AURA  CLÁSSICA

 

 

Porque

Porque somos tão frágeis, incapazes?

Porque invejamos o que os outros têm

E desprezamos o que houver, vorazes?

Porque sabemos o valor de alguém

 

Apenas quando o roubarão sequazes?

Porque pequenos somos ante o Além

E o Cosmos é tamanho e nós sem bases?

Faz de nós troça a pretensão que advém,

 

Já nasci torto, feito dor e ausência,

Sou a escassez, jeito de mim vazio.

Nada te lembra, Deus, nesta falência:

 

Que semelhança então, de tudo após,

Te importa em nós, te quebra este fastio?

- Que é que Tu queres, afinal, de nós?

 

Forçado

Quanto marido (e mulher)

É forçado a acreditar

Que já não ama, ao não ver

Corações a palpitar!

 

Não vê que isto é só alicerce,

Que o que em cima construir

É que vale que converse,

Pelo trilho infindo ao ir.

 

O alicerce não se vê

Mas é onde finca o pé.

Se assim não fora, a ruptura

 

Não doía o que supura:

Ela apunhala, no fundo,

A raiz do que é fecundo.

 

Resta

Andam os homens vestidos

De tanto revestimento

Que, se Deus lhes dera ouvidos,

Dum homem, nem o elemento.

 

Se o homem fora fermento

Para gozo de sentidos,

Vá lá, que valera o intento,

Mas são fortuitos sortidos.

 

Temos todos de ser pobres

Para algum canto conter

Alguma coisa em que sobres.

 

Para poderes crescer

Em quanto de bom desdobres

Até as estrelas colher.

 

Vive

Ele vive apaixonado

Pela outra? É só fingir

Que não há nada de errado:

Dá efeito, de uso, a seguir.

 

Recriminação, cobrança,

Mendigar doutrem o amor

Somente repulsa alcança,

Vai-se embora o par que for.

 

Pedir que fique connosco?

Só por pena, obrigação...

Limitado é o laço tosco

 

E destrói a relação.

Às vezes é um fingimento

Que traz com ele outro vento.

 

Momento

Felicidade perene

É o que jamais haverá,

Mas há o momento solene

Em que preenche quanto há.

 

Quantas vezes eu respiro

Não importa, mas o alento

Daquele fundo suspiro

Que me encheu de asas ao vento.

 

Nós compramos e vendemos

Sonhos pela vida além:

Até o lenço que trazemos

 

É um sonho de ser de alguém

E contribui de verdade

À minha felicidade.

 

Resta

O amor é o que sobra

Do que resta ao todo:

Cada dia cobra

Um pouco do bodo.

 

Loiça por lavar,

Mentira pequena,

Crianças levar

Duma escola à cena,

 

As fraldas mudar,

Engomar a roupa,

Pés mal a cheirar...

 

- Nada ao amor poupa.

O mais, se não briga,

É do amor a biga.

 

Feliz

Tinha bons amigos,

Emprego que adora,

Gatos aos postigos...

- Ser feliz demora?

 

É um fato apertado

Esta vida de uso:

- Amor demorado

Deixa-o bem confuso!

 

Sente-se inquieto,

Não logra mexer-se,

Já perdeu o tecto,

 

Nem sabe que verse.

Na vida tem tudo?!

- Sem o amor, que entrudo!

 

Abriu

Porque alguém me abriu a porta,

Abro a minha porta a alguém.

Convidemo-nos, que exorta

Exortar o mundo além.

 

Então perdemos o medo,

Murcha o preconceito em horta.

De dividir, o degredo

É logo uma ideia morta.

 

Não importa ser perfeito

Nem onde logro chegar.

É abrir aos mais o meu peito,

 

Deixá-los em mim entrar.

Assim por mim, não a mando,

Vou-me eterno transformando.

 

Vida

Uma vida é uma série de pequenas

Vidas que nós vivemos cada dia,

De cada vez um trilho em que escolhia

Mil e uma consequências para as cenas.

 

As decisões ajudam, na fasquia

Peça a peça ajuntada, a pôr empenas

No molde da pessoa que hoje encenas

E em que te irás tornando por tal via.

 

Apaixonar-se é a fácil parte então.

Conseguir que perdure aquele amor

Nos longos desafios deste chão

 

É um sonho para muitos do verdor.

Talvez a fé na força misteriosa

Do amor torne poesia toda a prosa.