QUINTA  ENTREVISTA

 

Além de Sofia

 

Notícias de Amanhã – Foi muito refrescante a entrevista anterior. Até eu me esqueci várias vezes do meu papel e tomei parte activa na reflexão. Não me arrependo. Não temos nada a perder, não é?

Joana Afonso – De acordo. Espero que continue. Abordaremos hoje o Além de Sofia, na esteira do que vimos: é o que poderia andar a ser feito para tudo retomar vida nova.

Notícias de Amanhã – Num mundo indiferente, como é cada vez mais o desenvolvido, não tem tanto eco nem pertinência como isso. E, gradualmente, todos os recantos do planeta vão atingindo tal estatuto: Índia e China, mais dum terço da população mundial, industrializam-se a grande velocidade e, nos últimos trinta anos, a fome e miséria no planeta declinaram de 40% para 10%, uma espectacular melhoria de vida dos povos. Ainda restam setecentos milhões a morrer de inanição, mas é felizmente uma pequena fatia comparada com os mais de sete biliões de habitantes totais. Ora, esta transformação é paralela à generalização do indiferentismo religioso. Cada vez há menos gente interessada nestas áreas...

Joana Afonso – Factualmente, é verdadeiro. Na realidade é tudo ao contrário. Por trás da indiferença anda a atitude da raposa que não chega às uvas: “Estão verdes, não prestam”. Mas mal cai uma parra ao chão, vira-se logo para trás, com ânsia esperançosa: “Será um bago maduro?” Vemos isto repetidamente. Foi a corrida a Um Deus Diferente (Robinson) e, logo a seguir, a Deus Morreu em Jesus Cristo (Jean Cardonnel), foi a euforia e expectativa em redor do Concílio Vaticano II e de vários textos de lá colhidos, é a adesão mundialmente discreta mas permanente ao movimento “Nova Era” e a todas as ramificações e tendências por onde se manifesta, das múltiplas escolas de meditação até à procura de médiuns naturais que comuniquem com o lado de lá da morte, é a proliferação de igrejas evangélicas pelo Brasil católico além, na perene busca duma espiritualidade incarnada ao vivo, por inteiro morta no tradicionalismo rotineiro... Podíamos ficar aqui a listar o dia inteiro afloramentos disto e não chegaria. Todos temos a inquietação cá no íntimo, a frustração repetida e permanente é que nos leva a atirar tudo pela janela fora e a virar costas. Por mim, divertem-me e renovam-me a esperança todos aqueles casos de indivíduos que, no princípio duma sessão mediúnica real, se afirmam cépticos e descrentes, mas depois, perante a quantidade de pormenores significativos da vida compartilhada com os falecidos que ali com eles comunicam, findam derrubando as barreiras e confessando que, diante daquilo, doravante acreditam, a comunicação é verdadeira, pesem embora quantos charlatães disto se aproveitam e abusam da boa-fé dos crentes. Os programas televisionados andam cheios destes momentos e revelam melhor que qualquer argumento o que é que ocorre: cépticos, descrentes, agnósticos e ateus, todos configuram a raposa das uvas. E com toda a razão: têm de rejeitar quanto os engana e promete cachos que nunca dá. E é deveras quase tudo no domínio das religiões instaladas. E as seitas fanatizadas e extremistas são fogos-fátuos de ilusões, mal explodem em fogo prometedor, logo se extinguem em cinzas. Todavia, com isto, todos eles rejeitam apenas, mais ou menos definitivamente, a dádiva mentirosa, a promessa incumprida, a morte de qualquer expectativa na rotina moribunda. Não é a realidade duma dimensão escondida, porventura inesgotável em definitivo, mesmo inatingível em absoluto. A questão é que haja algum vislumbre disto, alguma teofania, mesmo germinal, que vivenciem, alguma factualidade, embora só vagamente vislumbrada. Mal isto ocorra, explode o entusiasmo. Viram a vida do avesso. São exigentes, todavia, e têm toda a razão. Este é o domínio em que tudo e todos parece ficarem satisfeitos em servir gato por lebre. As instituições religiosas, por muito que nos custe e que rasguem as vestes Anás e Caifás e o Sinédrio inteiro, praticamente não fazem outra coisa: são ritualismos, devoções e liturgias a escudarem um servicinho estandardizado qualquer. A vida lá de fora, o mundo, o Universo, querem lá saber! Quando muito, é o antro do diabo. Tudo desprezível e condenado. Ora, assim, não, entenderam tudo muito mal e muito pouco.

Notícias de Amanhã – Mas qual é o cacho de uvas prometido que faz mudar aqueles que mudam? Têm saudades de outrora, da cultura que morreu, da meninice que viveram entre cultos e festividades ao padroeiro da paróquia?...

Joana Afonso – Não me tinha ocorrido olhar por tal perspectiva. É capaz de haver aí, nalgum indivíduo, um motor para a busca. Os alicerces sobre que nos erigimos têm muito peso, são fundamentos de nossa personalidade. Reencontrá-los é retornar às vivências e memórias de antanho. Todos somos muito vulneráveis a estes momentos. Não é por acaso que os emigrantes lutam e poupam o ano inteiro para terem umas semanitas de férias ao fim, retomando o rumo da aldeia, dos laços e afectos com que germinaram e se desenvolveram como gente. E é extremamente gratificante para os que ficam e para os que vão. Quase diria que configura espontânea e inconscientemente um arquétipo que nos modela a todos. Os astrónomos afirmam que somos feitos do pó das estrelas; o ritual da quarta-feira de cinzas apela: “Lembra-te, homem, de que és pó e em pó te hás-de tornar”; e Sº. Agostinho conclui: “Vimos de Deus e nosso coração não acalma enquanto a ele não retornar”. O ciclo do eterno retorno dos mitos imemoriais, mas numa eventual ascensão em espiral ao infinito, no domínio do espírito (que no do corpo é do pó ao pó).

Notícias de Amanhã – Qual era a perspectiva que não esta em que estava a reparar, Joana Afonso?

Joana Afonso – No fundo era, afinal, no que o dito de Sº. Agostinho implica: a nossa inestancável fome de infinidade. Não há forma de a eliminar, não há forma de a saciar, não há forma de nos desenvolvermos à escala dela, de modo a abarcá-la, esgotá-la, tornar qualquer Infinito num Todo. Todas as totalidades o traem, quer dizer, nos traem no nosso íntimo. Este é um poço sem fundo e, quando tomamos qualquer ponto por este fundo inexistente, estamos errados e o engano acerca dele é, prioritariamente, acerca de nós. É que nós apontamos indefinidamente para mais longe e findamos logo famintos quando ali assentarmos arraiais. Não há paragem possível. O infinito escapa-nos, por definição e nós temo-lo cá dentro como apetite: ele constitui-nos como buraco duma ausência que nos suga e a cuja força não temos modo nenhum de fugir, em nenhuma conjuntura nem tipo de vida. Quem se enganar nisto engana-se acerca da fundura dele próprio. É um infeliz crónico, porventura a esconder a desgraça por trás dos ouropéis do dinheiro, do poder, da pompa - tudo meros substitutos duma realidade feliz que se falhou, tudo encobrimentos da infelicidade como riso falso dum palhaço desgraçado.

Notícias de Amanhã – Isto é o Além de Sofia?

Joana Afonso – Não, é disto que ele brota, que brotam inúmeros outros mundo fora, pelas eras além.

Notícias de Amanhã – Espere aí, Joana Afonso. O que alimenta as religiões...

Joana Afonso – Exactamente, é isto. Ou melhor, deveria ser, porque é o que as origina. Mas já reparou? Uma vez implantadas, ignoram-no. Ocorre história além sistematicamente com todas. Trocam-no fatalmente pelas doutrinas elaboradas, pelos dogmas definidos, pelos ritos inventados, pelas liturgias acolhidas, pela mentalidade que fermentaram. Sem darem conta, a procura do Infinito é trocada pela iniciação nos arquivos que detêm e que aumentam o museu de geração em geração. Isto é tanto, tanto que, a partir de algum tempo não há disponibilidade, energias, horas para mais nada. E a religião vive então cada vez mais refechada sobre ela própria, o apelo do Infinito extinguiu-se e, doravante, apenas poderá singrar fora e além dela. Transmudado apenas em convocatória para o museu, por mais sublime que este seja (e é em praticamente todo o lado e em todas as eras), a verdade é que tem pouca energia para mobilizar tanto como a fonte original, pelo contrário. Fatiga e enche de tédio cada vez mais gente, esvaziado da fundura para onde apontaria, doravante invisível e, por conseguinte, inabordável, inaproximável, quanto mais atingível (nem sequer germinalmente). Transformado o Infinito numa palavra oca, sem nenhum sentido nem conteúdo existencial real, sem desafio nem apelo a respostas aos vazios nem iniquidades da vida, a nível individual, familiar, comunitário, colectivo, nacional nem mundial, satisfeito consigo próprio e com os produtos atingidos, não serve para mais nada que para turista fruir, arregalar o olho e virar costas. É sempre o que, com o tempo, predomina nas religiões mundo além. No passado histórico foi também assim: o cristianismo conviveu séculos, como seita irrelevante, com a religião generalizada de Mitra. Como esta perdeu a ligação ao cordão umbilical, findou por extinguir-se sem mais rasto que o histórico e o arqueológico. Foi, é, e será sempre assim. A dialéctica da realidade não nos perdoa: ou tomamos juízo ou perdemo-nos na poeira dos milénios.

Notícias de Amanhã – Espere aí, Joana Afonso! O Além de Sofia é para salvar a religião? Eu por mim estou-me nas tintas para isso, o que me importa é salvar-me e salvar a Humanidade, se ainda formos a tempo, nos tempos que correm...

Joana Afonso – E tem toda a razão. É para salvar o apelo do Infinito que nos pode salvar a todos, se for deveras atendido. Se a religião o fizer, como é seu apanágio, tanto melhor. Senão, operem-no todos quantos, sentindo o íntimo apelo, lhe sejam fiéis o mais que puderem na vida própria, na união com os mais, na rede de suporte dum mundo a abismar-se, dia a dia pior. Além de Sofia é o desafio para largarmos os sapatos de ferro e, de pés nus, corrermos o risco de melhorar alterando toda a nossa postura, desde os modos de ver e de interpretar até aos de intervir e de agir, virando eventualmente o mundo e a vida de pernas para o ar, caso antolhemos que por aí é que é o caminho, que o mundo se reencontra e nós com ele e connosco próprios. E é o caso. Além de Sofia vira tudo do avesso. E mostra como é o melhor.

Notícias de Amanhã – É o bota-abaixo, é?

Joana Afonso – Não, é antes: limpa o terreno, arruma todo o silvado inútil e toca a plantar conforme as antigas e novas carências a colmatar. É a volta completa, que deitar abaixo qualquer burro aos coices o faz, não é? Agora como e o quê erigir de inovador, é outra conversa. Aqui, nesta proposta, porém, há inúmeros roteiros inéditos. A mim fascinam-me.

Notícias de Amanhã – Bem, para uma Igreja Católica com milénios de ronceiros espreguiçamentos, há-de ser bonito! Caixote do lixo, nem vale a pena ler! Quem é que vai ligar? Numa máquina colossal tão monstruosa, que óleo chega a que engrenagens? E já é uma sorte não vir para aí uma excomunhão, com a lista de quantas heresias lá se cometem. É jogar numa utopia perdida à partida?

Joana Afonso – Não, pelo contrário, é jogar numa rede de vias ganha à partida. Também os Apóstolos e discípulos principiavam pela sinagoga. Não aceitavam? Limpavam a poeira das sandálias e iam iluminar os gentios. Hoje é o mesmo. A Católica e as mais igrejas cristãs não ligam? Que importa? Conheço inúmeros cristãos, qualquer que seja a filiação confessional, até indiferentes e ateus que, afinal, vêem Jesus na realidade, não metaforicamente, falam com ele e tratam de levar uma vida em conformidade com esta cumplicidade. Curiosamente, não descobri nem um eclesiástico para amostra que faça parte desta rede. Ora, aqueles todos entendem e acolhem Além de Sofia, não precisamos de nos preocupar quanto a isto. O fermento anda a levedar. As estruturas eclesiásticas poderão todas passar, desde que o Espírito fique, tudo bem, não é uma perda, é um ganho. Não foram capazes de ver para além das materializações que cristalizaram? Como as antigas religiões, extinguiram-se, e o Espírito caminha para diante com quem se lhe mantiver fiel. História além foi sempre assim e agora não é diferente. Mas há muito quem se renove, por isso é imprevisível o porvir que advier. Uma realidade, porém, é segura: o Espírito continua a polarizar o íntimo de cada indivíduo, alheio às nossas divisões e pretensões, e quem predomina é quem melhor o incarna e traduz. Não numa hegemonia material histórica qualquer, mas no rumo das profundezas, à imagem de Jesus: crucificado individualmente, parecendo uma derrota, ressuscita e dinamiza Apóstolos e discípulos, para além do alcance dos carrascos humanos. É assim com todos em todos os tempos. Não é com basílicas, catedrais, tronos e altares, Cristo-Rei e quejandos, é tudo ao contrário. Isto, ao invés, é apenas fruto do Monte Tabor: “Senhor, como é bom estar aqui! Montamos as tendas e ficamos por cá?” Mas Jesus desce com eles para a multidão lá de baixo e é com ela e nela que atinge a ressurreição. E assim irá ser sempre até à consumação dos tempos. Não vale a pena eternizar ilusões.

Notícias de Amanhã – É a lição de Além de Sofia? Desta vez levantou o véu, Joana Afonso?

Joana Afonso – Nem pouco mais ou menos. A questão, no fundo, é esta: Deus é, por natureza, inatingível, impossível de conceptualizar, definitivamente inefável. Então como é que reagirão indivíduos e instituições, igrejas, religiões... – se lhes revelarmos o que intuímos acerca deste domínio secreto da realidade, mormente se refizer tudo da cabeça aos pés, subverter as crenças generalizadas, encontrar sínteses superadoras para contradições imemoriais, abrir caminhos inesperados onde nos encurralávamos, harmonizar muito mais longe as nossas vivências íntimas com o que delas formos concebendo? E se isto for deveras entusiasmante, como é para mim? Continuamos com anátemas, condenações, gritaria contra os hereges? E com a sobranceria de quem é sábio perante os mais que não passam duns estúpidos ignorantes? É de reunir concílios, com a caterva da soberba entronizada que julga que tem Deus ali preso a cadeado, pronto a estraçalhar quantos se lhe opuserem ou meramente contrariarem o regalo do conformismo? Como irá ser? É que foi isto que ocorreu (e se pressionou para ocorrer ainda mais) no pós-Concílio Vaticano II, perseguindo e matando os afloramentos do Espírito pelo mundo inteiro, até lograr a acalmia de cemitério em que continuamos a definhar, agora com muitos ouropéis e balõezinhos coloridos a imitar uma festa permanente entre os sepulcros caiados denodadamente de branco. Só engana as criancinhas espirituais. Quem cresceu mais um bocadinho vomita de nojo. Os hierarcas não largam o poder nem à lei da bala, como, aliás, os poderosos do mundo. Ainda por cima são todos totalitários, não há entre estes ditadores nenhuns democratas, como vai havendo nos países. Mal um aflora, é logo decapitado, como pretendem fazer ao Papa Francisco, excomungando-o. Que azar para eles aparecer um afloramento destes logo no topo da cadeia! A conspiração contra ele (e o que representa e pretende) é planetária. Mesmo os passivos, os que se colocam à margem, a larga maioria, não actuam com ele, mas rigorosamente em conformidade com a rotina ancestral, quer dizer contra, embora, quero crer, inconscientemente. Mais ou menos, mais ou menos...

Notícias de Amanhã – Ó Joana Afonso, mas que grande pancadaria! Isto continua a tiro de canhão, não fazia ideia nenhuma. Julgava que era tudo “paz e amor, meus irmãos”...

Joana Afonso – Bem, no fundo, é, porque não há nenhuma paz verdadeira nem amor de carne e sangue n’Os Grandes Cemitérios sob a Lua (Georges Bernanos). E isto, a pretensa vida das religiões instaladas (e das seitas ainda é pior) nem sequer aproveita a poesia do luar na tristeza derrotada dos cemitérios, dos mortos-vivos que são os respectivos fiéis. Cheios de boa vontade, pejados de boa-fé, com a melhor das intenções e com a mais obscurecida das ingenuidades, activamente cultivada, como ignara carneirada, rebanho inerme de ovelhas reduzidas à irracionalidade pelos respectivos pastores, os iluminados, os luminares. Que grandes! Depois de usurparem todas as funções, tentam usurpar as almas de toda a gente. E conseguem-no, conseguem. Todos são bebés de leite espiritualmente e assim mantidos, com uma vigilância tenaz, não vá despertar alguém e desatar a caminhar por sua conta e risco... Deus nos livre! Outras vocações, outros caminhos, outras escolhas éticas, outras teologias?!... Te arrenego, diabo, para as profundas dos infernos! O problema real é: e se o inferno não existir, senão sob a forma do céu deles? Como irá ser? Está a ver, não é?...

Notícias de Amanhã – Ó Joana Afonso, mas não é demais? Assim é que não pode haver entendimento nenhum. Não é extremar?...

Joana Afonso – Pode ser. Para mim não é. Sabe porquê? Por que eu revejo-me no Além de Sofia no que respeita às minhas vivências (mais ou menos pobres) com o Além, com os falecidos que me contactam, dão ordens, ajudam, acalmam, reconciliam com a vida real. Tudo na intercomunhão com eles opera em conformidade muito maior com os modelos daqui, no entendimento, nas valorações, nas escolhas, do que com qualquer leitura tradicional do catecismo, doutrina cristã ou do altar abaixo. Então como é? Eu vivo-o (e tento vivê-lo cada vez com mais autenticidade), como eu vivem milhões e milhões pelo mundo inteiro, de qualquer crença ou sem nenhuma explícita, e são aqueles enfatuados, de cabeça coroada orgulhosamente ignorante, cheios de receitas decoradas de teias de aranha de tempos idos, que me vêm afirmar como é?! Eles mandam em Deus, é?! As religiões tornaram-se todas psicopatas nesta classe de gente, os que ocupam as cumeeiras, os pináculos? São sacerdotes de que sagrado, das sombras deles? E atrevem-se a aniquilar todos os que vislumbram qualquer réstea de luz, um palmo além? Em nome de quê? De Deus não é, o Espírito que mexe comigo, que me atrai e empurra não opera de tal maneira. Aquilo é um erro completo do princípio ao fim. Que é que eu hei-de fazer? Dizer que está bem, calar-me, dar palmadinhas amistosas nas costas?... Não pode ser, a estrutura foi desviada há milénios e não há remendo que a repare, tudo tem de ser refundado. Os burocratas do espírito não podem ser totalitários, têm de ser humildes e submeter-se ao Espírito como tudo o mais. A permanente sobranceria denuncia-os há séculos e séculos: eles pretendem tomar o lugar de Deus, desde sempre, e continuarão a fazê-lo, se os deixarmos. Quem se calar, consente-o; quem for brando é um aliado, a bem ou a mal. Findaram as Cruzadas, findaram as guerras religiosas, findou a Inquisição, mas eles, os que optam por este pendor, não findaram nem findarão nunca, em nenhum lado (ei-los ressurgidos no Estado Islâmico, no crime declarado), de modo explícito ou larvar. Este é o maior pecado da institucionalização: todos se têm de arrepender, reconverter, para o apagar. E passar a obrar doutra maneira: a acolher o Espírito, onde quer e como quer que se queira manifestar. É uma reconversão radical de toda a instituição religiosa, qualquer que seja a confissão. E é freima que não terminará nunca.

Notícias de Amanhã – De acordo. Mas é tudo tão infantilizado como diz, Joana Afonso?

Joana Afonso – Vou-lhe só contar um caso dos meus relacionamentos. É um casal amigo, assíduo numa igreja evangélica, a Maná. Ele até ainda passou, na infância e puberdade, por um seminário católico, na Beira Alta. A esposa também foi educada do mesmo modo, com os rituais infantis costumeiros, o baptismo, o catecismo, a comunhão solene, até o crisma, em grande festa de aldeia, com o bispo local. Como é que doravante se filiaram na Igreja Maná? Porque finalmente deram com alguém mais esclarecido e mobilizador? Porque ali se vai ao encontro da vida real para amorizá-la? Por toparem algum carismático que ajuda a interioridade individual a tomar corpo no mundo, através das vidas deles? É que são um casal que até se empenha em tudo isto, que trata de ter um lar e uma família com qualidade humana, solidário com a vizinhança, preocupado com o país e o mundo... Não são nada alheados, irresponsáveis a nível nenhum e muito menos perversos. A qualidade indesmentível que têm, obviamente, realimenta-se também dali. Mas não imagina que é que lá os vincula. Nem eu imaginaria... É que leram no Êxodo da Bíblia o primeiro mandamento de Iavé a Moisés e lá vem escrito que “não farás para ti imagem esculpida nem figura alguma do que há em cima no céu, nem em baixo na terra ou nas águas debaixo da terra. Não te curvarás diante delas nem as cultuarás...” (Êx. 20, 4-5). O primeiro texto da inefabilidade de Deus, da transcendência inabarcável do Absoluto, a marca distintiva da fé judaica perante o resto do mundo, naqueles tempos, há cerca duns 3.500 anos atrás. E consagrando o núcleo da tradição dum povo, transmitida até então oralmente, desde eras imemoriais anteriores: o monoteísmo transcendente, intraduzível em fórmula nenhuma, em nenhum conceito, em nenhuma imagem. Daí até o nome estar sempre a variar: Iavé, Jeová, Eloim, Emanuel, Deus... Não vá alguém fixar-se num significado qualquer definido e perder a noção de que nunca poderá ser isso, aquela dimensão é, por natureza, abscôndita.

Notícias de Amanhã – Então, é do que estamos a falar: nada de se prender a uma materialização qualquer. Ou não é?

Joana Afonso – Era bom que fosse, mas não. É o texto tomado à letra e sem mais nada. Deus proíbe qualquer imagem? Tudo bem, arruma-se com a Católica que tem as igrejas (até as casas) pejadas delas e pronto! Cumprimos a vontade de Deus. Nem eles nem ninguém lá dentro esclareceram nem clarificaram o profundíssimo alcance de tal norma em contexto politeísta (até hoje). E, aliás, para a eternidade: não há forma de qualquer dimensão de infinidade nos ficar ao alcance, dominada e consumada, esgotada. Somos fome de Infinito e movemo-nos por ele até à consumação final, em indefinida aproximação perene, sem atingir jamais a plenitude. Nada disto entenderam nunca, não o descobriram por si nem lhes foi revelado por ninguém e para ali estão, muito satisfeitos porque “andam a cumprir a vontade de Deus”. É a disputa dos tempos da Reforma, de há quinhentos anos, ali encravada no meio da ponte e nem para trás nem para diante. É sempre o mesmo padrão.

Notícias de Amanhã – Assim à primeira vista, ao menos este não faz mal nenhum. E que a generalidade dos católicos, do povo simples é, em concreto, de idólatras, creio que não há dúvidas, mais imagem, menos imagem. Até idolatram escolhas, teologias, modelos revelhos de entender, ser ou agir... Claro, na ignorância da boa-fé, o oitavo sacramento, não é?

Joana Afonso – Concordo também. É com os católicos e, por igual, com os fiéis de qualquer religião. A conversão é uma tarefa ao infinito, embora, no geral, finde na fórmula e no ritualismo. É uma pena e é a grande perda humana. E é também a perca que neste caso igualmente identifico. Já reparou que, a pretexto do que condena, cai exactamente no que é condenado? Ao dar por cumprimento da vontade divina o mero facto de não haver imagens, sem mais, é transformar num dogma final, definitivo, esta ordem. Ela transmuda-se num modelo simples, ao alcance da mão, de ter Deus ali realizado. É tanto a adoração da imagem como a adoração do mandato, a postura é a mesma: tudo está consumado, não há mais além. A infinitude finda traída, temos um novo ídolo a adorar: “não pode haver imagens”. Os absolutos em lugar do Absoluto são diabólicos, apanham-nos a cada dobrar de esquina. Mal nos precatamos já caímos na armadilha doutro qualquer. É uma tarefa ao infinito a permanente relativização de tudo. Não há nenhum dogma a ser encarado de forma dogmática. Só isto mesmo, que é meramente formal; se tiver alguma realidade, cai logo naquele, se quisermos ser fiéis à nossa fome mais visceral, a da Infinidade, o sempre-mais-além, o inalcançável indefinidamente aproximável. Sobre isto não temos nem teremos nunca mão: é o que somos, a pedra angular que nos constitui. Aniquilada ela, não seríamos nada; ignorada, seremos uns falhados; trocada por substitutos, como qualquer remendo, seremos uns pobres míseros, a vida inteira a pedir esmola, a caminhar ao pé-coxinho planetariamente!

Notícias de Amanhã – Pronto, somos infantis. É a criança dentro de nós, nas religiões ou fora delas. Há quem diga que até configura um ideal. Temos de manter viva dentro de nós a criança que nos habita. Até Jesus apelou a isto, não é verdade?

Joana Afonso – Ah, muito bem. Mas é a criança, não o infantilismo. E o infantilismo é o que é preconizado na prática duma hierarquia absoluta. Recorda-se da postura dum antigo Patriarca da Lisboa, aliás dos mais cultos e lúcidos, aquando da disputa do casamento homossexual? “Nós iremos dar indicações aos fiéis. Se houvesse alguma outra instituição que não o matrimónio...” Nem sequer lhe ocorreu uma série de mudanças de atitude que corresponderiam ao crescimento da infantilidade até à adultez. Antes de mais, a que propósito dar indicações? Somos todos bebés de mamar para não nos sabermos alimentar nem escolher os alimentos? É pior que manter o infantilismo, é crer que ele é estrutural, da raiz, e que nem tem alternativa. Faz-me lembrar o pós 25 de Abril em que, com a queda da ditadura, de repente todos nos confrontámos com o vazio: o regime caiu, que iremos pôr de pé em vez dele? E todos pediam, a quem tivesse ideias, para avançar, porque ninguém sabia o que fazer. No dia em que a ditadura clerical cair, vamo-nos defrontar com tal conjuntura. O que, sendo doloroso, é uma dor de crescimento e, portanto, é muito bom. Ora, é isto que aquela postura nem sequer vislumbra como desejável, quanto mais exequível. A hierarquia tem o monopólio de tudo e ponto final. E depois, como os que entram no Ano Novo a escrever datas do velho, nem admite que a escolha herdada de antanho pode estar errada: se vem por tradição, seja esta qual for, é normativa, ali é que repousa o Bem, mais ou menos manifesto. E se se enganaram todos? E se aquilo estiver tudo mal? Não se lembram de que os que arranjaram as respostas ancestrais o fizeram, como nós, na dúvida, na incerteza, na tentativa e erro, procurando o óptimo sem discernir mais nem melhor que o que nós discernimos? Ainda por cima, condicionados pelos preconceitos, crendices e mentalidades do tempo, como nós temos os nossos. Se nos lograrmos libertar dalguns, discriminamos então mais um bocado. Ora, aquela atitude exclui à partida qualquer hipótese de isto ser aceitável. Porquê? Somos hoje menos inspirados do que as gerações de antanho? O Espírito Santo entrou de férias? Deus adormeceu num eterno sétimo dia qualquer e largou-nos à rédea solta? Todos estes preconceitos inconscientes são duma estupidez inacreditável. Mas pontuam a mentalidade generalizada dos hierarcas, mesmo dos melhores, como verificamos ali. Entretanto, os bebés espirituais que somos e que eles denodadamente cultivam e ferozmente vigiam para que nem pensem em crescer, continuam a saltar-lhes para o colo indefinidamente, a pedir um abracinho. É deprimente quando são velhos de barbas e velhas de pelangas descaídas, como isto deprime quando ocorre na vida comum. Que é que tudo tem a ver com mantermos viva a criança que nos habita no íntimo? Mais uma vez, é mesmo o contrário.

Notícias de Amanhã – Lido assim, de facto... E Além de Sofia repõe a criança sem as criancices, é?

Joana Afonso – É uma boa maneira de olhá-lo. Poderia afirmar que sim e logo a dois níveis. Primeiro, o do vislumbre da criação. É requerido o olhar ingénuo da criança para acolher a revelação dos inesperados que a nossa vida interior nos inspirar. Se mantivermos o olhar adulto de quem tem as receitas todas decoradas, para todo e qualquer trâmite de vida, ocorre a novidade para o problema irresolúvel e nem reparamos nela. Findamos prisioneiros do receituário generalizado, incapazes de atacar eficazmente o vírus novo. É o que sempre nos tende a matar cultural e civilizacionalmente, a prazo. É por mor deste pendor de nos faltar o ingénuo olhar acolhedor infantil, disposto a maravilhar-se com qualquer revelação que ilumine algum recanto escuro, que temos de aguardar que morram os cientistas actuais para as novas teorias ganharem adeptos com as novas gerações que lhes ocupem o lugar. Nas teologias é o mesmo. Igualmente o encontramos nas ditaduras: cai do pedestal o prócere, os herdeiros debilitam e tudo se esbarronda por mão dos promotores da liberdade. Com o indivíduo singular é o mesmo: se não lograr pôr sempre para trás das costas o homem velho, a dar lugar para o inovador, logo finda esclerosado, prisioneiro da lista de velharias em crendices, atitudes, rumos de vida, ultrapassado de vez pelos eventos que não param a corrida do tempo, pejada de desafios inéditos. Nem sequer venerando logra ser, muito menos depósito de sabedoria, como em séculos anteriores foi de uso. Doravante a aceleração da vida, os inovamentos são em catadupa, impedem-no definitivamente: o velho arrisca-se a ser, não o venerável ancião de antanho, mas o empecilho em que o mundo tropeça e arrisca a queda. Urge, pois, cultivar o olhar ingénuo da criança inocente que se maravilha perante o espectáculo do mundo que se lhe desenrola à frente. Para mim é um banho de frescura o Além de Sofia. Tão deslumbrado perante quanto enfrenta e ali se lhe revela que dos castelos roqueiros de antanho não fica pedra sobre pedra. E em lugar deles erguem-se, a cada patim, mundos novos arrebatadores, mapas do tesoiro que nem sabia que existiam, florestas virgens com tantos tipos de vidas novas que me estonteiam e entusiasmam. Por aqui, sim, é de correr à aventura, com o mesmo olhar deslumbrado da criança que descobre novos céus na nova terra. Aqui, sim, quero ser a eterna criança a dar a mão àquela que, entusiasticamente surpreendida, desbravou todas aquelas campinas de utopia e no-las entregou, numa estonteante festa do Infinito a irromper no dia-a-dia. E a gente a surpreendê-lo, tanto quanto ele nos surpreende e arrebata. Esta é a criança por que Jesus chamava, enterrada no fundo da pretensa seriedade da adultez que nos castra, amordaça e agrilhoa. Fora, pois, com esta velha que dentro de mim me cala a voz, me tolhe as mãos, me algema os pés! Viva a luz de aurora em que renasço como um novo dia, a brilhar para todos, sem reservas nem fronteiras, nem de território, nem de fé, nem de inocência ou pecado, nem de raça, nem de rumo! É o que me apetecia gritar, depois de correr pelo Além de Sofia. É verdade.

Notícias de Amanhã – Agora até me apanhou de surpresa, Joana Afonso! Mas dizia que há um outro nível...

Joana Afonso – Há mesmo. Repare, eu deixei-me entusiasmar, em dois patamares distintos: primeiro no das leituras, caminhos, alternativas propostas que me surpreenderam umas atrás das outras; depois, na postura interiormente livre, descomprometida e permanentemente independente que urge tomar para atingir tais revelações. É a era dos Descobrimentos, agora dos continentes ignotos e inexplorados de nosso mundo interior. E a interioridade revela-se tão prenhe de surpresas de encantamento ou mais que o achado do Brasil. É o que mais estranhei, não fazia ideia. É um universo fantástico, há séculos remetido à penumbra do que é secundário, pouco menos que desprezível. Culpa do cientismo que há quinhentos anos nos mantém culturalmente em constante menoridade relativamente a nós próprios, com o faustoso triunfalismo da ciência (pretensamente segura da verdade, o que é falso), doravante a cair cada vez mais em descrédito. Também aqui em descrédito no âmbito dos descobridores mas em alta ainda no reino dos divulgadores, como em todo o lado. Não é só no campo da fé que estes dois grupos contrastam. E nisto é que bate o ponto: Além de Sofia apela ao desafio do coração ingénuo, aberto à revelação do Infinito no mundo, sem peias de qualquer tipo a tolhê-lo. As doutrinas elaboradas, de antanho acolhidas, as rotinas implantadas, as escolhas consagradas por séculos ou milénios, constituem uns óculos de sol que nos tapam as vistas, enevoando-as todas num fatigado olhar de velhos. Não há como surpreender o alvor no meio disto. As religiões acobertam-se permanentemente com tais escudos protectores, julgam tudo e todos por referência a eles e, quanto mais antigas, pior. Ora, debaixo de tal inverno nuclear, que madrugada penetra, que luar pode fruir da poesia do Universo, eternamente em movimento, eternamente com surpresas inesperadas? O velho é o que nunca se deixa surpreender, reconduz tudo a velharias ressabiadas, não sente jamais a euforia do entusiasmo, por mais que os eventos (dentro e fora dele) lho solicitem. Isto é morrer antes de estar morto e, pior, se tiver em mãos o comando (como ocorre em todas as religiões implantadas) é uma sentença de morte generalizada a tudo e todos sobre que impere. E quanto mais novo for a protagonizar esta postura de velhice, maior a perda individual e comunitária, que ser velho ou não, neste sentido, nada tem a ver com a idade mas com a atitude, não é? Ora, quem, entre os hierarcas confessionais, entre os cães-de-fila da fé, qualquer que ela seja, logra ter o olhar límpido da criança inocente? Não vale a pena ter dúvidas, não iremos se calhar encontrar ninguém capaz de ler Além de Sofia sem a fúria do carrasco, em lugar do estremecimento arrepiado do arrebatamento. Mas era aqui que a criança era requerida! É o teólogo criança a solicitar a criança leitora. Eu sei bem que é uma utopia aguardá-lo da instituição (católica, evangélica, ortodoxa, judaica, muçulmana ou qualquer outra), enquistada como fatalmente vive na rotina implantada, mas há indivíduos e indivíduos e, se até agora todas as cabeças emergentes foram cortadas, nada impede quem brote a mudar o rumo, como germinalmente ocorreu com João XXIII, com Francisco Papa... Quando os afloramentos deixem de ser tão pontuais, de repente pode tudo mudar do avesso, como em quaisquer outros eventos sociais. São as revoluções, como a francesa, a comunista, com imensa turbulência, ou os movimentos, como o Renascimento, o Romantismo, tão pacíficos mas não menos inspiradores e mobilizadores. Até a Nova Era anda a fermentar algo muito paralelo...

Notícias de Amanhã – Com tanto entusiasmo, Joana Afonso, não corremos o risco de novas absolutizações, de novos totalitarismos? Na política, a novidade descambou sempre nisto, no Terror da Revolução Francesa (e nós até tivemos de defender-nos das invasões napoleónicas), na ditadura do proletariado do comunismo, violadora de todos os direitos humanos, que nem sequer nos resquícios actuais que lhe restam no mundo é capaz de mudar de rumo, de acabar com a violação descarada e sistemática dos ideais que propagandeia prosseguir. Não andamos a arriscar demais com tanta euforia?

Joana Afonso – Bem, pelo menos nos movimentos comunitário-culturais de outrora e de hoje nunca verificámos tal horror. Agora as confissões institucionalizadas foram e são culpadas disso (Cruzadas, Estado Islâmico...). É sempre possível corromper tudo, vivemos condenados à liberdade, para o bem e para o mal. Não há forma de evitá-lo em domínio nenhum. E ainda bem, que ser livre é tão bom! Valha-nos ao menos que isto é intocável na raiz. Aqui, no Além de Sofia, todavia, há um pormenor que me tocou profundamente, mais até que quaisquer propostas, modelos, leituras, teorias... E tem mesmo a ver com isto, curiosamente. Não adivinha qual é?

Notícias de Amanhã – Como, se a vejo tão entusiasmada com tudo, Joana Afonso?  Diga lá.

Joana Afonso – É que, no termo de cada carta, antes da despedida, depois de todo o alumbramento (pelo menos para mim) ao correr dela, de repente recomenda que, caso não faça sentido para alguém, não lhe toque o coração (é como eu o entendo), tem bom remédio: atire-o ao caixote do lixo! Já viu? Isto é dum desprendimento inconcebível. Quem é capaz, perante o êxtase em que tantos desvelamentos nos deixam (pelo menos comigo é assim), acolher, aceitar que pode tudo estar mal ou que, estando bem para um, para outro, ao invés, seja mal, a ponto de ser de rejeitar?! É uma atitude que me cala fundo de várias maneiras, em múltiplos sentidos. Primeiro, é o fim do dogma cristalizado. Por maior que seja a evidência, que o arroubamento individual nos firme na certeza, é de manter o pé atrás, podemos sempre andar enganados. Aliás, mesmo se não enganados, é sempre viável mais luz, mais desvelamento, outros ângulos, mais níveis inesperados, o rumo à plenitude em qualquer nível nunca termina, nunca se fecha, nunca se plenifica. É sempre errado se, deslumbrados, nos convencemos do contrário, encegueirados pela faísca da revelação que nos permitiu um vislumbre qualquer doutro mundo. Depois, esta postura permite-me e alimenta-me a liberdade interior para aderir ou reservar-me ou rejeitar. Não me submeto de vez ao definido, ao estabelecido, ao contrário dos mentores e das hierarquias institucionais. Não sou um escravo, sou o liberto por tudo isto, primeiro interiormente, depois com as manifestações externas a que aquilo me conduzir. As religiões implantadas é que se escravizam à respectiva mensagem codificada e os escravos que nelas imperam tratam de escravizar todos os mais e sempre em nome da libertação, da salvação. É a contradição imemorialmente dominante em toda a parte. Pois no Além de Sofia é ao contrário: libertador da mensageira, libertador do destinatário.

Notícias de Amanhã – É prometedor. Qualquer um, porém, poderá tornar-se fanático dele...

Joana Afonso – É o risco da liberdade, evidentemente. Mas nisto há outro fermento que contraria tal rumo. Já reparou que a indicação de que, se não me tocar, rejeito-o, implica assumir-me individualmente, eu é que tomo a responsabilidade da atitude? Não é se não estiver de acordo com o instituído, com a mentalidade, com o depósito da fé, não. É se não me tocar a mim. É um apelo claro à última instância: ninguém pode viver contra a própria consciência. Nem sequer as hierarquias religiosas se atrevem a anular este princípio ético basilar. Ora, é o que é chamado à pedra. Não é o director espiritual, o padre, o bispo, o Papa, não é o rabino nem o imã, sou eu, é cada um em seu íntimo. Acolhe-o ou põe-no de lado, em consciência. Ausculta o imo, até à derradeira instância que logre atingir, e opera a própria escolha: isto faz sentido ou não? Tal atitude não ajuda o fanatismo, tende a tolhê-lo, uma vez que as certezas não existem, os absolutos, quando singramos por aqui, são inimagináveis, a dúvida é a alfombra que pisamos perenemente. Quem absolutiza é quem não tem esta experiência. O fanático é um míope, alienado a algo ou alguém. Se for fiel a si próprio, logo a vivência íntima lhe revela quão infinitamente longe singra do Infinito, seja em que domínio for. Aquela postura do Além de Sofia em todas as despedidas diz tudo. E incarna tudo, não é?

Notícias de Amanhã – É uma atitude profundamente fecunda, também o confirmo. Parece muito simples e é duma riqueza inesperada. Navegar nas nossas profundezas tem sempre destes efeitos.

Joana Afonso – E repare num último resultado implicado naquilo: é o fim da hegemonia, das usurpações tirânicas das hierarquias. Aliás, diria mesmo que é o apelo ao fim destas: no domínio da fé não há poder sagrado, que é o que o termo significa e o que pratica pelo mundo fora. Por mais que aqui ou além se esconda, clamando que é o contrário. Só o é em atitudes individuais isoladas, por mero voluntarismo em busca de autenticidade, mas então sistematicamente desautorizado, perseguido, expulso imediatamente por toda a restante rede. Que aliás é sempre, imemorialmente, a soberba e o orgulho institucionalizados, contra todo o sentido do que seria um serviço de unidade, de amorização responsável do tear da vida.

Notícias de Amanhã – Não irá ter efeito nenhum, não é? Contra uma cristalização milenar daquelas...

Joana Afonso – Tem o resultado de em cada caso o anular. Um a um, todo os que, como eu, se reencontrarem naqueles feéricos horizontes, fá-lo-ão pelo próprio pé: é inútil, portanto, a alienação à instância pretensamente única, com pretensiosa garantia de infalível, do ditador de serviço da hierarquia. Pese embora quantos (e são de facto muitos) tentam ser o contrário e servirem deveras. A instituição não os ajuda, que não está virada para aí, nem na origem imperial romana, nem na prática dominante. A mais curiosa, todavia, é outra vertente que daquilo resulta: não podem os inquisidores condenar o Além de Sofia, uma vez que a ele próprio se condena – nem quem o escreveu se lhe vincula, de tão desprendido. Quando não lhe fizer sentido, é o próprio a atirá-lo para o lixo. Não têm, pois, os luminares ocasião para abusar do poder uma vez mais, de amordaçar, silenciar, anatematizar... Tudo atitudes aqui (como em tudo e desde sempre) inúteis, violadoras, criminosas, atentatórias contra a humanidade e contra o Espírito. Que eles, tão ridiculamente, pretendem substituir. Que palermice! Com o seu deusinho de algibeira a quererem dominar e governar o mundo. Tudo, portanto, reduzido à inutilidade, naquela esteira de controlar interioridades de fora, de domesticar, de escravizar consciências, de alienar fiéis tornados escravos deles.

Notícias de Amanhã – Pequenos pontos de vida, aqui ou além, fogos-fátuos no cemitério planetário...

Joana Afonso – Sei lá! Uma profecia polémica até prediz que o Papa actual, Francisco, irá refundar a Igreja. Pelos vistos, ele bem o quer e vira as rotinas tradicionais todas de pernas para o ar. Quem adivinha até onde é que isto pode ir? Se calhar, pegada a pegada, acaba por reencontrar as fontes de água viva. Uma espécie de revolução silenciosa persistente. Qualquer dia acordamos e já nos encontramos no lado contrário. Claro que é utopia, que bem e mal correrão sempre de mãos dadas, mas a ponta da meada enrola a formar novelo e a dobadoira gira, o tecido final pode surpreender de tão outro, na configuração que vier. É hora de ir fermentando a fornada, logo veremos que forno é o mais adequado a cozê-la e que formas as broas tomarão ao cativar cada vez mais.

Notícias de Amanhã – Talvez, talvez... Eu não acredito mas não fecho a porta. Como a raposa das uvas, espero que algum cacho maduro me finde ao alcance. Até lá...

Joana Afonso – Para mim o Além de Sofia é um cacho tão grande que é capaz de alimentar e dar de beber a uma vida inteira. E bem maduro, de tão saboroso.

Notícias de Amanhã – Dá bem para ver, Joana Afonso. Mas não quer dizer mudança institucional nenhuma. Quando muito, animará umas tantas individuais e praticamente todas fora dos sustentáculos da estrutura, como nós, povo anónimo.

Joana Afonso – Recorda-me um alerta muito justo dos tempos do Concílio Vaticano II, no contexto dos convites a outras confissões para assistirem aos trabalhos. Alguém preveniu que aquilo podia não ser nenhuma abertura, bem pelo contrário. Ali como no movimento ecuménico, o mais provável era a máquina eclesiástica absorver e assimilar tudo isto, reduzindo a novidade uma vez mais a ela própria e anulando qualquer alternativa que poderia advir de tanta boa vontade. O aparelho, como a mentalidade que protagoniza, é tão eficaz que engole, digere e anula quanto de alheio brote no caminho, antigamente a mal (com execuções, guerras, excomunhões... – sempre extermínio), agora a bem, marginalizando, excluindo, ignorando (que lhe tiraram o poder), mas sempre anulando os aguilhões, embotando os gumes, a fim de que nada faça mossa no edifício material, institucional ou mental erigido. A organização é detentora do Absoluto: tudo o mais daqui deriva. E nem mais: quando João Paulo II tentou a aproximação com a Igreja Ortodoxa (que esta acolheu cheia de boa fé), logo o Vaticano para lá remeteu um bando de missionários para irem converter aqueles hereges e resgatá-los do inferno, uma vez que não acreditam no “filioque” (que o Espírito Santo procede “também do Filho”), o pretexto da ruptura com Roma no séc. XI. É lógico, eles têm o Absoluto ali materializado numa palavrinha! Na mesma linha, o Conselho Ecuménico das Igrejas acabou por se queixar de que não há aproximação nem diálogo possível com quem tem a mania de que é detentor da Verdade e, portanto, não tem nada a aprender com ninguém: aceita participar para que a acolham e se lhe submetam, mais nada (se submetam a eles, não à Verdade, claro, mas são secularmente peritos em confundir as duas coisas).

Notícias de Amanhã – Ora aí tem, Joana Afonso. Que é que eu dizia? Se nem poderios tão enormes como esses conseguem tal fito, como sonhá-lo com o Além de Sofia? É uma ingenuidade.

Joana Afonso – De acordo. Nem eu, por mais entusiasmada que esteja, imagino tal muda. Não. É que ela anda a ocorrer paulatinamente, sem ninguém dar conta. Isto é apenas mais um cubo de fermento na fornada, cada vez mais fornida deles, oriundos de todos os lados. É mais um graveto na fogueira, só que a mim me incendeia por dentro, como outros cavacos incendeiam outros de quaisquer outros lados. Isto é planetário, não irá morrer por aqui, reconfigura tudo e todos, mesmo os que lhe andarem alheios e presumirem passar ao lado. Não, findamos, directa ou indirectamente, a ser tocados, à escala planetária. Está a ver? Antigamente um pregador, um profeta, um apóstolo ia de terra em terra, de canto para esquina, a propalar a respectiva visão, como mensagem de partilha. Hoje, não. Um livro pode correr mundo, traduzido em qualquer língua, o autor nem o imagina. Uma revelação cobre o planeta pela televisão, pela internet, nem nos apercebemos de quem atinge. E o que toca o coração dos indivíduos corre de mão em mão, é compartilhado informalmente, motivo de convivialidade, de celebrar a comunhão mútua, desperta sonhos, anima utopias. Isto transborda por todo o lado, ignora fronteiras, barreiras de línguas ou culturas, confissões ou ideologias. É verdade, os cadáveres andam-se levantando dos sepulcros. Onde as instituições religiosas os enterraram pelos séculos dos séculos e continuam a enterrar. Estes ressuscitados, porém, são cada vez mais e com mais força...

Notícias de Amanhã – Não sou tão optimista, claro. Todos os movimentos vêm, animam, esgotam-se e passam. É a História inteira a ilustrá-lo. Não há um que se salve.

Joana Afonso – É verdade. E as institucionalizações operam para evitá-lo, para que o sonho perdure no tempo. Só que fatalmente dessoram-no do espírito, desvitalizam-no, entregam o esqueleto morto ao funcionário burocrata sem alma e pronto. Requiescat in pace, amém. Sei disto. Mas agora repare. Quando o cristianismo surgiu e se foi divulgando, mormente na esteira de S. Paulo, primeiro e pioneiro, são grupúsculos insignificantes, minorias sem significado nem alcance durante dez gerações, trezentos anos, no meio da rede generalizada do politeísmo do Império Romano onde predominava, naquele tempo, a religião de Mitra. Tudo cheio de templos, sacerdotes, escritos, rituais, celebrações, obras literárias e por aí fora. Que lhes aconteceu? Hoje são objecto de estudos históricos, arqueológicos, restauradas as ruínas para regalo do turista, exploradas económica e culturalmente para o bem-estar dos povos actuais. O cristianismo, discreto, perseguido mas renitente, acabou por condená-los a isto. Foi tudo abandonado. A qualquer momento pode perfeitamente voltar a ocorrer o mesmo. Aquilo também é da história.

Notícias de Amanhã – “Aqui d’el rei!” – estou mesmo a ouvi-los gritar. Ó Joana Afonso, para onde vai remeter o princípio de que “tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha igreja” ou o ainda mais radical de que “o que unirdes sobre a terra será unido nos céus, o que desunirdes será desunido” ou o definitivo de que “as forças do inferno não prevalecerão contra ela”? Está a sugerir que a instituição poderá cair como a de Mitra caiu?! Que sorte a sua em viver neste tempo! Hoje ninguém grita: “Anátema! À fogueira!” Mas olhe que ainda não decorreu muito, o auto-de-fé que queimou no Pátio das Cebolas, em Lisboa, António José da Silva, o Judeu, o nosso maior dramaturgo do séc. XVIII, foi naquela época, ainda tão próxima, e um dos herdeiros da bolorenta postura inquisitorial veio a Fátima apunhalar João Paulo II, em nossos dias. Eles andam por aí. Não se precaveja, não, que ainda irá ver o que lhe acontece!

Joana Afonso – Ora, importa-me muito! Nós não somos ninguém. Agora esfaquear o Papa... Mas repare como é possível perverter tudo. O inciso “tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha igreja” é um acrescento tardio, o jogo de palavras só faz sentido em latim (e nas línguas novi-latinas), não tem paralelo em hebraico nem grego, línguas originais. E decerto foi acrescentado para sublinhar o entendimento fisicalista rasteirinho, sem qualquer respeito pelo registo, pedra angular, “o meu reino não é deste mundo”. Acolho tudo isto de barato. Mas tratemos de levantar um pouco o véu. O Pedro sobre que a igreja se edifica é aquele que, perante os judaizantes que pretendiam submeter os crentes à lei mosaica, recusa com o fundamento de que não pode opor-se ao Espírito que opera nos crentes sem tal sujeição. É o mesmo Pedro que é admoestado por Paulo quando, perante fiéis oriundos do judaísmo, desata a comportar-se ao contrário, como se fora requerido cumprir a lei antiga. A igreja que sobre ele se constrói é esta, a que não obedece às práticas de antanho, por muito venerandas que sejam, mas apenas ao Espírito, onde quer e como quer que se manifeste. Ele próprio se pode enganar e trair mas arrepende-se e refaz o caminho pelo trilho certo, como Paulo confere. Posto isto, então como é? A igreja é por onde e com quem o Espírito for, ou por onde ordenar a lei, a tradição, a rotina, a instituição? Os judaizantes só precisaram de esperar pela morte de Pedro e Paulo, nunca se converteram, tornaram-se cristianizantes: onde quer que uma comunidade adopte uma regra, um rito, uma rotina, tomam perante estes a mesma atitude que perante a lei mosaica – é obrigatória, sob pena de se ficar fora da igreja e “fora da igreja não há salvação”. O Espírito e as obras dele? Que é isso? Já temos aqui as respostas acabadas, não há mais conversa! E lá vão os judeus manuelinos baptizar-se a correr e ficam logo “cristãos novos”, livres da perseguição; e lá vai S. Francisco Xavier baptizar em massa indianos, chineses e japoneses e está tudo feito, salvou-os às multidões, embora nada tenha mudado neles nem sido compreendido... Valha-nos Deus! Estes fisicalistas não entenderão nunca que o reino de Deus não é deste mundo? Nem sequer neles mesmos nenhum se identifica com o próprio corpo: é o corpo deles, não são eles. Como é que se atrevem a uma confusão destas com o Espírito, com Deus? Que cegueira é esta? Qualquer epifania é Deus incarnado, já não precisamos mais dele para nada? Temo-lo ali em carne e osso, é? A revelação basta, já não precisamos de quem nela se revela? Mas era para chegar a ele... Como é que é isto? Não há maneira de caírem em si, nem dois mil anos depois?! E andam aqui a escravizar a Humanidade inteira e não reparam no que continuam a fazer? Que boa fé é esta que nem perante a desgraça dos frutos que produz recua? A que espírito maldito correm a obedecer? Pior, com a pretensão de dominar tudo, da igreja ao mundo. Quem é esta gente que se diz fiel, ainda por cima arrogando-se como a única que o é deveras, mais, com direito de assassinar até quem não for da mesma cor?! Grande espiritualidade, não há dúvida! Sempre assassinos, história além... Ou então, não o sendo (como hoje em regra não podem) muito lamentando não o poderem ser: Cruzadas, guerra santa, Inqusição... – isso é que eram bons tempos! Não têm emenda...

Notícias de Amanhã – Chegue-lhes, Joana Afonso! Estou a gostar disto. As demais citações que fiz têm para si outro sentido, não é? Diga, diga.

Joana Afonso – Evidentemente. “O que unirdes na terra será unido no céu, o que desunirdes será desunido” é um alerta para um dever, não é um poder. E bastou esta ínfima troca de perspectiva para tudo findar inteiramente pervertido. Primeiro, aquilo é dirigido a todo o indivíduo, nem sequer apenas aos crentes, muito menos aos hierarcas (e logo como mais um ceptro!). Quando o poder sobe à cabeça, não tem limites, em tudo encontra a glorificação dele próprio. Foi o que ali ocorreu. O alerta é muito simples e evidente, para quem contacta com o mundo para lá da morte e com todos os que ali para a eternidade sobrevivem (e connosco sobrevivem a partir do Além). É que todos os laços e afectos que cultivaram, todas as solidariedades que alimentaram, os amores e amizades que desenvolveram, a equidade comunitária, colectiva e mundial que promoveram, tudo, numa palavra, que uniram, depois da morte se mantém com eles unido, é com que convivem, partilham, comungam. É com que vivem em plenitude (até onde desenvolveram na vida corpórea tal potencialidade). E continuam a pugnar pela união em todos aqueles níveis e domínios, agora a partir das tendências íntimas de cada um de nós, o apelo das profundezas do imo, onde convergem com o inefável ímã do Espírito do Universo, dele mensageiros privilegiados. Olhe, conto-lhe um caso que acabou de me ocorrer. O meu pai, em vida, sempre teve um fraquinho particular pelo meu filho mais velho. Há semanas, este pediu-me ajuda para encontrar quem lhe reparasse os autoclismos que se lhe tinham quebrado lá em casa, à semelhança do que, há um ano atrás, eu lhe tinha feito com a troca do esquentador. Depois dum contacto que falhou, aquilo esqueceu-me por inteiro. Correram uns dias. De repente, ao acordar uma manhã, aparece-me o meu pai, com o rosto perfeitamente nítido, mostra-me a seguir o esquentador e, logo após, os dois autoclismos avariados. Eu andava tão absorvida com outras preocupações que nem entendi o que ele pretendia. Só quando contei a visão ao meu marido é que ele mo lembrou. Com um novo telefonema, encontrei um profissional de boas referências e em pouco tempo tudo foi reparado. E pronto. Está a ver o que é “o que unires ficará unido”? É tão linear que admira a distorção arrevesada que lhe vêm imemorialmente dando os doentes obcecados pelo poder. Em todas as religiões, ainda por cima. E é tão bom sabermos e vivenciarmos que continuamos todos juntos depois da vida física como antes! Que continuamos a contar com eles sempre a apoiar-nos! E como roubam a toda a gente esta alegria, este conforto, os mentecaptos que apenas cuidam dos ouropéis da própria glória falsa e oca! Que pretensão mais absurda a destes, a julgarem que daqui andam a talhar os destinos de Além! Eles são os donos do Céu! Umas palavras (numa língua morta, para ser mais mágico), uns gestos cabalísticos – e ei-los dotados, sem mais, do poder de mandar em Deus e no que ele entender destinar. É espantoso no que caem, pelos séculos dos séculos! Mas, já agora, o reverso da medalha: “O que desligardes findará desligado”. Há tempos vi uma reportagem dum casal novo que alugou por tuta e meia uma moradia abandonada, à margem dum lago, rodeada de campo e floresta, um cenário idílico. Habitavam-na há poucos meses mas viviam desesperados: não tinham uma noite descansada, com pesadelos e mais pesadelos aterrorizadores em que eram ameaçados de morte e compelidos a fugir. Como antes nunca lhes ocorrera tal conjuntura na vida, interrogaram-se se não seria algo com a casa. Chamaram um médium mais capaz, por mor das dúvidas, a ver se ele intuiria ou veria o que os andaria a infernizar. O pobre homem aguentou três horas em meditação turbulenta e terminou exausto mas satisfeito, embora ainda em dúvida. Contou-lhes o que ocorrera com ele: encontrou uma entidade dum homem falecido extremamente violento que quis logo ali matá-lo, bem como a eles e, perante a impossibilidade em que vivia de o conseguir, exigia a expulsão de todos, dele e do casal, porque a casa era sua e não toleraria ali ninguém. Durante aquelas horas tentara tudo para aniquilar o médium, aterrorizá-lo, atingi-lo, sempre ingloriamente, claro, repudiando a ordem persistente deste para sair, abandonar a moradia, deixá-lo e aos moradores em paz, sabendo que não aguentaria indefinidamente se o meditador não parasse nunca de lhe ordenar o mesmo. Pois foram três horas de luta de almas e ele acabou por fugir e desaparecer. O médium não podia garantir, evidentemente, que não voltaria. Por outro lado, não fazia ideia nenhuma de quem era tal indivíduo que do outro lado da morte obrava assim. Posteriormente, o casal investigou na comunicação local e nos registos da polícia, bem como na memória de habitantes dali mais antigos e descobriu: um assassino serial, responsável por mais de sessenta homicídios, refugiara-se lá, a polícia havia-o localizado e cercado, ele resistira e contra-atacara, tendo sido então abatido, muitos anos atrás. Desde então ninguém aguentara largo tempo na casa, julgavam eles que por mor da memória negra de tal episódio. Findara abandonada há muito, até o novo casal se ter atrevido. Tinham guardado segredo disto para os não perturbar. Mal aqueles imaginavam, portanto, o que ocorria! E aí está: o que desligares findará desligado. O bandido não logra matar mais, para ali tolhido na postura de ódio agressivo, apenas influi negativamente nos inquilinos que se limitam a afastar dali, mera mosca que afugentam da cara e da vida, e ele não logra nunca uma ponta de ligação, de amizade, de solidariedade, de amor, em resumo, de felicidade, de plenitude. Ali encurralado, acaba expulso, reduzida a nada a pretensão de reter até aquele reduto final. Reduzido a um resquício de nada, mas vivo. E pronto, aqui temos o inferno. Que opera desde um assassino serial até um papa qualquer que actue do mesmo modo (o que na Idade Média mandou matar o rival dele pode, porventura, emparceirar com este bandido, não lhe vale de nada ter sido hierarca).

Notícias de Amanhã – Chegámos aos antípodas da leitura tradicional, Joana Afonso. E não há dúvida, faz muito mais sentido. O curioso é que espatifa a pedra angular de todo o poder eclesiástico. Por este ângulo, não há motivo nenhum para existir. Se calhar até o Vaticano como Estado deveria extinguir-se, entregar tudo à Itália a que pertence. Uma religião ter um Estado seu é o reverso dum Estado confessional, a mesma asneira vivida ao contrário. É estranho como nunca foi encarado como um bem reduzir os Estados Pontifícios ao enclave actual. Pelo contrário, foi sempre com protestos e condenações que a Igreja foi reduzida ao resquício que detém. Quão longe de prescindir voluntariamente dele, por exigência de autenticidade espiritual! Nem uma voz, que eu saiba. Benditos tempos estes, que, se foram outros, quem perderia a voz estou mesmo a ver quem seria, não é verdade?

Joana Afonso – Ora aí tem porque não houve nenhuma voz: pois se são todas sistematicamente estranguladas há séculos! Os fariseus tomaram conta de tudo em cada religião, com vigilância suprema e sem qualquer escrúpulo em recorrer a extremos, da tortura à morte, para eternizar a ditadura. Não é só contra o Vaticano II, é universal e historicamente entranhado. Aliás, é assim que entendem dar corpo à promessa de que “o inferno não prevalecerá contra ela”, a Igreja. Perdurará para a eternidade. Todos os ditadores são iguais: também Hitler fundou “o Reich dos mil anos” que se esbarrondou um decénio depois, arrastando atrás um cortejo de 50 milhões de mortos. Os das instituições eclesiásticas de seja qual for a religião não podem ter conta, acompanham a humanidade desde sempre. E não há nunca arrependimento nenhum porque é tudo em nome de Deus e, com tal escudo, tornam-se dificilmente atacáveis por terceiros, como também resulta sem rebate de consciência dos próprios (“O Profeta está vingado!” – exclamava convicto e satisfeito um assassino do “Charlie Hebdo”).

Notícias de Amanhã – Mas então qual é o sentido daquilo?

Joana Afonso - Primeiro, não é promessa nenhuma, é uma declaração de facto: as portas do inferno (isto é, do inferior, o concretizado, o instituído, o materializado) nunca prevalecerão contra a Igreja (isto é, a comunhão dos fiéis no Espírito). O Espírito, portanto, prevalecerá sempre e para sempre, contra qualquer pretensão dum empreendimento, uma institucionalização, uma realização... Isto são apenas as portas por onde obrigatoriamente o Espírito toma corpo no mundo, nunca poderão tomar o lugar dele e, sempre que o pretenderem, serão abolidas, postergadas. Foi sempre assim e continuará a ser pela história da humanidade além. O Inferno mora em nossas práticas e atitudes quando a elas próprias se bastam, se autonomizam do apetite de infinitude de que partiram, e, satisfeitas, não ligam mais ao Infinito a que pretendiam ir dando corpo, semeando Céu na Terra. Trocado por elas, serão por ele cilindradas. E o reverso da medalha: sempre que o Espírito anime e reconverta permanentemente o movimento institucionalizador, empreendedor, este permanecerá indefinidamente: será tal Igreja então a luz, o corpo de Deus na Terra, a eternidade no tempo. Duma maneira ou doutra, a espiritualidade prevalecerá, seja como interioridade individual a tomar forma no projecto próprio de vida, seja comunitariamente no que formos pondo de pé, seja colectivamente, nos países e no mundo. As velharias caducas cairão, as novidades onde formos reconhecendo sentido substitui-las-ão em todos os domínios, também na Igreja, embora ande arredia disto há séculos e séculos.

Notícias de Amanhã – É uma leitura do texto que, fazendo luz naquela referência, nunca foi prevalente, nem tinha notícia dela, nunca a encontrei em lado nenhum: sempre aquilo foi entendido como referido à igreja institucional, à organização posta de pé.

Joana Afonso – Aí está o fisicalismo como vício permanente. Já os judeus entenderam que a promessa de Iavé só se cumpriria num Estado político em que os israelitas dominariam o mundo. Ainda os ortodoxos entre eles vão por aí hoje em dia. Judas Iscariotes também compreendia assim, como zelota, a mensagem de Jesus. Quando o vendeu, se calhar foi na esperança de que ele puxasse dos galões e arrasasse os romanos com legiões celestiais mágicas. Como tentação, todos a temos. Cair nela, dominar tudo  a instituição eclesiástica de qualquer religião, como ocorre milenarmente, é que é grave. Jesus foi crucificado por instigação dos que em tal era dominavam o judaísmo com a asfixia de regras e tradições esclerosadas, tomadas por eles como o cumprimento da vontade divina. Aguardavam a consumação do reino e, enquanto aguardavam, aquilo era Iavé presente. Rituais, celebrações, leis cumpridas à letra... – tudo concretizações. Quem vem falar do Espírito, do íntimo que incarna em tudo é, obviamente, crucificado. Que é que isto tem a ver com aquilo, para eles; que é que aquilo tem a ver com isto, para Jesus? Então como agora, como sempre. E os cristos de hoje em dia continuarão a ser crucificados da mesma ou doutra maneira, mas os motivos são iguais e a lógica por trás, também. Muito custa convencer-se e nascer de novo! E, todavia, é tão nitidamente linear!... Claro que o problema é que tem de ser permanente e quem espera desespera. Depois olha para trás e vê tanto caminho corrido, individual e comunitariamente...

Notícias de Amanhã – Mas o caminho fala da meta, não é? Senão, é caminho para onde? Não chega a ser caminho nenhum.

Joana Afonso – Diz muito bem. É uma degradação curiosa. Já reparou no itinerário gradualmente decadente, tão lento que mal daremos por ele? Os peregrinos de Fátima, primeiro iam para lá por estradas e carreiros, sem apoio de ninguém. Depois, ao repetirem mês a mês os trilhos, com muitos a ferirem-se, a adoecerem, a requerer vitualhas, sedentos de água e por aí fora, muita gente tratou de se mobilizar para ajudar. Sinalizaram-se itinerários, montaram-se tendas clínicas de apoio, cozinhas improvisadas de refeições rápidas... Com a permanência, entra gradualmente a rede de serviços de saúde, distribuem-se cafés e restaurantes pelas linhas além, hotéis de passagem, serviços de recuperação. Depois disto, com a permanência e os tempos mortos entre peregrinações, à falta de peregrinos, passam a atender quenquer que seja que o requeira. Finalmente, são motivo de curiosidade e de visita para qualquer turista, explorador ou mero passante: aquelas origens primitivas são doravante mais um motivo atractivo para toda a gente que não só anima qualquer um como reactiva todo o negócio. No fim, Fátima já não serve para nada, já ninguém lá vai nem o procura, os marcos do caminho valem por eles próprios, dão gozo cultural, prandial e de recreio. Se aparecer ali alguém a enxotar a clientela para o Santuário será corrido, que só vem estragar o negócio e pôr em risco a vidinha de toda a gente, donos, empregados, utentes, comunidades em redor que disto vivem, o tecido inteiro de famílias e mentalidades. E tudo finda consumado. Eu adorei viver, em tempos, ao lado do Templo de Diana, em Évora, e dá-me gozo visitar o templo de Esculápio em Miróbriga (Santiago do Cacém), de vez em quando. Já não têm fiéis nem peregrinos, milhares de anos corridos, mas continuam a animar turisticamente as comunidades de hoje. É o destino de quem cristalizou por lá numa fórmula, teologia, institucionalização qualquer. É o que ocorrerá nas religiões actuais pelo rumo em que renitentes vão. Neste sentido, “as portas do inferno não prevalecerão contra ela” é um alerta e um aviso: ou deixam o Espírito renovar permanentemente todas as coisas, ou devirão ruínas como todas as de outrora, tornadas que são em meras portas do inferno e não do Espírito. O Céu afasta-se delas, devindas inúteis para ele e vai pregar a outras freguesias. Nunca prevalecerão contra ele.

Notícias de Amanhã – Quer dizer que o abandono generalizado de fiéis é um sinal de que elas não prestam, andam a deixar-se ultrapassar. O Espírito continua a empurrar a Humanidade, obedeçam-lhe elas ou não. E vai-as abandonando. Que grande heresia, Joana Afonso!

Joana Afonso – O Espírito nunca as abandona como não abandona ninguém. Elas, as religiões, é que lhe fazem milenarmente ouvidos moucos e dele se afastam mais e mais, à medida que os tempos correm, agrilhoando-se a usos e modelos de antanho que findam fechados neles próprios. Nunca entenderam isto e as actuais, na mentalidade nelas largamente hegemónica (quando não despótica), também não. O destino que selou as de então selará as de agora, se não mudarem de vida. Pouco importa que narcisicamente se auto-adorem ao espelho como grandiosas ou intocáveis. Deus está-se nas tintas para as palermices destes pretensiosos. A igreja institucional não é a Igreja corpo místico de Cristo: esta prevalecerá para sempre, aquela irá parar ao caixote do lixo se não decidir ganhar juízo. A confusão das duas é a burla dos fariseus actuais. E continua a crucificar Cristo.