O AMOR CARENTE
BARTOLOMEU VALENTE
Aroeira, 2020
QUADRAS REGULARES
OS AFECTOS
És
Tu és teu significado:
Dever, ódio ou amor,
Um invento procurado...
- Nada és mais ao te propor.
Risco
Quem amar corre o risco de perder
E depois só nos restam os rasquidos.
Quem não amar, aquilo nem sequer:
Eis os que continuam só perdidos.
Nunca
Quem nunca amou
Nunca perdeu:
Sei lá quem sou,
Nem serei eu!
Ama-me
Ama-me só quer dizer
Dá-me tratos à cabeça:
Como sonho ao te entrever,
Então tudo em mim tropeça!
Imortal
Quando alguém se sente amado,
É imortal, indestrutível:
Um herói dentro é acordado,
Nem treme ao saltar de nível.
Língua
O amor é a língua de fora
Porque não se pensa em nada
Ao saltitar pela estrada
Sem cuidar de hora ou demora.
Afecto
Amar é gesta pensada?
É apenas afecto algum,
Que, mal penso na jornada,
Amor já não é nenhum.
Perco
Quando em mim tu te enraízas,
Perco tudo o que haja ali,
Caem todas as balizas,
Só me não troco de ti.
Melhor
Um amor não cobra,
É gratuitidade
E o melhor que sobra
Da dificuldade.
Fica
De mim fica neste mundo
Para quem nem conheci
Do amor o rasto fecundo
Que dei e que recebi.
Bom
Do bom que a vida me deu
Melhor foi minha mulher
Que a vida me concedeu
Por nada: só de a querer.
Gasta-se
A vida nunca se aluga,
Gasta-se, vela ao calor.
Muito lhe tirará ruga,
Nada nunca tira o amor.
Emoção
Emoção todos os dias
Corrói toda a minha prata.
Sem emoção, o que avias
Na loja dos dias, mata.
Abdico
Se penso no que perder,
Abdico do que ganhar.
É tenebroso não-ser:
Fedo a morte e vivo a par.
Acordei
Acordei e compreendi
Como nunca mais ninguém:
Vivo sozinho de ti,
Por favor, por favor, vem!
Capaz
Capaz de viver sozinho
Serei como um sem-abrigo
Desde que em todo o caminho
Ao lado vivas comigo.
Sedução
Há muito quem se apaixone
Da sedução que fruiu
E não de quem ela abone,
De quem mesmo seduziu.
Mil
É que eu já nem tenho dedos
Para o contabilizar:
O amor terá mil segredos
E mil e um para contar...
Mãos
De mãos cheias, só de espias
Quantas irei acolher?
Somente de mãos vazias
É que estou pronto a viver.
Tentar
Ao corpo voltar,
A tentar parceiro
Ser do amor inteiro,
É voltar ao lar.
Encontrei-te
Encontrei-te sem querer
E mais que tudo quisera
Encontrar-te e em mim te ter...
- E só assim o amor opera.
Muda
Um amor é de bom-tom?
Então não é mesmo amor,
Que de amor a irradiação
Muda ao tom sempre o teor.
Ombro
Quando de mim te cansares,
Em meu ombro resta o pouso
Do silêncio onde acalmares
Partilhando-te em repouso.
Chorar
Não chorar como um bebé
Se não tem o amor ao lado,
Não é de gente, não é,
Nem será ninguém de agrado.
Plinto
Se nos fizer parar,
Será que andar nos faz?
É o plinto de saltar
Para o amor capaz.
Desejo
O desejo em mim cravado
Pouco importa que mo invejes,
Que por ti tenho outro lado:
Desejo é que me desejes.
Querer-me
Basta querer-me, que eu a irei querer.
É entrega a mais, já nas mãos dela inerme,
Mas não importa, que na funda derme
Me penetrou e eu sou ela ao ser.
Logo
Onde o amor encaixa,
Logo encaixa tudo:
Da família a faixa
E o mundo onde mudo.
Igual
Porque nenhum ovo
Tem igual medida,
Para um amor novo,
Só uma nova vida.
Alimenta
A pessoa apaixonada
O vazio mais graúdo
Alimenta nada a nada
E nada mais nada – é tudo!
Coração
Que o coração não se importe
De dobrar sempre a cerviz
Ante o amor que a ele aporte
Com mil turistas gentis!
Amado
Quem amar com humildade
E amado for com ternura
É criança em toda a idade,
Só verdade em vida apura.
Penso
Quando penso nela,
De mim eu me esqueço.
Porém, na sequela,
Em mim mais eu meço.
Serve
Do miúdo ao mais graúdo,
Tudo a outrem vai atar.
O amor é o que, mais que tudo,
Só serve, só, para amar.
Tocas-me
Tocas-me onde ninguém toca,
É por ti que sei quem sou,
Descubro-me em tua boca,
Por mim além vens. E eu vou.
Encontro
Não encontro em ti nem busco,
Limito-me a ir e vou,
Chego sempre ao lusco-fusco:
Em ti pouso, todo eu voo.
Absoluto
O absoluto é relativo
Em qualquer dele produto.
Tenho dele o melhor fruto:
Amo-te, absoluto vivo.
Derrete-se
Ela, que era uma durona,
Derrete-se por inteiro
Quando o gesto dele abona
Que é de vida seu parceiro.
Morres
Na vida o pior
É só haver um porto:
Ou morres de amor
Ou estás já morto.
Dono
Que seja quem ama
Dono de meus braços:
Dele com a trama
Uno os meus pedaços.
Passarem
Amar é passarem anos
E amar quanto o amor despoje
Tal se nunca houvera danos:
De ontem o amor é amor de hoje.
Quisera
Mesmo que eu quisera amar
Tudo aquilo que já fomos,
Não consigo, que, em lugar,
Amo aqui sempre o que somos.
Feliz
Sou feliz contigo,
Estou sempre em ti,
Mesmo quando brigo
És meu sonho aqui.
Coberta
Quando ficas toda nua,
Não ficas nada despida,
Ficas coberta de lua
E à cor dá-te o sol a vida.
Abraço
Um abraço verdadeiro
É aquele que nós sintamos
Quando, findo no terreiro,
Os olhos então fechamos.
Prazer
O prazer que a vida assuma
É que é mesmo então viver
Ou quem viver nem sequer
Vive então vida nenhuma.
Antes
Antes de amar-te, a mim amo
Numa hierarquia certa?
Mas se olho o espelho, o que aclamo
É ver-te na porta aberta.
Maior
O maior carme
Que reclamo:
Só existe amar-me
Quando te amo.
Duas
Tivera eu duas vidas
E podes ter a certeza
Que uma das duas guaridas
Ta dava já, por ti presa.
Cortar-lhe
Por maior que seja o amor,
Basta cortar-lhe um pedaço,
Desaparece o fulgor,
Morre a chama em tempo escasso.
Cadáver
De meu cadáver por cima
Te amarei, além da vida.
Sem ti bem pouco me anima:
Terei de viver. É a lida...
Abraço
O teu abraço, caio nele e morro:
Tudo desfaz, desaparece inútil...
A vida é útil se em teus braços, forro,
Me sinto vivo na cabana sútil.
Antes
Antes uns minutos,
Minutos a dois,
Que da vida os frutos
Sem ti, só depois.
Peso
Que ninguém se dobre
Ao peso do pranto
E um abraço sobre
Por nos vir dar tanto!
Cãs
De hoje na contagem
Duas cãs a mais:
Da vida a viagem
Desce os pedregais.
Horas
Tu estarás sempre em mim
Vinte e quatro horas por dia.
Mais tempo nenhum assim
Há de outrem entrar na via.
Roubar-te
Quero roubar-te do mundo
E dos outros apear-te,
Que meu terreno fecundo
Baste para saciar-te.
Dar-se
Duma quantidade o traço
É poder-se dividir.
Do amor o desembaraço
É dar-se inteiro a seguir.
Alegria
A alegria nos evita
Os males que houver na lida
E naquilo que concita
Prolonga-nos mais a vida.
Recomeçar
É sempre a vitalidade
O poder de persistir
Mas também capacidade
De recomeçar a ir.
Flor
Na vida a flor que te alcança
Mais que a vida em ti assume:
Amizade sem confiança
É flor mas flor sem perfume.
Natal
No Natal a turbulência
Do Verão troca o calor.
Menos conta a diligência,
Porém, do que conta o amor.
Nunca
Dum amor o mais estranho,
Por mais que a vida o disfarce,
É que o que amor tem de ganho
É nunca deixar de amar-se.
Suicídio
Um suicídio mata dois
Naquele que se suicida:
Primeiro a ele e depois
Quem mais o amar nesta vida.
Espera
A estrofe após, repetente,
Na música volta a coda.
Com espera suficiente
Torna a vida à mesma moda.