SEXTA  ENTREVISTA

 

Humaníadas

 

Notícias de Amanhã – Qual é o rumo desta vez, Joana Afonso? Onde é que iremos malhar o milho, o trigo e o centeio?

Joana Afonso – Certo, mudamos de eira e para um canastro muito atulhado: vamos saborear as Humaníadas. Tem muito com que saciar a fome e alimentar todo o tipo de cozinha.

Notícias de Amanhã – Ora então sirva-me o prato. Que ementa é esta?

Joana Afonso – Mudamos da prosa para a poesia. Em termos de gozo é outro mundo. Se bem que apenas A Caminho do Amanhã e Inaugurar o Futuro sigam o modelo da prosa, por mais sugestiva que seja. Há quem a julgue poética, até eu, mas enfim... Os demais livros de que temos vindo a falar entremeiam na teia um ligeiro toque de ficção, para o imaginário tornar mais leve o carreiro pedregoso por onde em cada troço nos mete, na procura de paisagens de íntimo arroubamento. É, pelo menos, o que sinto e partilho, o meu entusiasmo a cada inesperado que me surpreende por estes inéditos trilhos.

Notícias de Amanhã – Vamos lá trepar a este outro lado da montanha, então, Joana Afonso.

Joana Afonso – Montanha, diz bem. Ou, se calhar, melhor ainda, serrania. Pelo tamanho, sabe qual é o Himalaia da poesia portuguesa? A provocar, pela escala, aquele arregalar de olhos que tenho quando me confronto, nalguns pontos, com a Serra da Estrela, aquela penedia descomunal a furar pelo céu acima? São mesmo as Humaníadas. Aliás, com os volumes da demais poesia do autor é de certeza a maior cordilheira em qualquer língua do mundo. É curioso, mas nós somos assim. A grandiosidade de algo é o primeiro motivo de arrebatamento. É um arquétipo psicológico que nos estrutura desde bebés. “Os grandes”, como os apelidamos em crianças, mais o respectivo mundo, são motivo perene de espanto atractivo. São o alimento do sonho: “Que queres ser quando fores grande?” Olhamos à noite o Universo e sentimo-nos pequeninos perante a imensidão, mas não nos humilha nem amachuca, antes arrebata, metemo-la dentro de nós, alargamo-nos ao infinito. A capelinha no topo da colina, as igrejas e catedrais a grimpar pelas alturas acima procuram irmanar-se a igual emoção. É a mesma sensação quando trepamos ao píncaro da serrania, à cúpula dum santuário, e olhamos em redor, abarcando a imensidão até ao azulíneo do horizonte, prolongando-se ao infinito. Que ínfimo sou e que tamanho logro acolher em meu íntimo! Sem limite...

Notícias de Amanhã – Bem, já Os Lusíadas eram um poema grande. Agora isto ser o primeiro degrau da estese do grande poema, para mim é novo. Mas com a introdução que acaba de fazer fico interdito. Aquilo pesa. É verdade, eu sinto o mesmo. Qual a dimensão de que está falando?

Joana Afonso – Uma mestra de literatura, formadora de professores, quando lhe ofertei um exemplar do primeiro tomo (em papel), o que ostenta o título da obra inteira e que só ele já dispõe de 1911 poemas, sentiu-se compelida a apreciá-lo criticamente, aquilo em que é perita. Depois de referir que a obra lhe evocava Sá de Miranda, um dos grandes luminares do nosso Renascimento, deixou entender que considerava o volume como sendo a edição da poesia completa, à semelhança do que, em fim de carreira ou de vida, ocorre com tantos. O tamanho sugeriu-lhe tal leitura. De facto, a generalidade dos poetas, aqui como em qualquer parte do mundo, quando junta a safra da vida inteira neste domínio, não anda longe daquilo. Uma obra que some algo na casa dos três mil poemas é já bastante vasta. Lembremo-nos de que, por exemplo, a Mensagem de Fernando Pessoa não logrou vencer o prémio de poesia a que concorreu porque não chegava ao cento de páginas. E é porventura a mais lida e consagrada do século. A poesia é, em norma, uma raridade. É a filigrana duma língua, burilada em trabalho artesanal. Morosa e suada e tanto mais quanto mais encantatória. Nestes termos, nunca deveria ser abundante, não é?

Notícias de Amanhã – Está-me a espicaçar? Claro que também concordo, mas, afinal, que é que ocorre aqui? E a que escala, para deixá-la assim, Joana Afonso?

Joana Afonso – Pois, não imagina nem ninguém imaginaria. Aquele primeiro tomo junta o correspondente a catorze livros de tamanho médio das edições comuns de poesia entre nós. Mesmo assim, dá mais de cem poemas em cada parte, uma vez que são quase dois mil. Já é grosso, não é? Pois, mas as Humaníadas são catorze tomos idênticos a este, cada um com mais catorze partes de igual dimensão. Se foram editados em livro, seriam 196 volumes de poesia, biblioteca de que nenhum autor alguma vez se aproximou sequer. E, quanto a número de poemas, arrolamos quase uns 25.000. É o que rebenta com as escalas todas. Olhando de fora um edifício tão gigantesco, a mim assombra-me. Sabe como reagiu a literata de que lhe falei quando a informei disto? Com uma expressão que diz tudo: ”Pronto, acabou!” e ficou inteiramente interdita, sem palavras. De facto, como é possível semelhante gigantismo? O mais curioso, porém, é que isto é apenas uma obra, seguem-se-lhe muitas mais, quase todas com dimensão idêntica, volume a volume. Que número atinge isto? Perdi-lhe a conta. Quando era uma jovem estudante de literatura, lembro-me de me espantar com os inumeráveis títulos escritos por Camilo Castelo Branco, a ponto de nenhum investigador até hoje conseguir listá-los. Assim me encontro eu perante esta inesgotável floresta virgem de poemas. Só dará mesmo para me ir passeando e perdendo por lá fora. Sem lobrigar termo...

Notícias de Amanhã – Trabalho grande, de facto, o que não é igual a grande trabalho. Mas admira, sim. Porquê carorze, cada um com catorze partes? Não é por acaso, decerto.

Joana Afonso – Pois não. Refere-o num capítulo da introdução do sítio na internet – www.humaniadas.com – mas já lá vamos. Lembrei-me, agora que falou nisto, doutro pormenor exterior de relevo, pelo menos para mim e para as minhas preocupações de vida. É o primeiro autor português com a obra literária (e de intervenção cultural)  inteiramente publicada na internet, de acesso e divulgação gratuita e livre. Apenas a pedagógica (e nem toda) e um opúsculo de teologia foram editados em papel, quando ainda não havia estoutro recurso para pô-los ao dispor da multidão. Pode parecer irrelevante mas não é tanto assim. Quando andava em Letras, em Lisboa, fomos um dia, um grupo de colegas, a casa dum professor, no Lumiar, para conferirmos um trabalho. Quer acreditar que todas as divisões, até o corredor, do chão ao tecto, eram apenas prateleiras pejadas de livros? Tudo, tudo, tudo. Não havia um cantinho por onde respirar. Quando captou o nosso olhar perplexo, ele comentou: “Pois. Eu costumo informar que não vivo numa casa mas numa biblioteca”. Está vendo o peso disto? Uma professora reformada, com os filhos a viverem no estrangeiro, para desoprimir-se daquilo (e benefício da comunidade) desatou a ofertar as respectivas prateleiras cheias à biblioteca autárquica da vila natal (que acabou por lá criar um departamento particular com o nome dela). Tão liberta se ia sentindo que os filhos se viram obrigados a preveni-la: “Mãe, confira bem tudo, não vá precisar de algum mais tarde e já não dispor dele!”

Notícias de Amanhã – Não há-de ser muita gente que finda por mor disto sem casa, num país de analfabetos. Sim, agora é tudo escolarizado, não tarda, tudo doutor. Mas não deixam de ser analfabetos, alguns, apenas funcionais, a maioria, reais. Quem tem o gosto da leitura? O da televisão e das redes sociais, sim, esse até vicia qualquer um e, quanto mais desescolarizado, mais vulnerável. Agora os livros? Não, é um grupinho de nada, dentro do escol da cultura.

Joana Afonso – Também creio que sim. Mas aqui refiro apenas o benefício individual do que deveio, de algum modo, bibliófilo, se calhar, bibliómano. A partir da necessidade laboral, porventura, veio a fruição do prazer da leitura, logo após, o hábito, se calhar o vício e alguma dependência. Aliás, como em tudo o que é bom na vida. Em princípio nada contra, a não ser quando prejudique o próprio ou terceiros. De resto, a vida é para ser fruída, não é verdade? Mas o meu ponto era prioritariamente outro. Não é apenas, como me lamentava há tempos uma colega: “Começo a não ter espaço em casa, não pode ser!” É que começa a não haver lugar no mundo. Não por andar a abarrotar de livros mas porque o papel para eles desbasta cada vez mais florestas e cada vez dá menos tempo para renová-las. É um factor dia a dia mais pesado a destruir o planeta, a impedir a oxigenação da atmosfera, a aumentar o efeito de estufa, a piorar o clima... Para ter uma ideia disto, Portugal, um país diminuto, com dez milhões de habitantes, uma gota de nada perante os mais de sete biliões da Humanidade actual, edita uns quinze títulos por dia, afora os jornais e revistas, mais o papel requerido pela rede escolar, do jardim-de-infância à Universidade, mais o requerido pelo quase meio milhão de empresas e respectivos escritórios, e assim por diante. Isto, num paisito de nada. Que fará nos grandes e à escala planetária! Destruímo-nos a enorme velocidade. Todos os recursos renováveis do planeta dum ano não dão nem para meio ano de gastos da humanidade inteira. É cada vez mais urgente mudar a agulhagem do comboio da civilização mundial, em todos os domínios. Aqui é que a escolha de não editar em papel uma vastíssima obra de poesia, ficção, filosofia, ciência e pedagogia ganha todo o relevo: é poupar toneladas de árvores, é poupar prateleiras e prateleiras dos lares dos milhares que, como eu, gostam de explorar estas paisagens inéditas, de recuperar aí a energia, o fôlego, a alegria de viver. Sim, porque aqui a vida tem rumo. E rumar com este navio não a estraga, não a esgota, não a aniquila. Mais ninguém ainda o fez nem faz, se calhar nem fará, mas isto pouparia mundo para o reconvertermos, à medida de nossas mãos. Está a ver como até aqui, da forma aparentemente mais inocente e simples, a mensagem revoluciona tudo, por caminhos cada vez melhores? Em vez de estantes pesadas de livros e mais livros, não, tudo na nuvem da internet: nem preciso de ocupar memória no meu computador, posso ir ali sempre que queira. Mais, se houver alguma dificuldade de comunicar, copio as obras na memória do meu aparelho, até poderei guardar tudo numa pen, nem preciso de gastar a disponibilidade que ele tiver para utilizar. Ora, uma pen é tão minúscula que o que ocupa é despiciendo: mais depressa a posso perder do que me irei preocupar com ter lugar para ela. E ninguém mexe em papel nunca. É uma achega de nada, uma migalha numa maré que anda afogando o mundo. Não vale a pena? Talvez. Mas ninguém adivinha se não desencadeará uma corrente, qualquer dia. Como diz o povo, muitos nadas fazem muito. Então se verá.

Notícias de Amanhã – É capaz de ser complicado, não? O computador ou o tablet não estão tão divulgados como isso. Há povoados inteiros sem um único. Quando os há, são muito restringidos a um irrelevante escol. Nas cidades vai sendo diferente, mas mesmo assim... Entre os leitores habituais, só 25% lêem livros no ecrã. A larguíssima maioria gosta de folhear, palpar o papel, cheirar a tinta, sei lá... Ora, isto representa uma enorme quebra na penetração e popularidade duma obra. A que autor agradaria tal conjuntura?

Joana Afonso – A nenhum, evidentemente. A proposta cultural é emitida para circular. Por algum lado, todavia, é de principiar o caminho. Aqui vai um grito de saída, assumidos os custos. Pode nem haver ganhos. A via, contudo, ei-la aí sinalizada para quem vier a ser sensível ao problema descomunal que lhe subjaz. Mesmo que ninguém a siga, vivo aqui a postura que permite abrir uma fresta ao porvir. Ombro a ombro com autor e obra, também nisto.

Notícias de Amanhã – Claro, nem eu esperava outra coisa, Joana Afonso. Mas assim as Humaníadas não rendem um tostão ao autor. Sem algum ganho, quem se irá meter por aí? É uma utopia idealista demais, não julga? Andamos a abordar um autor doutro mundo, não do nosso. É verdade que é por onde ele anda, pelo que vimos conferindo título a título, mas mesmo assim é preciso comer, mesmo se Nem Só de Pão Vive o Homem, como diria Vladimir Dudintsev. Então com todos os outros como irá ser?

Joana Afonso – Sabe que a generosidade dos autores portugueses me confunde e maravilha? Ignoro se o fenómeno é mundial, mas é bem capaz de sê-lo. Repare nisto: no século transacto, apenas Aquilino Ribeiro e Ferreira de Castro acabaram vivendo do rendimento dos livros. Todos os mais, até candidatos ao Prémio Nobel, como José Régio, professor, ou Miguel Torga, médico, nunca largaram a profissão. Hoje em dia ainda é mais significativo: não há um único que viva das obras, nem a dupla Ana Maria Magalhães, Isabel Alçada, com mais de três milhões de exemplares vendidos, nem José Rodrigues dos Santos, com mais dum milhão. E são os do píncaro do mercado. Aos outros (e são centenas) nem lhes passa pela cabeça. Encaram qualquer retorno como um bónus inesperado, uma prenda, como Isabel Alçada comentava, anos atrás, a um colega: “Não imagina, o entusiasmo é tanto entre a miudagem que, olhe, os direitos de autor deram-nos para umas férias em Paris!” Assim mesmo: não para assentar ali a vida mas para fruir duma festa. Deram uma prenda, receberam em retorno outra. Não é lindo?

Notícias de Amanhã – É mesmo. A generosidade aqui neste, porém, vai mais longe porque é dádiva apenas, sem retorno nenhum. É coerente com tudo o mais, embora o contrário também o não contradiga, não é? Viver com o suor do rosto é perfeitamente legítimo, até justo quando não houver alternativa. Mas partilhar gratuitamente o melhor que se tem é o cúmulo da alegria. É mesmo o cume da felicidade humana, cultiva afectos e ata laços. Os nossos autores estão de parabéns, pelos vistos. Mas falávamos doutro aspecto formal particular das Humaníadas.

Joana Afonso – Pois, os números. Não são aleatórios, não. São propositados. A estrutura de base são catorze tomos, cada um constituído por catorze partes. É o dobro do número sete, o nosso arquétipo basilar do tempo: a duração da semana. Foi consagrada como de origem divina há cerca de 2.500 anos, no primeiro capítulo do Génesis da Bíblia, com os seis dias da criação e o sétimo em que Deus repousa de tais freimas. De então para cá é de o imitarmos, na crença judaico-cristã que acabou por generalizar-se ao mundo inteiro, para crentes ou descrentes de qualquer fé. Compreende-se porquê: o que além se consagrou no livro sagrado (capítulo tardio, decerto acrescentado, como prólogo de tudo o mais a seguir, pelos sacerdotes da reconstrução do Templo de Jerusalém, após o retorno do cativeiro de Babilónia, na Mesopotâmia, actual Iraque), o que consagrou foi porventura uma tradição milenarmente enraizada, a partir das observações cósmicas dos assírio-caldaicos nos zigurates. O Sol retornava ao ponto de partida ao fim de 365 dias mais um pequeno desvio que de quatro em quatro anos era de reparar. Os 366 são divisíveis por seis, dando as 61 semanas do ano. O problema é daquela pequena diferença, aqui estaria o mistério do Cosmos, e energia do mundo divino a trocar-nos as voltas. Então prestamos homenagem a isto acrescentando o dia de Deus, o do repouso para meditar na então insondável pergunta ao Infinito. Mas a contagem de base 6 ficou-nos a originar os doze meses, as 24 horas do dia, os 60 minutos, os 60 segundos. Até os dias do mês, à roda dos 30, instabilizados por causa do tal desvio a acrescer aos 365 dias do ano que seria preciso ir regularmente acertando e lá se intrometeu o maleável Fevereiro, tardiamente, para dar conta do recado. É a nossa arquitectura do tempo que nos estrutura a vida há milhares de anos, certamente muito para trás da era da produção do capítulo bíblico. Oriunda dos maiores sábios de então, os que à noite podiam trepar ao zigurate e decifrar os enigmas, esta base de contagem foi substituída massivamente pela mais intuitiva e prática da contagem pelos dedos, a base 10. Esta qualquer um a entendia, bastava estender as mãos. Foi o que a levou a alargar-se a tudo, basilar em quaisquer áreas matemáticas. Daí, no outro lado, só restarem aqueles resquícios. Nem por serem poucos pouco importantes: o tempo é o que nos organiza as vivências, a matéria-prima da nossa interioridade. Ora, a interioridade é aquilo com que nos identificamos: o corpo é meu; mas eu sou eu, o meu íntimo.

Notícias de Amanhã – Porquê catorze? Podia ser sete ou a base seis sem o dia da plenitude...

Joana Afonso – Claro que sim. Mas a escolha permite um jogo subtil de entrelaçamento com outro arquétipo numerológico, o do número 3. Este, além de simbolizar a Trindade Divina, é a soma do uno e do múltiplo, o 1 mais o 2. Juntando uno a múltiplo na raiz deles simboliza o todo, toda a enumeração possível, o infinito, portanto, a partir das unidades singulares. Evoca, conseguintemente, a nossa estrutura mais radical, a complexidade do nada feito de mil nadas que somos, sempre em busca do Infinito, em todas as vertentes.

Notícias de Amanhã – Não vislumbro como conjugar os dois...

Joana Afonso – É num pequeno desafio para jogar. Lembra-se do cubo de Rubbik com as seis faces tripartidas coloridas? Quando o desafio de juntar as cores, para cada superfície findar monocromática, entusiasmou gente do mundo inteiro, apareceu um cubo com os vértices cortados, o que confundia mais, com as seis faces de origem  e os oito triângulos resultantes dos cortes. Pois bem, é jogar com um cubo destes em que as cores são trocadas por números fixos: seis quadrados mais oito triângulos dá catorze. A numeração correcta é aquela em que as faces contrapostas somam 7 (6+1, 5+2, 4+3) e os triângulos, o símbolo geométrico do três e da Trindade, em posição oposta somam 21 (7+14, 8+13, 9+12, 10+11). O três e o sete resultam entrelaçados inextricavelmente. Com este efeito simbólico ali representado: o 21 que figuraria a plenitude do 7 (porque é ele multiplicado por 3, o Infinito) está definitivamente ausente, é o vazio insuperável, uma vez que tudo termina no 14, tanto cada volume como as respectivas partes. É, todavia, um infinito aproximável, como todo ele é, na realidade. Basta jogar uma vez o dado e escolher o volume do número que saiu; jogá-lo uma segunda vez e ir para a parte que agora indicar; e o terceiro momento, o da infinitude que escapa, escapa também ao aleatório do cubo, é agora, como na vida, uma escolha pessoal entre o número mínimo e o máximo dos poemas da parte em causa. É procurá-lo então e lê-lo como a mensagem privada do dia que o Universo lhe envia. É um divertimento, como um teatro em que actuo a recobrir os alicerces ignotos da vida e da realidade. De forma mais ou menos lúcida, mais ou menos inconsciente, como ocorre com todos os arquétipos, como sempre ocorreu com os mitos e as lendas imemoriais da tradição oral e depois da milenar história do teatro, do canto, da poesia e por aí fora. É mais um pormenor a me emparceirar com o mundo sublunar misterioso que nos constitui.

Notícias de Amanhã – É uma matéria divertida e curiosa. Desperta muita polémica desde que Carl G. Jung a começou a desmontar na Psicologia Analítica. Dá muito pano para mangas. Não sei se neste contexto... Quem é que irá ligar a isso, não é, a não ser a Joana Afonso?

Joana Afonso – Também ignoro. Lembra-me um comentário, numa empresa de engenheiros minha cliente, no Dia Mundial da Poesia. Quando um colega divulgou entre todos as Humaníadas, uma delas veio-lhe confirmar, encantada, que fora ver e gostara, tanto que lera o capítulo introdutório do site relativo à numerologia e aí pasmara. Como é que ele, um engenheiro, todo o dia enfronhado em matérias, mercados, produções, competitividade, se filiava numa vertente “mística” como aquela? “Mística” é dela, claro. Como é que um lado podia gerar o outro? Está a reconhecer aqui a mentalidade do cientismo? Nada é digno dum olhar senão a coberto do escudo da ciência. Tudo o mais é desprezível ou não existe, mera fantasia ou crendice. Todavia, ela gostara, a ponto de investigar mais. Já viu a contradição, como os indivíduos andam a viver divididos, rachados ao meio? E ainda por cima a dar prioridade, quando não exclusividade, ao menos importante, ao mundo percepcionável. Se os interrogarmos, contudo, todos afirmarão, com certeza indiscutível: “Eu sou eu, não sou o meu corpo!” Mas depois não retiram a ilação. Somos mesmo capazes duma estupidez infinita. Há o infinito para cima e o infinito para baixo e nós somos o iô-iô a girar aleatoriamente dum para o outro. É uma pena! Bem podíamos só trepar, não era?

Notícias de Amanhã – Quem nos dera, não é? Mas até agora a Joana Afonso ainda não destapou uma ponta do véu. As Humaníadas são poesia, certo. Mas que é que nelas a empolga?

Joana Afonso – Antes de mais, a temática. Já reparou no nicho do mercado livreiro, em expansão entre nós e no resto do mundo, habitualmente referido como o dos livros de auto-ajuda? O sucesso mundial de O Segredo (Rhonda Byrne), dos romances do brasileiro Paulo Coelho, entre nós dos volumes de Alexandra Solnado? São inúmeros por todo o lado e num crescendo regular, com as matrizes de origem mais variadas, uma vez que tende a ser mundial. Dentro dele, em muitas regiões como núcleo mobilizador, mormente no mundo ocidental, o movimento Nova Era, conjunto de linhas de inspiração mais ou menos difusas, ora profundas, ora ingénuas, mas a colher enorme acatamento de indivíduos e comunidades. É o despertar duma nova sensibilidade para uma imensa lacuna multissecularmente cavada em nossa interioridade, desde o termo da Idade Média, na civilização ocidental, vazio maior nas regiões industrializadas e tanto maior quanto mais avançadas. Pois bem, note agora que são tudo obras de reflexão, meditação, romance, biografia... Até hoje não há nenhuma de poesia, embora já tenha atingido o cinema e a televisão, em vários moldes, e as redes sociais andam cheias de grupos de partilha de múltiplos teores. As Humaníadas estão mesmo no coração disto, toda a temática abordada é leitura de vida interior nas inúmeras perspectivas com que emergir dentro de nós.

Notícias de Amanhã – Uma linha original de abordagem e uma temática inédita. Alguma probabilidade de sucesso além daqueles indícios, todos doutros tipos de literatura?

Joana Afonso – Há um caso curioso. Conhece a popularidade de Pegadas na Areia (Margaret Fishback Poulers) de que até chegaram a perder a identidade da autora? Correu e corre mundo de mil e uma maneiras. Conta o sonho de olharmos nossas pegadas, pela praia da vida fora, que são sempre aos pares: as nossas mais as de Deus connosco. Excepto nos momentos difíceis ou trágicos: aí há só um par delas. Quando, decepcionados, perguntamos porque é que Deus nos abandonou, ele responde: “Não, o par que vês areia além são as minhas, porque aí eu peguei em ti e levei-te ao colo”. É a retomada do momento de crise do bíblico Livro de Job, onde a fé infantil no deus de serviço às minhas ordens é posta em causa, a requerer o aprofundamento adulto e maduro dum Deus que nunca atinjo mas a quem, embora nunca o entenda, sirvo e que me retribui incompreensivelmente sem falha. A fé incondicional num amor incondicional.

Notícias de Amanhã – Que é que tem a ver para o caso? As Humaníadas são bíblicas?!

Joana Afonso – Nem pouco mais ou menos! É que aquele poema surge no contexto duma igreja implantada, a Baptista. Ora, a divulgação e o acolhimento corre tanto por mão dela como em paralelo, por fora, na vida secular. É isto que eu julgo espantoso: a fome de entender e assumir a interioridade em cada um é tanta que, neste caso, rompeu as fronteiras todas. Um mínimo sinal significativo para a muda da focagem íntima e quantos se sentiram tocados lá no fundo! Tê-lo escrito contra a postura rotineira é já permeabilizar-se ao inovamento em curso no mundo inteiro. Atinge mesmo quem respira nos quadros institucionais. Uma igreja estabelecida acolhê-lo e protagonizar-lhe a divulgação revela que o dogmatismo estático também pode julgar bom fracturar-se para deixar correr a vida viva, por mais milenares que as raízes ignoradas, afinal, se revelem. O problema é continuarem ignoradas em lugar de vividas. O facto de cruzar o entusiasmo por crentes ou gentios, indiferentemente, diz muito do acolhimento mútuo na base de realidades íntimas partilhadas e não de formalismos nem de ritualizações ou legalismos. E diz mais: que o mercado para intervenções deveras inspiradas não tem fronteiras e, se calhar, não tem limites, ante uma humanidade esfaimada dela própria, da interioridade de que foi (e continua sendo) esbulhada, da espiritualidade em todas as dimensões (vivenciadas, adivinhadas, entrevistas, cridas...). Pode ir mais longe que qualquer outro mercado, tanto mais que aqui, no nosso caso, nem há mercado nenhum, é gratuito, pura prenda. Embora nada impeça poder vir a mergulhar nele, com todo o direito, obviamente. E sem perda do fulgor.

Notícias de Amanhã – Não é Psicologia Clínica, não é psiquiatria, não é Orientação Profissional, não é Gestão de Recursos Humanos... É Filosofia, é Teologia, é Metafísica? Como diz a engenheira do caso que referiu, é mística?

Joana Afonso – Por um lado não é nada disso, por outro é tudo isso e muito mais. Uma psicóloga contou-me que tratava uma paciente há um ror de tempo e nem para trás nem para diante. Tudo porque, embora compreendesse donde lhe vinha o problema e como tratá-lo, não era abordável a partir da vertente científica, em nenhuma das correntes. A dificuldade era mesmo da vida interior e de como a encarava, ordenava e orientava. As manifestações externas, as únicas cientificáveis, não davam para desatar o nó dos obstáculos. Perante o sofrimento da senhora, esgotados os recursos da especialidade clínica, jogou fora toda a contenção e utilizou os demais meios, sem preconceitos: vamos lá reparar na vida interior, no que anda a destruir, tratar de reajustar juízos de valor, escolhas e atitudes, até a cura ocorrer e a vida se reequilibrar. Rigorosamente como deveria ser feito em todo o lado. Está a ver? O cientismo castra-nos em qualquer domínio, até na cura dum doente, se não tivermos a coragem de o jogar no caixote do lixo. Em todas as ciências humanas, larga-nos a meio do caminho, ao desautorizar (ou, pior, ao condenar) a abordagem da vivência da interioridade, a pretexto do respectivo subjectivismo, pretensamente arbitrário. Nestes termos, sim, as Humaníadas abordam praticamente qualquer dimensão da vida interior de qualquer das ciências humanas, só lhe não vão chamar ciência, que o não é nunca, porque é sempre metafísica (que pode ser tão rigorosa, tão precisa quanto aquela, mas num domínio paralelo). E apenas aqui encaramos o indivíduo inteiro: não tem apenas comportamentos perceptíveis, tem também vivências só interiormente captáveis. O indivíduo rachado a meio em nome da ciência é que não tem sentido nenhum. Mas o objecto vivencial correspondente às ciências humanas é apenas um pequeno campo na imensa vastidão e complexidade da interioridade do sujeito. Há muito mais território a explorar. Basta reparar num pormenor: a ciência não pode formular juízos de valor, senão larga a factualidade; o indivíduo apenas se realiza através de juízos de valor em cada gesto da vida. São dois mundos tão complementares que o cientismo como o espiritualismo são duas idiotias letais rigorosamente paralelas.

Notícias de Amanhã – Bem, as Humaníadas, sendo poesia, não são nenhum tratado acerca disto...

Joana Afonso – Pois não, São a cobertura poética deste território, como os livros de auto-ajuda o são em prosa ou romance ou biografia... Dito doutro modo, são sabedoria de vida, em patins gradativamente mais altos e mais profundos. Cada poema, uma mensagem. Viver bem a vida não é viver à boa vida, é vislumbrar e realizar o Bem, em camadas cada vez mais profundas e universais. As Humaníadas são arte de bem viver vivendo o Bem, até onde o vamos logrando discernir. Isto, em todos os domínios em que nos realizarmos. Pode ir da simplicidade do quotidiano, do gesto banal mais comum, até às complexidades e subtilezas dos encontros e desencontros inter-subjectivos na família, no labor, na comunidade, no país, no mundo inteiro... Nós obramos por múltiplas camadas sobrepostas e contrapostas. Tudo tem muito que se lhe diga. As alternativas, valores e sentidos são praticamente inesgotáveis. Para quem cuide que este domínio não tem peso e não importa, é obra.

Notícias de Amanhã – Pode é fatigar, não? A poesia, em Portugal, é praticamente um mercado morto, as edições, salvo um ou dois nomes, são de quinhentos exemplares e ficam na prateleira, a maior parte...

Joana Afonso – Ah, bateu num ponto muito importante: os poetas sem sentido. Houve toda uma escola no século transacto que destruiu este nicho de mercado praticamente por inteiro. Teve, em síntese, dois ramos, cada um o mais disparatado: ou era o inconsciente a atirar palavras ao acaso ou era o inovamento formal por ele próprio, pouco importaria o conteúdo. Quanto a colocar a inconsciência individual ou colectiva a escrever poemas não lembraria ao diabo, é de quem nunca compreendeu nada da maneira como operam. Mesmo a interpretação de sonhos de Freud e de Jung é uma mera aproximação genérica da consciência a um patamar por natureza enigmático, inesgotável e surpreendente. O mundo dos sonhos não é racional nem lógico por natureza. Tentar transpô-lo para um sentido coerente em poesia é trair os dois lados: nem respeita a ilogicidade emocional do inconsciente, nem a emoção com significado da poesia. As Humaníadas não caíram nesta armadilha. Os arquétipos como os mitos a que dão forma em modelo onírico configuram a nossa vida e mentalidade a partir de níveis demasiado profundos para a consciência os atingir. Por outro lado, nunca são visivelmente coactivos, pelo contrário, são infinitamente subtis, inapreensíveis, como pólos magnéticos a atrair ou repelir constantemente, sem nunca gerar nem anular acto nenhum nem o respectivo rumo de modo directo e explícito. Não, é tudo subliminar, uma ligeira tendência permanente, quase indetectável mas perene. Isto pode-nos levar a concluir que, no fim de contas, não têm relevo nenhum, não valerão praticamente nada. E enganamo-nos redondamente, como a psicanálise e a psicologia analítica demonstram de sobejo: afinal, são estes os caboucos onde alicerçamos a personalidade, a cultura e a civilização. Todavia, é sempre como caboucos, nunca como paredes, menos ainda como telhados. Ora, os que tentaram transpor isto para poemas irracionais, crêem construir telhados flutuando no ar. As Humaníadas, não. Respeitam integralmente o nível inconsciente em que os arquétipos operam, inserindo-os na estrutura da obra e nas etapas de aceder a ela, para quem o queira, nunca no corpo de cada poema, em que a lógica e o sentido são cruciais, e o recurso poético ao ritmo, rima, métrica e figuras de estilo são os pormenores formais do embelezamento encantatório que cada mensagem merece, para devir mais atractiva, mais convincente, apontar ao inefável.

Notícias de Amanhã – Com o risco de os arquétipos em nada virem a influir. O leitor nem se dará conta, não é?

Joana Afonso – É como habitualmente pensamos, decerto milenarmente. E a energia arquetípica quase de certeza que virá daí. Se foram racionais tais pilares, a nossa consciência rapidamente os diluiria por juízos de valor contraditórios e as respectivas práticas que mutuamente se aniquilariam. Assim, não. Escapando à triagem da consciência, os arquétipos mantêm de pé a nossa estrutura individual, num primeiro nível, e a colectiva, num mais profundo, e mal nos damos conta de como operam, do alcance que têm nem do que significam, nos respectivos pendores de sentido. São, porém, o travejamento do arcaboiço de toda a nossa interioridade, tanto no que é como no que visa, como no que radicalmente vai operando por trás de cada trilho de vida por onde nos encaminhamos. Ora, neste sentido, nunca poderemos afirmar ou negar até onde as Humaníadas operam em cada um. O trabalho e a eficácia, a este nível, escapam-nos em definitivo, para além como estão do que qualquer consciência que lá irrompa consiga vislumbrar. Seguro é apenas que a obra se organiza e oferta enraizada numa matriz arquetípica, deixando que esta opere como operar: abre-lhe a porta e cada leitor singra por ela como quiser, auferindo-lhe a influência como ela calhar de intervir. Somos temporalidade com apetite de Infinito – são os nossos alicerces mais fundos, universais e perenes. Esta é a base em que se estrutura a obra inteira, tanto no sentido como na organização, nos caboucos de que parte. Cada um caminhará por aqui fora, consciente, com sentido, em cada poema, incônscio, porventura, no plano da abordagem espontânea da obra. Os dois lados complementam-se e eventualmente integram-se para além do que lograrmos vislumbrar. Fica o campo em aberto também aqui, pronto a acolher a surpresa que vier. Nada de fechar a porta em nenhum vector.

Notícias de Amanhã – E quanto à forma, já vejo que a reviravolta é outra. Por ela não vale nada, é?

Joana Afonso – Mais ou menos. Lembro-me sempre dum velho pároco de aldeia que, numa conversa que entabulei com ele à volta disto, me fez uma comparação gritante. Um cálice, para um padre, é um objecto venerável, é nele que consagram o vinho na eucaristia. Imagina como é que ele referiu aquela poesia, para muitos hermética, de facto sem conteúdo nem sentido? Falou-me assim: “Já reparaste no que era um cálice riquíssimo, bem burilado, se o servíramos a todos cheio de bosta?” É o caso. Não admira que os leitores atirem para o lixo semelhante porcaria! E, quanto aos autores, bem melhor é que se limpem na retrete do que virem tentar limpar-se na cara do público. É que ninguém daqui tem culpa das frustrações, dos complexos de inferioridade, da ignorância, da impotência deles. Tratem-se ou trabalhem, se for o caso, persistam ou tenham paciência, conforme as circunstâncias. A criação artística até cura, mas não assim, a atirar fezes contra toda a gente. Aqui, portanto, urge que alguém grite: “O rei vai nu!” Há fome de poesia, não de lixeiras. Precisamos de encantamento na vida, não do mau cheiro de quem andar podre.

Notícias de Amanhã – Mas alguma coisa o cálice burilado há-de valer, não?

Joana Afonso – Talvez, mas duma forma, quando muito, germinal. Já reparou? Que estese sente ao ler a palavra circunferência com as letras formando um círculo? Que grande poema este! Fica de olhos em bico, maravilhado?  Até dá para rir... Qualquer palavra, pelo sentido do que nos evoca na consciência, é acompanhada de alguma emoção, doutro modo nunca teríamos discursos nem textos que depois empolgam, que maravilham, que entusiasmam. A poesia é para o nível mais elevado de sentir. Quando perde este rumo, para que presta? E então, quando se limita ao nível zero... Até um dicionário pode despertar mais emoção. Aliás, as listas do capítulo ao jeito de merceeiro do Ulisses (James Joyce), até provocam estese por contraste, naquele inglês de pé descalço, ao lado do erudito, do medievo... É a genialidade dum contexto que o desencadeia, não uma listagem qualquer de lavandaria. Os nossos poetas cá do bairro não entenderam nada e toca de chutar palavras para ali a monte, que hão-de provocar arrebatamentos!

Notícias de Amanhã – Algum sentido hão-de ter. Senão...

Joana Afonso – O problema é que não têm mesmo de ter. Quando se pergunta a um autor destes que sentido aquilo tem, fica tão interdito como nós e findará por confessar, como humilde e honestamente fez em conferência pública, no Porto, Vitorino Nemésio: “Quando o escrevi, tinha um sentido qualquer, agora não faço ideia”. E dar uma interpretação do que o não tem até pode devir perigoso. Já reparou quantas vezes cantarolamos: “Lá-lari-lá-lá”? Se insistir em emprestar-lhe significado, acaba a decompor a cantoria em: “Lá, larila, lá!” que, apontando para alguém, o identifica, no plebeísmo ali do meio, como homossexual. E, então, aqui d’el rei, que ou ali temos alguém duma minoria marginalizada ou aqui um homofóbico marginalizador! É o ridículo em que caímos. Claro que na cantilena o que conta é a mera harmonia musical. Quando nos ficamos, todavia, pela mera sonoridade a evocar emoções, realidade em que a música é perita, não a poesia (por mais que aqui conte e conta deveras, quando onomatopeia adequada, por exemplo), até podemos findar mal. Há um cientista investigador com descobertas repercutidas mundialmente, de origem nipónica, cujo nome soou porventura muito bem aos pais, que não significa nada em japonês, é apenas a identificação dele, mas que, em português, se o significado lhe for atribuído, o envergonhará para o resto da vida: o homem chama-se Peida. Tentar atribuir significado ao que o não tem pode resultar muito constrangedor, não é verdade? A poesia dita hermética não tem significado nenhum nem é poesia nenhuma. É um chorrilho de palavras que um brincalhão equivocado atirou para o papel, à falta de ideias, e veio erguer na ponta do dedo em público, como o cúmulo da iluminação. Que “inspiridade!” – cantar-lhe-ia Hermínia Silva, se hoje ainda fora viva.

Notícias de Amanhã – Que ironia, Joana Afonso! Mas olhe que um amigo meu confessou-me que lera uma série de poemas das Humaníadas e que não era nada fácil. “É uma poesia difícil!”

Joana Afonso – Ah, isso claramente que é, só que esta realidade é outra coisa. Difícil não é sem sentido, nem misteriosa, secreta. Immanuel Kant é difícil: até hoje, mais de dois séculos corridos, ainda quase ninguém o compreendeu. Albert Einstein é difícil, Schrödinger brincava que no mundo haveria talvez uns cinco indivíduos que o entenderiam, um dos quais era ele, o que, junto ao autor, só deixava lugar para mais uns três no resto da humanidade. As Humaníadas são difíceis neste sentido. É que nos mergulham em profundidade no nosso mistério interior. E operam-no mesmo no gesto mais banal de cotio, no hábito mais enraizado e automático, onde nem sonháramos que pudera persistir alguma sombra de mistério, de estranheza, de afloramento de algum outro mundo escondido. Contudo, ocorre sempre, fatalmente. Quem é apanhado de surpresa volta atrás, a questionar: é mesmo isto? E a conferir o eco íntimo: faz mesmo sentido, vamos lá ver outra vez... Comigo é uma constante. E é sempre uma alegria. Agora repare quando o poema mergulha em profundidades incomuns, em vivências únicas, em complexidades em que alguém nunca cuidou. Trepar por ali fora implica mais músculo, temos de mergulhar cá por dentro até paisagens porventura nunca visitadas, até horizontes que, se calhar, até ignorávamos que existiam, enfrentar nós górdios que nos tolhem as pegadas mas que, eventualmente, nem reparávamos que nos tolhiam...É um nunca mais findar de confrontos, provocações, desafios. E de soluções: de caminhos, de escolhas, de alternativas... Com os espelhos bem focados, com o dedo posto nas feridas, com o bálsamo pronto a cada lesão. É o que mais me fascina. São mesmo lições de vida. Para quem julgue que a vida não precisa de lições, ou que se lhe não poderão dar, ou que as já tem todas e o mais é despiciendo, ou que não terá discernimento que baste para atingir alvos tão exigentes – para todos isto é poesia difícil. De facto, por trás dela, tem toda a sabedoria imemorial da Humanidade, sem fronteiras. Não o saber, não a ciência, não a erudição nem cultura, mas a vida ao vivo nos discernimentos que melhor a surpreenderam, melhor a respeitaram, melhor a impeliram rumo à plenitude individual, comunitária e colectiva. É um ângulo que nos agarra por dentro, nos remexe, nos atrai e atira para diante indefinidamente. É o que a grande arte nos provoca. Por mim, encontro-o também aqui. Pelos vistos, os milhares que correm pelo site, também.

Notícias de Amanhã – Bem, agora que no curral dos porcos separámos as pérolas do fossado, findo meio perplexo. Como é que as Humaníadas jogam, afinal, com as formas?

Joana Afonso – Têm de provocar no leitor estese e forte, ao acolher a mensagem. Quanto mais, melhor. É um equilíbrio difícil de atingir. Quem ler a versão em português de Pegadas na Areia não compreenderá nunca a euforia em redor do poema. Porquê? É que não passa dum texto relativo a uma ideia bonita, apelativa, contudo inteiramente prosaico e da prosa mais pobre. Pior ainda, com pretensões a poesia sem o ser, o que é mais decepcionante. A poesia é, no fundo, intraduzível. Para respeitar a aura poética tem de ser reinventada, nunca traduzida. É o que a aproxima ao máximo do original e, concomitantemente, o que mais o trai. Todo o tradutor é traidor, qualquer que seja o texto. Aqui sê-lo-á maximamente em qualquer das alternativas: ou recria a aura poética e trai a letra e os recursos literários do original; ou respeita estes e o tónus da poesia esvai-se por inteiro no resultado. Traduzir, portanto, aquele poema, só por mão dum poeta com forte sensibilidade e perícia no manuseio da palavra. Como não foi o caso, o efeito é frustrante, nem dá para entender o que desencadeou na América, mormente na comunidade laica, fora das redes eclesiais. No extremo oposto, mantendo ainda o equilíbrio sem exageros contraproducentes, temos entre nós a obra poética de José Gomes Ferreira: chegou este a lamentar só lograr escrevê-la com figuras de estilo aos cachos, em catadupa. Foi ao ponto de reduzir um poema numa primeira versão pejado daqueles recursos e, numa segunda, todo podado, com o aparato reduzido, condensando radicalmente o significado. Para o leitor apreciar e comparar ambas, escolher a preferida. Pois bem, as Humaníadas tentam o equilíbrio do meio termo. A imagética é para sublinhar e reforçar a ideia, tornando-a emotivamente atractiva. Os efeitos formais procurados visam este fito, todos eles. A fórmula pela fórmula, o jogo pelo jogo é banido por inteiro. Aqui não há nunca nenhuma concessão. Disto resulta que o poema não é prolífico em figuras de estilo, antes parcimonioso, não se desdobra em brinquinhos que até distrairiam da mensagem que importa, antes rasga um veio por onde se precipitem as águas vivas. Nada mais releva ali. Então, às vezes, atinge a potência dum murro na consciência. Pelo menos para mim. E para muitos milhares, claro, senão nem iriam lá. Mas vão e, pelos vistos, passam palavra. É um bom sinal.

Notícias de Amanhã – E tal caminho conduz a que escolhas em concreto? A que modelos?...

Joana Afonso – Leva a recorrer a tudo o que sirva o fim em vista. O que finda a pôr de lado aquilo que não permitir ir tão longe como outro trilho alternativo. Por exemplo, no primeiro tomo, há uma parte que exprime cada ideia em linguagem precisa, com ritmo, mas sem métrica nem rima. O verso solto e sem cadência firme não cativa tanto, logo, o trilho não tornou a explorar-se. De igual modo, a poesia em prosa da parte final do volume, alegoria da Humanidade a dar conta, pela razão, da sabedoria de vida, ao vislumbrar o que a impelir à plenitude, o itinerário do Infinito: nunca mais tal via é retomada. Por muito que haja prosa sublime e poesia em prosa (ponto de encontro de dois tipos de escrita cuja fronteira mútua é indiscernível ), não têm o poder encantatório dum poema que conjugue e interligue ritmo, métrica, rima e figuras de estilo a incendiar uma mensagem, por mais simples que aparente ser em si, à partida.

Notícias de Amanhã – Bem, Joana Afonso, referido assim, não me atrai nada em particular. Desperta curiosidade. Alguma, pelo menos. Queria sinais do efeito. Em si é muito visível, mas no resto... Pelos vistos, há trilhos menos eficazes. Então até onde é que isto irá?

Joana Afonso – Poderei referir-lhe alguns episódios indicativos. Uns até meio divertidos. Vou revelar-lhe um segredo: o primeiro tomo das Humaníadas, o que lhe tem o título, teve uma pequena edição em papel, para trabalho, fora do mercado, antes da criação do sítio na internet. No decorrer dum curso em Almeirim, com os participantes todos empenhados e participativos, vários quiseram adquirir um exemplar deste e doutros livros disponíveis. Não é que um dos integrantes, de volume não mão, questionaria o autor: “Mas quem é que escreveu isto?” e, perante a resposta: “Fui eu”, continuava, inconformado: “Ai, não acredito, não acredito!” A clara confirmação do princípio bíblico milenarmente repetido e também ali, portanto: “Ninguém é profeta na própria terra”. Tinham todos conversado tanto, partilhado tanto, confidenciado tanto do mais íntimo das próprias vidas que aquilo não poderia ser dele, um humano tão igual, teria de ser dum extra-terrestre qualquer, sei lá... O mais divertido é que outro se colocou em bicha com mais interessados e, enquanto folheava o tomo, foi abordado pelo autor, perplexo com tanta procura: “Não tem obrigação nenhuma de adquirir isso” – disse-lhe. E ele, quase meio ofendido, muito determinado: “Ah, mas eu quero mesmo este livro! Já li alguns poemas, eu quero mesmo isto!” Longe dali, na periferia de Lisboa, uma professora adquiriu-o para prenda a uma sobrinha, mas colocou-o na mesa-de-cabeceira. À noite leu-o, repetiu nas seguintes, meses depois confessaria: “Gostei tanto que fiquei com ele, pronto!” Uma outra, recentemente enviuvada, adquiriu-o para espairecer, ajudar no luto. Confidenciaria mais tarde: “Encontrei nele uma quadra que, mal a li, parecia mesmo escrita para mim. Tocou-me tanto que a transcrevi no túmulo do meu marido.” Não são momentos ocorridos com indivíduos ignorantes, de gostos rudimentares, eventualmente influenciáveis com facilidade e sem qualquer critério. São do estrato de formação superior, universitário, do escol do país. Quando aqui é assim, está tudo dito. E não andei à procura de nada, são pequenos afloramentos que me chegaram espontaneamente, por acaso. Imagine o que encontraria se me entregara a uma pesquisa de rigor e por sistema! Não sou apenas eu, não, sinto-me muito bem acompanhada.

Notícias de Amanhã – Entendido, Joana Afonso. E atingido: também agora fico mais curioso. Mas eu tinha-lhe cortado o raciocínio. Há uma hierarquia nas formas, entre as que mais e menos resultam?

 Joana Afonso – É onde conduz a procura do efeito maior. Com um contrapeso, porém: urge evitar a saturação do leitor. Comida demais produz o enjoo; se for sempre igual, finda no biqueiro. Há um ponto intermédio que será o ideal. É de andar atento e preservá-lo. Imagina onde é que isto levaria? Dada a monumentalidade em tamanho das Humaníadas, a equilibração e recomposição teria de ser tomo a tomo. E foi-o. No termo, dou-me com o predomínio que seria de intuir, mas que, pelo menos a mim, nunca me ocorreria: o da quadra popular. No modelo, que não no sentido, uma vez que o mergulho nas profundezas da interioridade evolui por aqui como em tudo o mais. Não é quadra de entreter o bailinho da romaria na mensagem. É-o, porém, na redondilha maior (e menor) da métrica como na rima, aqui permanente, sem recurso ao verso solto. E nisto vai o levantamento dum véu qualquer do mistério íntimo, seja a referi-lo no que o constitui, seja a questioná-lo, seja a abrir-lhe uma janela de saída, seja a distribuir o olhar pela fímbria longínqua do Infinito. É de longe a escolha predominante em cada degrau da obra, com milhares e milhares de quadras distribuídas por todos os tomos. É mesmo o maior volume de poemas em cada um. O que implica, pelo referido critério da quantidade, que nos encontramos perante o maior quadrista de toda a história da literatura de língua portuguesa. Quanto à qualidade, juízo insuperavelmente subjectivo, já referi o bastante, válido para este ou qualquer outro molde.

Notícias de Amanhã – A quadra sintetiza tanto que, se a palavra condiz, é uma faísca a desencadear um trovão, a ribombar na vida dum indivíduo. Por esta via, o poema pequeno de tamanho pode ser o maior na eficácia do sentido. Não é por acaso que o gosto popular se fixou neste molde. Fácil de aceder, de evocar, de reproduzir, de repercutir... Mas tantas assim não fatigam, afinal?

Joana Afonso – A mim, não e há uma boa razão para isto. Não é o facto de haver, aqui e além, quadras doutra métrica, embora, obviamente, quebrando a monotonia, ajudem. Nem, quebrando-a muito mais, a grande quantidade que é de métrica irregular, preservando o ritmo e a rima. Às vezes a irregularidade dá para culminar o poema com uma vera bala no imo, ou, então, ao invés, com um repouso calmante. Há, porém, outro motivo bem mais fundo que provém do inconsciente: já reparou que a métrica popular do verso é de sete sílabas? O arquétipo sete, pois claro. E ninguém entende porque é que espontaneamente vimos aqui parar?! Os críticos literários andam todos muito distraídos... E, na redondilha menor, o verso é de cinco, metade da base dez das matemáticas, os dedos da mão, o segundo arquétipo que nos estrutura a vida por dentro e por fora, generalizado a partir da contagem digital, imemorialmente. Está reparando no tal efeito subliminar, inconsciente mas perenemente a atrair e empurrar para lá, sem repouso algum, a vida inteira de cada um e de todos? Podemos não reparar, não ligar, descartar por irrelevante, não importa. Ele não nos presta contas, continua imperturbável e nós, se tivermos juízo, é que temos de nos não distrair, ponderar bem e aprender a aproveitar o melhor que nos convier. Outra atitude é desperdício. É, porém, a da generalidade, mesmo entre peritos. Já agora, mais um pormenor, só para vermos até onde este pendor chega. A quadra, no Japão, é motivo de culto nacional, desencadeando anualmente concorridos concursos pelo país inteiro. Os vencedores são largamente celebrados e consagrados. Tem ali, porém, uma configuração muito particular: os dois primeiros versos têm sete sílabas métricas, os dois últimos, cinco. E eis como ali os dois arquétipos se imbricam muito mais, aliados até numa única quadra. O poder de síntese é tal que a que o for a sério implica duas camadas de sentido: um, o que de imediato ressalta do tema e dos termos utilizados; um segundo, meramente alusivo a um aspecto vivido pelos indivíduos envolvidos, a comunidade, o país ou o mundo. A quadra é tanto melhor quanto maior o poder elucidativo da alusão, o patamar à primeira vista escondido. Temo-lo ilustrado em português no romance brasileiro O Embaixador (Erico Veríssimo), onde a segunda protagonista, da embaixada japonesa, vai pontuando o relacionamento com o representante do Brasil através de quadras da sua tradição cultural, aparentemente inocentes mas que, na alusão, reporta atitudes, valores, rumos perante o interlocutor, ou o país latino-americano onde laboram, ou o mundo em que vivem. Isto vai tão para além da ficção que tive oportunidade de participar no lançamento dum livro em português, com quadras daquele molde, onde esteve presente o embaixador do Japão em Portugal: ele recitou a que considerava a melhor que encontrara em toda a vida. Era um homem caído no fundo dum poço a olhar interminavelmente a inatingível abertura por cima dele (primeira camada de sentido), o que alude ao eterno destino humano aberto à Luz inalcançável (segunda camada). Vivem do outro lado do mundo mas os arquétipos puxaram-nos para o mesmo. E operam com muito mais euforia que nós, com festivais anuais pelo Japão inteiro. Não há dúvida: os arquétipos não têm interesse nenhum, são umas crendices místicas, não é? Grande palermice!

Notícias de Amanhã – Cada vez fico mais pasmo! Que tem aí agora no saco das prendas?

Joana Afonso – Ah, pois! Olhe, os nossos maiores sonetistas são Camões, Bocage, Antero de Quental e Florbela Espanca. Os quatro somados dão-nos um pouco mais dum milheiro de poemas. Nas Humaníadas há sonetos em redondilha maior (os preferidos), em decassílabos (como aqueles quatro cumes) e em redondilha menor (o menos requerido). Tudo junto, pela quantidade, tem mais que eles todos. Quanto à qualidade, que cada um saboreie, a fruir do que melhor lhe caia ao paladar.

Notícias de Amanhã – Estou a ver: modelo clássico mas sem tema de amor. É?

Joana Afonso – Bem, molde clássico mas também com outras métricas e, quanto à temática, também o amor, uma vez que a obra é de todas as ladeiras da vida. Ora, o amor é uma delas e basilar.

Notícias de Amanhã – Claro, rompe o paradigma mas não o abole. Já entendi, como no resto. E mais?...

Joana Afonso – O mais são poemas mais longos, uns de métrica regular, outros, irregular.

Notícias de Amanhã – Ai há poemas longos? Não me diga que, no meio da floresta, ainda deparamos com Os Lusíadas! As Humaníadas são o parente alargado dele, de cobertura mundial? Pelo menos o fito, pelo nome, parece ser este, nalgum sentido, não é?

Joana Afonso – Diz muito bem, “nalgum sentido”, mas de certeza não por aí. Já lá iremos. Por ora basta referir que aqui os poemas longos principiam na quintilha e vão depois por lá fora. Em toda a agigantada obra, não há nenhum poema verdadeiramente longo, excepto um, numa parte do único tomo que não ultrapassa os 1.500 poemas. Aí, nela, após a composição introdutória, todo o título é desenvolvido como uma unidade, constituída por mais de cem estrofes, todas de formato idêntico, cada qual com uma mensagem própria. Tudo poderia ter sido separado, contabilizando-as uma a uma, o que ultrapassaria aquele limiar no somatório total do volume. A escolha foi outra e resulta no único poema que preenche uma divisão inteira, após o introdutório, em toda a vastidão da obra. Isto quer dizer que os poemas longos apenas o serão por referência às quadras, predominantes no conjunto. Tudo foi concebido para umas vidas rápidas, a mudar permanentemente, e que cada vez mais correm em corropio imparável, como tendem a ser todas hoje em dia. Aqui o poema longo, deveras, mal encaixa. Se for (como é) para ser fruído diariamente de modo regular, mais ou menos como poesia para uma vida, acompanhando-a metodicamente, o molde mais adequado é o de leitura nunca demorada, eventualmente aproveitando qualquer intervalo livre. Daí, por conseguinte, a contenção do tamanho. Também aqui, para não enfastiar, há um equilíbrio entre os de métrica regular e os que a têm irregular, apostando no ritmo, na eufonia, na surpresa do remate. Quem pretenda fruir, em remanso continuado, um serão longo, um fim-de-semana de relaxamento, umas férias com esta companhia pode ir saltando dum para outro modelo, quando principiar a fadiga num ponto qualquer. Tem muito por onde escolher, obviamente.

Notícias de Amanhã – E ainda não largámos as formas, Joana Afonso. Se abordarmos os conteúdos, ficamos por aqui até ao fim do dia. Como a conversa corre amena, não há problema, não é?

Joana Afonso – Já mudo de registo, após um sublinhado que me toca particularmente. É uma palavrinha para as rimas. Tanto quanto consigo entender, é um dos recursos da poesia que mais toca emotivamente cada um. A quadra popular desencadeia respostas entusiásticas muitas vezes porque o verso rimou inesperadamente e não tanto pelo que transmitiu, a maior parte das ocasiões um banal lugar-comum. Aquilo mexe interiormente. Ora, aqui são dezenas de milhar de poemas em que um verso solto quase não existe. Uma indesmentível aposta no atractivo de tal via. Atinge desde o indivíduo mais inculto, mesmo analfabeto (António Aleixo, de Este Livro Que vos Deixo era-o e não deixava de improvisar quadras encantadoras), até ao mais culto e erudito. As Humaníadas, por aqui, têm um íman muito potente. Agora, porém, repare: poesia é o tipo de texto mais subjectivamente discutível. À saída duma escola uma professora criticava outra que não gostava desta obra: “Ora, não tens gosto” – dizia-lhe. “Eu?! Até julgo que tenho” – retorquia a companheira. Isto, enquanto lá dentro, na sala de professores, uma docente de línguas e literaturas comentava no círculo de colegas, durante o intervalo, acerca do mesmo: “A mim, na poesia, o que mais me toca é a rima. O poema rimado encanta-me. Ali é quase tudo.” É assim. E gostos não se discutem, nisto como em tudo. É um domínio em que podemos ir de extremo a extremo, desde a adoração à execração. E não haverá maneira de impedi-lo, como em toda a forma de arte. Que é que consagra, afinal, a obra-prima? Apenas a adesão da maioria combinada com o predomínio da faixa culta e perita. E nem isto é seguro. Há quem remeta para o juízo da história, em desespero de causa. No fundo, apenas os três conjugados logram alguma objectividade. Mas porquê recusar a subjectividade se é como sujeitos que nos identificamos? Não faz sentido. Portanto, cada um frua a seu bel-prazer. Se não gostar, deixe, outros o degustarão, até com gula.

Notícias de AmanhãFaz todo o sentido. A si as Humaníadas entusiasmam-na, se calhar ficarei mais ou menos indiferente, um terceiro detestará, porventura. A poesia come-se, conforme a ementa predilecta de cada um, com as artes todas é assim. Perfeitamente de acordo. Mas dizia que ia mudar de agulha, não é?

Joana Afonso – E vou, senão isto arrisca-se a dar uma imagem distorcida das Humaníadas. É que, além do separador dos modelos formais adoptados, há outro ali, o da predominante temática. Normalmente, cada molde principia dominantemente pela poemática do ser. Até poderia não desenvolver-se assim e é mesmo um pouco estranho. O ser, mormente encarado como facto sensível, é o domínio da ciência. Como é que isto pode inspirar poesia? É uma das vertentes que me espantam porque me deparo com todo um horizonte inexplorado e com versos deveras reveladores, não apenas pela carga de estese que em mim desencadeiam, mas mormente por isto, verdadeiramente inconfessável (e imperdoável) na nossa cultura (mas mais na ocidental que na oriental): nós ignoramos quase por inteiro o que nos constitui na interioridade, por que leis se rege, o que nos eleva ou diminui, com que travejamento se aguenta, que dinamismos nos movem daí, que contrastes e harmonias alimenta, que vivências suscita, com que desafios me confronta e assim por diante, interminavelmente. A obsessão do cientismo e a ditadura que nos implantou nas cabeças, com a exclusividade do olhar imposto apenas sobre os dados perceptíveis, deixou-nos tão desarmados, tão ignaros do nosso íntimo que se nos revela espantoso qualquer retrato dele, sem mais nada. Opera, só por si, como uma revelação de maravilha. Então, com todos os aliciantes do poema, é o entusiasmo. Tudo porque é um mundo novo que a nossa caravela descobre mar adentro, ainda por cima decorado com as galas luminosas dum festim poético natalício. Se houvera o equilíbrio há séculos desfeito entre a abordagem científica e a metafísica, o deslumbramento reduzir-se-ia, não ao facto prosaico já reconhecido, mas ao edulcoramento poemático que o recobriria. É o que ocorre com Os Lusíadas (Camões) ou a Mensagem (Fernando Pessoa): os factos históricos por trás do poema não provocam estese nenhuma em ninguém que os já conheça, o maravilhamento provém do luminoso festival apelativo do verso que os transporta. Pois bem, nas Humaníadas atinge-nos pelas duas vias concomitantemente. Só a descoberta do dado íntimo já surpreende, a embalagem poética com que o faz arregala a vista. Pelo menos a mim, repito. E a muitos mais, repito de novo. Uma auxiliar de acção educativa, quando me viu admirada com a conversa acerca desta obra que mantinha entre colegas, retorquiu-me, convicta e divertida: “Ah, poesia é comigo!” Com pouca escolaridade, todavia é isto...

Notícias de Amanhã – Palpita-me que tudo anda a irradiar subrepticiamente. Os milhares de entradas no sítio da internet por algum lado devanearão, não é?

Joana Afonso – Claramente. Mas aquele é apenas um primeiro agrupador, o do ser. Um outro é o do dever, normalmente a seguir. A tónica deste distribuidor sublinha o segundo nível de ruptura basilar entre física e metafísica: se o estudo do ser é comum às duas, distinguindo-se apenas por um ser perceptível e o outro vivencial, um do mundo exterior, outro do mundo interior, quando saltamos para o dever entramos no domínio dos valores, do livre arbítrio da escolha, da intimidade exclusivamente subjectiva da vontade. É domínio definitivamente vedado à ciência que apenas lhe pode investigar os produtos, o único dado percepcionável, e pára aí. Todo o reino da valoração, ponderação, decisão, iniciativa de agir num rumo determinado é da metafísica, é tudo exclusivamente vivencial, não são os dados perceptíveis que o acompanhem ou dali resultem. É o vivido, não o observado. O mero bom senso do saber empírico atinge-o, as cabeças cientificadas da mentalidade e cultura dominante, não, transformaram-nas em calhaus os últimos séculos. E por aí se estadeiam, muito convencidas. Que superioridade!

Notícias de Amanhã – Eh, Joana Afonso, vai começar a disparar!

Joana Afonso – Às vezes apetece. Quanta perda, por mor da infinita estupidez humana! Mas adiante. O ser e o dever conjugados em tensão dialéctica, redundam no amor, em todos os planos, desde o apaixonado ao filial e familiar, às amizades, ao comunitário, nacional e planetário... Sem limites, projectado ao infinito. É o terceiro discriminador de dominâncias dos poemas. E é o amor enquanto vivência íntima, do mais ligeiro ao mais avassalador, do mais individual e restrito ao mais abarcante e universal. Só não abrange o reducionismo propugnado pelo cientismo: o amor reduzido a descargas de hormonas. Apaixonado? Não, é apenas uma injecção de dopamina. Sexualmente atraída? Ora, é apenas uma bombada de nor-adrenalina. A prova? Dorme por uns tempos, que isso passa. Confundir a vivência com as manifestações físicas que a acompanham e reduzi-la a elas é a atitude mais anti-científica possível: nega os factos que eles próprios constatam, uma vez que os vivenciam no íntimo como qualquer outro indivíduo. E não reparam na contradição: se a ciência são apenas factos, como repudiar qualquer um, exterior ou interior, que experiencio? Nego-me a mim próprio, uma vez que são aquilo que sou?... E andamos há quinhentos anos a despenhar-nos pela ladeira desta estupidez!

Notícias de Amanhã – Eu não dizia? Já tinha saudades da briga, Joana Afonso.

Joana Afonso – Brinque, brinque. Tem mais matéria na quarta dominante: o domínio do sonho, da utopia. Os poemas que ilustram o nosso apetite de plenitude, perenemente buscada no rumo ao Infinito, em qualquer ladeira ou recanto para onde treparmos ou onde nos refugiarmos, na freima sem repouso da vida inteira. Já reparou? O objecto disto é o que não existe. O facto aqui é o inexistente. Como percepcionar o nada? O cientismo vê-se acuado: não pode pôr no laboratório o nada, observar em campo o nada, montar um telescópio, atirar um satélite para capturar o nada... Finda de mãos vazias mas ele próprio se mexe rumo a este nada. É um encurralamento diabólico. Não há como descalçar esta bota. Pode estudar-lhe e estuda-lhe os produtos, na ciência a caminhar ao vivo e na história dela, mas o aguilhão, o caminho e a infinita meta escapam-lhe por natureza. Que fazer? Remetem-no para a epistemologia da ciência e pronto: cá têm a metafísica por eles trabalhada no domínio da filosofia. E assim se autodestroem, mesmo que não queiram (e não querem) legitimar mais nada: fazem análise metafísica, afinal tal domínio persiste, aguilhoa-os e o que valida esta pesquisa valida qualquer outra do mesmo campo. E ele é incomensuravelmente maior, mais importante, mais decisivo que tudo quanto o cientismo pretenda. Ciência, sim cientismo, não; espiritualidade, sim, espiritualismo, não. Lado a lado, em tensão dialéctica, os dois reinos mutuamente se alimentando, mutuamente se criticando, mutuamente superando as contradições e os impasses que os travarem. É o pano de findo duma mentalidade, duma cultura e duma civilização nova que teremos de erguer. Os poemas desta quarta vertente são para mim os mais mobilizadores. E, por igual, os mais gratificantes. São nas Humaníadas o que refere, finalmente, o rumo englobante, o sonho por que corremos todos, detectado em cada um de nós como apelo íntimo.

Notícias de Amanhã – É lindo, irei à procura. Cheira-me quase a outro mundo. É mesmo?

Joana Afonso – Tanto não diria, chamar-me-ia maluca. Mas atrevo-me a sonhar com primícias. Sementes, talvez, um gérmen, mas com um empolgamento afectivo tal que não hesito em vislumbrar um qualquer prenúncio. Discirno ali já um vago fulgor de Luz, o inebriante do Infinito. Não há palavras mas, por isto mesmo, aqui há uma pontinha do inefável, um princípio da plenitude. O ponto de fuga de cada poema, neste sector, deixa-me a imaginar, de facto, uma irrupção inesperada Infindo além. A grande festa. Ah! Já me esquecia. A lógica disto conduz ao derradeiro vector: a celebração da alegria. É onde terminam todos os tomos (excepto o primeiro: aqui é na anterior). E teria de ser. Não vivemos do lado de lá da vida, mas cá dentro dela. Gostaríamos, porém, de ter outra que fora eternamente feliz, uma vida em plenitude. Nunca o conseguimos, nunca o conseguiremos, mas desde todos os tempos e para todos os vindoiros celebramo-la ao correr de cada ano, ao correr de cada vida. Antecipamos a euforia, a pretexto de cada aproximação ao sonho fugidio. Cada conquista, porém, vale por ela: é mais um patamar para visar mais longe o horizonte indomável mas a atrair-nos, constante. Ali, em cada tomo das Humaníadas temos poemas de bom humor, de ironia, de anedota, de gozo, de divertimento. É comemorar a alegria já vislumbrada, aqui ao alcance.

Notícias de Amanhã – Uma dúvida me fica: isto não atira para uma fé, uma religião, seja embora qualquer uma? Num mundo de ateus, agnósticos, descrentes, indiferentes...

Joana Afonso – Não, não. Essa é a linha vermelha nunca transposta nas Humaníadas. Os poemas incidem rigorosamente apenas na interioridade comum, o pano de fundo que nos unifica a todos como Humanidade. O mundo dividido das crenças e das religiões ficou definitivamente de fora. Propositadamente, uma vez que a restante poesia não se impõe tal fronteira intransponível. Aqui é mesmo para nos encontrarmos no terreno do património comum da Humanidade. Aliás, apenas neste rumo atingiria universalidade. Não é, como Pegadas na Areia, por exemplo, património duma confederação baptista qualquer e pretende não o ser, para poder ser apropriável por qualquer indivíduo, comunidade, grupo ou confissão: é o que nos é comum, onde todos nos poderemos encontrar. Este aspecto, aliás, não é despiciendo. É que a nossa inesgotável estupidez depara sempre com todo e qualquer pretexto para nos dividir (há casais que se separam porque um detesta o espirro do outro, porque um ressona, porque um cheira dos pés, porque canta no duche...) e mal reporta o que nos unificar. Ora, se “pelo sonho é que vamos”, pelo amor é que o consumamos. E é-nos mesmo difícil o pendor construtivo. Se qualquer burro aos coices desfaz um monumento, já é preciso um artista para o erigir. É muito mais difícil, portanto. É o mesmo com darmos conta, afinal, do que nos é comum. Identificamo-nos com um clube, mas não com o desporto, com um país, não com a Humanidade. Quanto mais longínqua a fronteira, mais ilegível. As Humaníadas carreiam esta achega de tentarem abordar o que, à partida, cada um encontrará dentro de si, nas vertentes que nos constituem por igual, por trás das diferenças de culturas, crenças, ideologias e escolhas: são um mergulho nas raízes, a identificação das matrizes íntimas que nos põem de pé, nos aguentam, nos encaminham a todos por igual. É a matéria-prima de que depois construímos as alternativas, os múltiplos caminhos por onde tropeia toda a Humanidade.