POEMAS  REGULARES

 

AS  CONTRADIÇÕES

 

 

 

Suporta

 

Quem é que suporta a perda?

Contudo, tudo se perde!

Quererão quanto a gente herda,

Embora ao fim ninguém herde...

 

Vida é construção a prazo,

Um lar mesmo temporário.

Contudo, o tempo lhe aprazo

Inteiro como a um sacrário.

 

Alguém vislumbra coerência

Nesta ilógica evidência?

 

 

Risco

 

Risco de infelicidade

Vem mesmo de ser feliz:

Distraído, ela me invade

E a teia disto é a matriz.

 

De certeza qualquer dia

A desgraça chegaria...

 

E não é que chega então

Com ser-feliz pela mão?!

 

 

Repente

 

De repente percebi:

O miúdo não sou que fui

Nem o jovem que vivi

Nem um adulto que influi...

Passa o tempo e, enquanto passa,

Arrasta a minha carcaça,

 

Tudo a caminho do fim.

E eu cá no meio perdido,

Que cabeça tenho assim?

Sou alma em corpo fendido?

Que vida maravilhosa,

De viver tão horrorosa!

 

 

Humilhador

 

Humilhador não existe,

São sempre dois humilhados.

Num humilhador persiste

A escravidão aos danados

Apetites de humilhar

Sob o pé quem esmagar.

 

Pois nada é mais humilhante

Do que procurar valor

Desvalorizando diante

Quem se lhe nem pode opor.

Humilhar humilha a sério

Mesmo o dono dum império.

 

 

Bombas

 

No interior de quem se amar

Caem bombas de palavras.

Como era de se evitar

As que ao porvir tolhem lavras!

É inviável respirar

Onde a palavra o tapar.

 

Se foram longe demais,

As palavras sem coleira

Propagam pelos quintais,

Queimam uma vida inteira.

Quem prende a voracidade

Da palavra em liberdade?

 

Comigo não és feliz?

Não o logro suportar.

Aguento as tramas mais vis

Só contigo a me ladear.

Ser tua infelicidade

Mata-me a mim de verdade.

 

 

Dia

 

O dia mais desgraçado

Ainda pode ser o dia

Mais feliz, mais atilado

Que a vida te oferecia.

 

Se a chuva te houver molhado,

Se rasgaste a gabardina

E se te houverem gozado

Ao cruzares cada esquina,

 

Se fores atropelado

E o hospital, na rotina,

Te esquece algures de lado,

- Podes dizer mal da sina.

 

Mas se acontece que alguém

Te descobre aí no canto

E como tu for pelém

De vida feita de pranto,

 

Se ambos intercomunicam

E descobrem, de repente,

Quão felizes ali ficam,

Cada qual o mais contente,

 

Dezenas de anos depois

Se alguém pergunta que dia,

Com magia de arrebóis

Do melhor sol que luzia,

 

Foi o mais feliz da vida,

Ambos dirão: foi o cheio

De desgraças pelo meio

Que virou tudo em seguida.

 

 

Faça

 

Sei lá que irá ser de mim!

Inda não fui rua além,

Já no peito a faca ruim

Me dói da perda que vem.

 

Ensinou-me a ser feliz

A casa, num jeito mudo.

A que sabe, de raiz,

Quem tudo tem perder tudo?

 

Um amor só acontece

Se o deixam acontecer.

Ai, pois, de quem sempre o esquece

Por dentro dele a viver!

 

 

Andar

 

O que andar mal faz-te bem,

O que andar bem faz-te mal.

Bem é bem assim? Porém,

Assim só nem porvir tem:

Sem porvir, de nada vale.

 

Andar bem dá-te a ilusão

Do final das ilusões.

Nada pior que o farto então

Do que é bom, sem ver senão:

Não tem passo, anda aos baldões.

 

Viver o que vale a pena

É largar o satisfeito

De pegada bem pequena,

Apostar em qualquer cena

Que a vida rasgar a eito.

 

 

Deixo

 

Todo o amor é estranho:

Não deixo de ter

E já te não tenho.

 

E é sempre um prazer

E sempre a doer

Que terei por ganho.

 

Sinto falta de sentir

E de não sentir a falta,

De igual tamanho, ao medir,

Como o amputado com alta

Sente à frente, na ribalta,

Dor no membro que sair.

 

Já te não tenho, portanto,

E só te tenho, no entanto.

 

 

Foras

 

Se não foras tão bonito,

Não estaria a abraçar-te

Quando o vero requisito

Era aqui de castigar-te.

 

Olhos de pedir perdão

Pela asneira que fizeste...

Pois que pais to não darão,

Que importa o que então nos reste?

 

Mas vê se ganhas juízo,

Que, com juízo e bonito,

És o homenzinho preciso

Dos sonhos para o quesito.

 

Não cresças além do sonho

Mas sempre por dentro dele:

Se lhe dás corpo, suponho

Que ao mundo salvas a pele.

 

 

Demora

 

Quanto tempo demora até não suportar

O que vais aguentando sem quase aguentar?

 

Que fará quando deixas já de suportar

O que ias aguentando e não vais aguentar?

 

Diferem os dois tempos, diferem pessoas

E, de repente, é mau o que eram coisas boas.

 

E chegam as rupturas e vem o vazio

Do amor onde às suturas já cosera o fio.

 

Como sobreviver ao que já não aguentes

Se não suportas já que até suportar tentes?

 

E desta alternativa vão duas sequelas:

Ou atinges o heroísmo ou tombas nas mazelas.

 

 

Logo

 

Há um mundo demais

E a vida é pequena.

Entras, logo sais,

Nada mais encena.

 

De saciedade

Sou sempre incapaz.

A ferida é que há-de

Ser cura eficaz?

 

Mais estranho é que é:

Põe mundo de pé!

 

Ela é que nos pica

E é o porvir em bica.  

 

 

Escolha

 

O amor não é saudável,

Já que apenas é saúde.

Por isso nos tanto ilude...

E não é recomendável,

Já que é vida, terra arável.

 

A escolha é entre o possível

De quem nunca amar assim,

E aquele amor impossível

De tu seres tudo em mim.

 

Não absolutamente eu

Se absolutamente teu?

 

Só partilha quem decide

Ser todo quem se divide.

 

Se partilha é que se encontra

Do mundo inteiro na montra,

 

Então inteiro sou o Eu

Que algures já se perdeu.

 

 

Imo

 

Em meu imo a matemática

É de vez mui pouco prática.

 

Diz que de mim eu me aparto

Se contigo me reparto.

 

Quando só deveras sou

Se tudo se partilhou.

 

Ao dividir, multiplico

E mais eu me verifico.

 

Desmultiplico as arenas,

Nem sequer sou eu apenas.

 

E sou eu em todas elas

Quem abre ao sol as janelas.

 

Sou muito mais eu no fim

Que se me fechara em mim.

 

 

Pequeno

 

O pequeno com mania

De que é grande os grandes teme.

Acusa-os de em nenhum dia

Terem a grandeza ao leme.

 

Grande de trazer por casa,

O pequeno quer o espaço

Do grande único que arrasa,

Que imagina em seu pedaço.

 

É por isto que não passa

De insignificante traça.

 

 

Dantes

 

Dantes, um abraço

É o que nos unia.

Para o mais espaço

Entre nós não via.

 

Agora, de baço,

Nada mais se nota.

Adormeço, escasso,

Vergo-me à derrota.

 

 

Cuidar

 

Cuidar dum amor

É nunca o deixar

Dormir de torpor,

Conforto não dar.

 

Se for confortável,

Deixa-se arrastar

Na onda agradável

De manter-se a par.

 

Zona de conforto,

Vê-se lá infalível,

De paz podre é porto,

Breve inamovível.

 

Ora, quanto é vivo

Falível decerto

É bem recidivo,

A conta em aberto.

 

Quando preferimos

Ficar bem seguros,

Jogando nos limos

Que findo em apuros?

 

 

Erudito

 

Um erudito lê muito,

Muito estuda e muito sabe.

É um ignorante gratuito,

Obtuso que em nada cabe.

 

Tosco a estudar, ler, saber,

Nenhum sabor vai colher.

 

Sem sabor sabedoria

Não é saber, é mania.

 

 

Chegar

 

Quase tudo o que doer

Podia ser evitado

Se lá chegar eu puder

Uns minutos adiantado.

 

Do mesmo modo também

Não me poderá doer

Se eu lá chegara, porém,

Atrasado para ver...

 

A enorme sabedoria

Do bom senso em maioria!

 

 

Casmurro

 

O casmurro tem mania

De que tem razão em tudo,

Tudo sabe e que, ao final,

Todos dirão, à porfia,

Que ele incarna, mui sortudo,

Um saber mesmo total.

 

Nunca admitirá que errou,

Nem é possível sequer

Ignorar algo sobre algo:

Se algo é de saber, lá vou,

Opinião tem quenquer,

Eu à verdade é que galgo.

 

Tão estúpido é o casmurro

Que escolhe perder o amigo

A perder, nem mesmo a murro,

Um debate com que brigo.

É tamanha a resistência

Que ele só partilha ausência.

 

 

Problema

 

Um problema, o solteirão?

Um problema é o solteirinho.

O solteirão pisa o chão,

Não despeja nele o vinho,

 

Aproveita o que de bom

No andar solteiro lhe apraz,

Sem ignorar horas más

Que o solteiro traz no tom.

E estas, larga-as para trás.

 

O solteirinho se queixa,

Vive ao invés, sempre atrás,

É detrás que encontra a deixa

Para tudo quanto faz.

 

Perde-se em vida que foi,

Na que podia ter sido,

Que nunca será, que dói

Vazia de acontecido.

Felicidade? A que há tido.

 

Deste modo, solteirinho

É fazer de coitadinho.

 

O solteirão pisa os calos

Do mundo, ao cantar dos galos.

 

 

Pouco

 

Um amor que eu não quiser

Que é que dele irei fazer?

 

Sou pouco aquilo que quero

E bem mais, na estimativa,

O que não quero mas viva

Em mim como lastro mero.

 

E sou também o vazio

Do que quero e nunca avio.

 

A gente tem o que quer

Mas também muito daquilo

Que não quer ou falta ter.

Se tudo pesara ao quilo,

 

São bem toneladas mais

Que rejeito em meus quintais.

 

Sou ali, pois, o que for

Mais o que haja a me propor.

 

Uns se adaptam e contornam,

Manobras de diversão,

Resistem, atrás retornam,

Sobrevivem à tensão.

 

Outros se insurgem, rebelam,

Contra-atacam e atropelam.

 

Por fim há quantos já querem

O que antes nunca quiserem.

 

Entenderam que querer

Ou não, é do imo ao me ver.

 

Podem hoje desejar

Um ontem de abominar,

 

Com a mesma sinergia

Igual força e ousadia.

 

Chave da felicidade

Pode ser isto entender,

Que não há chave, em verdade,

Em regra basta querer.

 

 

Contador

 

O mau contador de vida,

Perante um inesperado

Que lhe arrasa uma medida

Ou um plano elaborado,

Sente-se logo a afundar

Numa vida de negar.

 

Ora, o grande narrador,

Ante a mesma negativa,

Vislumbra um novo fulgor,

Cria a grande narrativa:

Confabula mil caminhos,

De felicidade ninhos.

 

Viver não é dialogar

Contigo mesmo, anos fora.

És tu avô a falar

Contigo neto, hora a hora.

Se te contas feliz dentro,

Que feliz e alegre o centro!

 

 

Fecho

 

Tenho todas as razões

Para nem sequer te olhar.

Mas fecho os olhos e pões

Todo o Ano Novo a brilhar.

 

Ora, tudo o que eu queria

Era de ti me esquecer

Ou ser o teu servo um dia,

Que então rei me sentiria,

Se teu com todo o meu ser.

 

Mil razões para estar contra

E, todavia, o amor

Nem olha ao que andar na montra:

Amo-odeio – é o seu teor.

 

E, por mais que me enojar,

Não consigo não te amar.

 

 

Salva

 

Não há ninguém mais culpado

Que o que salva alguém da morte

Que este se haja programado

Para o condenar, mais forte,

À morte que o salvador

Tenha em mente lhe propor,

 

Quer seja a duma paixão,

Quer da fé que lavra o chão,

 

Duma ideologia qualquer...

- Tudo é por amor morrer,

 

Quer vá da vida ao extremo,

Quer a meio perca o remo.

 

 

Simples

 

Sou a simples marioneta

No palco vivo do lixo

Malcheiroso, se eu submeta

A vida da sina ao nicho.

 

Só que este lixo de vida

É tão lindo que até irrita.

Como é que é o que tem de ser,

Que não há nada a fazer?!

A fazer há toda a lida,

Sempre algo que me compita.

 

Quem no destino acredita

Tem o destino traçado

E a vida passa-lhe ao lado:

Então só lixo há na fita

Das horas acumulado.

 

 

Sina

 

Não crer na sina é assumir

Que suprema há uma entidade

Que é sempre a tua vontade

A destruir-construir.

 

É nela que te superas,

Ela é que a ti te ultrapassa,

Buscando em fundas esferas

Forças com que o mundo enlaça.

 

Se teu corpo e tua vida

Te mudam num derrotado,

Tens de apelar, denodado,

Ao cimo que te convida.

 

É a mais profunda vontade

Que ergue o que for para erguer,

Derruba a dificuldade

Que teu caminho tolher.

 

Sem medo de destruir,

Que tantas vezes é a base

Para depois construir:

Que eu primeiro o campo arrase.

 

Destruir o que te diz

Em frente para não ir,

Que corre mal de raiz.

Nem tentar nada a seguir,

 

Já que a hipótese é nenhuma:

Não beijes, não tens idade;

Não ames: magoa, em suma...

O que te impede a vontade

 

De arrasar, é construir

Teu alicerce primeiro

Do que à mão tens de erigir.

Tua vontade imprimir

É o martelo de pedreiro.

 

 

Estado

 

Um estado de espírito é a pobreza

Muito antes de devir questão de bens.

Um homem das cavernas o que preza

É do grupo fruir dos parabéns.

 

De hoje o mais miserável tem fortuna

Mais que a que o cavernícola reúna.

 

Este, contudo, mais feliz se sente

Que muitos dos mais ricos entre a gente.

 

E o mais interessante é que a pobreza

Não sente, pois que o grupo é o que ele preza.

 

 

Loucos

 

Todos os loucos sadios

Desprezam o que outros não:

A busca sem arrepios

Sempre duma aceitação.

 

A aceitação é um veneno,

Uma forma de loucura

Aceite em todo o terreno,

Perca embora o que a procura.

 

Quantos de si se perderam

Para os mais os encontrarem

E nem a si se tiveram

Nem aos mais que os enganarem!

 

 

Cadeira

 

Ela a cadeira de rodas

Solicitamente empurra,

Ele resmunga umas codas,

A chamar-lhe eterna burra.

 

Não há reconciliação

Se ele não se concilia

Com a perda que no chão

Pô-lo a rastejar um dia.

 

Como é que se encontrarão?

Só se ela ficar tolhida,

Dele a precisar da mão

Como da força da vida.

 

 

Detrás

 

Por detrás de qualquer acto

Há um critério de beleza:

Pratica-lo, que, de facto,

É o bonito que alguém preza.

Ages assim porque alguém

Julga que te fica bem:

 

A dor é vivência feia,

Fica-te mal um vestido...

Há momentos em que a teia,

Ao invés, muda o sentido:

Se fores a um funeral,

Não te ris, que fica mal.

 

Tem o sentimento aspecto

E o aspecto do momento

Caracteriza o afecto,

Mesmo inverso do que tento:

Se choro a aparentar riso,

Riso é para o comum siso,

 

Se rio a aparentar choro,

Choro é para toda a gente.

Assim, raramente moro

No que a aparência consente.

Real e aparente, é notório,

Fundem-se é no sanatório.

 

Toda a gente equilibrada

Joga entre as brumas da estrada.

 

 

Melhor

 

Para mim o melhor dia

Poderá ser para alguém

O pior dia que tem,

Se é morte que, à risca, adia.

 

Se sou médico, enfermeiro,

Empenhado paramédico,

Quantas vezes um bombeiro,

Retomo o princípio ético

 

Que quer que o bom para mim

O invés para alguém é assim.

 

 

Quenquer

 

Quenquer pode ser julgado

Pelo carácter e o acto

De todos quantos o cercam:

Dono dum circo arruinado,

Todo um mundo destroçado,

Ou é um demónio que acato

Ou, antes que todos percam,

Tem da compaixão a luz

E um santo tudo traduz.

 

Depende da inclinação

Para o bem ou para o mal

Das escolhas da ocasião

Às quais ele der o aval.

 

E ele, quanto maior for,

Mais nos dois lados maior.

 

 

Lobos

 

Os lobos entre as pessoas

Não são de preocupar.

Incapazes de ouvir loas,

Não nos podem enganar.

 

Todavia, o cão-pastor,

Quando for enlouquecido,

Perde o instinto guardador,

Inverte então o sentido

 

E acaba a atacar, morder

Contra o seu modo de ser.

 

Isto, sim, é preocupante:

Como gerir neste instante?

 

 

Tempo

 

O tempo é como um rio

Que desejo travar

Ou, peixe, desafio

Corrente me tornar?

 

O tempo é o inimigo,

Devora-me por dentro?

Ou é invento, ao abrigo

Do qual eu me recentro?

 

Se não te preocupas,

Não vai-te incomodar:

Nunca dele te ocupas,

É como respirar.

 

Começas a contar

Tuas respirações?

Vais logo te engasgar,

De tosse em convulsões.

 

 

Criança

 

A criança inacabada

É uma pertença da mãe.

Mal nasce, duma assentada,

Não é mais dela, porém.

Cada dia mais distante

Segue seu caminho adiante.

 

E a maior graciosidade

É mesmo esta identidade.

 

E assim somos todos nós

Criança que escapou após.

 

 

Injustiças

 

Tão insofismavelmente

De injustiças ameaçado

Todo o mundo à minha frente

E eu aqui predestinado

A corrigi-las, premente...

- Que bom ser adolescente,

Toda a vida a correr fado!

 

 

Mergulhar

 

A vitória tem a febre

Que de entusiasmo a rodeia,

Organiza, corre, lebre,

Constrói o castelo e a ameia...

E todos até sufocam:

Carregam pedra e colocam.

 

A derrota leva o homem

A mergulhar na incoerência,

Todos aborridos somem

Do que é fútil na evidência.

Tudo são braços caídos

Numa teia de gemidos.

 

 

Uno

 

Um país não é uma soma

De regiões, costumes, crenças.

É um ser uno que se toma

No conceito e nas pertenças.

 

Como ninguém é um conjunto

De pernas, tronco e de braços

Mais cem órgãos que lhes junto,

- É um ser único em mil traços.

 

Quando os não encaro assim,

Descarto-os, bem como a mim.

 

 

Extraterrestre

 

Se eu for um adolescente,

Extraterrestre de mim,

No meio de toda a gente

Vivo sozinho sem fim.

 

Moro em terra de ninguém,

Sem encaixe, volta e meia,

Nem em redor, nem além

Daquilo que me rodeia.

 

Isto de eu me viver entre

Impede que me recentre.

 

 

Nunca

 

Nunca o que faço é bem feito.

Se um jogo quero jogar,

Será infantil o meu pleito.

Se é sair para arejar,

De ser grande é uma mania...

Vivo apeado na via.

 

Nada depende de mim

E tudo me passa ao lado:

De mim apesar, enfim,

Corre, comigo ignorado.

E o que por mim passa, dói,

Sou alguém que nunca foi.

 

Sou insuficiências, sonhos,

Dúvidas e pesadelos,

Todos por igual medonhos,

Da cadeia sem ter elos.

Sou um vazio qualquer,

Sou, sobretudo, um não-ser.

 

A meio da ponte grito

Entre o zero e o Infinito.

 

Sou o eterno adolescente,

De si mesmo eterno ausente.

 

 

Heroicamente

 

Todos os homens são o paralítico

Heroicamente a se arrastar no chão

Até atingir, naquele esforço mítico,

Algum milímetro ao maior desvão.

Do sapateiro ao mais feroz político,

Do milionário ao que não tem tostão,

Todos seremos estes tais danados

Que não desistem de ir a outros lados.

 

Sem este gesto quem se sente um homem

É um parasita de enganar a todos.

Degraus ou pedras nos aqui consomem,

Mesmo dum palmo roubarão os bodos.

Não nos admira que, se não se somem,

Aos mais felizes invejemos modos

E os rejeitemos se, em pretensa ajuda,

Nos amesquinham dando a mão à muda.

 

Vai da atitude colonial violenta

À adolescente rebeldia brava,

Do lar àquele que afirmar-se tenta,

Ao deficiente que a vontade entrava,

Todos tememos, se algo em nós cimenta,

Que a mão que dá nos roube ao prato a fava.

Quer por temor quer pela má desfeita,

A dar as mãos a trilha é pouco afeita.