MANHÃ

 

 

 

Boa

 

Mais que memória

Ou objectividade,

Uma boa história

Terá de aflorar apenas a realidade.

 

Verdade demais

Confunde os factos, findam irreais.

 

Demasiada honestidade é o gozo

De parecer o contador um mentiroso.

 

 

Loureiro

 

O loureiro requer chuva para crescer,

Deus cuida do loureiro e mantém-no molhado.

Nós cuidamos dos artistas, a secos os manter,

Até que alguém algum eleve, de loiros coroado.

 

Alguém mais sábio

Que me permita

Com dita

Fechar então meu lábio.

 

 

Naus

 

Somos todos amantes que nunca se encontraram,

Naus mal iluminadas na noite

Que se cruzaram

De perto,

Cada uma em busca de porto onde se acoite,

Mas uma da outra sempre a coberto.

 

E navegamos a mesma esteira

Tão à beira, tão à beira!

 

 

Prova

 

A vida

É uma prova de paciência

Na gesta empreendida,

Não de inteligência.

 

O fito,

Amar em acto,

Não é de entender o Infinito,

É de atar quanto desato.

 

 

Rouba

 

O amor de sangue que na trama

Nos haja enredado

Rouba a liberdade a quem ama

E não dá saída ao amado.

 

É um sufoco.

Porém, sem ele, sou vazio,

Em nada toco,

Nem terei caminho, só um desvio.

 

Encontrar o equilíbrio,

Que laborioso ludíbrio!

 

 

Sacrificar-se

 

Sacrificar-se por amor dos filhos

Que se sacrificam por amor dos filhos deles...

- A roda interminável dos atilhos

Nunca mais querem que a interpeles?

 

É urgente se esgueirar

Ao menos um bocadinho,

Para respirar

Novo ar

No beiral dum novo ninho.

 

 

Altruísmo

 

O altruísmo, doutrem ao tratar,

Ameniza o que desagradável houver,

Recompensa ao partilhar

Controlo e significado de viver.

 

Ao invés, ao competir,

Ao ganhar dinheiro,

Nunca de mim inteiro,

A seguir,

Me abeiro.

 

 

Tenho

 

Caminhais

Em direcção

À solidão,

No meio dos arraiais?...

 

Eu disto me livro,

Que eu, não:

- Eu tenho um livro,

Tenho um livro aqui à mão!

 

 

Perdermos

 

Sabedoria

Na noite

Alumia

Quenquer que a ela se acoite.

 

Talento

Vibra

Da sabedoria com o invento

E de nos perdermos nos livra.

 

A sabedoria é raríssima,

O talento é raro.

O vulgo perfaz a trindade santíssima,

A eles se entrosando de animal com o faro.

 

- E eis como nos salvamos

Da Humanidade em todos os ramos.

 

 

Publicidade

 

A publicidade é estranha:

Para agradar segura

Devém literatura,

Senão, não ganha.

 

Aliás, como qualquer literato

Apura

Dele em acto:

 

Que é que este apanha?

- Consensos de luz no meio da maranha.

 

 

Incrédulos

 

Quando a verdade é inaudita,

Ninguém acredita.

 

Mesmo que a materializes

Diante dos incrédulos narizes.

 

Então podes proclamá-la:

Continua a recato ali na vala.

 

Pelo menos, é divertido:

Segredo entre todos repartido,

 

A continuar segredo

Por de ninguém fazer parte do credo.

 

 

Vida

 

A vida não é justa nem tem de ser.

Resigna-te e aceita,

Que o pior que podes fazer

É a despeita:

Findará por te tolher.

 

Quão mais cedo

Aprenderes a aproveitar

A jóia que tens em cada dedo,

Mais feliz o teu lugar.

 

 

Objectivo

 

Quanto tempo para entender

Qual o objectivo na vida!

No pormenor é diferente

Para toda a gente.

No geral, fui criado para ser

Eu criador, em seguida.

 

Deixar a nossa marca nos remos

Aproveitando ao máximo a maré que temos.

 

 

Perante

 

Perante o imprevisto,

Não sejas casmurro,

Deixa de te castigar

Mais a quem em teu redor pairar!

Segue em frente com os bocados de xisto

Que a vida te quebrar a murro.

 

E pede perdão

Por teres feito tanta confusão.

 

A vida não é tua escrava,

Tu é que és dela.

Se lhe acolhes a boa e má estrela,

Até o mal que te faz todo a teu favor te trava.

Não tens outra alternativa:

Aceita, para que a vida viva.

 

Nunca estarás tão estragado

Que não possas ser reparado.

 

 

Sós

 

Sós durante a semana,

Sem privacidade dela ao fim,

Está-se bem acolá

Se for com quem se não está,

Tanto descontrolo emana

Duma vida assim:

 

Ganhamos um bebé

Mas perdemos os pais,

Dilui-se a família

Com decepções tais

Que nem é preciso pé

Para a quezília.

 

Falta de apoio,

Leves omissões,

Pequenos nadas...

- E logo a vigília

O todo reconstrói-o

Apinhado de canhões

E de espadas.

 

 

Nunca

 

Nunca ninguém,

Em nenhum lado,

Há-de estar preparado

Para ser pai ou mãe.

 

É sempre a incógnita que espero

Do primeiro grito:

Ir do zero

Ao Infinito.

 

 

Amor

 

O amor de mãe

Não é instinto maternal

Nem sexto sentido também,

Tudo fatalismo natural.

 

Como é que toda a gente se persuade

Da inverdade?

 

Instinto,

Só no animal,

Aqui apenas mo minto.

 

Quem permite que a mulher assuma

Que para ser mãe nunca andaria preparada

Em estrada

Nenhuma?

 

 

Força

 

O facto de ser filha

É uma força de bloqueio

Da maternidade contra a maravilha,

Com os erros de permeio

Da mãe dela que digeridos

Nunca foram nem resolvidos.

 

É o medo de que o pesadelo

Se repita em mais um elo...

 

- Quem lhe cria espaço

Para cultivar um outro abraço?

 

 

Aumente

 

O pavor

De que o bebé não aumente de peso

É normal e assustador.

O medo

Não devia ficar represo

No silêncio do coração,

Atropelado de fantasmas num enredo,

De lágrimas na solidão.

 

Quem protege aqui a mãe?

- Quase ninguém, quase ninguém...

 

 

Olhos

 

Olhos só para o bebé,

Mais ninguém,

O pai transparente até

Parece além,

Gestos de ternura

Já nenhum por ele apura...

- Quem confirma à mãe inestimável

Que isto, afinal, é saudável?

 

 

Paris

 

Paris donde vêm os bebés,

Paris do sonho e da utopia,

Se inunda a vida de lés a lés,

Mata-me carente cada dia.

 

Ou o morigero,

Para servir apenas de aguilhão,

Ou desespero,

De o nunca conferir neste meu chão,

Todo eu feito destempero

Na desilusão.

 

 

Loucura

 

A loucura furtiva

Da dor dum filho que morreu...

O quarto dele em que a mão esquiva

Nunca mexeu.

 

As roupas e os brinquedos

Ali fixos para a eternidade,

Quedos,

Tal se ele tivera, perene, a mesma idade.

 

O leite que lhe levo à cama,

A história para adormecer,

A roupa que a gente acama

Para a ausência que ali houver.

 

A campa que recusamos, numa bravata,

Pôr na sepultura,

Porque a terra assim mentalmente se esgravata

Com tal fundura

Que resta a esperança

De que algures o alcança.

 

O luto por um filho morto

Nunca mais encontra porto.

 

Por dentro, sempre em roda,

Persegue-nos a vida toda.

 

Muitos vestem de preto então a vida inteira:

Perderam a luz, por muito que levantem a viseira.

 

 

Perda

 

A perda dum filho

Arrasta várias perdas.

É a culpa que mata com o atilho

De cada dia que herdas,

Por não termos morrido

E com ele ido.

 

Por não a imputarmos sequer

A quem o deixou morrer.

 

Por continuarmos todos a ser mobília

Do lar da família.

 

Até por mutuamente nos consolarmos

Quando precisarmos...

 

- Não há poder, em meu passado particípio,

Para pôr fim a tal princípio.

 

 

Filho

 

Se um filho nasce

Com pais em serviços mínimos;

Se cada um só nele pasce

Da campina os rebentos gracílimos;

 

Se é num divórcio silente

Em que cada um não fala ao outro do que sente,

 

Do gesto de ternura

Que se não dá nem se atura,

 

- Tudo devém frio, funcional,

Hostil mesmo em cada qual.

 

Então, ou se agarram os pais

Ao colo do bebé,

Anulando-se enquanto tais,

Com ele a ditar como é que é,

 

Ou ele devém filho só dum

E o outro zanga-se, barafusta e rejeita,

O modo incomum

De andarem separados ali juntos na despeita.

 

 

Gripou

 

A gravidez anterior

Gripou por todo o caminho,

Ao ser o mais velho o sorvedor

Dos pais em desalinho.

 

Tudo solavancos e sustos,

Gravidez a velocidades diferentes,

Com os custos

Das formas de cada lado distintas e mutuamente ausentes.

 

Nunca explicitaram

Medos nem expectativas

De pais que ser sonharam

Sem arestas vivas.

 

E nunca coincidiram

Em querer rapaz ou rapariga,

Ou porque igual a si o revestiram

Ou, ao invés, lhe fizeram figa.

 

Com tantos ses e mas se entrechocando,

Vive o bebé novo no quentinho

Da mãe, lentamente ali se chocando,

Descansado, alheio ao torvelinho.

 

Tudo então se complica

Um bocadinho,

Pelo tempo adiante,

À medida que se complexifica.

Às tantas, o estado interessante é tão desinteressante

Que até desabriga

O rei na barriga.

 

 

Difícil

 

A gravidez é mágica.

Difícil, porém,

Ora antropofágica,

Ora peça de caça refém.

 

Era preciso que os pais engravidassem,

Embora não em simultâneo,

Em comum na forma como sonhassem

O bebé contemporâneo.

 

Ao invés, são atropelados

Pelas histórias secretas de cada um

Que se mantêm em furtivos traslados,

Sem nada em comum.

 

Ora um namoro antigo

Invade um sonho

E colide em perigo

Com a mesa de que disponho.

 

Ora os pais que tiveram

E os que desejaram ter tido

Vêm à memória e resolveram

Baralhar cada sonho prometido.

 

É o incidente de infância

Mágico ou doloroso

Que invade o imaginário com ânsia

E altera o sabor do gozo.

 

É efabular o filho

De forma não coincidente,

Dum nariz com ou sem brilho

Até à personalidade a ter premente.

 

Depois há os incidentes

Que, embora ultrapassados,

Semeiam fantasmas e papões

Nas solidões

De todas as vertentes,

Por todos os lados.

 

E a gravidez anterior como correu?

Não foi um céu...

 

Mil ladeiras

Que consolidam e aprofundam

Relações saudáveis

Cada vez mais verdadeiras,

Mas que inundam

Os vazios das correntes subterrâneas friáveis

Do casal, lentamente o separando,

De quando em quando.

 

Devagar,

Devagarinho,

O lar

Já não é um ninho.

 

 

Nem

 

O polícia-sinaleiro

Não rasga estradas

Nem trilha caminhos.

No viveiro

Não cria ninhadas

Nem ajeita ninhos.

 

É uma vocação pobre,

Mas nobre.

 

Mapeia e sinaliza

Os rumos

Que quenquer visa,

Embora aparte dos próprios consumos.

 

Quando, ao invés, escolástico,

A ele próprio, qual modelo, se impõe e generaliza,

Condena então o que corre, elástico

Pelo mundo fora

A toda a hora.

 

Crente ou ateu,

Religioso ou secular,

No dogma daqueles gestos prendeu

O vento humano que no mundo anda a girar.

 

Apenas legitima

Gesticular sinais,

Não que deveras os sigais.

 

Em cima

Do enganoso pedestal

Devém o alvo

Que todos derrubarão no final.

 

O grande ditador (religioso ou secular) é um papalvo!

 

- Foi assim a História inteira

E outra não há-de haver nunca em nossa jeira.

 

 

Algo

 

Por trás, por dentro da grávida

Algo há de mágico,

Divino,

Omnipotente...

Todavia, quando ávida,

O trágico

Clandestino

Que pode ocorrer nem o pressente:

O estado de graça

Esboroa-se em desgraça:

 

A migalha de céu

Que pulsava dentro de si

Morreu

Não há ninguém mais ali,

Já nem sente nenhum toque:

O estado de graça é estado de choque.

 

 

Útero

 

Um útero a servir de urna mortuária,

Quando antes era uma pontinha de céu

É o absurdo da solitária

Vida do feto que se perdeu...

 

Ou da vária

Que por cá ficou perdida,

Sem encontrar mais via

Na razia

De semelhante vida.

 

 

Depois

 

Depois que o bebé morreu,

Solta-se a dor

E aumenta e aumenta, sem nunca tocar o céu,

No inferno se despenhando, horror a horror.

 

De repente

Perde-se toda a gente

 

Indispensável:

Ninguém entende nem acode ao irremediável.

 

Em avalanche, os sonhos

Desmoronam, fatais.

Só resta a esperança

De tristes bacanais

De medronhos

Que a mão desesperada alcança

Para que, ao menos estes, não fujam nunca mais.

 

E sempre a dor e os arrepios

E a vida a esfarelar-se pelos fios...

 

 

Culpa

 

O bebé morreu.

E esta culpa insuportável

Do falhanço que ocorreu...

Por eu não ser confiável,

Por não ter feito

Algo de jeito,

Por não ter desejado

O que era esperado...

- Por não ter merecido

Senão o castigo devido.

 

 

Bocado

 

O bebé morre,

Morre um bocado da mãe

E o sangue do pai escorre

Um bocado também.

 

Às vezes, morre a relação

Perante o abismal desvão.

 

Morre parte da família

Que não podia falhar

Na vigília

Que nem houve a par.

 

Morrem amigos e o mundo,

Morrem os dias,

Até o direito de imaginar, fecundo,

Doutro bebé outras fantasias.

 

Morre quem não entende

Que um filho que não nasceu

É um filho que nos prende

Daqui até ao céu.

 

Cheio de histórias

E ternuras,

Com as botinhas das memórias

E as birras que nunca mais lhe apuras.

 

Com o nome escolhido

Doravante guardado

No segredo escondido

Do finado.

 

Até com o disfarce

De não comer requeijão

Até vir ele aqui alçar-se

Do chão.

 

E quantos nadinhas mais

Que doravante jamais, jamais...

 

 

Antes

 

Morreu antes de nascer?

Mas é um filho,

Silente demais, para nosso bem-querer,

Mas com o atilho

Preso ao coração,

Na secreta arrecadação

Que existe

No íntimo de pai e mãe,

Enquanto vida além

Cada qual ainda persiste.

 

Aí ele se prende,

Mesmo se ninguém mais o entende.

 

 

Corpo

 

O corpo da grávida se transforma,

De repente é mais um quilo

E outro e outro, sem norma

Nem estilo.

 

E ela a sentir-se linda e luminosa

Ou, ao invés, pesada,

Cansada

E, de gorda, pesarosa.

 

Vómitos de vez em quando,

Restrições alimentares,

Fadiga

E um sono que briga

Com todos os patamares

De comando.

 

A barriga cresce e cresce,

Os pés incham

E, quando dormir acontece,

Quantas posturas antes o pedincham!

 

E há o trabalho,

Compromisso com os filhos

E um laço amoroso em que, como corpo, valho

De campo cultivado a amadurar os milhos.

 

Quando a gravidez é a dois

Aguenta tudo isso,

Até mais se erotiza depois,

Tudo é fogo no chamiço.

 

 

Emotivo

 

Um bebé

Não nasce só quando nasce.

O estado emotivo da mãe que ciranda ao pé,

Enquanto, aplicado, por dentro dela pasce,

Pesa na forma e na demora

Com que ele saltar cá para fora.

 

Se a gravidez foi um peso,

Nasce agitado e queixoso,

Ansioso,

Embora, no mais, ileso.

 

Não vai lograr sono estável,

Comunicar descontraído,

Seguro, fiável,

Até no peso é comedido.

 

Requer a mãe que avisa,

Desde cedo,

Que não precisa

De ter medo.

 

É difícil, porém,

Porque pode andar ainda tremida

Aquela mãe,

De tão combalida.

 

Ela própria se assusta

Por não lograr

O bebé sossegar

Na hora justa.

 

São dois ouriços amedrontados

Um ao outro abraçados.

 

De ambos o pendor

Do temor

 

Vai gerar

O bebé difícil de criar.

 

Se o peso da gravidez

Traduz um estado depressivo

Que a percorre de lés a lés,

O bebé nasce em busca de abrigo,

Menos activo,

Metido consigo.

 

Queixa-se de menos,

Adapta-se demais.

Terão de ser agitados desde pequenos,

Reanimados, da vida aos sinais.

 

- Quando um bebé nasce já nasceu

Há muito por tantos trilhos que correu.

 

 

Após

 

Após meia gravidez,

O bebé apanha tudo no ar,

Toda a informação que resvés à barriga

Da mãe prossiga,

Sem nele sequer reparar.

 

Sons, sabores, movimentos,

Ansiedade, tristeza, alegria,

Êxtase iluminado aos ventos,

Beatitude na maternal magia

E mais quanto nele assenta

Por via da placenta.

 

O bebé reage, adapta-se, memoriza,

Muito menos bebé que a fronteira

Com que todo o mundo o peneira

E baliza.

 

E como reage bem

Ao mimo que lhe advém!

 

Mimar a mãe

É também mimar

O bebé que tem

Nela a germinar.

 

O bem-querer que a encante

Atinge o bebé, fulgurante.

 

É o momento

Dos pontapés de contentamento.

 

Assim, até um bebé se atém

A que a vida sabe bem.

 

 

Imaginado

 

Como o bebé for aceite,

Imaginado, estimulado

Por parecença que lhe ajeite

A partir dum sonho cultivado

Ou dum medo que enjeite,

É na cabeça configurado

Havê-lo em cada enfeite.

Mas ninguém habituado

Fala de tal deleite.

Contudo, tanto ou mais que a gravidez

É gravidez moldando da cabeça aos pés.

 

 

Dura

 

A gravidez uterina

Dura mais que a da cabeça:
Mães há cuja nova sina

Só encaixa, da vida estranha peça,

Perante a divertida magia

Da primeira ecografia,

Ou então

Ao bater arrebatado do pequeno coração.

 

Há mães até

Que apenas ao primeiro pontapé!

 

Existe, porém,

Também,

A que já nasceu grávida,

A vida inteira mãe,

Impávida.

 

O mais estranho

É que com o pai é o mesmo,

Na perda e no ganho.

No mundo tudo

O rejeita a esmo,

Contudo,

Que ele não imagina nem sente,

É um distraído...

Só porque é tímido e silente

Entre a gente?

Não é o protagonista assumido

Dum bebé dentro de si?

E daí?

É pouco preciso para o que impele

Da gravidez a sequela,

Por mais que precise ele

Dela?...

 

 

Entre

 

Entre enjoos e cansaço

Da mãe,

Roupas de bebé sem espaço

Também,

Transformações que atrás

A gravidez, pelos dias além,

Traz,

Para onde vai

O lugar do pai?

 

Não há muita escolha,

Se calhar:

Todos aguardam que se encolha

E ocupe muito pouco lugar...

 

 

Depois

 

Ser mãe depois dos quarenta

Tem outro sabor,

A pré-reforma inventa

Sermos doutro teor.

 

E palpita

E se agita

 

Com o coração do avesso

Por um bebé no começo.

 

De repente

É ingenuidade

E deslumbramento,

Uma adolescente

Sem idade,

A viver deveras o momento.

 

É incrível

Como ninguém

Julgara, porém,

Que tal inda fora possível!

 

E muito menos a mãe.

 

A fundura da comoção,

O irreverente entusiasmo...

E o bebé, de pasmo,

Na paz do torrão

Calma e apaixonada,

A aprender a jornada.

 

 

Fiques

 

“Não fiques triste,

Que isso faz mal ao bebé”?!

Mas sempre alegre alguém existe

Sem para tal ter pé?

 

E vamos viver um viver fingido

A um bebé inda nem nascido?

 

Que imagem de vida lhe servimos

Se inda antes de nascer já lhe mentimos?

 

Irá viver de que jaez

Se, perante isto, após nascer,

A vida que tiver,

Não tiver cabeça nem pés?

 

 

Proibido

 

“Não fiques triste!”

- É proibido dizer a uma grávida,

Por mais impávida.

É que aquilo não existe.

 

Ninguém tem mão

No brotar duma emoção,

 

Apenas em geri-la depois

Dos benéficos

Ou maléficos

Arrebóis.

 

E aquilo aumenta

A culpa duma mãe.

Já devia bastar a tormenta,

Qualquer que fora,

Que tem

Agora,

A dor clandestina

Para não incomodar ninguém,

Para se proteger da má sina

Do comentário bem-intencionado

De alguém

Malvado,

Daqueles que magoam

Até à fundura de alma onde ecoam.

 

Basta-lhe a breve fala,

Uma ponta solta aqui,

Outra ali,

A ver se algum ouvido se arregala,

Nela pega

E a sossega.

 

Até porque anda muito cansada,

Porventura esquecida,

Distraída

Ou, finalmente, esgotada.

 

- Quem tiver ouvidos para ouvir

Que ouça, pois, e trate de agir.

 

 

Quisera

 

Como se a mãe quisera andar triste!

Pedir-lhe que não

É uma reprovação.

Quem é que tal escolha liste?

 

Como se fora frágil e tão fraca

Quando a tristeza a ataca,

 

Que não faria nada convincente

Para encará-la de frente!

 

Como se, escrava,

Jamais decidira opor

Da valquíria a feminil clava

À dor.

 

Grande engano...

E, por mor dele, quanto dano, quanto dano!

 

 

Incompatíveis

 

Estar grávida, andar triste

Parecem estados de alma

Incompatíveis que aviste.

 

Porém, o estado de graça

Podemos vivê-lo com calma

Sem euforia a drapejar na praça.

 

Humano, bem humano

É ao velame,

Ante qualquer gravame,

Trocar de pano

Conforme o mar no-lo reclame.

 

 

Momentos

 

Toda a grávida tem

Momentos de tristeza,

A gravidez não é bem

Como se preza.

 

O corpo muda,

Muda a vida pessoal,

O trabalho não ajuda,

Em geral...

 

O bebé preocupa,

O parto não é grande perspectiva...

E não haverá, olhando à lupa,

Porventura estragos que a distracção activa

Por o filho não ser sempre desejado

Num perene abraço apertado?...

 

 

Finda

 

Uma grávida finda triste

Porque é saudável,

Sente e pensa – existe,

Irremediável.

 

Imagina e fantasia

E mal faria

 

Se alguma vez não chorara solitária

A vida vária,

 

Ou não falara envergonhada

Do que assusta e inquieta

Na estrada

Quase nunca recta.

 

Ou não se partira ao meio

Entre como sente e como se adequa

A uma alegria que não é sua,

Por receio.

 

Ou o modo como não aceitara

A velada censura

De que a boa mãe nunca vacilara

Sem dúvidas, segura,

Sem o receio em que apetece até fugir

Da gravidez,

A seguir.

 

Morbidez

É não lhe ser permitido

Ignorar o bebé por um bocado,

Por ter ido

Arejar ao eido ao lado,

 

Amuar ou zangar-se

Com ele

Lamentar-se

Da gravidez que lhe incha a pele...

 

- O proibido e não aquilo é que é vício

E merece a arranhadela do cilício.

 

 

Basta

 

Basta de brigada

De bons costumes

De mães em arruada

De azedumes!

 

Ou por preocupação,

Ou para espiar em surdina

Males que noutrem ocorrerão

Como os da má cabeça que as domina...

Não!

 

Nunca da mãe a tristeza

Ao bebé fez mal.

Ele lê-a com destreza,

Mais quanto à tristeza abale

E a ultrapasse, de surpresa em surpresa.

 

A uma mãe de ferro e aço

Faltaria

Aquele toque de magia

Que a mãe troca, a par e passo.

 

Quando a culpa atinge

A mãe,

Mais de fúria, muitas vezes, o coração lhe tinge

Também,

E aí é mais mãe ainda

Na vida advinda.

 

Que mal, então,

De andar triste em qualquer ocasião?

 

 

Hora

 

Uma hora pequenina?

Pois sim,

Se é a que destina

Do parto o fim.

 

Mas o parto

É uma aventura

Que ali principia e donde parto

Para a vida inteira,

Dos anos pela ladeira

Insegura,

Para só terminar à beira

Da sepultura.

 

É da humana sina

Que acometa

Até a derradeira meta

Do confim.

 

E nem ali termina:

Do outro lado delineia,

Renovada, nova teia,

Infinitamente assim...

Uma hora pequenina?

Pois sim...

 

 

Falta

 

Falta experiência de mãe,

O aleitamento

É também

Um tormento,

O bebé não toma o jeito

De apanhar o peito...

 

Qual instinto, qual nada!

É só reparar:

A mulher não nasce ensinada

A dar de mamar.

 

E tudo assusta:

Manhã, tarde ou noite,

O bebé chora

A qualquer hora,

O que aflige quem à justa

Nunca tem onde se acoite.

 

E dormir a saltitar?

Só quem nunca viveu em tal lugar!

 

 

Chega

 

Chega à mãe uma enfermeira

E fala.

Chega outra após a primeira

Que a manda levantar

E logo abala.

Depois é a visita rotineira

Do médico a examinar.

 

E os pontos repuxam

E custa.

E há quem diga que as mães luxam

Com o bebé que, afinal, só barafusta!...

 

E a mãe da cama ao lado

A chorar o bebé doente que lhe hão tirado...

 

E o filho, nada glutão,

Que não quer peito nem biberão!

 

E chegam as visitas

Mais as alegres fitas

 

E vêm, vão e voltam

E nunca mais de vez se soltam...

 

E a fadiga

Que com a mãe briga e briga e briga...

 

Que cansaço de alegria!

Nunca mais

Haverás paz

Em nenhum dia?

 

 

Repente

 

De repente o mundo parou:

Deitaram-me o bebé ao lado

E tudo o que alguém imaginou

Anda enganado.

 

Ele é mais tudo

Que todo o imaginário,

Do miúdo ao graúdo,

Me entregou de salário.

 

Nem apetece dormir, mas olhá-lo.

A que rostinho de seda

Leveiro o dedo aceda!

Que regalo!

 

 

Física

 

Não é fácil a física gravidez

E é esgotante.

Do meio para o fim, talvez

Ninguém logre atingir

Posição para dormir,

Noite adiante.

 

Comum é o sono que nunca for

Reparador.

 

A bexiga é pressionada,

Vulgar, a azia,

A respiração, ofegada,

Como duma inexistente correria.

 

O coração reage ao peso demais,

Do hospedado entre órgãos vitais.

 

De repente, a dor aguda,

Do feto que se movimenta,

De algum órgão a que acuda

Empurrar na dança lenta.

 

Se andar demais,

A grávida desfalece,

O bebé reage a estímulos tais

E a cólica aparece.

 

Se longo dura o período sentada,

Impõe-lhe uma dor

Que se distenda, esticada,

A contrapor.

 

A grávida luta

Contra o corpo que não reconhece

E a disputa

Até ao fim nunca arrefece.

 

 

Amparar

 

A gravidez incomoda, cansa e magoa.

Se o par

Amparar e cuidar,

É uma gesta boa.

 

É mais dura se, à fadiga,

O desamparo com que vive

Se liga

Que de acolhimento a prive.

 

Ora, o desamparo

Não é assim tão raro.

 

E se outros filhos mais

Sobrarem para ela?

Como distribuir cuidados reais

Por tanta parentela?

Pegar ao colo,

Dar banho,

De lã adormecer cada rolo

De pequenino anho...

 

Mais ainda cuidar,

Em exclusivo,

Do lar,

De que a mãe é o fogo vivo...

 

- E há quem fale

De férias do parto!

Bom é que isto se propale

Mentalidade além,

Não vá de vez alguém

Findar daquilo farto.

 

 

Dentro

 

Dentro da grávida corre,

Mais ou menos silenciosa,

A vivência anterior que, por tudo e por nada, acorre

Temerosa.

 

O medo de morrer,

O que a seguir

Ao nascimento vier

A surgir,

Ajudas que poderá não ter,

Os custos que lhe irão pedir...

 

A culpabilidade por qualquer

Falha que nem deu para entender.

 

Desacerto familiar,

Na relação do casal,

No indicador que não há modo de acertar

Do bebé no sinal...

 

Um pesadelo

Ocasional

Que no bebé ganha foros de atropelo...

 

- Mil e uma reticências

Discretas

Que lhe povoam o coração de ausências

E diluem a euforia das metas.

 

 

Pai

 

O que o pai sente

É irrelevante

Perante

Uma gravidez presente?!

 

Como se não tivera direito

A uma opinião:

Ora não lhe prestara divino preito,

Ora a sentira como traição.

 

Tal se não fizera contas

Do bebé ao crescimento,

Mesmo àquelas pontas

Que interferem, descompensam

Do casal o relacionamento

Muito para além do que todos pensam.

 

Como se não existira

Um pai em mira!

 

 

Divórcios

 

Divórcios cada vez mais

Durante a gravidez...

Fúria de ressentimento dos pais?

O bebé aclara

O que os separa

De vez?

 

Um bebé, mesmo divino,

Jamais logra ligar

O que, por mau tino,

Pai e mãe, a par,

Foram obrando, de modo que o ganho

É que um ao outro se foi tornando estranho.

 

Muita gravidez vivida

É vivida numa solidão

Pelo bebé sentida

A inundar em redor por todo o chão.

 

E na lama

Se afoga então do lar a frágil trama.

 

 

Dádiva

 

Depois de nascer, a dádiva do bebé

É engolida pela fadiga e pela exaustão,

Pelos custos que não permitem tomar pé,

Por afectos em contradição.

 

A história dos pais delimita

As próprias competências como pais.

Tudo desregulado,

Sono, vida e sintonia

No casal perturbado,

Suscita

Turbulência demais

No dia-a-dia.

Oxalá que a dádiva compita

Com efeitos tais.

 

Ou nada restará dela

No lameiro da viela.

 

 

Tornam

 

A mãe e o bebé tornam ao lar

Para serem varridos por um tornado

Que se irá prolongar

Anos inteiros, sem poder reformular

De partida o dado.

 

Conciliar

Namoro, crianças,

Vida familiar

Nunca mais o alcanças,

Nem labor e lazer

Sequer.

 

Tudo fica comprometido,

O bebé comanda

Da família o rumo e o sentido

E à ordem dele tudo o mais anda.

 

Onde é que os pais

Têm agenda para namorar,

A darem mutuamente a mão nos tremedais

Aonde a vida os atirar?

 

Como conciliar exaustão

Com gestos de carinho,

Para não cultivarem ao serão

Um silêncio maninho

Que os divorcie lentamente,

A tal ponto que a gente,

De tanto cuidar do ninho,

Nem o sente?

 

As prioridades amorosas

Vão-se desencontrando:

Da ternura já não gozas

Desde quando?

 

Ante a aparente indiferença,

De repente o pai

Crê na sentença

De que o amor se esvai.

 

E a estratégia de enamoramento

Enregela ao relento.

 

Então é normal

Que confabule

O casal

Que lá se foi de noivar o véu de tule.

 

 

Transpõe

 

Quando o bebé transpõe a cerca,

Ao diurno cuidado de terceiros,

Pai e mãe sentem acaso perca,

Vazios os terreiros,

Com sensibilidades desencontradas

Perante a novidade das jornadas.

É normal e sadio:

Dois afluentes no caudal do mesmo rio.

 

 

Avós

 

Como é que os pais lidam

Com os avós do bebé?

Por igual os convidam,

Entregam-no a qualquer deles com a mesma fé?

 

E respeitam estes as rotinas,

A privacidade do casal,

De modo que as sinas

Não transformem um nascimento,

Afinal,

De rupturas num fermento

Em que a vida em comum

Não a vive mais nenhum?

 

 

Cabem

 

Onde cabem do bebé os irmãos,

No meio da barafunda

Com que a chegada dele inunda

Do lar todos os desvãos?

 

Os pais amolecem a regra,

Amoldam a tolerância

Do que integra

O crescimento,

Com ânsia

De não falharem o momento.

 

E, quando uns filhos regridam

E outros voltem à chupeta,

É comum que os pais colidam

Quanto à fórmula correcta:

 

Tudo tropeça

No viés

De, ao tapar a cabeça,

Destapar os pés.

 

Não admira

Que a vida inteira pareça

Que delira.

 

- Mas é o que é mesmo sadio:

Da vida a turbulência do rio.

 

 

Mais

 

Mais que quenquer,

O bebé ajuda

Os pais a crescer:

Em chegando, tudo muda.

 

Há um antes e um depois,

Tal a transformação

No crescimento dos dois

Desde então.

 

O egocentrismo infantil

Que entre os pais eventualmente perdurara

Matiza-se num olhar de anil

Que a bondade ampara.

 

Sem o miúdo ali

Jamais o vi.

 

A complexidade que ele carreia
À vida dos pais é tão em maré cheia

 

Que basta a devirem conciliadores,

Mais simples nos actos e nos humores.

 

Findam melhores e mais bonitos,

O bebé sempre a atender, embora aos gritos.

 

 

Barriga

 

O bebé, no aquário

Da barriga da mãe,

Temperatura de relicário

Ao dispor tem.

 

Temperada,

Opera melhor

Que outra qualquer

Que da vida na jornada

Se lhe vier

A contrapor.

 

A mãe caminha e roda

E no transcorrer da postura

Nenhum solavanco incomoda

O deslizamento que apura.

 

Ninho de útero materno

Tentamo-lo reproduzir

Quando o colo ritmado e terno

Brandamente o bebé sacudir.

 

Estimula a corporal

Do bebé tonicidade,

Com mais cabeça, ao final,

Melhor racionalidade.

 

Atinge-o da mãe a voz,

O tom dela é familiar

E o mais lento ou mais veloz

Coração a palpitar:

Quando o bebé ali ao colo aconchega,

A mãe logo o sossega.

 

O ruído do mundo lá de fora

Leva o recém-nascido

A não dar, de vir à luz na hora,

Nenhum salto no desconhecido.

 

 

Comparam

 

As mães comparam os filhos,

Os pais também.

Melhor atam os mútuos atilhos

Como a cada um convém.

 

Que mal é que tem?

 

É não ser estulto

E apurar bem

A cada milha do itinerário

O melhor sumário

Do vindoiro adulto.

 

 

Procuram

 

Dos filhos comparamos o feitio,

Os que procuram mimo,

Os ariscos,

Os que ajudam sem fastio,

Os que acarinham (de seu dia é o cimo),

Os que dão colo contra raios e coriscos...

 

Como se desembaraçam com os mais,

Como se destacam na escola,

Nas artes,

No desporto...

É por comparar quinteiros e quintais

Que a vida se desenrola

Com as convenientes partes

A cada campo e cada horto.

 

Assim é que nos podemos propor

Esperar mais

E melhor.

 

 

 

Cuidando

 

De tanto os filhos compararem,

Mães e pais se auto-castigam,

Cuidando que é discriminarem

Quando é promovê-los,

Cada qual nos próprios elos,

O melhor que consigam.

E consigo

Brigam

Num perpétuo castigo...

 

- Somos tão cúpidos

Que findamos estúpidos.

 

 

Cria

 

Comparar dois filhos

Cria as condições

Para melhorar dum os atilhos

Deixando ao outro os senões.

 

Os pais não gostam

Por igual nem de igual modo

De todos os filhos em que apostam

A todas as horas. Não, de todo.

 

Às vezes é um fraco por um,

Às vezes, por outro, uma queda.

Choque com este ocorre algum

Quando com o outro é conversa o que suceda.

 

E qual é o mal?

- São todos iguais no desigual...

 

 

Prol

 

Se o coração escorrega

Dum filho em prol da ladeira,

Os pais findam à beira

Da vergonha que isto lhes lega.

 

Mas também interpelados,

A respirar fundo, pondo-se em causa.

E reaprendem a gostar, sem pausa,

Dos filhos ignorados.

 

E gostam de todos igualmente

De forma diferente.

 

E gostam por igual

De todos, afinal.

 

Depois vem a censura

E a promessa de nunca mais.

Até que num se apura

O que outro não tem nos bornais.

 

Não há como evitar,

Doravante, de novo comparar.

 

Aliás, se não comparara todo o dia,

Como é que em causa tanto me colocaria?

 

- Nunca haveria tão bons pais

Sem vivências tais.

 

 

Apática

 

A criança se deprime

Quando tem um novo irmão,

Apática ante o novo regime,

Implicativa, resmungona, inflamável,

É toda um não.

 

Desafiadora

Em tudo o que fora

Questionável.

Chora às vezes, desolada,

Por tudo e por nada.

Salta da atitude protectora,

Afável,

Para a que nunca ninguém almeja

Do ciúme e da inveja.

 

Termina em picardia

E postura agressiva

Do nada vindas à luz do dia

Ante o novo conviva.

 

- É o trilho sadio

Para ir retomando o fio.

 

 

Trono

 

Não tem graça nenhuma

Ter um irmão

Quando tudo se resuma

A cair do trono ao chão,

De primeira para segunda figura.

E nada, afinal, nos segura...

 

Já ninguém se congratula

Com as gracinhas do mais crescido,

Tudo é gula

Do bebé aparecido.

 

Levar um corte de mãe

Quase total,

Ter de reclamar colo

Quando colo se não tem

Nunca, afinal.

Chorar que nem um tolo,

Por tudo e por nada,

Que vida mais atribulada!

 

Por muito que a mãe, sem nenhum talvez,

Os trate sempre por “os meus bebés”.

 

 

Saudável

 

É mui saudável que irmãos

De irmãos tenham relação:

É cão e gato entre mãos

Em criativa versão.

 

É uma imensa expectativa

Que, consumada,

Logo se arquiva,

Pela vida real transtornada.

 

Rápida aumenta a barriga da mãe

E nem colo se tem.

 

Depois ausenta-se e, quando volta,

Anda o diabo à solta:

 

Tudo tem

Mas é para o zé-ninguém.

 

É dar de mamar,

As fraldas,

Dormir e acordar,

“Vê lá se não te escaldas!”

Com água do banho ou leite

E o mais que se lhe ajeite...

 

De repente, o susto

Até leva a portar bem,

Desocupar lugar a custo,

Nem reclamar, mesmo se convém...

 

E a mãe:

“Olha o mano, não é lindo?”

Ora, ele, o primeiro, que é que advém?

É agora o feio mal avindo?

 

 

Atento

 

O bebé é atento ao irmão,

Menos intimidante e pequeno.

O mais velho, porém, não

Retribui o aceno.

 

Não é recíproca a veneração,

Por mais que a mãe

Reafirme a convicção

Do que bem desejaria e não tem.

 

E é assim que deve ser,

Não o que a lógica quiser.

 

 

Apresenta

 

O mais velho tem ciúmes

Do bebé.

Não apresenta queixumes

Se ele nem se tem de pé,

Não lhe mexe nos brinquedos,

 

Não lhe desarruma o quarto.

Só que os bebés nunca estão quedos

O mais paciente finda farto.

 

O mais velho é desamparado,

Em choque, apático, triste.

Exigem-lhe ser ajuizado

Mas que juízo em tudo isto existe?

 

Parece menos um bocadinho

Filho que o mano ali vizinho...

 

Doido pelo mano?

Não, é o estado

De tentar a todo o pano

Evitar o dano

De quem se sente posto de lado,

Fazendo aquilo que é premiado,

A ver se tem

Um pouco mais de pai e mãe.

 

Quando o mais pequeno se aventura

E pisa o risco,

Do mais velho invadindo o talhão,

Tudo se cura

Ao bofetão,

Não ao petisco.

 

Aí é que então

Sendo tudo o cão e o gato,

A relação

É mesmo de irmão a irmão,

Sempre a ultrapassar o desacato.

 

Aí, cada vez mais,

Um sem o outro não passarão,

Sempre atracados no mesmo cais.

 

 

Filho

 

O filho mais velho tem prerrogativas

Que mais ninguém

Tem,

Por mais que por outros filhos vivas.

 

Todos os pais testam nele os pais que não tiveram,

Os pais que idealizam ser,

O que no próprio crescimento não cresceram

E ali esperam poder empreender.

 

O primeiro filho é a colheita

Do primeiro campo de milho,

À desfolhada atreita

Da festa com todo o sonhado brilho.

 

 

Fruto

 

Fruto da insegurança parental

O mais velho é o certinho oficial.

 

Fruto de cuidados e atenção extremas,

De quanto anseiam

Que evite erros e lemas

Em que se enlearam e, porventura, inda enleiam

Quando foram da idade

Da imaturidade.

 

Apesar do custo,

É ele que tem

O álbum com tudo no lugar justo,

Como convém.

 

A nota ternurenta

E delicada,

Desde a madrugada,

Só ele a apresenta,

Do lar em toda a jornada.

 

 

Rebelde

 

O filho mais novo

É o rebelde encartado,

O sedutor oficial de todo o povo,

Preguiçoso apaixonado,

O bem-disposto, mesmo no que nem aprovo...

 

O benjamim

É o seguro de si,

Onde os pais levam até ao fim

O que aprenderam por aqui e por ali.

 

Beneficia

Dos erros geniais

Em que, com os irmãos, dia a dia,

Os pais aprenderam a ser pais.

 

 

Gostam

 

Os pais

Gostam melhor,

Gostam mais

Dum filho que dos demais,

Mais do que seria de supor.

 

E aparece

Contra aquilo que trejuram,

Pois nunca apuram

O que deveras, refece,

Descuram

E acontece.

 

 

Zangam

 

Quando os pais se zangam com um filho,

Ele irá concluir então

Que os pais gostam mais do casquilho

Do irmão.

 

“Tu não gostas de mim,

Gostas é do meu irmão”

- Arrasa ele qualquer compostura, assim,

Joga tudo ao chão.

 

E os pais findam condicionados

Quando deveriam ficar era zangados.

 

 

Segunda

 

O filho do meio

Tem pais em segunda mão,

Herda o carrinho e o recheio

Do irmão.

 

E a roupa,

Que o ganho é de quem poupa.

 

O álbum que seu for

Não terá do primeiro o primor.

 

E pesam mais as noites mal dormidas,

Por pai e mãe repartidas.

 

As gracinhas já são mero fato usado,

Nada de genial nem sobredotado.

 

Mas também conta a promoção a se impor

De ser mais novo e portar-se melhor.

 

E a culpa dos pais

Por ao mais velho e mais novo atenderem mais.

 

E a mãe que já não desmaia com o que quer que seja

Quando ele se aleija...

 

- Todos iguais,

Todos diferentes

Como todos os mais.

E os amores todos complementares,

Sejam quais forem os patamares

Presentes.

 

 

Ocupado

 

Todos os filhos,

Independentemente do lugar

Ocupado no seio

Do lar,

Já se sentiram alguma vez, no meio dos sarilhos,

O filho do meio,

Entre extremos a tergiversar,

Com receio

De nunca mais acabar.

 

 

Desenvolver

 

Para desenvolver uma criança,

O pai não é um bem

De segunda necessidade.

Ela alcança

O alcance que tem

Cada faculdade

Apoiada ao cajado

Que o pai também lhe houver dado.

 

É um esteio

Da personalidade no meio.

 

 

Milénios

 

Como as mães vieram de mãe em mãe

Pelos milénios além!

Como foram tendo filhos e mais filhos,

Enterrando sempre vários,

De mortes prematuras a desatar atilhos

Em milenares calvários!

 

Como foram cuidando, exclusivas,

De filhos de todas as idades,

Quantas vezes sem ajudas efectivas,

Sem compreensão, sem carinho.

Sem amizades,

Nem dum lar, nem ao menos dum vizinho!

 

Quão empurradas para domésticas serem,

Sem escola nem profissão,

Sem autonomia económica,

Não vá quererem

Outra missão

Com visos de autonómica!

 

Como foram exploradas,

Incompreendidas, mal amadas!

 

Tinham tudo para serem azedas, agrestes,

Austeras, umas pestes,

 

Indispostas, indisponíveis.

Tinham todos os motivos elegíveis

 

Por quem

Não queira ser mãe.

 

No entanto, a humanidade,

Milénios além,

Quando cresce em bondade,

É por mor da mãe.

Foram elas que, nas conjunturas mais violentas,

Se mantiveram serviçais atentas,

 

Nas mais absurdas condições,

Nas mais adversas exigências,

Deram aos filhos as razões

Para lidar, vida fora, por entre as prepotências

Da morte, desamparo, perversidade,

Sofrimento, fatalidade,

Lidar convictos de que o derradeiro factor

De tudo é que há mesmo amor.

 

Raiz

Dos valores,

O amor de mãe é a matriz

De todos os amores.

 

Se ser

É amar,

Então, para todos,

É por cada um ter

Este lugar

A rodos.

 

 

Hoje

 

Se hoje a morte infantil

Não é nada do que foi;

Se à liberdade a contracepção um perfil

Deu à mulher

Para escolher

O que a não mói;

Se hoje a mãe é escolarizada

Como nunca, da humanidade na estrada;

Se hoje a mãe

Uma profissão e uma carreira

Tem

Que dela própria a inteira

E, por divisa,

A autonomiza;

Se pulou do lar e atingiu mundo

Emprestando-lhe o toque fecundo,

A verdade é que a mãe

Sobre ela própria ainda retém,

Para além da profissão,

Do lar o labor e a gestão

Mais a função supervisora

Dos vincilhos

Da vida dos filhos,

A toda a hora.

 

Pouco reconhecidas

E muito mal amadas,

As mães querem, apesar de tudo, apenas vencidas

As muralhas que forem erguidas

Em todas as jornadas.

 

 

Decidir

 

Toda a mãe é corajosa

Ao decidir ser mãe.

Corajosa por a barriga crescer, esponjosa

E sentir-se bem

Pelo rei que aí briga

E cantar-lhe uma cantiga.

 

Corajosa quando o coração se encolhe

E a cabeça tropeça

No medo que a tolhe,

Que atravessa

Um bocadinho o solidéu

Que é seu.

 

Corajosa ao acolher a dor

E guerrear com ela,

Que o valor

A pagar por tal tabela

É que a conduz

A dar à luz.

 

Corajosa na primeira noite com o bebé,

Toda a emoção ao léu,

Como se, onde o medo perdeu o pé,

Principiara o céu.

 

Corajosa ao tomar o bebé, acolhê-lo,

Aceitá-lo,

Aprendê-lo,

Adivinhá-lo,

Desvendá-lo,

- Conhecê-lo!

 

Corajosa nele ao pegar,

Dar-lhe a mama,

Segurar

E sentir aí

Que o melhor de si

Dá-se a quem ama.

 

Corajosa quando o acalenta,

O embala,

Lhe canta o que inventa

Como a maior gala.

 

Quando é o anjo da guarda

E ninguém

A ela, afinal, a resguarda

Dos papões que ela tem.

 

 

Coragem

 

A coragem requerida

No primeiro dia a sós

Com o bebé sem medida

De contras e prós

E a mãe, de medos à resma,

Entregue a si mesma!

 

Muda fralda atrás de fralda

E, a seguir, a roupa toda,

Que não pode girar à balda

Esta roda

Centenas e centenas de vezes...

- E os gestos, sempre corteses!

 

Pega nele, mergulha-o no banho

(Toda a temer que se desmanche...)

Enamora-se dele com tanto ganho

Desde a hora de cada lanche

Que o que de melhor ameio

É que nem há mais tempo nem receio.

 

Acorda várias vezes

Cada noite

Muitos dias, muitos meses

E, em lugar de isto ser um açoite

Capaz de a rebelar,

De a pôr a rabujar,

De desistir,

- Leva a sorrir,

Baixar a voz ternurenta,

Muito os olhos a abrir,

E a ser bondosa cada vez que o diabo a tenta.

 

E, quando todos entretidos,

Ruidosos, distraídos

Nada sentem,

Como é que os sentidos lhe não mentem

Ao escutar

O filho que acaba de acordar?

 

E paga nele e em si e vai à rua,

Contorna obstáculos e barreiras,

Dá-lhe mundo, sol e lua

E cultiva leiras

De comentários de estranhos,

Cheia de orgulhosos ganhos.

 

E nem um olhar assustado

Nem um ar extenuado!

 

 

Separar-se

 

A coragem do coração destroçado,

Ao separar-se do filho a primeira vez,

A estranhos confiado

Para que lho guardem e cuidem naquele entremez!

 

A coragem quando ele chora de aflição,

Quando se magoa e chama pela mãe

E a mãe quer um colo que não tem

Para fugir, na ocasião,

E então,

Estrebucha, teima, combate,

Cuida, protege e nunca se abate!

 

Mas à noite chora de mansinho

Só para si, dobrada no ninho...

 

A coragem de se aventurar

Por quanto nem eles sabiam,

Os medos a guardar

Que só tolhiam!

 

A coragem de sentir-se derrotada

Quando não levou de vencida

A nova estrada

Pretendida!

 

A coragem de se esquecer

De que anda cansada,

Desistir de perceber

Que lhe apetecia também

Uma jornada

De férias de mãe,

Um canto para onde fugir

Onde ninguém

A visse nem chamasse

E, a seguir,

Ainda encontra a energia que abrace

O filho que põe a rir!

 

 

História

 

A gente conta

Vezes sem conta

“Só mais uma vez”

E a história acalma

Com novel alma

Em cada entremez.

 

De sentido não tem ponta

Mas é o que a verdade aponta.

 

Como é que isto se fez,

Que é que se faz

Que tanto apraz

Mês após mês?!

 

 

Reconhece

 

A mãe reconhece os medos

Muito antes dos demais,

Os medos sem os quais

Nem sábias nem corajosas

Seriam. Só com arremedos

De prosas

De mãe

A quem não reconheceria

Ninguém.

Ora, mãe

É sempre a magia

Da poesia

Que cada dia contém.

 

 

Sim

 

Diz sim sempre que é viável,

Que o não ao recusar,

Porventura afável,

Nunca nos faz mudar.

 

Ora, quem não muda

Ao passado se gruda:

 

Já morreu

E ainda não viu!

 

 

Sogra

 

A sogra da grávida

E a rivalidade

A que, quantas vezes ávida,

Se persuade.

 

Além da da mãe

Que a grávida tem

Ainda vem mais esta,

A infiltrar-se na fresta

Que a janela do lar sempre contém.

 

Mãe e sogra a rivalizarem

De protagonismo

De avós a se entrechocarem

É mais um passo na beira do abismo.

 

Pendores durante e após a gravidez

Ocorrem tão vertiginosos

Que nem os vês,

Inconscientes e perigosos.

 

Condicionam mais do que parece

Quanto a vida tece.

 

E ninguém daquilo fala,

Nem mãe nem sogra

E o pai também se cala,

Que muitas vezes nem falar logra.

 

É a solidão da mãe:

As pessoas em redor existem

Mas ninguém

Retém

Sinais que a despistem.

 

Ninguém desata os nós

Que pela calada atormentam,

Após

O instante em que fermentam.

 

A infinita solidão

Da família no meio da multidão...

 

 

Alimentar-me

 

Alimentar-me dum olhar

Alegre e agradecido

Dum filho,

Tal se, num momento sem par,

Eu fora fada, mágico desmedido

Que à lonjura vai

Atar um atilho...

- Tal se eu fora pai!

 

 

Apetecer-me

 

Ser pai é apetecer-me chorar

Num cantinho aqui

Quando um filho declarar:

“Pai, gosto de ti!”

 

E nesse momento o mundo feio

Ficar de Natal cheio.

 

E tudo é um íntimo segredo

A que só eu com ele acedo.

 

 

Deitar

 

Ser pai é deitar um filho,

Adormecer antes dele,

Deixar-nos estar, apagado o brilho,

Sentir-lhe a mão a tocar-nos a pele,

A ver se ainda para si

Estaremos ali...

E descobrir que isto não é o céu, decerto,

Mas anda lá perto.

 

 

Julga

 

Ser pai é nunca ter vestido

O que a mãe julga que é requerido.

 

Ou que, apesar de ele ter o filho lindo,

Ela o vê de nódoas vestindo.

 

E, se um filho se besunta

E de beijos nos unta,

 

Ela contesta que não pode ser assim,

Que temos de lhe pôr fim:

 

Parecemos ser até

Mais criança do que ele é...

 

E depois isto é a magia

De ser um lar cada dia.

 

E de todo o dia findar

Por assim ser mais e mais lar.

 

 

Amuar

 

Ser pai é amuar devagarinho

Quando um filho diz: “Não sou teu amigo”,

Só porque não deixámos, em nosso abrigo,

Armar o desalinho.

 

Até a patetice

De lhe retorquirmos:

“Também não gosto da tua esquisitice”,

Sem nos rirmos.

 

 

Tente

 

Ser pai é ser distraído

Mesmo que tente saber

O rol de amigos comprido

Que o filho tiver.

 

E mais a lista dos pais

Sem os trocar como tais...

 

Só a mãe há-de saber

A lista como há-de ser.

 

O pai perde nesta lida

Sempre a medida.

 

 

Quedas

 

Ser pai é amar

Sem intervalos nem férias,

Não vá o céu desabar

Sobre os filhos. Quedas sérias,

Decerto,

Se não estiver por perto...

 

Por isto não vou poder

Nem desistir nem morrer.

 

E é ter e certeza,

Mesmo quando lá não estiver,

De que o pai serei que ele preza

Sempre e mais que sempre também:

Serei pai para Além...

 

 

Tortura

 

A tortura do sono

Do bebé que, de hora a hora,

Requer a paga do abono

Sem demora!

 

O que das mães se apura,

Finda a provação,

É que aquilo não,

Nunca foi tortura...

 

Difícil, sim,

Nada mais, porém, assim.

 

A mãe recente

Sente-se má mãe:

Adora o filho, evidentemente,

Mas sente-se consumida por ele também.

 

Deslumbra-se com tanta beleza

Mas ele vai dar com ela em doida, de certeza!

 

Comovem-na as gracinhas da pequenina estrela

Mas às vezes só dá vontade de atirá-la pela janela!

 

 

Após

 

A mãe não pode reagir

Equilibrada e bondosa

Quando, após dar de mamar sem tugir nem mugir,

Muda uma fralda malcheirosa

E, a seguir,

Muda-a de novo, que o bebé se aproveitou

E muda o resto que também se sujou.

 

Depois deita-o delicadamente,

Aconchega-o, amorosa,

E ei-lo a dormir

Como um inefável presente.

 

A mãe respira fundo,

Sorri,

Apaga a luz, adeus, mundo,

Boa noite para ti,

 

Desliza sob os lençóis

Que a vida é bela.

E nem uma hora depois

Desaba a procela:

Um protesto ligeiro

Primeiro,

Depois a rebelião

Que nem de berço embalado até ao chão,

Um choro de raiva que não pára...

- E do avesso a vida desmascara.

 

Que é que faz a boa mãe?

Abre a luz,

Respira fundo,

Sorri,

Está tudo bem:

Tudo se reduz

Ao mundo

Que houver ali.

 

E tudo recomeça

Em corrente vã,

Peça a peça,

Até de manhã.

 

 

Fala

 

Qualquer boa mãe

Fala sozinha:

“Que lindo, hein?

Coisa mais fofinha!”

E nunca se há-de cansar

De o amar.

Até parece mania

Mas é o cúmulo da sabedoria.

 

 

Sorte

 

Porque é que o bebé grita?

O bebé se certifica

De que a sorte é bendita,

Nenhum mal se lhe aplica:

 

Hoje,

Nem no silêncio da noite

Nem no escuro onde se acoite

A mamã lhe foge.

 

 

Sono

 

O sono da mãe virá mais tarde,

Quando puder chegar.

Por ora reage ao bebé, devagar,

Que dele o mal-estar

Mais nela que nele arde.

 

Funciona,

Chora por nada,

Enfuria-se por um negalho vindo à tona,

Pragueja pela calada...

 

Julga-se insuportável,

Imagina que apenas com ela

Ocorre o inominável

E o céu lhe apaga toda a estrela.

 

E tudo todo o dia se repete,

Eterno,

Parece que à vida nada mais compete

Que servir-lhe o inferno...

 

E depois de tudo o que ocorre, quando já ocorreu,

A mãe ainda julga, afinal, morar no céu.

 

 

Sem

 

Sem amor não há vinculação,

Sem vinculação não há o amor,

Mesmo com um ror

De instinto maternal em acção.

 

O bebé faz que a mãe se sinta

Desmedidamente amada.

O que pinta

A mãe de tão deslumbrada

Tinta

Que lhe entrega a ela toda a jornada,

Com a promessa grave e distinta

Duma nova madrugada.

 

É nesta reciprocidade

Que se gera

A era

Da Humanidade.

 

 

Formula

 

O bebé traz apelos,

Coloca desafios,

Formula problemas.

Requer quem intua os elos,

Interprete os fios,

Clarifique os lemas.

 

Que o sossegue,

Esclareça

E habilite

A que mais e melhor empregue

Cada peça

Que à vida concite.

 

Sempre mais e mais complexo,

E mais conhecedor.

Por dentro de cada amplexo,

Inteligência a se impor.

 

Promovendo autonomia,

Proteger, ensinar e conduzir

É da maternalidade a via

Rumo ao porvir.

 

 

Dormir

 

Um filho seguro,

A dormir profundo

No escuro,

É o céu jucundo

Inteiro

De que me abeiro.

 

Findo frágil, pequenino,

Íntimo do encantamento,

No deslumbramento

Dum inefável destino.

 

O mundo,

Por mais virado do avesso,

É o mais fecundo

Adereço

De perfeição

Em que tropeço

Pregado ali ao chão.

 

 

Perante

 

Perante um filho a dormir,

Tudo o mais é quase nada,

Ao pé do Céu quase a bulir

De madrugada.

 

Finda o tempo dos escarcéus,

Somos quase Deus.

 

O tempo pára,

De eternidade uma almenara.

 

 

Serenidade

 

Do bebé a serenidade inaudita

É de o filho confiar

Sem reservas e sem medo

Em nossa guarda perita.

 

E nós a tremelicar,

Na boca o credo...

 

A plenitude serena

Em nós palpita,

Simples, infinita

E pequena.

 

 

Primeiro

 

Por mais

Que seja precioso

O sono dos pais,

Ponha o do bebé,

Que, se calhar,

Bem lastimoso

É,

Em primeiro lugar.

 

Sem sacrificar o seu, obviamente,

Mas que a fadiga não tente,

Para poder descansar,

Resolver rapidamente

O sono do bebé com pressa a mais.

Qualquer agitação ele a sente

Nos olhos, no aperto que lhe dais,

No ritmo, ao fim e ao cabo,

Das palmadinhas no rabo...

 

Pais assustados

Ao sono do bebé pior farão

Que contar carneiros tresmalhados

Para adormecer, findo o serão.

 

 

Aflição

 

Deixe de viver na aflição de ser má mãe

Sempre que o bebé chora.

Ninguém

Quer que ele alargue os pulmões a toda a hora.

 

Mas os sonhos são tão fortes e realistas

Que ele chora a dormir

E, meia hora depois, muda de pistas

E dorme a sorrir.

E nunca chegou

Momento algum em que acordou...

 

Outras vezes é negociar,

Outras ainda é se enraivar,

 

Como quem diz à mãe ou pai:

“Sai! Sai! Sai!”

 

Ou discriminam os motivos

Ou o mal-estar passageiro

Desata a coagir, punhais vivos

À mão do minúsculo parceiro:

“ Ou me fazem aquilo por que imploro

Ou choro!”

 

Angustiada porque afirmam que bebé que chora

É vítima de maus tratos?!

A asneira é lauta...

Essa agora!

O bom senso é que morre vítima de quem se pauta

Por tais desacatos.

 

 

Depressão

 

A depressão pós-parto, a fadiga

E a falta de qualquer outra mãe

Que discreta diga:

“Também eu me deprimi, também,

Quase em clandestinidade,

Com medo de ser má mãe

De verdade.”

 

Feito assim nem tem contra reclamado

Por nenhum lado.

 

É que não há pior solidão

Que andar só no meio da multidão.

 

 

Estranho

 

É estranho falar da mãe

Que um bebé alcançara

Como se ela jamais se cansara

Também.

 

Querê-la atenta e sorridente,

Bucólica,

A dar de mamar, repetente

De duas em duas horas, como dependente

Alcoólica...

 

Entre mudar fralda,

Falar com ele,

Dar-lhe de mamar,

Adormecê-lo sobre a pele

Sem sair do lugar,

O sono escalda,

Espalhado aos minutos pelo dia

Como uma inatingível fantasia.

 

Tem o seu menino Jesus

Numa prisão domiciliária

Onde a vida que seduz

Se fracturou, sumária,

Em nada

Numa era passada.

 

E querem-na presente

Como toda a repousada

Gente?!

 

 

Esbarra

 

Como ser feliz

Se a vida amorosa do casal

Esbarra na exaustão que nunca quis,

Num desinteresse letal,

No coração desolado

Dum corpo mal amanhado,

E o companheiro,

Ao lado,

Viveu a gravidez alheio por inteiro

E nem o parto vivido

Foi por ele nalgum sentido?

 

 

Ignora

 

Que dizer

Do pai que ignora amor e carinho

Após o bebé nascer

E oscila entre amuos de copos de vinho,

Como se fora um filho excluído,

E abordagens sexuais sem jeito,

De falido

A que arrancaram o peito?

 

Como se a memória da recém-mãe

Lhe triturara a vida com ressentimento

E o coração fora anestesiado também,

Num descuido permanente soprado ao vento...

 

Com isto, que mãe

Será feliz, porém?

 

 

Convive

 

Como é que a recém-mãe

Convive com a mãe dela

Se, sem olhar ao que convém

De cada dia à procela,

Como pirilampo esta acende e apaga

Não atendendo a cada vaga,

Quando à filha devia dar colo,

Falar do inquietante

A que ela mal alude, hesitante,

E que compressor é um rolo

Que vagamente aponta

Temendo a repreensão e a conta?

 

Mas depois

Aquela avó lida com o neto

Com um desembaraço cheio de arrebóis,

Quase a humilhar a mãe, ali sem tecto.

 

E tão bem lida

Que a mãe até considera, ao fim,

Que nunca a teve como mãe assim

Em toda a vida!

 

 

Sogra

 

A sogra da mãe do bebé,

Com ânsia de ajudar,

Aparece mais do que devia ao pé,

A próprio filho a apaparicar,

 

Dando a entender até

Que a recém-mãe do que precisa

É do amor do bebé

E mais nada se divisa.

 

Onde fica ela, onde fica

Quando toda a vida se complica?

 

 

Amigos

 

Os amigos da mãe onde estão,

Que se encolhem todos

Quando ela, tímida, deita mão

Ao desabafo, com modos,

Sobre a tristeza?

Ou apenas chora por nada

Aberta a represa

De cansada?

 

 

Julga

 

Todos dizem “bebé lindo!”

E a mãe

Julga que não, porém,

Mas lá vamos indo...

 

Tem direito a chorar

Por mor de tanta fadiga

Ou de desabafar

De tristeza

Como duma incómoda urtiga,

Alheia briga

Que nem preza.

 

Se a amedronta

O leite dela não ser bom,

É logo “não sejas tonta!”

De qualquer resposta o tom...

 

- Não há dúvida: com fé

Só a salva mesmo o bebé.

 

 

Cruzam

 

Se alguém julga que há mulheres de armas

Que cruzam pelo parto e o bebé como leoas,

E outras frágeis, com que te desarmas,

Que se deprimem e nunca findam boas,

Então é que não entende também

Nada de mãe.

 

Pior ainda, é quem

Nunca fala de forma clara

Da abissal algara

Da solidão da mãe.

 

É que sentir-se feliz,

Um ente mágico

A transbordar de amor

E sentir tudo assustador,

Ver-se a sós, de raiz,

Num meio trágico,

Não são afectos incompatíveis.

São níveis e desníveis

De balanceios

Que reténs

Perenemente dos anseios

Das boas mães.

 

 

Fala

 

Sempre que fala, o bebé tem razão.

A maior dificuldade, então,

Ao observá-lo,

Não é daquilo que ele diz,

É de como descodificá-lo

Na sua particular matriz,

A tempo e de modo eficaz.

Não havendo tradução,

Nalgum momento é capaz

De grande aflição.

 

Usa muitas vezes o choro

Para falar

E nem sempre este coro

Utiliza igual acorde ao afinar.

 

Tem cambiantes

E nem sempre dos pais o sexto sentido

Os apura, naqueles instantes,

Tão afinado como é devido.

 

 

Pedindo

 

O choro do bebé pedindo colo

É mais grave e menos continuado:

Chora um bocadinho e fica parado,

Experimentando o pé neste outro solo.

 

Chora de novo,

Até grita, porventura,

Clamando por atenção ao seu recovo

E cala outra vez, vendo o que apura.

 

É um choro de repetência

Até perder a paciência.

 

Diz naqueles traços:

“Repara em mim!

Se dou às pernas ou mexo os braços

É para que me pegues... Até que enfim!”

 

 

Sono

 

O choro de sono do bebé lamuria

Por quase nada.

É uma jeremíada prolongada

Em infatigável melodia,

Aguardando que isto agregue

Um par de mãos que lhe pegue,

Com os bracinhos cruzados,

A embalá-lo como quem caminha,

Acima-abaixo, passos ritmados,

Até que ele sossegue,

Asinha.

 

Aguardando quem nos braços o aninha,

Aconchegante,

Com algum termo que ali mal começa,

Murmurante,

Até que ele adormeça.

 

Choro de sono procura

Um perfil familiar

Que o assegura,

A acalmar.

 

Anjo da guarda

Que não assuste nem se agite

Com a atoarda

Duma gritaria em que o cite.

 

Que, depois,

Apagam-se as sirenes e os faróis,

 

Tudo findo

Com o bebé dormindo.

 

 

Agudo

 

Do bebé o choro de dor

É agudo, porventura estridente,

Conforme a guinada que lhe for

Ferrar o dente.

 

Se for cólica, sossega

De barriga para baixo,

Nos braços de quem lhe pega,

Embalando-o no encaixo

Ritmadamente sereno.

E basta este aceno.

 

É maior

O ferrão da dor,

A que já não chega a prática?

É o momento do doutor

E de eliminar qualquer errática

Outra gramática.

 

 

Adequando-os

 

O bebé fala com os olhos,

Adequando-os ao nosso olhar,

Na demora em nos fixar

Ou de esconder-se em refolhos.

 

Fala no modo de os abrir muito

Ou de apenas entreabrir.

Nada é gratuito

No que teremos de intuir.

 

E forma de nos deixar

Agarrar e apertar?

E a forma como fugidio

Nos escapa ao gesto,

Nosso corpo feito desafio

De lhe atar cabresto?

 

Tudo fala mensagens diferentes

Que os pais intuitivos

Aprendem a legendar,

Ao bebé presentes,

Activos,

Perenemente ali a par.

 

 

Enquanto

 

O bebé tem o direito

De ser bebé enquanto pode,

Dos ritmos dele com o preito,

Dos rituais com que se lhe acode,

 

Sentindo que o mundo

Pára a vê-lo e a descobrir

Quão jucundo

E quão fecundo

É conhecer tal semente de porvir.

 

 

Acordar

 

O bebé tem o direito

De nunca acordar à pressa,

De não viver sujeito

A um relógio que o meça,

 

De não passar o dia
A ver as horas que passam

Olhando o móbil que voltearia

Ante olhos que o nunca enlaçam.

 

Que magia

Perante isto a vida teria?

 

 

Tempo

 

O bebé tem o direito

A ter tempo de mãe e pai,

Para crescer atreito

À humanidade a que sai.

 

Quando é privado

Deste factor de crescimento,

É condenado

A atrasos de desenvolvimento

Contra a própria necessidade

E interesse.

Ora, era aquilo de que a humanidade,

Afinal, carece.

 

Bilontras,

Nem somos bons para nós

Quando deixamos reinar aqueles contras

E nem ligamos aos prós.

 

 

Assustar

 

O bebé tem o direito

A não se assustar todos os dias

E a amedrontado não viver afeito

Se o rosto que lhe avias,

As mãos que lhe mexem saltitam

Cada hora que o incitam.

 

Não tem de viver

Tristonho a cabisbaixo,

Com medo que o entreguem a quenquer,

Rua abaixo,

Para depois o esquecer.

 

Quer que dele o lar se adone,

Não que o abandone.

 

 

Vista

 

O bebé tem direito a se mexer,

A se mover,

 

Sem medos,

Com a vista na ponta dos dedos.

 

A empenhar horas,

Seguro,

A mexer o tronco, sem adiar demoras,

A segurar a cabeça, rumo ao futuro.

 

No fundo,

O que o impele

Não é ele a adaptar-se ao mundo,

É o mundo crescer com ele.

 

 

Medo

 

O bebé tem direito a dormir

Quando lhe apetecer,

Não para fugir

Ao medo que tiver.

 

E que o adulto reconheça

Que o bebé sossegadinho

É aquele cujo sossego tropeça

Num crescimento maninho.

 

 

Faltam

 

Como é que a mãe,

Ao fim dos cinco minutos

Que para ela nunca tem,

Fará que os produtos

 

Que lhe faltam para andar equilibrada

Lhe não desabem na cabeça,

Deixando-a desarrumada,

Nem, seja qual for deles o calibre,

Se desequilibre?

 

É que além

Do tempo que não tem,

A mãe numa creche pensa,

Nos arrufos do marido

Que não entende a fadiga que a põe tensa

E vive meio distraído,

Para tudo isto adormecido.

 

A mãe tem o emprego e compromissos,

Pede desculpa por precisar

De ir ao pediatra por mor dos enguiços

Que o mais novo andam a murchar.

 

- Como logra, sem ludíbrio,

Manter

Um equilíbrio

Para além

Do que alguém

Pode entender?

 

 

Custas

 

A mãe tem de pagar

As custas da maternidade?

Não tem de ser assim

Mas é, no fim,

Para a mulher vulgar

Da comunidade.

Os “cinco minutos só para mim”

Nenhuma os encontra em seu confim.

 

Apesar de tudo,

Logram ser bondosas, ternas e fortes,

Brincalhonas, sensatas, atentas por miúdo,

Pejadas de afectivos transportes...

 

- Só mesmo a mãe é capaz

De saber como se faz.

 

 

Andam

 

As mães que andam já tão avisadas

De almofadas, cremes, alimentos,

Nunca findam preparadas

Doutras mães para os comentários bentos,

Os preconceitos na moda,

Mesmo do coração contra a roda.

 

“Ainda tens o filho em casa?!”

“É tão pequenino...”

“Com dois anos?! Atrasa, atrasa,

Dás-lhe cabo do destino!...”

 

Nunca justifique seus desquites

Ante quem não tem nada

Que julgar-se chamada

A dar tais palpites.

 

 

Mama

 

“Mama a toda a hora, não tem regras?”

“Não devia mamar se lhe apetece?”

“Vício da mama é onde o integras.”

- A fúria não acontece,

 

A mãe os ombros encolhe

E a Deus agradece

Por quem tanta saúde acolhe

E transborda auto-estima.

E promete a esta

Aresta

De gente

Aplicar a lima

Convenientemente.

 

 

Estraga-lo

 

“Estraga-lo de colo, mas tu é que sabes...”

“Enquanto lho puder dar...”

“Vai ocupar tudo, depois tu não cabes.

Estou-te a avisar...”

 

(Não, não quero este abrigo,

Salvem-me do castigo!)

 

“Credo, que arrufada!

Ninguém te pode dizer nada!”

 

- Bem basta a insegurança

Que uma mãe entrança,

 

Ainda é preciso

Do diabo o aviso?!

 

 

Perdemos

 

Nunca estamos preparados

Para perdermos ninguém,

Menos ainda para o filho que se tem

Tocar a finados.

 

Porém, quando um filho vem,

Porquê ficarmos resguardados,

Omitindo a alegria que provém

Dos recém-chegados?

 

Querer ter a certeza

De que tudo estará bem?
Mas quando é que alguém

Que tal preza

Certo disto poderá ficar

Nalgum tempo, nalgum lugar?

 

É difícil assumir

Que estou muito feliz

Com muito medo,

Tudo a sentir,

De raiz,

Ao mesmo tempo que sucedo.

 

Mas tudo deve ser assim,

Nunca somos branco ou preto,

Somos cinzentos sem fim,

Do chão ao tecto.

Querer jogar pelo seguro

É só festa da vida que não apuro...

 

E se algo correr mal?

Correr mal corre sempre algo,

É sinal

De que os patins da vida galgo.

 

E de que serve quem nos ama

Se incapaz de andar connosco

Quando da vida a trama,

Torta, der para o tosco?

 

Do íntimo laço

Que atesta

Quem, lendo-nos de felizes com o abraço,

Não nos faz uma festa?

 

 

Alma

 

Que alma tão prevenida

Pode andar

Para vingar

Na vida?

 

Nenhuma, já que viver é isto,

Em toda a lida:
- O imprevisto

É que é a vida.

 

 

Dentro

 

O dia da mãe

Dentro dela onde se aloje

Nunca tem:

“Não fiz nada hoje...”

 

E tem toda a razão:

Nem dum momento dispôs,

Após toda a freima, após,

Para a própria respiração.

 

 

Derradeiro

 

Quebrou

O derradeiro sonho a meio,

Que o despertador tocou,

Destemperado, de razões cheio:

 

Tem de preparar

As crianças para a escola

(Onde anda cada sacola?...)

E é um beijo a repenicar,

Um gesto terno e gentil,

E só tem de lhes gritar

As dez vezes que faltam para mil

Que levantem a cabeça

Depressa...

 

Depois tem de ameaçar

Que desliga o esquentador,

Que, com toda a ecologia a respeitar,

Eles ligam lá ao que isto aqui for!

 

E tem de entrar mais dez vezes

Na cozinha,

Que, entre os tagarelas

Mais corteses,

Alguém adivinha

Que são as crianças, elas,

Do mundo as campeãs

Todas as manhãs?

 

Entre levantar e vestir

Teve de afirmar

Que de cuecas para a escola terá de ir

Quem se não despachar.

 

E, por entre a maquilhagem

E dos dentes a lavagem,

 

Ainda pergunta pela flauta,

Se é precisa de música a pauta,

 

Mais, para além da actividade plástica,

Onde pára o fato de ginástica...

 

E ainda se irritou

Quando uma lhe perguntou:

 

“Mãe, onde guardaste então

De desporto o meu calção?”

 

E a mãe, que disto nunca foge,

Faz o balanço,

Na hora do inatingido descanso:

“Não fiz nada hoje...”

 

 

Nada

 

E a mãe

Que a ela própria onde se aloje

Nunca tem:

“Não fiz nada hoje...”

 

Quando ela cria

Que a criançada

Era já pronta e aprumada,

Ainda continuou a gritaria:

“Hoje inda findas na ribalta,

Na escola, com uma falta!”

 

E tem de se conter

Para não disparatar

Com o “já vou...” que vier,

O mundo inteiro a atrasar.

 

Corre para a garagem

Mas sempre alguém de algo se esquece

Na triagem

Que aí acontece.

 

Faz tangentes à medida

A toda a brida,

Pára à porta a buzinar:

O mais velho não há maneira

De largar

A lazeira.

 

E, quando chega,

Nem numa desculpa pega...

 

Acelera, esbaforida,

Que o relógio não pára na corrida.

 

Atrasou cinco minutos,

O trânsito é uma histeria

De brutos

Em correria..

 

Apetece-lhe insultar

Quem à frente se lhe atreva a passar.

 

A mãe ainda não fez nada

Mas do dia é só a entrada!

 

 

Ameaça

 

“A partir de amanhã

É o pai que vos vai trazer

E depois vocês vão ver...”

- Ameaça a mãe, cada manhã,

No desespero sumário

De mal lograr cumprir o horário.

 

Atingida a meta,

Larga as crianças,

Respira fundo: que ninguém se intrometa

Nestas malditas danças!

 

Em redor há mães pelos cabelos

A cumprimentar-se mutuamente.

Por dentro, os sincelos

Congelam muita gente:

Se se tocassem, relâmpagos e trovões

Havia na escola aos tropeções.

 

E a mãe que acredita

Que hoje nada fez, sorte maldita!

 

 

Frescura

 

A mãe vai para o trabalho,

É a frescura da liberdade.

Conversa, trabalha, quebra o galho

Que dia fora mais lhe agrade.

 

De súbito, uma mensagem:

“És a melhor mãe do mundo.”

Comove-se do filho com a imagem,

A temer a perda dela, lá no fundo.

 

Depois vem outra com uma nota negativa.

E ela que até estudou história

Com a filha, para aquela tão esquiva

Memória!

 

E outras mais

Negativas que tais:

O livro que acabou por esquecer,

O caderno...

“Achas que mo podes trazer?...“

Que inferno!

 

Retoma a freima,

A frescura continua...

Se com o chefe tem teima,

Não é por poder ir para a rua,

É que, perante a criançada,

Um chefe intolerável é pessoa prendada.

 

Às cinco sai a correr,

Telefonemas às dezenas,

Que desmazelo!

Como a um treino atender,

Se as cenas

Nos põem em pé o cabelo?

 

E um que vem mal disposto!

Foi do almoço?

E hoje a escola, com que rosto?

Deste conta do teu troço?

“Trabalhos de casa, não me lembro...”

Como não?!

Não és membro

Para dar conta da função?!...

 

- E a mãe, na trapalhada,

Continua a julgar que hoje não fez nada!

 

 

Algazarras

 

As algazarras no banco de trás

São a terceira guerra mundial.

E a mãe, incapaz

De impor a lei

Marcial!

E cada um: “Não fui eu que comecei...”

 

Ameaça parar o carro

E dar uma sova a todos.

“Tenham modos,

Senão inda me esbarro!”

 

Chega a casa,

Manda-os despachar.

O que mais a arrasa

São os trabalhos de casa

Em primeiro lugar.

 

E, pior que a canga

Na cerviz dos reveses,

A zanga

Mais umas dez vezes.

 

Separa os miúdos pelos quartos,

Controla em cada qual a preguiça

Que, de tudo em breve fartos,

Os enguiça.

 

Tenta o jantar,

Chamada para a mesa repetida.

“Quietos no lugar!

Boca fechada a mastigar!”

E a mãe sempre erguida,

Sem ocasião de se sentar.

 

E depois é sempre cedo,

Segundo eles,

Para deitar.

Higiene dos dentes: “Credo!

Esta porcaria é daqueles

Caramelos que andas a mastigar?!”

 

As roupas organiza,

Distribui beijos,

Murmura a um: “Quem te avisa...”,

A outro é uma história de corvos e de queijos,

Oxalá o João Pestana lhe venha em abono

Quando um e outro repetem: “Não tenho sono...”

 

Cruza pela cozinha,

Irrita-se com o pai da criançada

Que, no meio disto encravou na adivinha

Duma qualquer palavra cruzada!

Parece o estranho renegado

Da casa ao lado...

 

Lista as compras a fazer,

Respira, até ver...

 

Desabafa, sentada:

“Uf! Não fiz nada hoje

E que cansada!

Devo ter um cancro que em mim se aloje

E ninguém dá por nada...”

 

 

Culpa

 

“Eu sei, a culpa é minha”

- E a mãe, sem pingo de fadiga,

Inteira se encaminha,

Revestida da culpa com a loriga,

Do lar

A tratar

De toda a vinha.

 

Versátil, exigente,

À própria custa toca tudo para a frente.

 

É a mãe

E em mais lugar nem tempo nenhum ninguém

Diferente.

 

 

Requerido

 

A mãe é uma atleta

Cujo brilho

Ninguém respeita

E apenas é requerido um filho.

 

Quando este esfola

Um joelho na escola

E lacrimeja como o fim do mundo,

A mãe corre a buscá-lo, tudo lhe imola.

 

E a culpa é do recreio?

Do filho furibundo

Da vizinha?

Dum auxiliar a tudo alheio?

“Não, não, a culpa é minha.

Credo,

Devia ter vindo mais cedo!”

 

E a mãe nunca duvida

Da certeza conferida.

 

A criança usa a chupeta

Em idade de casar,

“Mas é só para dormir” – é a peta

Mais vulgar.

 

Ou todas as noites insiste em ser adormecida

Contra o crescimento da vida.

 

Ou não faz os trabalhos de casa

Sem a mãe ao lado, em brasa.

 

De quem é que a culpa se avizinha?

 

Aqui também,

Logo, a mãe:

“Eu sei, a culpa é minha.”

 

O filho pisa o risco,

Roça a insolência?

E o pai, em lugar

De zelar

Pelo aprisco,

Abana a cabeça da divergência

Que algum dia

No casal existiria.

 

Logo a mãe,

Vencida por tudo o que acarinha,

Aqui também:

“Eu sei, a culpa é minha.”

 

 

Intimamente

 

A culpa que as mães reclamam

Intimamente para si,

É porque são bondosas e preocupadas:

Reclamam,

Recusando qualquer alibi,

Todo o golpe das espadas

Ali no próprio peito, ali.

Até imaginam poder estar

Todo o tempo em todo o lugar.

 

Fantasiam

Que, mesmo à distância,

Intuem, sentem, adivinham e aliviam

Quaisquer sarilhos

Que da vida a deselegância

Jogue contra os filhos.

 

Habituadas a prever,

Prevenir e precaver,

Reclamam dotes de mágica adivinha

Para evitar, infalíveis,

A todos os níveis,

Aquilo que magoa e definha,

Incomoda ou ameaça se alcança

Desprevenida uma criança.

 

 

Exigir

 

Se a mãe é já divina e mágica

Quem lhe pode exigir mais?

Seria uma exigência trágica,

Autofágica,

A pisar os sinais

Do mais propenso

Bom senso.

 

É, porém,

A própria mãe

Que a si própria não dá tréguas,

Sejam quais forem as léguas

Da corrida a que se atém.

 

Até se repreende,

Da vida pelos caminhos,

Quando se surpreende

A ter vida própria aos bocadinhos.

 

Imagina que mãe que é mãe

Não se cansa nem adoece,

Não se distrai nem esmorece...

Não é, pois, como mais ninguém!

 

- A mãe até cansa

Só de a ver em tal andança.

 

 

Simples

 

Tudo o que é simples teve de percorrer

Um longo caminho até nós.

Porque é que a mãe não há-de ter

Direito de errar e de aprender

Com o erro após?

 

Enfurecer-se,

Ameaçar

E se esganiçar,

Comover-se?...

 

Amar

Desmedidamente

E se fartar

De nunca ter também

Um presente

De férias de mãe?

 

Um amor que, simultâneo, cansa e entusiasma

Quando se plasma?

 

Porque é que a mãe não aceita

Que é apenas uma pessoa

E a si própria faz a desfeita

(Inexigível

Num mundo à toa)

De ser infatigável e infalível?

Porque é que, em qualquer curva inesperada,

Se sente sempre culpada?

 

Ser mãe é ser atreita

A exigir-se perfeita.

 

Ser melhor mãe que a mãe,

Que a sogra, nem se fala,

Que as amigas, também,

E até sem disto fazer gala...

 

Em eterna competição

Com a mãe que idealizaram e nunca serão.

 

Como é que alguém

Pode desencontrar-se do amor

Quando vida fora teve uma mãe

Que fez tudo, seja lá o que for,

Para sê-lo bem

E ainda e sempre melhor?

 

 

Fisicamente

 

Casal fisicamente exausto

Não é muito apaixonante,

Seja lá qual for o fausto

Que o estimule dia adiante.

 

Dois pais em contra-ciclo por mor dum bebé,

Um vai à rua, o outro fica em casa,

Um vai ao café,

O outro acende da merenda a brasa,

- Quando se encontram de passagem,

Entre sonos trocados,

Nada corre bem na abordagem

Dos cais desejados.

 

A mãe,

Durante a amamentação,

Nem tempo tem

De erotizar a relação.

 

Nem sequer se reconhece

No corpo que se transforma,

Peito, barriga e cabeça – tudo parece

Que doravante se entretece

Sem norma.

 

Não se sente

Tão bonita

Como queria.

Pouco atraente,

Hesita,

Envergonhada da nova fantasia.

 

Como mãe, fica poderosa

E o pai tenta libertar espaço,

Quase pedindo desculpa de existir,

E nem sabe repartir

Um pedaço

Da ternura de que goza

Entre bebé e mulher.

 

Nem logra assumir

Que a relação não ande a arrefecer.

Contudo, com tanto desencontro, a seguir

É o que, lento e lento,

Abandonado ao relento

Finda por ocorrer.

 

 

Depois

 

Depois dum bebé, muitos casais

Findam sem sexualidade,

Meses e mais meses sem sinais

De amor, paixão nem de ternura.

Mera mecanicidade,

É o sexo que então se apura.

 

O bebé, para os dois,

Marca um antes e um depois.

Para muitos outros, o revés

Tudo compromete de vez.

 

A abordagem do homem esbarra na rejeição

Activa ou insinuada

De qualquer

Física aproximação

Por parte da mulher

Desmotivada.

 

A medo, perdemos o jeito

E o pendor desajeitado

Comanda os gestos a preceito

Transformando-os num falhado

Diário

Desastre sumário.

 

E há sempre um qualquer ponto de sutura

No parto

Que torna veleidade qualquer loucura

De prazer mútuo que acarte.

 

E a destempo o comentário:

“Tu não me ligas...”?

Da vida em comum final liquidatário,

Mesmo sem brigas.

Quanto mais se, do mundo às janelas,

Andar a proclamar as procelas.

 

Muitos não falam dos pequenos nadas

Que juntos são montanhas elevadas

De ressentimentos,

Contra nós a revirar os ventos

E os tormentos das jornadas.

 

Não falam da dificuldade

Muito pouco conversada

Duma sexualidade

Reduzida a nada.

 

O medo encolhe,

Os músculos contraem,

Nada corre bem no molhe

Donde os barcos do amor saem.

 

Trocam as horas de deitar,

Deitam-se de costas.

Era bom que se conseguissem amar,

Mas, sem se desejar,

Onde param as apostas?

 

O que logram em tais apuros

Desnorteados

Não os leva a sentir-se seguros

Nem desejados.

 

É, assim,

A ameaça do fim.

 

 

Primeiro

 

Quando o primeiro fim-de-semana a dois

Surge,

Muito depois

De o bebé nascer,

O que mais urge

É repor o sono que se andar a perder,

Tentar que o casal que se conhece bem

Deixe de ser de estranhos pela vida além.

 

Muito mais que acertar o passo trocado

Duma sexualidade que há murchado?

 

Ora, quando isto é o que adivinho,

Tudo o mais

Vai atrás

Pelo mesmo caminho.

 

O sexo, se antes adoeceu,

Com isto morreu.

 

E na morte arrasta atrás

Tudo o mais de que a vida for capaz.

 

 

Fundo

 

Com um bebé, a sexualidade gripa,

Constipada,

E, às vezes, tão fundo se constipa

Que de vez é finada.

Por sinal,

Não volta nunca a ser igual.

 

Contudo, é de supor

Que, recuperada,

Até pode ser melhor,

Se for conversada,

Bem falada

Em cada decisivo pormenor.

 

Se assim for,

Um bebé

Pode até

Ajudar os pais, servindo à lista,

Um casamento à segunda vista.

 

 

Aborda

 

A sexualidade na gravidez

Ninguém a aborda como merece

Ou, se aborda, é com um soez

Comentário refece.

 

É tudo em surdina?

É o elefante no meio da sala

Quando nenhum ouvido se inclina

A gerir o terramoto que o lar abala.

 

Quando é questão apenas dum ajustamento

Entre o casal, a todo o momento.

 

Difícil, todavia,

Decerto.

Da noite, porém, nasce o dia

E aí é que desperto.

 

 

Normalmente

 

A gravidez uma fractura

Na vida sexual

Normalmente configura

Do casal.

 

Um bebé será esgotante,

Exige à mãe um esforço tremendo

Pelos meses adiante,

Mesmo com tudo bem correndo.

 

Requer equilíbrio

À prova de ritmos e de choros,

O sonho dos namoros

É um ludíbrio,

A mãe sente-se, a cada jornada,

Inviável,

Desequilibrada

- Quando é saudável.

 

O bebé consome

Todos os bocadinhos de atenção,

Tudo o resto se some

No vazio do chão,

O pai do bebé também,

Secundário zé-ninguém.

 

E, por muito que alguma revista

Exiba recém-mães

À lista

Com corpos de parabéns,

O teu

Tal safanão

Sofreu

Que não tens

Nenhuma ilusão:

Por mais que em pose o ponhas,

Só te trará vergonhas.

 

E, depois, o bebé está sempre ali,

Acidental intrometido

Pela presença em si

Ou pelo pedido,

Por mor

Da fome, ira, lamúria ou dor,

Manda na vida dos pais

A todo o momento,

Tornado cujo vento

Não findará jamais.

 

 

Erotismo

 

Que energia, que paixão,

Que erotismo sobra

A uma mãe cujo bebé lhe cobra

Da vida todo o torrão?

Quase nada,

Que lhe esgotou a jornada.

 

Que desejo resiste

Pelo parceiro

Que por entre o tornado mal viste

Sequer por inteiro?

Nenhum quase,

Que a vida é doutra fase.

 

E quantos pequenos nadas,

Em intérmino rosário

Nas horas incomodadas

De silêncio concentracionário,

Provindos de omissões e falhas do papá,

Do apoio que à mãe não dá,

 

Do carinho em poupança

Quantos acumulam ressentimento

Quebrando do par a dança

A qualquer momento?

Muitas são

As negras pegadas no chão.

 

Finda encolhido, de surpresa,

O coração

E a vida nada ilesa.

 

Como distinguir dia e noite,

A semana e o fim dela,

No que cada exige e acoite,

No que dão, de acalmia a cada janela?

Não há maneira nenhuma,

Tudo é igual, em suma.

 

Em quantos momentos,

Numa trilha a ela tão vesga,

A sexualidade terá uma nesga

Para incendiar a chama aos ventos?

 

Em nenhum, porventura,

E a campina murcha de secura.

 

 

Borbulha

 

Um homem borbulha em impulsos sexuais,

Macaco capuchinho ou bonobo

Um passo além mais,

E em cão domesticado deu nele o lobo.

 

Um homem é um apressadinho

Pelo orgasmo.

A ternura e o carinho

Findam mais pelo caminho

Que na mulher.

São mais nele que nela um pleonasmo

Que acaba muitas vezes por esquecer.

E é um frio de pasmo

Que no sexo finda por recolher.

 

Mas têm lágrimas e coração

E não é indiferente a mulher

Com que vão.

O impacto dum bebé na vida deles

Não é uma insignificância

Reles

A que não dão importância.

 

Nem são insensíveis

Ao que isto requer duma mãe

A todos os níveis

Também.

 

A bondade materna da companheira,

A beleza que irradia,

Porém,

Atinge-lhe o coração de tal maneira

Que desejá-la não é impulso, é fantasia

Acesa ao fulgor

Do amor.

 

A gravidez traz consigo

Muitos meses sem um gesto erótico,

Um sinal de interesse despótico

Por este sem-abrigo,

Um envolvimento sequer com aragem

De sexualidade na paisagem.

 

Sobram reacções agrestes,

Inflamadas, intempestivas

Que esforço e exaustão

Na mãe são 

Pestes

Explosivas,

O que a não torna amável nem amorosa

Quando a ternura entre o casal algures posa.

 

E a forma rudimentar, engonhada

Com que o homem fala

Do afecto mais elementar

Não ajuda, aos dois antes entala.

 

E de macho o brio combalido,

Ao sentir-se abandonado,

Destronado

Do protagonismo vivido

No amor da mulher,

O sexo irá tolher.

 

Ora, toda esta variegada via

Desagua em maré vazia.

 

Quanto lume perdido

Em desvios sem sentido!

 

Que bússola ao norte

Poderá reconduzir-nos o transporte?

 

 

Turbilhão

 

Um casal silente,

Ante o turbilhão de sentimentos e experiências

Contraditórias

Dum bebé doravante presente,

Consente

Conversar

Sobre quantas vivências

Inglórias

Os parecem divorciar

Cada dia um bocadinho

Mais para fora do ninho?

 

O bebé bem os liga

Na trilha que junca,

Mas eles, da lufa-lufa na briga,

Nunca.

 

Quando o lugar de encontro perde a intimidade,

Olhos nos olhos,

Ao jantar romântico o invade

A tirania iminente

Dos escolhos,

Dum telemóvel presente,

- Como limpar o pó a mais

Dum bebé na relação dos pais?

 

Se de tal o trilho é cheio,

Não há meio.

 

De sexualidade atropelada,

A relação afectiva é remetida

A uma amizade colorida

Ou fraterna fachada.

 

É irreparável a fractura

Que o casal, então,

Já não

Segura.

 

Há o antes e o depois do bebé

Na sexualidade do casal

E o depois pior é,

De mecânica meramente funcional,

Do que o antes, até

Ao momento daquele natal.

 

Vezes demais é assim

E é o princípio do fim.

 

 

Grande

 

Pode um grande amor

Sobreviver a um bebé?

Pode, se o for.

E crescer até.

 

Por mais que a sexualidade atropelada

Seja por tal chegada.

 

Muitos casais, porém, na relação

Um grande amor não são.

 

O desmoronar depois da gravidez,

Então,

É do que ia suportando, talvez,

Uma tíbia relação:

Ia adoecendo aos bocadinhos

E os dois a fazer-se de novas em erráticos caminhos.

 

 

Quatro

 

Quatro nascimentos tem a gravidez:

Planeamento dela e da família a ter,

Na mente dos pais a germinada de vez,

O bebé, ao nascer,

E a relação pais-bebé,

Dia a dia a pôr de pé,

Após o ter.

 

Conviver

 

Do bebé conviver com a ideia

Quase celestial...

Os pais o admiram, sempre mais volta e meia:

Sem igual!

 

Vêem nele a janela

Para a estrela

 

Do norte

Que o amor aprofunda e torna mais forte.

 

Todavia, entre o inefável convívio

E tudo o mais que nos traz,

Cai no oblívio

Quanto poderá desfazer e porventura desfaz.

 

 

Maneiras

 

Primeiro e segundo filho são agentes

Que podem separar

O lar

De maneiras diferentes.

 

Os pais principiam a ser pais

Ao vincilho

Que lhes traz

O segundo filho.

 

O primeiro cruza neles imagens

Dos pais que tiveram,

Dos que quereriam ter,

Dos que imaginam ser

Da vida nas triagens,

Dos filhos que foram e ser não quiseram...

 

O primeiro tem aura de magia

Que lhes almofada a experiência.

O pendor divino dele ligaria,

No imaginário e fantasia,

O que construíram na existência.

 

Liga-os para além das fissuras

Que na relação já lhes apuras.

 

Liga-os, mesmo atropelados

Pelas transformações

Que lhes traz de múltiplos lados

À surpresa dos serões.

 

O segundo filho já não tem

A mágica missão

De analgésico ao que provém

De cada trambolhão.

O segundo filho por ele próprio vale,

Sem aura alheia especial.

 

Menos fantasiado,

Menos investido

De papel reparador

Da ferida do lado

Que os pais antes hão querido

Pressupor

No filho anterior.

 

É a acalmia da mãe

Ante o modo como adormece,

Como dorme tão bem

Que nem parece...

 

As expectativas no casal

Divergem muito.

Um sente o inoportuno, por sinal,

O outro sintoniza-o íntimo e gratuito.

Ou um é mais cúmplice no cuidado

E o outro sente-se mais desafiado.

 

Os dois filhos exigem mais

E mais culpabilizam

Se é de comparar sinais

Ou dividir-se entre ambos: como se igualizam?

 

Aumentam as transformações

À vida de cada um e às relações

 

A um nível

De antemão imprevisível.

 

Com o segundo filho cada um duvida

Se o estatuto de pais

Não terá comprometido, de forma indevida,

O que era dantes

A vida

Com sinais

De amantes.

 

Ah, como antes de eles nascerem o dia

Entre ambos acontecia!

 

 

Separam

 

Os filhos separam os pais

Muitas vezes

E divorciam-nos vezes demais.

E, pior dos reveses,

Transmudam-nos em apenas pais.

 

Após os bebés, afinal,

Quantos permanecem um casal?

 

Poucos,

A tudo o mais, além dos filhos, moucos.

 

Quantos logram continuar

Amáveis amantes, animando o lar?

 

Menos ainda,

Que só a freima é bem-vinda.

 

Quantos lutam por amor igual viver

Ao anterior ao bebé nascer?

 

Tão diminutos

Que nem creremos em tais produtos.

 

E quantos, mais próximos, amantes,

Mais cúmplices irradiantes?

 

De tão raros, quão preciosos

Estes restinhos amorosos!

 

E, por mor da raridade,

Que perigosidade!

 

 

Acompanhá-los

 

Muitas mães, por opção,

Com filhos crianças,

Escolhem acompanhá-los então

Do desenvolvimento nas andanças.

Ficam em casa

A atear a brasa.

 

Endinheiradas

E de direita?

Quem dera que todas foram dotadas

De tal peita!

 

É que merece atenção,

Seriedade e carinho

A opção

Por tal caminho.

 

Que humanidade haveria

Se tal trilha se lhe dedicara um dia!

 

 

Jardim

 

Se um jardim-de-infância custa

Mais que universitária propina,

Não é justa

A escolha que um progenitor destina

A ficar

Garantindo em casa o lar?

 

É o bom senso

A acalmar o coração

Propenso

À desilusão.

 

Sobretudo se a riqueza do país

Não condiz

 

Com a magia

Da ternura de tal via.

 

A vida é feita de escolhas

E o caminho

Da chuva só escapa às molhas

Se preservas o melhor de teu cadinho.

 

 

Distingue

 

O que distingue as pessoas

É a cor do vento

Que lhes agitar o pensamento

Nos turbilhões de figuras más e boas.


Conforme a cor,

Assim o teor

 

Do que as mãos e pés ecoam

Dos furacões de mistérios

Que mundo além reboam

E atordoam.

Assim erguem impérios

E os impérios esboroam.

 

E as migalhas dispersas no tempo que passa

Novos impérios germinam de cada nova carcaça.

 

E eu sempre a julgar eterno

Aquele que a minha

Mão acarinha

Num jeito terno!...

 

 

Depois

 

Depois a mãe chega ao lar

E, quando tudo devia findar alinhado,

Com tudo adormentado,

Cada pena sonolenta a espanejar,

Há logo um miúdo aos gritos

Que deviam ser interditos.

 

“Ele bateu-me!”

“Foi ele que começou!”

O repouso iludiu-me,

Nunca principiou.

 

Que faz

A mãe bendita?

Serenos exercícios de búdica paz?

Não, a mãe grita!

 

 

Respira

 

A mãe respira fundo quando a casa sossega,

Entra na cozinha,

As bananas sumiram numa refrega,

As bolachas sucumbiram asinha

À enérgica queixada

Da criançada,

O pão e a manteiga caíram nos fossos

Do castelo e só restam destroços

Espalhados

Dos valentes soldados...

 

E então a mãe?

Conclui que o Universo

Contém

Um qualquer benéfico reverso

Que a seguir se revela

Ao dispor dela?

 

Não, não lhe palpita:

A mãe grita!

 

 

Convida

 

De repente,

Em todo o casarão,

Um silêncio como quem inesperadamente

Convida à meditação.

 

A mãe, com pezinhos de lã,

Vai descobrir a criançada

Ali toda alinhada

Diante dum ecrã,

Dos desenhos animados

Todos hipnotizados.

 

E ela que fizera questão

De os não largar na escravidão!

Não hesita

Então:

A mãe grita!

 

 

Banho

 

À hora do banho aumenta o reboliço.

“Porque tenho de ser eu o primeiro?”

E a mãe sempre a apanhar no toutiço

Largueiro.

 

“Ele chamou-me estúpido, o parvalhão!”

“O azul é meu, o balão!”

 

Ora, a mãe que faz?

À positividade incita,

Corre-lhe atrás?

Não, a mãe grita!

 

E ainda bem,

Senão, que porcaria de mãe!

 

 

Rasteja

 

Quando rasteja penosamente

A caminho do jantar,

A mãe vê um dos miúdos a saltitar,

Em cuecas, ao frio ambiente,

E outro todo encharcado

No sofá que havia arrumado...

 

Recorre à auto-ajuda,

Ao poder da concentração

Que o lar lhe transmuda

Então?...

 

Com nada daquilo entra à compita,

Não.

A mãe grita.

 

 

 

Luta

 

Ao jantar

É a luta contra a sopa

E a mãe sempre a apanhar,

Ninguém a poupa:

“Não é justo!”,

“ Não gosto de ti!”...

 

E a mãe, a mãe

A quanto custo

Tem

Mão em si!

 

A seguir,

Dentes lavados

E hora de dormir,

Repetida em discos tão riscados

Que é milagre inda se ouvir.

 

E tudo numa tal algazarra

Que ninguém acredita...

A mãe esconde budicamente a garra?

- Não, a mãe grita!

 

 

Mães

 

A vida é bela.

As mães (que nela debicam

Toda e qualquer sequela)

É que a complicam.

 

Será?

Ou antes à janela

Quem vigilante está

Não tem alternativa na procela?

 

Depois de dormir a correr,

A mãe ergue-se à pressa,

Acorda a pequenada que nunca o quer,

Grita que se despachem depressa.

 

Ameaça,

De compras escrevinha a lista,

Desespera da calmaria lassa

Com que os avista.

 

Perde a janela de oportunidade

Dos cinco minutos que evitariam

A bicha de carros que demoram uma eternidade

A cada metro que corriam.

 

Apetece-lhe carregar na buzina

Centos de vezes

Mas até se domina,

Até se inclina,

Em gestos corteses...

 

E ouve o inúmero pesadelo

Que todas as manhãs a imola:

“Mãe, não quero ir à escola...”

E sempre o fatigante elo

“Mãe, mãe, mãe...” que tudo liga

Nesta esgotante briga.

 

Murmura, enterrada no encosto,

Verrumando a estrada:

“Se fora só o que eu gosto,

Eu nunca faria nada.”

 

Atende o telefone:

É a avó com a queixinha

Do dia que se lhe avizinha.

“Valha-me Deus! E eu tão insone...”

 

E dela para a mãe:

“Vá lá, tudo passa... Isso também.”

 

“Como está do trânsito o volume?

“O terror do costume...”

 

“Tão fatigada logo de manhã!

Tens de ter paciência...

É a ciência

Da mamã!”

 

Pelo retrovisor olha para trás:

“Pára de atazanar o teu irmão,

Já és um rapaz

Crescido como muitos outros nunca serão.”

 

Trava a fundo,

Um olhar fulminante

Ao condutor de olhar jucundo,

Muito hilariante

De ver uma mulher enervada

Ao volante

Na estrada.

 

Deixa cada criança,

Beijinho aqui, beijinho ali,

Em desemparelhada dança

Mais um apertado xi...

 

Quase evita e não consegue

A mãe grã-mestra duma turma

Que um sim lhe esvurma

Para a festa natalícia que a persegue...

 

E mais meia hora

No trânsito que demora...

 

Estaciona e corre

Para a reunião que, sem ela, parece que morre.

 

Tira um café, por fim em sossego.

“Despacha-te! A reunião é mais cedo!

 

Adeus, café!

E a sempre-em-pé:

 

“De acordo!

O cliente não passa de hoje, eu abordo-o.”

 

Senta-se, liga o computador,

Até que enfim!

Chega a mensagem: “Amo-te, amor!”

Remete um coração. Sim,

Por fim

Sei de ti,

Hoje mal te vi...

 

Olha as mensagens

Às centenas:

Ali não há paragens,

Tempo de respirar apenas.

 

Dez da manhã,

Horas de prosseguir

Esta vida sã...

“Daqui a catorze horas já estarei a dormir.”

 

Se a vida é bela,

É que as mães se aplicam

À janela...

Quem afirma que a complicam?!

 

 

Nasce

 

Não nasce nenhuma mulher

Para ser mãe:

Pode sê-lo ou não, como entender.

Como é que tão boas depois logram ser

Praticamente todas também?!

 

É a nossa admiração

Pela maternidade

Que nos persuade

Daquela luminosa ilusão.

 

E pela forma bondosa e despojada

Com que se tornam mães,

Que até parece um equipamento de entrada,

Tão natural como os mais

Naturais

Bens.

 

E é uma aprendizagem que farão

Com erros, remorsos

E a hesitação

Premente

Da que, ambivalente,

Não recusa esforços,

Dividida entre o tormento

Da paixão

E do arrependimento.

 

Duvida até da legitimidade

De arrepender-se da maternidade...

 

E, no meio de tudo isto,

Cada dia

Inventa, afinal, o imprevisto,

Da magia.

 

 

 

Será que a mãe arrependida

De ser mãe

Será má mãe em seguida?

Para toda e qualquer

Mulher

A maternidade que tem

Vale sempre a pena,

Independentemente

Do que lhe acena

Atrás ou à frente?

 

Ou antes muitas delas

Alguma vez se terão arrependido

De ser mães, por mor das sequelas,

Sem que tal, em nenhum sentido,

Leve nenhuma delas, porém,

A deixar de ser boa mãe?

 

Para muitos ser mulher

É ser

 

Instinto maternal.

Amor materno, afinal,

 

Sem direito a arrependimento

Em nenhum momento.

 

Nada no imo da mãe é assim

Linear, fácil na realidade.

Há tanto momento, neste confim,

De culpabilidade!

 

É, porém, saudável a dúvida, a hesitação:
- Nunca mais a vida murcha então.

 

 

Fundo

 

Passear

Ao sol

Da beira-mar

Como connosco fundo bole!

 

Quanto mais a natureza nos brinda

Com a maravilha,

Tanto mais de muitos casais finda

Cinzenta e sombria

A relação que um ao outro os cilha

Em nebuloso dia-a-dia.

 

Adequam-se aos filhos,

O mais nem dá lugar a sarilhos.

 

Nem gestos de cumplicidade,

Nem atitudes cuidadosas

E com carinho.

Perante a realidade,

Não serão pessoas desgostosas

De terem filhos no lar maninho?

Não por eles (que até continuam a amar)

Mas por quanto lhes vieram tirar.

 

Do casal que é que resta?

Um contrato de trabalho

Que só presta

Até quebrar o galho?...

 

 

Reconhecem

 

A mãe

E o pai também

Reconhecem que o filho, pela lida

A que obriga,

Os leva a deixar de ter vida,

Pelo menos à moda antiga...

 

O namoro foi gravemente atropelado

Pelas crianças.

Sente-se algum deles então legitimado

A arrepender-se destas andanças?

 

Ou então no momento em que se sente magoado

Por um filho que os ignora,

Ou com ele decepcionado

A toda a hora,

Ou por os haver maltratado,

Porventura com perversa alegria,

Todo o dia?...

 

Não são as fúrias maternas,

Da exaustão:

“Só me apetece agarrá-los pelas pernas

E atirá-los pelo vão

Da janela!”

 

Não,

É outra a querela.

 

Nem

 Quando ansiar:

“Como era bom tirar

Férias de mãe!”

 

Desabafo, embora furioso,

Não é, na realidade,

Arrependimento pesaroso

Da maternidade.

 

Ora, e se o houver?

Há-o, ocasionalmente, em quenquer.

 

E nem por isso deixa de ser um saudável

Pai ou mãe formidável.

 

 

Planeia

 

Muita mãe planeia a gravidez,

Muita é por ela surpreendida.

Nem por isso esta é mais arrependida

De tal entremez.

 

Mas num casal que haja perdido

Todo o sentido,

Ou no incontável sofrimento

Por um filho aos dois trazido

Nalgum momento,

É compreensível que se haja arrependido

Alguém

De ter sido

Pai ou mãe.

 

Apesar da inesgotável bondade,

Da capacidade

De sofrer,

Da infinda paciência que tiver,

Uma mãe

Pode arrepender-se, porém.

 

Não é por não amar os filhos,

É por reconhecer

Quanto teve de perder

Com tais atilhos:

 

Foi vida,

Laço adulto com o par,

Porvir do sonho mais à medida,

- A lonjura do Infinito a se adiar...

 

 

Arrependimento

 

O arrependimento

É de fracassar,

De errar

O reconhecimento.

 

Vendo bem,

Sem arrependimento do coração,

Porém,

Não há salvação.

 

Um progresso

Incompatível com arrependimento

É perder o sucesso,

Atirado ao vento.

 

Sem arrependimento que desiste

O progresso não existe.

 

O arrependimento

É da falha

O reconhecimento,

Daquilo que ali atrapalha,

Mais o esclarecimento

Do que, resolvendo o impasse,

No-la ultrapasse.

 

O arrependimento identifica remorsos,

Reconhece a vergonha.

A vaidade enfeita os torsos

De arrependimentos que escondidos ponha.

 

As mães são pouco dadas à vaidade:

São boas mães pelos arrependimentos

Que superam com a verdade

Adequada aos momentos.

 

É o que cada uma ajuda

A ser uma pequena mãe graúda.

 

Só o arrependido trepa do valado

A ladeira rumo ao sagrado.

 

 

Pouco

 

Os pais mal têm currículo:

São pouco irmãos, pouco filhos, pouco tios...

É ridículo.

E são pais

Cada vez mais

Tardios.

 

Não têm certificado de qualidade

Nem experiência.

Quem, na realidade,

Confia em tanta ausência?

 

 

Milenar

 

Arte milenar de cuidar crianças,

Seres artesão de sentimentos

Enquanto o sexto sentido com tudo entranças,

Aprendiz de marear

Por sinais em que ninguém até reparar...

 

Enquanto inúmeros blogues

Reduzem vida mental a neurociência,

Tal se por tal mundo vogues

Da intuição humana sem a íntima vivência,

 

O topo de gama

Do equipamento de base

Que cada um apraze,

Da vida ao tecer a trama.

 

Não há GPS para substituir

O que um progenitor no imo de si

Sentir

Que o leva a escolher: “Vou por aqui!”

 

Num mundo de estatísticas, tabelas e diplomas

É jurassicamente

Que domas

Isto de educar eficazmente.

 

Os pais,

Por demais qualificados para tanta função,

Descobrem que a formação

Nunca acompanha os desafios reais

Que lhes coloca a dança

Da vida duma criança.

 

 

Agravar

 

A agravar a falta de credenciais

Dos pais,

Os avós têm uma experiência

Da função

Que lhes dá uma sabedoria,

Uma qualidade de excelência,

Então,

Dos netos para a eficaz sintonia.

 

E os pais que andam tão habituados

A currículos de coisas boas

Nos trilhos já caminhados

Que lhes garantem as broas!

 

E, a par, outro informal vão acumulando

De fotografias e notas na internet,

De quando em quando,

Onde cada momento sugere e promete

Uns pais de opiniões seguras,

Felizes e sorridentes.

 

Todo o quesito

Que ali apuras

Entrementes

É bonito.

 

E todos, afinal, andam perdidos

De cada dia no meio dos alaridos.

 

 

Gravaremos

 

Qualquer dia, ao lado do bom,

Gravaremos o currículo das falhas,

Sem mudar de tom

Nem o desculpar como se foram gralhas.

 

O que ansiámos por realizar

E redundou em fracasso.

Quantas vezes fomos jogar

E perdemos, o brilho baço.

 

O que sonhámos concretizar

E por preguiça, medo ou ilusão

Ficou pela intenção...

 

E que, mais que o resto

De boa nota,

Ajuda a entender a cota

De cada apresto,

 

Como fomos tenazes e perseverantes,

Aprendendo a abrir

O porvir

Corrigindo os erros de antes,

Até atingirmos a preceito

O que fizermos bem feito.

 

É o que, para além de todas as vitórias,

Foi o guia,

Superadas as vanglórias,

Para a sabedoria.

 

 

Difícil

 

Quando os pais confidenciam

Que mais difícil que ser pais

Não há mais,

Têm razão no que anunciam.

 

E é pior se se imaginam

Sem qualificação nem técnica certificada,

Ao invés das mais freimas a que se inclinam

Cada jornada.

 

Fá-lo-ão, ao fim e ao cabo, da mesma forma

Empírica, intuitiva

E muito assustada, por norma,

Que os seus mais

Remotos ancestrais

Já utilizavam na esquiva

Vida outrora por demais furtiva.

 

 

Pais

 

Sermos pais não é carreira

Mas de espírito atitude

Fagueira

A que me grude.

 

Nunca se atinge

Sem erros nem falhanços

Que é o que o dia-a-dia tinge

Em todos os lanços.

 

Para pais

Nunca estamos preparados:

Nunca seremos tais quais

Duas vezes iguais

Em todos os traslados.

 

Erros, dúvidas, enganos

São de cada dia

Os panos

De limpar o que na mesa caía.

 

Nunca seremos pais se andarmos

Do que seremos capazes

Todo o dia a nos certificarmos,

Como pais eficazes.

 

Nem seremos pais se transformarmos

Os filhos noutra carreira

Em que as vitórias deles arvorarmos

Como currículo que com tudo o mais

Dos pais

Emparceira.

 

 

Longínqua

 

Quando um filho nos pede:

“Vê no Google se Deus existe!”,

Um pai cede:

Somos uma velharia tal

Que mal

De longínqua, se aviste!

 

Ser pai é assumir-me em viagem:

Sou a última reserva natural

De vida selvagem.

 

Sou muito antigo:

Tudo é muito sentido,

Muito olhos nos olhos, sem qualquer abrigo,

Muito conversado, intenso e destemido,

Muito conflituoso, frente a frente,

E que comovente!

 

Não é difícil um filho,

Difícil é ser pai agora

Sem o vincilho

Da ancestral

Demora

Que, imemorial,

Em nós perenemente mora.

 

Sem a qual,

Porém, jamais

Haveria mães e pais.

 

Mas não há como ter um filho ao colo,

Falarmos até à margem das palavras,

E sentirmo-nos o miolo

De ser Deus a caminhar por nossas lavras!

 

Aqui a tradição ainda é

O que sempre foi:

Nem dói...

- E põe o mundo inteiro em pé!

 

 

Rei

 

Uma grávida

Tem sempre o rei na barriga.

Portanto, impávida,

Nem liga

À briga

Na praça,

Nem com outra qualquer liga

Se congraça.

 

Embora com o bebé nada a sossegue,

Luminosa segue

Cheia de graça.

 

 

Nascer

 

Bebés bonitos,

Ao nascer, quase nenhum.

O parto é uma canseira de gritos,

De conflitos,

Raro é o silêncio, se algum.

 

Mas é um milagre tão grande

Que o que “tão bonito!” em nós comande

Não é o bebé, é o evento

Daquele momento.

 

É que o sonho chega a ser ultrapassado

Pelo que o bebé nos houver dado.

 

De repente a ternura,

Intangível brisa,

A vida inteira perfura

E permeabiliza.

 

 

Vincula-se-nos

 

O Bebé vincula-se-nos primeiro à pele,

Depois ao nariz,

Por fim aos olhos.

Quando então digo “olá!” sinto-o a ele,

De raiz,

Em meus refolhos.

 

O bebé que nada esquece

Aí agradece.

 

 

Farto

 

Farto de famílias

Que só falam do amor que nem dão

Pela positiva!

“Quais vigílias,

Quais quezílias?!”...

E eis como resvalam, de vão em vão,

Pela mais destrutiva

Ilusão.

 

Inundam a comunicação

Interpessoal

E da rede social

A imitar que são felizes

Quando nem pernas têm, só varizes.

 

Roubam a luz

E as almas dos mais

Em quem a imperfeição traduz

Liberdades reais

Para um qualquer lar

Poder deveras amar.

 

Farto da família

Que nem às escondidas se acalma

Com chá de tília

De alma!

 

 

Trepa

 

Queremos a vida despenteada,

Crendo que o encanto

Ainda trepa na jornada,

A cada canto.

 

O coração desabotoado,

Com a fralda de fora

A qualquer hora

Que o houver sonhado.

 

Não ter maneiras

Ao fim-de-semana,

Espojada nas esteiras...

E um lar que não me esgana!

 

Fazer a dieta

Excepto só hoje.

E quem me interpreta

De mim nunca foge.

 

Palermice, cara feia,

Carantonha, caretas,

Ter garra, volta e meia,

Gana, fúrias, escopetas...

 

O direito a cair,

O pé engasgado,

A raiva de parvo me sentir

Inteiro ou um bocado.

 

O lar é limpo e sujo,

Não um esmero.

Por isso o quero

E assim não fujo.

 

 

Sujar

 

Sentar-me no chão,

Sujar a roupa ao brincar.

“Ele é assim...” – dirá o lar,

Como se fora feitio,

Nunca um capricho, não,

Este jeito de navio

Na borrasca a navegar.

 

E ter direito a uma birra

E a uma asneira regular

Com que se acirra

Qualquer parceiro do lar.

 

Ser irresponsável,

Irreflectido,

Mas sempre de coração afável

Neste baralho desmedido.

 

Até ser um bocado

Desbocado.

 

Ter direito ao mimo

E a ser medricas,

Crendo, bem lá no imo,

Que do papão a bota

Com que implicas

Ninguém contigo a conota.

 

Espirro sonoro

E bocejo de leão.

Entre os meus que adoro

Nenhuns sequer repararão.

 

Pegar

Por tudo e por nada,

Rezingar,

Afagar os caracóis da pequenada

E, a cada beiça,

Dar-lhes na cabeça.

 

Murmúrio, amuo,

Mensagens parvas...

Confirmar que gosto de cada duo

Que abraço

Sem larvas

Na fruta, nem traço...

 

Tudo só porque queremos.

No fim,

A família é assim:

- Sempre a pegar nos remos!

 

 

Mentir

 

Inventar,

Mentir com bondade

Para encantar

Ou proteger da perversidade.

 

Fazer de conta

Vezes a fio,

Sempre que nos apeteça,

Da vida na ponta

Do navio,

Enquanto os anos atravessa.

 

De nuvens captores,

Descobrir nelas bruxas, girafas,

Mais os bêbados vendedores

De garrafas.

 

Inventar a vida

Com fé no amor.

Confiar sem medida

De olhos fechados no lar que for.

 

Pedir um desejo,

Calados,

E alguém, no ensejo,

A ler-nos dentro por todos os lados.

 

A família são tantos laços e nós

Que não cremos no Pai Natal

E ele, afinal,

Crê em nós.

 

 

Demais

 

Família por demais normal

E certinha,

Só ama depois de pensar, afinal,

Arrumadinha,

E, no final,

Maninha...

 

Que fastio!

Não entende que pode ser feliz,

Perdido que é da vida o fio,

Em lágrimas de raiz.

 

Produto normalizado

Onde o lume do lar se houver apagado.

 

O lar é de ser antes protegido,

Semana a semana,

Reserva natural da imperfeição humana,

Soprando o brasido,

Património imaterial que nos persuade

A gerar humanidade.

 

 

Exclusivo

 

Temos direito

Ao lar imperfeito,

Exclusivo patrocinador

Da memória

Que nos garante a vitória:

É que sem gente imperfeita não existe amor!

- E tal é a nossa glória!

 

 

Aulas

 

O colo são aulas de dança.

Só quem

Se entregar nos braços de alguém

Alcança

 

Deixar-se conduzir, a par,

Por duas melodias

Que dos corações chegam: harmonias

Para como um os dois embalar.

 

 

Aprendem

 

As crianças aprendem formas, ideias,

Trepam às estrelas

A meias

Com as boleias

Que partilham brincando entre elas.

 

Aprendem a pensar

Muito antes das palavras de que cada uma precisar.

 

Pensam com o corpo então

E pintam o mundo com música do coração.

 

Aprendem enquanto brincam,

Por isso em brincar se fincam.

 

A empatia enfeitiça dois olhares

Quando erigem um horizonte comum irrepetível.

Ao te enfeitiçares

É um mundo novo ali quase tangível.

 

Complementam-se num embalo,

Quando um corpo noutro se confia,

Fundamental no colo, na dança, no regalo

Do sexo com magia.

 

Brincar

Abre a música do coração

A dois, sem precisão

De chave para a melodia disparar.

 

 

Escola

 

Escola que o corpo reprima,

O imaginário iniba,

Divorcie de brincar,

Prima

Por ter giba

Ao andar:
A todo o momento

Anda a punir o pensamento.

 

Música do coração?

Só pianinho, nunca em vulcão.

Sol que vem de dentro?

Lérias!

Outras serão as matérias

Em que me concentro.

 

Não é uma escola, é uma draga

Que as crianças esventra, estraga

Desde o centro,

Pela maneira como as esmaga.

 

Escola sem as portas de entrada

Motriz, visual

E musical,

Para a chamada

À matemática, ao português,

Incentiva

À estupidez

Os escravos que cativa.

 

 

Corre

 

A linguagem dos bebés

Corre por dentro de nós

Com outros pés

E outros fios de retrós.

 

Anda perdida

Por dentro das palavras

Com que lavras

A vida.

 

Guarda o que não somos capazes de dizer

Com uma palavra qualquer.

 

Perde-se em entrelinhas, intervalos e no silêncio

Mas comunica de raiz, portanto vence-o.

 

Aí, no alicerce do fundo,

Enraízo-me no mundo.

 

 

Verdadeira

 

A verdadeira linguagem

É a melodia

Que vem do coração.

A outra, feita da voragem

Das palavras em cachão,

É a miopia

Duma tradução:

Tanto a traduz

À luz

Do dia

Como é dela uma traição.

 

 

Comunicar

 

Olhos, pele, toque e silêncio alicerçam

A linguagem de bebé no adulto,

Para que os adultos exerçam

Comunicar o oculto.

Aí conversamos e todos conversam

Dos mistérios com que exulto.

 

Escola que ilude

Esta música do coração

É a que, de vez,

Nos grude

Dos dias ao caixão:

Enterra-nos em estupidez,

Da lucidez

Com a ilusão.

 

 

Coração

 

O coração tem múltiplas assoalhadas,

Umas esconsas, outras soalheiras.

Precisam de andar interligadas

Para nos servirem inteiras.

 

A todas elas, porém, anulamos

Quando imaginamos

Que é nas palavras que se configuram,

Traindo a criança

Onde se apuram

E cujo culto

Entrança

A fundura do adulto.

 

 

Balanços

 

Quatro balanços de vida

Se nos impõem de fugida:

 

Quando a adolescência nos tropeça

No corpo e na cabeça;

 

Quando nos apaixonamos

E num caso singular o transformamos;

 

Quando a primeira vez somos pais,

Já não imaginários mas reais;

 

Quando, doentes, entendemos

Que, afinal, um dia morreremos.

 

Bom era

Que, apesar da dor que traz,

Em dúvida cada um se pusera,

Se perguntara, perspicaz,

Quem é por detrás

De quanto gera

E faz,

Por onde quer ir

A seguir,

Com quem, da vida em cada ponta,

Deveras conta

E, de sonho em alta,

Que é que lhe falta.

 

É sempre melhor pensar

Porque queremos

Do que, em lugar,

Porque a vida nos obriga a que pensemos.

 

Quando a vida nos obriga

A um balanço,

Tudo aquilo em que, na quadriga

Do dia em que me lanço,

Fugi de pensar,

Cai-me na cabeça de supetão.

E então

O que parecia arrumado, resolvido,

Desaba, desabrido,

E findamos desabados,

Assustados.

 

Tudo o que é importante finda ali

A se acumular

Em molhada.

De repente vi:

No devido lugar

Não anda nada...

 

 

Sobreviverão

 

Os escravos

Nunca perderam a esperança.

Sobrevivemos em avos e mais avos

Graças a tal herança.

E os de hoje em dia

Sobreviverão por cantarem a mesma melodia.

 

Em todo e qualquer tempo, os esclavagistas

Têm muito curtas as vistas.

 

E nenhuma miopia

Nos alimenta como aqueloutra melodia.

 

 

Receber

 

Receber instrução

Não torna ninguém orgulhoso,

A não ser que apenas a torne ostentação

Ante o mundo tenebroso.

 

Ao invés, se a viver dentro de si,

Tão inesgotável é a jorna

Da busca na escuridão que há por ali

Que humilde de vez o torna.

 

Não há como orgulhar-me de minha pobre dita

Perante a escuridão infinita.

 

 

Pior

 

A instrução

Tida por uma tentação,

A pior de todas as mais...

Quanto mais a gente aprende,

Mais quer ir até ao fundo:

Mais quer experimentar os terminais

Do mundo.

E é o que instruir-nos rende.

E é o que mete medo

Aos que já morreram cedo.

 

 

Fanático

 

O fanático crê ter a verdade inteira,

Humana ou divina.

Ignora, pois, o mundo que à beira

Se lhe inclina,

Por todo o lado,

À espera de ser encontrado.

E, por dentro dele, o grito

Que por ali lhe aponta o trilho do Infinito.

 

 

Pior

 

Uma noite calma:

O pior que ocorre

A um jornalista criminal.

Como ter da crónica a palma

Se ninguém morre,

A dar-lhe aval?

 

Pior que isto

É ele não ver

Que, se ele existe e eu existo,

É exactamente por tal

Lhe acontecer:

Ninguém morreu,

Todo o mundo sobreviveu.

 

Há mal nisto?

Ou ele é que anda mal?

 

 

Nada

 

Nada pior

Para arruinar

Uma amizade

Que se pôr

Nela a gozar

Da sexualidade.

Ou redunda em amor

Ou em lonjura de verdade.

Aqui o meio termo

É ermo.

 

 

Casamento

 

O casamento prometido

Não é tempo de conforto e felicidade.

Quantas vezes, vivido,

É uma prisão sem grade,

Murada

Numa altura tão elevada

 

Que ninguém ali alcança

Nenhuma esperança!

 

Anos de desilusões,

Remendados de indiferença e rotinas,

Sem prazer nem comunhões,

Submetidos a caprichos e más sinas

Dum cônjuge que, se persiste,

Deveras não existe.

 

É um dono do parceiro

No tempo vazio.

A espera é um atoleiro

Nas mãos do fastio,

Os sonhos desfeitos,

Sem nenhum mais germinar nos eitos.

 

E vem a solidão

Com o ancinho

Encher o desvão

Matando devagarinho.

 

 

Prova

 

Em democracia, o sumário

É que toda a gente,

Até prova em contrário,

É inocente.

 

A ditadura inverte o sumário:

Toda a gente é dada,

Até prova em contrário,

Por culpada.

 

 

Importa

 

Tem defeitos?

E que importa ao coração?

Amamos quem amamos, pelos jeitos

Não se intromete a razão.

 

É o amor menos sensato

Que será o mais verdadeiro.

Quem ama ama alguém porque é cordato,

No bolso é guardar dinheiro.

 

Amar apesar de, porém,

Conhecer defeitos e amá-los também

 

É que, a ninguém afeito,

É raro e perfeito.

 

 

Pedra

 

Tens uma pedra no coração

Tão pesada

Nalguns dias

Que não logras fazer nada.

Mas não tens, não

De ficar sozinho: devias

Procurar-me. Não parecendo,

Eu entendo.

 

 

Dedilhar

 

A rapidez a dedilhar notas

É da música uma parte menor.

Palavras de acaso que ao acaso anotas

São o menor do poema, se algum poema for.

 

Emoção e sentido

É que escoram o tamanho

Do ganho

Transmitido.

 

 

Nomes

 

Os nomes nos moldam

E nós moldamos os nomes.

E o mais simples dos que se nos soldam,

Por mais a sério que o tomes,

É tão complexo

Que nunca poderemos aspirar

A contê-lo num amplexo,

A palpar-lhe as fronteiras

A compreendê-lo devagar

Nas múltiplas leiras,

Nunca tão bem que com regalo,

Logremos deveras pronunciá-lo.

 

 

Correspondente

 

A realidade

Correspondente ao mais simples nome

Mora além na infinidade,

Fora de nosso alcance,

Por maior que seja a fome

Que nos invade.

 

É, porém, o íman que a ela nos lance

Em perenidade,

O eterno compasso da música por que dance

A humanidade.

 

 

Forja

 

Uma pedra,

A forma exacta, o peso, a pressão

Que a forja a partir do areão,

Enquanto medra.

 

Como reflecte a luz,

Como o mundo, da gravidade pela atracção,

E puxa e em aragem traduz

A queda dela pelo chão.

 

Os vestígios de ferro que detém

A atraí-la ao íman pelo declive além...

 

Todas estas vertentes

E cem mil mais

Formam o nome que lhe assentes.

Não a esgotarás, não a atingirás,

Não a dominarás jamais.

 

Aproximas-te, porém, ao infinito:

Terás de te bastar com este requisito.

 

A plenitude

É a do itinerário

De quem, temerário,

À romaria do Infinito se grude.

 

Do lado de cá da vida

E do outro, de seguida.

 

 

Itinerário

 

O itinerário a percorrer

É chão:

Devemos compreender

O que estiver

Para além da compreensão.

 

E cobrir

O caminho que exigir.

 

Mais aquele que decorrer

Do que descobrir

Em cada patim que atingir

Que comigo e com os mais tenha a ver.

 

Até cada vez mais ser

Dos outros e de mim

O inefável Fim

A tactear e fruir.

 

 

Mente

 

Temos uma mente desperta

E uma mente adormecida

Mas tão alerta

Que, numa aberta,

Ultrapassa indefinidamente aquela

Em qualquer lida.

 

Só ocasionalmente, porém, se nos revela,

Nunca andando

A nosso mando.

 

Nas profundas do imo luz de estrela,

Só através de meu íntimo nevoeiro

Vislumbro o fortuito luzeiro

Aqui ou além.

 

Apenas quando atento, porém,

De repente,

Devém

Presente.

 

Às vezes finge:

O meu desvio,

Se um pedregulho me atinge,

Ei-la a salvar-me por um fio.

 

O Infinito

Dele implantou esta mão dentro de mim.

O fito?

Garantir que me irei cumprindo até ao fim.

 

 

Conduzem

 

Os factos pequenos

Conduzem a grande conhecimento,

Estão plenos

De fermento.

 

É sempre um nada,

Ignorado

Ao lado,

Que abre um portal para a grande estrada.

 

A ínfima diferença

Apreendida

Lavra a sentença:

Gera vida.

 

 

Poder

 

Quando algum dado se compreende,

Adquirimos poder sobre ele.

A Deus ninguém o entende:

Só o vazio de poder para ele me impele

E um vislumbre de comunhão me rende.

 

Qualquer poder

Que eu tiver

Dele, afinal, me repele.

 

Qualquer dogma, assim,

Que captá-lo pretende,

Por fim

É uma idolatria cujo poder

Finda sempre a me roer

A mim.

 

Com a falseada verdade

No bolso,

É a humanidade

Que no meu bornal embolso,

Matando-a sem dó nem piedade.

 

Foi assim a história inteira

E assim será até à hora derradeira.

 

A não ser que confesse:

- Tudo o que dali sei, esquece!

 

Então, da humildade

Germina a comunidade.

 

E seríamos um,

Na lonjura

Da procura

Comum

Da luz

Que o trémulo bruxuleio

Traduz

Que por aqui, por ora, maneio.

 

 

Contar

 

Se é inefável, de não contar a ninguém,

Pintar é contar com desenhos em vez de palavras

Também

E a música, em que em sons lavras

Leiras, emoções além,

Conta o indizível em torrente

Intérmina em frente.

 

E depois,

Das palavras antes do pesponto,

Existe aquele conto

De imagens, sentimentos e sentidos

Onde amanhecem arrebóis

Entre nós, os animais, as plantas, os falecidos,

Vasos comunicantes mais profundos

Que qualquer fundura dos fundos.

 

 

Preferias

 

Preferias andar-lhe perto do coração,

Envolvido por um abraço caloroso.

Temes, porém, a rejeição,

Que ria de ti, em deleitado gozo,

Levando a sentir-te, desde o miolo,

Um tolo.

Não és o primeiro a sentir a peçonha

E não há nisto qualquer vergonha.

 

 

Poderás

 

Poderás vir a ser alguém que vê.

Por ora, és alguém que olha

Sem saber o quê

Nem o que acolha.

 

Depois,

Quando Um fizeres de Dois,

Então Três

Verás de vez

Na eterna correria

Do Infinito para a magia.

 

 

Olhaste

 

Olhaste demasiado

E não viste, com tal olhado,

O bastante.

Olhar em demasia

Impede o que se veria

Adiante.

 

Descontraído

E meio distraído,

 

Então é que alguém vê

O que é.

 

Aí é que a luz das profundezas

Vem iluminar

De luar

O que prezas.

 

Senão durante cem anos

Olharás persistentemente

Os enganos

Sem nunca ver o que tens à frente.

 

 

Bolsa

 

Uma bolsa vazia

É a iminência

Da demasia

Da impotência.

 

Falta o cereal da sementeira.

Se, no fim do Inverno,

Nada restar do cereal da eira,

Caí no inferno:

 

Perdi o controlo da vida.

Usando o cereal, planeio o futuro.

Sem algum dele que a impotência me elida,

Como me inauguro?

 

Não há labor nem boa intenção

Que sazone a colheita

Se, ao fundo, alguma semente não

Me espreita...

 

 

Ensinar

 

Ensinar alguém a apaixonar-se?

Impossível.

Não há nada que realce

O inatingível.

 

Ninguém pode fazê-lo,

Falta-lhe o elo

Para um Além que é imprescindível.

 

Só quando por nós ele irrompe

É que a barragem

Se rompe

E então poderemos fazer a triagem.

 

Gerimos a paixão,

Todavia não a geramos, não.

 

Nunca.

Abrimos ou fechamos o portão

Ao que, inelutavelmente fora de nossa mão,

Nos junca

O chão

De nossa mísera espelunca.

 

 

Encontrar

 

Quando muito se procura,

Por vezes não encontrar nada

É encontrar, no patim que galgo,

Algo

Que configura

O que procuro na jornada.

É um vazio

Cheio da ausência que desafio.

 

 

Lugar

 

Um bom lugar de carreira tem um abismo,

É um lugar alto com a queda à vista.

Afastado o cataclismo,

Da paisagem a lista

É abarcada com mais facilidade

Do cume

Que sobranceiro tudo assume.

 

O perigo que nos invade

Desperta a mente adormecida.

Torna tudo claro

Do mundo na avenida.

Daí sobre o mundo o voo então disparo.

 

 

Agradou

 

Na tua juventude

Qual a que te agradou mais?

A que de imediato caiu em teus braços,

Agarrada como grude,

Ou a de difíceis embaraços,

Relutante demais,

Indiferente, em cada lanço,

Ao teu avanço?

 

Com qualquer donzela, a esmo,

Há-de ser o mesmo.

 

Nem suportam algumas delas

Quando um homem se prende a elas.

 

E todas apreciam território

Para seu génio decisório.

 

Aliás, como ansiar, em sonho ausente,

Por quem estiver sempre presente?

 

Uma ausência, a aguardar sob o tecto,

Potencia o afecto.

 

 

Mantém-te

 

Mantém-te vivo

Do mundo em meu horto.

Não me serves de nada,

Mera memória de arquivo,

Se morto.

 

Bem sei que há o outro lado da estrada

Que leva à enseada.

Mas como garantir um bom porto?

 

 

Inteiramente

 

Não é inteiramente minha.

Que importa?

Sou aquele a quem pode sempre retornar,

Sem recear

Recriminação maninha

Ou interrogatório à porta.

 

Não tento conquistá-la,

É o meu requisito:

Nenhuma bala

Atinge o Infinito.

 

Jogo o belo jogo

De o vislumbrar no seu íntimo fogo.

 

 

Aprendem

 

Todos os homens aprendem a cortejar

Pelo mesmo livro gasto,

Eterno pasto

De rosas e luar.

 

Um livro novo era bom germinar

Para escolher a flor

Que a ela se adequara melhor,

Cheia de música e poemas,

Pintando-a, infinita, além de quaisquer lemas.

 

 


Tesoiro

 

Segredo,

O tesoiro doloroso da mente,

Não é o mistério que não toco com o dedo,

Nem os factos desconhecidos da gente,

Nem as verdades que, uma vez tidas,

Foram esquecidas.

 

Segredo é um peso leveiro

Cá dentro mantido:

É um saber verdadeiro

Activamente escondido.

 

 

Segredos

 

Há segredos da boca

E segredos do coração.

A maior parte são

Daquela toca,

Do núcleo de alguém, não.

 

Mexericos partilhados,

Pequenos escândalos ouvidos,

Murmurados,

De libertação cheios de pedidos.

 

Gravilha na bota,

Primeiro nem se lhe dá pela presença,

Depois irrita, a pele rota,

Até intolerável nos ser a sentença.

 

Segredos da boca

Incham com o tempo guardado

Até que aos lábios cada um desemboca,

Com a liberdade a ter sonhado.

 

O do coração é diferente,

É privado e doloroso,

Queremos escondê-lo de toda a gente,

Não cresce, decoroso,

Nem crê nunca que lhe agrade

A liberdade.

 

Vive no coração trancado

E, quanto mais tempo, mais pesado.

 

Antes a boca com veneno

Que um segredo no coração.

Veneno cuspo-o, sereno,

Mas um tesoiro negro acumulo-o no desvão.

 

Cada dia o engulo mais para dentro,

Onde permanece, dia a dia mais pesado.

Atingido o centro,

Finda esmagando o coração que o há guardado.

 

 

Difícil

 

Nada é mais difícil no mundo

Do que convencer alguém

Da verdade desconhecida

Que no fundo

Se detém,

Mormente se uma mentira

Lhe antecipou a corrida

E a ela é que todo o mundo, afinal, mira.

 

 

Numa

 

Há quem diga muito

Numa só palavra,

Um só fôlego gratuito,

E os mais têm para um ano de lavra.

 

Quantos significados

Por trás e por dentro dos dados!

 

Quantas vezes é demais o que dizes

Para o que precises!

 

 

Ensina

 

O Bem não é o caminho,

Ensina o caminho a escolher:

É o mais simples, maneirinho,

E o mais difícil de ver.

 

E o pior é que, ao fim,

É só aproximado assim.

 

E assim será eternamente,

Nesta vida e na outra, à frente.

 

Apenas o desconforto

É ultrapassado do Além nos frutos do horto.

 

 

Porque

 

Porque é que temos linguagem

Se uma bomba bastaria?

Na triagem

De cada dia,

Porque é que as mãos terminam em dedos

E não em punhais que nos tirem os medos?

 

- Teremos tanta falta de siso

Que nem vemos o que primeiro é preciso?

 

Primeiro a guerra?!

E depois queixamo-nos de como a vida aterra...

 

Costumes ancestrais

Poderão

Não ser mais

Que um montão

De erros imemoriais...

 

 

Vitória

 

Ser bem sucedido

É a chave-mestra.

Ora, nem sempre a vitória há respondido

Ao que é requerido

Pelo sucesso

Do que só para a vitória se adestra

Em excesso.

A vitória muitas vezes é derrota

Do que não tomou nota

De todo o intrincado do processo.

 

A realidade nunca é simplista

E o simplista nem sequer lhe há tocado

Com a vista,

Quanto mais dominado!

 

 

Força

 

Todo o império tem

Um inimigo,

Como ocorre sempre a quem

Da força retiver a segurança e o perigo.

 

Só inimigo não tem após

Quem toda a força depôs.

 

Um sem-abrigo?

Sim,

Mas com o Universo inteiro por pascigo,

No fim.

 

 

Agires

 

Se agires com rectidão,

O sucesso virá.

A inversa, porém, é que não

Corresponderá.

 

Se procuras o sucesso, então,

Já perdeste a rectidão.

 

E todo o sucesso que atingires

Não cobre o amargor que sentires.

 

Poderás rir a bom rir:

Serão chamas de inferno por ti dentro a subir.

 

 

Procuro-te

 

Procuro-te e não te encontro

E moras sempre ao lado de mim.

Procuras-me e não me encontras

E moro sempre ao lado de ti.

És o passo mais além deste desencontro,

Meu pé nunca atinge tal confim.

Sou o que não sou nas minhas montras,

Nunca me atinges, só tocas ali.

 

Somos um para o outro, no confronto,

A rota do Infinito ponto a ponto.

 

Apenas a ruptura

O Infinito preconfigura.

 

 

Compreende

 

Uma parte de ti compreende o Infinito

No Todo de cada momento:

Na fundura de teu imo aflora-te o quesito

Daquele fermento.

 

O problema

É chegar lá e atingir em cheio o tema.

 

Todo o mundo o persegue,

Ninguém nunca o consegue.

 

O lema é perseguir a fronteira,

Cada dia mais à beira, mais à beira, mais à beira...

 

Mesmo depois da vida terrena,

Então em plenitude,

Prossegue aquela faena

Na festa que aos eleitos jamais em nada ilude.