SONHAR PARA ALÉM
Filho
Um filho, quando é problema,
É o que nunca se resolve:
Ao invés, cresce por lema
E a vida a todos revolve.
Contudo, se bem opera,
No lar é uma nova era:
Vivendo connosco aquém
Levanta o véu dum Além.
Duvidar
Duvidar sempre começa
Uma viagem sem fim
Que o mundo inteiro atravessa,
Nem pára no seu confim.
Confronto de mim comigo
E com a minha existência,
Às vezes fuga que abrigo
Ao revelar da evidência.
Leva o sábio o viajante
A viajar sem sair
Da sala de estar adiante
Donde abre a porta ao porvir.
Forma
Não é aquilo que nós temos
Que dá forma à nossa vida,
É do que expostos nos vemos
A prescindir sem medida.
O que interessa deveras
É o que temos aqui dentro:
Actos, terras, idas eras
Em ti vivem, são teu centro.
Tudo isto é que, eternamente,
Viverá, do Além semente.
Crescer
A melhor maneira
De ser criativo,
De crescer é a leira
Num pousio vivo:
Fica a mente aberta
Toda à descoberta.
Possibilidades?
- Todas as idades!
Obstinada
Obstinada indiferença
Por qualquer realidade
De santidade é sentença?
Presença de insanidade?...
Quem à visão do Tabor
Ficou preso sem mais nada
Não é santo, é um corredor
Que perdeu de vez a estrada.
Uma vez dela perdido,
Perdeu da vida o sentido
E não é um louco por Deus,
É só louco: são sandeus.
Não ter apego ao real
Isso, sim, é santidade:
Permite o salto final,
É voar na eternidade
Relação
Qualquer relação humana
É relação de partilha,
É complementaridade
E cumplicidade emana
Em cada passo que trilha.
Ao crescimento persuade
Aos que mútuos envencilha.
A crescer outrem ajuda
Como pessoa na muda.
Difícil de percorrer
Há-de ser sempre o caminho,
Os conflitos vão crescer,
Dos interesses o ninho
É de contrários cadinho:
Tem de aprender-se a ceder.
Graduar o que é importante
A cada um como aos dois
É o que permite adiante
Abrir fresta aos arrebóis.
Olho-te
Olho-te e tu não me vês,
És uma rês no quintal
Ou o quintal duma rês
Que, à vez, pasta ali, frugal.
Mas, se cruzarmos o olhar,
De repente é um outro mundo:
Por trás vejo-te a espreitar,
Vês que em mim há um outro fundo.
Mas é só um primeiro passo:
Vai de estranho a conhecido
E o conhecido ultrapasso
Num amigo preferido.
Se calhar uma paixão
Daqui pode resultar
E, a saltar, o coração
Só no Infindo irá parar.
Primitivo
O primitivo degrau,
A deixar florir o amor
É o olhar que salta o vau,
Toda a lonjura a transpor.
É numa troca de olhares
Que vem a prima leitura
Daquele que cativares,
De quem cativo te apura.
Este olhar que se entrelaça
É que o mundo inteiro abraça.
Recordação
A recordação tomar
Melhor que da infância houver
E pôr-me nela a soprar
Até uma bolha formar
Maior do que puder crer...
Saltar para dentro dela,
A vida inteira à janela!
Ama-se
Ama-se o mais que perfeito
E, por isso, a imperfeição
A que com jeito me ajeito
A apoiar o coração.
Ama-se o encontro perfeito
De duas imperfeições
Buscando o mais que perfeito
Realizar das ilusões.
Construo no imaculado,
Alargo as margens do rio
Que me assalta em todo o lado
Num perene desafio.
Busco uma totalidade
Que jamais se totaliza
Porque é sempre a infinidade
Que me escapa da baliza.
Num instante, todavia,
É instante de salvação:
Pertencemo-nos no dia
De nos semear no chão.
Partilhamos território,
Somos de Deus um bocado
Que aromatiza o incensório
Do terreno desbravado.
Devia
Devia a imortalidade
Ser do pacote da vida,
Que quem amar de verdade
Só o Infinito convida
E a conversão que ele envida
Visa encher a Eternidade.
Por isso é que a morte é meia
E a vida além, bem mais cheia.
Até que em corpo o amor seja
O que em alma já viceja.
Susto
O que não descubro
Me descobre os medos:
De susto me cubro,
Tapo-o com os dedos,
Mas detesto os ocos,
Mesmo se dão socos.
Como é que alguém vive
Sem tentar saber
Se a porta que esquive
Tem algo a esconder?
- O que esconde a porta
É que à vida exorta.
Genético
Mulher que dum homem diz
Que é um genético defeito
Nunca aprendeu de raiz
O culto de prestar preito.
Crê que o amor é do igual,
Nunca do complementar,
Se é diferente, afinal,
A fonte donde emanar.
Quando é só no diferente,
Por mais que nos estraçalhe,
Que o Infinito fermente
Qualquer momento em que calhe.
De igual para igual já temos
Momentos de narcisismo
E no espelho só leremos
Nossa pobreza de abismo.
É um amor masturbador
Que finge, na solidão,
Dum infinito o fulgor
Que largou de vez da mão.
Transformar-se
Transformar-se não é nunca
Alcançar um objectivo,
Largar atrás a espelunca
Dantes que não é o que vivo.
É só movimento em frente,
Um passo além a evoluir,
A tentar tornar presente
O melhor eu que eu sentir.
A viagem não termina:
O Infinito é a minha sina.
Cãozinho
O meu cãozinho interior
Com ele ando sempre à trela,
Nunca lhe sigo o fervor
De espreitar cada janela.
Se o seguira, nalgum dia
Outro mundo descobria:
Descobria em mim o fito
Onde é a casa do Infinito.
O cão sabe aonde vai,
Nós, nem com cabos de estai.