SÉTIMA  ESTREVISTA

 

No Trilho Secreto dum Imortal

 

Notícias de Amanhã – Depois da mesa comum, Joana Afonso, qual vai ser a ementa de hoje?

Joana Afonso – Irei pegar na ponta contrária, No Trilho Secreto dum Imortal, mas apenas como portal de toda a restante poesia, que por inteiro continua no rumo da sabedoria de vida. É um domínio inesgotável, dezenas de milhar de poemas afloram apenas uma diminuta fímbria dum território a perder-se no horizonte do Infinito. Quanto mais escavamos, mais encontramos. A nossa interioridade é muito mais complexa do que o mundo perceptível, regiões ao lado de regiões, camadas sobre camadas. E há quem diga que não tem interesse nenhum ou que nem sequer existe. Entre os cientistas há cada cegueta!

Notícias de Amanhã – Pois, há os que segregam ideias, pinga-lhes saliva ideológica pelas beiças abaixo, como o cão de Pavlov. Espero que não segreguem ideias mais nojentas. O cientismo é a nova lei da rolha à escala planetária há séculos. Olham para toda esta corrente mundial de obras de auto-ajuda com o olhar soberbo de quem é superior perante a imensa cambada de sub-humanos que os rodeiam. Os melhores até terão pena e muita comiseração por tantos atrasadinhos mentais. Mantêm-se de pé firme na rocha inexistente, a afundar-se cada dia mais na maré da humanidade faminta de interioridade. E continuam sem ver nada. A novidade de hoje abre-lhes o caminho?

Joana Afonso – Aos que tomam tal postura? Duvido. Couraçaram-se atrás da asneira, nunca mais a largarão. Os que são vítimas disto e nem sequer se apercebem é que poderão abrir os olhos e remar contra a maré. São a preia-mar actual, à escala planetária. Toca-lhes no íntimo, desperta-lhes emoções gratificantes, não ligam mais a findarem ou não ao invés da mentalidade dominante do escol intelectual do mundo. Querem lá saber disto! Estes é que irão entender, mesmo sem serem capazes de discorrer acerca de tais querelas. É por isso que me encaminho No Trilho Secreto dum Imortal.

Notícias de Amanhã – É o pólo contrário da poesia restante em que sentido?

Joana Afonso – Em vários. Desde logo, é um poema longo. Todo o livro é um poema apenas, caso único em toda a obra. Depois, é uma lenda ancestral, colhida da tradição oral indiana imemorial, provavelmente remontando à língua-mãe das línguas indo-europeias, o sânscrito. Finalmente, implica a raiz milenar das múltiplas crenças na imortalidade, em forma de mito.

Notícias de Amanhã – Ah, então sempre voltamos à religião, Joana Afonso.

Joana Afonso – É verdade, mas apenas no sentido autêntico, o do que nos é mais profundo. Não se trata das formas históricas revestidas por qualquer crença, menos ainda da institucionalização assumida por alguma delas. Tudo ali remete para a vivência íntima, a abertura ao sempre-mais-além personalizado e personificado. É crer que a nossa apetência de Infinito é viável, é abrir-se a ela, é acolhê-la como comunhão interpessoal que transcende tudo indefinidamente, mediada pelo Universo, pelo mundo, pelos outros, sem termo em ponto algum do itinerário. Nem a morte lhe põe termo, a aventura continua eternamente.

Notícias de Amanhã – Aqui tombou o muro do que era comum na interioridade de todos. Se vai por aí, só toca os crentes, é?

Joana Afonso – Não é bem... Primeiro, o mito é tão universal que é o alicerce onde é viável reconhecer as múltiplas linhas por onde derivou a fé na imortalidade. A egípcia antiga de que o indivíduo apenas persiste enquanto a múmia se não desfizer, a judaica primitiva de que requer a vida terrena interminável para se consumar (Matusalém dura até aos novecentos anos...), a imortalidade grega no mundo platónico das ideias, a cristã de que se consumará em plenitude na ressurreição... No Trilho Secreto dum Imortal é o mito por trás de tudo. Neste sentido, toda a poesia para além das Humaníadas salta, aqui e nos demais tomos, sempre para trás de cada expressão, até ao coração do sentido. Pouco importa como é vivido numa religião instituída, numa cultura concreta, numa região civilizacional do mundo. O poema toca o que todas visam, não os meios, recursos, medianeiros com que o buscam. A primeira fronteira foi transposta, a do domínio comum da interioridade que quenquer vivencia em seu íntimo, seja crente, agnóstico, indiferente ou ateu... Agora tanto é abordado este campo como o das crenças, não há esta fronteira intransponível nem No Trilho Secreto dum Imortal que presume a fé na imortalidade, nem nos demais volumes que abordam indiferentemente um território ou outro.

Notícias de Amanhã – Os descrentes irão torcer o nariz, não?

Joana Afonso – Não obrigatoriamente. Repare: quanto descrente é um crente inconfesso, um crente frustrado pelo infantilismo da religião popular, um faminto de profundidades íntimas inabordáveis nas confissões implantadas? Ignoramos, serão muitos, porventura todos. Basta reparar na mobilização mundial em redor do Concílio Vaticano II e na desmobilização aquando do retorno à rotina pretensamente renovada. O indiferentismo é movido a desânimo, não deriva da indiferença do tema, mas da inépcia da abordagem, da irrelevância dela. O faminto enganado a matar a fome com o que apenas o enfastia, afasta-se: não é que não tenha fome, tem-na doutra comida, não da que o enjoa. As religiões instituídas são, na quase totalidade das liturgias de rotina, enjoos instituídos. É o efeito insuperável da história, por mor do peso das tradições de todo o tipo. Urge, pois, visar o espírito sempre surpreendente por trás e para além da letra sempre monótona, reencontrar a vida por dentro do cadáver. Ora, este é o itinerário desta poesia: prenhe de fé porque despojada de crendices, aconfessional porque atenta ao que procura toda e qualquer confissão, para além do que epidermicamente exprime. Neste ângulo visa o que é comum a todas enquanto caminhos, enquanto rituais iniciáticos para além do que praticam. Por esta via reencontra o que unifica todas: o infinito visado em cada uma a caminho. Como em cada indivíduo. Ora, aqui o crente e o descrente apenas se distinguem pelo emblema na lapela: de clubes diferentes, adeptos, todavia, do mesmo desporto – realizar a aproximação da plenitude humana, estugar o passo rumo à infinidade. Aqui todos podem sadiamente competir como todos podem dar a mão.

Notícias de Amanhã – Mas isso não choca contra todas as crenças implantadas, Joana Afonso? O clubismo até no futebol termina muitas vezes à pancadaria...

Joana Afonso – Evidentemente que, indo por onde caminha esta poesia, não há lugar a excomunhões nem a guerras de religião. Por aqui viabilizamos o ecumenismo, não apenas entre cristãos de todas as igrejas, não apenas entre as religiões do livro, sejam quais forem as sinagogas ou as mesquitas, mas também com todas as tradições budistas, xintoístas, hindus... Com todo o apetite humano de Infinito, manifeste-se ele como se manifestar, seja consciente ou inconsciente, exprimido ou implícito. Toda e qualquer fagulha da mesma fogueira é o igual lume que nos aquece o coração, é o íntimo a jorrar mundo além através de nosso agir compartilhado, venha ele de que horizonte de fé vier. É o reencontro de todos nós em nossas profundidades.

Notícias de Amanhã – Nenhuma instituição vai por aí, Joana Afonso. Não há ecumenismo a sério nenhum, tudo aprisionado nos dogmas próprios, nas tradições herdadas, nos rituais consagrados. O clubismo há-de superar sempre o desportivismo. Quem é que vai ligar a uma abordagem que não liga aos emblemas? O distintivo é que garante a identidade e a pertença, sem isto o indivíduo nem sabe quem é...

Joana Afonso – É verdade. E esta poesia não abole nada, antes empresta sentido a tudo, qualquer que seja a perspectiva de abordagem, confessional ou não, ideológica ou não. Aqui apenas se repõe a hierarquia de prioridades que a todos nos liberta: primeiro o espírito, depois as formas. Se nos focarmos todos prioritariamente no espírito, as formas devirão gradualmente secundárias, instrumentais. Reconduzidas à verdadeira função, deixarão de ser dogmatizadas, exclusivistas. Já não dependemos necessariamente delas, não nos identificaremos com elas, mergulhamos mais fundo. O próprio dogma deixa de ser dogmático, é uma identidade e uma via de acesso, mais nada, serve enquanto servir para vislumbrar o Universo da plenitude. Se não servir é reformulado, aprofundado. Se nem assim nos unificar connosco, com os outros, com os gérmenes da eternidade, é abandonado como relíquia doravante inútil, embora muito venerável. Não ignoro que a religião institucional, seja ela qual for (que nisto são todas iguais), treme e repudia todo este caminho. Tanto quanto o fizer, trai o fim último dela: elucidar e promover o trilho do espírito, incarnando-o mundo além. Ora, toda a religião institucional é, queira-o ou não, aceite-o ou não, a institucionalização da traição disto, é o pecado organizado, dalgum modo. E tanto mais quanto mais repudiar este exame de consciência. Sê-lo-á menos tanto quanto se reconverter ao Espírito, secundarizando e submetendo a ele toda a forma, toda a tradição, toda a crença, toda a herança, toda a rotina, toda a prática ritual, toda a vida de toda a gente, desde o leigo mais básico ao clérigo mais iluminado, desde a freima mais banal ao projecto mais heróico, desde o cotio insípido ao gesto de ruptura mais inaugurador de mundos novos. É verdade que também eu constato que em todas as confissões é o morto e cristalizado que de longe impera. E que não há nem identificação vigilante disto, nem, por conseguinte, arrependimento, nem, finalmente, reconversão. É assim há séculos, há milénios. Só que o Espírito continua a empurrar-nos e a atrair-nos. Ele não desiste: logo, aquilo findará derrotado, a bem ou a mal, como sempre foi e será história além. Demore o que demorar, a sentença de morte foi-lhe lavrada desde a eternidade.

Notícias de Amanhã – Esta poesia denuncia-o, é?

Joana Afonso – Aqui ou além, sim. Mas o fundamental é outra realidade: revelar ao vivo os desafios e as alternativas. Não vale a pena perder muito tempo com ouvidos moucos, eles não ouvirão de todo. Passamos à frente. O desvio colossal e permanente das religiões instituídas é confundirem-se permanentemente com os dogmas a que aderem, sejam os explícitos ou, pior, os implícitos, presentes na mentalidade e cultura delas. Não haveria mal nenhum em os terem, pelo contrário: o Espírito não caminha senão nas incarnações que tiver. Isto, em si, é uma riqueza inestimável. E haver múltiplos caminhos e canais por onde se semeie no mundo e o fermente é óptimo, porque será sempre desta maneira que se concretizará. Então qual é o problema? É que lenta, insensivelmente, isto se dogmatiza: o dogma não seria nunca obstáculo, não fora a dogmatização dele – torná-lo absoluto, definitivo, exclusivo, primeiro para a identificação do fiel (quem está dentro, quem fica de fora); depois como uma via de salvação (ainda poderia admitir outras); depois como a via, sem mais alternativa (sem fé não há salvação, na interpretação e vivência mais atentatória do Espírito: com tudo reduzido a fórmulas e rituais, uma autêntica bruxaria, nunca confessada nem assumida por nenhuma religião). Todas findam condenadas à morte histórica porque nenhuma se reconverte deste pecado original que as adoenta, tempos fora. Quaisquer tentativas de renovação, atingido o píncaro, decaem e o descaminho reproduz igual desvio. Só evitaríamos isto se vigiar pelo renovamento fora permanente, nunca com a institucionalização dos trilhos desbravados, ou então com o acolhimento de cada inovamento que toque os corações e as mentes, de cada carisma, inspiração e vocação, sem ninguém assentar nelas para sempre, antes usando-os para estimular e despertar os itinerários da intimidade própria. Isto é com as religiões, como, fora delas, com as ideologias, movimentos culturais, sociais ou políticos, com tudo o que mexa connosco e nos ponha a caminho: repousar numa rota e torná-la única, definitiva e exclusiva é fatal. Basta recordar o holocausto nazi, o gulag comunista, os extermínios maoísta ou kmer vermelho, os assassínios e terrorismo do estado islâmico... Alheio ao domínio da interioridade individual, reportado ao confronto político, Trotsky terá intuído algo disto ao reivindicar a “revolução permanente”: perde todo o sentido no contexto posterior à queda dum regime totalitário, uma vez que, na instabilidade generalizada, o totalitarismo de cada um anda aos tiros ao totalitarismo de cada outro; mas recupera-o se for no rumo de todo o indivíduo se abrir a uma perene redescoberta, reajustamento, reencaminhamento. Aqui o totalitarismo próprio cai, relativizando todas as crenças, soluções, roteiros, uma vez que a todo o momento poderá substituí-los por outros mais adequados, melhores, e o itinerário não terá fim nunca, em nenhum modelo concretizado. É, nas áreas ateístas, a sensibilidade para o mesmo desvio, para igual lesão humana. É onde verificamos que, afinal, convergimos todos, com obstáculos iguais, sejam quais forem as ladeiras por onde tentemos trepar. Todos buscamos o mesmo píncaro, refiramo-lo como quer que o referirmos.

Notícias de Amanhã – É uma forma estranha de colocar o desafio. Embora reconheça que, por tal via, verificamos que, no fundo, todos somos um. No Trilho Secreto dum Imortal unifica-nos?

Joana Afonso – De alguma maneira, num nível inesperado. Há tempos, conversando com um ateu renitente que até ouvira resmungar contra a mulher, numa visita ao santuário de Fátima, criticando o porte dela como fanatismo, veio à baila esta problemática. Referi-lhe que, aparte as abordagens com que as religiões apontam a imortalidade, ela pode ser um facto e que, se o for, de nada importa que a gente creia ou não nela. Todos então sobreviveremos, uma vez que não poderemos ter mão naquilo. Aliás, no meu entender, não era nada mau, até poderíamos atingir o que de melhor aqui, enquanto vivos, não atingíramos. Posta a questão nestes termos, sabe qual foi a resposta dele? “Ah, isso até era muito bom. Se assim for...” O que implica esta conclusão extraordinária e inesperada: são as religiões, no perene pecado delas ao permanecerem estáticas, ao confundirem a promessa com a forma como é prometida, ao fundirem falsamente tradições com a plenitude, ao tentarem fazer passar o temporário como eternidade, no fisicalismo de se convencerem de que o finito que têm é o Infinito – são as religiões as mais eficazes missionárias do ateísmo. Em concreto são todas o maior obstáculo à fé viva. Todas são, estruturalmente, em maior ou menor grau, o pecado organizado, em praticamente quaisquer manifestações: todas as sacralizam nas conceptualizações, nos ritos, nas liturgias, nos dogmas, nas derivadas morais, nas práticas de cotio... Até os debates teológicos resultam fanatizados, sectarizados e ai daquele que pise a linha vermelha de qualquer das seitas – anátema ao herege! Como se Deus se pudesse rever em semelhante asneirada! É assim que, recuando milhares de anos, é cristalina a via à margem das encruzilhadas confusas, No Trilho Secreto dum Imortal rumando ao itinerário do Infinito, de mãos dadas no amor consigo, com os outros e com o mundo, sem mais apego a nada, tudo largado para trás ao transpor o portal da infinidade, na vivência da plenitude. É tão simples que faz impressão tanta miopia.

Notícias de Amanhã – Pois, a sementinha de nada gerou um roble gigantesco, coberto de galharia e rameiras dos lados mais contraditórios, a espalhar bolotas por tudo quanto é chão disponível, os porcos acorrem dos montados mais vários, dos donos mais rivais e todos concorrem uns contra os outros, todos cada dia mais ignorantes do que gerou a fortuna oferecida, todos perdidos nas trapalhadas da ladeira de cada proprietário. Perdidos da fonte, perdidos do horizonte. Todos reduzidos a porcos de focinho preso ao chão, um palmo em redor do arganel de cada religião, de cada ideologia. Bonito espectáculo o nosso, Joana Afonso! Dá muito que reflectir. Ninguém vislumbra o roble, quanto mais a germinal bolota longínqua!

Joana Afonso – Ora aí tem! No Trilho Secreto dum Imortal é para saborear reflectindo, parar para dar tempo. A vida a correr deixa escapar muito anúncio e, perdidos os prenúncios, perdemos as bodas do que culminaria em deslumbrantes vislumbres. E lá se irá o festival da vida! O mesmo deriva de todos os outros tomos poéticos: tendo cada um volume idêntico aos das Humaníadas, têm, entretanto, um número muito menor de poemas (chegam a ser menos de metade). É que tendem genericamente a ser maiores, mais pormenorizados, mais raciocinados, mais finos no apuro da emotividade, mais distintamente apelativos. Requerem e mobilizam mais tempo, mergulhos mais profundos no abismo da interioridade. Um saborear mais gostoso e lento, um enraizamento até onde nem atingimos mas para onde vamos indo, vamos indo, palpando o terreno, tacteando o trilho. Nada de correrias, pois. Tudo por aqui é mais e mais serenidade. O primeiro efeito disto é que as quadras deixam gradualmente de ser o molde predominante, cada vez mais raras, dando o lugar, por exemplo, às sextilhas. Até continuam a ser mensagens curtas, mas, depois do mergulho no abismo, há mais uma braçada para a fundura, muitas vezes uma retomada da primeira abordagem mas uma pegada mais além. Diz muito bem, dá muito que reflectir. E ainda bem que é mesmo muito: na quantidade de mais umas dezenas de milhar de poemas; na qualidade de mais dezenas de milhar de discernimentos íntimos, de vislumbres a iluminar mil e um mistérios da interioridade de que todos partilhamos.

Notícias de Amanhã – É curioso, Joana Afonso. Nas Humaníadas referiu-se ao património comum da vida interior da Humanidade, ali como tema nunca transgredido. Mas agora, transposta a fronteira, continua a referir-se à outra poesia como continuando a ser de partilha humana comum. É um bocado confuso, não? No fundo, é tudo igual...

Joana Afonso – É e não é. Urge ter muito cuidado com a nossa estupidez potencialmente infinita. Numa reunião com universitários no Porto, finalistas em tempo de pesquisa de trabalho, maioritariamente engenheiros, surpreendeu-me ser prevenida pelo monitor com algo deste teor: “Cuidado com qualquer referência ao espírito: mal ouvirem tal termo, a maioria automaticamente desliga, não há mais diálogo nenhum, tudo serão preconceitos sem saída. E um diálogo de surdos é o que menos nos importa”. Reparou como o predeterminado prepondera e opera? É aqui, portanto, o que fará de joeira. Tendo em conta o cientismo predominante na mentalidade do escol do país e do mundo (mesmo os subdesenvolvidos têm-lhe muito respeitinho), convém prioritariamente destrancar portões e não fechá-los, libertar os indivíduos e não algemá-los. Então, é melhor, na primeira abordagem, conferir apenas o que a todo o mundo aparenta ser evidente e, conseguintemente, irrecusável: a vivência interior de cada um em todo e qualquer momento da vida, o ser eu com tudo quanto me confronto intimamente de utopias, sonhos, projectos, apetites, repúdios e por aí fora. Aqui, no primarismo do dia-a-dia, no imediatismo de cada escolha, na iniciativa de cada atitude, no gesto de cada aposta, nunca ninguém se lembrará de falar de espírito, muito menos de metafísica e então de fé, nem por sonhos, quanto mais de filosofia ou teologia. É claro que é isto tudo, porém a nível empírico, nada consciente, nada explícito, muito menos num plano elaborado, articulado teoricamente: não é nenhum sistema filosófico nem teológico, tenha a coerência que tiver, tenha as contradições que implicar. A este nível, pois, a mútua comunhão e partilha é viável, ninguém pretende tirar ilações mais envolventes nem comprometedoras. Tudo é demasiado comum, demasiado impositivo pelas premências de cotio para ser arriscadamente fracturante. É uma primeira plataforma comum de que cada um tem consciência e em que repousa como numa pedra angular acolhida. Aqui revela-se o indivíduo inteiro, com acolhimento em todas as vertentes. Pois bem, na outra poesia não é tudo assim: há muita poesia relativa ao património comum reconhecido, ao lado de muita outra cujos objectos apenas alguns conscientemente aceitam como tal. Entra no domínio da fé, embora no substracto comum a todas? Fecham-lhe os ouvidos e não há mais conversa. Repare, porém: isto não quer dizer que esta realidade não exista neles, opere à margem da consciência e vontade manifesta que protagonizem, como um facto real que é recusado. A recusa não elimina o facto, nem aqui nem em lado nenhum. Apenas divide o indivíduo ao meio: metade acolhe a factualidade, tem-na em conta e opera as escolhas nela como muito bem entender; outra metade repudia outra realidade factual, ignora-a ao ponderar, escolher e agir, não logra, porém, aniquilá-la. Ela continuará a existir, a intervir na vida dele de fora para dentro, ao acaso do fortuito, alheia a qualquer interferência do indivíduo, mas ali presente, fatal e condicionadora, para bem e para mal. Nestes termos, é de facto comum a todos, como o real da primeira abordagem o foi. A diferença reside apenas na postura individual relativamente a uma e a outra: a primeira acolhida, a segunda repelida. Ambas, todavia, fatalmente presentes a intervir em tudo, que a realidade em nada depende de nossa atitude para existir: impõe-se-nos e ponto final. Ora, quem acolhe e compartilha do primeiro nível mais facilmente pode abrir-se ao outro e não jogar de imediato o preconceito, sem o entender deveras à partida. Não sendo pertinente a nenhuma confissão expressa, mas abordando a raiz de todas e o fito por que aspiram, mais provavelmente atinge o acolhimento e desencadeia rumos de sentido no imo de qualquer um.

Notícias de Amanhã – O caso que apontou deixa-me apreensivo. Se calhar não irá mesmo tão longe...

Joana Afonso – Não vale a pena fazermos de adivinhos. Sabemos lá com que é que o futuro nos presenteia! É curioso que o cientismo opere com abordagens paralelas. Confirma que têm eficácia. No caso, em meu entender, bem perversa.

Notícias de Amanhã – Conte lá, não estou a ver...

Joana Afonso – Andava eu ainda na Universidade, abordámos certo período um autor que falava do espírito em toda a obra, pejado de encómios. Obviamente, qualquer estudante crente de imediato o acolheu como pertinente à respectiva família, um parente de mentalidade e de opções. Estudámos abordagens, examinámos teorias, ponderámos propostas e modelos. E tudo correu pacificamente até ao dia em que o catedrático nos preveniu: cuidado com o conceito de espírito neste autor. É um pensador materialista: para ele o espírito é uma secreção da matéria, alma são as hormonas do corpo. Mais nada. Querem a prova? Ninguém sente atracção sexual sem a segregação de nor-epinefrina; ninguém fica apaixonado sem um jacto de dopamina. Logo, o cavaleiro andante da donzela com os olhos em alvo, o anjo caído dos céus do jovem perdido de amores não são mais que uns pingos de líquidos glandulares. E pronto, lá foi morta e enterrada toda a espiritualidade nesta paixão hormonal. Aliás, perguntávamo-nos no curso se tal autor se incomodaria se alguém lhe partisse a cara: eram apenas mais alguns corrimentos, não era dor nem fúria. Porque é que ele iria reagir, desencadeando mais uns esguichos de medo ou de sofrimento? Mais esguicho, menos esguicho, que é que isto importa? Andaria por ali a esguichar alma por todo o lado?! Não há dúvida, a estupidez humana é infinita e, na postura dum pretenso sábio, é infinitamente hilariante. Divertimo-nos mesmo com sua excelência. Há cada rei que vai nu que não lembraria ao diabo!

Notícias de Amanhã – Então foram bem levados, não? Imagino a cara com que ficaram...

Joana Afonso – Foi por aí que me dei conta de que tenho o dom de intercomunicar com os finados. Não têm corpo nem precisam dele para nada. E vivem muito mais vida do que nós, nem dá para eu entender como nem até onde. Vou tendo uns vislumbres, como todos os mais com dom idêntico. Ultrapassa tudo mas vamos entrevendo algo, induzindo e deduzindo, só que finda sempre mais além, não é? Mas pronto. Lá se extinguiram os esguichos de alma...

Notícias de Amanhã – O autor não capturou ninguém para o outro lado?

Joana Afonso – Sei lá! Quero acreditar que só quem já lá estaria. Ninguém conferiu nada disto, era com cada um, no íntimo. Comigo ninguém confidenciou nada, limitámo-nos a rir, nem deu para contra-argumentar, tão rudimentarmente primário tudo aquilo se nos antolhou. A técnica, porém, de ir até ao outro lado a tentar convencer e alistar estava ali inteirinha. Pelo menos este autor creu neste caminho. Não é decero inócuo como o são os argumentos dele. Antolha-se-me, aliás, bem sensato. Por isso o aprovo e atendo em toda a intérmina poesia que vimos abordando.

Notícias de Amanhã – Bem, vocês riram-se daquilo. Aqui, no nosso caso, não vislumbro motivo para tal. A eficácia, porém... A carapaça é enorme, tanto no sentido da espessura individual como na vastidão com que recobre a mentalidade dos povos do mundo inteiro. E tem pelo menos cinco séculos de sedimentação. Ainda não virou pedra mas pode entupir todos os rios, riachos e regatos. Isto é muito poderoso, Joana Afonso.

Joana Afonso – Ah, pois é. E muito mais até do que esta ponta de chegada. Atrever-me-ia a arriscar que vem connosco desde que a humanidade é humana. A gente tende a parar e assentar arraiais em tudo. Todos resistimos à mudança em todos os domínios da vida, em todas as idades dela. Até mesmo o miserável se instala na miséria: é o primeiro resistente a mudar para melhor. Então não houve um rancho de escravos, na América, que matou o patrão, aquando da lei do fim da escravatura, porque ele não aceitou continuar com eles escravizados? Até onde o nosso empedernimento chega! S. Pedro, perante a transfiguração de Jesus no monte Tabor, propôs logo: “É bom estar aqui. Vamos montar tendas e ficar por cá?” Acabei de ouvir um director de informação da televisão a constatar que aquilo é uma carga de trabalhos: “Mas é de dentro: é uma resistência descomunal a qualquer mudança”. Os judeus andam há milhares de anos a repetir as mesmas palavras, os mesmos gestos, os mesmos rituais, as mesmas escolhas de vida, como se o mundo tivesse parado em Abraão e nem as rupturas generalizadas disto nas gerações à roda e após a II Guerra Mundial levam a rever o rumo das vidas. Nenhum Einstein, o maior génio dentre eles, que abandonou qualquer religião, os convence. Para já nem falar de Karl Marx, filho de rabino, que até deveio ateu militante, além do mais. Não, o rebanho nunca irá. Aliás, até têm uns ortodoxos divertidos, barbudos e enchapelados, à moda de ancestrais mais ou menos ignotos, que assim é que atingirão a salvação, no respeito da Aliança. Ainda bem que a Bíblia não conta que Abraão vivia nalguma caverna coberto de peles de cabra, senão eles andariam por aí seminus, com algum bode à trela, sem abrigo por escolha, se calhar a reocupar as furnas da Madeira. E tudo para a salvação. Sempre. Os cristãos têm uma curiosidade destas nos Amish que andam lá pela América com os burros e as carroças, para não serem contaminados pelas maleitas da civilização. E também os não convencem as rupturas das novas gerações, frustradas com toda esta miopia. Despertam a curiosidade de milhões porque custa a creditar em tamanha inépcia. Bem, ficaríamos aqui a listar exemplos o dia inteiro e não haveria modo de atingir o fim, porque é com tudo e com todos, nós incluídos. Não há como fugir. Mas sabe o que é mais divertido? É que olhamos para tudo isto como o fariseu para o publicano: “Perdoa-lhe, Senhor, porque ele não sabe o que faz. Eu, cá por mim, sou bom, cumpro toda a Lei e os Profetas”. É cómico, reportado há milénios, porventura constante desde que viemos divergindo do australopiteco, o nosso ancestral de há milhões de anos. Não caímos em geral num extremismo folclórico mas tendemos ao mesmo. E há sempre uma quantidade de gestos em que repetimos o padrão. Eu própria apenas semanas atrás dei por mim a pedir que se pusesse um gancho em cada telha que o não tem, do beiral lá de casa, convicta de que podem cair. Ora, isto dura há uns quarenta anos e nunca despencou nenhuma. Como é que eu insisto numa medida cuja prova provada é que não tem interesse nenhum? A gente cai sempre nisto sem dar por ela. E é em todas as rotinas da vida, por mais que não tenham sentido nenhum. Encarreirámos por ali e ficámos a marcar passo até que a corda nos acabe. Já reparou que nos tendemos a sentar sempre no mesmo lugar à mesa? A frequentar o mesmo restaurante, o mesmo café, a mesma loja, o mesmo mercado e assim por diante? Vivemos formatados neste modelo, não lhe conseguimos escapar, apenas geri-lo para evitar a insensatez, a irracionalidade ou algum extremismo letal, sempre vazio de sentido.

Notícias de Amanhã – Então o cientismo anda aí para durar, haja a poesia de sabedoria de vida que houver. Onde radica tal propensão? É tão natural que mal damos por ela.

Joana Afonso – Quer crer que é o desejo de morte?

Notícias de Amanhã – De morte?! Que aquilo vai dando cabo da revitalização da gente, ainda entendo...

Joana Afonso – Pois, esse é o primeiro alcance e não nos deixa dúvidas quando reparamos nos extremistas: matam e são mortos. Quando recuados um pouco deste extremo, mormente quando incarnam bandeiras de paz, aniquilam-se gradualmente a eles próprios e a quantos permearem em redor. Sendo o passado teimosamente erguido a imperar sobre tudo e todos, devêm lentamente cadáveres ambulantes, mortos-vivos reais alheios à vida concreta e à correnteza imparável dela. Quanto mais distantes, mais traidores do quotidiano, do que ele lhes requerer e impetrar pelo aguilhão íntimo que a todos nos espicaça a trepar ao patamar vindoiro. Aqui não restam dúvidas, é uma morte lenta, mas sempre definitivamente morte. Mesmo nós... Olhe, não me crendo conscientemente adepta de tais rumos tolhidos e tolhedores, dou por mim a vida inteira a repetir: “Bem minha avó me dizia...”, a propósito de mil nadas de cotio, por exemplo, “não comeu como um abade, comeu como um burro”, “não ponhas os cotovelos em cima da mesa!” e sei lá que mais! Nem me dou conta de que é pôr uma morta a comandar a vida, o que é justamente o caminho que repudio. Está a ver? Temos cá todos dentro de nós as pegadas daquilo. E é sempre a morte a reger-nos o trilho, explícita ou implicitamente. O disfarce é tanto mais eficaz quanto mais é para nós afectivamente significativo, gratificante.

Notícias de amanhã – Mas não é, ao contrário, recolher a lição do passado? Até aí, nada contra, julgo eu.

Joana Afonso – Inteiramente de acordo. Desde que seja “até aí”. O nosso problema é que nunca temos travões vigilantes e depois por aí é que nunca ficamos. Repare: há neste domínio uma contradição espantosa nunca identificada pelos entendidos. Por um lado, constatam, com toda a verdade, os filósofos da História que da História a maior lição é que nunca aprendemos as lições da História. De facto, quando olhamos para ela, não na perspectiva da reconstrução e interpretação factual do cientista, mas na do relevo, valor ou importância que para nós pode revestir, o
ângulo do filósofo, na epistemologia desta ciência, confirmamos repetidamente as mesmas asneiras a conduzirem aos mesmos desastres pelos séculos e milénios além, sem ninguém dar mostras de aprender algo para alterar o rumo dos cataclismos: os impérios caem, as civilizações definham, as ditaduras aniquilam-se regularmente em toda a parte, pelos séculos dos séculos, sempre com igual lógica, num fatalismo perfeitamente identificável. Isto, numa humanidade inteligente, permitiria facilmente mudar de agulhagem, tornear o sofrimento e as hecatombes, evitar quanto ali proliferar de destruidor, de negativo. Mas não, toda a história da humanidade manqueja de queda em levantamento, em nova queda e assim indefinidamente, em sucessivo pesadelo de trôpegos. Mais uma ilustração da nossa infinita estupidez.

Notícias de Amanhã – É tudo o contrário do que vínhamos reparando, atarmo-nos aos mortos a comandar a vida. Que coisa esquisita!

Joana Afonso – É, não é? Da história global de povos e civilizações mantemo-nos alheados. Na história familiar, mormente de quem mais nos tocou o coração, mantemo-nos tão submetidos, tão gratamente entregues que nos esquecemos sistematicamente de ver se o trilho é o melhor, o mais adequado a cada reviravolta inesperada da vida. Curiosamente, nos dois casos, a prazo, falharemos sempre estrondosamente. Ora, o mesmo ocorre com a religião que nos configurou eventualmente desde a infância, ou porque foi campo de vivências e eventos gratificantes inesquecíveis ou, ao invés, porque nos marcou tanto com complexos de culpa, de perseguição ou com terror de castigos infernais que nos não logramos libertar interiormente. Em qualquer das alternativas espera-nos o falhanço, quer pelo alheamento voluntário, quer pela auto-destruição. Ora, o mesmo ocorre com qualquer ideologia que cristalize num formalismo qualquer: deu para o torto a da Revolução Francesa enquanto se não morigerou, como a do comunismo e nazismo, em virtude de igual erro. Ora, a do cientismo, nem por ser mais difusa é diferente. É deletéria, aniquila-nos por dentro, enquanto não reconduzirmos a ciência à respectiva função construtiva relativizada, numa dialéctica criadora entre a vida interior e a exterior, sempre repudiada pelos próceres de tal mentalidade. Exactamente a mesma asneira do extremo oposto, o do espiritualismo medievo fanático, assassino (Cruzadas, Inquisição, condenação de Galileu, auto-de-fé de Giordano Bruno, de António José da Silva...). Cometer o mesmo erro mudando-lhe a pintura não resolve nada: o sepulcro é igual, apenas mudou a caiadela. Ninguém abate uma ditadura trocando um ditador por outro – continuamos em ditadura e isto é que era (é sempre) o desvio de fundo. Entrar pelo Ano Novo a escrever datas do velho não inaugura o Ano Novo, exacerba-lhe o apetite até ao desespero.

Notícias de AmanhãNo Trilho Secreto dum Imortal, pelos vistos, ergue uma ponte entre os dois mundos. Não ligamos ao passado – só vivemos no passado... Como ultrapassar isto?

Joana Afonso – É que uma atitude conduz à outra, os extremos tocam-se. Quando uma religião cristaliza num formulário qualquer tornado sagrado, quer dizer, intocável, vai de geração em geração, de século em século, de milénio em milénio, sempre a marcar passo. Isto leva a ignorar quanto ocorrer fora e para além daquilo e o aprisionamento das actuais gerações a esta tropeada leva-as a alhear-se da história que entretanto continua a ocorrer em paralelo. Logo, ignorarão toda e qualquer lição que dali poderia ter advindo, nem de tal quererão saber, agrilhoados ao respectivo dogma, inteiramente encegueirados. A melhor maneira de ignorar, portanto, a história é algemar-se a um qualquer momento dela e tomá-lo por absoluto: aí um indivíduo, um povo, uma humanidade suicidou-se, crendo porventura salvar-se. De nada lhe valerá a crendice, o facto impor-se-lhe-á inelutável, mais cedo ou mais tarde. É o caso em que os filhos ou netos irão pagar pelo pecado dos pais. Não há volta a dar, a história está sempre a repetir-se. É o mesmo com a classe dominante francesa antes da Revolução: a futilidade de Maria Antonieta a reivindicar o seu pavilhãozinho em Versalhes quando a França inteira se erguia em rebelião mostra como tudo isto opera. O alheamento finda na guilhotina. Foi igual alheamento, fixo a um passado morto, que levou ao fuzilamento a família do czar russo que, por acaso, até tentara arrepiar caminho e fora por inteiro boicotado pela classe latifundiária, Rússia além. A atitude contrária, porém, conduz ao mesmo. Quem apenas cultivar laços e afectos actuais de várias gerações conviviais sem ligar a história nenhuma, sofre-lhe o impacto sem o notar sequer. Todos os defensores da ordem implantada, seja ela qual for, vivem-na nos sentimentos e projectos partilhados em comum com os íntimos, de forma mais ou menos alargada e lutarão por ela porque é o domínio da vida deles todos, fora do qual apenas vislumbram desgraças e caos. Não verão para além do portal da respectiva moradia, senão a moradia igual do vizinho e ambos se conciliam em prol da manutenção dos correspondentes benefícios. Esta atitude, gerações volvidas, não dá conta de quantos ficarão de fora, para além do horizonte afectivo dos protagonistas. Muito menos verão o mapa comunitário de antanho nem as derivações divergentes para o panorama actual. Os factos, porém, impor-se-lhes-ão. E a rebelião dos marginalizados pela ignorância da História a todos colherá de surpresa. Ficar aprisionado a um passado qualquer, ficar desligado de qualquer passado, nunca o abolem, ele continuará a cilindrar as vidas, queiram-no ou não, ignorem-no ou não. Ambas as atitudes desviadas conduzem ao mesmo, tarde ou cedo – a derrota, a destruição. Apenas nos libertaremos num diálogo fecundo, com trilhos permanentemente revisíveis entre passado e presente, a ir delineando o porvir mais desejável, que mais incarne sonho, que mais efective utopia. Fora disto correremos permanentemente em perda, a História que o diga, não é?

Notícias de Amanhã – Mas No Trilho Secreto dum Imortal é uma lenda, por mais significativamente mítica que seja. É passado bem velho, imemorial. O resto da demais poesia, pelos vistos, funde as camadas. Como é isto?

Joana Afonso – Pegando no itinerário ancestral e retomando dele o que nos desafios daqui fizer sentido para nos desembaraçarmos dos sarilhos actuais e visarmos um degrau além, rumo à nossa plenitude. É aqui que ocorre um equilíbrio instável, fruto da dialéctica entre passado e futuro, a germinar trilhos no presente. É aqui que, por estranho que pareça, o desejo de morte é um desejo de vida. Parece contraditório mas não é. O que visamos ao pararmos, fruindo as prendas que o mundo nos oferta, não é apenas alienação nem irresponsabilidade perante o que ocorre além de nossa porta privativa. É o antegosto da fugidia felicidade, um fermento do Infinito, ínfimo que seja, um pequenino vislumbre dum céu. Sendo um quase nada, é tão inebriante que nos esquecemos do resto. É tanto alienação da desumanidade como alheamento porque nem notamos a má notícia, como, afinal, distracção por inebriamento. Como é um antegosto do que nunca poderemos obter em vida, apenas além dela na morte, é, então, uma aposta inconsciente no falecimento para atingir vida em pleno. O desejo do fim não é obrigatoriamente negativo, como se generalizou em nossa cultura, a ponto de falar nele devir tabu. É um disparate. Já Sº. Agostinho (séc. V) constatava que nós vimos de Deus e nosso coração não repousa enquanto a ele não retorna. É tudo o contrário duma visão negativa, dum medo de aniquilamento. Ao invés, é uma esperança de plenitude, aqui neste tempo definitivamente inviável, mas já prenunciada nas primícias, apontando para além. Onde é que mora o erro? Em confundir isto com a consumação, seja a classe dominante a assentar arraiais no estado privilegiado dela, seja um regime político com a mania do reino dos mil anos, seja uma religião com a pretensa garantia para a eternidade, seja um indivíduo qualquer radicalizado num padrão de família porque “já meus pais e avós assim agiam”... É o erro de Pedro, Tiago e João a querer montar tendas no Tabor porque aquilo é muito bom, é o dos cinco mil na colina da Ascensão, a olhar para o céu, sem mexer uma palha aqui na terra. Tomar a nuvem por Juno é que é problema, não encantar-se com a bela nuvem.

Notícias de Amanhã – Então, na medida certa, é vantajoso, é positivo.

Joana Afonso – Mais que positivo até: a lei do menor esforço que para ali converge também, é fundamental para a nossa viabilidade e realização. Poupa-nos energias para as investirmos mais longe, treparmos a mais elevados patins. O desvio apenas ocorre quando ficamos aprisionados ao primeiro momento: só poupar, só acumular, só garantir a preservação e manutenção. Isto pára a escalada, cairemos a meio da ladeira, nunca atingiremos o píncaro quando, afinal, ele é que nos aguilhoa em nossa fundura, consciente ou inconsciente. Frustrado ele, frustramo-nos de raiz: o que quer que prossigamos serão derivativos, compensações, substitutos. As grandes fortunas egoístas, os Tios Patinhas multimilionários são inelutavelmente tremendos fracassos amorosos. Ao invés, quando não são de mal-amados mal-amantes, culminam em fundações generosas em que a maior alegria é a da partilha, investimentos no bem comum, benefícios de indivíduos e povos inteiros. Felizmente, o mundo também vive semeado de casos destes, desde a Fundação Gulbenkian à Champalimaud, da Bill Gates à George Soros, são também aos milhares. Nem todos param a marcar passo, mesmo quando acordam apenas à hora da morte, nos dispositivos testamentários. Apesar de tudo abriram os olhos, quando tudo o mais mostrou falhar ao apelo da profundidade.

Notícias de Amanhã – Joana Afonso, acredita mesmo que esta poesia é eficaz, vai virar alguém?

Joana Afonso – Olhe, que é que virou Agostinho de Hipona, estudante valdevinos em Milão, com uma amante e um filho ilegítimo, de modo a tornar-se um dos maiores teólogos da história da humanidade? Foi o acaso de ouvir um sermão dominical de Sº. Ambrósio lá na catedral. De repente caiu em si, virou a vida de pernas para o ar, alterou escolhas e rumos. Quem pode antecipar que é que há-de redundar em tais reviravoltas? Sabemos lá! A poesia anda por aí, pejada de fermentos de todas as receitas que tocaram o autor no imo. Os milhares que por lá vagueiam regularmente algo encontram, não é? Porque não será apenas No Trilho Secreto dum Imortal, é de todos os horizontes. Num dos tomos, por exemplo, são, de repente, pequenos contos, episódios de vida em que aflora uma atitude, uma leitura que rasga luz nas trevas, tanto ao gosto da espiritualidade centro-asiática. Noutros são inspirações de autores das mais várias origens e tradições, desde aqui aos antípodas, teólogos, filósofos, místicos, guias da intimidade – tocaram a corda sensível do autor, desencadeou uma qualquer melodia com a chave secreta do imo, num qualquer recanto inesperado. Que é que os terrenos darão? É com cada um, mas as sementes, estas, foram lançadas no arroteio da campina. Doravante depende do teor do húmus, não da sementeira. Irá dar em nada? Ignoro. A boa semeadura frutificará, mais às claras, mais discreta, mais no imediato, mais a longo prazo, todavia, como ilustram as lições de antanho. Para pôr termo ao espiritualismo criminoso medievo não foi inócuo Francisco de Assis nem Joaquim de Fiore, nem Lutero nem Bartolomeu dos Mártires, guiões de infindos mais. A fermentação do novo mundo é lenta, desesperante para a nossa impaciência, mas ocorre, às claras e a ocultas, inelutável. Aqui, em todas estas obras, há um monte de caminhos novos, para mim infinitamente prometedores e inebriantes. A quantos mais tocarão? Andam milhares a palmilhá-los. Até onde irá?

Notícias de Amanhã – A couraça confessional ou ideológica não quebra assim. Dura gerações e gerações. A Idade Média durou mais dum milénio com o fanatismo a exacerbar-se mais e mais, século a século. É claro que é apenas em nosso pequeno mundo ocidental, mas ele deveio hegemónico no planeta inteiro, a cultura e civilização de referência, a que todo o resto aspira, não é? E tudo isto está para durar, velho embora de séculos, porventura de milénios.

Joana Afonso – De acordo. Mas há um pormenor... Olhe, eu tive um vizinho já falecido cuja família foi sempre assídua numa igreja evangélica. Ele era um divorciado sem filhos e decidiu testar tudo o que tinha àquela comunidade. Alimentara um sonho durante anos que foi conversando comigo. Como a herança era uma moradia com terreno à frente e atrás, aquele um jardim, este um pomar, parecia-lhe óptima para uma residência de terceira idade, quando ele se finara. A morte sobreveio-lhe inopinada com um cancro fulminante do pulmão, em semanas. Imagina o que ocorreu logo a seguir? Os mentores da igreja de imediato tomaram conta da herança, puseram a casa em obras de remodelação profunda, cortaram o pomar, acrescentaram uma piscina e, finalmente, ocuparam a moradia com família e filhos, todos regiamente instalados. É uma festa permanente com a pequenada. Da terceira idade e da comunidade, nem sinal, obviamente. De vez em quando, comentamos em família que o defunto deve dar voltas na tumba de fúria pela traição. Ora, isto é vivido como normal por todos, os privilegiados e a comunidade. Ninguém objecta contra: desde há dois milénios que se meteu na cabeça de toda a gente que dar à igreja é dar a Deus e que dar à igreja é dar ao clero. São duas enormes grosserias, sem qualquer espécie de sentido nem de fundamento possível, mas é um facto. Dar a Deus neste modelo é abstruso porque tudo no Universo é de Deus, até cada um de nós, pelo que não se lhe pode dar o que já é dele, por natureza e em absoluto. Só um infantilismo idólatra cai numa asneira primária como esta. Depois, confundir igreja com clerezia é duplicar o disparate: primeiro, por excluir a comunidade crente e que trate de ser fiel à vontade divina; depois, por confundir o clero com Deus, mais que representantes (sempre falhados inevitavelmente), autênticas incarnações, o afloramento do Além (que deveriam ser, que o poderiam cumprir mais ou menos aproximadamente, e que sempre falham fatalmente, como humanos que são, nunca divinos). Mas foi isto que redundou gradualmente na criação da classe social privilegiada do clero, milenarmente predominante. E hoje continua, mais larvarmente, mas com indiscutível hegemonia comunitária entre os crentes, com os mesmos tiques de outrora, de sempre, a caminho de igual desvio, corrupção, pecado imemorial, como verificamos no exemplo referido. O movimento tendencial é sempre este, foi-o sempre em todas as religiões, em todos os tempos. Os crentes autênticos que romperam com isto sempre foram minoria (coitado do Francisco de Assis, por exemplo!), repudiados pela ordem dominante, postos à margem quando não excluídos, optando por romper como o movimento monaquista (séc. IV) – mas nunca predominaram, muito menos mandaram nem comandaram religião nenhuma. Este é o problema. O que eu me pergunto é como gente que se diz espiritual é milenarmente tão materialista, tão agarrada ao poder e aos privilégios que se constitui como imemorial força de bloqueio contra a humanização da humanidade que é a única e real divinização viável e a única que cumpre a vontade de Deus. Dar a Deus é cumprir-lhe o desígnio amorizador de cada um e de todos, agora e sempre. Como é que não têm remorsos nem escrúpulos em corromper tudo em benefício próprio, em enganar todos os ingénuos de boa fé, a fim de lhes ofertarem basílicas, catedrais, monumentos, fortunas em palácios, terras, jóias, heranças de todos os tipos, transformando todas as religiões em senhorios do mundo? Nem vale a pena baterem o “minha culpa” no peito dos outros, os outros têm os mesmos motivos para baterem nos nossos. A reconversão, a operar-se, deveria ser colossal. As couraças, como diz, são tremendamente resistentes. Mas sabe porquê? É que têm, na mente das multidões desavisadas e ingénuas, sanção divina; para o crente médio, em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as religiões, isto é a vontade divina. Como é que as construções humanas inquinadas de idênticos desvios caem e estas não, mantêm-se por séculos e milénios? O Renascimento esgotou-se como se esgotou o Romantismo e o Realismo, caiu a Revolução Francesa como a Comunista (o que hoje lhe resta é mesmo trôpego e envergonhado), as correntes das artes encadeiam-se, cada uma liquidando a anterior, as civilizações sucederam-se, após cada apogeu, a queda... As religiões também, de algum modo, mas revelando uma resiliência invulgar: é que ninguém quer atentar contra a vontade dos deuses, não vá ser aniquilado... Mesmo que tal vontade seja uma falcatrua em benefício duma fatia de aldrabões sem escrúpulos (embora com muitos também aqui, se calhar, de boa fé...). Como a estupidez humana é infinita, há sempre espertalhões prontos a tirar proveito dela. Quando se tornam predominantes, aí temos uma religião estabelecida para a eternidade, a mistificação acabada. Até podem agir todos de boa fé, sei lá, todavia andarão fatalmente enganados. O trilho do Espírito é outro, ao contrário disto. O reino de Deus não é nunca deste mundo, é a unificação dele, da superfície até à derradeira profundeza de cada um e de todos, perpetuamente a caminho, do lado de cá como do lado de lá da vida: o Infinito nunca se consuma de vez, nunca se consome, nunca se finaliza, por mais que no Além nos realize eternamente em plenitude, insignificantes nadas que somos, lá (como cá) perpetuamente a caminho.

Notícias de Amanhã – Bem, pelos vistos não há volta a dar. Ou há?

Joana Afonso – Haver, há. A mesma reviravolta que subverte regimes políticos, sistemas ideológicos, mentalidades, civilizações, revoluções tecnológicas e assim por diante. É só um reajustamentozinho e tudo pode acontecer: convencermo-nos de que a conversão religiosa é exactamente igual a qualquer daquelas. As religiões são tão laicas, tão criações humanas como qualquer daquelas iniciativas, em qualquer domínio da vida. É mentira quando se convencem e nos convencem de têm origem divina – nenhuma a teve nunca, nenhuma a tem, nenhuma a terá, na perene natureza nossa e da realidade. Todas são criações humanas para servir os itinerários da vida interior até à derradeira profundidade atingível, até ao deus-em-nós discernível em cada um e por cada um. Nem as igrejas cristãs são criações de Jesus que, obviamente, não criou nenhuma e nos deixou o campo aberto para realizarmos o que melhor serviria o apelo do Espírito, sem ficamos presos a nenhuma modalidade em concreto, apenas à interioridade que a cada um animar e enquanto a animar no rumo do amor cada vez mais universal. Pretender uma e outra que é a autêntica igreja de Cristo é uma asneira colossal, uma vez que ele não tem nem terá nunca nenhuma, apenas as concretizações que o Espírito pela vida interior de cada um animar e materializar mundo além, vida além. Nada naquela atitude dominante faz sentido nem tem fundamento. Então porque é que persiste? Pela mesma razão porque persistem as demais empresas humanas de qualquer domínio: os privilegiados de cada uma delas defendem os respectivos privilégios com unhas e dentes. Não é verdade que os reis absolutos se resguardaram debaixo da origem divina do poder? E com isto podiam cometer todos os abusos e crimes, enquanto os cidadãos não abriram os olhos. Nas religiões (em todas, sem excepção) é o mesmo: tratam de convencer o ingénuo de que são Deus incarnado. Com isto conquistam as benesses divinas cá na terra, enquanto ninguém reparar. É cínico? É, mas real. É mau demais? É, mas real. O funcionário da religião é um ateu empedernido, perito em perverter toda a espiritualidade em benefício próprio e da respectiva classe, em breve parasitária, bebendo a carne e o sangue dos fiéis ignaros (e mantidos militantemente na ignorância, como na alta Idade Média europeia: até a Bíblia lhes era proibida!). Foi assim que nasceu e se cristalizou a classe privilegiada do clero, que todas as tradições se tornaram de origem divina, intocáveis, que os dogmas se expandiram com poder até de vida e morte, que devieram todos infalíveis (não é só o Papa, com infalibilidade tão restrita que na prática, felizmente, se reduz a nada), uma vez que Deus anda a mando deles, não pode enganá-los, nem que queira (eles por eles nunca se enganam!). Esta mentalidade é que cria e alimenta o ateísmo (enquanto são ateus todos eles em concreto, confessando explicitamente o contrário) e o materialismo (também são materialistas inconfessos mas absolutamente empedernidos e imutáveis: o tradicionalismo é absoluto, os dogmas são absolutos, a teologia que diviniza toda e qualquer historicidade que os suporta e em que se apoiam é absoluta – toda a outra é errónea, obviamente, as liturgias, as práticas quotidianas, as escolhas morais foram decididas para a eternidade, mesmo quando todo o crente as rejeita, por inteiramente insensatas...). Pois bem, quando toda a gente desmascarar isto, tudo cairá como um castelo de cartas, à semelhança do que ocorreu com o Velho Regime escaqueirado na Revolução Francesa, da queda dos regimes comunistas em cascata no fim do século XX, em que os sobreviventes se reduzem a meras ditaduras violadoras dos direitos humanos desesperadamente à procura de justificações que as escudem de pé. Portanto, só é preciso operar o mesmo no domínio das religiões. Desmascaradas, cairão. Ficará o vazio para o Espírito poder operar a contento, se, por nosso lado, tivermos juízo. Mais uma vez, não se trata de abolir a Lei ou os Profetas, mas de os cumprir, o que anda massivamente a ser traído, como outrora, em tempos de Jesus, como sempre, aliás, infelizmente. Os metros pensos rápidos não resolverão um cancro destes.

Notícias de Amanhã – Nem creio que a poesia que tanto a entusiasma, Joana Afonso, leve lá...

Joana Afonso – Aqui há duas questões. Sabe? A mentalidade de quem intervém, por um lado e, por outro, o estatuto de quem protagoniza. Há dias ouvi um teólogo inteiramente alinhado com o Papa Francisco e que até quer mais que o que ele logra estimular. Quando o questionaram se não era então de ir mais longe e mais fundo, concordou, mas com a ressalva de não dividir mais. Fiquei a matutar nisto. Até onde atinge a mentalidade dominante! Então eu tenho, a Igreja tem de ser inautêntica, de trair a espiritualidade para não afastar alguém?! Que raio de atitude é esta? Durante milénios andou-se a excomungar, perseguir e matar (Cruzada contra os Albigenses) quem não trotava a par, no itinerário da alienação, da traição do espírito. Agora, para reencontrarmos a vivência espiritual de raiz, já não, não iremos desautorizar aquilo se provocar rupturas. Mas andamos aqui a servir quem? Continuamos escravos súbditos dos príncipes da Igreja, qualquer que ela seja, qualquer que seja a religião, traindo-nos, traindo a interioridade, traindo o Espírito no mundo? Para não provocar divisão?! Mas que divisão? Divididos vivemos nós de nós próprios em nosso imo, divididas andam as religiões da vocação da Humanidade, traindo-lhe a vida interior em nome de ritualismos e mentalidades cadavéricas de antanho. Divididos andam os hierarcas, os clérigos, os sacerdotes, os rabis, os imãs relativamente à comunidade crente, tornada por eles um rebanho acéfalo, acrítico, crendeiro, aprisionado em rituais mágicos de sacra bruxaria, acreditando de boa fé que é a escadaria para o Céu. O problema não pode ser colocado assim. A espiritualidade autêntica não afasta ninguém, solidária com o apelo de cada imo. Distingue o indivíduo (com a vocação íntima) do que ele escolha e protagonize, podendo repudiar isto mas nunca o protagonista que o executa. Nunca pode, portanto, excomungar, anatematizar, matar directa nem enviesadamente (o pior farisaísmo que a história secularmente documentou). Não pode, porém, impedir que alguém, traindo-se, traindo o Espírito que no imo o impele e lhe apela, rompa com a dinâmica da interioridade própria e se afaste, quebrando qualquer unidade manifesta em que se não reconheça. Assim operou Mons. Lefebvre após o concílio Vaticano II. Quem optar pela espiritualidade viva (em perpétuo renovamento, de reajuste em reajuste) apenas pode e deve ofertar àqueles, permanentemente, a alternativa que incarnar de cotio e solidarizar-se com quanto neles identificar com vida interior a caminho. Apenas então preserva a unidade exequível em cada conjuntura concreta. Não é aceitável manter unido formalmente o que interiormente vive dividido. Muito menos, em nome disto, manter-me dividida de mim, dividida do Espírito, de Deus, em nome da manutenção duma pretensa unidade formal, meramente administrativa ou jurídica. A unidade é do coração, qualquer manifestação exterior, qualquer formalização no mundo concreto ou é incarnação daquela ou então é mentira. Ora, a mentira ao Espírito é o mais capital dos pecados.

Notícias de Amanhã - Estou a ver, Joana Afonso. Mas que é que o estatuto do protagonista tem a ver com isto? No Trilho Secreto dum Imortal e demais poesia pesam por mor do estatuto do autor?

Joana Afonso – Por acaso a vertente não é essa mas repare como ela pesa. Quando o Papa afirmou que o prazer da comida e o prazer sexual são prazeres divinos, toda a comunicação mundial fez eco, todas as orelhas do mundo ocidental, pelo menos, arrebitaram e, o que é o mais relevante, os ouvidos da maioria, tanto do povo como do escol, acolheram concordantes, muitos com satisfação, alguns com entusiasmo porventura. Tudo o contrário do que durante milénios nossos ancestrais andaram clamando. Um bom sinal dos tempos. E quando reivindicou uma família para os homossexuais, com direito a um matrimónio civil? A euforia não foi apenas dos directamente interessados. Uma onda de comoção correu alegre pelo mundo além. E repare: não é apenas entre crentes declarados, é genérica, cruza todas as faixas de atitudes, o que demonstra como tantos aspiram a que as religiões larguem de vez as carapaças de tradicionalismos, rotinas e mentalidades e venham rejuvenescer de vez o mundo e a vida inteira. Deixem de ser empecilhos, cumpram a missão, deixem definitivamente os mortos enterrar os mortos. É tão claro e não há maneira!

Notícias de Amanhã – E tivemos o concílio Vaticano II e a maré de entusiasmo em redor dos teólogos e de meia dúzia de bispos. E depois foi o apagão planetário até hoje, já lá vão duas gerações. A receita até é conhecida, mas não há vontade nenhuma dela. E quanto a recursos... É a perseguição universal e a mordaça imposta, a bem ou a mal. Tudo à mão e curto, como aos cães ferozes.

Joana Afonso – Pois. Aí é que bate o ponto. Já reparou que tanto nas religiões hierarquizadas como nas que não foram por aí, hoje em dia a classe sacerdotal é que detém as rédeas todas? Eles é que determinam o que está bem ou mal, qual a imterpretação ortodoxa da respectiva fé, quem tem ou não poder e até que ponto, quem é o herdeiro digno para garantir a continuidade, quem pertence à comunidade e quem não, quem é acolhido e quem, excluído... São tudo ditaduras. Discriminam-se melhor nas franjas extremistas mas a lógica é a mesma no resto, apenas com a camuflagem de meramente larvar. Ora, daqui é que provém permanentemente a derrota: qualquer fermento novo fermenta na masseira deles, se lhes desagrada atiram-no ao lixo. Ora, qualquer que divirja do marcar passo ancestral, em princípio atenta-lhes contra as narinas, tem logo aquele destino. Hans Küng, professor numa Universidade Católica, não tinha perante eles autonomia nenhuma: expulso, proibido, silenciado, portanto. Valeu-lhe o Conselho Ecuménico das Igrejas – mas continuou incapaz de subsistir por ele próprio, à margem da rede eclesiástica. Leonardo Boff, monge duma congregação religiosa, sem meios para sobreviver fora – proibido de pregar, de escrever, de comunicar... E assim com todos os mais. Os empedernidos não cedem, não cederão nunca, como no tempo de Cristo. Só não crucificam porque não podem, que, se o puderem, não há contemplações. É só reparar como actua o Estado Islâmico, mal logra erguer a cabeça ou estender os tentáculos clandestinos nalgum país: morte imediata ao inimigo como ao dissidente da respectiva ortodoxia totalitária, para eles o amigo do inimigo. Nem sequer há julgamento, eles são infalíveis (e os católicos do Vaticano I a crerem que só eles é que tinham um Papa infalível! Não perceberam que são todos os que vão pelo caminho letal deles...). Eis, portanto, porque chegámos à derrota, ao fiasco inteiro do Vaticano II. A ponta da meada para escapar do labirinto estava, todavia, lá no meio, inteiramente despercebida: o único teólogo leigo convidado, Jean Guitton. Contra ele, se decidira agir, creio que a hierarquia não teria meios de coerção senão morais: ele não dependia de nenhuma instituição eclesiástica, tanto quanto sei, não lhe poderiam tirar o pão da boca, nem persegui-lo de miséria até ao aniquilamento, vergando-o à força como fizeram a tantos outros. Ora, se todos os teólogos foram materialmente livres como ele, se cultivaram a liberdade interior mais a exterior do desafio profético que ocorreu durante as sessões conciliares, nada teria sido a hecatombe que foi logo a seguir. Ninguém poderia atirar o fermento ao lixo. Se os ditadores quisessem como quereriam excomungar toda a gente e o fizessem, deparariam com a rebelião das massas crentes e descrentes que mundo fora gritariam que lhes tentavam extorquir a aurora anunciada. Teriam de converter-se ou, pelo menos, simular mudar de agulha, a não ser que preferissem jubilar-se como o Papa Bento XVI, velho teólogo Joseph Ratzinger, nunca alinhado com os novos tempos, sempre com um pé de cada lado mas, na hora da verdade, a decidir sistematicamente deitar-se na tumba dos mortos-vivos. Mas Jean Guitton foi único entre centenas, sem voz nem traquejo nem sequer acolhimento entre os pares nem reconhecimento de ser a fresta rasgada na íngreme parede por onde o mundo novo teria podido principiar a luzir sem o extinguirem. Ninguém reparou no pormenor de urgir garantir liberdade exterior a acompanhar a interior, para agir com eficácia, em tudo onde fora de intervir. Todos os mais terminaram dependentes, inteiramente encurralados, e as pequenas lanternas foram extintas uma a uma. A dele, não, só que ele não detinha chama inovadora nenhuma nem liberdade interior perante o peso esmagador do tradicionalismo para poder rasgar trilhos inéditos a apelar à vida. Findou pelo conformismo silente. Foi uma pena. Poderia ter sido a voz do profeta a clamar no deserto da Igreja, rodeado da multidão do planeta inteiro expectante. Mesmo isto já teria sido um fermento na massa. Tudo amordaçado é que não, a luz debaixo do alqueire não ilumina.

Notícias de Amanhã – Mas então há uma estratégia de saída que poderá ser vitoriosa. É isso?

Joana Afonso – Claro que é. Todas as vozes inovadoras têm apenas de velar não só por uma mas por duas autenticidades: a da inspiração onde vislumbram um novo mundo; a da liberdade interior para pugnar por ele, combinada com a exterior (duma profissão, emprego, rendimentos, apadrinhamento, bolsa de apoio...) que os coloque fora do alcance dos inquisidores que persistem vivos e activos em toda a clerezia de qualquer religião. Depois disto, é solidarizar-se incondicionalmente com qualquer profeta que desponte, sejam quais forem os pontos de convergência e de divergência entre ambos. Isto nunca importa, o importante é preservar a liberdade, para deixar o Espírito soprar onde quiser e como muito bem lhe aprouver. Que ninguém se arvore em juiz disto, que é a origem de todos os males institucionais universais: baqueando ali, andamos todos a julgar Deus, a substituí-lo, a mistificar as multidões, a alimentar cépticos e descrentes em massa (e ainda bem que o são, fogem da perversão das perversões...).

Notícias de Amanhã – Então, se alguém pretender incentivar a reespiritualização planetária...

Joana Afonso – É ir por aquele caminho e impelir todos para tal trilho. Desarmando o Grande Inquisidor, acabou. O movimento Nova Era, por exemplo, e tudo o que lhe circula em redor prolifera assim, imparável. Ninguém dentre eles ao alcance do braço estendido da instituição eclesiástica de religião nenhuma e, todavia, revitalizando qualquer uma e todas sem lhes prestar contas. É isto que os mentores da corrente da Nova Teologia (que aflorou no Vaticano II e foi violentamente asfixiada a seguir)  deverão fazer: autonomizar-se, de modo a tornar-se inatacáveis; manterem a liberdade interior capaz de persistir, pesem embora quantos abusos de poder se intentarem contra eles, nem que vão até à excomunhão. Deus nunca excomunga ninguém, uns pretensos detentores dum deus à trela é que o fazem desde o início, arvorados em voz de Deus, apenas orgulho incarnado, pese embora a boa fé. Foram, são e serão sempre o diabo em figura de gente: Deus incarna neles como em todos, se lhe prestarem atenção, não se se lhe pretenderem substituir, como fazem. Aquelas atitudes violam necessariamente o deus-no-outro com quem tem de se manter a união incondicional, dê por onde der, que só assim cumprimos o mandato de sermos perfeitos como o Pai do Céu o é. Legitimar a traição disto com filosofias e teologias é apenas aquilo: uma traição. Ninguém pode operá-lo sem incorrer neste desvio: trair o Espírito. Por mais venerável que seja a tradição, por mais primitiva ou inspirada que a creiamos: é sempre tentar dar voz à nossa pequenez, em lugar do Infinito irrecusável do amor de Deus. Operá-lo em nome do amor e da salvação, como séculos fora ocorreu, é traição sobre traição sobre traição. Urge pôr cobro a tais imemoriais dislates. Vamos lá a ter discernimento e a ser fiéis ao Espírito, bem atentos ao que do fundo do imo nos dita.

Notícias de Amanhã – Esta poesia corre nesta aventura?!

Joana Afonso – Pois corre. Inteiramente fora do alcance dos comedores de almas. Luz livre.