QUARTA  ENTREVISTA

 

Coro dos Aflitos

 

Notícias de Amanhã – Desta vez, Joana Afonso, mudamos de campo? Por onde é que iremos desbravar caminhos novos?

Joana Afonso – Pelo Coro dos Aflitos. Vamos para o extremo oposto da ciência, o domínio da fé e das religiões.

Notícias de Amanhã – Ah! Então iremos ter paz e amor e graça e perdão e coisas quejandas...

Joana Afonso – Não, não, bem pelo contrário. Aqui é que maiormente se confirma que confiar de bandeja todo o bem-querer e respectivos derivados a alguém, alguma organização ou instituição, pior ainda a uma igreja (sinagoga ou mesquita ou qualquer outra é o mesmo), só tem como resultado pô-los a coberto de qualquer escrutínio ou crítica, o que findará por dar cobertura a todas as violações do ponto de partida, tornando-as impunes. E o mais grave é que irá tudo encoberto, interpretado como benesse do caminho do Bem. Não acredita? Veja o que ocorreu no Banco do Vaticano: foi paulatinamente ocupado por uma rede da máfia que englobou até cardeais, todos empenhados numa roubalheira pia e tão ferreamente disfarçados que até assassinatos cometeram para não serem desmascarados. É onde leva sempre confiar às cegas.

Notícias de Amanhã – Então qual é o rumo?

Joana Afonso – É o da espiritualidade na vivência autêntica dela, a vida interior e o respectivo rumo construtivo., o caminho da fé. Olhe, principio logo pelo que motivou o Coro dos Aflitos. Foi o Papa que pediu a todos os crentes para lhe referirem ideias de como renovar a Igreja, lembra-se? Este livro é uma pequena achega, mas que poderia inovar de raiz alguns pendores. À partida, todavia, o que importa sublinhar é a novidade do pedido. Já reparou? Quando é que um Papa pediu ajuda à comunidade? Ainda por cima, indiferenciadamente – tanto a bispos, padres, frades, freiras como a todo o tipo de leigos? Não há memória... Até João XXIII, o bonacheirão do Concílio Vaticano II, só convidou para este, entre o laicado, um perdido Jean Guitton, que me lembre... Agora apelar a todos para o renovamento?!...

Notícias de Amanhã – Bem, se for para inovar a sério, ou envolve a comunidade inteira ou nada feito. Desafios destes implicam gerações, numa lentidão exasperante. E é quando operam. No geral, até falham, mesmo com apelos colectivos, embora a muitas vozes. Estou a lembrar-me de Romain Rolland, Prémio Nobel de Literatura nos primórdios do século anterior, e do seu monumental romance Jean Christophe, com que tentou contribuir para reanimar a mentalidade balofa e sem utopias da Europa de então, a fim de evitar a I Grande Guerra já entrevista no horizonte. Nem ele nem todos os mais conseguiram nada, houve e conflagração, pouco os povos aprenderam, caíram na segunda e sei lá o que nos espera! Se calhar só adiámos porque às três é de vez, no dizer do povo: o conflito nuclear acabaria com todos nós.

Joana Afonso – Pois, referiu a vertente mais construtiva, aparentemente, e a mais óbvia para a comunidade dos fiéis. Mas é outra a mais relevante e de alcance inesperado. É que aquele apelo quebra o monopólio da hierarquia eclesiástica sobre a Igreja inteira. Esta rede dos ordenados domina tudo multissecularmente, foi tentacularmente alargando o poder, anulando o laicado, chamando a ela, em exclusivo, a teologia, a vivência mística, a definição dogmática e moral, até se pretender infalível na infalibilidade papal. Não tolera nenhuma restrição a este pendor: quando Hans Küng reformulou o infalível como veracidade, aqui d’el rei! Foi demitido, expulso, pouco faltou para o excomungar. E agora o Papa, sem mais nem menos, vem a público pedir a todos! Então, logicamente, não é o iluminado, o que sabe como é, o que guia o rebanho de irracionais domésticos animalejos que somos nós (e tanto mais vulneráveis e erráticos quanto mais longe do topo hierárquico), ele ignora, afinal, os caminhos a propor e pede, simples, humilde e humanamente divino, que quem tenha alguma luz a partilhe com ele. Já viu como isto vira a Igreja Católica toda de pernas para o ar? E muito pacificamente, sem ninguém dar por ela, como a atitude mais normal deste mundo. Que é o que deveras é, por isso é que é espiritual, por isso é que é um vislumbre do divino a furar as trevas dos fisicalistas que julgam que tudo está consumado, que só temos de preservar o depósito da fé que há séculos anda cada vez mais vazio, furado milenarmente por estas atitudes deles, os usurpadores da fé e dos sempre inesperados caminhos dela. Para estes, os mapas já são todos sabidos, são os já trilhados alguma vez, é tudo conhecido, quer dizer, são porta-vozes dos mortos. Ora, quem não sabe é porque quer a vida e o desafio do mar ignoto que ela cada dia nos traz. Quer um mundo novo num novo mundo. Julgam que está tudo por fazer, nada, pois, está consumado. Para os bem instalados que dominam a Igreja toda, que consumição! Era tudo tão bom! Até foram antigamente uma classe privilegiada, o clero. O indefectível aliado dos demais privilegiados do mundo, a nobreza. Durante milénios. E continuam denodadamente a tentá-lo, sempre sentados na cadeira do poder. Ora, um gesto tão simples e natural do Papa desautoriza tudo isto! O caminho é outro, o espírito não caminha por ali.

Notícias de Amanhã – Ó Joana Afonso, você vê cada coisa! Mas faz todo o sentido, é verdade.

Joana Afonso – Os que não entenderam nem acataram a atitude papal repetem hoje o Templo e o Sinédrio dos tempos de Jesus Cristo, continuam a rasgar as vestes e a condená-lo à crucificação, aprisionados pelas benesses da tradição, alheando-se das misérias e crimes que encobre e de que lavam as mãos como Pilatos. É sempre o mesmo, noutro contexto, com outra linguagem, outros panejamentos.

Notícias de Amanhã – É isto o Coro dos Aflitos?

Joana Afonso – Ah, não, não! Apenas responde ao apelo, mais nada. Recobre, todavia, este itinerário, evidentemente. Não vai pelo outro.

Notícias de Amanhã – Então é um desafio para dentro da Igreja. Importará a pouca gente, não?

Joana Afonso – Eu diria que é para dentro, de modo que venha a sério cá para fora. Engloba todos e, se for acolhido e tomar corpo no mundo, mexerá mesmo com a Humanidade inteira. Não acredita? Eu sei que os católicos são uma minoria, mesmo cristãos, sendo mais, continuam a pesar pouco à escala planetária. Mais ainda com o crescendo do agnosticismo e do ateísmo por todo o lado. Mas essa é mesmo a questão: porque haverá uma sangria destas, multissecular e constante? E porque é que, de repente, durante o Concílio Vaticano II, houve uma onda gigantesca de entusiasmo, logo abafada pelo pós-concílio, com as medidas para retomar todas as rotinas, modelos, concepções e práticas pré-conciliares? Os remendozinhos introduzidos só serviram para encobrir as feridas, mataram toda a revitalização e, com mais ou menos solavancos, a sangria de crentes continua inestancável. E porque é que movimentos e seitas com algum carisma logo arrastam multidões, mesmo que acabem como fogos-fátuos mal o combustível (os mentores, as ideias...) se esgota? A fome humana por este pendor de realização, a abertura ao Infinito, mais os reajustamentos que implica na nossa mentalidade e atitudes são os nossos alicerces mais profundos e, conseguintemente, mais fecundos e apelativos. Logo, constituem, por natureza, os mais mobilizadores. Como é que mobilizam então tão pouco e, ao invés, desmobilizam cada vez mais?

Notícias de Amanhã – O Coro dos Aflitos é a listagem de modelos de mobilização?

Joana Afonso – Ai, não! Aqui, como em tudo, há uma ambiguidade. Qualquer pista pode ser usada para bem ou para mal. E podemos sempre organizar-nos para um ou outro lado. Com isto geramos modelos, organizações, instituições que servirão num ou noutro rumo, não é? Mesmo o melhor pode sempre ser pervertido. Foi assim que acabámos a fazer Cruzadas, a erguer a Inquisição, a pegar em armas nas guerras de religião. Não é a via, é a corrupção dela. O pós-concílio não é a via também, é uma droga para adormecermos em paz pelo mundo inteiro. É o fruto da não-conversão, ao invés daquilo a que apelavam os teólogos e documentos conciliares.

Notícias de Amanhã – Mas iniciativas de mobilizar multidões desmultiplicaram-se. João Paulo II correu não sei quantas voltas ao mundo até à morte.

Joana Afonso – De facto. Foi infatigável. Mas nunca entendeu até onde as mudas teriam de ir, na mentalidade, nas teologias, nas práticas e nos organismos criados ou a criar. Agiu sempre em conformidade com a ordem implantada, nunca a reformulá-la e, menos ainda, a criar outra em lugar dela. Arrebanhou multidões para dentro da Igreja e, quando as despediu, foi para irem arrebanhar mais para dentro do redil. Nunca significou mais do que isto. Ora, já vimos que é o que acaba a decepcionar toda a gente, uma vez desgastada a febre dos entusiasmos: não há nada de novo nem significativo que a alimente, menos ainda que alimente a vida e os respectivos inesperados. É, no fundo, uma visita às catacumbas: por mais elucidativa que seja de nossos mais lídimos maiores, por mais que isto maravilhe os turistas com os luminares de antanho, a verdade é que nos não traz pão para a boca de corpos e almas, nem nos cura as feridas, nem evita o contágio das epidemias que assolarem o mundo...

Notícias de Amanhã – Estou a ver: uma Igreja para dentro ou uma Igreja para fora. Mesmo quando saímos, pode ser para reconduzir os tresmalhados ao redil. Faz-me lembrar aqueles progenitores super-protectores ou as mães-galinhas ou os medrosos demais que até procuram os filhos por tudo quanto é sítio, nunca os abandonam, preocupados e aflitos, mas é sempre só para os encurralarem entre quatro paredes, prisioneiros defendidos do mundo aterrorizador, numa perene menoridade desarmada, inapta para dar conta de si, realizar-se, investir em sonhos, pôr a caminho utopias, vítimas duma infantilização que os acompanha até à morte, em tantos casos!

Joana Afonso – Pois, muito bem visto. E é o que ocorre em todas as religiões, não é apenas na católica ou entre cristãos. Uma vez institucionalizadas, é isto. Foi milenarmente com os judeus, lemo-lo na Bíblia, na sorte desgraçada dos profetas (a culminar com Jesus), os porta-vozes dos anseios de saltar para o meio do mundo e dar corpo aos sonhos, modelar ideais. São todos, em regra, perseguidos e mortos. Jesus sobreviveu três anos, não é? Mas com muçulmanos, budistas, hinduístas ou quenquer que seja é idêntico. É uma constante da história, milenarmente ilustrada. E, obviamente, contemporaneamente vivida em todo o lado, sem os protagonistas darem pelo desvio, cheios de generosa boa-fé, mais ou menos assassina, conforme a época. Letal, porém, é sempre. Não é apenas no âmbito da família super-protectora que as perdas pelo infantilismo são notórias. Quando é à escala dos biliões e biliões de indivíduos pela Terra inteira, a derrocada é incontável, até porque não há forma de a comparar com quem está bem, somos todos vítimas, continuamos espiritualmente infantis, creiamo-lo ou não. E com este infantilismo ardorosamente cultivado por toda a teia da hierarquia eclesiástica, reduplicada pelo paralelo do monaquismo de todos os pendores. Sempre a pretexto de nos defenderem do diabo e do inferno, com a melhor das consciências, em geral. Quando o poder é totalitário redunda sempre nisto e é dificílima a denúncia. É que não o farão por mal e crêem sinceramente ser porta-vozes de Deus. Como os assassinos dos profetas, como os assassinos de Jesus: o que propugnavam estoutros não se enquadrava no que aqueles tinham em mente, no que recolhiam da tradição, logo...

Notícias de Amanhã – Se calhar podemos comparar crentes com ateus (e agnósticos) que sejam humanistas ou humanitários. Hoje em todo o lado ombreamos uns com os outros. Quem é que viverá a respectiva vida interior mais a sério? O incréu ou o crendeiro?

Joana Afonso – Boa! Posta nestes termos é confrangedora a comparação: os melhores de cada lado dão as mãos e caminham juntos, sem ligar àquelas ligações. Os demais, porém, metem-me pena. Já reparou no modo atrabiliário com que defendem posições bolorentas e desumanas os crentes telecomandados pelas hierarquias? É no direito à morte assistida, no direito ao aborto, na descriminalização do consumo de drogas, na liberdade religiosa, no casamento homossexual, no controlo da natalidade... Só tomam posições medievais, insensíveis a qualquer contexto novo, à muda comunitária de prioridades e de afectos. Ou melhor, incapazes de auscultarem o que no íntimo sentem, para onde ele os encaminha, passam o tempo a racionalizar atitudes retrógradas, a inventar razões fingidas para o insustentável, sempre a esconder que é por motivos religiosos inconfessáveis (e falsos) que irão por ali, sempre envergonhados de andarem partidos ao meio, metade no mundo, metade na capelinha, tornados vozes do dono, alienados. Mas sempre aplaudidos pela inaudita coragem de serem inautênticos, ecos do alheio braço estendido (e escondido) do poder totalitário pretensamente espiritual (e, na realidade, completamente falsificado). Isto não tem espiritualidade nenhuma, é a traição completa dela. Nem uns nem outros se dão conta?!

Notícias de Amanhã – E é por aí que vai o Coro dos Aflitos? Eu tenho uma dúvida: chamar o rebanho para o redil, soltá-lo na pastagem são dois momentos na pastorícia como em qualquer movimento social, da cultura ao trabalho, à religião. Isto configura mais uma das dialécticas das que tudo nos estruturam na vida. Não tem de ser também aqui o mesmo? Não é apenas jogar os crentes às feras ou é?

Joana Afonso – Tem toda a razão. O Coro dos Aflitos aponta como recriar o dinamismo entre os dois pólos em múltiplas vertentes. É de facto uma dinâmica dialéctica que deveria presidir à vida interior de cada um, polarizada entre recolher o que de fora lhe ecoa no íntimo e faz sentido para o indivíduo em causa, e aquilo que pratica e entrega ao mundo, nas múltiplas freimas do dia-a-dia. Isto é que seria sadio, não o colocar-se entre parêntesis, anular-se, eliminar qualquer sensibilidade e juízo próprio, para ser apenas o fiel braço estendido doutrem, por mais sacralizado que se lhe apresente. Alienação não é espiritualidade. Continuar com a lógica da cristandade, doravante encapotada, a pretender por terceiros manipulados que a Igreja mande em tudo às escondidas é uma duplicidade, uma falta de franqueza e de lisura, uma canalhice. Em resumo, uma traição ética. Mais uma perversão, a coberto do intocável escudo do sagrado. É uma violação do espírito, nunca uma realização dele.

Notícias de Amanhã – Mas se só bater nesse ponto...

Joana Afonso – Mas que alternativa resta? Pois se continuamos em ditadura multimilenar (as coisas no princípio não eram assim...), onde nos podemos centrar para derrubá-la? Não é decerto ir com jeitinho falar aos prepotentes que perverteram e continuam a corromper tudo: “Vá lá, dite a excomunhãozinha com bons modos, mande a carneirada escornear com carinho.” Não. Temos de nos centrar na denúncia, na libertação dos escravos acorrentados por dentro das consciências, temos de gritar pelo respeito do íntimo de cada um por cima dos telhados, até conseguirmos o reequilíbrio dos dois pólos, o da interioridade individual e o do mundo exterior, do qual faz parte toda e qualquer organização eclesiástica. Esta não é, nunca foi nem será nunca porta-voz do espírito senão nos casos em que em concreto o lograr ser. Como organização é tão pecaminosa e tão virtuosa como qualquer realidade do mundo humano. A ambiguidade é insuperável por natureza. Escamoteá-lo é uma aldrabice e sempre uma traição ao espírito. A vida interior de cada um nunca se compadece com isto, tem de denunciá-lo e resistir-lhe, senão também ela não é autêntica, mas uma burla. Não podemos, pois, abordar a criativa bipolaridade dialéctica enquanto um pólo continua a aniquilar o outro. O Coro dos Aflitos não tem alternativa, a igreja institucional não se converte, há séculos e séculos triunfalista, prepotente, aniquiladora de qualquer poder que se lhe contraponha. O político só logrou autonomizar-se desta aberração pela força, que ela não mostra ceder doutra maneira. Agora a consciência individual como o poderá operar? Até agora apenas pelo protesto do ateísmo e do agnosticismo. É um movimento informal multissecular, deveras muito espiritual, mas, de alguma maneira, perneta: amputou-se até agora da espiritualidade, confundida com os receituários e liturgias religiosos de qualquer pendor. Apenas há poucos decénios apareceu e se espalha mundo fora todo um movimento de reespiritualização da vida à margem de qualquer confissão. Demorou séculos mas até que enfim que indivíduos, grupos e comunidades finalmente se podem reencontrar até à profundeza do imo de cada um – sem donos! Isto, sim, é espiritualidade que qualquer religião deveria fomentar mas que não ocorre com nenhuma. Até agora, evidentemente. Mas têm muito que reconverter-se até o entenderem. Não é para amanhã. Todas arvoram o respectivo deusinho de bolso e é o único verdadeiro, não é? As pilhas do artefacto prometem durar e durar, pelo menos nas mais longamente enraizadas.

Notícias de Amanhã – Fora de ironias, o que mais me aflige e ao mundo, neste domínio, é o extremismo islamita, com o terrorismo, o Estado Islâmico... O Coro dos Aflitos, sendo para a Igreja Católica, é um tiro ao lado quanto a isto, não é? O Papa não tem nada nem pode ter com aquilo. São outros...

Joana Afonso – Por um lado diria que sim, por outro, não. É que as religiões tendem a imitar-se. E tanto mais quanto mais afins e mais dão nas vistas. Neste aspecto, como a Católica é a maior de todas numericamente e, somada à Ortodoxa mais às Protestantes-Evangélicas, ultrapassam a quantidade de todas as mais, o mimetismo desta região demográfica é poderoso. Operam como exemplo com peso, primeiro para o Islão que comunga com raízes comuns, depois com o budismo e o hinduísmo. Até o judaísmo, sempre tendencialmente refechado sobre ele próprio, sofre uma diluição considerável nas franjas dele com o convívio com aqueloutras comunidades e mentalidades.

Notícias de Amanhã – Dei-me conta disso quando li, anos atrás, A Nudez de Tua Filha (Myron S. Kaufmann). Com o aumento da tolerância mútua e da convivialidade entre indivíduos, povos e culturas é inevitável, mesmo para os mais refechados e anquilosados, como para os triunfalistas que carregam Deus na barriga. O movimento ecuménico ilustra-o também.

Joana Afonso – Exactamente. Alguns aspectos são gritantes. Não há nenhuma igreja evangélica que se não organize hierarquicamente. Ora, isto é uma imitação da máquina do Império Romano. Até faria sentido aquando da queda dele para salvar da derrocada tudo o que de bom poderia preservar-se, para alimentar o porvir. Para conquistar poder, porém, é uma abstrusidade no domínio espiritual, mas foi no que derivou, pelos séculos além. E ainda hoje em dia: agora é para acorrentar consciências aos respectivos senhores, como cãezinhos amestrados. Ora, durante a ruptura protestante como depois nas guerras religiosas dali oriundas, ninguém reparou que tal modelo não ajuda nada à vivência espiritual, sempre fértil em inesperados, pelo contrário, tende a estiolá-la com as determinações do poder de cima para baixo e de fora para dentro de cada um, a inversão inteira do que é o itinerário vivo da vivência íntima de quenquer, que é o que constitui a espiritualidade.

Notícias de Amanhã – Quando há rupturas, tendemos a cair em extremos. Aí o poder hierárquico dá muito jeito, por mais que traia os ideais todos. As bruxas de Salém não foram mortas pela Igreja Católica mas por uma igreja puritana com ela rompida. Napoleão Bonaparte tentou impor pela força das armas a liberdade, igualdade e fraternidade: pelos vistos não reparou na contradição disto. Como humoristicamente diria Raul Solnado: “Meu filho, queiras ou não queiras, tens de ser bombeiro voluntário.”

Joana Afonso – Todavia, tinham todos o modelo alternativo ao lado, até dentro da instituição eclesiástica: o movimento monástico sempre reduziu ao mínimo a rede  organizativa, tornando-a quase inexistente. Mas mais notório é que o judaísmo nunca se perdeu, em milénios, sem hierarquia nem poder central de feitio imperial. Nunca reconheceu um Imperador Romano, nem alheio nem seu. O islamismo cobriu-lhe as pisadas e nunca se hierarquizou, o que jamais o impediu de alimentar movimentos, tendências, escolas de espiritualidade. As cidades santas deles são pontos privilegiados de referência e mais nada, não mandam em ninguém nem são juízes de coisa nenhuma. Se há controvérsia, vão ao mufti para deliberar e pronto. Os mentores ou convencem ou não, mais localizados ou mais alargados, e tudo termina aqui. É aquilo que menos corre o risco de arrebanhar consciências e mantê-las arrebanhadas sob a batuta de alguém.

Notícias de Amanhã – O que os não impediu de massacrar o “Charlie Hebdo”, ao lema de “o Profeta está vingado”, nem de fazer a “Guerra Santa” por um Estado Islâmico. Um retorno à Idade Média, à reconquista que nos tornou o Portugal que ainda hoje somos, só que doravante ao contrário. Aliás, chegaram a ameaçar-nos de repetirem o que aqui ocorreu no séc. VIII, para reocuparem a Península Ibérica.

Joana Afonso – Claro, as asneiras com as beatitudes afloram em todo o lado, não são monopólio de ninguém, de nenhuma fé, de nenhuma mentalidade ou cultura. Somos todos parentes, queiramo-lo ou não, mas repare na diferença: outrora, esta postura incendiária levou às Cruzadas, à Inquisição e às guerras religiosas – com os Papas a aprovarem e estimularem o crime organizado, generalizado pelo continente europeu (e mais além); agora aqueles muçulmanos extremistas são uma minoria de 1,5% da comunidade dos crentes, podem ter algum imã a apoiá-los, mas contam com a generalidade doutros a repudiá-los, a resistirem e até a desautorizá-los e atacá-los. O da comunidade muçulmana lisboeta veio mesmo a público proclamar que tais atitudes não só não são islâmicas como são até o contrário, o anti-islamismo. Alguma vez poderíamos ver isto dum padre ou dum bispo relativamente ao Papa? Sem tal chocar contra nada nem ninguém, sem excomunhões, expulsões, perseguições?... Não, que a hierarquização não o permite. Só entrando em ruptura declarada, como em Lutero, Zuínglio, Calvino, Henrique VIII e tantos mais outrora ou como Mons. Lefebvre, no século anterior (o conservadorismo extremo contra o Concílio Vaticano II). A ausência de hierarquia torna tudo mais livre, arejado, as consciências podem vincular-se ao que lhes fizer sentido, não à ordem do comandante, seja ele alto, superior ou supremo. A vivência espiritual não é mercenária dum exército qualquer, seja ele armado ou desarmado. Aliás, a linguagem militar presente em muitas organizações religiosas é o afloramento que revela quão longe militam da espiritualidade autêntica, viva no coração de cada membro. Nas seitas suicidárias é onde isto atinge o extremo, até ao ridículo trágico daquela que colectivamente se exterminou porque ia para a cauda dum cometa, então a cruzar os nossos céus! A sujeição ilimitada ao guru, no limite, deu nisto. Nem ele nem os fanáticos à sombra dele entenderam nunca nada do que é a espiritualidade. Como é que há tanto estúpido capaz de dar ouvidos a outro estúpido ainda maior é que espanta. Valha-nos Deus!

Notícias de Amanhã – Pelos vistos o Coro dos Aflitos lamenta consigo um tão triste estado de coisas...

Joana Afonso – É verdade, mas o ponto fulcral é outro, aquilo é mera derivação implícita. A verdadeira pergunta é donde é que provém, na raiz, este tipo de atitudes. Qual é o primeiro desvio, à partida porventura quase indetectável, que no termo redunda em atrocidades, terrorismo, massacres, guerra... E tudo em nome de Deus! Tudo muito sagrado, convictamente abençoado. Que é que leva a isto, todo o contrário do que nossa vivência íntima pretende? Tudo destruição da espiritualidade, tudo tombado, decaído na matéria mais sangrenta. Sangue, suor e lágrimas, alguma espiritualidade toma isto por fito? Nenhuma. Então que é que as obriga a lá cair, em quaisquer que sejam as tradições, uma vez que é constatável em todas, num ou noutro momento histórico? Apanhar esta pedra angular é que é decisivo, se pretendemos a sério prevenir um porvir que valha a pena. Descobrir donde vem o cancro pode não curá-lo mas permite finalmente enfrentá-lo, quem sabe, tratá-lo e, se calhar, erradicá-lo. Sem isto é que não é viável de modo nenhum. É um rumo mais difícil mas mais prometedor.

Notícias de Amanhã – A estupidez não é possível eliminá-la, ela é infinita, como Einstein ria. Quando muito, podemos reduzir-lhe o impacto, diminuir-lhe a probabilidade, não é?

Joana Afonso – Também o creio. Mas há casos estranhos que talvez mereçam ser ajudados porque aparentam lucidez bastante para não caírem naquilo, não produzirem o contrário do que idealizam e que no fim traem das maneiras mais abjectas. E sem arrependimento.

Notícias de Amanhã – Está a referir-se a quem?

Joana Afonso – Haverá muitos episódios, muitos indivíduos diferentes, em domínios que nada terão uns com os outros. Estou aqui a magicar em dois. O primeiro é o do Aiatola Komeini, responsável pela revolução islâmica no Irão. Este homem esteve anos seguidos refugiado em França onde existe uma grande comunidade muçulmana, dedicou-se ali ao aprofundamento da mensagem religiosa maometana. Quem poderia imaginar que, retornado ao país como libertador, implantaria uma ditadura confessional extremista, com guardas da revolução assassinos, imposições retrógradas como a legislação primitiva decorrente do Alcorão, a sharia, a regredir aos sécs. VII e VIII, com a barbaridade das penas e dos costumes, discriminação servil da mulher, patriarcalismo extremo, com todos escravizados à ditadura do pai de família, e assim por diante? Como é que isto é possível? Ele viveu no meio da civilização, no meio do respeito dos direitos humanos, no ambiente das mentes mais iluminadas, numa comunidade respeitada e respeitadora de igualdades e diferenças... Não viu nada, não aprendeu nada, pôs tampões nos ouvidos, lentes pretas nos olhos, quis ser militantemente cego e surdo?! Em nome de quê? De poder violar um povo inteiro em lugar de o servir? De alimentar movimentos de terroristas, a dar cabo de países completos em redor, como no Líbano, na Síria, no Iraque...? Mas este homem não é um estúpido ignorante qualquer, é culto, informado... E, no entanto, refere-se ao país que lhe deu generoso asilo como um antro do demónio, coberto da negridão do inferno. Como é isto possível quando é tudo o contrário disso e, ao invés, aquilo de que o acusa é o que deveras ele faz ao seu sacrificado (e fanatizado) povo? O homem é cego?! E manteve e alimentou isto até à morte! E os herdeiros não repararam o itinerário de ruínas...

Notícias de Amanhã – Conheço bem o ambiente aterrador do poder nas mãos destes assassinos impunes. Li O Voo das Águias (Ken Follet). Mas Komeini tinha um exemplo à mão que se calhar o inspirou. Quando o maoísmo se esgotou, sem ideias nem projectos, Mao inventou a Revolução Cultural e os Guardas Revolucionários tiveram luz verde para julgar e matar, a torto e a direito, impunemente, pela China inteira e não se fizeram rogados. É difícil compreender e julgar semelhantes eventos. Que ocorre nas mentes daquelas lideranças? E o pior é que os factos parecem não ter peso nenhum para eles...

Joana Afonso – Esse é que é o ponto: como podem não pesar, não ter significado nenhum? Mas isto ocorre noutros domínios, como bem referiu. O meu segundo caso é de facto dum campo diferente: o ditador norte-coreano Kim Il Sung. Este homem estudou e formou-se num colégio suíço, conviveu com colegas e professores do escol mundial do dinheiro e da cultura, viveu numa democracia enraizada e bem lubrificada, teve acesso ao melhor e mais depurado da mente humana. Como é que retorna ao país e continua a ditadura mais obscurantista do planeta? Que é que veio fazer para a Suíça? Jogos infantis, como os colegas dele recordam? Para brincar aos ditadores assassinos impunes não precisaria disto, bem podia ter ficado em casa. É que até para nós é desanimador conferir casos destes, indivíduos de tal maneira couraçados que nada transpõe a barreira que opõem a qualquer reconversão, a qualquer melhoria. No fundo, a qualquer pôr-se a caminho. São cadáveres ambulantes e semeiam uma esteira de cadáveres atrás deles, pelos anos fora.

Notícias de Amanhã – Por falar nisto, a condenação à morte pelo Aiatola Komeini do romancista Salman Rushdie, a propósito de Os Versículos Satânicos, nunca foi cumprida, o que me deixa alguma esperança de que a insensatez do extremismo não seja afinal muito contagiosa. A protecção pública garantiu-lhe a imunidade e, pelo menos aqui, salvou o direito basilar à liberdade de consciência, do pensamento individual e de exprimi-lo sem medo de castigo nenhum, muito menos de ficar em risco de vida. Evitou-se a monstruosidade e hoje ninguém fala mais nisto, varrido para o lixo do esquecimento. No fundo, o bom senso julga que atitudes daquelas, promovidas embora pelas cúpulas do poder, nunca se justificam e fazem-lhes ouvidos moucos, embora não saibam justificar porquê. Sentem-no, não atingindo, contudo, o discernimento reflexivo capaz de o fundamentar racionalmente. Não dispõem de modelo conceptual para tanto, ou, se calhar, nem desenvolvimento intelectual capaz de ir tão longe, até formular uma teoria qualquer de elucidação.

Joana Afonso – De acordo. O mais estranho, no meio disto, é que há o inverso no mesmo ambiente cultural e religioso. Basta reparar na família reinante nos Emiratos Árabes Unidos: também estudaram fora, nos EUA, aprenderam caminhos novos e trataram de implantá-los, ao retornarem à origem. Com tanto impacto que vários outros lhes seguiram na esteira e há uma chusma de transformações e melhorias, tanto na economia como nas condições e recursos de vida, como nas mentalidades, com muitas etapas volvidas no caminho do respeito dos direitos humanos, sempre vilipendiados nas culturas ancestrais obsoletas que por ali, no meio árabe, continuam a mandar na vida. E a China arrancou do terceiromundismo para segunda economia mundial, embora sem trajecto paralelo na promoção e respeito dos direitos humanos, e nem assim demove, nem sequer naquele domínio, o afilhado dela norte-coreano. É monstruoso este bloqueio dentro de alguns indivíduos. Será muito saudável e prometedor identificá-lo, o Coro dos Aflitos põe o dedo na ferida. Podemos não lhe ligar nada, evidentemente, mas pelo menos lograremos entendê-lo, para o podermos prevenir, desejavelmente, ou, pelo menos, remediar até onde for viável. Opera aqui uma postura dogmática que bloqueia o indivíduo por inteiro. Se detiver o poder, as vítimas serão incontáveis, as perdas humanas, culturais, históricas, inestancáveis.

Notícias de Amanhã – Agora que fala nisso... Tenho um amigo professor obcecado com as técnicas de meditação. Meteu-se-lhe na cabeça que teria de fazer um jejum de quarenta dias para findar mais iluminado. Nem eu nem ninguém o conseguimos demover de tal propósito sem fundamento. Bem lhe pedi, insisti. Obtive apenas como resposta: “Tem de ser, tem de ser!” Nenhum motivo, nenhum fundamento, nenhuma razão, nada. Um vazio completo. Mas “tem de ser!” E lá o fez. Assistido por uma aluna criança, sem comer nem beber durante quase mês e meio. Para nada, obviamente. Não ficou com mais nem menos luz, nada lhe alterou o discernimento. Ao menos aqui não prejudicou a comunidade nem ninguém, nem a ele próprio, felizmente.

Joana Afonso – As convicções absolutas nunca têm fundamento, estão necessariamente erradas no respectivo absolutismo, por mais que carreiem verdades comprovadas. Ou se relativizam ou arriscam perdas oriundas do pendor da rigidez. Isto é arriscado pelos dois lados: podemos jogar fora o que detiverem de verdadeiro (que é sempre apenas o mais verosímil, já que a verdade final nos escapa por natureza em tudo); podemos garantir a preservação do grau de verdade atingido mas perdê-la toda pela absolutização (inexoravelmente falsa) com que a encararmos. Haverá sempre perdas, portanto. Ou reconvertemos a postura, ou andaremos sempre a esvair-nos, por mais convictos que andemos do contrário. Não há fuga ao dilema. Seja lá em que domínio for. As ditaduras tendem a ser maléficas, sejam exteriores, sejam interiores. Por estranho que pareça, por vermos mais efeitos constatáveis nas exteriores, a verdade é que as interiores são as piores: escravizam o próprio indivíduo e são sempre a fonte a alimentar as exteriores. De facto, sem aquelas, estas rapidamente estiolam e extinguem-se em nada. Um dogma intocável na cabeça de alguém mata-o na respectiva abertura à vida, ao inesperado e vai matar os dependentes na mesma área. Tanto pior se forem países, continentes ou a Humanidade inteira.

Notícias de Amanhã – Implica que as religiões não podem fanatizar-se ou darão cabo dos crentes e, por tabela, dos restantes. Compreendo. É o que tem sido mais visível nas seitas, nos grupúsculos com um qualquer obcecado delirante à frente. A lógica que os leva direitos à morte tem sido ilustrada por vários deles. Foram os que se entrincheiraram num rancho americano e o incendiaram, matando-se por intoxicação de fumos, quando cercados pela polícia, suspeitosa do arsenal de armas ali acumuladas. Os que fugiram para a Guiana e se envenenaram colectivamente quando acusados de sequestro e investigados pela justiça. Os japoneses da seita solar que atacou com gás letal o metropolitano de Tóquio, perseguidos internacionalmente e em regra encontrados mortos por suicídio colectivo, em vários países. Na verdade, aquele que se entrincheirou atrás dum dogma intocável qualquer que enfiou na cabeça, se abre a boca e convence as multidões, encontrará sempre estúpidos bastantes, se o pretender, para dar naquilo. É na religião, é na ideologia, é na política, é na cultura... Em contrapartida, também não vejo como é que pode haver uma fé qualquer sem acreditar em nada. Tem de crer nalguma coisa, não é? Isto é o dogma deles, é a matéria da Teologia Dogmática. A Igreja tem-se farto de fazer Concílios a definir dogmas, desde os tempos primordiais, antes até de quaisquer rupturas ou, aliás, provocando-as com um cortejo de anátemas e excomunhões. Até houve um Papa excomungado, não são só os integristas de agora que o pretendem aplicar ao de hoje, Francisco. A história é muito longa...

Joana Afonso – Pois, o problema não é o dogma, o problema é a atitude dogmática. Transformar um conceito, um modelo, uma teoria, uma ideia... – numa verdade absoluta, acabada, final, torna-a de imediato, por implicação, sagrada, intocável. E o violador disto é logo um sacrílego. Não é preciso ir mais longe, não leva apenas ao terrorismo contra os satíricos de Maomé na França, levou-os a atacar órgãos de imprensa na Dinamarca, na Suécia... A ponto de ter havido um movimento internacional nas áreas da comunicação apelando para todos publicarem o mesmo ou similar mundo fora, para afirmação e resistência contra o banditismo do ataque a quem usar o direito à liberdade de imprensa. Mas o curioso é a duplicidade de critérios: aqui entre nós houve uma gritaria fanática paralela contra um cartoon publicado mas agora do Papa, com um preservativo pendurado do nariz, a propósito duma encíclica a condenar novamente o uso da camisa-de-vénus nas relações sexuais. Aqui d’el rei, que “o Papa é pai”! Por parte dum membro do Governo de então que, aliás, não se inibiu de impedir a entrada em concurso literário internacional de O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de José Saramago, então ainda sem Prémio Nobel, a pretexto de que não apresentava uma leitura autêntica do cristianismo. Não chegou às bombas nem aos tiros mas a mentalidade é igual, a asneira é idêntica. Há sempre algo de intocável que torna quem lhe toca um sacrílego, um herético, um réprobo - um inimigo a abater! Seja lá em que área for, em que religião, em que teologia, ideologia, capelinha ocorrer. Então os soviéticos não enfiaram, na fase final antes da derrocada do regime, os opositores em hospitais psiquiátricos, a pretexto de que recusarem as verdades sacralizadas do regime só poderia ser porque eram loucos? A verdade, para o dogmático, é intangível. E a verdade, para ele, pode ser uma pronúncia qualquer, até a asneira mais grosseira. Não é isto que conta, é a atitude perante aquilo, seja lá o que for. E eis como o mais desejável pode decair no mais execrável. E como finda jogado na lixeira, por mor dos que, com tal atitude, o apodrecem no ovo.

Notícias de Amanhã – Lembrei-me, de repente, duma brincadeira a pôr a careca à mostra aos militantes de tal postura. Sabe, Joana Afonso, que Jesus Cristo, afinal, não foi crucificado?

Joana Afonso - Ai não?!

Notícias de Amanhã – É que, ao terceiro dia, a Bíblia insinua que os discípulos debalde o procuraram. Ora, se o procuraram de balde, então é porque ele morreu afogado e não crucificado! Palavra do Senhor. Amém.

Joana Afonso – Ah! Boa! A brincadeira traz à tona outro pendor de alienação referido no Coro dos Aflitos. Já viu a dificuldade que é como encarar a Revelação nas religiões do Livro, judeus, cristãos (todos com a Bíblia) ou muçulmanos (com o Alcorão)? Historicamente, com o decorrer dos séculos, são os de mentalidade de funcionários, são os literalistas que deterão a hegemonia das práticas. E o povo de Deus não assimila minudências, apenas incorpora linhas gerais, traços dominantes, simplismos literais, fisicalidades constatáveis. Combinando ambas as vertentes, que é que teremos?

Notícias de Amanhã – Nada de bom, aí vêm as corruptelas a predominar em tudo. Mas também as rebeliões, a refontalização, o reencontro das águas vivas na fonte. É da História em todo o lado e também aqui, nos domínios das religiões.

Joana Afonso – Nem mais. Mas está a ver a descomunal pedra no caminho, logo à partida? É que aquilo é revelação divina para os crentes. Ora, se o tomarem como tal, como evitar a fanatização? Aqueles textos (e só aqueles) são Deus a falar-nos, não é verdade? Logo, quem se atreve a tocar-lhes, interpretá-los, alterá-los? Isto é pretender corrigir Deus! Que pretensão e que absurdo! Anátema a quem a tal se arrogue! Foi isto o que insinuou Salman Rushdie, logo, pena capital! Olha o atrevido!... Esta é a lógica. Depois disto é o texto à letra: os literalistas é que têm ouvidos para ouvir. E lá vai a carneirada dos ignaros atrás. Nem sequer se distinguem os tipos literários dos textos, a poesia perante uma narrativa histórica, a lei ou regulamento perante a interpretação teológica ou a canção litúrgica. Tudo vale o mesmo. Que esforço é requerido permanentemente para acolherem uma evidência basilar como esta! Medem tudo pela mesma rasa: se é tudo à letra, é tudo à letra. Não há mais conversa. Finalmente, isto conduz directamente ao burocrata rotineiro, a preservar o depósito e a tradição repetitiva, a fim de que nada altere a palavra divina. Tudo se reduz, no termo, à mera fisicalidade: a palavra e a liturgia são o deus em carne e osso, não há mais nada a fazer nem a esperar. Está tudo completo.

Notícias de Amanhã – E é o conservadorismo levado ao extremo. A lógica é perfeita. Compreendemo-la muito bem. Foi o itinerário da cristandade, é hoje o do Estado Islâmico; se calhar, o do Tibete budista (ignoro que dialéctica desencadeou a ocupação chinesa com a imposição comunista).

Joana Afonso – E é a destruição inteira da espiritualidade viva, da auscultação permanente do apelo do íntimo de cada um, dos ecos que toquem a afectividade, a requerer mudas, reajustamentos, reconversões, para realizar em plenitude as potencialidades de cada qual e de todos, desde o próprio até ao derradeiro indivíduo no derradeiro fojo onde se refugiar o último dos humanos. Nada disto ali tem entrada, corações e mentes refechados a sete chaves, não vá poluir-se a voz divina encarnada que pretendem preservar, engarrafar, descontaminar, para servi-la a toda a clientela integralmente pura e perfeita. Os chamamentos de Deus aos homens são por completo ignorados, são heresias: Deus falou, está falado. Qualquer chamado actual é pretensioso, falso, mal interpretado e assim por diante. E eis como a corrupção do óptimo dá o péssimo. Não entenderam nada e estragaram tudo. Para eles nem houve lugar à intervenção humana dos autores na redacção dos textos, no limite mais extremado deste pendor. E, se entre eruditos esta postura não colhe, pelo menos às claras, por trás muito haverá quem por ali se reja clandestinamente: Deus não pegou na mão do escriba para redigir o texto mas ocupou-lhe tanto a mente que ele nem sequer teve autonomia para escrever algo diferente, quanto mais recusar-se ou alterar o que lhe era inspirado.

Notícias de Amanhã – É uma mentalidade inteira, multissecular. Podemos segui-la nas três religiões do Livro perfeitamente história além. Predominante outrora, hoje muito questionada em todas as frentes. Dominante ainda, concordo. O pós-concílio revelou-o bem no âmbito da Igreja Católica, é um facto.

Joana Afonso – E é o que alimentou o conservadorismo pelos milénios além. Já não é só o que está no Livro, é tudo o que os fiéis operarem, pois provém dali. É toda a ordem implantada pelos grandes do mundo, mal integrem o corpo de crentes. Daí a aliança trono-altar há milénios e a luta estrénua para que nada mude, nada bula, que o diverso só pode provir do diabo, não decorre da palavra de Deus, o Eterno, o Absoluto, a Plenitude acabada aqui à mão de semear. Ainda por cima historicamente incarnado em Jesus Cristo. Já temos tudo ao alcance, que mais pode ser almejado? Só mesmo por tentação diabólica! E era só ficar quietinho, mais nada...

Notícias de Amanhã – É curioso como tudo se encaixa. E acabamos com velharias abstrusas de pé, quando o mundo inteiro já mudou todo, não é? E não vêem...

Joana Afonso – Pois não. Há milhares de anos que o latim é uma língua morta, há séculos substituída pelas línguas novi-latinas, incluindo a nossa, mas na Igreja Católica continuam a comunicar oficialmente nela. E celebram paramentados, numa postura ridícula que só me leva a imaginar feiticeiros, bruxas, xamãs, druídas e por aí fora. Mas aquilo provém dos ancestrais, é intocável. Quando o mundo inteiro já atirou tudo para o caixote do lixo, como a vida sempre a decorrer exige de todos. E não fica só por aqui. Imagina donde vem a lenga-lenga dos bruxedos e dos encantamentos e mezinhas populares? Quanto mais indecifráveis, mais mágicos e mais poderosos. Andam a copiar o incompreensível dos rituais religiosos que acreditam que opera milagres. Como já ninguém fala latim, interpretam assim a liturgia que crêem que é milagreira: então não bastam as palavras certas para mudar pão e vinho em corpo e sangue de quem, ainda por cima, é Deus? Magia pura e tremendamente poderosa! Se a imitação for boa, se calhar logra o mesmo, não é? E tudo se tende a transformar em ritualismo a configurar a vida. Liturgias, penitências, devoções, sacramentos, tudo é reduzido a gestos estandardizados e palavras com ou sem sentido, não importa, desde que adequadas ao momento e à conjuntura. E pronto: fica garantida a salvação eterna. Rezam o terço a ponderar cuidados da vida, sem notar sequer o que vão dizendo: não importa, as palavras é que têm de ser aquelas para conquistar graças à hora ou ao minuto.

Notícias de Amanhã – É o oitavo sacramento, o da santa ignorância...

Joana Afonso – O curioso é não ser apanágio exclusivo do populacho e do entendimento superficial dele acerca destes domínios. Este pendor abarca todos, os padres e bispos que por aqui singram operam de igual modo: basta-lhes o gesto e o texto da absolvição, que todos os pecados ficam automaticamente remidos e o pior diabo em figura de gente entra com fanfarras pelos céus adentro! Garantido! Só o que ocorre na dimensão física é que conta, logo... É o baptismo in extremis, nos últimos sopros de vida, e pronto, mais um alma atirada do inferno para o colo de Deus. Toda a espiritualidade reduzida a gestos e palavras mágicas que adquiriram um poder sobrenatural, sempre graças a Deus, não aos homens. Ele ensinou-nos, a gente faz como ele disse e pronto: sucesso garantido. Palavra de Deus, não é?

Notícias de Amanhã – O padre espanhol que veio a Fátima esfaquear o Papa João Paulo II era certamente dessa escola. Mas afirma, Joana Afonso, que isto é a vertente dominante da Igreja?!

Joana Afonso – Não só da Igreja mas de todas as igrejas, mesquitas, sinagogas, bem como de todas as religiões. É fácil entender porquê. Isto não provém do fanatismo directamente mas doutra limitação que nos é comum: a falta de criatividade. Não apenas pela raridade dela mas pela dificuldade ainda de a transpor dum domínio da vida para o outro. Tudo combinado, quem tem uma ideia, um caminho inédito, uma solução para um desafio qualquer é sempre um solitário. E quanto lhe custa em norma convencer os mais!

Notícias de Amanhã – Isso é o pão nosso de cada dia em todas as áreas da vida. Aqui não podia ser excepção.

Joana Afonso – Pois não. Mas a prazo tem um efeito diabólico. Lembra-se das cenas dos Actos dos Apóstolos em que S. Pedro é primeiro chamado a pronunciar-se sobre as comunidades paulinas e respectiva ignorância e desrespeito das tradições judaicas palestinianas, a lei mosaica, e, por outro, tempos após, é confrontado por S. Paulo porque, na presença dos judaizantes, cede e comporta-se como eles, tal se o cristão devera obediência àquelas imposições? Depois disto parece que findou tudo sanado. Imagina porquê? Porque os rituais mosaicos foram sendo gradualmente substituídos por rituais cristãos que, à medida que foram obtendo consenso, se foram generalizando, implantados por todo o lado. Qual a atitude perante isto dos mentores e crentes das comunidades, pelas gerações fora? A mesma que a dos judaizantes perante a lei mosaica: agora dita cristã, por maioria de razão se sentem justificados. Não compreendem que o erro não é ser cristã, mosaica ou outra qualquer, é a atitude que se toma perante ela, seja a lei qual for (judaica, muçulmana, budista, hindu...): exigir-lhe o cumprimento como porta de salvação. Ora, isto não é nenhuma porta, é um sinal dela, uma figuração, uma seta a apontar o caminho: por mais eficaz que seja, apenas aponta, não é caminho nenhum. Acaba, porém, sempre isto trocado por ele. Foi-o com os contemporâneos de S. Pedro que os pôs no lugar com o seu: “Quem sou eu para ir contra o Espírito, quando ele se manifesta com tantas maravilhas em tantas outras formas?” Depois dele, com todos os reformadores que sempre se tiveram de bater contra os endeusadores da herança dos maiores.

Notícias de Amanhã – É a dialéctica dos dois pendores, o de quem cria, o de quem o segue, desmultiplicando. Como os criadores são poucos, é normal a maioria ficar do outro lado. Neste aspecto, é com cristãos como com quaisquer outros, como com qualquer movimento ou tendência cultural ou da mentalidade. É sempre dominante o dos desmultiplicadores.

Joana Afonso – Só que este predomínio prejudica ou destrói o que a tensão dialéctica tinha de bom pela mútua alimentação dos dois pendores. Enquanto ambos forem presentes, estimulam-se um ao outro e tudo tende a resultar vivo, inovador, surpreendente. Quando o segundo anula o primeiro, tudo perde o ânimo, é rotineiro, sensaborão, estiola e morre. Com todas as dialécticas é assim, a ascensão e queda das civilizações tem muito disto e nas religiões é o mesmo. Então, se os repetidores fanatizam o que os criadores puseram de pé, aniquilam o pendor destes e matam toda a vitalidade da mensagem. Ora, esta é a resultante final destes desvios que vimos analisando. O que principia numa incapacidade comum de criar culmina no despotismo do já criado contra todo o criador, agora perseguido, criminalizado, marginalizado, porventura morto. Foi-o no passado entre cristãos, é-o hoje em dia em vários países por pretensos crimes contra o Islão...

Notícias de Amanhã – Não se mantém a criatividade no âmbito da Igreja Católica? Tudo bem. Continua a sangria de fiéis até ganharem juízo. Aliás, nem é de o lamentar, depois de frustrarem tantas esperanças mundo além, durante o Concílio Vaticano II. Não merecem outra coisa. Como Jesus referiu aos seus: “É sacudir o pó das sandálias e ir pregar aos gentios.” Deus está-se nas tintas para estas distinções. Não anda ao mando de ninguém.

Joana Afonso – É verdade, mas a perda é maior do que parece quando a encaramos assim. Vindo da maior organização, a que dá mais nas vistas, mais planetariamente abrangente, tende a servir de padrão e, que mais não seja por mimetismo, as mais seguem-lhe automática e inconscientemente as pegadas. É praticamente inevitável. Então, o domínio em todas é do funcionário repetidor. O estatuto do criativo é universalmente suspeito e, conseguintemente, marginalizado, no mínimo. Em todas o fanatismo é de regra, com a sacralização mumificada das tradições, apenas estas tomadas como reveladoras da vontade divina. Qualquer espiritualidade fora destes parâmetros herdados é tida tendencialmente por inautêntica, uma espécie de parente pobre da vigarice. Aliás, o primeiro critério por que a irão julgar é este, o que lhes empresta um ar de sobranceria, muito estranha em quem se pretende mentor e incarnação de espiritualidade autêntica. É juiz de quê? E a que propósito? Reminiscências duma Inquisição encapotada, envergonhada?...

Notícias de Amanhã – Espere aí, Joana Afonso! Onde é que viu isso?

Joana Afonso – Ah, pois... Estava a pensar em voz alta num caso emblemático que ocorreu à minha frente e nem o referia. Foi num curso de meditação, num fim-de-semana, com a Alexandra Solnado. Apareceu lá como participante um pastor evangélico que intervém muitas vezes nos programas deles na televisão. Nunca se integrou no grupo, parecia um professor a assistir a uma aula duma colega, nunca participou nem colaborou em nada, feito um juiz dum tribunal qualquer. No fim, como aquela atitude desmotivava e distraía os mais, a monitora pediu-lhe para deixar o grupo, ao menos no exercício de despedida, uma vez que ele apenas impelia à desintegração, alheamento e arrefecimento de todos os outros. Ele acolheu o convite e pediu a palavra para julgar todo o curso, dizendo o melhor possível dele, aprovando o que testemunhou, emprestando-lhe o seu selo de validade (como se alguém lho pedira...). Comportou-se como um indivíduo superior àquilo tudo e a todos os participantes, juiz em nome de Deus do que ali ocorria, perfeitamente convicto do respectivo papel. Nunca demonstrou mais que a sobranceria dum tribunal supremo, a falar como porta-voz divino. Não aprendeu nada nem foi lá para aprender, apenas para nos julgar a todos do pináculo da respectiva sabedoria, da pretensa santidade própria, não fora andarmo-nos todos perdendo pelos caminhos do diabo! E abandonou muito satisfeito e senhor de si, sem qualquer mostra de reconhecer o espectáculo pretensioso, oco, inautêntico que acabara de nos dar a todos: um fariseu da cabeça aos pés, armado em julgador benevolente dos demais. Ora, isto é no que as religiões se tornaram (e se tornam sempre história além, não é apenas o judaísmo dos tempos de Cristo): antros de orgulho auto-convencido, com o deus na barriga, tornados juízes de tudo e todos, sempre prontos a condenar e perseguir hereges e réprobos. Fiquei, na ocasião, mesmo triste e desanimada com aquilo. É duma pobreza, duma pequenez de vida interior extrema. E duma cegueira infinita. Ora, não era um católico, era um evangélico do mesmo fermento bolorento que pontifica entre aqueles e sem se dar conta. Ali arvorado em julgador da verdade por mão dele próprio. Como se o elogio sem reservas à despedida pudera apagar ou secundarizar todo o orgulho descomunal deste comportamento! Todos os repetidores tendem a considerar-se possuídos por Deus, uma vez compartilhando das descobertas dos criadores: é que viram a luz por eles revelada. Nunca se apercebem de como estes a vivenciam infinitamente distante, tão incontornavelmente inesgotável que se sentem, perante aquilo, como um nada. Estes são, conseguintemente, humílimos; aqueles, ao repeti-los disto truncados, são orgulhosos. Arvoram triunfalismo, dogmatismo logo a seguir, terminando num fanatismo que dá Deus por manifesto, consumado de vez no que entenderam e acolheram da tradição. Em nome disto julgam o mundo inteiro e condenam ao inferno o que não consta das actas sacras que detêm. Logo virão execuções, guerras, cruzadas, anátemas de todos os teores... Tudo tem a mesma lógica interna. Ai, pois, dos criativos que são místicos, teólogos, profetas... – todos quantos mergulharem na vida espiritual em busca de mais e mais autenticidade no itinerário rumo ao Infinito. Esta é a dimensão que aquele pólo da dialéctica nunca apreende: o repetidor fixa-se no que se manifestou fisicamente, redu-lo a um esquemático esqueleto, mal lhe apercebe a vitalidade, menos ainda o que o revitaliza. Dogmatiza isto e assim temos a perversão de toda a via. É o destino de todas as religiões, desde sempre.

Notícias de Amanhã – Entendo que os marginalizados, perseguidos, silenciados ou aniquilados formem um enorme Coro dos Aflitos. Nem ao menos têm voz, não é?...

Joana Afonso – Já viu porque é que se efectuaram tantos concílios entre cristãos, a definir dogmas e mais dogmas? Nada foi arbitrário. Mortos os Apóstolos (depois da crucifixão de Cristo), com os discípulos a irem falecendo uns após os outros, com as comunidades inteiras para aqui viradas, para o materializado, o concretizado, definido, a tentar agarrar Deus na ponta da unha, confundindo-o permanentemente com as epifanias, seja nas visões do ressuscitado nas semanas após a morte, seja nas cartas e depoimentos ao vivo dos mais próximos e testemunhas directas, uma vez que tudo isto ia gradualmente desaparecendo com os respectivos protagonistas – então toca de pôr o máximo preto no branco. E toca de salvar o espólio para quantos mais dele precisarem. Esta é a pressão para a fonte do Novo Testamento. Não é a vivência espiritual da outra vertente que nunca pendeu daí: todos os inspirados anteriores, todos os profetas e grandes espíritos do Antigo Testamento (e todos os anónimos deles contemporâneos em trilhos iguais) nunca dispuseram de textos neotestamentários e não lhes fez falta nenhuma para rumarem no mundo espiritual. Estes nunca pressionaram nem guerrearam para saber o que é ou não inspirado - no caminho interior tal querela não faz sentido nenhum, tudo de fora são meras ajudas, espelhos, fermentos, exemplos – mediadores, mais nada. Despertam mais ou menos eco íntimo, num ou noutro sentido, e por aí nos iremos encaminhando. Este é o rumo, não aquilo. Mal se discerne, todavia, no meio daquela barafunda.

Notícias de Amanhã – É engraçado ver o problema por este ângulo. De repente, estou a reconhecer o pendor israelita da Terra Prometida: tem de ser um Estado, com todo o mundo materializando Iavé na Terra. A espiritualidade é cumprir a Lei: os mandamentos mosaicos e os ritos do Templo. É a crença no materialismo consumado, esta fé, de facto, é um ateísmo completo. Não admira que repudiem da Bíblia deles o Livro da Sabedoria e o de Josué, ambos a implicarem a crença na imortalidade individual. A que se apegariam as almas após a morte se tudo, afinal, é o que apenas ocorre do lado de cá? Eles têm o mesmo problema, os funcionários repetidores também lá têm o predomínio há milénios e também sempre deram cabo dos protagonistas do outro vector, mesmo quando, depois de mortos, os consagram: é a constante dos livros históricos bíblicos. Como todos nos repetimos, só mudam os rótulos!

Joana Afonso – E a lógica de todos os concílios, excepto o Vaticano II, foi a mesma: tentar enfiar Deus nos conceitos, nas teorias, nos modelos... Aprisionar o mundo divino na fórmula dum credo. A fim de o termos aqui à mão, ao nosso dispor, quer dizer, da Hierarquia e dos paus mandados dela, toda a comunidade do gado ovelhum pouco menos que mentecapto que aquela pastoreia, em conformidade com a alegoria evangélica, segundo o entendimento predominante da parábola. Um dislate pegado. Para onde é que remetem a transcendência infinita de Deus? Para este pendor da atitude crente pouco lhe importa, tem de ter algo a que se pendurar, uma ponta do véu, um rasto de pegada – e pronto! Agarraram o deus furtivo, já podem repousar. Amém quer dizer é seguro. Palavra de Deus, como se Deus usasse ou precisasse de usar palavras – e não resta ali, para eles, vestígio humano. E, afinal, apenas há palavras de homem a tentar traduzir um vislumbre, o fulgor duma ideia com que Deus aflorou no imo de alguém, um momento qualquer, transmitindo o que entendeu de modo tão ofuscante e nítido ao nível do ideado que não há palavra nenhuma capaz de o traduzir. É definitivamente inefável. Desde o mais simples ao mais complicado. Para nós é que não há pensamento sem a carnagem das palavras. Deus e os espíritos que nele vivem operam a outro nível. Já viu como é quando nós pretendemos comunicar algo, sabemos o quê, mas nos falta o termo adequado? Temos o pensamento, a ideia mas não a forma física que o pode incorporar. A nossa mente opera antes e para além das palavras. Deus e os seres que (para nós) faleceram, operam neste plano, não no âmbito dum pretenso discurso celestial. Não teria mal nenhum, não fora tudo findar reduzido a isto, a uma concretização física qualquer – está ali agarrado, finalmente, o sentido absoluto da mensagem. É, em última instância, falso: por mais verdade transcendente que refira, não a esgota nunca, não trepa à natureza dela, é apenas um fermento da infinidade, tanto da realidade dela como da compreensão, como da realização, da sementeira no mundo. O enclausuramento é falso, Deus não é apreensível em nenhuma fórmula, em qualquer que seja a dimensão, desde a epifania mais humilde, individual, à mais abrangente, universal. É sempre um mais-além intraduzível, é sempre uma realidade outra, infinitamente, tanto nesta vida como na outra. Como é que podem pretender aprisioná-lo num dogma, num livro, numa tradição?...

Notícias de Amanhã – Fiquei aqui a cuidar... Deturpam a parábola do bom pastor, é?

Joana Afonso – Completamente. Repare: o pegureiro larga o rebanho à procura da ovelha perdida e não desiste de encontrá-la até reintegrá-la na comunidade. Quer dizer: ela é que se extraviou, não foi o zagal a extraviá-la. Ele apenas procura e reconduz à unidade. E nem se inibe em largar os mais membros do rebanho até consegui-lo. Ora, que é que vemos em dois milénios de história? Concílio atrás de concílio são excomunhões, anátemas, hereges, réprobos. Extraviam do rebanho ovelhas e mais ovelhas que fazem parte dele, a pretexto de que as querem salvar. Não são elas que se perdem, são eles que as perderam. Não refazem qualquer unidade, dividem e tornam a dividir, quer dentro, quer fora da identidade cristã. Traem inteiramente toda a tendência da espiritualidade e todo o mandato explícito da Bíblia e da Tradição. É espantoso como há um desvio colossal destes e os frutos podres não lhes provam a qualidade da árvore. Não têm um rebate de consciência? Como é que não mudam? Não vêem que a parábola lhes retira qualquer poder de excomunhão? Que os obriga à procura, somente à procura da comunhão, até ao Infinito? Como é possível deturpar tudo sem um vislumbre de lucidez? É permanentemente a mesma asneira: os burocratas repetidores que nunca vivenciaram ponta de espiritualidade em seu íntimo, têm o deus deles cativo ali na Bíblia, nos dogmas, nas tradições... Nunca conheceram outro nem sequer admitem tal possibilidade, tão pejados vivem da respectiva imponência e infalibilidade (só quiseram um Papa infalível para poderem usar privadamente dela – são os que vivem à sombra dele, não é?). Logo, quem toque no depósito da fé, quem interprete, altere, recuse, ou apresente outra via, outra alternativa, aqui d’el rei! Isto é o fim de deus (e é-o do deusinho de algibeira deles, de facto), urge defender a pureza da crença, nem que seja a fio de espada. E é-o tanto dentro do rebanho como fora, perante outras fés, religiões, culturas... Eles têm a receita, é só acolhê-la e cozinhá-la. Quem o não fizer é um condenado, não há mais considerações. E eis como a Igreja, em dois milénios, tem traído maciça e sistematicamente o respectivo mandato, com irrelevantes excepções, sempre sem alertar os funcionários repetidores para a traição que permanentemente cometem contra os apelos do Espírito por via daqueles poucos que o auscultam e tentam pautar-se pelo que ele lhes for insinuando. Até agora sempre ingloriamente, no efeito comunitário geral, que os seguidores logo deturpam tudo pela mesma via, impenitentes inconfessos.

Notícias de Amanhã – Vamos dar cabo deles? Era o fim da dialéctica criativa, da tensão inovadora...

Joana Afonso – Não, nem pouco mais ou menos. Era a mesma asneira em sentido contrário. Teremos de tentar o que historicamente parece uma utopia: reconverter os funcionários burocratas da religião, não para serem a outra vertente, mas para viverem a deles a sério, quer dizer, respeitando e promovendo tudo quanto o pendor criativo tenha a propor, em vez de o perseguir e aniquilar, como milenarmente vem fazendo, em nome da preservação incólume de qualquer herança de antanho, por mais sagrada que se antolhe (livros revelados, dogmas, tradições...). Ninguém o logrou até hoje em religião nenhuma, mas quem sabe? A infinita estupidez humana pode sempre ser contrariada, porque não alguma vez vencida? É de alimentar a esperança.

Notícias de Amanhã – E a partir daí?

Joana Afonso – A partir daqui é de reanimar toda a vertente criativa, para refazer o dinamismo gerador de vitalidade a sério no domínio de nosso apetite de Infinito. Não se podem mais calar, nem perseguir, nem silenciar teólogos portadores de inesperados, místicos reveladores de dimensões inefáveis do humano, do real ou do divino. Nem travar quem semeia fermentos de mundo novo em qualquer dimensão da vida privada, comunitária, colectiva ou mundial. Não, não há depósito nenhum a preservar, tradição a repetir – há um Deus vivo a incarnar todos os dias em todas e quaisquer dimensões da realidade pessoal, planetária, cósmica. E tudoo que de trás colhemos são recursos, sementes, hipóteses para a lavoira do mundo novo a erigir, mais nada. O que nos tolher o passo tem de ser varrido, é lixo.

Notícias de Amanhã – Mais utopia então.

Joana Afonso – Se calhar nem por isso, pelo menos na perspectiva de que “pelo sonho é que vamos” (Sebastião da Gama). Repare: como iremos unificar-nos com os crentes de qualquer fé, a principiar pelos cristãos, os mais próximos entre si, a culminar nos agnósticos, indiferentes ou ateus que lutarem por um sonho qualquer? Pelo pendor dos funcionários é inviável, como historicamente se comprova e como da matriz deles deriva: estão prisioneiros das concretizações materiais, em textos, tradições e práticas, pretensamente portadoras do espírito e de Deus. Outra qualquer abordagem é-lhes alheia (daqui a suspeita e, logo a seguir, a condenação). Este pendor colectivamente nunca dá o salto das manifestações para o que manifestam. Tem de ser permanentemente despertado para isto pela outra vertente. Esta, ao invés, centrada na vivência da vida interior, na auscultação dos subtis apelos que a permeiam, na permanente tentativa de lhes corresponder com fidelidade e levar o Espírito a incarnar assim mais e mais na vida própria e no mundo, reencontra todos os outros que singram na mesma esteira, independentemente de qual o bote com que a navegam. Como para eles as formas com que o concretizam, as linguagens com que o descrevem, as tradições, mentalidades e culturas de que partem são meras escadarias de acesso ao que importa, a saber, os rumos do espírito a implementar, de vida interior a promover, das propensões e potencialidades a que dar corpo em cada um e todos – é fácil unir-se e identificar-se com quantos por aqui viandarem, venham donde vierem. Por este vector, a unidade estará feita desde o princípio, uma vez que todos os tradicionalismos são meros acessórios, neles e nos outros. Os que destes demais lados sentirem e vivenciarem o mesmo, de igual modo se unificam. E eis porque, em todo o mundo, em todas as religiões (e também nas ideologias, nas ideias-força que percorrem a Humanidade) urge refazer o equilíbrio pela reconversão ao respectivo papel divulgador e fomentador de vida a sério, vida viva, daqueles que são a maioria detentora do poder nas organizações religiosas (ou outras), de modo a poderem ser os primeiros a reconhecer o permanente desvio e a permanente perda humana quando monopolizam e tornam exclusiva a respectiva função, em detrimento do inovamento, sempre desestabilizador mas por igual revitalizador do itinerário comum dos humanos. Quem sabe se não é viável, depois de o entenderem?... O Coro dos Aflitos poderia então ir diminuindo.