PONDERAR  O  SER

 

 

Problema

Problema da terapia:

Se todos somos doentes,

Como é que então, algum dia,

Somos de saúde agentes?

 

Vamos trocando o lugar:

Se hoje a ti é que eu te curo,

Amanhã vens-me curar

A mim de algum meu apuro.

 

O problema é se o segredo

Só no especialista o pego.

Se não ata nem desata,

É porque eu então o nego

E então viro psicopata.

 

Furtaram-nos

Aqui vamos formatados

Para uma eternidade

Mas furtaram-nos os dados,

Só que ninguém se persuade:

- Serei um ladrão acaso?

E imponho o meu céu a prazo!

 

Seria um céu de comédia,

Não fora a comum tragédia:

 

Por sobre as cinzas dos mortos

Mais se erguem sempre céus tortos.

 

Vida

A vida não depende da lisura

E perfeição do corpo, mas mistura

 

O que nós recebemos à nascença

Mais o que construímos por sentença,

 

Mais a pequena dose de ter sorte

Ou azar no que o dia nos transporte.

 

Esta combinação pode dar certo

Ou não, ora mais longe, ora mais perto.

 

É sempre aleatória, inesperada,

Roleta-russa a disparar na estrada.

 

Quando

Quando era novo, era velho.

Quando sou velho, inda novo,

Apesar do meu artelho,

Pergunto-me o que é que provo,

Pergunto-me ao que viemos:

- Do Cosmos a tomar remos,

 

Nós, pequenos, tais bactérias?!...

Mas elas também nos deram

Da atmosfera tais matérias

Que todos delas nasceram...

- Andamos cá neste giro

Do Infindo a tentar o tiro.

 

Apagar

Apagar uma memória

Dum facto, duma pessoa

Mudando o lugar à toa

Onde ocorreu qualquer glória

É pretender, na pendência,

Que o passado abriu falência.

 

Ele, porém, continua

Na marca impressa na rua.

 

Pedra

Esta pedra, a pedra e eu,

Há milhões e milhões de anos

Éramos sopa de céu,

Juntos, iguais e sem planos.

Depois, tudo aconteceu.

 

Agora, tempos volvidos,

Somos irmãos esquecidos.

 

Eu, porém, sou pedra à toa

E ela, nalgo, é uma pessoa.

 

- Olá, estrelas, obrigado

Do presente que me heis dado!

 

Mundo

Nosso mundo material,

Todo frágil, transitório,

Cada parte nada vale,

Mero ponto migratório,

Mas no final nos ameia

Com ordem que nos rodeia.

 

Subsiste, apesar de tudo,

Numa lei de permanência:

Sempre a morrer e, contudo,

Renasce em nova existência.

Cada instante outro devém,

Nada jamais o detém.

 

No píncaro da esperança

É de sóbrio me acalmar.

Se a desolação me alcança,

É de não desesperar.

Sempre, nas voltas da roda,

Permanece a força toda.

 

Uma morte dá mil vidas:

- Nelas me vêm as saídas.

 

Amor

A fé num Deus jamais é

A questão do raciocínio.

É questão de amor a fé:

É acolher dele o domínio,

 

Crer na possibilidade

De que Deus (e de verdade)

 

Pode amar-nos, afinal,

De vez, incondicional.

 

Preciso

Não é preciso o diabo

Para travarmos as guerras,

Somos nós, ao fim e ao cabo,

Que incendiamos as terras.

 

E o diabo, cá por dentro,

Bate palmas ao intento.

 

Por muito que ele quisesse,

Sem meu sim nada acontece.

 

Crime

O terror do criminoso

Que o crime não incrimina

É o público desonroso

Que a dedo o apontar à esquina.

 

Da degradação moral

É, para ele, o sinal.

 

Tudo o mais já lhe não toca

Morta a consciência na toca.

 

Lobo

Se o lobo pudera um dia

Sensível ao sentimento

Ser que no cordeiro havia,

Então chegar poderia,

A partir de tal momento

E sem provocar mais dano,

Tornar-se vegetariano.

 

Nós e ele somos quem somos,

Apreciamos outros pomos

 

E que sabor um cordeiro

Tem às postas ou inteiro!

 

Juízes

Os juízes mais severos

Do feitiço das palavras

Findam tão hipnotizados

Que daquelas os sons meros

Pesam tanto em suas lavras

Que insensíveis são dopados

E não vêem, na verdade,

Nada da realidade.

 

Casa

Todo o corpo é casa de alma,

Deve, pois, ser respeitado.

Penitenciária é fado

Que ele tem quando o empalma

 

O preconceito racista.

Onde a chave que liberta,

Onde a chave que resista,

Abrindo a fissura certa?

 

Levam

Uns levam a vida a rir,

Outros levam a chorar

E há quem adie o porvir

Sem sequer sonhos sonhar:

 

Arrastam passos na lama

A rogar pragas à trama.

 

Do que há-de vir toda a teia

Deste colorido é cheia.

 

Autor

A vida é sempre um mistério.

Mesmo autor de minha vida,

Vivo sempre sob o império

Da questão não respondida.

 

É uma história inacabada

E, aliás, sempre por contar.

Peneiramos e a buscada

Verdade sempre a escapar.

 

Por vezes, mal esperamos,

Um mistério finda a ser

Resolvido e, pelos ramos,

Finda o mais sem se entender.

 

Boas

Coisas boas não esperam

Até estarmos preparados.

Chegam antes, quando operam,

E nós a olhar para os lados...

 

Vamos deixá-las passar,

Comboio doutro lugar,

 

Ou preparar-nos podemos

Ao que nunca acontecemos.

 

Mal

Logo que o mal seja feito,

Não há como o remediar.

As punhaladas no peito

Do assassino não vão dar

Vida nova ao que está morto,

Limpar sangue em qualquer horto.

 

A vida dum homem é

Tão fácil de se perder

E tão difícil até

Somente de se manter!

E não há quem nos acuda...

- Algo há que não desiluda?

 

Roteiro

Às vezes é uma viagem

O roteiro da existência

Na miragem e na imagem

De inestancável violência.

 

Lutamos e trabalhamos,

Suamos as estopinhas,

Até quase nos matamos,

Morro de fogo nas linhas

 

Para singrar nesta vida

E findo ficando à porta,

Sempre a meio da corrida,

Sem passar da cepa torta.

 

Karma

É karma qualquer evento

Que me sopre como o vento,

 

Sobre o qual não tenho mão,

Bom ou mau seja o tufão

 

Que me sopra como lixo

Para fora de meu nicho.

 

Reconheça eu ou não

Quem assim me traça o chão.

 

Entretanto, quando é bom,

Que as mais horas são do dia,

Vou chamar-lhe darma então,

Dou-lhe a mão, é o meu bom guia.

 

Tufões

Andam as religiões,

Como os líderes do mundo,

Todos em celebrações...

...E é de tufões que me inundo!

 

Da prevenção os peões

Perdem-se em riso jucundo

E o que resta de fecundo

No mundo são aleijões.

 

Andamos aos tropeções,

Em que passo é que me fundo?

 

Seguem

Há os que o seguem porque é o rei.

Os de dentes afiados,

Por ser o leão da grei.

E os que irão por quaisquer lados

 

Desde que algo ali se mova.

E há os que põem tudo à prova:

 

Aqueles que são honestos

E não vão noutros aprestos.

 

Pode ser um no palheiro:

Vale mais que o mundo inteiro.

 

Princípios

Nos princípios ancorados

Juramos que sempre andamos.

Se os mares encapelados

Nos batem por mil e um lados,

As âncoras levantamos

E de novo as já lançamos

 

Em lugar menos ventoso

E de melhor pescaria.

 E logo ao mesmo me coso,

Sem engulho ou fantasia:

“Eis-me aqui sempre ancorado

A meus princípios, meu fado.”

 

- De sempre, o vira-casaca

É de dois gumes a faca.

 

Tomar-se

Há sempre, em qualquer evento,

Quem se quer direito e recto,

A tomar-se por portento.

E é quando ele perde o tecto:

 

Um evento continua

Dele o curso rua a rua.

 

Logo desactualizado

Finda o portento estragado.

 

Sempre

Os homens sempre se encantam

Antes de mais, pelos olhos.

As mulheres se quebrantam

Pelos ouvidos aos molhos.

 

A aparência da mulher

Para o homem muito importa

E a fala que ele tiver

Da mulher é o que abre a porta.

 

Mitiga

Qualquer mulher, quando trai,

É que precisa de afecto:

Só o mitiga aonde cai.

O homem, não, não busca tecto:

Vai trair por sexo puro

Que o excita sem apuro.

 

Autoconfiança, auto-estima

Então alimenta e lima.

 

- Não somos de facto iguais

Mas complementos vitais.

 

Compaixão

Compaixão é perceber

O sofrimento que houver,

 

Ser amável, atencioso,

Receptivo ao doloroso

 

E ver bem que imperfeição

É da humana condição.

 

Ser imperfeito é poder,

Afinal, tudo aprender.

 

Temos de amar-nos a nós

Para ver a identidade

Nossa sem mais véus nem nós,

Sem julgar tal entidade:

É apreendê-la, melhorá-la

- E o mundo entra em minha sala.

 

Envelheço

Envelheço e a tolerância

Aumentou sobre o passado.

Gera derrrotismo a ânsia

De findar desmotivado.

 

O prazer é reduzido

E o medo finda aumentado

Da doença no escondido

Prazo que me haja agendado.

 

- Porém, o meu tempo é o tempo

Das vinhas que ainda eu empo.

 

Impõem

Cultura tradicional,

Religião ancestral

Impõem modos de amor.

Comunicação social

Cinema e arte em geral

Desmentem daquilo o teor.

 

Lei mais contra-informação

São medo e limitação,

 

Geram dentro em nós tabus:

Por dentro findamos nus.

 

Livros

Livros que aos vinte anos li,

Crendo saber o final,

Mudam de então para aqui,

Que aos setenta outro é o real

E muda o final em si.

 

É que a história continua

Cá dentro em nossa cabeça.

O início de igual actua,

Mas o fim nalgo tropeça,

Se altera ao mudar de Lua.

 

A festa de despedida

Troca de repente o tom

E é o princípio duma vida,

Todos em celebração

Do que renasce em seguida.

 

É verdade que uma cabra

Vestida de cerimónia

É cabra por mais que se abra

Tal veste contra a acrimónia.

Mas de pele ali mui glabra

Quase é deusa, mesmo errónea.

 

Grão

Há larvas a se matar

Por ninhos a remontar

Na pestana dum mosquito,

Reinos a se digladiar

Por espaço a conquistar

Numa escara de granito.

 

Visto da altura dos céus,

Nosso herói que mói na mó?

Sacrifica-se e aos seus

E só por um grão de pó!

 

Come

Para quem úlcera, abcesso

Come o nariz, as orelhas,

Que lhe importa quanto excesso

De fé desliza nas quelhas?

 

O vizinho ser budista,

Cristão ou maometano

Nem sequer consta da lista

De quem só tem desengano.

 

É preciso viver bem

Para o mal gerar além?

 

Verdade é que, distraído,

Dos demais perco o sentido.

 

Justiça

Se as vinhas do mundo

Mal a todas empo,

A justiça ao fundo

Demora algum tempo.

Quão tarde vingar

Tanto faz sangrar.

 

As guerras mundiais

Como as locais guerras

De injustos varais

Sangraram as terras.

Sangram tanto mais

Quanto atrasos reais.

 

Se se fora a tempo,

Nem sangue haveria

Nas vinhas que eu empo,

Só vindimaria.

- Fartura, porém,

Cega a gente e bem!

 

Faca

Queres castigar

A faca que corta?

A mão que to fez

É o mais importante.

A mão que avançar,

Que não é mão morta,

É a tua talvez

E a nossa adiante.

Somos todos nós

Com contras e prós.

 

Incerta

Tenho em mim uma incerta inquietação,

Não sei o que é, mas sossegar não deixa.

Como se alguém constante a incitação

De chicotadas dera ou de fateixa.

Pancadas indolores, silenciosas,

Porém a gente sente-as, pico em rosas.

 

Por elas empurrados todos somos

Dum lado para o outro, não podemos

Quietos ficar, já que ofegantes pomos

Os pés correndo, que nos picam demos.

“Que sossego, que paz!” – alguns dirão.

- Se ali ficam, em breve explodirão.

 

Fonte

Viver não será evitar,

Não será evitar abismos,

Que aquele que respirar

É fonte de cataclismos.

 

Importa sempre um abismo

Para me salvar da queda.

A pior queda que crismo

É que abismo não suceda.

 

A queda não é encontrar

Um abismo pela frente,

É não o poder buscar,

Para o saltar, feito gente.

 

Covardia

Covardia é engolir

O que não pode passar,

Não pode pela garganta.

E o encravado sentir

De tamanho a aumentar:

No corpo inteiro se implanta.

Não sou quem sou, a seguir,

Mas o que a mancha deixar

Sobrar de mim, feito manta.

 

Anda aos tombos pela estrada

Só por dentro, fora é mudo.

O covarde não é nada

Depois de engolir já tudo.

 

Maquilhagem

A maquilhagem esconde?

Maquilhagem ilumina?

Por uma ou outra responde

A escolha de cada sina.

 

Não pode a pele mentir?

O que está detrás da pele

Somos, não o que vir

Quem só vê o que atropele.

 

Aquilo que a pele for

Por si própria nunca somos,

Tudo pende do pendor

Do que nós próprios lá pomos.

 

Ditadores

Os ditadores iguais

São todos, valha-nos Deus!

Iguais valores, iguais

Pontapés nos que eram seus.

 

Derrubar um ditador?

Para quê: outro senhor?!

 

Quem não for alternativa

Fique fora, além não viva!

 

Fraqueza

Há uma fraqueza que é forte,

Outra que é debilitante.

Sempre aquela aponta o norte,

Esta pára todo o instante.

Aquela bate no fundo

E daí renova o mundo.

 

Esta deixa-se ficar

E apaga tudo em redor,

Em nós o centro a anular

Para seja lá o que for.

Fraqueza fraca em si mesma

Reduz-nos do nada à resma.

 

Mundo

O mundo da gente rica

É um mundo de fingimento.

Diamantes sobre a pelica?

Vidro frágil da botica

Que parte a qualquer momento.

 

O íntimo, sem um postigo,

É mais pobre que um mendigo.

 

Gente

Tanta gente passa a vida

A esconder a própria história

Com receio, ressentida

De altura não ter da glória!

 

Até alguém se atrever

A história doutra maneira,

Por outra ponta rever,

Recontá-la toda inteira.

 

De repente, um invisível

Encontra um raio de luz.

Devém credível o incrível,

Outro real o real induz.

 

Torrente

Faz a preocupação

Uma torrente de medo

A escorrer do coração

Mente fora desde cedo.

 

Se depois é encorajada,

Há-de escavar um canal

Para o qual, numa escoada,

Todo o pensamento abale.

 

Preocupar-se não ajuda

A si nem a quem acuda.

 

Fio

No mundo da concorrência

É comer ou ser comido.

E qualquer nova excrescência

Noutra bocarra há caído,

 

Que a prudência em demasia

Logo o mais forte a comia.

 

É num fio de navalha

Que o vitorioso se talha.

 

Amortecedor

O amortecedor em mim

- Construído ao resistir –

Defende-me após, por fim.

 

Quando a onda sacudir

Da vida o meu barco leve,

Mui pouco o abana, a seguir,

 

Já o não abalroa, em breve.

Recupero, sem sentir,

Do que contra mim se atreve.

 

À medida que envelheço

Mais resiliente me meço

 

Tenha ou não eu encontrado

Mar revolto em todo o lado.