ida:

Em passo gigante

Desato em corrida!

 

O mais importante

É crermos na vida.

 

 

Usa-os

 

Sofrimento ou alegria

Que forem deveras teus

Usa-os a tecer teu dia,

Ergue deles coruchéus

Na ermida que o sonho urdia.

 

Corre mal, magoa muito,

Deveras é insuportável?

Integrá-los é o intuito,

Embora inimaginável.

 

É que a dor é o que tu és

Em boa parte de ti:

Também com ela o revés

Vergas que te surja aí.

 

A dor terá serventia:

Há-de ser sempre com ela

Que farás despontar dia

Às portadas da janela.

 

 

Escuridão

 

A escuridão dos teus passos,

Quando eles sempre luziam

Em tudo o que cruzariam...

E nem bastam os abraços.

Como a gente caminhava

Por dentro do que sonhava!

 

Nem vi que a luz se apagou

E o corpo é insuficiente.

A televisão à frente,

Um jogo que mal findou,

Acaso um jantar de amigos...

- E finaram-se os abrigos!

 

Aos poucos o mundo afasta

Os que algum dia se amaram.

Tantos mundos separaram

As marcas de nossa casta

Que nem a cama consegue

Atar-nos ao que se segue.

 

 

Vejo-te

 

Olho para o lado,

Vejo-te o que sou.

Depois é o errado

Passinho que dou:

Não trabalho os tomos

Daquilo que somos.

 

Não invisto o braço,

A perna esquecida...

Invisto o embaraço

Do que falta à vida:

É no que não temos

Que então apostemos.

 

Então perco os braços

Que de antemão tinha,

A tentar espaços

Que nem se adivinha.

Muito mal advém

Do que não se tem!

 

 

Ainda

 

Ainda me tens: ainda o beijo,

Ainda o abraço, o desejo...

 

Este ainda é que nos mata:

Um moribundo é o que acata.

 

O que nos faz falta é o já:

Já te amo, já te desejo,

Já te quero neste ensejo,

Já te abraço, vem, vem cá!

 

Já não ama nada, à vinda,

Quem apenas ama ainda.

 

Ou amas já, ou me esqueces,

Que o amor já não mereces.

 

 

Impossível

 

Em amor é impossível mais ou menos:

Dar-nos em absoluto são terrenos

 

Dum amor que com nada se contenta.

E se nos falhar sempre no que intenta,

 

Mais valeria nada que um bocado,

Me houvera embora inteiro lá incarnado.

 

Não seremos nós nunca um nós de vez:

Vale a pena tentar sempre em revés?

 

Não te poderei dar senão os restos

E o que somos não quer vazios cestos...

 

Eternos ficaremos pela parte

E só sabemos ser um todo aparte.

 

Não nos restará mais que ir a caminho

E sempre a manquejar, sem topar ninho.

 

 

Movimento

 

Quando se ama, a solução

Não é nunca a de ficar,

É movimento em acção,

Daqui para ali andar.

 

Até ser mais respirável,

Mais dinâmico e activo,

Mais tangível, comprovável,

Mais e mais deveras vivo.

 

Num amor como na vida,

Parar é morrer de vez.

Vai morrer em despedida

Quem parar de mês a mês.

 

 

Paralisia

 

O voo virou corrida

E a corrida, caminhada,

E a passada, de esquecida,

Paralisia pegada.

 

Tudo atolado em palpável,

Tal se em vida o desejável

 

Fora aquilo que se visse.

Mas que enorme parvoíce!

 

Perder um sonho é perder

O sestro de se mover.

 

 

Manda

 

O estúpido é ganancioso,

Manda em tudo e toda a gente,

Conquista tudo por gozo

E tudo faz, persistente,

Para breve o conseguir

Em cada canto que vir.

 

Por princípios tem apenas

O de dominar arenas,

 

Nem que tenha de trair

Família e lar a seguir.

 

Mentirá para ter votos,

Compra bens aos miseráveis,

Juros a níveis ignotos,

Furta trabalhos notáveis

Que dá por seus, no sentido

De vir a ser promovido...

 

A ganância é prepotente

E não há receita médica

Para tanta falta de ética

Em que inteira a vida assente.

 

 

Tempo

 

Quer seja o tempo que o amor não tem,

Quer o passado que ao presente advém,

 

Quer interrompa da ternura o gesto,

Que só já tenta recobrar-lhe o apresto,

 

Se a campainha da pressão da vida

Obedecida for e não gerida,

 

Toca outro alarme a prevenir, soturno,

Que este teu dia é mais e mais nocturno.

 

Se exactamente tudo corre bem,

Ouve o alarme que mensagem tem:

 

Se sem surpresas tudo enferma já,

Então da morte é o calendário que há.

 

- Tens sempre dois alarmes dentro em ti,

Do mundo e teu: qual é o primeiro aí?

 

 

Coincidência

 

Quando a surpresa corre em prol da vida,

É coincidência que só nela vês?

Nem mesmo admites que um azar convida,

Que um pouco mudes, a ser tu de vez?

 

Assim se esvai a ocasião suprema

De te encontrares, por errado o lema.

 

Tens o convite mas tu não crês nele:

Quando é que mudas de serpente a pele?

 

Olha que a vida repetir palpite

Poderá sempre, mas teu é o desquite...

 

 

Gente

 

A ser gente que se veja,

Urge ultrapassar a inveja,

 

Aquele olhar mui graúdo

Sobre quanto é sempre miúdo.

 

Que toda a felicidade

Apenas de nós se agrade?!

 

É ter mesmo vistas curtas

Só barcas em terra surtas.

 

 

Limpinho

 

O limpinho não

Tem marcas de vida,

É museu sem chão

Humano, em devida

Prateleira corrida.

 

Nunca vive nada

A vida pegada.

 

A última gota?

Nem primeira bota!

 

Passa a vida inteira

A evitar sujar-se.

Vida verdadeira

Traz sempre sujeira

E não tem disfarce:

 

Sujo as mãos aqui,

Sujo a boca ali,

A suar, cavalo

Sempre em frenesi,

Baba com regalo...

 

Vida de verdade

Requer mesmo um não.

Limpinho que agrade

Não tem palavrão:

 

É a palavra certa

Na correcta hora

Da maneira experta

Que se espere agora.

 

E tal obsessão

Pela correcção

 

É aquilo que nele

Mais errado o impele.

 

 

Bem

 

Viver bem é bem olhar

Da beleza o pendor feio,

Da feiura o pendor belo.

O poder de isto triar

Reside em ti, pelo meio

Da conjuntura em apelo.

 

Ser feliz é só questão

De que ângulo é o da visão.

 

Qualquer burro é um infeliz,

Olha dos olhos à frente:

Injustiças, falsidades...

Quanto isto dói de raiz!

O génio vê diferente,

Só do belo as qualidades.

 

Ver que existe um lado belo

É do belo o sete-estrelo.

 

Saber que haja um belo lado

Em cada momento feio

É depois magia pura.

É procurar com cuidado

À frente, atrás, pelo meio

Até lhe ver a figura.

 

Um só valerá milhões

Dos feios, meros tostões.

 

 

Difícil

 

O difícil de fazer

É o que mais fácil parece.

É o segredo em conta a ter

Se ser feliz apetece.

 

Ao tomar a decisão,

Tomar com simplicidade,

Acaso a leviandade

Duma criança ao serão.

 

Questão de ti para ti

Define o que és e o que sentes.

Questiona-te então aí

E vê lá se não te mentes.

 

 

Mungir

 

É morrer para estar vivo,

Para estar vivo explodir.

Do dia a que não me esquivo

Mungir o leite que vir,

 

Numa leitura, um olhar,

Num abraço, um mar bravio,

Num céu a sorrir sem par

Num rosto em perene estio...

 

A vida, só de explosões:

Explodir ou implodir

É o dilema das acções

Que ando sempre a decidir.

 

Explodir de entusiasmo

Ou, num castelo de cartas,

Perder da vida o orgasmo,

Baralho que já nem partas.

 

 

Fácil

 

É fácil deixar andar,

Uma tentativa aqui

Ou um simulacro ali,

Apenas a disfarçar...

 

E deixa andar, deixa andar...

 

Nem força ou motivação,

Nem tentame ou risco de erro,

É apenas continuação

E daqui a história encerro.

 

E deixa andar, deixa andar...

 

Iguais hábitos e gestos,

Igual resposta à pergunta,

Os mesmos, mesmos aprestos

A que nada mais se junta.

 

E deixa andar, deixa andar...

 

Pior que tudo é ficar

Puro da cabeça aos pés,

Só a mancha do calcanhar

De sujidade é um revés.

 

E deixa andar, deixa andar...

 

Só que a mancha vai ficando,

Olhas-te já com receio,

Não és brancura dançando,

És uma nódoa no meio.

 

E deixa andar, deixa andar...

 

A tua satisfação

É satisfação ligeira.

Se é ligeiro, então, então,

Nem daquilo já se abeira.

 

E deixa andar, deixa andar...

 

Mas se não fores tu todo,

Então nem sequer és tu...

Tenta outro pão, outro bodo,

Quebra de vez o tabu!

 

Recusa deixar-te andar,

Recusa o que não for tudo,

Que um nada, por mais miúdo,

Contigo em nada irá dar.

 

 

Paralítico

 

Um paralítico nu

A brincar ao que é normal

Sou eu como serás tu

Sem darmos sequer por tal.

E só nos enraivecemos

Quando um normal encontremos.

 

E só lhe damos a mão

Se paralítico for

Também ele um dia então.

Então será com amor

Que nos chamamos depois,

Paralisados os dois.

 

É da humana condição

A raiva impedir o acerto

Com que os homens se darão,

Desde o lar, do íntimo perto,

Aos antípodas, lonjura

Que já nem do acerto cura.

 

 

Risota

 

Em viver o mais incrível

É que é sempre repetível

 

Todos os dias da vida

Numa risota seguida.

 

Quem perder a brincadeira

É de adulto acaso asneira:

 

Nele asfixia a criança

E perde o melhor da dança.

 

 

 

Há os que se gabam,

Há os que antes fazem.

Se estes não acabam

Como aqueles jazem,

É que as línguas travam

Mas as mãos se aprazem.

 

No perigo incerto

O calado é esperto.

 

 

Assusta

 

Assusta saber

Que se irá morrer.

 

Que dizer se então

Sei da execução?

 

O tempo corria

Sempre inconsciente,

Água que fluía

Tão naturalmente!

 

Ao saber daquilo

É uma maldição:

Como andar tranquilo,

Com que aceitação?...

 

 

Erva

 

A erva rasteira,

Curvando-se ao vento,

Sobrevive inteira

Ao tufão que aguento.

 

O pinheiro altivo

É arrancado ao chão.

Que lhe resta vivo

De tal presunção?

 

É triar na vida

A via seguida.

 

 

Caminhar

 

Caminhar na escuridão

Com um cintilar de estrela
Saltitando em água, ao longe...

Em Deus mal é crispação

Mas no vácuo resta bela

Memória acaso dum monge...

 

E quem nele acreditar

Sobreviver vai lograr.

 

 

Deverão

 

Para ti eu não existo.

As pessoas ocupar-se

Umas às outras em dar-se

Deverão. É apenas isto.

 

Não sou pouco interessante,

Sou mesmo nisto um gigante:

 

Cada pessoa é tão única

Que ninguém lhe talha a túnica.

 

 

Espera

 

Se ando à espera da mensagem

Que me traz felicidade

Ou desespero, em triagem,

Vivo em plena vacuidade,

Sinto que não tenho estrada,

Vivo lançado no nada.

 

Deixa o tempo de criar

Plantas, camada a camada,

Ando só a dissimular,

De mim à espera em jogada.

O meu eu desconhecido

De fora me vem, sumido.

 

A angústia vem do fantasma

Que nem me surge nem pasma.

 

 

Guerra

 

Guerra não é uma aventura.

Uma aventura são laços,

Problemas e alguns espaços

Que propõe e que procura.

 

Não basta ser vida ou morte

Jogados para a sentença,

Nem é pertença da sorte,

- A guerra é sempre doença.

 

 

Máquina

 

Máquina-administração

Elimina arbítrio humano.

Quem há-de inventar então

Solução para um engano,

 

Caminho novo ao que é novo

E só agora sai do ovo?

 

Que irá ser do mundo inteiro

Se elimina o relojoeiro?