OS  LONGOS  AFECTOS

 

 

Namorados

Em dia dos namorados

Encontramo-nos, por fim,

No almoço em que decorados

Andam corações alados

Como andam em ti e em mim.

 

Partilhar bolo de festa,

Um coração aos bocados,

É fora de nós a fresta

Que dentro de nós atesta

Como é bom ter mil cuidados.

 

E eis como a velhice apura

Diferente, a igual ternura.

 

Príncipe

Todo o príncipe encantado,

Ao ser tão encantador,

Acaba por pôr de lado

O que mais conta no amor.

 

A princesa celestial,

Ao pertencer tanto ao céu,

Afinal de nada vale

Do amor no trilho que é o meu.

 

Somos terra a querer céu

E nunca um céu sem ter terra.

E quem disto se esqueceu

Parte as pernas mal aterra.

 

Não há príncipe encantado

Nem princesa celestial.

O importante é o nosso lado

Do Infindo a buscar sinal.

 

Para sempre ser felizes

É a mentira desvairada

De quem ignora os matizes

De que a vida é programada.

 

Detrás

O amigo sabe sorrir

Por detrás de mil ausências

E comove-se a seguir

No abraço que cheira a essências.

 

O termo que me faltou

Lê-me no silêncio vago.

Mesmo se o nome voou,

Ele, não, comigo o trago.

É quem quero ao pé de mim:

Fica sempre até ao fim.

 

Paisagem que reconheço,

Cheiro, cor que diz, enfim,

O que sou no que nem meço,

Apareço: nele vim.

 

Encontro-o nos bastidores,

Anos e anos muito atrás,

Outro nos mesmos humores,

Nos tiques familiares.

É quem me diz a palavra

Que nem digo mas me lavra.

 

É quem não cobra nem paga,

Conta-corrente em aberto,

É a mão que sempre me afaga,

É o longe que é sempre perto.

 

Anos e anos passarão,

Sempre, porém, retornamos.

É na próxima estação

Que o tempo em degraus saltamos.

 

Amigos, os nossos grilos:

Nas noites da vida há trilos!

 

Amor

O amor jamais será eterno

Se apenas for dopamina

A gerar o gesto terno

Mais a norepinefrina

Excitando um erotismo

Apenas de hormonas sismo.

 

O amor jamais será eterno

Se apenas for animal,

Jamais trepar ao superno

Labirinto do ideal

Onde a vontade comanda

A suprir toda a demanda.

 

Um amor apenas físico

É um lar em que tudo é tísico.

 

Quando o físico se esgota,

De nível não há mais cota.

 

Finda tudo rasteirinho,

De amor não há pão nem vinho.

 

Tempo

O tempo é de espertalhões,

Nem sabem o que é um escrúpulo,

Não são crime os empurrões

Nem os venenos do lúpulo...

 

Porém, de repente, alguém

Dá o melhor que o mundo tem.

 

“Obrigado por tu seres” –

Dirás – “e me apareceres!”

 

Inspira

O que mais inspira a gente

Das pessoas é a corrente

 

E dela a diversidade

Que espicaça quanto invade

 

Mais o inesperado amor

Que disto borbota em flor.

 

- Tudo o mais são consequências

Destas simples evidências.

 

Compartilho

Quando alguém, um irmão, sofre

E compartilho da dor,

Vejo, no fundo do cofre,

Deus a tentar-se lá impor.

 

Não andou lá Deus, é o diabo:

Deus tenta dele dar cabo!

 

Vem é pedir minha ajuda:

Deus espera que eu lhe acuda.

 

Vontade

Amor não é sentimento,

Muito menos, emoção.

É vontade, no momento,

De agir por amor então.

 

É fazer por outrem tudo

Que o amor faz por miúdo.

 

Embora não sintas nada

Nem te emocione a jornada.

 

Força

Como o amor nos purifica,

Dá força a vencer instintos,

Vícios contra que a razão

Tem razões para o que aplica,

Na impotência destes cintos,

Na fraqueza deste chão!

 

E o amor, duma penada,

Do nada rasga outra estrada.

 

Vazio

O vazio dum amor

Que se partiu desta vida

Não é o vazio maior.

O maior é o da vivida

Vida sem que algum amor

Tenha a traça lá imprimida.

 

O vácuo dum coração

Sem no mundo uma afeição

 

Torna-nos sempre um estranho

Num mundo em perda sem ganho.

 

Perdão

Peço perdão por casado

Estar e por estar são,

Por feliz ter acabado,

Por gozar em meu torrão

Regular prosperidade

E uma vida de verdade.

 

É perante os desgraçados

E os que desejam morrer:

Paguei com suor e cuidados.

Não terei direito a ter?

 

Filho

Há sempre bem mais estudos

Dos perigos de adiar

Ter um filho com escudos:

Quão mais tarde, mais azar.

 

Como há sempre muitos mais

A provar que nunca devo

Apressar-me em coisas tais,

Têm por demais relevo.

 

Um filho então é melhor

Quando mesmo apetecer

E preparado se for

Com um lar que o acolher.

 

Mudei

Mudei, do tempo ao correr,

É o que ocorre a toda a gente.

Evoluí com o prazer,

Dor que me pegou de frente.

Hoje, pois, sou diferente,

Tal diferente é quenquer.

 

Se inda te amo, amo o que foste,

Não quem és, embora goste.

E tu a mim, igualmente

Amas quem fui, um ausente.

 

Ou nós nos mudámos juntos

Ou não há comuns assuntos.

 

Fresta

Amaste-me a vida inteira,

Todavia não me viste

Nem numa fresta ligeira

Do lume que em mim existe.

E eu, que atiçar a fogueira

Mal atiço à minha beira...

 

Como nós, mesmo presentes,

Somos sempre, sempre ausentes!

 

Nunca

Para ser amadas

O são as mulheres

E nunca talhadas

Para as entenderes.

E, como elas, tudo

No mundo onde grudo.

 

Se fora entender,

Nunca as entendia.

Então sem viver

É que viveria.

Ama então. Depois

Entendam-se os dois.

 

Dois

Dois são sempre diferentes.

Podem-se complementar

Se sabem aproveitar

As diferenças pendentes

De maneira construtiva,

Tornando a vida mais viva.

 

É só não tentar impor

Sua personalidade

Ao outro, cuja verdade

Antes quero ver em flor.

Então ponto fraco ou forte

Se encaixa em mútuo suporte.

 

Ser humilde importará

Quanto bastar a admitir

Que outrem me preencherá

Pontos fracos que em mim vir.

Além de que não me iluda,

A crescer então me ajuda.

 

Grau

Mal teremos consciência

De que grau é a dependência

Dum amor quando ele brota.

Mesmo se não gostar dela,

Não me livro da janela

Onde de mim tomar nota.

Sorte é ser correspondida:

Há magia então na vida.

 

Festa

Sessenta e quatro viagens

Em redor do Sol. Paragens,

Só mesmo de antepassados.

Continuamos divertida

A julgar a nossa ida

Na festa de teus cuidados.

 

Nesta nave espacial

Da Terra, quanto especial

De tuas mãos é a magia:

De viver é uma conjura

Que conjuga uma fartura

De alegria a cada dia!

 

Dou-te, pois, os parabéns,

Que, se um rastro de luz tens,

Seria a Terra um cometa

Nos céus a riscar com brilho

De iluminar-nos o trilho

Da nossa cósmica meta.

 

Diz

Um olhar silencioso

Diz tudo quanto a palavra

Não ousar dizer do gozo

Que por dentro aqui nos lavra.

 

Quando dentre a multidão

Dois trocam aquele olhar,

Nenhuma palavra então

Aquilo pode contar.

 

Não há termo que, em verdade,

Conte tal cumplicidade.

 

Ritmo

Ritmo de vida agitado

Já mal permite o diálogo,

Muito embora no catálogo

Do que nos destina o fado

Comunicação global

Seja o nosso traço real.

 

Nem família nem casal

Têm tempo de partilhar

As vivências do real

Que cada dia trilhar.

Só na comum refeição

Se ata o comum coração.

 

Então toda a relevância

É de dar a tal instância.

 

Ciclos

Há ciclos bons, ciclos maus.

Não sabemos é gerir

Nas inundações os vaus

Que um ao outro irão se unir.

 

Pior se há desfasamentos

Do casal entre elementos.

 

Importa conhecer bem

O parceiro que se tem.

 

Compreensão, tolerância...

- E o conflito é doutra instância.

 

Rotina

A rotina duma vida

É toda automatizada,

A origem finda perdida

E a sensação, ignorada.

 

É de não banalizar

O que deve ser fermento

Que se deve reservar

Para o íntimo momento.

 

O repetitivo apaga

O sentido que ele afaga.

 

Não há fogueira depois

Que se ateie dentre os dois.

 

Descontrolo

Sei lá porque me apaixono!

Tudo é muito acidental,

Outrem de mim finda dono,

O descontrolo é total.

 

Tenho mesmo mais estima

Por quem já me cativou,

Que por mim e mais acima

Minha energia empolou.

 

Recordo mil pormenores

E sofro obsessivamente,

Aquando de ausência, horrores,

Penso e penso, permanente...

 

A química me limita,

Terei de geri-la bem:

Tensão que se não desquita

Perde o que for e o que tem.

 

Equiparam

O dar como o receber

Não se equiparam constantes.

Sempre disponível ser

E abnegado requer antes,

Nas proporções desiguais

Dentro duma relação,

De amar constantes sinais,

Dum ao outro adaptação.

 

Dispara

Quando há paixão por alguém,

O poder de sacrifício

Dispara infinito além.

 

O escravo até ganha o vício

De despertar a manhã

A buscar o benefício

 

Duma rosa, uma romã

A oferecer à princesa

Quando ela acordar, louçã.

 

Da rotina ao findar presa

A paixão que diminui

A atenção deslaça, lesa.

 

Nem que a prenda que se frui

Esteja no andar de baixo,

Já lá buscá-la não fui,

 

Canteiro é que já não sacho.

O prazer dela o prazer

Que me dava já não acho.

 

Se recíproco vier

O prazer mais o interesse,

O sacrifício que houver

 

Produz, porém, nova messe

E alcança o que florescer:

- Que o sorrir em nós não cesse!

 

Manter

Quando a paixão deu amor,

Manter reciprocidade

É difícil de se impor.

Mais vida a vida me invade,

 

Compromissos, desafios,

Laborais vinculações,

Família de trás, mil tios,

Amigos aos tropeções...

 

Tanta coisa nos afecta,

Que é duro correr à meta.

 

Primeiro

Perde o primeiro lugar

Aquele com quem se vive,

Dele embora a se gostar?

 

Logo o afecto eis que se esquive

E vem o desinteresse,

Mais quanto o ciúme arquive

 

E a resposta que arrefece

Quanto antes fora agradável...

A rotina o interesse

 

Reduz. O novo é estimável,

Que alegra à vida a quermesse,

Do amor no riso adorável.

 

E o amor ninguém já esquece.

 

Sabor

Em casa estão à vontade,

Mas, se vão para uma festa,

Logo isto empresta

Um sabor de qualidade.

 

Vão-se logo produzir

Bonitos e atraentes

Correspondentes

Ao perfil de seduzir.

 

É como se pretenderam

Estimular o desejo

Dos que envolveram.

E não é nunca o que vejo.

 

Estimulam no parceiro

A atenção perdida acaso

E um ciúme a prazo

Cresce num desejo inteiro.

 

Partilhar

Bem mais que vida sexual

É uma relação a dois:

É condição essencial,

Porém não basta depois.

 

Partilhar a vida exige

Todo um projecto em comum.

O ideal, quando ele vige,

Funde o melhor dos dois num:

 

Física mútua atracção,

Compatível vida à mão.

 

Quatro

Quando há uma separação,

Logo há quatro patamares.

Primeiro, o da negação:

Não será de acreditares!

 

Depois, raiva ou desespero:

É desejar ver o par

Tornado fantoche mero,

Já de pernas para o ar.

 

A seguir é a aceitação:

Outro caminho é inviável,

Nem sequer uma demão,

Reconheço o inevitável.

 

Finalmente me organizo,

Aprendo o que é de aprender

Em mim, no mundo que viso,

De novo me encontro a ser.

 

Gera

O amor gera expectativas,

Conduz à idealização,

Provoca a amplificação

Das qualidades que vivas.

 

Sou atraído por quem,

Alvo desta projecção,

Por algum tempo a mantém:

Amor romântico à mão.

 

É uma profunda união

E renovada energia,

É de esperança um cachão,

O afecto a acolher o dia.

 

Gasta o tempo as projecções.

Doutrem a inidentidade

É o que fica, com senões

Que nunca amei de verdade.

 

Não é quem amei? Pois não,

Nem nunca iria ocorrer:

O amor é idealização

Doutrem num píncaro a ser.

 

A carência emocional

Molda o outro de ilusão:

A imagem que finda então

Chega a inversa do real.

 

Trepa

A paixão trepa ao amor,

Largo o outro idealizado:

Sem de salvar-me penhor,

É ajuda ao significado.

 

O amor já não é fusão,

É responsável caminho.

Ou estagna a relação

Se não servir pão e vinho.

 

A união vem lá depois,

Lenta a entrosar-nos os dois.

 

Evoluo

O amor é companheirismo,

Respeito e mútuo apoio.

De opostos sermos não cismo,

Evoluo em trigo ou joio.

Não busco confirmação,

Quero a diferença então.

 

Defeitos e diferenças,

Ao amá-los, ao invés,

Vou aumentar minhas tenças,

Vou crescer sobre meus pés.

Vou partilhar a jornada

Com meu par em toda a estrada.

 

É ao mistério da vida

Ter elos de ligação:

Sexualidade vivida,

Conversas e compaixão...

- Diálogo confiável

Num roteiro interminável.

 

Separação

Separação leva ao luto,

A inaugurar nova etapa,

A reflectir no conduto,

A ver se nada me escapa:

 

Que é que aprendi do anterior,

Se é mau meu padrão de escolha,

Dum parceiro qual o teor,

Da relação que é que acolha,

 

Que é que tenho de mudar

Em mim para resultar...

 

- Quando o luto der por findo

É que de novo estou indo.

 

Duas

Duas personalidades,

Damos as mãos nos extremos

Das diferenças que temos,

Divergentes qualidades.

“É impossível a união!”

- Grita a comum opinião.

 

Mas nós seguimos em frente,

Vão já quarenta e três anos,

Sem requerer outros planos

Que os planos de toda a gente:

Um ao outro irmos atentos

Nos bons e nos maus momentos.

 

Não há, pois, incompatíveis

Quaisquer personalidades

Se os extremos persuades

A apoiar todos os níveis:

Amar noutro o complemento

De todo o amor é o fermento.

 

E será o de toda a gente

Que olhos abrir indo em frente.

 

Desgraças

O que andar sempre mui triste,

Todo desanimador,

De desgraças sempre em riste,

Doenças até o sol-pôr,

 

Terá dom para a tragédia:

Produz em nós ansiedade,

Vida de tristezas nédia...

- E todo o mal nos invade.

 

Não sabe rir, divertir-se

E nunca tem bom humor...

O dia-a-dia a sorrir-se

É que é do tempo dispor!

 

É que rir é que é saudável,

Une ao feliz e optimista,

Cria coesão fiável

Na vida que alegre alista.

 

É que aquela gargalhada

Tem grão poder curativo,

Bálsamo, liberta a estrada,

É vivo que nela vivo.

 

Rejuvenesce por dentro

E fora rejuvenesce,

Não envelheço no centro

E a periferia cresce.

 

Gostar

Posso não gostar de alguém,

Mas se todo o dia manda

A prenda que me convém,

Quando falta, onde é que ele anda?

 

Ninguém gosta de perder,

Muito menos quando, após,

Irá mesmo acontecer

Perder quem gosta de nós.

 

Somente

Há príncipes encantados,

Anjos caídos do céu

Somente se imaginados,

Antes de cair o véu.

 

Ante a prova do real,

Tudo é de igual para igual.

 

Podemos é construí-los

De cotio nos estilos.

 

Livre

Ser livre não é ter tudo,

É não ter nada a perder.

Quem tudo tem, sobretudo

Vê que tudo falta ter:

Falta sempre o amor além

De tudo quanto se tem.

 

Se tudo tem é o que sente

E sente que tudo falta,

Não é porque algo lhe mente,

É que a verdade ressalta:

Ter tudo e tudo faltar

É amor a não ter lugar.

 

Quero

Não quero um amor pequeno,

É o coração a pular

Quando está mesmo a chegar,

Quando aponta ao longe o aceno.

 

É saborear mesmo as horas

Quando longas há demoras.

 

É deveras saborear

Antes de juntos se estar.

 

Mesa

Na mesa de boa gente,

Onde come um comem dois.

A de má tira da frente

O comensal, mete o dente

Na refeição e depois

Que se amanhe, é indiferente.

 

Naquela, o mundo se liga,

Aqui, todo o mundo briga.

 

Amamos

Amamos o que nos faz,

O que nos fará melhores,

O que faz o mundo, atrás,

Melhor por onde tu fores.

 

O que era oco já ganha

Densidade, já espessura.

Credibilidade apanha

A vida em toda a fundura.

 

Até mesmo um lar vazio

De repente finda cheio,

Cheio de ti: quando espio,

Cheio é de tudo o que anseio.

 

Um amor de tudo cura

E cura toda a maldade

Onde maldade ele apura,

Até o maligno se evade.

 

Dás-me

Se te amo, dás-me o que quero,

Não apenas o que podes.

E que sintas com esmero

Que é o que basta: a tudo acodes.

 

O amor pode bem fazer

Que queiramos o que temos,

Por mais longe que estiver

Do que afinal nós queremos.

 

Desejo

Desejamos os demais

Num desejo de paisagem:

Ao longe, longes fanais

Duma intocável imagem,

Contudo, sempre existente

E, se a quisermos, presente.

 

Vale pelo que nos toca

A vida, mesmo se nunca

Nela o toque desemboca

Desta nossa unha adunca,

Basta ali ser disponível

E vivo o que for vivível.

 

Anda

Às vezes a morte

Anda a par do amor,

Criamo-la à sorte

Do dia ao calor.

 

Finda a ser projecto

Sob o nosso tecto:

 

Remato esta vida

Noutra a ter saída.

 

Pressão

Não há pressão que me limite os passos

Quando sei bem onde enlaçar abraços.

 

Amar é sempre a visceral certeza

Que nem a dúvida, afinal, despreza:

 

Quem, infeliz, vive amarrado em ti,

Sempre incapaz de ser quem eu te vi?

 

É ser refém do que a aparência impõe:

Sempre a aparência a podridão propõe.

 

É sempre pobre quem amor pequeno

Amar que pedem, nunca o seu em pleno.

 

Casa

Na casa modesta

De modesto barro,

No prédio que apresto,

Pintura com sarro,

 

Eis-me aqui amando,

Sou feliz, feliz!

Mas como?! Mas quando?!

- Desde o Eterno o quis...

 

Sou mesmo tão rico

Que por aqui fico!

 

Quantas

Quantas vezes aguentar

Nossa dor que tempo for

Preciso para que a dor

Do outro possa passar,

Para então poder curar

Nossa dor, é mesmo amar!

É do outro com a dor

Vir salvar o que em nós for.

 

Troféu

Amar não é combater.

Quando amar for uma guerra,

O amor é um troféu a ter.

Os contendores em terra

Irão dar, ao levantar

O que cair vão deixar.

 

O amor cai se ambos o tentam

Erguer contra cada qual.

Só ambos juntos inventam

Erguê-lo como um sinal.

Levantá-lo então bem alto,

Só juntos: aí é um salto.

 

Nunca

Nunca quererei ferir

Com intenção nem dizer

Algo só para atingir.

 

Nunca irei magoar querer

Quem amo para ganhar

Uma disputa qualquer,

Parvoíce singular!

Ser adolescente parvo,

Velho dos anos que escarvo?!

 

Perdoa

Perdoa não ser perfeito

Como tu julgas que sou,

Que, criança, tens o jeito

Que além me catapultou.

E, depois, sabe tão bem

Que julgues que sou o Além!

 

Ao sorrir, tornas-me gente

Como nunca antes de ti.

Salto em frente, de repente,

Corro ao trilho que em ti vi.

Dói-me a mim o que em ti dói,

Sou alguém que nunca foi.

 

Perdoa a velhice em mim,

Corpo quase sem cabeça.

Vou fazer até ao fim

Quanto puder, peça a peça.

Perdoa-me ser humano.

Mas é tão bom teu engano!

 

Falhas

Sentir as falhas do par,

Aceitá-las e ceder

Para lhes se acomodar.

Sempre assim se aperceber

 

Que é rua de dois sentidos,

Um ao outro a se moldar,

A se adaptar envolvidos,

Mais e mais a se encaixar.

 

E a perfeição, no limite,

Desafio dum palpite.

 

Aceitas

As minhas limitações,

Meus erros, a estupidez

Aceitas, os meus senões,

Para amar, de cada vez,

O outro lado que, talvez,

Eu acresça, aos encontrões?

 

Por mim, aceito-te assim

Desde agora até ao fim,

 

À espera de que este amor

Cresça, cresça, até dar flor.

 

Sente

Se um homem que ama não diz

O que sente, não será

De desamor por perfis:

Não sabe como o fará...

 

Exprimir um sentimento

É, num homem, um tormento.

 

E a mulher que o não entenda

Anda nos olhos com venda.

 

No desencontro assim torto

Finda o amor às vezes morto.

 

Tinha

Tinha um pai deficiente

Em casa pobre e pequena,

Num bairro de muita gente

Fracassada em cada cena.

 

Mas tinha música, amor,

Num lar de mãe laboriosa,

E uma escola onde o labor

Trepava a encosta rochosa.

 

Não tinha nada, contudo,

Também, porém, tinha tudo.

 

Íntimo

No íntimo duma criança

Mora sempre um optimismo

Que o mundo inteiro me alcança,

Não deixa cair no abismo.

 

A criança, quando acorda,

Nunca crê que um cão a morda:

 

A criança na magia

Crê do que ser poderia.

 

Usar

O momento de crescer

E usar o que germinou

Dentro em mim há-de ocorrer

Mesmo no mais duro voo.

 

A nossa felicidade

É também um nosso ganho:

Mentais músculos é o que há-de

Lavrar a vida que apanho.

 

Enquanto vivemos, nós

Laços atamos e nós.

 

Sinto-me

Sinto-me muito feliz

Por ter quem nunca precise

De que eu feliz de raiz

Seja em tudo quanto ajuíze.

 

Forçar-me por positivo

Ser em todos os momentos

Desgasta quanto em mim vivo

E afasta os mais de tais ventos.

 

Com medo de ser real,

Quem sentir-se nalgum lado

Há-de por isto, afinal,

Quem há-de sentir-se amado?