SEGUNDA  ENTREVISTA

 

O Ministério dos Loucos

Inaugurar o Futuro

 

Notícias de Amanhã – Vamos hoje escolher outra porta que continua fechada?

Joana Afonso – É O Ministério dos Loucos. Porta fechada só tanto quanto é ignorada. Aliás, foi matéria conhecida e divulgada germinalmente pelo País através da obra colectiva Reforma Educativa–Guião–Documentos de Trabalho, no capítulo introdutório. É um resumo sumário daqueloutra, que até pode servir para melhor a dominar, arrumar ideias. Lembro-me de que, no jantar-convívio do ano da edição, promovido pela editora na Estufa Fria, em Lisboa, uma participante na minha mesa se mostrou tão fascinada pelo modelo que comentou: “Aquilo é um autêntico poema, deveria ser divulgado até internacionalmente.” Se calhar dar-lhe-iam lá fora os ouvidos que por aqui continuam teimosamente moucos. Distraídos...

Notícias de Amanhã – E esta porta abre para que paisagem, Joana Afonso?

Joana Afonso – A da educação, mormente escolar. Não há receituários nem nada disto, que, em tudo o que for de intervenção humana, eles estiolam a vitalidade em todo o lado. E onde faltar coração não mora o indivíduo, não é? Então, pobre do aluno! Mas apetecia-me caracterizar este portal deste modo: receita para criar génios. E em massa. Nem mais nem menos. Eu sei que é uma bomba, mas acredito mesmo que é isto.

Notícias de Amanhã – Eh, lá! Depois do primeiro canhão temos outro?! Vai ser uma razia!

Joana Afonso - Quem nos dera! Porque era gradar a campina para uma colheita bem melhor. Aliás, ouvi duma professora em Almeirim, fascinada pelas propostas, este agradecimento ao autor, congratulação rara decerto: “Obrigada por nos revelar a poética de educar.” A poética é a magia, o atractivo tão gratificante que nos leva a correr indefinidamente. É um portal do Infinito. Está a ver?

Notícias de Amanhã – Isto hoje principia bem, Joana Afonso! É uma loucura... Mas compreende-se, é sobre O Ministério dos Loucos, não é?... Avance, destape lá a ponta do véu! Que é que a cativou tanto aí?

Joana Afonso – Repare nisto: não era bom replicar aqui entre nós o “século de oiro” da Atenas de Péricles (séc. V a. C.)? Foi um alfobre de génios em todos os domínios: Sócrates, Platão, Aristóteles, na Filosofia; Ésquilo, Sófocles, Eurípides, no teatro; Homero com a “Ilíada” e a “Odisseia”; Heródoto, o pai da História; Hipócrates com a Medicina (e seu juramento)... É um nunca mais acabar. E com repercussões tais que ainda hoje continuam. Até o teatro é representado, 2.500 anos depois, nos originais ou em renovadas versões dalém derivadas. Não me diga que uma hipótese destas o não fascinaria! Novos Euclides, o geómetra, novos Arquimedes, o do “eureka!” da Física...

Notícias de Amanhã – Ora, claro! Mas foi um milagre sem réplica alguma em mais nenhum lugar nem tempo algum. Quem nos dera!

Joana Afonso - Talvez não seja tanto assim, sabe? Nós também tivemos cá o nosso pequeno século de oiro, inaugurado pela “ínclita geração, altos infantes” (Camões, Os Lusíadas). A saga dos Descobrimentos e tudo o que ela despoletou, também em múltiplos domínios, provém fundamentalmente dali, daquele núcleo de irmãos, os filhos de D. João I e Dª. Filipa de Lencastre, com o Infante D. Henrique a liderar o itinerário. Abrimos novos mundos ao mundo e não só no sentido geográfico. Não foi só o épico camoneano ou as Décadas da Ásia de João de Barros. Ainda hoje se edita o Colóquio dos Simples e Drogas de Garcia de Orta, na Medicina, e o povo ignora que o mundo continua a cantar, na época natalícia, o Adeste, Fideles, sem discernir que é da autoria de D. João IV, o nosso restaurador da Independência, formado no crepúsculo daquela era, a recuperar-lhe o ímpeto e o sonho. Foi a mais popular canção de Natal por mais de três séculos. E Gil Vicente, o pai do teatro português? Tudo fruto da época.

Notícias de AmanhãO Ministério dos Loucos retoma o fio da meada, é? Não havia escola na Atenas de Péricles nem consta que os filhos de D. João I frequentassem as do tempo. Pelo contrário, Dª. Filipa fez questão de ser ela a mentora e supervisora deles. Ou o alfobre de génios não é mesmo da escola?

Joana Afonso – Tem toda a razão. Recorda-se da época dos ditadores latino-americanos? E que bem sucedidos foram! Pois olhe, nenhuma escola os formou. Foi outra a fonte. Imagina o que ocorreu lá, por todo o lado, trinta, quarenta anos antes? Eram eles todos miúdos, aqueles povos foram inundados por uma infinidade de opúsculos de banda desenhada, distribuídos e vendidos às toneladas. Eram as lutas de índios e cow-boys em que a potência do murro e a rapidez do disparo ditavam a lei e consagravam o herói, o grande americano. E ai de quem se lhe opusesse, levaria tudo raso! E pronto, aí tem o modelo de todos aqueles ditadores quando o contexto sócio-económico e político o requereu. Altamente vitoriosos!

Notícias de Amanhã - Mas isso foi muito mau, aqueles países foram autênticas repúblicas das bananas. Não quero nada parecido por cá! Como é, Joana Afonso?

Joana Afonso – Nem eu, evidentemente. Apenas queria ilustrar um pormenor: quando deixamos ao acaso, à espontaneidade desenvolver factores ignorados mas poderosos, arriscamo-nos a abrir a caixa de Pandora e a soltar o génio do mal. Bem melhor é desvendar e controlar o procedimento. Claro que não é apenas a escola, as famílias, se calhar, até serão mais determinantes, bem como as forças vivas da comunidade e a cultura ambiente. A escola, porém, é perita e a achega do especialista não é substituível, mormente nos pendores e nos momentos críticos e decisivos. Aqui como em tudo o mais na vida.

Notícias de Amanhã – Então a escola deverá chamar também a ela o que é da responsabilidade colectiva, familiar ou comunitária? Tudo bem. Mas, afinal, que é que ela chama? O Ministério dos Loucos avança com quê?

Joana Afonso – Talvez a melhor forma de o caracterizar é: uma engenharia do comportamento. Um modelo único no mundo, pelo menos até agora. Todo ele triado a partir das experiências mais bem logradas dos professores em sala de aula e da vida comunitária em ambiente escolar. O melhor do terreno, peneirado e sistematizado num todo coerente, idade por idade.

Notícias de Amanhã – Engenharia no comportamento, Joana Afonso? Mas os engenheiros lidam com determinismos, imposições das leis naturais e a partir dali é que erigem obra. Isto deixa-me arrepiado aplicado a indivíduos: vamos manipular o comportamento dos miúdos?! É torná-los títeres, fica tudo condicionado, bonequinhos movidos pelos fios que os atam aos dedos do bonecreiro. Não é decerto uma coisa destas...

Joana Afonso – Bem pelo contrário. Mas objectar nesta linha resulta obrigatoriamente da mentalidade dominante: a ciência descobre leis para a humanidade dominar a natureza, quer ambiental, quer humana. Como ignora (e enquanto ciência terá de continuar a ignorar) o lado subjectivo presente como dado nas ciências humanas, como não respeita a abordagem metafísica dele (o discernimento e as escolhas potenciais a que der ocasião), o temor é que a gente nele opere como opera na natureza cósmica: jogando com os determinismos em proveito próprio. Ora, isto redundaria em dominar o outro como dominamos um automóvel ou uma fruteira. Não recuso sequer que isto seja a propensão dominante. É inevitável generalizar para este domínio o que provém do outro, sem reparar nas divergentes potencialidades que cada apresenta. Isto é matéria doutra área de estudo que o cientismo põe de lado, embora a epistemologia o aborde e esta é acolhida pela generalidade dos cientistas, como o resquício final da Filosofia. Só que é pouco mais que entretenimento para descontrair nas horas livres ou então divertimento final no termo da carreira científica. Muitos, quando se retiram, vão para aí: filosofia da ciência.

Notícias de Amanhã – Pronto, já entendi. Explique lá qual é a alternativa, Joana Afonso. O Ministério dos Loucos não é para nos deixar loucos mas sãos como pêros, diria o povo, não é?

Joana Afonso – Evidentemente. Este outro caminho é óbvio. E se nós, em vez de encararmos os determinismos encontrados, as leis tendenciais das ciências humanas, como meios de dominar outrem, os encararmos como recursos que pomos ao dispor dos interessados para dominarem e ultrapassarem as próprias limitações, os condicionamentos que os estorvam, as desmotivações que os estiolam? E se tudo o que operarmos for ajudar a libertar interiormente cada um, a fim de ele poder realizar ao máximo as respectivas potencialidades? E se tudo se resumir a mil e uma maneiras de o ajudar a caminhar sozinho? E se lograrmos quebrar-lhe as algemas que o tolherem, as correntes que o aprisionam, sejam as materiais, sejam as mentais subjectivamente assumidas, sejam as culturais pelo meio impostas (da família, da comunidade, até da escola)? Isto seria uma reviravolta completa da vivência escolar mas igualmente da cultura de cientismo que nos empecilha a todos. Ora, é por aqui que o modelo vai, que os melhores professores e as melhores escolas singram, contra ventos e marés.

Notícias de Amanhã – No mínimo, diria que custa a acreditar. A chatice que é aturar aquelas aulas monótonas, estudar aquele saber livresco, o nervosismo das chamadas orais, dos testes e exames... De vez em quando lá houve um professor diferente, uma aula mais divertida, mas no conjunto a minha escola, a dos meus filhos e de toda a gente que conheço era genericamente uma seca insuportável. É viável dar a volta a isto? Claro, sem a transformar numa farra permanente, um recreio interminável que não leva a lado nenhum e onde ninguém aprende nada... Também já vivemos isto, não é?

Joana Afonso – Aí tem os dois lados do desafio. Não era mesmo bom que as aulas e os mestres fossem os dos momentos bons que vivemos? Ou que, pelo menos, estes predominassem, a ponto de os outros se tornarem a rara excepção negativa? Enquanto país, enquanto mundo, que maravilha resultaria daí! O Ministério dos Loucos é a configuração disto, com momentos e mais momentos em que o podemos verificar. E com o atendimento aos vários pendores do desenvolvimento da personalidade. Não é manipulação mas dádiva de estímulos e recursos em relacionamentos pedagógicos ricos e gratificantes. Aliás, gratificantes dos dois lados: de quem ensina e de quem aprende. Doutro modo, se não fora atractivo para o educador, nem sequer o mobilizaria e nem teríamos nenhuma amostra no terreno de que poderíamos partir. Há, porém, o risco da perversão, como tudo aquilo em que a liberdade humana pega. Podemos usá-lo para bem e teremos a euforia dos comparticipantes e os génios espalhador pela vida, no final. Poderemos, porém, perverter tudo e a corrupção do óptimo dará o péssimo, como é de norma. Apontou dois itinerários de inferno: usar o potencial dos meios e das vias para manipular e dominar os educandos; utilizá-los para animar a brincadeira e tornar tudo um mero divertimento vazio, sem outro horizonte que não a ignorante superficialidade, sem utopia que não a do gozo imediato e sem porvir. Tudo, seja lá o que for, em confronto com o livre arbítrio humano, terá fatalmente esta alternativa diante. Ignorá-lo é estragar o trilho. Teremos sempre de correr o risco da liberdade, nossa e doutrem. É a condição humana. O prémio do itinerário benéfico, todavia, seria fabuloso.

Notícias de Amanhã – Eu também teria adorado que os meus professores e as minhas aulas fossem todos do padrão da Dª. Mariazinha que nos deliciava como uma avó que nos enchia de contos a permearem a matéria. Mas foi caso único, pelo menos para mim...

Joana Afonso – Em todo o lado há um pequeno núcleo de educadores entusiastas que rompem caminho a carreira inteira. Praticamente todos os escolarizados conviveram com um ou outro, num ou noutro nível de ensino, se não em todos. Memórias que nos ficam para a vida inteira, não é?

Notícias de Amanhã – Eu por mim não tive a sorte doutro exemplo, mas também encontrei bons mestres, só que foram sempre muito diferentes. Aliás, pelo que conta, Joana Afonso, deverá ser mesmo assim. O padrão varia. Não compreendo como...

Joana Afonso – Se for a sério, nunca encontraremos dois casos iguais, como não há dois indivíduos a papel químico, nem os gémeos homozigóticos. Não é novidade nenhuma. Isto para não dizer que dois eus são dois eus, nunca se poderão trocar um pelo outro. Nem do lado dos formadores nem do dos formandos. Cada qual tem de trilhar o próprio caminho.

Notícias de Amanhã – Com que travejamento comum? Que é que anda por trás do imediato visível? Doutro modo, irá ser cada cabeça, cada sentença. E não é o caso, pois não?

Joana Afonso – De maneira nenhuma. As aulas estandardizadas, todas iguaizinhas, talhadas no mesmo molde, o professor expondo dez minutos, depois interrogando, a confirmar o entendimento do aluno e retomando o ciclo a seguir, seja qual for a disciplina, por muito que seja o modelo dominante, é um caso perdido, já morto há decénios, mas que não há maneira de ter o funeral. Os professores não mudam facilmente e pouco se importam, em geral, de saltar de escola em escola, em todas estadeando o cadáver pedagógico que carregam às costas, há séculos. Mas sair disto não é ter de andar à rédea solta, sem rei nem roque. O fio condutor é simples. O formador apenas existe para servir os respectivos formandos: logo, estes terão de ocupar a primeira prioridade. O ideal seria um ensino-aprendizagem tão personalizado que redundaria numa abordagem e concretização individualizada. E é a meta a ter sempre em vista, como horizonte a aproximar o mais possível.

Notícias de Amanhã – Sempre utópico, fatalmente. Nem no ensino conventual de há séculos logravam isto. Bem poucos nobres tinham rendimento para tal. Se calhar teríamos de recuar até D. Afonso Henriques e ao aio dele, Egas Moniz, afinal traído pelo aluno rebelde. Aio que voluntariamente lá teve de apresentar-se ao rei de Leão de corda ao pescoço, com a família, para ele dispor deles como quisesse, uma vez que não lograra fazer cumprir a palavra dada, o que implicava uma desonra tão onerosa que valia mais que a vida, naqueles tempos remotos. E alunos rebeldes é o que mais há, não é verdade?

Joana Afonso – É evidente que é um ideal, há-de ser inelutavelmente muito traído, mas também, por igual, permanentemente aproximado. E não é tão de admirar como isso. Todas as variantes de didáctica activa, protagonizada pelos maiores pedagogos dos sécs. XIX e XX, o lograram em maior ou menor grau: tudo neles tendeu imparavelmente para a descoberta e revelação do génio de cada aluno, em cada realização tomada a peito. E foi-o independentemente de idades, países e culturas: no jardim-de-infância de Montessori na Itália; nas crianças em fase escolar de Freinet, na França; nos púberes e adolescentes de Alexander Neil, na Inglaterra; nos de todas as idades de Dewey, nos Estados Unidos da América; nos jovens de Makarenko, na antiga União Soviética... O pendor é comum a todos. O Ministério dos Loucos parte daqui, também os nossos melhores pedagogos em campo é aquilo que protagonizam, em todas as faixas etárias com que laboram. E todos inexoravelmente optam por modalidades de didáctica activa em que o aluno é o centro permanentemente estimulado a agir, em qualquer que seja a idade. Nenhum deles usa o método expositivo nem coloquial, senão muito ocasionalmente e como recurso de momento, logo abandonado por outro qualquer, mais de acordo com a média de idade e do desenvolvimento do grupo. Isto é que torna toda a aventura desafiante e fascinante. Mesmo para quem de fora olha para o roteiro, como é o meu caso.

Notícias de Amanhã – Ora, se for assim, não é chover no molhado? Afinal, já todo o mundo conhece o itinerário, basta ir aos tais próceres, não é? Claro que não são desmultiplicados, nem aqui nem no resto do planeta. Mas mais um livro não o desencadeará. No fundo, há já muitos a referir o caminho e, pelos vistos, muitos outros mestres irão já por aí. Se calhar, até outros países...

Joana Afonso – Não digo que não. A Finlândia, o país de maior eficácia na escola, no mundo inteiro, pelas testagens internacionais, logrou generalizar em toda a rede a didáctica activa, centrada no aluno, em quaisquer faixas etárias (o controlo é feito no nono ano de escolaridade, em todos os países, para comparar). Ali a generalidade dos educadores visa encontrar projectos pedagógicos que entusiasmem os estudantes, convidados a executá-los aplicando os saberes programáticos, tenta avaliar tudo (saberes e desempenhos) a fim de optimizar cada trilho de cada aluno, enriquecendo todos com quantas variações puderem ocorrer. Isto alimenta enorme agrado em todos os comparticipantes, tendencialmente, como é óbvio. Mas nem tudo é um mar de rosas, sabe?

Notícias de Amanhã - Qual é o senão, Joana Afonso? Nós tivemos um Governo que até foi lá aprender...

Joana Afonso – Lembro-me, já lá vão uns anos... Mas isto aqui é pedra dura. Quanto a nós, não nos adiantou nada. Os que leccionavam assim, continuaram; os tradicionalistas, também. Se calhar é bom não precipitar a volta para reconverter o sistema.

Notícias de Amanhã – Porquê?! Já não é sem tempo! E se temos quem já foi bandeirante é até mais fácil e seguro, ou não é verdade? A Suécia até nos ajudou nos anos após o 25 de Abril...

Joana Afonso – É que há o outro lado, como também já referi. Isto pode-se perverter tudo. Ignoro o que ocorre em Hong-Kong que ombreia com a Finlândia, disputando-lhe a primazia, mas quase aposto que o caminho será muito contraditório do dali. Em contrapartida, tenho informações da escola japonesa que me arrepiam. Uma amiga minha foi lá curtir umas férias, a uma zona onde houve um enorme terramoto anos atrás, com milhares de mortos. Eles vivem habituados a estas catástrofes e com muitas defesas nos modelos urbanísticos, nos materiais e padrões de construção e nos treinos de resguardo individual. Não sei se é por isto, mas ela referiu-me que a exigência escolar é de tal ordem que vira tudo ao invés, na generalidade dos casos: os alunos vivem tão ansiosos, tão obcecados pela nota máxima que, quando a não atingem ou os vitima o insucesso, não aguentam e é o desespero: suicidam-se. Os números trepam a níveis sem paralelo no resto do mundo, há anos e anos. Claro que é uma cultura em que o suicídio ritual por motivos de honra persiste há milénios e ainda na II Guerra Mundial os kamikases, os pilotos suicidas nipónicos se atiraram com os respectivos aviões contra a marinha americana na guerra do Pacífico, matando-se todos para nada, num fanatismo extremista arrepiante. Embora aquilo seja porventura culturalmente legitimado por aquelas bandas, não deixa de ser o contrário do que visa todo o modelo de O Ministério dos Loucos: aqui cultivo a alegria provinda dos desafios de fascínio e das vitórias atingidas, em todas as idades. É uma escola para a vida, não para a morte. E mais: uma vida pontilhada de génios, capaz de entusiasmar até aqueles que o não forem. É um itinerário que culmina em festa, não porque a vise mas porque os múltiplos caminhos nela resultam. Como, aliás, é o fim sadio de qualquer ideal humano: se por ele vier a ser requerido o sacrifício até da própria vida, não é nunca isto que enquanto ideal requer, bem pelo contrário. Ou então não seria ideal humano nenhum, não é?

Notícias de Amanhã – Aqui também há os perfeccionistas que reproduzem tal desvio, não é preciso ir ao Japão. Como em tudo, no meio é que mora a virtude. Nem tanto ao mar, nem tanto à serra, diria o povo. Mas é apenas o princípio geral, aplicável a tudo. Nada específico para isto, Joana Afonso.

Joana Afonso – De acordo. Não acredito, contudo, que uma escola que leve a tal extremo não finde por destruir qualquer motivação. Não é um trilho de fascínio, mas de terror. Acaba pior que a nossa que, em geral, acaba no pântano do tédio, por desinteressante, embora aquela arvore resultados atingidos por alunos muito acima dos nossos. A tal custo também eu não quereria a reviravolta. É que ninguém tem de ir por semelhante desvio, extremado a ponto de devir mortífero. Entusiasmo é uma coisa, extremismo é outra.

Notícias de Amanhã – Às vezes não é fácil discriminar este daquele. Ou então, mal alguém se não precata, é conduzido daqui para acolá e nem sequer terá reparado. Se calhar haverá mesmo efeitos destes, em contágio pela comunidade, e ninguém logra identificá-los. Se calhar o harakiri, o suicídio de honra japonês, foi assim que acabou implantado na cultura dominante e no povo nipónico, desde tempos imemoriais. Deveremos ter por cá coisas de tal teor também, de cuja matriz nem damos conta.

Joana Afonso – Agora que fala nisso... Sabe que há uma vertente de O Ministério dos Loucos que o mundo inteiro, em geral, anda promovendo sem saber, de maneira empírica, ao sabor do acaso? E com os efeitos previsíveis! Pois é verdade

Notícias de Amanhã – Ignoro do que está falando. Explique lá, Joana Afonso.

Joana Afonso – Recorde as séries de TV, mormente as relativas a OVNIs, mas também as de divulgação científica. Um ror delas levanta a dúvida acerca da explosão científico-tecnológica dos últimos dois séculos, às vezes de algumas décadas, por não ter paralelo algum história além. Somos herdeiros beneficiários, à escala planetária, duma cascata de descobertas, produtos e alternativas em todos os domínios da vida, cuja origem e motor ninguém logra discernir convincentemente. Vai daí, as hipóteses de intervenção extra-terrestre, à maneira de como as lendas antigas reportavam os deuses a ensinar ciências e artes aos humanos. Até de alterações genéticas oriundas deles para nos tornarem aptos a tal aventura, mormente à abundância inesperada dela. Claro que se conhecem os inúmeros autores daquilo, o que custa a entender é como ocorre tudo com tantos simultaneamente e por tanto lado e em tantos domínios, aqui acumulados nas nossas poucas gerações. Está a reconhecer o padrão? Os génios todos juntos, não é verdade, doravante à escala planetária? Pois é...

Notícias de Amanhã – Ah! É um novo século de oiro, como o ateniense de Péricles? Olhe que o paralelo...

Joana Afonso – Tem cabimento, não tem? Evidentemente que tem. E sabe porquê? Porque em grande parte o mecanismo que o despoletou está implantado à escala planetária. E o que ainda o não atingiu para lá caminha.

Notícias de Amanhã – A escolarização vai cobrindo gradualmente o mundo inteiro, mas ainda anda longe. Alastra, todavia, muito mais que em séculos transactos. A escravatura só foi extinta no séc. XVIII e mesmo ainda agora vigora em países isolados e aflora em discriminação por todo o lado. Há, porém, um caminho em curso. É daí que aquilo vem?

Joana Afonso – A escola ajuda, porventura é imprescindível mesmo, mas não é nem origem nem alimento da catarata que inunda a terra. Como muito bem referiu, Péricles não a teve e, contudo, despoletou gerações geniais. Aliás, a própria escola germinou daí e nunca mais parou até agora. Foi produto, não produtora; divulgou, não gerou. Lá como cá. Quer ver donde é que tudo isto provém, se alimenta e desmultiplica indefinidamente? A escolaridade é um esteio insubstituível mas, no modelo generalizado, apenas porque transmite informação de rigor, desenvolve faculdades, apura capacidades e afina competências. Um povo escolarizado tem aptidões disponíveis que o analfabeto nunca dominará e níveis individuais de desenvolvimento não só inatingíveis como até incompreensíveis para ele. Não chega lá. Contudo, se ficar por aqui, não atingirá criatividade para descobrir, inventividade para inovar, não inaugurará mundos inéditos. Isto provém doutra fonte e esta é que fertiliza aquela. Andou ignorada no tempo de Péricles, mas andou. Anda mundo além ignorada agora, mas anda. E daí o espectáculo fabuloso com que somos prendados, nestes aspectos.

Notícias de Amanhã – Mas então donde vem o rio de génios? Alimenta a escola mas não vem dela?!

Joana Afonso – É isso. E é o que O Ministério dos Loucos permite alterar. A escola também poderá ir até à fonte. Repare no que se alterou do séc. XIX para cá, no que importa a este domínio: o Romantismo encheu o mundo inteiro de histórias pelo romance, o conto, o teatro e, a seguir, produzindo cada vez mais, divulgou tudo a uma escala nunca vista, não só com um movimento editorial cada vez mais explosivo, mais a banda desenhada, mas mormente pelo rádio, o cinema e a televisão, à medida que foram sendo descobertos e espalhados. A desmultiplicar tudo isto, cada vez proliferam mais autores especializados na literatura infanto-juvenil, um mercado inédito outrora, doravante insaciável, com os melhores autores a correrem mundo em milhões e milhões de exemplares, em filmes, em séries, em todas as línguas escolares (sem escola ninguém aprende a ler...). E aqui tem a fonte do génio, hoje a jorrar pelo mundo inteiro, espontaneamente, sem plano nem controlo, ao acaso das circunstâncias de cada mercado. Nada preciso, nada programado, nada sistemático, nada voluntariamente escolhido nem intencionalmente protagonizado. Já falámos dos riscos de abandonarmos itinerários destes ao deus-dará. Mas pronto. A verdade é que efabulámos com a obra da Condessa de Ségur, com a de Enid Blyton e tantos mais. Perto de nós, com o Harry Potter de J. K. Rowling, indo do livro à ilustração, ao cinema, à TV. São uma infinidade de fermentos e que, quão mais novo for o campo de sementeira, mais tempo terá de germinar e diversificar. Resultado: temos uma proliferação de genialidade cada vez maior de que o mundo beneficia. A não ser quando se transmude no génio do mal: campos de extermínio científico nazi, purgas do materialismo científico estalineano, bombas nucleares de Hiroshima e Nagasáki, no termo da II Guerra Mundial... Mas o mesmo génio também nos levou à Lua e todos os dias nos deslumbra com o desvendamento de mistérios do Universo... Os tais dois lados, não é verdade? Condenados à liberdade, não há remédio.

Notícias de Amanhã – Estava aqui a pensar... Como é entre nós? Também há obra de génio. É de entrarmos na onda? De termos uma ondazinha nossa? É que eu vivi também algo assim...

Joana Afonso – E então eu? No meu tempo de menina quem pontificava por cá era Adolfo Simões Muller com a colecção “Gente grande para gente pequena” que era para jovens dos sete aos setenta e sete. Ainda me lembro de quanto chorei, miúda, com o final de O Capitão da Morte, a trágica viagem do Capitão Scott ao Pólo Sul. Ah! E então a banda desenhada de O Cavaleiro Andante? Li-a toda, anos seguidos. O fascínio era de tal ordem que eu decorei espontaneamente todas aquelas histórias. Contava-as e recontava aos meus amigos, na escola e fora dela. Eram alegria, entusiasmo infantil em estado puro.

Notícias de Amanhã – Onde isso já vai! Foi há decénios. Ainda apanhei parte da maré. Mas depois...

Joana Afonso – Depois imagina quem mais despoletou o sucesso do País? Não passa pela cabeça de ninguém mas é o gatilho. Com mais de três milhões de exemplares vendidos, só por cá. É a colecção de romances infantis Uma Aventura de Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada. Nem a literatura para adultos bate isto no mercado. Imagine só quanta miudagem sonha com aquele grupinho de amigos! Mas, a emparelhar com eles, vem na internet o sítio Um Conto por Dia, de António Torrado. Num certo momento, no pico das consultas, houve mais de quinze milhões de entradas em 24 horas, uma vez e meia a população de Portugal inteiro! Até a CIA se alarmou e veio investigar o que era isto. A internet é mundial e as comunidades emigrantes podem todas matar saudades com ela e matam mesmo, pela mão dos filhos entusiasmados com estas histórias. Tais casos, contudo, são apenas o mais saliente, que há uma pléiade de autores infanto-juvenis para além deles, mais ou menos bem acolhidos, no texto, na ilustração, na banda desenhada, no teatro infantil... Eis a fonte da genialidade entre nós, como a outra o é pelo mundo fora. Por todo o lado, aliás, com rosários de autores nacionais incontáveis que não logram impacto além-fronteiras, como ocorre igualmente connosco. Todos ignoram que é por aí que a maré cheia extravasa. Bem, nem todos. Nos Estados Unidos há redes de contadores de histórias para crianças que chegam a ter coberturas praticamente estaduais. No geral, preenchidas por voluntários. Ocorre há vários decénios, desde que começaram a reparar na correlação das duas vertentes: estimular o imaginário infanto-juvenil e desenvolver gerações de descobridores, inventores, inovadores. Não é só por serem, por enquanto, a primeira economia mundial que acumulam deles o maior número. Há sempre outros truques na manga. E nunca um factor sozinho pode tudo nestes domínios.

Notícias de Amanhã – Mas O Ministério dos Loucos não vai pôr a escola toda a contar histórias, não é? Seria eventualmente muito agradável, se calhar, pelo menos para a miudagem. Com os mais velhos até poderia falhar, recordo-me de como detestei a leitura obrigatória de romances, no derradeiro ciclo antes da Universidade. Foi uma matança dos inocentes tão grande como antes tinha sido a de Os Lusíadas. Nestas áreas não tive a sorte de apanhar nenhum professor de jeito. Olhe que conseguiram mesmo matar-me o gozo que as obras me dariam.

Joana Afonso – Aí tem o que a escola tradicional opera estruturalmente. Raros educadores lhe logram escapar. Mas acredite que há muitos que bem gostariam, não vêem é como. O Ministério dos Loucos escancara-lhes a porta. Não é, todavia, para se porem todos a contar histórias, obviamente. Tem, todavia, um custo: mudar de hábitos, quebrar rotinas, acertar o equilíbrio dos inovamentos requer energias, disponibilidade, empenhamento, até ocorrerem novos hábitos que nos poupem. É o motivo maior porque os educadores findam tão renitentes. Parece que não há nada que logre mudá-los, aqui ou noutro país qualquer.

Notícias de Amanhã – Sabem como é mas não vão? Pelos vistos, alguns já terão ido. Falta-lhes a cenoura à frente para desatarem a correr, puxando a carroça. Mas aí é como em tudo...

Joana Afonso – Também creio que sim, um pequeno prémio como estímulo poderia resolver o caso. Até porque há um prémio inerente ao itinerário: o modelo bem logrado dá muito gozo tanto a professores como a alunos. A vantagem é mútua. Apenas durante a transição custa mais.

Notícias de Amanhã – Se eu bem entendi, é tudo ordenado para culminar em projectos pedagógicos. E sê-lo-á em todas as idades, não é? Se tudo isto já opera em países inteiros, para quê chover no molhado? Não irá ser por aí que a viragem ocorrerá. Mais um empurrão, menos um...

Joana Afonso – Vamos por partes. Primeiro, mesmo os que querem ir não irão se não vislumbrarem como, certo? Ora, a estratégia comum do projecto pedagógico tem muito que se lhe diga. Já reparou que é nela que visarão que a escola englobe todo aquele mundo informal que alimenta o imaginário, que estimula a fantasia, que semeia sonhos e utopias? Que ponte logra integrar ambos os lados? Todavia, é mesmo isto que tem de ser atingido ou nada resulta. Como pegar num programa curricular e enchê-lo de sonhos dos alunos ou conseguir que os desperte neles? O desafio para o educador não é pequeno, nem todos têm pensamento criativo, nem todos, portanto, terão ideias e, mesmo os que as tiverem, nem todos terão habilidade bastante para congeminarem como levá-las à prática nem depois para executá-las. É entrar num mundo novo desconhecido. Quanto mais marcas de bandeirantes anteriores houver, melhor, sempre constituirão pontos de referência, senão mesmo mapas do tesoiro. E quanto mais trilhos calcorreados vitoriosos, tanto mais provável alguém encontrar aquilo com que se identifica ou melhor se lhe aparenta. Nunca é demais, portanto, não é questão de mais ou menos um. Para os desinteressados, sim, o educador-funcionário é uma aberração e havê-los-á permanentemente. Os outros, porém, é que importam. Se se entusiasmarem, até aqueles findarão por arrastar. Claro que os entusiastas, aqui como em qualquer mister, serão infalivelmente uma pequena minoria. Os disponíveis, todavia, os acolhedores, os que adoram comparticipar serão, ao invés, uma enorme maioria, aqui como por igual em todo o lado, constituem a massa que aqueloutros fermentam e com eles se dispõe a cozer a fornada do pão que nos alimenta a cultura, a mentalidade, o estado do País e do mundo. Os restantes, depois, serão um pequeno resquício de parasitas com bolor, de jogar ao cesto do lixo antes que apodreçam a cozedura. Para estes não haverá outra alternativa, impermeáveis que forem a qualquer revitalização. Por ora ombreiam todos no sistema, daí termo-lo tão pobre.

Notícias de Amanhã – Muito bem. Isto já opera no mundo em geral, nalguns países até já foi retomado pelo sistema escolar, a desmultiplicar-lhe o efeito. Resta operá-lo cá, para além do clima comum vivido em tudo aquilo que já o alimenta empiricamente, sem consciência de tal porventura, na cultura dominante, nosso caldo comunitariamente partilhado. Desperta-me a curiosidade, confirmo, mas não me entusiasma como a vejo a si, Joana Afonso.

Joana Afonso – Mas, se fora isso apenas, mal me tocaria. O Ministério dos Loucos é muito mais. Até aí pisa terreno comum e confirma-o, o que não é de somenos, pelo menos entre nós que tendemos a viver alheios a tudo, muito felizes na nossa infelicidade. Ainda não despertámos o bastante do País de Fátima, futebol e fado, pese embora a grande onda de melhoria em curso. Temos de a robustecer, inovar e generalizar, que anda muito longe de ficar esgotada nem de cumprir o que promete: os que vivem à margem são demasiados e demasiado marginalizados. E todos ganharemos quando se integrarem e puserem o génio deles a produzir em prol da comunidade inteira e do mundo, como os mais que por aí já vão.

Notícias de Amanhã – Então como é? Há um salto qualitativo em frente? Aquilo não é tudo?

Joana Afonso – Nem pouco mais ou menos! Repare: a didáctica activa tem um leque inteiro de métodos de aplicação disponíveis. Nenhum tem as mesmas potencialidades doutro qualquer. Então onde é que cada um resulta melhor? E com que frutos? E com quem? Só daqui provém logo uma infinidade de linhas de escolha, se pretendermos optimizar o que for protagonizado, caso a caso, escola a escola. E só a verificação e a colheita da prática nos poderão servir de guia. A mera lógica ou abordagem em abstracto são sempre um disparate carregado de preconceitos. A isto apenas escapa o mergulho no terreno, na comunidade escolar e na sala de aula. E, em caso de dúvida, a execução pelo próprio ao vivo, não olhando de fora, vivendo por dentro. Veja só a lonjura que vai do método dos centros de interesse, em que cada educando ou subgrupo se integra e trabalha numa área, aspecto ou vertente diferente de cada outro, por um lado, e, por outro, o método de inquérito em que a turma inteira é confrontada com perguntas encadeadas, a partir dum dado, evento ou experiência qualquer, tentando solucionar os desafios, uns atrás dos outros. É tão diferente o modo de organizar e leccionar que desenvolve umas faculdades e outras, não, que numa idade resulta e empenha, noutras, não, que um educador molda-se a um e não ao outro e assim por diante. E há vários mais, evidentemente. É só um exemplo.

Notícias de AmanhãO Ministério dos Loucos envereda por aí? Nunca, como aluno, tive aulas dessas.

Joana Afonso – Nem eu. Mas há muito quem tenha, também por cá. Ou a triagem nem teria sido viável e, contudo, vem ali toda discriminada. Mas existem outros vectores. É verdade que tudo visa congeminar projectos pedagógicos que entusiasmem os alunos, idealmente. Aqueles, porém, são de tipos tão variados que se coloca o problema: quais se adequam melhor a cada matéria, em que idades mobilizam, onde não operam?... Basta-nos reparar na diferença entre um campeonato do problema da semana, em Matemática, a dramatização de emigrantes a legalizar documentos, em Geografia Humana e a reconstituição dum episódio de antanho, em História. Se os trocássemos entre si era o colapso completo, redundaria em nada, confusão total. Se olharmos às idades dos alunos, nova grelha de triagem daí deriva: quem é que imaginaria ser eficaz tentando qualquer deles, por exemplo, no jardim-de-infância? Ou no extremo oposto, na Universidade?

Notícias de Amanhã – Ah! Mas isto é importante! Com uma achega destas se calhar até eu gostaria de ser professor. É possível elaborar uma grelha aqui?

Joana Afonso – Tanto é que O Ministério dos Loucos a discrimina em vários tipos a ter em conta, com a optimização potencial na respectiva região curricular. Não encontrará informação deste teor em mais obra nenhuma. Em todas as demais são testemunhos dispersos, experiências vividas e partilhadas ou recolhas sistematizadas, mais nada. E já é muito, claro. Mas aqui temos critérios vários para o aproveitamento mais eficaz, tudo mais bem peneirado e recolhido ao vivo no terreno. Aliás, conferido e confirmado no domínio da literatura mundial especializada. Ah! Mas não é nada académico, certo? Até porque é num contexto de ficção...

Notícias de Amanhã – É curioso. Agora compreendo o apelido de engenharia do comportamento.

Joana Afonso – Ai é?! Então olhe que ainda há bastante mais. Aquilo é um prólogo apenas.

Notícias de Amanhã – Sim?! A mim já me bastaria. Que mais então, Joana Afonso?

Joana Afonso – Ainda ficou de fora o mais importante. Uma amiga minha foi há tempos professora numa escola do ciclo, lá para o norte. A equipa docente ficou tão maravilhada com o modelo que o resolveram pôr em prática. Foi um ano de empenho e luta que redundou em nada. No fim fizeram questão de rever tudo e analisar com rigor, a ver porque teria falhado. Logo à partida deram com o engano: tinham tentado aplicar um método activo próprio para a idade seguinte dos alunos e que com os dela era inviável e os correspondentes projectos, inadequados. Tinham trocado o modelo e ninguém tinha reparado a tempo. Mas até a falha é interessante: já viu que na escola tradicional as aulas são de modelo único, com método expositivo ou coloquial, centrado no professor, e aqui, ao contrário, o padrão é todo diversificado? Pois. Mas sempre o óptimo tem um custo: quando estragado, redunda no péssimo. É fatal.

Notícias de Amanhã – Já tinha entendido que a triagem era muito discriminada. A cada idade, o próprio dela.

Joana Afonso – Sim, de facto. Mas qualquer personalidade é campo de múltiplos vectores: o desenvolvimento intelectual tem um itinerário, o emocional tem outro, o activo, um terceiro, o do senso moral, mais um ainda e poderíamos continuar. Por exemplo, a consciência de si. Ora bem, O Ministério dos Loucos discrimina e aponta  estratégias para várias vertentes, reporta pontos críticos e como enfrentá-los com a maior probabilidade de resultados positivos. E feito faixa etária por faixa etária, até ao termo da juventude, o fim da Universidade.

Notícias de Amanhã – Então a peneira vai muito longe. Com tanto material devia ser um tratado. Mas, pelos vistos, não tem nada a ver. Então fica por onde?

Joana Afonso – Fica pela porta aberta. São múltiplas, umas atrás doutras, mas apenas aberturas como a flecha a indicar o caminho. O método de grupos de trabalho estimula a socialização e resulta muito bem durante a terceira infância, o próprio senso moral beneficia. Mas utilizá-lo, por exemplo, na puberdade, falha por inteiro, que os púberes não se agrupam, quando muito têm um amigo privilegiado e confidente. Ignorar isto estraga tudo. Outro caso, só para entender até onde se pode ir: o método de projecto estimula a criatividade formal do pensamento a partir da adolescência, mas aplicado antes apenas frustra colectivamente, não há maturidade bastante para tal. E é um nunca mais acabar de roteiros inovadores.

Notícias de Amanhã – Espere aí. Pensamento criativo? Mas é o dos génios. Uma raridade, a contar-se pelos dedos. Como é que é? Há um caminho para lá?!...

Joana Afonso – É o mais curioso de O Ministério dos Loucos. Aplicado, permitiria recuperar atrasos de desenvolvimento como reequilibrar a personalidade. De tão gratificante, daria saúde, com a alegria, com o ocasional entusiasmo, tanto a alunos como a formadores. Com isto poderia levar-nos até onde nunca fomos. Quando falei de criar génios em chusma estava a pensar em aberturas destas. Somos um país que sempre foi, à excepção da era dos Descobrimentos, um Portugal dos Pequeninos, tudo mesquinharias, conversa de comadres, irrelevâncias de cotio, coscuvilhice, diz-que-diz-que, falar dos outros (bem ou mal, para o caso pouco importa), curiosidade mórbida pela novidade, a notícia, a vida dum, a vida doutro... Isto é um efeito da falta de horizontes, do provincianismo, não há sonhos na vida dos indivíduos, não há utopias. Mas provém ainda doutro pendor: termos o pensamento colado aos factos. A larguíssima maioria da população mundial só logra raciocinar com dados concretos, presentes ou evocados. Interligar conceitos, reflectir em abstracto, até mesmo entender qualquer mensagem nestes termos é uma dificuldade. Fatiga tanto que as obras de divulgação científica requerem génios para atingirem multidões. Ora, o pensamento concreto é um nível de desenvolvimento mental infantil. Parar aí é uma perda humana enorme. A estimulação espontânea do imaginário cultural, presente na mentalidade dominante, combinada com a escola tradicional, tem vindo a inverter isto lentamente, mormente nos países e regiões mais desenvolvidos. Mas até agora tem sido um mecanismo espontâneo, ignorante praticamente dele próprio, a operar ao acaso. Mesmo assim, com os resultados espectaculares que desconcertam quenquer que observe de fora. O que não poderá ser quando o sistema escolar desmultiplicar isto para todos interminavelmente, com o rigor e abrangência que lhe são característicos e a cobertura desejável do mundo inteiro! O século de Péricles pode tornar-se planetário e permanente. A “ínclita geração, altos infantes” (Camões) pode tornar-se Portugal por completo. As afinações de precisão de O Ministério dos Loucos levarão gradualmente o pensamento concreto, da multidão em geral, a trepar até ao pensamento formal, pela puberdade fora até à adolescência. E daqui até ao formal criador, pela juventude além até à adultez, não parando nunca mais até à senescência eventual da velhice. A escolaridade pode visar tal cume e atingi-lo, é só reconverter-se pelos trilhos do que melhor resulta, ali disponibilizados. É por mor disto que eu lhe referia que estamos perante um caso único. Ninguém mais tem este modelo nem nada que se pareça, em lado nenhum. Mais e melhor ainda: com a vantagem de acompanhar e estimular a sociabilização e, no âmbito dela, desenvolver o senso moral a contento, no aferidor da vivência relacional e comunitária em concreto, em vez de normas e regulamentos disciplinares impostos de fora e de cima, tantas vezes incompreendidos e rejeitados pelos educandos. É o que lhe digo: é uma reviravolta completa. Eu principio a vislumbrar ali um mundo novo pejado de maravilhas. Sei que pareço uma tonta, mas olhe que um professor do Cercal do Alentejo, numa sessão pública onde isto era debatido, comentou: “Eh, pá, isto hipnotiza-nos!” Creio que fica tudo dito...

Notícias de Amanhã – É uma utopia, um utopia completa, Joana Afonso. Um grande sonho que, por maior que seja, é apenas um sonho. Pelos vistos, muito desejável, mas... Se bem que Pelo Sonho É que Vamos, lá diria Sebastião da Gama, também ele um professor de enorme sensibilidade.

Joana Afonso – Ora pois! E qual é o problema de ser uma utopia? Bom é que as tenhamos grandes e muitas, em todos os campos da vida. É o que nos mobiliza e desencadeia a festa. Ou não é? O problema não é ser utópico, é se a utopia é exequível ou não. Já durante o século transacto Roger Garaudy se bateu em França por que os poderes públicos e os indivíduos concretizassem as utopias viáveis. E que tratassem de as identificar, para findar com o eterno marcar passo da ordem implantada. Viver sem sonhos não é viver. “O sonho é uma constante da vida”, como diz António Gedeão, há decénios entre nós cantado. Tem razão Herbert Marcuse em O Fim da Utopia, o fermento maior duma das últimas grandes movimentações estudantis mundiais, quando preconiza que se concretizem as utopias económico-sociais e políticas, tidas como inatingíveis em séculos anteriores e que hoje são, afinal, exequíveis com os meios de que doravante dispomos. Andamos à espera de quê? Que é que nos agrilhoa os pés? Não há justificação nenhuma senão sermos uns distraídos, alienados pela rotina, irresponsáveis perante as perdas humanas da tropeada do rebanho onde nos deixamos ir. Ora, O Ministério dos Loucos é exequível e generalizável. Por mais utópico que se nos antolhe, há quem no terreno o ponha em prática. Portanto, se alguém pode, porque não todos? Uma utopia qualquer apenas é letal quando inexequível por inteiro, como o mito de Ícaro, o homem voador com asas de cera que o sol derreteu e despenhou fatidicamente. Mesmo aqui, todavia, reparemos que hoje, uns milénios depois, logramos voar, quer a coberto de aeronaves, quer individualmente. Tanto andámos que aqui chegámos. O sonho é mesmo a nossa esteira pelo mar da vida. É só de ter em conta até onde é aproximável, a partir donde nos escapa. Não é nunca de adiar aquilo, a pretexto de que tentar isto nos aniquila. Não, o exequível da utopia não deve ser nunca adiado. Pelo contrário, é o inadiável exigível que nos aproxima um degrau mais da meta. Não entender, não propugnar, não efectivar isto leva à convulsão social e à derrocada. Toda a História o ilustra e tudo indica que não há maneira de aprendermos. Não o cumprir conduz à revolução armada, cumpri-lo efectua a revolução tranquila. No limite, sem darmos por ela, já andamos a viver noutro mundo, uma idade além. Bom era que o aprendêssemos algum dia. Talvez O Ministério dos Loucos o venha a conseguir, com uma pléiade de génios  mais evoluídos...

Notícias de Amanhã – Sabe o que me anda aqui a preocupar, Joana Afonso? É que, se a generalidade das gentes apenas atinge o intelecto do termo da infância, então os formadores devem ser vítimas do mesmo, não é? Se apenas abrimos portas com a indicação do rumo a tomar, eles, em maioria, findarão ali tolhidos no limiar, sem lograr sequer vislumbrar o degrau seguinte. Há-de ser bem complicado! E, se o entusiasmo for muito, que frustrante!

Joana Afonso – Olhe, traz-me à memória A Rebelião das Massas (Ortega y Gasset), tão marcante no século transacto. A multidão não é lúcida mas sensível: sente que algo anda bem ou mal conforme o impacto afectivo generalizado num povo. A liderança jamais é de todos, é sempre duma irrelevante minoria que toma em mãos o sentir comum. Se encontrar caminho aberto, por aí conduz a grande comunidade. Se não, com ela se rebela rumo à novidade, em qualquer domínio. São sempre poucos os que darão com os carreiros eficazes que depois se generalizarão potencialmente a todos. São estes os dois momentos, o da iluminação individual e o da partilha, até fermentar a massa, um tempo após. As achegas mútuas serão decisivas: sem a troca, cada um findará pobre em demasia, quer dizer, muito ineficaz. Concordo que é o risco maior. E o pior é que, quanto mais alto o fascínio, mais desespero, ao findar tolhido. Pode conduzir ao pólo oposto e um indivíduo nem tolera falar sequer de tal tema doravante. É um risco, de facto.

Notícias de Amanhã – Mas não a leva a recuar, Joana Afonso. Estou quase a adivinhar que tem mais cartas na manga. Tem, não tem? Que é então agora? Uma maneira de tornear isto?!...

Joana Afonso – Não, não. Aliás, creio que não há mesmo. O itinerário tem de ser o mais pessoal possível, ou então voltamos para trás no caminho. O rumo é para personalizar tanto que, idealmente, fica com marca individual irrepetível. Posto nestes termos, assusta qualquer principiante que nem tem com quem se comparar, cilindrado como é pela rotina comum multissecular, modelo estandardizado. É a produção em cadeia, como os automóveis. O projecto ora proposto é para partir daqui e navegar até aos antípodas, partir de Portugal e desembocar na Nova Zelândia. Não vale a pena iludir o desafio. Mas há os trilhos pioneiros dos relatos autobiográficos dos grandes educadores contemporâneos: propositadamente ou não, ignoram dar receitas, mas transmitem vivências, casos, soluções, vitórias e falhas... São todos, com isto, radicalmente inspiradores, motivam, partilhamos dos trilhos deles, sugerem ideias, iluminam alternativas... Entramos no clima relacional, no teor dos encontros mútuos, na regra do jogo de cada um, convivemos em empatia. Podem não dar respostas, mas amadurecem-nos por dentro para as identificarmos quando as encontrarmos, picam-nos o imaginário para inventarmos, remodelarmos, reajustarmos... Para irmos colocando em cada pegada a nossa marca individual, por pequenina que seja ainda, por insignificante. Nunca é irrelevante: somos nós próprios a caminho desde já, por mais tímido que seja o pé explorador.

Notícias de Amanhã – Teremos de nos contentar com este poucochinho. Pode travar tudo, deitar tudo a perder...

Joana Afonso – Não, espere. Há outra coisa: Inaugurar o Futuro. É um patamar além de O Ministério dos Loucos. É que é sempre viável dar indicadores mais pormenorizados em cada idade e, nestas, em cada vertente de desenvolvimento. Aberta a porta grande aqui, acolá já se particularizam trilhos, desvios, perdas, tónicas, recuperações, modos de agir, pegos a evitar e assim por diante. E, mormente, como identificar quais os desafios dominantes na faixa etária e em que vertentes de desenvolvimento e como corresponder-lhes, com que tipo de atitudes, com que estratégias pedagógicas, com que afinamentos relacionais. Só não é um receituário (que anularia o desafio à criatividade e à presença vivencial) porque se centra em identificar padrões comuns, tanto no perfil do educando como na abordagem mais bem conseguida do educador. O campo para nunca se confundir uma linha de rumo com a resposta acabada é permanente: fica aberto o lugar para a iniciativa própria, o gosto de colocar-se à prova, do lado do formador.

Notícias de Amanhã – Cobre o território a explorar, é um bom apoio. Dá para todos terem mais uma bengala.

Joana Afonso – Todos, não, pelo menos no sentido de cobrir as faixas etárias completas. Inaugurar o Futuro pormenoriza a pedagogia activa nas idades mais críticas, aquelas em que converge a maior reprovação, por todo o lado, no mundo inteiro: o período pré-púbere, tendencialmente dos 11 aos 13 anos, toda aquela área cinzenta de transição em que os miúdos já não são nem crianças, com ocasionais explosões emocionais incontroladas, nem declaradamente púberes, isolados, introvertidos; e, em segundo lugar, a puberdade, com o crescimento a disparar, a paixão e a sexualidade fértil a despertar, todos os laços humanos a serem questionados. Isto tende a cobrir o desenvolvimento até cerca dos 15 anos, na maioria dos casos. Sabe que quase todos os alunos nestas fases baqueiam pelo menos uma vez na escolaridade? Ou reprovam num ano (ou mais) ou, pelo menos, numa disciplina? É uma hecatombe estatisticamente reconhecida, sem mais paralelo em nenhuma outra idade. Por isso é para aqui que é requerida maior ajuda. É aquele período que na família e na vida comunitária é muitas vezes designado por “idade da parva”. Toda a gente se dá conta de que naqueles anos tudo se complica, as crises multiplicam-se, os confrontos e as rupturas mútuas repetem-se, encadeiam-se, ninguém encontra soluções adequadas e capazes, o que resulta aqui falha acolá, o que deu bem com este destrambelha aquele... Isto é no dia-a-dia, no lar, entre amigos. É a fase da crise, a mais radical da vida inteira. Na escola, no anonimato dos relacionamentos, no meio da multidão, tudo se exacerba e a ocorrência de conjunturas extremadas tende a ser mais frequente. A oportunidade de maior ajuda é indiscutível.

Notícias de Amanhã – É verdade. Nesse período recordo-me que andava literalmente grudado a um amigo, o Tiago, não conseguíamos passar um sem o outro o dia inteiro, naqueles anos de pequenos. E preenchíamos as horas a desfazer das miúdas, como na fábula de “A Raposa e as Uvas”: estão verdes, não prestam... E o mais curioso é que, transposta a fase, nunca mais soube dele nem me interessou. Nem faço ideia do que é feito do rapaz. Nós somos mesmo muito esquisitos!

Joana Afonso – Comigo foi com a Clara. Mas já era amiga de infância e, apesar das voltas da vida, ainda de longe em longe contactamos. Mantemo-nos minimamente a par, as redes sociais ajudam, encurtam lonjuras e ligam horas e dias muitas vezes distantes. Inaugurar o Futuro tem a vantagem de caracterizar a crise nos traços dominantes em três vectores de desenvolvimento: a inteligência, a afectividade e a actividade. A mera caracterização permite-lhe contrastar tudo com a fase anterior, a da terceira infância, o que logo levanta uma leva de desafios, praticamente nunca atendidos na escola tradicional, nem igualmente na família dominante, marcadamente patriarcal, na maior parte do mundo e, em particular, em todo o ocidental e mais desenvolvido. Compreendemos logo porque é que o aluno baqueia, em regra, daqui para a frente. Por exemplo, a afectividade explode incontrolável por ali além. Não lhe vamos ligar nada como se tal fenómeno não existisse e tudo continuasse calminho como durante a infância? A escola é para aprender programas, isto é intelecto com memória. Ficamo-nos por aqui, quando as emoções devêm prioritárias e a inteligência (e afins) finda à deriva, em lugar muito secundário? E se não, como intervir? Não há respostas no modelo único herdado. Mas ali há-as e muito pormenorizadas.

Notícias de Amanhã – Óptimo. Isso é para cada vertente? E não baralha?

Joana Afonso – Não. No desenvolvimento intelectual, por exemplo, a barreira intransponível é saltarmos, nos programas, de abordagens de casos, objectos, eventos, tudo dados concretos, durante a infância, no Primeiro Ciclo escolar, para outros currículos centrados em conceitos, a desenvolvê-los, relacioná-los, interligá-los, a induzir e deduzir para tirar conclusões. Ora, o desenvolvimento intelectual capaz disto ainda não existe naquelas idades. Como agir? Reformulando programas? Mantendo-os e reformulando as abordagens em aula? Como impedir que mantenhamos os educandos enclausurados na inteligência concreta infantil? Como partir desta para o pensamento formal, de modo a desenvolvê-lo, sem o massacre das reprovações em massa actuais e sem a mistificação de passagens meramente administrativas, sem aprendizagem de relevo? Está a ver o sarilho todo que isto levanta? A escola herdada dominante nem coloca o problema. O cilindro compressor rola por cima e quem quer que aguente. Quem não aguentar que vá embora. Não lhe importa, é para formar o escol do país, centrado nas classes dominantes de outrora, hoje camufladas mas iguais, não é para formar um país de escol, muito menos um mundo iluminado de génios. Inaugurar o Futuro prefere estes e aponta múltiplas escadarias que para lá caminham.

Notícias de Amanhã – Mas olhe, Joana Afonso, que tais questões não são brincadeira nenhuma.

Joana Afonso – Ai não são, não. E olhe que na vertente da actividade o desafio não é menor. Lembra-se de como nós desafiávamos, durante estas idades, os pais, a família, os professores? Qualquer pisar do risco era comemorado como uma vitória, pelo menos comigo foi e com os rapazes o confronto ainda era pior, pela calada. E a piada que a gente achava quando os superiores acabavam exasperados! É uma idade diabólica para isto. Então como encarar e gerir a disciplina na escola? Manter o regulamento rígido tradicional ou flexibilizá-lo? Como enquadrar neste domínio progenitores e famílias? Vamos em linha com eles, qualquer que ela seja, ou tomamos rumo próprio, ora em consonância, ora em conflito? Mas isto é apenas uma pontinha do icebergue. De facto, como gerir aulas com metade dos alunos a quererem o grupo ainda na infância e outra metade pré-púbere, incapaz de conviver em grupo, muito menos com os dois sexos, cada qual aparte com o seu confidente? Todos partilhando uma mesma didáctica ou várias em simultâneo? Se várias, como organizar o grupo? Como gerir a explosão emocional? Como encarar as paixões de caixão à cova, todas eternas e que morrem um dia depois? Não se liga, como é tradicional, ou encara-se e encaminha-se? E se a paixão é pelo formador? Fica de lado ou educada e gerida? Tudo isto é pior que um sarilho, é uma camisa de onze varas. Inaugurar o Futuro vai por aqui fora com pistas em todos os rumos. Para mim é um mundo fabuloso.

Notícias de Amanhã – Mas, se isto é o que vai sendo visado, desaparece o programa. Não há currículo escolar, trocado por estes desafios todos. Ou não? Como compatibilizar?

Joana Afonso – Mas é ao cumprir o currículo que as questões se colocam. Não é nas matérias programáticas, é ao trabalhá-las. Aquilo não afecta nunca os conteúdos neles próprios, quaisquer que sejam, nem os secundariza e nem pensar pô-los de lado. Tudo tem a ver com a relação pedagógica e como, no contexto dela, é gerido o método activo escolhido. Os programas são o campo a arrotear, os desafios e os trilhos para os contornar são as ferramentas de cultivo. Perder-se nelas era deixar a campina de pousio e as novas gerações, incultas. Nem pensar! Claro que, se o agricultor muda da charrua para o tractor, tem de aprender a lidar com este, ter carta de condução, fazer-lhe a manutenção, reparações e vistorias. De qualquer modo, se o não levar ao campo, nada cultiva, não é? Aqui é o mesmo: tudo é para que os programas sejam estudados, trabalhados, assimilados e utilizados. Mas sem ignorar os indivíduos e a respectiva diferenciação ao correr das idades, como, dentro de cada uma destas, sem pôr de lado o perfil de cada individualidade, idealmente. É o que a escola tradicional nunca fez e, enquanto ainda predominante hoje em dia, nunca faz nem fará. Tudo isto está inteiramente fora do seu modelo como dos objectivos elitistas para que foi secularmente modelada.

Notícias de Amanhã – Fui há tempos a uma exposição duma professora de Matemática que coleccionou uma vastidão de jogos de todo o tipo para esta área. Eu nem imaginava que houvesse tantos materiais disponíveis para currículos dali, tão abstractos, mas há. O que me confundiu foi quando ela me desabafou: “Pois, os alunos gostam disto, aqui nunca se fartam, mas depois não dão o salto, não aprendem nada, o programa não é com eles. Ficam pelos jogos e mais nada. Era um degrau a seguir mas não trepam.”

Joana Afonso – Ora aí tem como tudo se pode deturpar. Lembro-me também dum caso hilariante: um aluno de Literatura que, em lugar de estudar Fernando Pessoa, fez uma armação de óculos de arame a reproduzir os do quadro de Almada Negreiros. Pois não é que cismou que o professor o teria de avaliar positivamente naquele item da matéria que ignorou por inteiro, a pretexto de que já tinha feito algo referido ao autor?! Claro que não teve sorte nenhuma, o mestre não se deixou manipular. O objectivo final é dominar o programa optimizadamente, não há outro, por mais que muitos o confundam. E que a preguiça e o oportunismo tentem dominar as hostes. São tudo corruptelas.

Notícias de Amanhã – Deve ser por mor disso que o Governo e o País o não acolhem. Já viu, Joana Afonso, o que seria generalizar uma bagunçada assim? Tivemos uma pequena amostra disto há uns decénios atrás, nos anos oitenta, durante a “profissionalização em exercício”: lembro-me duma profissionalizanda que montou uma pequena peça de teatro com os alunos e teve a escola em peso a apoiá-la para lhe darem a nota máxima do País, sem quererem saber se os alunos aprenderam ou não alguma coisa do programa. Ainda bem que o Ministério de então se não demoveu. Aquilo seria perverter tudo. É deixar-se ofuscar pelo barulho das luzes. Até podiam ter aprendido, mas este é que era o critério decisivo e nunca aquilo. Será fácil confundir tudo, não é?

Joana Afonso – É verdade e nas transformações bruscas e profundas ocorre inelutavelmente um período assim. É o Terror depois da Revolução Francesa, com a guilhotina a degolar a torto e a direito. Foi aqui o PREC (processo revolucionário em curso) depois do 25 de Abril. É uma constante a ter em conta, evidentemente. Apenas com transições graduais evitaremos isto. Lográ-lo-íamos se, por exemplo, a carreira docente fosse condicionada pala mudança do professor para a didáctica activa, qualquer que fora a alternativa por ele adoptada, desde que confirmada pelos resultados dos alunos em provas anónimas independentes, avaliadas por terceiros. Ou então, mais brandamente, acelerar um escalão na carreira quando tal muda fora confirmada. Há vários caminhos para aproximar os actuais quase 10% (que andam já por este mundo novo) dos desejáveis 100% que nunca se atingirão na íntegra, mas poderão aproximar-se indefinidamente.

Notícias de Amanhã – Então qual é o obstáculo? Temos uma maravilha à frente a que poderemos deitar mão e viramos-lhe as costas? Sem motivo algum? Ou é só ignorância?

Joana Afonso – Ignorância, sim, existe. Recorde o que falámos sobre operações intelectuais que ninguém praticamente atingiu: isto dificulta a compreensão, mesmo quando o prato é servido pronto a comer. A maioria poderá findar perdida no meio daquilo. Mesmo os governantes melhores chegam onde chegarem, podem não atingir o termo. Mas depois há o medo: exemplos como os atrás referidos obrigam a reflectir e levam a tolher o passo, eventualmente. A juntar a isto, vem a descrença: a maioria não acredita. A utopia, por mais exequível que se revele, é da área quase do delírio, por muito atractiva que se antolhe. Ora, quem repudia o sonho nunca o atingirá. É só para quem por ele caminhe, demore lá quantas eras demorar. Por isso é que o Ícaro hoje voa, o mito tornou-se real, milénios depois.

Notícias de Amanhã – E deve haver muita inércia, muita irresponsabilidade. É o não-te-rales, deixar correr...

Joana Afonso – Ah, sim! A tradicional postura do funcionário público: tem o tacho garantido, o resto é para se ir fazendo, sem stresse. É normal, qualquer um, na mesma conjuntura, cairia naquilo. É o que é de esperar. Mas há outra vertente, mais perversa e mais sinistra. Imagine o que ocorreu no Ministério, anos atrás. Decidiram, durante um fim-de-semana, reunir técnicos deste domínio, provenientes de todo o País, para analisarem esta alternativa. Escusado é dizer que lhes ocorreu o que me ocorreu a mim: ficaram maravilhados, numa verdadeira onda de entusiasmo. Só para ter uma ideia da euforia que atingiram (assim já não pareço tão louca por me deslumbrar), quando, no fim da tarde de domingo, foi distribuída a ficha de avaliação do empreendimento, vários referiram a perplexidade em que os deixava: o que ali ocorrera não cabia em nenhum quadro avaliativo, nenhum item se lhe adequava, que a experiência lá vivida extravasava para além de tudo. Houve quem se recusasse a avaliar, não fazia sentido, não havia parâmetros para aquilo. Foi-lhes dito que o declarassem então nas observações da ficha.

Notícias de Amanhã – Mas isso não incendiou o Ministério? Para quê tal iniciativa?

Joana Afonso – Não imagina o que apagou o fogo. É muito revelador. Uma pergunta simples, aparentemente inocente, que alguém lá do fundo atirou para o meio da sala: “Já pensaram como é que se governa um país com gente formada assim?” Foi o balde de água fria. Tudo ficou num silêncio de morte. E morreu ali a sessão por inteiro. Ninguém sequer rebateu com a resposta óbvia: mas vai ser a tal “gente formada assim” que irá governar o País, não seremos nós que por aqui já nem andaremos. Quando muito, poderemos restar alguns velhotes sobreviventes a gozar o espectáculo... Nem isto!

Notícias de Amanhã – Esta agora! Mas é duma miopia arrepiante. Que conservadorismo mais cegueta!

Joana Afonso – Raios partam os “velhos do Restelo” que já no tempo de Camões nos queriam impedir de dar “novos mundos ao mundo”! Retirem-nos de cena a todos e depressa! E, entretanto, tratemos de lhes bloquear o poder malfazejo o mais à partida possível. E sem olhar a idades, antes a mentalidades, que há muitos novos que já nasceram mais velhos que muitos velhos que nos ficaram para trás, a agrilhoar-nos os artelhos. Quebremos as algemas!