ALVOR

 

 

 

Ossos

 

Os ossos saram.

O arrependimento

Pelas escolhas que se enganaram

No decisivo momento

Permanece apertando o peito da gente

Eternamente.

 

 

Rafeiro

 

Sem cadeias,

Somos o rafeiro sem dono

Que com a rede tenteias,

Feito funcionário

Camarário,

A ver se apanhas o vadio desperto do sono.

 

 

Seita

 

A seita inclui

Secretismo injustificado

E por coacção influi

Em todo o lado.

Quem a aceita

Sofre sempre da maleita.

 

 

Urna

 

O corpo deixou de ser

Colo que acalenta,

Deveio urna de ninguém entender

Que é que, afinal, representa.

Morreu o bebé da mãe,

E ela, vivendo, também.

 

 

Entre

 

Entre a morte do bebé

E o renascer da mãe

Findamos sem saber, porém,

Se ela não terá morrido silenciosamente

Com ele ao pé

Eternamente.

 

 

Pior

 

Dum bebé pior que a morte

É morrer aconchegado

Num ventre materno que o conforte,

Deixando o peito da mãe apunhalado.

Brutal e pungente, a dor

É de perfil enlouquecedor.

 

 

Engravidam

 

Engravidam na cabeça

Muitos pais antes das mães.

Todo o mundo ali tropeça:

Modelo

Para entendê-lo

Em lado nenhum o tens.

 

 

Chão

 

Vê o mais velho o chão fugir-lhe

Ao chegar o irmão mais novo.

Em choque, adapta-se, ao ir-lhe

Ao encontro, à voz do povo.

Tudo para ele é corte e regressão:

Como ter menor lesão?

 

 

Conjuntura

 

Se os pais foram filhos do meio

E a conjuntura foi mal gerida,

Então o receio

É de a experiência ser repetida:

E é o que mais a cria

Na rota de cada dia.

 

 

Preciso

 

Se é preciso coragem para mudar o mundo

De engano

Para rosto humano,

Quão mais fecundo

É aquilo de que é feito o amor de mãe

Para a mãe ser que o mundo tem!

 

 

Contar

 

Ser pai é não ser sobredotado

Para contar histórias

E findar encantado

Quando um filho as reclama, pejado de memórias,

Garantindo que da noite são as estrelas:

- Não pode passar sem elas.

 

 

Tortura

 

Após tanta tortura do sono,

Como é viável alguém

Não se desequilibrar,

Cão sem dono

Nem lugar?

- Basta ser mãe!

 

 

Instinto

 

O instinto maternal,

Para amor materno devir,

Só com vinculação, afinal,

Cada dia mais uns pontos a cerzir

No tecido convivial

Que vida além calhar de vir.

 

 

Fatalmente

 

As famílias têm o direito

Milenar

Ao jeito

De a si próprias se igualar:

- Todas fatalmente estão sujeitas

A ser imperfeitas.

 

 

Aconchegados

 

Aconchegados no lar,

Todos do direito dispomos

De ser como somos:

Coração grande para voar

E mau feitio

Que baste para todo o ousio.

 

 

Sério

 

Se não déramos nomes impressionantes

A coisas banais,

Ninguém nos levaria a sério, pedantes

Demais...

Todos somos tocos

Muito ocos.

 

 

Aprender

 

Aprender a trabalhar e amar

Aqui, agora, no perene presente

E do modo de ser antigo me afastar,

O de quem apenas repetir para a frente,

Sem incarnar aqui

O Infinito que aflorar em si.

 

 

Quilómetros

 

A vida anda pejada de razões,

A maior parte das quais se arrima

Aos tropeções

Da caminhada

E só vem ao de cima

Após mil quilómetros de estrada.

 

 

Culpa

 

A culpa não te cabe,

És apenas um espírito elevado, para já.

Só que, se as árvores não provocam a tempestade,

Qualquer tolo sabe,

De verdade,

Onde o raio cairá.

 

 

Viagem

 

A vida é uma viagem que inaugures,

Em suma.

O velho viaja de nenhures

Para parte nenhuma?

Quanto mais despojado,

Melhor chega, porém, ao outro lado.

 

 

Estereótipo

 

O estereótipo é mentira.

Retém,

Porém,

Uma migalha de verdade

Que por dentro dele nos mira

E ao ingénuo persuade.

 

 

Dinheiro

 

Dinheiro na bolsa

É para gastar,

Dinheiro na bota, enquanto mal disposto se bolsa,

É para a forrar.

E há quem se dê a muito trabalho

Para forrá-la das gotas daquele orvalho.

 

 

Velar

 

Quando no negócio

Me canso

A velar pelo que embolso,

O ócio

É apenas descanso

Mas com dinheiro no bolso.

 

 

Prefiro

 

Prefiro a noite sem lua,

É mais fácil falar na escuridão,

Confiar o segredo da rua,

Abandonar noutra a minha mão...

Enquanto me ensimesmo,

É mais fácil ser eu mesmo.

 

 

Apetecível

 

Por mais apetecível que algo seja,

É de pesar o risco.

Até que ponto alguém o deseja?

Até que ponto estamos a postos,

Dispostos

A queimar-nos pelo petisco?

 

 

Histórias

 

As histórias não precisam de ser novas

Para germinarem alegria.

São velhos conhecidos, são as provas

Dos vinhos velhos cheios de energia.

Tão fiáveis a alimentar-nos de ilusão

Como o pão.

 

 

Lua

 

Olhar a Lua não me torna feliz,

Olhar um banquete não me enche a barriga.

Quero-a minha, à Lua, da raiz

Ao cume do luar que me fustiga.

- Demorou milhões de anos

Mas lá chegámos!

 

 

Parar

 

Melhor é parar de ir

Quando precisamos,

Do que, ao invés, corramos

Até cair.

A não ser que cair seja

O que o Bem deseja.

 

 

Trás

 

Olhar para trás contando as perdas

É um luxo inútil.

Só não será fútil

Se, entre o que herdas,

Aprenderes

O que uma vez perdeste a nunca mais perderes.