O ALVOR DOS DIAS
BARTOLOMEU VALENTE
AROEIRA, 2019
AFECTOS E LAÇOS
Rosas
Quem ama o que faz
Faz bem como nunca,
De rosas atrás
Todo o trilho junca.
Mal
Verdade que não agrade
É do mal que nós sintamos.
Quão mais íntima a verdade
Mais requer o que calamos.
Chão
Não ter em que acreditar,
Não ter em quem, a seguir,
É não ter chão para andar.
- Como irei daqui sair?
Rico
O rico não é quem tem
Um qualquer topo de gama,
É quem o dispensa a bem
E leva a vida que ele ama.
Paira
A amizade paira acima
Daquela estranha mania
De formatarmos o clima
De quem nos rodeia o dia.
Nada
A amizade tem de bom
Um nada que é mesmo muito:
Comum afecto no tom
E todo sempre gratuito.
Desperdício
Que desperdício de vida
A vida sem termos filhos:
Os corporais, para a lida,
Espirituais, a abrir trilhos.
Nunca
Nunca tive solidão,
Eu de mim nunca me esqueço,
Brincamos de mão na mão,
Eu mais eu, não me aborreço.
Amizade
A amizade não tem dias
Nem horas, é de quem prezas.
Multiplica as alegrias
E, mais, divide as tristezas.
Começamos
Se as pessoas nos odeiam
Todo o tempo, sistemáticas,
Começamos, mal ameiam,
A crer nas suas dogmáticas.
Filho
Um filho, a corrente de oiro
Que não deixa de brilhar
Seja qual for o desdoiro
Da noite em que me afundar.
Unir
Não há como uma viola
Para unir rapidamente
Toda a gente que se amola
E se enrola em si, ausente.
Chore
Há quem corra com o amor
De casa, pela manhã,
E à noite chore de dor,
Na cama, a sina malsã.
Todos
Para todos virem ter
Alguma vida melhor,
Alguns outros vão ceder
E findam melhor no pior.
Arestas
O noivado sempre esconde
As arestas que, afinal,
Rasgam as esquinas onde
Embate a vida real.
Mulher
A mulher vive apegada
À recordação cimeira
Dum qualquer pequeno nada
E enche dele a vida inteira.
Amigos
Dos amigos das horas venturosas
O que se apresentar tu logo apura
(Já que único fiel é de que gozas)
Nas horas em que fere a desventura.
Farta
Quem se farta do bulício
Da vida em sociedade,
Da solidão um resquício
Requer: é a felicidade!
Mistério
Um amor sempre requer
Do mistério de algo a trama:
Ama o homem a mulher
Mas não conhece quem ama.
Ódio
Ódio a guerra o semeia
E ódio nunca facilmente,
Se dentro de nós ameia,
Morrerá dentro da gente.
Paixão
A paixão nunca nos deixa
Compreender a verdade
Que ante os olhos se me enfeixa:
Em sombra a prova se evade.
Saudades
Que saudades de sair
De algures mais cedo, aos brilhos
Do entusiasmo de ter de ir
Ter com tempo com meus filhos!
Amámo-nos
Amámo-nos e perdemo-nos.
Reencontrámo-nos há instantes,
Porém não direi “amemo-nos!”:
- Nada encaixa como dantes...
Basta
Basta um pouco de ternura
E o mundo, que era um inferno,
Muda logo de figura:
Do céu é um caminho eterno.
Palavras
Lindas palavras de amor,
As mais lindas, se calhar,
São do silêncio o fulgor,
Do silêncio dum olhar.
Estimula
Visualmente, alguma roupa
Estimula muito mais
Que roupa nenhuma: poupa
O real ao que sonhais.
Mama
Quando a mama é biberão
E finda no lava-loiças,
O erotismo onde anda então,
Onde a grama onde retoiças?
Transmite
Quase tudo o que apaixona
Se transmite pelo olhar:
A verdade inteiro abona,
O amor que houver para dar.
Comunicação
Na vivência quotidiana,
Comunicação de olhar
Tanto a comunhão emana
Como a discórdia sem par.
Impulso
Quando se amar muito alguém,
O impulso é de repetir
Aquele nome que tem
Sem parar nunca a seguir.
Gesto
Após o primeiro toque,
É compatível ou não
Outrem que tal gesto evoque:
- Pele é de cultivo o chão.
Beleza
Beleza que atrai, atrai
Todo o mundo a toda a hora,
Muito raramente vai
Ser beleza que enamora.
Corpo
A tímida, envergonhada,
O corpo reserva, oculta.
A sedutora, confiada,
Exibe-o, findando estulta.
Seduzir
Seduzir tem um aparte
Deveras de em conta ter:
No fundo será sempre arte
De o desejo doutro obter.
Sacrifico-me
Para ser sempre o melhor
Sacrifico-me ao labor.
Porque não a mesma glosa
Por minha vida amorosa?
Afastamento
O afastamento estimula,
Ainda que temporário,
Por outrem desejo e gula
E a relação é um sacrário.
Implica
Todo o amor implica ter
Quem deveras se deseja,
Qualquer desejo é querer
Quem se não tem e se almeja.
Défice
Os homens, em maioria,
Défice sofrem sexual.
Sofre a mulher, noutra via,
Défice afectivo igual.
Somos
Quando passamos a imagem,
A imagem que nós passamos
Somos nós ou é miragem
Com que outrem manipulamos?
Conversa
Quando um doutro desconfia,
Ou há uma conversa a dois
A restaurar a magia
Ou tudo finda depois.
Sei
Uma física traição,
O desprezo, o desamor,
A indiferença em acção...
- Sei lá bem o que é pior!
Ritmo
A relação é uma dança
E o passo que vem depois
É do ritmo que se alcança
Definido pelos dois.
Amigos
Com amigos negativos
Vou perder longevidade,
Que de vida a qualidade,
Só de amigos positivos.
Culpa
Num evento de ruptura
Ninguém culpe do abandono:
A culpa ninguém a apura,
A culpa nunca tem dono.
Aceitar
Aceitar um elogio
Com “obrigado” sincero
É bom para o que emitiu,
Trepa o outro um degrau vero.
Corre
Um amor nunca envelhece,
A idade aqui nunca conta
E, quando o amor acontece,
Corre idades, ponta a ponta.
Aprendeu
O velho aprendeu dum erro
Boa recomendação
E ao novo, se lha descerro,
Mau efeito evito então.
Recuperar
Recuperar rituais
Românticos e de outrora
É poético demais,
Cria o laço que demora.
Antigamente
Antigamente se lia
Poesia alto e bom som
E que partilha que havia
E que serão de bom tom!
Desvendo
Só no auto-conhecimento
Minha máquina interior
Desvendo a qualquer momento
E apto findo para o amor.
Sonho
O amor há-de programado
Ser pela imaginação
E, por ela impulsionado,
Sexo é de sonho um vulcão.
Parte
Companheirismo e diálogo
No afecto e na confiança
Farão parte do catálogo
Do prazer que amor alcança.
Abraço
Há num abraço um fanal,
Na palavra que é falada...
A felicidade é real
Apenas se partilhada.
Exigimos
Na vida profissional
Exigimos que haja empenho.
E na amorosa, afinal,
É o acaso o desempenho?
Desejo
Desejo por companheiro
Sofre sempre esta triagem:
Trepa ao cume mais cimeiro
Quando chega de viagem.
Força
As palavras e a distância
Têm a força que almejo:
Diminuem qualquer ânsia,
Aumentam qualquer desejo.
Lonjura
A lonjura emocional
É, no princípio, silente.
Na indiferença final
É o fim do par já presente.
Par
A razão e a emoção
Têm de se combinar
Num par de equilíbrio são
Para nunca se anular.
Contrário
Receber muito e dar pouco
Queremos da relação?
É o contrário da paixão...
- Como ao fim não findar louco?
Difícil
Uma relação é fácil
De começar com quenquer.
Por muito que seja grácil,
Difícil é de manter.
Fazem
Os homens fazem amor
Para ao fim ficarem bem.
A mulher só o vai propor
Se bem de início, porém.
Parceiro
Muitas vezes procuramos
No parceiro o que não temos
E nem sempre o par que amamos
Pode dar o que visemos.
Estimulam
A imagem como a atitude,
A postura onde me vejo
Estimulam em virtude
De provocarem desejo.
Regar
Teremos que apimentar
E regar a relação,
Que o tempo corrói, a par,
Até o ferro do portão.
Nada
Um casamento perfeito?
Ninguém discute? Anda errado.
Ninguém toma nada a peito,
Não é nada: nem é nado.
Feliz
É no modo de encarar
O meu relacionamento
Que eu o poderei tornar
Então num feliz momento.
Bênção
Não é pecado aceitar
Uma pequenina ajuda
E é bênção podê-la dar
Seja a quem for que se acuda.
Colo
Um indivíduo sozinho
Não consegue mesmo nada.
Mas dois? Garantem que há um ninho
No colo da madrugada.
Consegue
Roubar alguém a seu par
Jamais é predestinado:
Ninguém consegue roubar
Quem não quiser ser roubado.
Preenche
Quando o amor me preenche o corpo todo,
Me frita até ao osso, na sertã,
É que então vivo e morro de igual modo
E mais feliz que o sol desta manhã.
Dói
Nunca o amor é de doer
Mas às vezes dói demais.
Não é por amor não ser,
É de amor querer ser mais.
Ganha
Nunca ninguém ganha nada
(Quando muito, mais perigo)
Quando, ao correr da jornada,
Se ganhar um inimigo.
Buraco
Quando um pai não vê uma filha,
Mas o filho que não teve,
O buraco em vez da ilha,
Como amar vai como deve?
Infeliz
Infeliz num lar viver,
Não é viver numa casa:
Se não tem um bater de asa,
É numa casa morrer.
Custo
Um amor, quando magoa,
De propósito não faz,
É que qualquer coisa boa
Um custo tem sempre atrás.
Apaga
Amor que apaga quem somos
Nunca foi amor nenhum.
A vida não tem mais gomos:
O sumo é todo em comum.
Sempre
Há sempre um ensejo
Na esquina perdida,
E há sempre um beijo
A salvar a vida.
Lugar
Até mesmo uma cadeia
Pode ser lugar de amor
Se de amor uma mancheia
Se partilhar com fervor.
Quero
Quero que o mundo de fora
Seja igual ao cá de dentro.
No amor, quando nos namora,
A periferia é centro.
Iremos
Um amor, por mais que doa,
Não acaba pela dor:
É tanta promessa boa
Que iremos onde ele for.
Morte
Ao amar eu sobrevivo
A qualquer morte na vida,
Mesmo à morte que no arquivo
Dos mortos de vez me elida.
Elimina
O amor elimina o medo
E é por isso que, ao amar,
Vivo em selvagem degredo
Cheio de medo de errar.
Ter
Quem ama quer ter o mundo,
O mundo não para ter,
Mas a ofertá-lo, jucundo,
A quem dele o amor tiver.
Deixe
Há quem não deixe aos demais
Que possam de vez mostrar,
Por raiva ou coisas que tais,
Que também sabem falar.
Bastar
A quem não bastar o amor
Não ama coisa nenhuma.
Não tem fogo nem calor,
Não é mesmo nada, em suma.
Família
A família, como a vida,
Mesmo em contexto furtivo,
Mesmo quando é de fugida,
Faz-me sentir, sentir vivo.
Estranho
É muito estranho na vida
Toda a vida pertencermos
A quem nunca, de seguida,
Pertencer mesmo quisermos.
Conhecemos
Cuidamos a toda a hora
Que conhecemos alguém.
De repente, outro ali mora
E é surpresa vida além.
Proibir
Proibir qualquer amor
É o amor alimentar.
Ao resistir-lhe propor,
É sempre erguer-lhe um altar.
Ver
De ver pedes-me que deixe?
Só que o amor é tão belo
Que, das palavras no feixe,
Se falas, já estou a vê-lo.
Lado
Quem ama, do lado certo
Há-de estar do bom combate
Daqueles de quem é perto
Até que os laços lhes ate.
Relação
Na relação conjugal,
Muitas vezes o mandado
Acredita, no final,
Que é quem manda em todo o lado.
Toda
Quero-a toda para mim
Vida fora na jornada.
Mas antes um pouco assim,
Um poucochinho que nada.
Tudo
Amar por vezes vai ser
Ficar com um bocadinho
Para se evitar perder
Tudo, tudo no caminho.
Ficar
Amar é ficar perdido
Sem dar mais conta do ninho,
Porém, em todo o sentido,
Saber bem qual o caminho.
Sabermos
Amar é sabermos tudo
Sobre alguém e, todavia,
Saber que ignoro, contudo,
O infindo que ali é dia.
Sem
Amar é respeitar
Sem um senão
Do outro o lugar
E a posição.
Ocupar
Amar ocupa o vazio,
O vazio esvaziando.
Nada me falta, sou rio,
Tua barca em mim vogando.
Gente
Um amor de gente grande
Torna-nos de vez crianças.
De grande quão mais te mande
Maior criancice alcanças.
Deixa
O amor não deixa de amar
Só porque aquele a quem ama
Melhor não pode lograr
Que um nada no elo da trama.
Fio
O amor, fio de retrós,
Fundo e fundo a nos atar,
O amor torna-nos mais nós
Sempre e sempre a nos mudar.
Dobre
É o amor esta ansiedade
De que, ao tão feliz eu ser,
Se dobre a felicidade
Por quem amo e por quenquer.
Apaga
O amor apaga o redor,
Redor é coisa nenhuma
Quando um amor for amor,
Do mar azul branca espuma.
Sempre
Amar sempre é como nunca
E é para sempre, ademais.
Até vir a garra adunca
Do tempo em que o esventrais.
Acima
Ama-se acima de tudo
E apesar de tudo o mais.
Depois, ao faltar o adubo,
Do amor onde andam sinais?
Céu
Amar de corpo presente
Não é amar de corpo inteiro:
No presente finda ausente
O céu, de estrelas viveiro.
Espera
A ti te espera uma guerra
E uma solidão a mim.
Qual é que dói mais na terra?
Ninguém sabe. Até ao fim...
Coragem
O amor acontece
Quando o medo adrega,
Não passa, refece,
E a coragem chega.
Grandeza
A grandeza que alguém tem
Vem de quanto for capaz
De fazer em prol de alguém
Que nada em troca lhe traz.
Sobrevive
Quando a desgraça for alta
E abrigo não aparece,
Quando sobrevive à falta
De tudo, o amor acontece.
Falta
O amor à falta persiste
De seja lá do que for.
Um amor só não resiste
É mesmo à falta de amor.
Volta
Para me fazer voltar,
Volta, volta bem depressa
Aqui para o nosso lar,
Que eu já perdi a cabeça!
Ensina
Um amor ensina a amar
Mas quem ama nem sequer
Vislumbra que ensina, a par,
Muito mais fundo a viver.
Nunca
Ninguém menoscabe
O amor que há-de ser.
O amor nunca sabe
O que está a fazer.
Grade
Limite a quem ama
Não há grade alguma,
Nele o mundo acama
Sem fronteira, em suma.
Anões
Serão tão pequenos,
Anões de verdade!
Quem não ama, ao menos
Tem capacidade?
Cativo
Quem estiver impedido
De conviver com quem ama
É um cativo em denegrido
Desterro que a vida trama.
Proibido
Quem proibido é de estar
Com quem amar sempre à mão
Nem livre é de respirar,
Respira numa prisão.
Dentro
O amor faz-nos estar vivos,
Mesmo a matar a existência
Por dentro de nós, furtivos,
Só dele por mor da ausência.
Ausência
O amor dá-nos sempre em dobro
O que a ausência nos tirou.
Vale a pena e nem lho cobro:
Chama-me e por ele vou.
Salvar
Amar é uma perdição
E da perdição salvar,
É salvar duma prisão,
É livre, livre voar.
Voos
Amar é estar a caminho,
A caminho de quem se ama.
Daí os voos do ninho
Por cima de toda a rama.
Rasga
Estamos sempre a caminho,
Mesmo estando na prisão:
O amor é um mestre adivinho,
Rasga outros mundos no chão.
Prenda
Amar ninguém o procura
Como uma prenda na montra,
Tem doutro mundo a figura,
Amar apenas se encontra.
Salvo
Só quem não ama precisa
De ser salvo, o que é impossível.
Pois só o amor tem divisa
De impossível ser possível.
Acaba
O amor irreconhecível
Acaba por me tornar.
Quem me reconhece, incrível,
É o amor com que eu findar.
Reconheço-me
Reconheço-me no amor:
No interior do amor que sinto
Conheço o amor que me pinto,
Aí sou de mim senhor.
Ridículo
Quando amar não é loucura
Não é amar coisa nenhuma.
E se ridículo, em suma,
Não for, nem amor apura.
Todo
Quando amo, todo o mundo é meu irmão,
Até mesmo o inimigo ali do lado.
Nunca mais há no mundo solidão,
Que solidão é nunca ter amado.
Nunca
Nunca é tarde nem é cedo,
Para amar é hora certa.
Aí ao mundo concedo
Que a madrugada desperta.
Proibir
Proibir o amor
É sempre soprar
Do lume o calor
E o eternizar.
Bonito
O amor é sempre o impossível.
E o mais bonito do amor
É, por mais que seja incrível,
Que acontece sempre um ror.
Deve
Amar será de tal jeito
Que, embora sendo proibido,
É sempre o que é requerido,
Sempre o que deve ser feito.
Prendam
O amor sempre é liberdade,
Por mais que prendam correntes
A prendê-lo de verdade.
Dize-lo preso? É que mentes!
Unimos
Um dia unimos por fora
O que já unimos por dentro.
Mas como um amor demora,
No amor quando me concentro!
Possibilidade
Possibilidade basta
A que um amor permaneça.
Um amor é de tal casta
Que não desiste, começa.
Apenas
Acaso apenas estar,
Apenas permanecer,
É muitas vezes amar,
Aberto a tudo o que é ser.
Preço
O amor não se negoceia,
Que amar não é coisa alguma,
Não tem preço uma alma cheia.
Quem compra um manto de espuma?
Amamos
Quando amamos, não queremos
Mais do que este amar sumário.
E somos o milionário
Com um deus entre blasfemos.
Emprego
Quem amar como querer
Vai um emprego que valha
O que sentir, se souber
Que é uma sorte o que lhe calha?
Dentro
Amar sempre é preencher
Alguém dentro por inteiro,
Correr o sonho cimeiro
Até mais não poder ser.
Segredo
Sempre o amor é aquele,
Por mais que se conte,
Segredo que impele
Além do horizonte.
Falta
Quem amamos, no limite,
É quem impede que eu sinta
Falta dele, no palpite
Dum mundo onde ele não pinta.
Entrança
É louco quem ama,
Quem não ama é louco...
Quem entrança a trama
Onde aumento e apouco?
Consomes
Quando me consomes todo
É que findo todo inteiro.
Quão mais estranho teu modo
Mais ao fim de mim me abeiro.
Cantar
O amor é uma vida toda
Para ser todo de alguém.
Cantar sempre a mesma coda?
Um amor nem coda tem!...
Vizinha
Até a vizinha infeliz,
Ao te ver, bebé, sorrindo,
Mais que nunca foi feliz,
Partiu risos repartindo.
Maior
Quem ocupa o coração
Todo inteiro é de gigante:
O bebé não é um anão,
É maior que o mundo diante.
Salva
Um filho não salva o amor,
Que amor que quer salvação
Já não é amor no que for,
É um pobre a estender a mão.
Mais
Amor é o que tem de haver,
Mais o que quero que seja
Até mais o amor não ser
Senão o que amor almeja.
Celebrar
Vou celebrar liberdade,
Que amar é ser livre ao lado
De quem livre de verdade
Quer ser, de amor atulhado.
Venderei
Se um filho de nós precisa,
Não há vergonha que impeça,
Venderei mesmo a camisa,
Vendo a vida peça a peça.
Perco
É sobretudo
Quando falhamos
A quem amamos
Que perco tudo.
Mirrar
Ao não ter como sarar
O que dói em quem amamos,
É já morrer devagar,
É morte a mirrar os ramos.
Tudo
Ao amar eu quero tudo
E tudo, pois, que tu és,
Teu íntimo sobretudo,
Mais tu da cabeça aos pés.
Fará
O amor sempre multiplica,
De dois fará três ou mais,
Nos filhos em que replica,
Nos projectos e sinais.
Cair
Não ter onde cair morto,
Não ter onde cair vivo...
- Como ao filho dar um horto
Numa vida com arquivo?
Ficar
O amor pode desistir
De ficar com quem amamos
Para quem amamos ir
Viver melhor noutros ramos.
Perder
Ao se perder quem se amar
Nunca temos para onde ir,
Somos de nenhum lugar,
Sem-abrigo sem porvir.
Dinheiro
Dinheiro nunca merece
Meter-se entre quem se amar.
Carta de amor, se acontece,
Deve deter tal lugar.
Nota
Um amor que muda apenas
Só por causa do dinheiro
Amor não é, são as cenas
De quem da nota é parceiro.
Criancices
Um amor não sobrevive
Sem de criancices dose
Que em si cada qual arquive,
Que o par para sempre goze.
Abraça
É a mulher que abraça o homem
Ou o homem à mulher?
Tanto um noutro ambos se somem,
Que amor é o que é certo haver.
Ama
Só quem ama pode rico
Ser, embora sem ter nada.
Do amor na cabana fico?
O amor vai fazer-me à estrada.
Discutir
Discutir com quem amamos
É cavar fundo, tão fundo
Que, da raiz mesmo aos ramos,
Nós damos cabo do mundo.
Salva
Amar é mesmo mudar
Quando só mesmo a mudança
Salva o amor de estiolar
Da vida na contradança.
Prémio
Amar é mesmo entender
Que às vezes a vida dói.
Antes dum prémio qualquer
Cobra o preço que nos mói.
Discute
O amor não tem discussão,
É mesmo o que é indiscutível.
Quem o discute ao serão,
Joga-o ao chão, desprezível.
Saltar
O amor é, quando nos falta,
O que nos faz acabar.
Salte o que saltar, não salta
De amor quem se ali finar.
Perder
Quando se ama, ao perder tudo,
Só se perde o que se amar.
Tudo o mais é mero entrudo,
Nem num corso tem lugar.
Chegar
É vida chegar a casa,
Quando o amor é vida mera,
E sentir soltar-se a asa
Ao lá ter um filho à espera.
Família
É família a que sentir
Junta, não só a que junta
Estiver sem dentro ir
Sentir as almas que assunta.
Acalma
O amor acalma a revolta,
O impossível de acalmar,
E volta a lograr a volta
Dum perdão a perdoar.
Todo
Amar é continuar
Todo o dia cada dia,
Todo o dia começar
Dia novo em nova via.
Tira
Amar faz-nos respirar
E tira a respiração.
Dou-te o ar, tiro-te o ar,
Morro e vivo até mais não.
Espreita
Amar é pôr-nos a rir
Quando rir nos faz quem amo,
É a vida à espreita a florir
Por detrás de cada ramo.
Connosco
Vens connosco mesmo quando ficas,
Ficas mesmo quando vens connosco.
Dentro e fora, se ao amor te aplicas,
Luz cambiam num mundo antes fosco.
Destino
Sempre o amor é clandestino,
Nunca clandestinidade.
Seu destino é desatino
No tino da seriedade.
Sentir
Amar é sentir a falta.
Nada valho ante o que a mim
Vale tudo, luz bem alta,
Sou resto que resta ao fim.
Antes
Antes de ti tinha tudo
E tudo também faltava.
Perdoa um amor tão mudo
Que a vida nem via escrava.
Sangue
Um amor é partilhar
Tudo com o nosso amor,
Mesmo o sangue que espirrar
A me escorrer duma dor.
Viajar
Quero viajar contigo,
Mesmo que tu vás sem mim.
Levas-me do imo ao abrigo?
- Seremos dois num, assim.
Simples
É simples o amor
E a gente o complica.
Depois é um horror,
Salpica e salpica.
Paz
A inteira felicidade
A paz é duma família,
Um lar em totalidade,
Por todos tudo em vigília.
Sentir
Amar é de quem amamos
Ir pela felicidade
E sentir que o que sintamos
É o que sente, em igualdade.
Casa
Uma casa é sempre o amor
Que nela a gente coloca.
Mobília, não, o calor
Que partilharmos na toca.
Moramos
Moramos cada vez mais
Em casa na nossa casa
Com tudo: não há sinais
De faltas se o lume abrasa.
Parece
O amor tem de se adaptar
Ao que lhe parece incrível:
Chega para o sustentar
O menor do que é possível.
Termos
Só é amor quando ficamos
Sem termos no que sentimos
E então nós o apelidamos
De amor: sei lá bem onde imos!
Amas
Amas e és amado,
É o que te sustenta,
É o que és: prendado
Invento que inventa.
Cume
Circula um cume de amor
Entre quem amar o mesmo:
Um abraço do teor
De partilhar mundo a esmo.
Somos
Somos o que amamos,
O mais é a paisagem
A enflorar os ramos
Do amor na viagem.
Perde
Um amor não envelhece,
Se envelhece não é amor.
É o que mais nos entristece,
Que a vida perde o calor.
Dilui
É o amor o que nos traz
De nós a melhor versão.
Não nos dilui, contrafaz.
Inteiros põe-nos à mão.
Afecto
Não serão nunca as paredes
Que farão da casa um lar,
É o afecto que lá vedes
Cada qual a germinar.
Saber
Amar é sempre um saber,
Saber que vai ter lugar...
Mais do que um saber qualquer,
É amar saber esperar.
Resto
Felicidade consiste
Em amar e ser amado.
O resto, se o resto existe,
É a paisagem que hei sonhado.
Estranho
O mais estranho do amor
É que quer sempre uma casa
Até que encontra o calor:
São um do outro o lar em brasa!
Dura
O amor que dura uma vida
Mal parece um dia ou dois:
Passou a voar na ermida
E a gente voou depois.
Vento
Até mesmo o vento aquece
Quando tem amor por dentro:
Até o frio se esquece
Quando arde um lar em meu centro.
Casa
A nossa casa não é
Aquela onde moramos:
Nossa casa fica ao pé
Daqueles a quem amamos.
Desarruma
Filho é frágil, dependente,
Porém dele tanto abundo
Que me desarruma o mundo
E as prioridades que tente.
Apenas
Todos querem ser amados
Apenas pelo que são,
E não por quaisquer passados
Nem futuros doutro chão.
Casamento
O que tornará infeliz
O casamento, em verdade,
É o amor não ter raiz
Por lhe faltar a amizade.
Criança
Do que a criança precisa
Vai ser de alguém para amar
E ser amada, de guisa
A o amor tudo moldar.
Maioria
A maioria das gentes
São gente boa também
Desde que nós, entrementes,
Também as tratemos bem.
Coragem
Temos mesmo de ser fortes,
Que a criança, ao nos olhar,
Traz nos olhos uns transportes
Que obrigam a semear.
Cuidar
A menos que alguém de ti
Vá cuidar com muito amor,
De todo o mal que haja aí
Nada vai ficar melhor.
Rotulado
Rotulado como inútil
Constantemente a falhar,
Quem gosta de ver-se fútil?
Doutrem quem gosta do olhar?