O HORIZONTE INCERTO
Galinha
Às vezes, sem ronha,
A galinha esfomeada
Sonha
Morar num celeiro de cevada...
- Quantos de nós, quanta vida
É de tal ovo nascida!
Desmoronamento
O mais pequeno acidente,
O mais ligeiro,
Pode provocar o desmoronamento, de repente,
Dum mundo inteiro.
Atenção, pois,
Ao ponto de ignição dos paióis!
Doença
A doença do poder,
A urgência da submissão alheia,
Doença de raiva e medo
O espírito dos homens a tolher
Enquanto de alma o credo
Lhes saqueia.
Âmago
Em plena crise
Urge afastar-nos do centro
Para que outra força deslize
Intervindo por dentro,
Uma vez abandonada
A vontade de retornar ao âmago da estrada.
Stresse
Não poder mais fazer
O que à vida deu um objectivo
Bem vivo
Dá um stresse de morrer.
E é o destino programado
Para tanto reformado!
Cem
Cem mortos, entre vinte milhões,
Uma gota de água no oceano?...
Uma só que fora importa aos corações
Que a amaram e agora choram o desengano,
O vazio duma vida
Que não pode mais ser cumprida.
Pedra
Uma pedra rolante
Não cria musgo nunca.
Quem muda instante a instante
De que é que a vida junca?
Sem raízes tem
Como ser alguém?
Parar
Parar de correr.
Só na estabilidade há amor,
O amor sério, de longo prazo, por quenquer.
É outra do amor a corrida:
Ele é tudo o que importa, de valor
Na vida.
Adoras
De alguém adoras a figura
De perfeições plenas?
A neve é sempre pura
De longe apenas.
De perto
Há enormes atoleiros decerto.
Doer
Pode doer o itinerário,
Mas qualquer coisa é melhor
Que o fadário
Malfadado
De à vida se propor
Anestesiado.
Prazer
Qualquer arte
É o prazer de quem a cria
Mais de quem a consome,
Por igual de cada parte.
Um final feliz avia
Porque estou sempre com fome.
Até
Porque não rir,
Rir até fartar,
Do que veio ou pode vir,
Até do que nos pode matar?
A vida é divertida
Ou então já matámos a vida.
Olhar
O realismo
É optimismo na doença:
Pés na terra de pertença,
A olhar o céu e o abismo.
Que é que ganhas
Por insensato crer que moves montanhas?
Aquecimento
Um põe aquecimento central
E todos os mais se esfolam
Para terem um igual.
Não porque o querem: todos nele se enrolam
Porque, de tão pequenos,
Não suportam ter menos!
Primeiro
Primeiro, vê se precisas
Realmente.
Em noventa por cento das pesquisas,
É mero enguiço:
Podes passar perfeitamente
Sem isso.
Depois
Depois duma humilhação
Devia ser o bastante,
Mas não.
A vergonha volta logo adiante
E, a corar repentinamente,
Engole a gente.
Andamos
Dentes-de-leão, borboletas...
- A correr,
Passamos pela vida como setas:
Andamos sem ver.
Passa-me o mundo ao lado
E eu aqui, cego acabado!
Boda
A pão e vinho,
Boda que não é molhada
De carinho
Não é boda abençoada.
Falta aquele bocadinho
Para aguentar pela estrada.
Importa
Nada importa amar a Deus,
Importa é que os humanos se amem:
Isto é que o mando dos Céus
Cumpre acolá,
Sem que outros entendimentos que há
Nos tramem.
Atear
O amor,
Se não for
Talhado a escopro,
Morre logo.
Às vezes, todavia, basta um sopro
Para atear o fogo.
Morri
Quando morri, não morri para os meus:
Sempre fui um solitário monge...
Eu apenas disse adeus,
Que vou voar para longe.
Agora, que nada mais me atrasa,
Vou voar para casa.
Lonjura
Depois de lonjura bastante
Entre mim e o lugar onde cresci
Principiei a ver-lhe diante
A beleza que não vi.
A beleza que lhe vislumbra o forasteiro,
Forasteiro eu, por derradeiro.
Querem
Os que querem a verdade
Radical
O que pretendem e é real
É que lhes reconheçam a superioridade.
Atingido o fito,
A verdade vale menos que um palito.
Sempre
Viver para o dinheiro
Tem o fado
Certeiro
De estar sempre errado:
- Como à plenitude de mim
Alguma vez chegarei por fim?
História
O beijo uma mensagem
Nunca deveria deixar
De enviar,
Pois só ele tem a viagem
A propor
Duma linda história de amor.
Dedica
Dedica ao jeito de amar
O tempo requerido,
Com prejuízo embora do exigido
Por outros domínios de actuar,
Pois nada é tão gratificante
Como amar e ser amado a cada instante.
Melhor
Coabitar
Na indiferença, no desprezo?
Bem melhor é separar:
Não leso
Com autodestruição final
Nem o indivíduo nem o casal.
Projecto
Separação,
Um projecto a dois falhado,
Uma lesão
Com muito sofrimento associado.
As lágrimas desfocam o caminho:
Nem deixam ver o novo mundo vizinho.
Revejo
Tempo de luto
Tempo é de reconstrução
Se em mim revejo que fruto
Me jogou na contramão.
Então cresço e me renovo,
Apaixonar-me irei de novo.
Definitivos
Independentemente
De sucessos e fracassos,
A dignidade em cada um presente
Dá definitivos passos:
Olha todos como iguais
E mede, pois, os direitos universais.
Auto-valorizo-me
Auto-valorizo-me pela imagem
Que de mim tiver,
Pela realidade e qualidade que me coagem
A ser,
E de sonhos pelo infindo tecto
Que de mim projecto.
Anos
Os anos que tenho
São os que me restam de vida.
Os que vivi são meu ganho,
Já os gastei na corrida.
Moedas que consumi,
Não os tenho, já os vivi.
Atitude
O que faz a diferença
É a atitude perante a vida,
Não a idade, cuja sentença
Tem mil formas de ser iludida.
Não são sessenta, cem anos
Que gerarão desenganos.
Recíproca
Com o par, no casal,
Nada de ser competitivo.
É caminhar lado a lado, por igual,
Entreajuda ao vivo,
Vivendo um do outro a vitória
Em recíproca glória.
Comunicação
A comunicação arestas lima
E o mundo rebola
Na magia.
O que, todavia, nos aproxima
Também isola
E distancia.
Diminuem
Flexibilidade e tolerância,
Com o motor
Do amor
A impulsionar,
Diminuem sempre a distância
Que existir em qualquer par.
Conforme
A vida é uma viagem
Feita a dois.
E é de muitos a triagem
Depois:
Conforme os modos,
É de dois, é de muitos e é de todos.
Basta
Basta termos desviado
O olhar para o lado
Um instante
E o que houvermos mais amado
Pode ser-nos arrebatado
Logo adiante.
Conheci
Nunca conheci ninguém
Com quem ficar tão calado
Tanto tempo, tempo além,
E dar por mim com tudo comunicado.
Foi assim que teu amor me salvou:
É quem sou.
Dispor
Dispor dos outros é fácil,
Se seguro
Acaso após.
Nada grácil
E bem duro
É os outros disporem de nós.
Folha
Até a folha a ondular
Há-de-a o destino comandar.
O que houver de ocorrer,
Faça eu o que fizer
Lá,
Fatalmente ocorrerá.
Vendidas
Crianças vendidas por fome...
Há pior, concedo,
Que ser vendido pelo que se come:
É ser vendido por medo.
Aqui, pior que não ter calma,
Vende-se a alma.
Ignoramos
A vida vale
Pelo que ignoramos a seguir.
É o momento sem igual
Que a vida inteira recordaremos
Porque nele recolhemos
O porvir.
Lado
A vida acontece
Ao lado do sofrimento
Quando a lava arrefece
Do tormento.
Na aresta do precipício
Aí é que deveras tem início.
Tomba
Só quando o homem das grilhetas
Tomba na prisão certa
Tem hipóteses completas
De quem se liberta.
O problema é a liberdade vir de dentro
E tu nem sabes qual o teu centro...
Brincar
Ao brincar ao amor,
O mistério
É que, seja qual for
A brincadeira,
É a maneira
De nos tomarmos a sério.
Caminho
Quando amamos,
Tudo passa,
Não há desgraça
Que não saltemos por cima dos ramos.
Se não passa, é que o amor findou
No caminho que caminhou.
Dói-me
Dói-me saber
Que te dói.
Amar é compreender
Quanto mói
O que a dor trama
Contra quem se ama.
Representa
Há quem ame o que o amor traz,
Não o amor.
O que representa, de que é capaz,
Não o que é naquilo que for.
O amor é o lugar
Onde lágrimas e riso podem sempre repousar.
Fere
O que me fere é o que não quero ser.
Agredi-lo, não,
É lá me prender.
Remeto-o do oblívio ao desvão,
Não o farei mais existir.
- Então já poderei ir.
Ama
Quem ama e é amado
É herói
Mais a princesa que ele há salvado.
Desde a eternidade que assim foi.
Por isso é que a eternidade
Pelo amor subitamente nos invade.
Chega
Quem ama tem a certeza
De que um dia chega o dia,
De que chega o dia que preza
A magia.
Aí, mesmo a noite luziria,
Ilesa.
Falta
Falta amor na escola:
Perde alunos, perde futuros,
Carreiras imola...
Abate os alicerces, ergue muros,
Finda a magia
Onde o mundo principia.
Tem
O amor não tem dono,
Tem é coração.
O ódio, não.
Em compensação tem um abono:
É de ti teu dono
Até mais não.
Encontra
O amor é um pego,
Todavia quenquer
Encontra nele a lareira dos invernos.
O amor é cego,
Porém faz-nos ver
E, mais, faz-nos ver-nos.
Falta
Não nos falta nada
Quando amamos.
Contudo,
Na estrada
Por onde caminhamos,
Vamos a caminho de ter tudo.
Esperança
Não somos perfeitos,
Podemos até nem estar bem,
Mas há esperança em nossos peitos,
Que daí amor provém.
Na rua fechada, na rua
Espreita por detrás a Lua.
Cumprimento
Ama
E faz o que quiseres,
Em cumprimento do amor que tiveres,
Que te conclama
A teu eterno fito,
O Infinito.
Cumprir
Tanta gente famosa!
Teriam sido felizes?
Teriam sentido, no meio da rotineira prosa,
Que estavam a cumprir, com todos os matizes,
O que era suposto fazerem
Para a vida não perderem?
Família
Família ideal
Não é nunca a vizinha.
O principal,
Porém,
É desfrutar da que se tem
Inclinando-a ao sonho que se tinha.
Tentar
Tentar sair dum lugar encalhado
Ou tentar desencalhar o lugar?
Aceitar o mundo como nos tiver chegado
Ou tentá-lo mudar
Noutro mundo qualquer
Que ele deveria ser?
Desvantagens
As pequenas desvantagens à partida,
Pelas más influências
Irão ter consequências
Para toda a vida.
E, quão mais dotado fosses,
Mais matam quão mais precoces.
Livro
No livro, os que já não existem
Encontram-se e se unem.
Eis como de novo em vida persistem
E as caravelas mar fora enfunem,
Correndo a muitos nós
Através de nós.
Entrar
Quando deixo entrar alguém
Em meu coração,
É que poderei empurrá-lo para fora também,
Então.
É simples, embora o afecto
Às vezes me expluda o tecto.
Idade
A idade não é um posto
E bem rápido finda peca.
Quando muito é um porto onde o pressuposto
É acolher de alguém o sonho morto
Na minha doca seca
E dar conforto.
Filho
Um filho adorado
Não nos conduz nos atalhos da vida,
É o candeeiro alçado
A iluminar a senda prosseguida
Que seria, na noite escura,
Bem mais, sem ele, insegura.
Outros
“ Não fui eu que vos crucifiquei.
Foram outros, foram,
Que nem sei...
Algures moram
E quebraram o tabu.”
- Claro! Foram outros como tu!