À LUZ DA CANDEIA
BARTOLOMEU VALENTE
Lisboa, 2011
AO SERÃO DOS CONTOS ANCESTRAIS
I
Ao serão de domingo
Contar
Não sou só contos e lendas.
Contudo, sem narrativas,
Sem de as contar oferendas,
Não sou nada. Arestas vivas
Restam só de minhas sendas.
É uma história o movimento
Dum lugar a um outro além,
Nunca deixa o seu fermento
No primeiro teor que tem.
Vivemos neste andamento.
Um princípio tenho, assim,
E terei então um fim.
Histórias
Todo o contador de histórias
É aquele que vem de fora,
Que na praça das memórias
Duma aldeia que ali mora
E que nunca dali sai
É o além que entre eles cai.
Dá-lhes a ver outros montes,
Outras luas e terrores,
Outras caras, outras pontes...
Metamórficos pendores.
É quem captou a atenção,
Que outro mundo traz na mão.
É um outro olhar, outra voz:
Deste era-uma-vez por meio
Supera este mundo a sós
E a metafísica em cheio
Introduz então na infância
De todos com elegância.
Habita-nos
Habita-nos o antiquíssimo,
Cada dia, e nos impele
Para agir, leve, levíssimo.
Haja embora o que o repele,
É assim: para começar,
Vimos de longe e luar.
Como a luz fóssil se observa
Em astrofísica em volta
De nós cintilando, serva,
Desde o nascimento à solta
Dos mundos, ouvir podemos,
Além e aqui, se mantemos
Os ouvidos bem abertos,
Murmúrios de antes da história,
Dos inícios encobertos
De que se perde a memória.
Os sonhos de outrora são
Parentes nossos então.
Repara
- ”Deus fez o mundo em seis dias
E tu minhas meras calças
Nem em seis meses farias?!”
- ”Mas, meu caro, a quanto é que alças?
Repara só, num segundo:
Vê tuas calças e vê o mundo...
Não têm comparação:
Tuas calças, que mundão!”
Pergunta
Quando alguém pergunta à Lua
O que é que ela mais deseja...
- ”É que o Sol que além flutua
Morra e mais ninguém o veja.”
- ”Também, Lua, o não verá...”
E ela confirma sem pena:
- ”Ora, tanto se me dá!”
...E à noite assim se condena.
Fome
Levada pela fome mais cruel,
Uma hiena olha atenta o seu filhote.
As ilhargas cavadas pelo bote
Das privações, achega-se ao farnel:
- ”Não é que um anho me pareces fiel?
Julgo ver um cordeiro como dote
Quando olho para ti. Um borregote
Suculento, a saber-me como mel.”
- ”Mãe, olha para mim, é lá possível
Parecer um cordeiro! Sou teu filho,
Não sou o anho que julgas comestível.”
- ”A prova que me livra do sarilho
É que estás a balir neste momento.”
E logo o devorou sem adiamento.
Sede
Um cão, a morrer de sede
Após mui longa corrida
Pelo deserto que fede
De estorricar nele a vida,
Chega, enfim, junto a um regato
Que corre muito pacato.
Inclina-se. Porém, quando
Se dispõe para matar
A sede que o vem matando,
Nas águas a se achegar
Vê que vem a própria imagem:
Doutro cão crê que que é mensagem
A impedi-lo de beber.
Deita-se o cão sequioso,
A arfar, aguardando, a ver...
Um nada após, momentoso,
Achega-se da má sina
E com prudência se inclina,
Mas o outro lá continua.
Retira e senta outra vez
E de morte a sede o acua.
Várias vezes o entremez
Repete até que, extenuado,
Sem reter-se haver logrado,
Atirou-se dentro de água
Para a limpo tirar tudo
Com o cão de tanta mágoa.
Grande surpresa, contudo:
Não encontra nenhum cão,
Chapinha, enfim bebe, então.
Saiu de água saciado
E, antes de tomar caminho,
Olha atrás o seu traslado
No espelho de água adivinho.
E lá o fantasma o encarava,
Só que então já o não entrava.
Caracol
Observava certo dia
Mui atento um caracol
Que pelas ervas seguia
Lento e mole, lento e mole,
Um filósofo entretido
A ver daquilo o sentido.
- ”Em que pensas?” - um passante
O questiona, oportuno.
- ”Tenho um caracol diante,
Penso nele: eu me coaduno
A que eu penso nele e, enfim,
Ele nunca pensa em mim.”
- ”Isso apenas?!” - o outro torna.
- ”Não, não é somente aquilo.”
- ”Que mais, para além da sorna
De olhar bicho tão tranquilo?”
- Ӄ que, se isto descamamos,
Julgo que nos completamos.”
- ”Completamos?! Em que lei
O homem com bicho cabe?”
- ”Sabe, é que eu sei que não sei
E ele não sabe o que sabe.”
O pensamento, de agudo,
Dum nada retira tudo.
Paraíso
No paraíso Adão mais Eva andavam,
Até que Adão de retirar-se teve,
Eva deixando, num momento breve,
A sós perante as tentações que entravam.
Satã vem logo mais o filho Esquivo
Contando a Eva: -”Tenho de ir-me embora.
Tomas-me conta de meu filho vivo
Até que eu torne? É uma ligeira hora...”
Eva aceitou. Adão, chegando, vê
O Satanás e o reconhece logo
E logo o mata destruindo o jogo
Ao pendurá-lo, retalhado, ao pé.
Quando ele sai, logo Satã retorna
E com magia reconstrói o filho.
Eva, culpada, uma vez mais, sem jorna,
Aceita o encargo mas prevê sarilho.
Quando Adão chega, furioso encara
O Esquivo ali bem retornado à vida.
-”Porque à palavra do inimigo, cara,
Tu dás ouvidos, enganada em lida?
Em mim apenas confiar-te deves.”
Mata o diabo e desta vez o crema,
Espalha as cinzas dele em gestos breves
Por mar e terra, que ninguém o tema.
Satã regressa e Eva logo conta
O que é que Adão empreendera ali.
Satanás chama: então, de ponta a ponta,
Recola o filho e após o encosta a si.
- ”Posso deixá-lo uma vez mais à guarda
De teu cuidado?” - perguntou a Eva.
- ”Leva-o contigo, de novo antes que arda!
Não quero mais. Onde é que isto me leva?”
Mas Satã usa de mil e uma manhas,
Lamenta humilde, sedutor devém.
Eva, à terceira, com pressões tamanhas
Aceita o filho que o diabo tem.
Adão, em fúria, quando volta, mata
Satanás-filho e a frigir o pôs,
Comeu metade e a outra parte acata
Eva comê-la, a dar-lhe fim, após.
Quando Satã reaparece é que Eva
Lhe conta tudo o que ocorreu no dia:
- ”É de nós parte, cada qual o leva
No próprio corpo.” Dali não fugia.
- ”É exactamente,” - diz o rei da treva -
“Exactamente aquilo que eu queria.”
Astrofísico
Um astrofísico em papuas terras
Partilha os sonhos a que sonho empresta:
- ”...Por fim é Marte ver se vida encerra.”
- ”Porquê? A vossa vida então não presta?!”
Riquíssimo
Um riquíssimo ateniense
Quer Diógenes de visita
Ao paço dele imponente.
Mas este sofre a desdita
De estar com grande catarro:
Puxa, constante, um escarro.
O ricaço lhe pediu
Que não escarre a impecável
Morada a que o atraiu,
Que de asseio era intocável.
Diógenes, cordato, o encara
E escarra-lhe então na cara.
Fazendeiro
Um fazendeiro da América,
Muito mais do que abastado,
Visita um primo afastado,
Lavrador à escala ibérica,
Pouco mais que remediado.
- ”Pego o carro de manhã” -
Diz o americano inchado -
“E, à noite, após ter andado,
Qualquer que seja o afã,
Nem ultrapassei um lado
Do meu rancho.” -”Estou a ver,”
- Comenta o primo, contente, -
“Dantes também eu, demente,
Tive um carro assim qualquer...”
E eis como lhe ferra o dente.
Juntos
Um polaco e um judeu
Vão a pé, juntos, à feira.
De repente, um deles viu
Um monte de bosta à beira.
Diz o judeu ao polaco.
- ”Dez zlotys se tu comeres
De bosta aquele grão naco.”
Contas a teres e haveres
Faz o camponês, cuidando
Que intuito secreto tem
O judeu com que anda andando.
Por fim, aceita e retém
O engulho ao comer a bosta.
Recebe então o dinheiro,
Continuando, ganha a aposta.
Perde o judeu por inteiro
Mas medita que, afinal,
Comer bosta não há feito
Ao polaco nenhum mal.
“Que bom!” - cuida, satisfeito.
Avista um segundo monte
De excremento e diz então
Ao polaco enquanto o aponte:
- ”Se eu comer este montão,
Devolves-me os dex zlotys?”
O camponês diz que sim.
Logo o judeu aprendiz
Come a bosta até ao fim.
Continuaram para a feira
E o camponês, meditando,
Pergunta, a ver se se inteira
Da razão de tal desmando:
- ”Como és esperto, judeu,
Explica-me o que é tal boda:
Porque é que a gente comeu
Aquela, enfim, bosta toda?”
Da resposta não há escrínio.
Muitos há sobreviventes
É dos campos de extermínio:
- Sabiam cerrar os dentes.
Passarinheiro
Ao fim da tarde, numa ruela de Damasco,
Fechou a loja, pôs às costas as gaiolas
De suas aves e ao caminho apronta o casco
Rude e grosseiro de seus pés, quais padiolas,
Pobre, infeliz passarinheiro, rumo a casa.
Cansado, avança lentamente, com bengala.
Vende umas aves: qual o ganho que isto apraza?
Traz meia dúzia a dormir já, de olhos em pala,
Às costas dele, pelas sombras do crepúsculo.
E eis que um dervixe de Tabris caminha ao lado,
Ouve-o falar com suas aves, som minúsculo:
- “De vós ter pena não importa, que eu traslado
Cada gaiola, trago e levo... Tudo trato,
De manhãzinha, água e sementes, pelo fresco,
Dou polimento ao bico, aliso com meu tacto
As penas breves, varro o chão, num arabesco
Lanço perfume e, pelo frio, junto ao fogo
Cada gaiola. No verão, à sombra as ponho.
Ah! Se eu tivera quem às costas, desde logo,
Me transportara de gaiola, mas que sonho!
Ah! Se eu tivera quem me dera de comer
E de beber todos os dias duma vida!”
Ora, o dervixe ouviu então, a se perder,
Uma vozinha a responder à queixa ouvida:
- ”Julgas que estamos na gaiola mas te enganas.
Nas minhas penas tenho insectos que o nem notam.
Também tu vives na gaiola e não te danas,
Gaiola é a casa, a tua rua e não se esgotam
Aqui as grades, que a cidade o é toda inteira.
Onde é que julgas da gaiola o fim das grades?
A Terra toda é para nós de jaula esteira.
A Lua, o Sol, todo o Universo ao qual agrades
Serão gaiola a balouçar pelo Infinito...”
De lassidão, passarinheiro nem responde
E, se calhar, nem mesmo ouviu o surdo grito.
Quando a sombria noite escura tudo esconde,
O vendedor a se queixar retoma o tema,
A desejar para si mesmo a sorte de ave.
Uma voz débil, de dormente mal atrema
No que dizer, faz-se entender à orelha suave
Do bom dervixe que se cola aos passarinhos:
-”Esquece tudo, fecha o espírito, eis a noite:
A fala de ave que ora escutas sem carinhos
És tu, teu imo, e tu, gaiola onde se acoite.
Teu pensamento o trancou forte em própria grade,
Dá-te trabalho a desmontar, nem o consegues.
Em casa pousa esta gaiola de inverdade.
Não penses mais, come e dormir vê quando adregues,
Que, adormecido, se abrirá tua gaiola
Ao mundo inteiro e então podemos falar mesmo.
Pois boa noite.” E só o dervixe tem a esmola
Desta mensagem que o silêncio espalha a esmo.
Monge
Monge cristão fundado havia, em canibais
Regiões, mosteiro organizado em solidez.
Os solitários, às dezenas, vivem mais
De seu trabalho e orações, em paz de vez.
Tem vastas terras muito férteis e rebanhos,
Hortas, pomares, galinheiros e um viveiro,
Produz compotas, vinho, leite, assados de anhos,
Fabrica pão, bolas de carne... É num ribeiro
Que, represado, águas recolhem para as lidas.
Sobre a região então se abate crua seca
Onde as colheitas são de todo destruídas.
Mas o mosteiro resistiu: irriga a peca
Semeadura, astucioso, controlando
De águas o débito conforme as precisões.
A dura seca entre as cubatas provocando
Vai entretanto letal fome aos aldeões.
Um dia, à porta do mosteiro, uma quinzena
De camponeses mui magrinhos pede ajuda.
O generoso abade-mestre, já com pena,
Mandou colher muitos legumes com que acuda,
Matar um porco dos mais gordos do cercado.
Logo uma sopa nutritiva é distribuída
A cada indígena, aos parentes que hão juntado,
E o que restou vai de farnel, à despedida.
Agradeceram os prendados, mas voltaram
Um dia após, quando eram já meia centena,
Pois o rumor do bem-querer longe espalharam
Todos aqueles que encontraram ceia plena.
O abade manda matar outro porco então
Como abater gordo carneiro a tanta fome.
Todo o selvagem come bem, se embora vão,
Sacos de nozes cada qual leva e consome.
Um dia após, são mais de cem com as crianças
Mais as mulheres, de sanzalas tão distantes
Que jamais antes nem ouvido, em tais andanças,
Tinham de haver mosteiros tais, de bens garantes.
O bom do abade pôs os monges a correr,
Um talhão colhem de legumes horta fora
E pescam trutas com a nassa e vão colher
Cestos de fruta e abater bodes agora.
Todos comeram, já por entre altercações.
Ao fim da tarde, uma oração rezam por chuva,
O monge e a selva de mãos dadas nas funções.
Mas de manhã nem do nevoeiro a branca luva
Responde às preces. Como a fome é mais cruel,
Já são duzentos visitantes por comida.
Alguns ajudam o convento no tropel
De abater carnes, refeição a ser servida.
Todos comeram, bem ou mal, e ao dispor tudo
Os monges põem, generosos, sem limite.
A oração cantam novamente e, sobretudo,
Ritos pagãos vão-lhe acrescer que a selva emite.
Tudo por nada, já que a seca persistiu.
São mais de mil, ao quinto dia, a vir famintos
E desde então os monges deixam de pousio
A quinta deles, já que os ovos, mesmo os pintos,
Legumes, frutos, tudo colhem, vão comer.
Toda a reserva é consumida, frutos secos,
Mel e compotas, as conservas, o que houver:
Os animais são abatidos, rincham ecos
Da mortandade dos cavalos do mosteiro,
Do burro velho que no prado tasquinava.
Tudo comeram, as galinhas, o viveiro,
Patos e cães e mesmo os ratos, se calhava.
Nada restou. E foi então que eles comeram
Os monges todos. E uns aos outros, logo após.
Um que ficou, depois que todos pereceram,
Morreu de gordo, em palermice tão atroz
Que, de ocioso, o rebentou a obesidade.
...E ali findou assim de vez a Humanidade!
Falcão
Adeja um falcão
Forte e ameaçador.
Domina, senhor,
Tudo o que há no chão.
Mas dum caçador
Uma flecha então
O trepassa e não
Tem mais vida e ardor.
Ao tombar, vê penas
De falcão nos nós
Que a frecha contém.
Viu, então apenas,
Que o que vem a nós
Sempre de nós vem.
Viajaste
Dois camponeses conversam,
Por ocasião da feira,
Das ditaduras que terçam
Armas contra o que as não queira.
- ”Conheci tantos países,
Rússia, Polónia, Alemanha,
Sei lá de quantos matizes!...”
-”Viajaste então com sanha.”
-”Qual o quê?! Nunca saí
Desta aldeia onde nasci.”
Hoje a comunicação
Põe o mundo todo à mão.
Piedosos
Dois piedosos muçulmanos
Seguiam pela montanha.
- ”Quando chegam os humanos
À perfeição que se ganha?”
-”Quando à montanha ordenarem
Que ande e ela então andar.”
De repente, ao repararem,
A montanha a começar
A mexer-se principia.
Vira-se o segundo então
Para ela e anuncia,
Com breve gesto da mão:
- ”Calma, montanha, é que eu não
Ordenei mesmo que andasses.
Era uma suposição,
Não percamos nisto as faces.”
Mercado
No mercado de Damasco
Hodja compra de algodão
Bela peça, após com asco
Regatear o preço em vão.
Vai depois a um alfaiate
Para que um bom albornoz
Talhe e cosa que acicate
Uma festa, um tempo após.
- ”Quando é que ele fica pronto?”
- ”Pois, com a ajuda de Deus,
Numa semana, é o que conto.”
Ela corrida, é de incréus
Que os olhos se lhe arregalam,
Pois do albornoz nem sinal.
As tesouras não se calam,
Tudo cortam, por seu mal,
Mas nem ao menos talhada
Foi do albornoz uma peça.
- ”Quando, então, vir de jornada?”
- ”Uma semana mais meça.”
- ”E então pronto de vez fica?”
- ”Pois, com a ajuda de Deus,
Pronto há-de estar, que se aplica
Nisto a vontade dos céus.”
Transcorreu outra semana,
Do albornoz, contudo, nada.
Adoeceu-lhe de esgana
Do alfaiate a filha amada.
- ”Quando devo tornar cá?”
- ”Dentro aí de quatro dias.”
- ”O albornoz pronto estará?”
- ”Com a ajuda em boas vias
De Deus ele há-de estar pronto.”
- ”Escuta, o dia da festa
Dentro de bem pouco aponto.
Não podes, de forma lesta,
Costurar-me este albornoz
De Deus sem ajuda após?”
Ofício
De sexta-feira no ofício,
Um imã, com eloquência,
Exclama, tenta um resquício
De sagrada eficiência:
- ”Ó Alá, senhor do mundo,
Dá-me a fé, dá-me a humildade,
A força de ser facundo,
Dá-nos a paz da verdade,
Dá-nos o amor da justiça,
Perdão, generosidade
Para o pobre que se enguiça,
Mais a luz da liberdade!”
Hodja, que estava presente,
Ergue-se e põe-se a clamar,
Mui convicto, de repente,
Crente de vir a alcançar:
- ”Ó Alá, senhor do mundo,
Dá-me doze potes de oiro,
Uma casa grande e, ao fundo,
Um lago, um jardim, com loiro
Cabelo de raparigas
Bem novas e sedutoras
Que a mui me agradar obrigas
A todas e quaisquer horas!”
O imã tentou calá-lo
E chamou-lhe de infiel
A blasfemar com regalo
Sacrílego e o repele.
- ”Mas porquê?!” - diz com espanto. -
“Faço o que faz o imã...”
- ”Como assim?!” - gritam do canto.
- ”Bem, então! Cada manhã,
Cada qual, buscando o bem,
Pede aquilo que não tem.”
Machado
Um camponês perde um dia
Das freimas dele o machado.
Busca em casa, faz vigia,
Tudo em vão, em todo o lado.
Avista então um vizinho
A desviar, passando, o olhar.
Cara e gesto comezinho,
Atitudes, aquele ar,
Tudo nele revelava
Que era ladrão de machados.
Já quase o denunciava
Pondo a público tais dados
E levando-o ao juiz,
Quando recupera então
O machado: uma raiz
O esconde caído ao chão.
Voltou a ver o vizinho:
Afinal, não tem sinal
Do ladrão que ele, adivinho,
Nele presumira real.
Malhas
Acaso e necessidade
Tecem malhas do destino,
A sorte que nos persuade
E a que, queira ou não, me inclino,
Quando piso o chão que grade.
Roleta russa jogamos,
Uma bala no tambor,
Das seis com que o completamos:
Giramo-lo e é o que for,
Quando à fronte o disparamos.
Um actor polaco tinha
De interpretar um papel
Dum militar da marinha
Que, no meio do tropel,
Aquela bala sozinha
Jogava ao terceiro acto,
Numa aposta que ganhava:
Preme o gatilho e o impacto
Nunca o tiro disparava.
Com a vida mal, de facto,
Desanimado, introduz
Uma bala verdadeira
No tambor. E não traduz
A informação desta asneira
A ninguém, que o não seduz.
Pois por vinte e duas vezes,
Com sorte bem milagrosa,
Representa sem reveses.
A cena com ele goza
Com tiros secos, corteses.
Mas no dia vinte e três
Um febrão grave o abateu
E cai à cama de vez.
Quando o aviso recebeu,
Tapa o teatro o revés,
Dele chama o substituto.
E foi com grande alegria
Que este ensaiou o produto.
Quando o cano à fronte enfia,
Morre em cena, ao tiro bruto.
Ergueu-se dias depois
Aquele actor principal.
Foi ele que, dentre os dois,
Assistiu ao funeral...
Mas nunca mais meteu, pois,
No tambor balas daquelas,
Não vá o diabo tecê-las.
Viajante
Um viajante atravessa
A floresta solitária.
Uma quadrilha depressa
Despoja-o da indumentária,
De tudo o mais em seguida.
- ”Vamos deixá-lo com vida?”
O punhal dum salteador
Logo lhe aponta à garganta.
- ”Mas matá-lo que valor
Nos traz, de que é que adianta?”
Atam-lhe aos pés cada mão,
Da vala fica no chão.
Mais tarde outro salteador
Vem junto do viajante,
Desata-o, trata-lhe a dor,
Segue com ele adiante.
- ”Vem agora atrás de mim,
Vou guiar-te até ao fim.”
Caminharam pelo escuro
Noite fora, tempo além,
Até caminho seguro
Se vislumbrar que lá vem.
- ”Tua aldeia fica ali
Ao fundo, vai por aqui.”
- ”Acompanha-me até casa,
Quero-te recompensar.
Comerás do que te apraza,
Beberás lá no lugar.”
-”Não posso ir” - com pundonor
Respondeu o salteador.
- ”Mas porquê?” - o outro se espanta.
- ”Porque sou um salteador.
A polícia desencanta
Minha presença ao odor.
Viria logo a correr
Em tua casa me prender.”
Com isto deu meia volta,
Dali desapareceu.
Três forças andam à solta
Tecem da vida o mantéu:
Uma assalta, uma outra ajuda,
Na fuga a final se escuda.
Aldeia
Numa aldeia abandonada
Do mundo dos distraídos
Um rico tem a morada
E um pobre tem desvalidos.
Trepa um dia o rico ao monte
A mostrar com largo gesto
Ao filho todo o horizonte:
- ”Olha o nosso e olha o resto,
Será um dia tudo teu.”
Trepa ao monte por igual
O pobre, a fruir do céu.
De espanto ao filho em sinal,
Na emoção de quanto o acolha,
Murmura-lhe apenas: - ”Olha...”
Tundra
Na tundra siberiana
Um homem encontra um preto,
Julga mesmo que se engana:
Jamais um vira em concreto!
Perplexo, pergunta então
Quando com ele se cruza:
- ”És a noite? A noite ou não?”
Resposta, porém, recusa
O preto e dali se afasta.
Um dia após, no lugar,
A curiosidade basta,
Vendo o preto ali passar,
A fazer que mais se afoite:
- ”Quem és? És ontem à noite?”
Sonha
Sonha o santo: uma mulher
De incomparável beleza
Encara-o com bem-querer,
Sorri-lhe tal quem o preza.
- ”Donde é que te provém tão
Maravilhosa beleza?”
- ”Um dia” - diz-lhe ela então -
“Choravas tu de tristeza:
Lavei minhas faces duas
Naquelas lágrimas tuas.”
Cão
Um homem está sentado
Lá no público jardim,
Um cão pela trela ao lado,
Aos pés dormitando assim.
Uma dama se aproxima
E senta-se à beira dele,
Olha o cão, um ser que estima,
Pergunta, a apontar-lhe a pele:
- ”O seu cão é um cão mansinho?”
- ”É muito mansinho, muito.”
Ela a mão devagarinho
Estende, em gesto fortuito,
Ao animal. De repente,
Este salta, vai mordê-la
E deveras ferozmente.
- ”Mas que me disse?!” - a sequela
É que a mão lhe está sangrando. -
“Afirmou-me que o seu cão
Era manso e eis senão quando...”
- ”O meu é. Mas este não
É o meu, já que esta manhã
Passeio o da minha irmã.”
Asceta
Um asceta, na esperança
De atingir o bem supremo,
Vê se não dormir alcança
Dezenas de anos seguidos,
De noite, a vergar o demo,
Até perder os sentidos.
Para tal, regularmente,
Nos olhos aplica sal
Até que o sangue fermente.
Já no limite das forças
Adormeceu, afinal.
Ai, virtude, a quanto orças!
Durante o sono, eis-lhe vem
A visão do Paraíso,
De Deus, dos anjos também...
Quando acordou, ficou triste:
- ”Procurei com tanto siso
Isto que no Além existe
Quando acordado e, afinal,
Só dormindo é que vi tal.”
Selvajaria
Após uma ditadura
A selvajaria impera:
Tanto há ganho com fartura
Como se esvai em quimera.
Dois búlgaros a uma esquina
Se encontram a negociar.
- ”Dois camiões quis a sina
De cigarros vir-me dar,
Cigarros americanos,
Um milhão por eles quero.”
- ”Pois é teu” - nem pesa enganos
O segundo, com esmero.
Selam de aperto de mão,
Vai cada qual a seu lado:
Um ver se encontra um milhão,
Cigarros, o outro enganado.
A terra sem roque ou rei,
A sequela a que anda atreita
Esta será: não há lei
E ninguém mais a respeita.
Música
Há na música indiana
Harmonias para a noite,
Harmonias para o dia
E, quando ninguém se engana,
Não há verão que lhe acoite
Dum inverno a melodia.
E diversos sentimentos
Dão vários de canto alentos...
Um rei que era caprichoso
Chama um mestre do sitar,
Pede-lhe um canto da noite
Quando o sol brilha fogoso.
- ”Impossível” - se a queixar,
Sem que mais longe se afoite,
Começa o músico atento. -
“De manhã noite nem tento.”
- ”Toca na mesma!” - “Não posso...”
- ”Recusas? Mando cortar
Já tua cabeça aqui!”
Ante a ameaça, tenta o esboço
O melhor que ele alcançar,
Toca noite, um peso em si.
Faz que a luz empalideça:
- O Sol a pôr-se começa!
Saudá-lo
Quando um novo Papa é eleito,
Os chefes, por tradição,
Doutra qualquer religião
Vêm saudá-lo a preceito.
Entre eles vem um rabino,
O mais ancestral de Roma.
Após a praxe, ele toma
Um sobrescrito mui fino,
Lacrado, de antigamente.
Pega-lhe o Papa na ponta,
Logo um cardeal o aponta
E ao ouvido algo comenta.
Sem abrir o sobrescrito,
Logo o Papa o devolveu
Às mãos do rabi judeu,
Tratando-o como um proscrito.
Este ritual perdura
Há muitos séculos já.
Que é que aquela carta apura
E tais gestos porque os há?
É o segredo dum cardeal
Que à hora da morte o conta
A um vivo que o logo aponta
Para aos Papas dar sinal
Que no futuro vierem.
É assim sucessivamente,
De longe, imemorialmente.
Ora, há imprevistos que ferem:
Há um século atrás morreu
O cardeal, de repente,
Que o segredo tem presente
E a transmissão se partiu.
Contudo, no protocolo,
Todos os Papas seguintes,
Da tradição fiéis ouvintes,
Cumprem o ritual a solo
Sem nenhuma confidência:
A carta é de devolver,
Devolvem sem ver sequer
Se contém qualquer pendência.
Se havia, pois, um segredo,
Parecia estar perdido.
Mas o actual Papa, atrevido,
Quer limpar suspeita e medo.
Nada o proíbe de ver,
Consultas devidas feitas,
Da carta quais as receitas
Que decerto há-de conter.
Os cardeais de antigamente
Que falavam ao ouvido
Se calhar nem o sentido
Sabiam dali pendente.
O Papa logo aceitou,
Sem a devolver, a carta.
O rabino nem se aparta,
Do espanto que o alegrou.
Finda que foi a audiência,
Um cardeal e uns peritos,
A um recanto circunscritos,
Fecham-se com impaciência.
Abre o Papa o envelope
E descobre um documento
Muito antigo, bolorento,
Em língua que ninguém tope.
Vêm os epigrafistas,
Linguistas ao Vaticano,
Esventram a fundo o arcano
E descobrem que são listas:
É duma casa de pasto
A conta de Última Ceia
Por pagar há era e meia,
De Cristo e os Doze o repasto!
O Papa muito se admira:
Então Jesus convidado
Não foi ao festejo dado,
Com eucaristia em mira?
A conta indica o contrário.
O rabino atesta então:
- ”É o texto em primeira mão
Que, através do tempo vário,
De geração se transmite
Em geração, há bem mais
De vinte séculos, tais
Os que conta quem o emite.
A Ceia que não se apaga,
Entre todas fundadora
Mesmo após tanta demora,
Nunca de facto foi paga.
Os meios para pagar
A dívida, sem demora,
Talvez tenha a Igreja agora,
Nem há juros a cobrar!”
Krishna
Quando Krishna era criança,
Tinha fama de maroto,
Era o guloso que alcança
Sempre o que lhe deu no goto.
Era oitava encarnação
Do deus Vishnu, benfazeja
Força que segura o chão
Do mundo, tal se deseja.
Um dia foi acusado
De haver de terra engolido,
Bem escondido, um punhado,
No que foi repreendido
Por Yasoda, a mãe terrestre,
Que explica que em caso algum
- Ela tenta o que o amestre -
Coma a terra que é comum.
- ”Não comi” - diz o pequeno.
- ”Abre então a boca, a ver...”
Obedece e um cheiro a feno
Vem-se dele a desprender.
Debruça-se Yasoda e vê
Árvores, rios, montanhas,
Todo o Universo à mercê
Cheio de estrelas tamanhas,
Dos seres toda a existência,
O passado e o futuro,
Dos mortos parca a vivência,
As formas do nascituro.
Viu além toda a emoção
Que todo o ser vivo tem,
Medo, raiva e coração,
Deslumbramento também.
Viu as lágrimas, o riso,
Os estádios da matéria,
Nada lhe escapa ao aviso,
Do filho na boca séria.
As parcelas do Universo
Todas vão no seu lugar.
- ”Está bem, é um mundo terso,
Podes a boca fechar.”
Quarto
Dorme um frade sozinho num castelo antigo
Quando ouve à meia-noite alguém bater à porta.
Entra um maldito enorme, nariz inimigo,
Olhos de brilho azul, a língua negra e torta.
- ”Quem és e que procuras?” - diz ousado o frade,
A quem Deus dava forças, sem temor algum.
- ”Aquele que virá depois de mim é que há-de
Explicar-to” - responde o que é o fantasma um.
O segundo maldito entra então, eram dois.
- ”Quem és e que procuras?” - perguntou o frade.
- ”Aquele te dirá que vem de mim depois” -
Retorque-lhe o maldito que, segundo, o invade.
Entra então o terceiro dos malditos soezes.
- ”Quem és e que procuras?” - insistiu o frade.
- ”Aquele que após mim entrar diz quanto prezes.”
O frade não arreda, que tal nunca o enfade.
Ora, o quarto maldito que é que diz então?
- Pois o quarto maldito nunca veio, não.
Ilusão
Ramakrishna conta,
Ao falar de Maya,
A ilusão que aponta,
Na qual tudo caia.
Um homem pobre e sem labor
Saiu de junto da mulher,
Do filho doente (arde em calor),
Tenta, pedinte, o que puder.
Não conseguiu. Quando voltou,
Um dia após, o filho é morto.
Logo a mulher o lamentou,
Que ele morreu sem seu conforto.
Ficou a olhar para a mulher,
Para o cadáver, e sorria
O pobre do homem esmoler.
Por que razão, não se entendia.
- ”Porque sorris?” - diz a mulher,
Sem o abarcar, muito espantada.
- ”Minha razão vou-ta dizer:
É que sonhei, de madrugada,
Que eu era um rei com sete filhos
Todos saudáveis, e feliz
Com eles vivo. Os meus sarilhos
São que acordei (bem o eu não quis)
E todos eles se hão sumido.
Diz-me tu quem mais lamentar:
Se o que doente hemos perdido,
Se os sete em vão sumidos no
ar.”
Teatro
Vai um homem assistir
Ao ar livre a um teatro.
Leva um cobertor ao ir,
Enrola-o, dobrado em quatro.
Quando chega, a peça ainda
Não havia começado.
Mas que modorra benvinda!
Deita-se e adormece ao lado.
Dorme tão profundamente
Que só acorda bem depois
De finda a função presente.
Dobra o cobertor em dois
E retorna para casa
Com risinho sinuoso
Murmurando, olhos em brasa:
- ”Muito bom! Maravilhoso!”
Lenhador
Um lenhador habitava
Numa aldeia e de manhã
Na floresta se adentrava
A trabalhar com afã.
À noite, quando voltava
Os aldeões reuniam
Em redor e ele contava
O que vira e eles ouviam.
Eram mais de mil inventos
Coloridos, variados,
A imaginários sedentos
Servidos, pratos cuidados.
Um dia encontrara um trol
Das raízes a sair,
Uma gigantesca mole
A falar do que há-de vir.
Outro dia foram ninfas
A mergulhar na cascata
E os faunos que nessas linfas
Armaram o nó que as ata.
Conhecia-os pelo nome,
Sabe querelas, amores,
A inveja que algum consome,
Canta deles os favores.
Crónica quotidiana
Da maga floresta erguida
Todas as noites emana
A uma aldeia embevecida.
Quando ia até junto ao mar,
Via sereias ao sol,
Tritões trompas a soprar,
Cavalgando a onda mole.
Uma que outra vez por ano
O bispo do mar lhe dava
Notícia do mundo arcano
Que na lonjura morava.
Também com elfos se via,
Gnomos, ogres e até fadas
E destas contos ouvia
Para as noitess encantadas.
Sílfides voavam no ar,
Criaturas plantas sendo,
Minhocas a vir falar
Com cobras tais que só vendo.
O lenhador inventava
Histórias mil destes seres
Que na aldeia em todos grava,
Nos homens e nas mulheres.
Emaranhado sem fim,
Com mil ramificações,
Mantinha em suspenso assim
Insaciáveis os aldeões.
Acabavam por julgar
Que não podiam viver
Sem a aventura estranhar
Que o relato lhes trouxer.
Desejos, preocupações
Deles lá reconheciam
Ou em longínquos torrões
Aportavam que nem viam.
Era o que mais divertia,
Acalmava e a dormir
Bem melhor serve de guia
Até o alvor do porvir.
Um dia tudo mudou.
O lenhador lá partiu
Para a selva onde suou,
Ao ombro o machado frio.
Mal tinha entrado no bosque
Viu, desta vez de verdade,
Onde o tojo mais se enrosque,
Dois sátiros, mãos em grade,
Uma ninfa a perseguir
Que pedia ajuda às plantas,
Aos gnomos, a quem ouvir,
E que só foi salva, às tantas,
Por um dragão voador
Que a uma nuvem a levou,
De enxofre em meio a um odor
Com que os ventos sufocou.
Ouviu também de elfos cantos,
Nítidos os viu dançar,
Das sereias os encantos
Vieram-no cumprimentar.
Pois até o bispo dos mares
Veio benzê-lo em latim
Numa vaga alçada aos ares
Com um trono de serrim.
Isto durou todo o dia...
Quando retornou à aldeia,
Todo o habitante que havia
Recolheu à sala cheia,
Que ao hábito ninguém foge,
À espera do que revele.
- ”Ora, então, que é que viste hoje?”
- ”Hoje? Nada!” - responde ele.
Cava
Um homem, torrando ao sol,
Cava, cava, no deserto.
Um beduíno com que bole
Pergunta, ao chegar-lhe perto:
- ”Que fazes?” -”Cavo um buraco.”
- ”Mas para quê?” -”Procurando
Ando moedas que num caco
Escondi já não sei quando.”
- ”Devias ter reparado,
A marcar o lugar onde,
Em algo que hajas fixado,
Rochedo, erva onde se esconde...”
- ”Reparei...” - diz o das moedas.
- ”No que foi?” E este então ri
Ante estas marcas tão ledas:
- ”Das nuvens na sombra ali.”
Acordou
O marido adormecido
Acordou mui bruscamente.
Dá mil voltas e um gemido,
Acorda a esposa dormente.
- ”Que agitação invulgar!
Vais transpondo um rio a vau?!”
- Ӄ que acabo de sonhar,
Tive um sonho muito mau!”
- ”Que sonho?” - ”Sonhei que a burra
Do nosso vizinho acaba
De à luz dar, enquanto zurra,
Um burrinho em que desaba
Esta má sorte sem nome:
O burro nasceu sem cauda!”
- ”Isso é o que aqui te consome?!
Estás à espera que aplauda?!”
- ”Imagina que o burrinho
Cai num buraco, uma vala...
Pede-me ajuda o vizinho
Para a cria então sacá-la.”
- ”Sim, vai pedir. E depois?”
- “E depois?! Depois é o diabo!
Como é que o apanho, pois
O burrico não tem rabo?”
Deitado
Uma noite em que a mulher
Jantou na sua família,
Volta a casa e que vem ver?
Um motivo de quezília:
Dorme o marido em sossego
Deitado com um borrego.
- ”Que é que é isto?!” - grita ela.
- ”Nada” - diz ele. - ”A questão...”
- ”Não contes outra balela!
Agora tens atracção
Por borregos?! Que borrada!”
- ”Não estás a entender nada!
Sonhei que me entrava o lobo
No redil e, logo à entrada,
Comia o borrego bobo,
Dentada atrás de dentada.
E ele é que, de medo, clama
Por abrigo em nossa cama.”
Sem-abrigo
Dois sem-abrigo dormiram
Mui vagamente abrigados
Na entrada que conseguiram
Duns prédios abandonados.
Despertam para a manhã
Dum inverno bem malsã.
Ambos tiritam de frio,
Nada têm que comer.
Os transeuntes, ao rocio,
Correm por eles sem ver,
Apressam os passos ante
A chuvada penetrante.
Um deles ao outro diz:
- ”Tive um sonho extraordinário.
Num paço vivo feliz
Com divãs de odor mui vário,
Bailarinas ao serviço,
Vinhos com sabor castiço,
Todos os frutos do mundo
Num pomar à discrição,
Cada canto o mais fecundo...
E tu, não sonhaste, não?”
- ”Eu não sonhei nada” - diz
Dos dois o outro infeliz.
- ”Tens sorte” - torna o primeiro,
Após vaga reflexão.
- ”Tu é que, num grau cimeiro,
A tens, o sonho é um condão.”
- ”Não, és tu: desiludido,
Não acordas destruído.”
Discutiram tempo além
Sem nunca chegar a acordo,
Como à miséria convém,
Sem barco onde entrar a bordo.
Qual o bem que o mal persuade:
O sonho ou a realidade?
Cura
Um homem religioso
Apaanhou doença grave.
Sonhou então, luminoso,
Que peregrinar é a chave
Da cura. Vai a Konya,
De Rumi na sacra via.
Em sonhos lhe garantira
Um célebre santo imã
Que há muito de nós partira:
Vira a cura de manhã.
Reuniu forças então,
Foi em peregrinação.
Custou-lhe cara a viagem,
Cansou-o, pois que as estradas,
Sem poiso nem estalagem,
Todas vão enlameadas,
Muitas tinham aluído
Das chuvadas que hão caído.
Em Konya, ele ficou,
Sujo, em caravanserai,
Mas as devoções orou,
Aos santos lugares vai.
Ao túmulo de Rumi
Voltas deu de dar aí.
Só depois se fez à estrada
Integrado em caravana.
Esta, a caminho, é atacada
Por bandos de mão profana
Que o doente maltrataram,
Todos os bens lhe roubaram.
Esgotado, regressou
Ao lar para repousar.
Dias após constatou
Que a doença, sem melhorar,
Afinal, mais parecia
Agravar-se dia a dia.
Então confronta o imã
Que em sonhos lhe aparecera:
- ”Prometeste, uma manhã,
Que em Konya a cura houvera.
Fiz o que disseste e sou
O morto em pé que aqui estou.”
O imã não deu resposta.
Porém, na noite seguinte,
Quando o doente se encosta
Na choupana sem requinte
E adormeceu para o lado,
- Sonhou que estava curado.
Virgem
Uma rapariga ainda virgem sonha
Que um príncipe mágico na aldeia pára,
Que por ela vem, para que o sol lhe imponha
Que nele rebrilha como jóia rara.
De manhã levanta-se e com pressa corre,
Deita-se à procura do encantado seu,
Mas ninguém ouviu onde esse amor ocorre.
Um velho sentado entre uma fonte e o céu,
Lhe diz quando passa lá por perto dele:
- ”O teu tempo perdes, o teu tempo perdes.”
Nem ouve o que diz, presa ao que além a impele,
Sai da aldeia e pula pelos campos verdes.
Ninguém viu tal nobre. Ao retornar, cansada,
Passa junto ao velho que de novo diz:
- ”O teu tempo perdes.” Mas não ouve nada,
Volta para casa; não, porém, feliz.
Tentam acalmá-la, que a razão lhe volte,
É apenas um sonho... São inúteis freimas,
Que o sonho é mais forte e faz com que ela solte
Novas correrias após muitas teimas,
Pois de novo o viu que lhe estendera os braços
Num sonho envolvente. Cruza junto ao velho,
Perto da nascente, com os mesmos traços:
- ”O teu tempo perdes.” Sempre igual conselho!...
Busca em toda a parte, fere pés e pernas
Nas pedras dos trilhos, no silvado agudo.
Não tem mais resposta, ralações supernas
São o que recolhe, conferido tudo.
Quando a cruzar volta pelo velho, à fonte,
Torna a dizer-lhe ele: - ”Pois teu tempo perdes.”
Na noite seguinte, o sonho estende a ponte:
O príncipe os
braços abre, herança que herdes,
E a moça se lança na prisão que a enlaça.
Louca de esperança, a oposição venceu
De pais, de vizinhos, contra dela a traça,
Corre além do velho que já nem ouviu:
- ”O teu tempo perdes, o teu tempo perdes.”
Após vários dias de mil buscas vãs,
Retorna esgotada. Quanto dela houverdes
É roupa em farrapos, terra em jovens cãs,
Pernas a sangrar... Como não pode mais,
Senta-se na pedra junto ao velho e à fonte.
Ele nem diz nada. Nos fiéis caudais,
Onde à sede a vida mais saúde aponte,
Da nascente perto vai colher em mãos
Água que oferece à rapariga lassa.
Ela inclina o rosto, vê tais dedos sãos,
Tão juvenis mãos em quem por velho passa,
Mais um anel de oiro em que um diamante brilha,
Que levanta os olhos, sob a capa vê
Que lhe oculta o rosto de negror mantilha,
Que um jovem se esconde, de olhar onde lê
O brilho da aurora, lábios sorridentes:
É o que vira em sonhos e a tomara em braços!
- ”Eras tu aí?!” De gestos mui silentes
Ele nem responde, mas não há embaraços.
Ela torna ainda: - ”Porque não disseste
Que eras tu mais cedo?” E ele então responde:
- ”Como é que eu sabia, com saber que preste,
Que era quem buscavas, sei lá bem por onde?”
Dragão
Sonhou alguém com um dragão atroz,
Aterrador, com uma goela em chamas
Ameaçadoras, a urrar feroz.
Ora, assustado, lhe questiona as tramas:
- ”Que vai passar-se? Que aterrado estou!
Irá comer-me? Ai, meu Deus do céu!”
Diz-lhe o dragão, a suspender o voo:
- ”Que quer que diga? O sonho é todo seu!”
Rua
Numa pouco iluminada
Rua uma mulher caminha
Numa passada apressada,
Medrosa, que vai sozinha.
Mas é um sonho. E um homem sai
Da sombra, cola-se a ela,
Estende a mão, quase vai
Prender-lhe a cintura bela.
- ”Cavalheiro, que é que faz
Pare ou a polícia chamo!”
- ”Ora, vós é que sonhais
Seja o que for que eu reclamo...”
Noite
Uma noite, simplesmente
Numa camisa comprida,
Sai do leito, lentamente,
A mão à frente estendida.
Atravessou o jardim,
Deu volta completa à casa
E à porta de entrada assim
Retornou tal quem se atrasa.
Um vizinho, quando o viu,
Pergunta por sobre o muro:
- ”Que fazes?! Que é que te deu?!”
- ”Chiu! Cala-te! Só murmuro...”
- ”Diz-me então que é que se passa!”
- ”Minha mulher conta a todos
Que um sonâmbulo com graça
Sou. Confirmo-o com meus modos.”
- ”E então?” -”Chiu! Podes levar-me
A um mal com que nem concordes.
Há um risco de grande alarme:
Sobretudo não me acordes!”
Aborígenes
Aborígenes primevos
Australianos um dia
Caminhavam, de hoje coevos,
A um etnólogo por guia,
Por uma estéril paisagem
Dos desertos interiores.
O cientista em viagem
Anotava os pormenores
Dos actos deles e gestos.
Regularmente este grupo,
Gente de acordos honestos,
Sem ordens e sem apupo,
Parava um longo momento.
Não era para comer
Nem para ver um invento
Que a natura ali tiver,
Nem sequer para sentar
Nem descansar da fadiga.
Era somente parar
Sem nada que a tal obriga.
À segunda ou à terceira,
O etnólogo então pergunta
Que faz que desta maneira
Todos parados os junta.
- ”É bem simples: nós estamos
À espera de nossas almas.
As almas que nós tenhamos,
De vez em quando, mui calmas,
Param no trilho a cheirar,
Ver, ouvir algo escapado
Aos corpos com que hão-de andar.
As razões de haver parado,
Sendo no íntimo secretas,
São mui fortes, sedutoras.
Por isso, mesmo discretas,
Se os corpos correm por horas,
As almas param, por vezes,
Durante uma hora inteira.
Urge esperarmos, corteses,
Por elas, do trilho à beira.”
Bali
Em Bali contam que, à morte,
Almas há mui descontentes,
Recusam largar à sorte
Os corpos ali presentes,
Mormente quando eles vão
Queimar-se em pira no chão.
Almas há recalcitrantes.
Em pública cremação
Vestem os participantes
As vestes da tradição,
Cumprem rituais antigos
A exorcizar inimigos.
Uma dolente alma esquiva
Duma mulher morta cedo,
Cremação definitiva
Recusa ao corpo em degredo
Que lhe houvera pertencido,
Por um fado não cumprido.
Dela a irritação sussurra
De asas em roucos ruídos,
No toiro que salta e urra,
Que a carreta com gemidos
Puxava, tal como quem
Picado é de insectos cem.
Os oficiantes contam
Que os cabelos se moviam,
Os pêlos na barba apontam
Para onde não queriam.
Tentam pegar fogo à lenha,
Logo a apaga o ar que venha.
Foi preciso interromper
A cerimónia letal.
Dum celebrante vão ver
Que das almas o sinal
Descontente entenderia,
Ao que a voz comum dizia.
As almas que rejeitarem
Morte ao corpo que as alberga,
Conta o velho, é de enjeitarem
O karma que ao alto as erga:
O corpo não satisfez
O que devia, de vez.
Agitam-se loucamente
Na esperança apavorada
De que o morto, finalmente,
Retorne à vida passada
E cumpra a tarefa agora
Que a terra dele lhe implora.
Reuniram-se em conselho:
Que fazer? Saber das queixas
De alma que tem preso o artelho,
Remediá-las, com as deixas.
Mas o corpo estava morto:
Como da morte ir ao horto?
O ancião pede que o deixem
Sozinho uma noite inteira
Junto à morta. Que se queixem
Os do Além é o que requeira
Cada oração, cada reza
Cujo segredo ele preza.
Pela manhã declarou
Que das iras de tal alma
Já sabia: desejou
Dum amor colher a palma
Dum vizinho e tal prazer
Recusara o corpo ter.
O brâmane encarregado
Foi de visita a tal homem,
Explicar-lhe aquele fado
Cujas sequelas consomem
O espírito já partido.
O homem fica surpreendido,
Não tinha de tal ideia,
Pois conhecia a mulher
Desde miúdo, na aldeia,
Mas nem sonhara sequer
Que viver pôde tal sina
Duma paixão clandestina.
O religioso pede
Que receba a alma penada,
Se umas horas lhe concede
A mantê-la bem tratada.
Ele vai falar à esposa,
Que é casado e dum lar goza.
Ela fica surpreendida
E por demais inquieta,
Se há uma ligação vivida
Outrora e tida secreta
E que o brâmane informado
Do facto haverá ficado.
Demorou a convencê-la
Que não era nada disto,
Um adultério não vela
Um morto, mesmo benquisto,
O que ali se tem de pôr
Não é sexo mas amor.
O marido se dirige
À casa da mulher morta
(Onde tal alma o exige
E o segue), a ver se a conforta
Aquela friorenta noite
Que lhe oferta onde se acoite.
Amigos e conhecidos
Ficam até madrugada,
Fora apuram os ouvidos,
Mas ninguém logra ouvir nada.
De manhã, o homem saiu,
Ao lar retorna e dormiu.
O funeral recomeça,
A brisa é calma, mui suave,
Erguem-se as chamas depressa,
Sem peias, quais penas de ave...
Tudo finda calcinado
E de almas, mais nenhum dado.
Narciso
Quando Narciso morreu,
As margens, mui desoladas,
Pediram gotas ao rio
Para as lágrimas choradas.
- ”Nem todas as minhas águas
Chorariam tantas mágoas.
Como o amava!” - e o rio chora.
- ”Impossível não o amar!” -
Carpem as margens agora. -
“Como era belo, que olhar!”
- ”Era belo?!” - diz o rio.
- ”Quem melhor que tu tal viu?
Da margem se debruçava
Ele em ti todos os dias
E nas águas contemplava
Suas faces fugidias.”
- ”Ah! Se o amava não era
Por isso” - o rio assevera.
- ”Então porquê?” - ”Porque, quando
Ele ali se debruçava,
Eu podia ver, cantando,
A beleza que agitava
Minhas águas, sem escolhos,
Na fundura de seus olhos.”
2
Ao Serão de Segunda-feira
Mendigo
Um homem andrajoso, miserável,
Como um mendigo penetrara um dia
De Bagdade no paço do califa.
Na ausência do venerável,
Se atira, sem cortesia,
Do trono para a alcatifa.
Adivinhando o insólito, a real guarda
Não se atrevera a expulsar o intruso.
O camareiro-mor acorre ao caso:
- ”Sabes que ocupas, sem farda,
Um lugar apenas de uso
Do califa em breve prazo?”
- ”Sim, sei.” - ”Sabes quem é o nosso califa?”
-”Estou acima dele.” - ”A inteligência
Perdeste, que a pobreza ta não dá.
Aqui não ganhas a rifa,
Por sobre Sua Excelência
É só Maomé que estará.”
- ”Sei” - disse o desgraçado. - ”E o Profeta
Saberás tu quem é?” - “Sei muito bem,
Estou acima dele.” Erguem as armas
Que o desplante despoleta
Os guardas que se mal têm.
- ”Deixem, que após ireis dar-mas” -
É o camareiro-mor que mais ajunta:
- ”Acima de Maomé só vive Deus.”
- “Sei” - responde o mendigo. - ”E Deus morreu?!”
- ”Acima estou, se é pergunta.”
- ”Pois nada acima há nos céus!”
- ”Claro! E tal nada sou eu!”
Odor
Um pobre come pão seco
Em frente dum grelhador
De avaro churrasco e peco.
Quer cobrar-lhe o dono o odor,
Recusa o pobre e um juiz
Vem decidir a querela.
Uma moeda que condiz
Com o custo da tabela
Joga ao chão do restaurante
E ao dono diz que ali queda:
- ”Paga-te com, doravante,
O barulho da moeda.”
S. Clemente
De Alexandria S. Clemente
Diz que um egípcio combinado
A soma certa, mui contente
Tinha por ter o favor grado
Da cortesã mais glamorosa.
As condições aceitam ambos,
Combinam bem hora amorosa,
Ele a fremir já de pés bambos.
Mas, entretanto, o jovem sonha
Que tinha obtido da moçoila
Todo o prazer que se suponha,
Drogado em sono de papoila.
Todo o prazer então gozou
Mui solitário, noite fora.
Já satisfeito, ele acordou,
Quer cancelar o encontro agora.
A cortesã disto discorda,
Manda intimá-lo e vai ao rei
Bocóris ver com quem concorda.
E ele decide em sábia lei:
A cortesã deve ser paga,
Porém de certa forma nova.
Ao sol a bolsa que o réu traga
Esvaziou, boa-fé prova:
- ”Mas ela fica, o mais lhe vedas,
Só com a sombra das moedas.”
Molho
No Zaire, um homem idoso
Avança penosamente
Por caminho pedregoso,
De lenha um molho pendente
Às costas, rumo à sanzala,
Apoiado na bengala.
Pára a recobrar alento
E pousa o molho no chão
Dele ao lado, lento e lento.
Diz na pausa ao molho então:
-”Não aguento... Toda a vida
Molhos carrego em seguida.
Contente, quando era jovem;
Sem esforço, homem maduro,
Agora, que mal me movem
Os meus passos, de inseguro,
Das forças este resquício,
Ao levar-te, é já um suplício.”
De repente, ouve uma voz
Que lhe vem da lenha e diz:
- ”Ouves-me? Ouves tu, a sós?”
- ”Quem fala? Será um juiz?!”
- ”Sou eu” - responde-lhe o molho. -
“Ao lado estou, não me encolho.”
- ”És um molho então falante?”
- ”Não muitas vezes, mas hoje
Ouvi-te, por um instante,
A queixa que de ti foge.
Um molho de lenha, a par
De tal, pode então falar.”
- ”E que me queres dizer?”
- ”Se tu, para me levar,
Cansado estás de morrer,
Às minhas costas trepar
Deves, que eu levo-te a ti,
Como a mim tu até aqui.”
- ”E tu podes fazer isso?!”
- ”Pois claro, se to proponho!”
E, como que por enguiço,
O velho vê, como em sonho,
O molho a se levantar,
Ficar de pé no lugar.
Apoia-se em quatro galhos
Que mexem debaixo dele
Como perninhas sem talhos.
- ”Vais a andar!” - o velho expele.
- ”Agarra-te a mim sem medo,
Que eu levo, fim do degredo.”
- ”Certo estás de me levar?”
- ”Muito tempo me levaste,
Está na vez de eu prestar
Serviço igual quanto baste.”
O molho ligeiramente
Se inclina então para a frente.
O velho, contra o receio,
Se instala o melhor que pode
Da ramagem pelo meio,
Pés num galho que não rode,
Braços a agarrar-se bem,
Face entre as folhas que tem.
- ”Estás bem?” - pergunta o molho.
- ”Muito bem!” - retruca o velho.
- ”Cuidado enquanto recolho
O bordão de bom conselho.”
Põe-se então a caminhar
Trilho fora sem parar.
Os ramos um pouco estalam
Mas o todo aguenta bem.
Os pés das lenhas abalam
Carregando o velho além.
Fecha os olhos, em repouso,
Sorrindo, o velho, com gozo.
Durante um tempo, avançaram.
De repente, há uma mudança
No andamento que levaram.
O velho olha e quanto alcança
É que não vão no caminho,
Mas no matagal vizinho.
- ”Não estamos no caminho!” -
Grita o velho ali, zarolho. -
“Já não vamos, adivinho,
Para a aldeia” - impreca ao molho.
- ”Porque iria para a aldeia?” -
Diz o molho. - “Qual a ideia?”
- ”Porque é na aldeia que eu moro,
Lá que vive a minha gente,
Que vê se não me demoro,
Que a noite cai de repente.
Estarão à minha espera
Antes da hora da fera.”
- ”Tu tens medo, tu, das feras?!”
- ”Naturalmente que tenho,
Todos, em todas as eras,
Temem o seu arreganho.”
- ”De feras não tenho medo” -
Murmura o molho em segredo.
- ”De que é que tens medo então?!”
- ”Tenho dos homens,” - responde -
“Do destino que me dão
Na sanzala, se for onde
Eu te levar. É que sei
O destino que terei:
Minhas folhas a comer
Dás às cabras e carneiros,
Vão-me em gravetos fazer,
Que queimam melhor que inteiros.
Isto é que os molhos de lenha
Temerão que lhes advenha.”
- ”Para onde então me levas?”
- ”Ias-me levar à aldeia.
Faço o mesmo, antes das trevas:
Levo-te, floresta meia,
Para o lar onde nasci:
Minha gente vive ali.”
- ”Que vais fazer? Vais queimar-me?!”
-”Porque havia de queimar?
Pegar fogo, se tal arme,
À minha família e lar?
Vou largar-te na floresta,
Que a fera faça o que resta.”
- ”Na floresta não me deixes,
Que das feras tenho medo.
Deixa-me descer dos feixes!”
Logo o molho pára quedo,
O velho desce depressa,
Pisa o chão, de mente avessa.
Fica olhando para o molho
E o molho a olhar para ele,
Olhos de pau sem sobrrolho,
Casca seca em vez de pele.
Cai lento o Sol no horizonte
E há já feras que se aponte.
- ”Que fazer?” - pergunta o velho.
- ”Agora?” - do molho a voz
É sopro a esvair do espelho,
Vida a se apagar a sós. -
“Já não sirvo para nada,
Leva-me em tua jornada.”
- ”Achas?” - o velho pergunta.
- ”Rápido!” - o molho responde.
O velho depressa junta
Os galhos, o medo esconde,
E às costas, com a bengala,
O leva para a sanzala.
O mais depressa que pode
Caminha nas velhas pernas.
No atraso ninguém lhe acode,
Adormece das luzernas
Com as pálpebras pesadas.
Mas não pára. A noite cai,
Vê cada estrela que sai.
Não vai pensar nos joelhos,
Vão cada vez mais doridos,
Arqueja, cedem artelhos,
Os ombros já vão feridos,
Porém, curiosamente,
Na fadiga segue em frente.
Sabe que o repouso o espera,
Ao longe viu uma luz,
A aldeia não é quimera,
Família e todos traduz,
Prontos para o receber
Quando além aparecer.
- ”Estás zangado comigo?” -
Pergunta ao molho silente. -
“Não estás? De eu pôr-me a abrigo?...”
O molho de lenha, ausente,
Dele às costas, já sem vida,
É o silêncio em despedida.
Hassidismo
Um rabino muito jovem
Foi a um mestre do hassidismo.
- ”Quem és tu?” - e mal se movem
Do mestre os lábios de abismo.
- ”O neto sou do rabino...”
- ”Não te perguntei quem era” -
Corta o mestre, de ar ladino -
“O avô que no lar te espera.
Pergunto então outra vez:
Quem és tu? Sabes quem és?...”
Apanha
Quando Nasredim passeia
Com o amigo, este se abaixa,
O espelho apanha que ameia
Num canto, partida a caixa.
- ”Julgo que conheço este homem” -
Ao se ver no espelho diz.
Logo leva a que as mãos tomem
De Nasredim, mui feliz,
O espelho em gesto adivinho.
Olha nele o rosto seu
E comenta: -”Que espertinho!...
Claro, conheces: sou eu!”
Génio
Salomão aprisiona
Num pote de cobre um génio,
Do fundo do mar o adona,
De ondas lhe cobre o proscénio.
O génio enriquecer
Jura quem o libertar.
Cem anos vão decorrer
E ninguém a o procurar.
Jura que ao libertador
De quanto tesoiro houver
No mundo fará senhor.
Cem anos: nada a ocorrer.
Jura então os três desejos
Do libertador cumprir.
Mais cem anos e dos brejos
Ninguém vem-lhe a tampa abrir.
Os séculos vão passando.
E o génio jura (é a verdade)
Que irá matar, judiando,
Quem lhe der a liberdade.
Encontram-se
Encontram-se dois um dia
Na praça duma cidade.
- Ӄs tu?! Mas quem o diria?!
Não vinha à espera, em verdade,
De te ver, mudaste tanto!
Tinhas o cabelo claro,
Hoje é moreno, que encanto!
É dum preto muito raro...”
O outro quer retorquir,
Este, porém, não o deixa
E continua, a sorrir:
-”Eras alto, uma fateixa,
Hoje ao meu ombro mal chegas!
Que aconteceu entretanto?”
O outro, em gestos de mãos cegas,
Tenta desfazer o encanto,
Mas o primeiro retoma:
- ”E a cicatriz aí na testa
Apagaste-a com a goma
Como a texto que não presta?”
E, sem esperar resposta,
Acrescentou: - ”Francamente,
Simão, queres uma aposta?
Mal te conheci, parente.”
- ”Eu não me chamo Simão” -
Consegue dizer, por fim,
O outro, interdito. - “Ai não?!
Também muda o nome assim?!”
Distraído
Era um homem distraído.
À hora de se deitar
É só roupa a se espalhar.
De manhã, sono volvido,
Já nada logra encontrar.
Anota então num papel
Os diversos cantos onde
Põe a roupa que se esconde
Como um rebanho em tropel.
Perde papéis quanto bonde...
Escreve em papel segundo
Qual o lugar do primeiro.
Perde o segundo, pioneiro
Doutros, encadeado fundo.
Nem com lembrete sineiro!
Combina os métodos todos
E, em manhã determinada,
É toda a roupa encontrada.
Do dia é o melhor dos bodos.
Da voz do imo há uma chamada,
Bem de dentro (quem responde?):
-”E tu? Onde estás tu, onde?”
Termos
Nasredim encontra um homem
Que não conhece na rua,
Que diz (termos que o consomem):
- ”Bênçãos na cabeça tua!”
Nasredim, surpreendido,
Pergunta ao homem, de lado:
- ”Quem é que tens no sentido?”
E o outro, desconcertado:
- ”Falo contigo, porquê?”
- ”Então sabes quem eu sou?”
- ”Não...” - admite o outro, ao pé.
- ”Nem quem sou nem onde vou
Sabes tu, na tua crença.
Que te faz pensar que actua,
Que haverá que te convença
Que é minha tal bênção tua?”
Porta
Nasredim, ao ir de casa,
Deixa sempre a porta aberta.
Mal torna, num golpe de asa,
Tranca tudo a hora certa.
Qual a razão da atitude?
- ”Muito simples. Nada tenho,
O bem de maior virtude
Sou eu próprio. Quando venho,
Seja o motivo qual seja,
É normal que me proteja.”
Sábio
Um sábio muito eminente
Do Afeganistão viera
Da invasão mongol premente
A fugir, tal duma fera.
Foi recebido em letrado
Círculo havido em Damasco.
Dele em honra organizado
Houve encontro, vinho em casco,
Com poetas, tradutores,
Com cristãos, maometanos,
Físicos, comentadores,
Judeus mesmo, até ciganos...
Discursou o presidente,
Louvou o labor insano,
Todo o saber eminente
Do grande homem, homem do ano.
E chegou mesmo a dizer:
- ”Eis entre nós o mais sábio
Dos sábios que o mundo houver
Desde Aristóteles. Sabe-o
Quem dele ouvir as lições.”
Pensa o sábio, lá com ele:
- ”Cá está. Já tem restrições...”
E fechou-se em sua pele.
Psiquiatra
Ao psiquiatra vai um homem
E fala de seus problemas.
Mil tristezas o consomem,
É abatido que ouve lemas,
Nada o retém nem importa
E a melancolia plena
Quem o rodeia a suporta,
Sempre a aturar-lhe tal cena.
- ”E viajar, já tentou?” -
Pergunta o médico após.
- ”A viajar sempre estou,
Viajo toda a vida a sós.”
- ”Não vejo nada de grave.
Preciso é dar-lhe o abanão,
A se interessar, suave,
No que toque o coração.
Olhe lá, se ao circo for?”
- ”Ao circo?!” - ”É que há lá um palhaço,
O Grock, um grande senhor,
É de rir a par a passo.
Decerto far-lhe-ia bem.”
- ”Não posso.” - ”Porquê? Já viu,
Ajude um pouco também...”
- ”É porque o Grock sou eu.”
Al-Mokri
Al-Mokri, o mestre islâmico,
Empreende longa viagem
Ao Egipto panorâmico,
Pérsia e África selvagem...
Uma década passou
Numa Ispahan, a mongol,
Que sufi sempre ficou.
Da poesia persa o rol,
A mais bela então do mundo,
Percorre em deslumbramento.
Em reputação fecundo,
Reclamam-lhe o ensinamento.
Da Pérsia vem à Turquia,
Aos dervixes rodopiantes,
Na cidade de Konya.
Auditórios expectantes
Vêm beber-lhe a palavra.
Escreveu vários relatos,
Selectas de sua lavra
Que os copistas, com recatos,
Transmitem mui fielmente
Ao mundo então conhecido.
De quem Rumi tem em mente
É exegeta preferido.
Chega a ser-lhe atribuído
Um saber super-humano
Já de magia tingido,
De fados de anjos arcano.
Com poderes invisíveis
Tem contacto permanente,
Curas pratica impossíveis,
É o milagre aqui presente.
Na Turquia, após seis anos,
O Bósforo atravessou,
Vive na Grécia sem danos,
Por fim à Itália chegou.
Vamos encontrá-lo em Roma,
Muito próximo da Cúria,
A ponto dos de Mafoma
O crerem converso, em fúria.
Mas não ficou por aqui,
A mais viagens procedeu.
Relatos, se houver daí,
O registo se perdeu.
Vinte e oito anos de ausente
Levam-no a casa, por fim.
Como incógnito é presente,
Sem se anunciar, assim,
Que não quer ajuntamentos
De curiosos vazios.
Mas no lar não há elementos,
Ninguém, os leitos são frios.
Mas, para grande surpresa,
Célebre é seu nome ali,
Em toda a parte ele pesa,
Referência ou alibi.
Todos os livreiros têm
Infinitas obras suas,
Ignotas dele também,
De terras, casas e ruas
Relatos imaginários,
Encontros inexequíveis
Com reis de Universos vários,
Com falecidos incríveis
De antes de ele ter nascido,
Travessias de dragões
Que um fantasma há percorrido...
Tentou chamar de ilusões
Aos manuscritos falseados,
Já que visitado tinha
Do mundo os cantos tratados,
Mas logo a resposta vinha:
- ”Al-Mokri foi quem o disse...”
Ir de cidade em cidade
Fez que isto se repetisse,
É o critério da verdade.
Até que ele perguntou:
- ”Mas onde mora Al-Mokri?
Posso ir vê-lo donde estou?”
Olham de surprresa ali,
Tal se a questão fora estranha.
Fica a saber que morrera
Anos atrás, quando apanha
Rumo à terra onde nascera.
Toda a gente o garantia,
De quê, ninguém sabe ao certo.
Alguém mesmo aventaria
Punhal ou veneno perto.
Por uns anjos, outros contam,
Elevado fora ao céu.
E o túmulo? Logo apontam
Da tumba o recanto seu,
Altamente venerado.
Ali vinha prosternar-se
O peregrino enfadado,
A flor lançando em disfarce.
Al-Mokri seguiu caminho.
Em qualquer outra cidade,
Tudo igual e ele sozinho:
Obra apócrifa, inverdade,
De milagres mil relatos,
Cantorias de louvores
E outra tumba com impactos
De visitas e penhores.
Só tumbas, vê mais de doze.
Quando quer informações
De si, retalhos que cose,
Nenhum traz recordações
Da vida que ele vivera,
Não há nenhuma verdade:
Na China até combatera
Demónios que a humanidade
Comem, como a sombra errante
De Alexandre um gole de água
Lhe pede, por um instante,
Para lhe esfriar a mágoa...
Vive ainda nesta era,
Porém, uma lenda viva
Da vida se lhe apodera,
Todos a falar de outiva.
A vida dele se torna
A dum sábio, a dum santo,
A dum milagreiro à jorna,
Quase divino, entretanto.
Várias cidades e aldeias
A honra entre si disputam
De berço dele, em mil teias.
Cantos, árias executam
A levar de terra em terra
Longínquos sonhos de viagem,
Tão longe que o santo aterra
Na fímbria que faz triagem
Entre abismo e fim do mundo,
Onde debruçado aspira
Do inferno o amargor profundo,
O enxofre em rajadas de ira.
Atribuem-lhe o que nunca
Pensara, factos e gestos
Milhentos que a lenda junca,
Ritos, orações, aprestos
Cantam longos dele o nome.
Há dezenas de famílias
Que a dele são, com renome,
Disputam-no em mil quezílias,
Chegam a tirar proveito,
Sem escrúpulo, dos laços,
Quando o assassínio dá jeito,
Matam sem mais embaraço.
Al-Mokri quer combater
Tal efeito irracional,
Discípulos a dizer
Que são dele, a bem ou mal.
Sem se atrever a afirmar
Que ele próprio é o Al-Mokri
(Quem iria acreditar?),
Diz: - ”Muitas vezes o vi,
Era notável, decerto,
Contudo era mais comum,
Mais banal, de nós mais perto
Que a imagem de lado algum.”
Aqueles a quem falava
Viravam costas, troçavam,
Ninguém ouvidos lhe dava,
Muitos até o insultavam,
Chamavam-no de blasfemo,
Gabarola ou invejoso:
É mesquinho como o demo
Apoucar ser tão grandioso.
Foi o que o mais perturbou.
Vai juntar-se aos peregrinos,
Tumba a tumba visitou
A salmodiar loas, hinos...
Cada vez falava menos.
Às vezes tinha a impressão
Duma memória com drenos
A esparramar-se no chão.
Tais pedras toscas dum muro
Que se desagregam, caem:
Konya não é seguro,
De Ispahan entram ou saem?
Na cabeça obnubilada
Os nomes se confundiam:
Em Roma fez uma estada,
Quem são os que lá viviam?
Os pontos de referência
Da existência vagabunda
Foram perdendo evidência,
Obras, nomes, tudo afunda.
Uma noite deslocou-se
Junto duma tumba sua,
Deu-lhe a volta, prosternou-se,
Ignora quem nele actua.
Voltou lá frequentemente.
Uma manhã encontraram
Rígido o corpo fremente
E de imediato o levaram
Para fora da cidade
Onde o enterraram num canto.
O deserto logo o invade,
Nada mais restou do santo.
Ladrão
Um ladrão introduziu-se
Em casa de Nasredim.
Nada encontrou que se visse
Para lá furtar, ao fim.
Numa qualquer arca a um canto
Repara, vai-a pilhar.
Mas lá dentro, em grande pranto,
Vê Nasredim a chorar.
- ”Que fazes aí?” - pergunta.
- ”Escondo a minha vergonha.”
- ”De que tens vergonha?” - junta.
- ”De não ter nada que ponha
De roubar em minha casa,
Onde encontres um bom porto.
Crê que a misériaa me arrasa,
Estou de vergonha morto!”
Conquistador
Um conquistador avança
Pela terra devastada.
Todos fogem do que alcança,
Senão cortam-nos à espada.
Em toda a parte, um vazio.
Entra à porta dum mosteiro,
Cruza o pátio com fastio,
Nas celas só resta o cheiro...
Mas, de repente, detém-se:
Eis um monge ali sentado,
Calmo, imóvel, tal quem vence.
O conquistador, irado,
Para o monge avança então
Que o parecia não ver,
Puxa o sabre com a mão,
Na garganta do esmoler
Assenta o gume e lhe diz:
- ”Querer-me-á desafiar?
Quem sou não sabe o infeliz?
E que o posso trespassar
Sem pestanejar sequer?”
O monge os olhos abriu,
Pronto ao que der e vier,
E tranquilo respondeu:
-”E tu não sabes quem sou?
Não vês que me trespassar
Posso deixar-me onde estou
Sem sequer pestanejar?”
Igual
Nasredim vai ao mercado,
Uma grande melancia
Sob cada braço arqueado.
À frente dele seguia,
Caminhando em passo igual,
Outro que também trazia
Duas melancias, qual
Delas a mais bem criada.
Dele a roupa é, por sinal,
Igual à do outro na estrada,
Tem a mesma corpulência...
- ”Quem é aquele?” - a si, de entrada
Espanta a coincidência,
Acelera o passo então
Mas o outro, em precedência,
Faz o mesmo pelo chão,
Nasredim só vê umas costas.
- ”E se for eu?” - é a questão. -
“É que, se não sou, que apostas
Há de quem poderá ser?”
Acelera nas congostas,
Tudo em vão. Parou a ver.
Renuncia a defrontar
Este ignoto que é quenquer.
A si finda a explicar:
- ”Frente a mim se ando a correr,
Que é que adianta me apanhar?”
Batem
Batem à porta. À pergunta
“Quem é?” - respondem - “Sou eu!”.
Hodja, abrindo a porta, assunta
Quem é aquele amigo seu.
Só que, interdito, lhe ajunta:
- ”Mas porque dizes que és eu?!”
Perderam
Dois iranianos se perderam no deserto,
Há vários dias caminham sob o ardor,
Comer não têm, de beber não há por perto,
Vão esgotados, tombam, erguem-se e, ao calor,
De novo tombam. Leva um saco ao ombro um deles
Que algo contém. - ”Que é que tu levas no teu saco?”
- ”Nada” - responde-lhe obstinado e com ar reles
O portador, nada propenso a dar cavaco.
Caem de novo, já se arrastam, já não podem
Mais levantar-se. Igual pergunta se repete:
- ”Que é que no saco, afinal, tens? Coisas que acodem?”
O homem do saco a confessar finda em falsete:
- ”É melancia...” - ”Melancia?! Uma deveras?!”
- ”Sim...” - ”Vá, depressa! Urge parti-la, é de comer!”
- ”Não!” - o do saco, olhos fechados, nas esperas,
“Estou guardando-a” - diz e mais: diz que não quer.
- ”Mas a guardá-la para quê?!” - quer o outro ver.
- ”Para um extremo caso” - diz ele ao morrer.
Diabetes
Preso por reincidente
De escândalo em via pública
E desrespeito ao agente
Que tentou, cordato, a súplica,
Um cinquentão ao juiz
É presente, mui bem posto,
Distinto, com ar feliz,
Óculos de oiro no rosto.
O magistrado, surpreso,
Comenta . - ”Não posso crer
Que alguém tão fino e tão teso
Desacate, ao fim, quenquer.”
-Ӄ porque, senhor juiz,
Eu diabético sou.”
- ”Não vejo o laço que diz
Haver ao que se passou.
Afinal, que é que a diabetes
Tem a ver com tudo isto?”
- ”Ah! Ladrão que me acometes,
Sacana de juiz malquisto!” -
Exclama, a bater o pé,
Aos berros, em fúria, o homem. -
“Besta de juiz é o que é,
Que as questões que me consomem
Retoma: como as repetes
Sobre a minha diabetes?!...”
Loucamente
Um adulto desejava
Loucamentte uma mulher.
A classe alta ele ostentava,
Mesmo assim ela enjeitava,
Tal se ele fora um qualquer.
Mensagem após mensagem,
Persistente, ele enviava,
Seguia-a toda a viagem,
Metia-se com coragem
Ao caminho onde a encontrava.
Mandou-lhe ela um mensageiro:
- ”De meu corpo por que parte
Te prendeste por inteiro?”
Responde ele, lisonjeiro:
- ”Por um olho a assinalar-te.”
Então ela um olho arranca,
Envia-o numa bandeja
Ao homem que o gesto espanca:
- ”Eis o olho, bem o tranca,
Olha-o com senso que o veja!”
Imediata foi a cura
Deste homem apaixonado
Cujo amor logo é secura.
De importunar não mais cura
Da indómita dama o fado.
Duquesa
Da duquesa a lengalenga
Afirma que a classe baixa
É preguiçosa, molenga.
(E ela nem um dia encaixa
De trabalho em toda a vida,
A comparar a medida...)
Que cada trabalhador
Tem um miúdo a ajudar
A transportar com suor
A ferramenta de obrar.
- ”Um homem pode, decerto,
Transportá-la sem aperto” -
Protesta, enquanto o criado
Segura a travessa de oiro
Para servi-la do enfado
Das batatas de tom loiro.
Ao beber o quarto copo
De vinho, então trepa ao topo:
- ”Bebem tanto ao meio-dia
Que incapazes são de tarde.
Esta gente o que queria
É apaparico covarde.”
Entretanto, dez criados
Servem doze cozinhados.
- ”O Governo não tem nada
Que auxiliar a pobreza.
Qual remédio, casa dada,
Qual pensão ao que a despreza?
Os pobres são mais frugais,
Virtude das principais.”
Isto após a refeição
Que teria alimentado
Quinze, com satisfação,
Uns dez dias por contado,
Da classe trabalhadora
Que a duquesa, claro, adora...
- ”As gentes devem contar
Com elas próprias apenas” -
E o mordomo a levantar
A ajuda, com mãos serenas,
E a se dirigir à sala:
Em seu trono nada a abala!
Pavlova
Anna Pavlova, a bailarina,
Teve um triunfo, em espectáculo,
Que foi lendário, como sina
Que a consagrou num tabernáculo:
A sala aplaude em frenesim
Por tempo, em pé, que não tem fim.
Agradecer veio mil vezes,
Recebe ramos às dezenas,
Sorriu, fez vénias mui corteses
Aos gentis fãs naquelas cenas.
O pano desce finalmente.
Ora, os amigos vão à frente
Do camarim, à espera dela
Para a rodear, mais aplaudir.
Um quarto passa, não há estrela,
Meia, uma hora, e ela sem vir!
Vai um amigo ao camarim.
Anna Pavlova, a sós, enfim,
Lavada em lágrimas encontra:
Chorando estava há uma hora.
- ”Não há razão, que é que tem contra?
Que grande noite! Porque chora?”
- ”É que não tenho em mim sentido
Tê-la deveras merecido.”
Bicicletas
Um judeuzito precisou
De ir a Mosscovo de comboio.
Preocupado se esgueirou
(Há muito que andam trigo e joio
A separar, ao persegui-los,
Aos judeus ditos), se aninhou
Num canto esconso, dos tranquilos:
- ”Despercebido a ver se vou...”
Pára o comboio na estação,
Trepa um cossaco à carruagem
Que, ao se sentar, exclama, chão:
- ”Fora os judeus! Que malandragem!
São sempre a causa dos problemas,
Deles por mor, há fome e guerra,
Traem-nos. Tiram oiro e gemas...
Com eles fora é o céu na terra!”
Avista então o judeuzito
Enfiado ao canto e lhe pergunta:
- ”Não é verdade o que aqui dito,
Que os judeus são desgraça junta?”
Com voz tremente, o judeu diz:
- ”São eles mais as bicicletas.”
Coça o cossaco o seu nariz,
Interdito ante estoutras setas.
Com um suspiro - “Mas porquê
As bicicletas?!” - olha os céus.
O judeuzito (mal se vê)
Pergunta então: - ”Porquê os judeus?”
Murmuram
- ”Murmuram que irão prender
Os judeus mais os barbeiros.”
- ”Porquê os barbeiros?!” - dizer
Ouves logo os teus parceiros.
Racista
- ”Racista?! Tenham decoro,
Que eu já sou avô de netos!
Mesmo até porque eu adoro
Os estúpidos dos pretos!”
Eczema
Sofre um homem dum eczema,
Vai a um dermatologista.
Examina-o, como é lema,
Diz-lhe ao fim, completa a lista:
- ”Vou livrá-lo de vez disto.
Irá pôr esta pomada
Três vezes por dia, insisto,
Fica a cura consumada.”
- ”De certeza?” - “Certamente.
O eczema numa semana
Desaparece, é um repente.”
Receita que o não engana
Dobra o doente e ao bolso a mete.
Contudo, sai descontente
E o médico se intromete:
- ”Algo está mal, é o que sente?”
- ”Está tudo muito bem.”
- ”Vá lá, diga, algum aspecto
Não ficou como convém...”
- ”É que...” - diz o doente, recto -
“Onde é que após vou buscar
O prazer de me coçar?”
Comunista
É na Rússia comunista,
País onde falta tudo.
Formam fila, em mãos a lista,
Frente a um armazém sortudo:
Acaba de anunciar
Que há carne mesmo a chegar.
Muito tempo a espera dura,
Até que, a dado momento,
O agente, má catadura,
Ordena sem sentimento:
- ”Judeus, fora! Judeus, fora!”
E vão-se os judeus embora.
Os outros ficam, batendo
Os pés por causa do frio,
Durante a noite. Mas vendo
Da manhã luzir um fio,
Logo - “Fora” - o agente diz -
“Aos não russos de raiz!”
Bielorrussos, ucranianos,
Georgianos e outros mais
Saem da fila de enganos.
No fim do dia os sinais
São que outra expulsão se apraza:
- ”Já podem ir para casa
Os que não são do Partido,
Não chegará para eles.”
Restam como que em sentido
Os puros e só aqueles.
Então vem um dirigente
E confessa-lhes de frente:
- ”Também podem ir-se embora,
Não há carne no armazém
Agora ou a qualquer hora,
E nenhum dia nos vem.
Foi tudo publicidade
A levantar, na verdade,
O moral da esfomeada
População do país.”
Da fila então dispersada
Diz alguém, torto o nariz:
- ”Os judeus, judeus danados,
Sempre privilegiados!”
Sufis
Em casa dum turco rico
Sete sufis se reúnem.
Ele tenta-lhes o bico,
Petiscos que se coadunem,
E eles em nada tocavam:
Meditação nova travam.
Jejuam diversos dias
De seguida, de tal modo
Que ao anfitrião porfias
Tais preocupam-no todo,
Até um amigo dizer:
- ”Sei como os pôr a comer.
Traz em grande quantidade
A necessária comida,
Depois esvazia a herdade,
Todos fora, de seguida.
E sai tu próprio de vez.”
Ora, o homem assim fez.
Serviu pratos variados,
De vinte ou trinta convivas,
A família e os criados
Manda embora, que as festivas
Horas pertencem aos santos,
Todos lhes deixa os recantos.
Porém, desaparecer
Não quis e, num quarto escuro,
Pôs-se a espiar para ver
Dos sufis qual é o apuro.
Quando cuidam que sozinhos
Estão, então quais cadinhos
De fé, de meditação!
Atiraram-se à comida,
Infrene empanturração,
Lambarice desmedida,
A ponto de os insensatos
Lamberem também os pratos!
Ora, com tal tratamento,
Um deles, em dor atroz,
Cai por terra e é o finamento.
Os mais, qual o mais veloz,
Continuam, sem ligar,
Somente a se empanturrar.
Um segundo cai por terra,
Depois um terceiro, ao lado,
Um quarto mais longe aterra,
Um após outro, enfartado,
Sem nunca soltar a garra,
Vítima da grande farra.
Quando só restava apenas
Deles um sobrevivente,
O dono que armou as cenas
Vem como da rua em frente.
Vê seis corpos lá no chão,
Pratos vazios, e então
Perguntou ao que escapou
Se a comida era bastante.
- ”Não” - o sufi retrucou -
“Faltou alguma, ao restante,
Senão eu, que a tantto exorto,
Também já estaria morto.”
Moradia
Uma bela moradia
Ergue na Índia um ricaço,
No cimo dum monte, um dia.
Quando fica pronto o espaço,
Rebenta uma tempestade
Com proporrções de ciclone.
O dono se persuade
A impetrar quem o abone,
Um sacrifício oferece
A Vayu, ao deus dos ventos.
A casa que ele estremece,
De sonho lugar de eventos,
Pede-lhe que não destrua.
Vayu, porém, não o ouviu
E a tempestade na rua
Ainda mais recrudesceu.
Lembra o homem que Hanuman,
O deus-macaco, era filho
Do deus do vento. A manhã
Rompe atando ele o cadilho
Das súplicas, garantindo
Que a casa era uma pertença
Do filho do deus tão lindo.
O deus é surdo à sentença.
De todo o lado batida,
Até o alicerce a casa
Estremecia, fendida,
De ave partida qual asa.
E o homem, em desespero:
- ”Senhor, Senhor, piedade!
Não destruas este esmero
De casa, propriedade
Do próprio Rama, o grão-mestre
De teu filho, de Hanuman.”
E ao vento nada há que amestre,
Tudo arrasa em terra chã,
Vai tudo desmoronar-se.
Então, a salvar a vida,
Corre o rico até que esgarce
A véstia feita à medida.
Maldisse todos os deuses
E, após meditar, exclama:
-”Que a arrasem estes reveses,
Que ma espalhem pela lama!
Bem vistas todas as coisas,
Bem ponderado este enguiço,
Não me inscrevo nestas loisas,
- Que tenho eu a ver com isso?”
Lágrimas
Hodja vê chegar a casa,
Toda em lágrimas, a filha
Que lhe conta como a arrasa
De pancada o bigorrilha
Do homem com quem casou.
Algo pede que o pai faça.
Logo ele a esbofeteou
E lhe impôs por nova traça:
- ”Volta agora a tua casa!”
Como não compreendia,
Perguntou-lhe, o rosto em brasa:
- ”Batem-me então todo o dia?!
Queixo-me de me baterem
E tu bates-me também?!
Queres que assim me venerem?!”
- ”Volta a casa, é o que convém!
Quem cuida o teu homem que é?
Em minha filha a bater?!
Vai-lhe dizer, bem ao pé,
Que eu lhe bati na mulher.”
Feira
Num dia de feira, à praça
Chega, tonto, Nasredim,
Onde a barafunda abraça
Carregadores sem fim,
Cambistas e carroceiros,
Compradores, vendedores...
É multidão de parceiros,
O rebotalho, os senhores,
Homens, animais, mulheres
Que vão e vêm, se cruzam,
Se acotovelam nos teres,
Se insultam quando se abusam...
Sacas de trigo se viram,
Carroças se desconjuntam,
Ladrões, escusos, retiram,
Balem cordeiros, mãos se untam...
No meio desta desordem,
Barulhenta actividade,
Nasredim que os gritos mordem
Se esgueira em dificuldade.
De repente, aos pés avista
Uma moeda perdida.
Apanha-a e, feito alpinista,
Trepa à casa ao lado erguida
E grita, brandindo a moeda:
- ”Ei! Parem com o alvoroço!
Não vale mais que suceda:
Eis a moeda: dá-la posso
A quem a tiver perdido.
Parem lá com o alarido!”
Mandarim
Em tempos que já lá vão
Na China houve um mandarim
Que de amor tombou em vão
Por cortesã nada afim.
Solicita ardentemente
Dela o favor. Renitente
Diz-lhe ela: -”Me entregarei
A ti depois de passares
Cem noites no jardim que hei,
À minha espera, e sentares
Num banco sob a janela
Que é minha, florida e bela.”
O mandarim conhecia
Da rapariga o feitio.
Aceitou e, de noite, ia
Sentar num banquinho, ao frio,
Sob a janela da dama.
Que é que não fará quem ama?
Ora, a cortesã se dava
A uma vida de folguedos,
Só futilidade amava.
De tal vida, sem segredos,
Se propagavam os ecos:
No jardim não eram pecos.
Age assim o mandarim
Por noventa e nove noites.
De manhã ergueu-se, enfim,
Pega o banco das sonoites,
Foi-se embora, ao dealbar,
Para nunca mais voltar.
Dante
É Dante um dia abordado
Por alguém desconhecido:
- ”Qual é o melhor cozinhado,
Mundo fora conseguido?”
- ”Um ovo” - sem se voltar
Dante respondeu, mui breve.
Cinco anos se vão passar...
O mesmo homem que lá esteve
Cruzou por perto de Dante
Em outra rua qualquer.
- ”Com quê?” - lhe pergunta, instante
- ”Com sal” - eis Dante a dizer.
De Dante não é uma glória,
É apenas boa memória.
Tédio
Um rei, muito aborrecido
Do tédio da vida fútil,
Pede que tomem sentido
Nalguma façanha útil,
Que encontrem alguém capaz
De algo que mais ninguém faz.
Os emissários procuram
E acabam trazendo um homem
Que de longe – é o que asseguram -
Lança um fio que as mãos domem,
Fá-lo passar, sem mais bulha,
No buraco duma agulha.
Portento inimaginável,
Tal homem o executou
Ante o rei, corte infindável,
Muitas vezes o provou...
Dá-lhe o rei cem moedas de oiro
Mais cem açoites de coiro.
- ”Mas porquê cem vergastadas?” -
Pergunta o homem, aflito.
- ”As moedas de oiro são dadas
À façanha que, acredito,
Ninguém, em nenhum lugar,
Será capaz de imitar.
As vergastadas, a par,
Que irás aqui receber
São para te castigar
De tanto tempo perder
A atingir com tal quilate
Semelhante disparate.”
Nichapur
Nichapur. Um mercador
Que teria de ir à China
Em negócios, por um ror
De tempo, a confiar se inclina
Uma escrava muito bela
A um amigo: - ”Tento nela!”
Tal amigo recebeu
A jovem (dezassete anos),
Do seu melhor procedeu,
A agradar, sem causar danos,
Porém, sempre a vigiar
Como prometera obrar.
A partir deste momento
Perdeu a calma e o sono.
Não pensa em nenhum evento,
Só na moça que tem dono.
Seu perfume persistente
Segue-o permanentemente.
Quanto admira dela a graça,
O sorriso, os finos pés,
O braço que o não abraça!
Ela olha-o triste, talvez,
O que a ele turva a reza,
Porém serve-o com destreza.
Como, contudo, era escrava,
Teria podido usá-la,
Dela abusar, nada o entrava.
Mas dele a fé não abala,
Licenciosidades, não
Tolera em seu coração.
Quando ocorria sonhar
Que à jovem rouba prazer,
Pelo alvor, ao levantar,
Por castigo merecer,
Fustiga-se à chicotada
Toda inteira a madrugada.
Um dia em que o massajava
Após o banho, ela viu
Os vergões que ele ostentava
Nos ombros e lhe inquiriu
Que era aquilo. Só um resmungo
Deu a entender que era um fungo.
A partir daí recusa
O cuidado corporal,
Perde o apetite, o que acusa
É uma magreza geral
E já sozinho falava,
Os mais dizem que variava.
Oito meses de tormento
Correram. A caravana
Retorna, a dado momento
Da China onde o sonho mana.
O mercador logo vem
Ver se tudo correu bem.
- ”Sim, correu.” - ”E de saúde?”
- ”Muito bem.” - ”E a escravazita?”
- ”Está boa.” - ”Só virtude?
Não deu problemas a dita?”
- ”Nenhum.” Mas o mercador
Viu-lhe da tez o palor,
Os braços mui descarnados,
Os tremores que agitavam
O corpo, toque a finados,
Parece até que o sugavam.
- ”Que tens tu? Estás doente?”
- ”Não tenho nada, é evidente.”
- ”Tens a certeza?” -”Garanto!”
O mercador retomou:
- ”Trouxe-te peças de encanto,
Algum jade, seda e vou
Mostrar-te a escrava chinesa,
Nova, uma flor de beleza.
Se te agrada, fazer podes
Dela tudo o que quiseres.”
O escanzelado os bigodes
Abre contra tais prazeres:
- ”Não, não quero os teus presentes,
Nem da escrava ver os dentes!
Fica com ela e também
Com a que deste a guardar.
Leva-a depressa dalém.”
- ”Não te veio contentar?
Faltou-te ao respeito acaso?”
- ”Leva-a sem mais nenhum prazo!
Nunca mais ouvir falar
Dela vou querer na vida,
Nem quero mais, em lugar,
Escrava jovem sortida.”
- ”Como queiras. Vou levá-la.”
- ”Fora daqui, que me abala!
Quero esquecê-la, me entendes?”
Fez a vénia o mercador
(“Vê o que perdes, vê o que rendes”)
Torna ao lar com o penhor
Daquelas duas escravas.
Há no outro saudades bravas:
Esquecer não esqueceu,
Ao invés, dentro morreu.
E apenas o tempo apura
Nele uma enfermiça cura.
José
José do Egipto, o mais belo,
Entra um dia numa sala
Onde as jovens, de escabelo,
Com olhar que se regala,
Estavam a descascar
Laranjas para o jantar.
Da beleza hipnotizadas,
Dele seguiam os gestos
A ponto de dar facadas
Sem dor sentir dos aprestos,
Dedos e mãos retalhando,
Nele os olhos represando.
José, dos irmãos vendido,
Escravo é do Faraó
Que à venda o pôs, despedido.
As damas metiam dó
Todas a se apresentar
Com o intuito de o comprar.
Trazem ricas oferendas,
Sacos de almíscar, essências,
Preciosidades, rendas...
Todas elas são carências.
Uma velha se aproxima,
Numa bengala se arrima.
Como era pobre, trazia,
Para a compra de José,
De cheiro erva com que enchia
Saca bem segura ao pé.
Fora aquilo que colhera
E preparara como era.
O que dirigia a venda
Comentou-lhe com desprezo:
- ”Como esperas, na contenda,
José comprar a tal peso?
O que trazes bem compara
Com doutras a prenda rara.”
- ”Sei tudo isso” - diz a velha.
- ”Então porque vens? Que queres?”
- ”Que me contem” - aconselha -
“Entre todas as mulheres
Que vieram ao teu pé
Tentar comprar o José.”
Bar
Um judeu americano
Entra num bar que ao balcão
Tem um negro com um pano.
Pede com resolução:
- ”Um café, preto de merda!”
- ”Preto de merda, porquê?” -
Sem se irritar, a voz lerda,
Diz o negro, de boa-fé. -
“Nada te fiz, nem conheço,
Podias ser educado,
Não me tratar sem apreço.”
Encolhe os ombros de enfado
O judeu, insiste em pressa.
Propõe-lhe o negro uma troca:
- ”Queres um gesto que meça
O que ouvi de tua boca?”
- ”Está bem, que é que tu queres?”
- ”Vem para trás do balcão,
É só mesmo para veres.”
O judeu segue a instrução,
O negro sai um momento,
Reentra no estaminé
E diz ao judeu atento:
- ”Judeu de merda, um café.”
- ”Não dou, não” - diz o judeu -
“Que debaixo destes tectos,
Enquanto é negócio meu,
Aqui não servimos pretos.”
Autocarro
Num autocarro, na América,
Os passageiros lugar
Tomam em fila colérica:
Ainda estava a vigorar
Que os negros vão na traseira
E os brancos, na dianteira.
Começam a aparecer
As tentativas primeiras
Contra o racismo que houver.
Os negros cerram fileiras,
Protestam veeementemente
Contra a afronta, de repente,
Como qualquer branco impante
Sentar-se querem à frente.
Mas estes seguem avante,
Nada cedem a tal gente:
- ”Eu sou branco, tu és negro,
É da lei em que me integro.”
Mas estes negros recusam
Os lugares lá de trás,
As altercações abusam,
Rebentam, que é que se faz?
O condutor do autocarro
Declara em jeito bizarro:
- ”Ouçam-me! Ninguém é preto
Nem branco, estão bem a ouvir?
São todos azuis, correcto?
Olhem-se bem, a seguir!”
Estacam, surpreendidos
E um diz, entre os aturdidos:
- ”Mas então que é que fazemos?
O motorista, pensando,
Crê por fim domar os demos:
- ”É fácil, a pensar ando:
Azuis-claros para a frente,
Escuros, atrás da gente.”
Ar
Nasredim recebe um dia
A visita dum dervixe.
Um ar santo o precedia,
Mal comeria uma quiche:
Costumes de santidade
E extrema frugalidade.
Hospitalidade oferta
Cuidando que ele queria
Comer algo, pela certa.
- ”Como bem pouco por dia”, -
Diz o santo homem então. -
“Ervas, a fruta do chão...
Dias há que me contento
Com água mais grãos de arroz.
Mas, se for de teu intento
Comer, como logo após
Contigo, é uma parceria
A fazer de companhia.
É que é bem desagradável
Ter de alguém comer sozinho.”
- ”É verdade insofismável
E agradeço-te o carinho.
Que queres então comer?”
- ”Seja lá o que for que houver.”
- ”Servem ovos estrelados?”
- ”Perfeitamente.” - ”E tu gostas
Deles bem ou mal passados?”
- ”Tanto faz. Mas são mal postas
As frituras em sertã
Com azeite, opção malsã.”
- ”Como então queres que os faça?”
- ”Simples, numa pedra quente.
No centro, a gema, com graça,
Cuidado, que não rebente.
Isto é que é o mais importante,
Tudo o mais passa adiante.”
- ”Ora, então, são bem passados?”
- ”Sim, porém, não em excesso.
A orla da clara, aos lados,
Dourada um pouco te peço.
Vês o que quero dizer?”
- ”Muito bem, é só querer.”
- ”No derradeiro momento
De vinagre umas gotinhas
Caíam que nem pão bento.
Tens vinagre do das vinhas?”
- ”Claro.” - ”Vinagre do bom?”
- ”Do melhor e de bom tom.
Mas diz-me, gostas dos ovos
Com muito ou com pouco sal?”
- ”Muitto, não. Porém, dos novos
Sais vindos do mar real,
Se de todo não te importas.
E, já que tanto me exortas,
De orégão umas folhinhas
A rematar, que delícia!
De alho duas dentadinhas
E é pronta a boa notícia!”
Nasredim então lhe diz:
- ”Passo a informar que a perdiz
Que os ovos pôs para a gente
Se chama Misa, afinal.
Não vês inconveniente?
E não te irão saber mal?”
E pensa: “Frugalidade!
Então que é voracidade?...”
Orgulho
Al-Saqati, o ancião,
No século nono vive
Em Bagdade, a mãe do pão.
Alguém lhe pergunta então:
- ”Se orgulha do que se prive?”
Reflectiu mui longamente
E respondeu no final:
- ”Me orgulho de ter em mente
Há decénios a insistente
De comer vontade real,
Comer mel nalgum ensejo,
Pois resisto a tal desejo!”
Negros
Três negros, com dons de Deus,
Alcançam falar com Ele.
Pedem um favor aos céus
Que lho dão tal qual se apele.
- ”Faz de mim branco” - é o primeiro.
- ”Concedido” - Deus responde.
Fica dum branco pioneiro.
De contente, nem o esconde.
- ”E tu?” - pergunta ao segundo.
- ”Também branco ser queria.”
- ”Concedido, em dons abundo.”
E o segundo agradecia.
Deus dirige-se ao terceiro:
- ”Ficar branco também queres?”
- ”Não,eu não!” - ”Bem, companheiro,
Diz-me, afinal, que preferes?”
- ”Que voltem a ficar pretos
Os outros que hás atendido.”
E, em seus mágicos decretos,
Deus responde: - ”Concedido!”
Cabeça
Na Casa Drouot, Paris,
Um homem desconhecido
Apresentou-se, feliz,
Num leilão descomedido,
Leilão de arte oriental,
Uma amálgama de objectos
De valor mui desigual,
Vindos de locais secretos,
Coreia, Egipto, Tibete...
Na véspera, os comissários
Tinham visto que repete
Os expositores vários
Tal homem desconhecido:
Dum para o outro ia,
Parava como em sentido
Nos fragmentos de magia
De esculturas indianas.
No decorrer do leilão
Levanta as mãos soberanas
No cinquenta e seis, talão
“Cabeça de divindade
Feminina, de Índia vinda,
Dos séculos, para a idade,
VIII a XIII.” Coisa linda!
Lança uma primeira oferta
Que é coberta pela mesa.
A segunda outrem desperta
Que estava na sala coesa.
Ao terceiro lance, ganha.
Por um preço razoável
Ele a velharia apanha.
Paga o custo inevitável,
Leva a cabeça indiana
Em plástico saco pobre
Que trouxera e nada engana,
Na bolsa que nada encobre.
Volta a casa de autocarro,
Ao modesto apartamento
Em Courbevoie, lar de barro.
Dos docentes elemento
Ou então dos funcionários,
Os ombros já descaídos,
Passos com tremores vários,
Cabelos ralos, perdidos,
Entre quarenta e cinquenta
Serão seus anos de idade
Em que ao fim ninguém atenta.
Óculos usa, em verdade.
Pousou o saco na mesa,
Dele a cabeça retira,
Com precaução, gentileza,
Pô-la à frente e fixo a mira.
Era um rosto de mulher
Com um ligeiro sorriso,
Pérolas a lá conter
Da cabeça, ao alto, o siso,
Restos de policromia...
Como muitas, arrancada
Ao suporte sido havia,
A punção, à martelada,
No século dezanove
Ou talvez século vinte.
Vendeu-a quem a remove,
Com clandestino requinte,
Por uns obscuros circuitos
Que sugam beleza ao mundo.
Alguns livros entre muitos
Abre o homem e um fecundo
Ficheiro de indicações,
Múltiplas fotografias.
A origem como as funções
Da cabeça por tais vias
Logra calmo precisar.
Pátina examina, estilo,
Aturado a comparar.
E conclui, por fim, tranquilo,
Que deve ter pertencido
A um templo Tamil Nadu,
De Índia no sudeste erguido.
De Estugarda a Katmandu
Meses depois ele voa,
Por fim aterra em Madrasta.
Sem meios, viaja à toa,
Do modo em que menos gasta,
Mas conservando consigo
Sempre de pedra a cabeça,
Num saco posto ao abrigo.
Num autocarro atravessa
Até Madurai, no sul.
Numa velha bicicleta
Lento faz que se acumule
Uma pesquisa completa.
Era simples a intenção:
Restituir a cabeça
Ao corpo donde o ladrão
Havia roubado a peça.
Ele, cidadão francês,
Desejava ter um gesto,
Mínimo embora, cortês,
Contra o intérmino, imodesto
Furto de que vinham sendo
Vítimas os templos mil
Do mundo de que dependo,
Séculos de hábito vil.
Optando por importar
Cabeças a revender,
Os ladrões decapitar
Vão decerto, sem rever,
Às centenas de milhar
As estátuas mundo fora.
Reconstituir no lugar
Quer ao menos uma agora.
Queria ter a certeza
De que sua vida tinha
Servido para uma empresa
Boa aqui, como convinha.
Pretendia uma acção justa,
De justeza indiscutível.
Desinteressada, custa
O que custa, inamovível.
Devagar, meteu-se à estrada
Na bicicleta queixosa
Com a cabeça cortada
Presa atrás, jóia valiosa.
Em todo o templo parava,
Fora modesto ou grandioso,
Nas estátuas atentava.
Decapitadas por gozo
À mão dos saqueadores,
A maior parte não tinha
Já cabeça e seus humores.
À procura da adivinha,
Elimina efígies de homem
Para só dar importância
Às femininas que assomem.
Às vezes, mesmo à distância,
Um relance já bastava:
Nem dimensão nem estilo
Dão resposta ao que buscava.
Para enfim ficar tranquilo,
Às vezes trepava a um muro,
Chega a pedir uma escada
Para pôr, pelo seguro,
A cabeça na entalhada
Estátua que é duvidosa.
Examina desta forma
Milhares: não cansa, goza.
Com pouco viveu, por norma,
Dormiu, de hábito, ao relento,
Atado por uma guita
À bicicleta do intento.
De arroz, fruta que concita
Se alimentava somente.
Baixote, magro, com pêlo,
As roupas rapidamente
Troca do europeu modelo
Por tanga, corpete e socos
E, com a barba crescida,
Ignorado é como poucos.
Mais de meio ano de vida
Após, encontra por fim
O corpo que respondia
À cabeça. Alegre, enfim,
Fecha os olhos, pensou que ia
Desmaiar com a alegria.
Tudo agora estava certo:
Dimensão, corte, a macia
Face com o áspero perto,
Até os restos de pintura...
Isto ocorreu em Trichi,
Num dos recintos que apura
De Ranganatha Suami
Ser parte do templo imenso,
Dedicado ao deus Vishnu.
Com seu bronzeado intenso
Por um peregrino hindu
Passou, penetrar logrando
Nos locais aos mais proibidos,
Com a guarda vigiando.
Em recantos escondidos
Conseguiu por lá dormir.
Com espátula e cimento,
À noite, ninguém a ouvir,
Na estátua põe o elemento
Da cabeça que faltava.
Não se lhe nota a fissura
A uns metros, quando se olhava.
É uma apsará tal figura,
Uma folha de palmeira
Ostenta na mão direita.
Única por ora inteira
Entre cada irmã desfeita.
Sorriso débil, graciosa,
Tem sempre um pé levantado
Numa postura teimosa
Que é da tradição o fado.
Olha para tudo e nada,
Tinha então voltado a casa.
A tarefa terminada,
Sentou-se na pedra rasa
O homem, não mexeu mais.
De vez em quando se lava,
Come, tem gestos que tais,
Depois volta à pose escrava.
Feliz, satisfeito, quem
O poderia saber?
De qualquer modo, porém,
É pobre, um mui pobre ser.
Peregrinos e turistas
Cruzavam em seu redor,
Incessantes, em mil pistas.
Um dia sente um calor
De moeda a cair na mão.
Um visitante deixado
A havia: toma-o então
Por mendigo consumado.
O homem ergue a cabeça
Para a imagem, nela viu
Que distintamente, a peça,
Ao olhá-lo, ali sorriu.
Então abriu mais a mão,
Estendeu-a para diante.
Muitas moedas cair vão,
Até rupias garante.
No alto, a estátua de apsará
Continua-lhe a sorrir.
Compreendeu que era acolá
O lugar de a seu fim ir,
De terminar os seus dias.
Muito descansado, pensa
Que valeu mais que as folias,
Quem quer melhor recompensa?
Nacionalidade
Quando Hodja foi tunisino,
Tomou-se de admiração
Por Inglaterra. O destino
Fê-lo requerer então
Dela a nacionalidade.
Foram empenhos, gorgetas,
Anos muitos de ansiedade
Para aproximar as metas.
Ao chegar o grande dia,
Quando a carta oficial
Em ordem tudo dizia,
Vestiu-se, em gala real,
Com o melhor albornoz
Para ir ao consulado
De Inglaterra, logo após,
Ao passaporte acabado.
Um amigo o acompanhou.
Quer que este o espere na rua
E no consulado entrou
Sozinho, que no ar flutua.
Mas meia hora mais tarde
Sai de lá, porém em pranto,
Abatido e sem alarde.
- ”Que se passa?” - com espanto
Pergunta-lhe então o amigo. -
“Recusam-te o passaporte
Por derradeiro castigo?”
- ”Não, deram-mo. Que má sorte!”
- ”Mas então de que te queixas?”
Abana a cabeça, cinde-a,
De dor , em duas madeixas,
Diz: -”Ai! Perdemos a Índia!”
Istambul
De Istambul um muçulmano,
Por um cristão convencido,
Converteu-se sem ter dano,
De olhar ingénuo, sentido,
A um claro cristianismo
E recebeu o baptismo.
A ler os livros sagrados
Do que é cristã tradição,
Evangelhos, Bíblia, grados
Padres de antes, pôs-se então.
No Evangelho de S. Marcos
Chega, ao fim de esforços parcos,
Chega a saber que Jesus,
Em vez de reconhecido
Inocente, o que traduz
Dos judeus o mau sentido
É que aos romanos o dão
Que crucificá-lo irão.
Furioso, o convertido
Agarra então num cutelo,
Corre a um judeu conhecido,
Com loja num cotovelo,
Derruba-o em curto espaço,
O cutelo no cachaço.
- ”Cão judeu, vou degolar-te!
Vou-te cortar a cabeça,
Dá-la aos cães, tal quem reparte.”
- ”Degolar-me?! Céus, homessa!
Mas porquê?!” - diz o lojista.
- ”Ainda te atreves, faquista,
A perguntar-me porquê?!
Quando foste tu e os teus
Que entregaram à mercê
Dos Romanos Deus dos céus,
Que mataram numa cruz
Ignobilmente Jesus?!”
- ”Mas isso” - diz o judeu -
“É velho e já não faz danos.
É muito velho, ocorreu
Já faz mais de dois mil anos.”
- ”Que importa toda a demora?
Eu por mim só soube agora.”
Cão
Lambe um cão napolitano
Uma lima. As asperezas
Rasgam-lhe a língua com dano,
Corre o sangue sem defesas.
O cão gosta do sabor
Do sangue e a lamber a lima
Mantém-se, apesar da dor
Que possa sentir por cima.
Nada, pois, o faz parar...
- Cão-homem: ambos a par!
Doenças
De todas as doenças sofre um homem,
Tem todos os sintomas, sua vida
São os mil sofrimentos que o consomem,
Angústias que jamais terão medida.
Que doença podia ser a sua?
Não sabia: cabeça, ventre, rins?...
Impossível dizer: todo ele sua,
Todo o corpo é uma dor em seus confins.
Um médico, porém, lhe diagnostica
Com rigor todo o mal que o atingia:
É doença
incurável que ali fica
Arrastando-o na morte cada dia.
O estranho é que, informado, sente alívio:
Agradece ao bom médico e recebe
Amigos que hão tombado num oblívio.
A conversar e a rir, com eles bebe.
Um deles lhe pergunta que razões
Hão-de estar por detrás desta atitude.
- ”É que até agora foram mil lesões,
Agora só há uma que em mim grude.”
Sabedoria
Perguntam a Goha um dia
Donde é que a sabedoria
Que lhe conheciam todos
Lhe vinha assim tão a rodos.
Contou-lhes que possuía
O segredo e a magia
Do que é douta inteligência.
- ”De que forma?” - ”Bem, na essência,
De pílulas sob a forma.
Da receita tenho a norma.”
Instaram que revelara,
Afinal, tal jóia rara.
Em vão se furta à resposta:
A sério levam a aposta.
Foi apanhar, lavra a lavra,
Mil caganitas de cabra,
Cortou-as, moldou bolinhos,
Junta açúcar e cominhos,
Meteu-os num saco atado,
Foi vendê-los ao mercado.
Armou a pequena banca
E apregoa, alçada a anca:
- ”Pílulas da inteligência!
Dez dinares, é ciência,
Um grande segredo enfim
Revelado, vão por mim!
Minhas pílulas comprai,
Dez dinares e pasmai:
Sereis mesmo inteligentes,
Por tuta e meia contentes.”
Não há muito ajuntamento.
O descrente do argumento
Passa , os ombros encolhendo.
Mas há sempre um bronco crendo
Que o saco toma, examina:
- ”É eficaz? Isto é uma mina!”
- ”Duma eficácia tremenda!
E muito rápido, entenda!
- ”Ficarei inteligente
Como quem burro me sente?”
- ”Até muito mais do que eles” -
Diz Goha, a troçar daqueles.
O cliente compra um saco,
Abriu-o e provou um naco.
Mastigou por um bocado,
Depois cuspiu, enojado:
- ”Mas isto é bosta! É o que abona?!”
- ”Pois é! Vê como funciona?”
Escultor
Um escultor brasileiro,
Sem qualquer formação de artes,
Busca, madeiro a madeiro,
Esculpe de animais partes.
Uns são conhecidos dele,
Outros, não. Nada repele.
A girafa esculpe um dia
Sem nenhum modelo dela,
Sem imagem que veria:
Esculpe sem nunca vê-la.
Alguém lhe faz a pergunta
De como é que aquilo assunta
- ”Pego meu toco de pau
E começo a trabalhar.
O que não pertence e é mau
Para a girafa talhar
Então aí boto fora.
Findo o bicho não demora.”
Rumi
De Rumi os seguidores
Puseram-se a lamentar
Das ausências os temores:
Não os deve mais largar.
- ”Quando não estás, sentimos
Tua falta e logo vimos
Que o mundo ficou vazio,
Sem sabermos que fazer,
A tristeza corre em rio...”
Com tal maneira de ser
Rumi se irritou deveras,
Despede-os sem mais esperas.
O filho dele estranhou,
Pergunta ao pai a razão.
- ”É que a sério” - comentou -
“Nem gostarão de mim, não.”
- ”Mas sim, gostam, uma vez
Que estranham se aqui não és.”
- ”Cada qual diz-se mui triste
Todo o tempo em que me vou,
Constantemente, já viste?
Amas-me tu no que sou?”
- ”Sim, meu pai.” - “Diz-me, porém,
Se não estou, não advém
Às vezes uma alegria?”
- ”Sim, claro” - responde o filho.
- ”Tal alegria seria
Eu também, um meu cadilho.
Eles, alunos falazes,
De a sentir são incapazes.”
Asceta
Um asceta mui severo
No intuito de penetrar
Da natura o cerne vero,
Porque um dia ouviu falar
De Nasredim como sábio
Tão grande que dele a fama
Faz que inteiro o mundo gabe-o,
Uma longa viagem trama
Para se encontrar com ele.
Puseram-se a conversar.
O asceta diz que o impele
Uma procura sem par,
Que, ao cabo de anos de esforço,
Ouve as mensagens do vento,
Com aves fala um escorço,
Dos peixes entende o intento...
- ”Não me admira nada, não.
Conheço com animais
Tal jeito de relação.
Um dia um peixe dos tais
Até me salvou a vida.”
- ”Tua vida um peixe salvou?!” -
Julga o asceta em seguida
Que é um prodígio que ignorou.
- ”Aqui está” - diz ele - “a prova
De que todo o ser vivente
Se entende, língua que inova
Com os mais, com toda a gente.”
Era o que sempre afirmara.
- ”Explica-me o que ocorreu.”
- Ӄ dificuldade rara,
Como entender o que é meu?”
- ”Não faz mal e me esclarece.
Conheço os peixes mui bem.
Com tua ajuda com esse,
Talvez o entenda também.”
Ajoelha ali no pó,
Pronto a renúncia qualquer,
Todo o sacrifício e dó.
Nasredim põe-se a dizer:
- ”Aquilo que vou contar
Vai chocar, magoar-te até.”
- ”E que é que me há-de importar?
Diz-me, rogo, homem de fé!”
- ”Como queiras. Pois sabendo
Fica que eu um dia estava
A um passo, quase morrendo
De fome, quando pescava.
Um peixe então se prendeu
Ao meu anzol quando eu já
Levo semanas de meu
A pescar em vão por lá.
Pus o belo peixe ao lume
E comi-o de seguida.
Tudo a isto se resume:
Como vês, salvou-me a vida.”
Água
Um dia a Buda apresentam
Um homem que se dizia
Que há seis anos seus pés tentam
Sobre água andar por magia.
Pretendia ter, enfim,
Conseguido atravessar
Com esforço um rio assim.
- ”A tal dor porque se dar?” -
Diz-lhe Buda descansado. -
“Dei uma moeda à barqueira
Que levou-me ao outro lado
Do rio sem mais canseira.”
3
Ao Serão de Terça-feira
Tacanhos
Os espíritos tacanhos,
Com inteligência lenta,
Imolam-se, tais quais anhos
A que a fortuna não tenta.
Um homem e uma mulher,
Lá pelo norte do Irão,
Amavam-se, tal quenquer,
Viam-se com discrição
Apenas de vez em quando.
Ambos muito jovens eram,
Em casamento falando
Vão, contra os pais que o não creram.
Um dia os vizinhos foram
Encontrar a rapariga
Desolada. Como ignoram,
Perguntam por uma amiga:
- ”Que é que se passa, afinal?”
- ”Ora, está tudo acabado!”
- ”Mas porquê?” - “Além, no vale,
Disse-me ele: no sagrado
Dia que é na sexta-feira,
Vai lá a casa, que ninguém
Vai lá estar a tarde inteira.”
- ”E então? Isso que é que tem?...”
- ”Ora, eu fui por lá, porém,
Não estava lá ninguém...”
Cego
De Edo pelas cercanias,
No Japão, em ano novo,
Um monge cego houve uns dias
Que, convivendo entre o povo,
Foi a casa dum amigo
De criança, por abrigo.
Comeram até fartar,
Beberam na lauta ceia
Até o cego levantar
Indo embora, a noite meia.
- ”Leva esta minha lanterna,
Que a noite vai ter-te à perna.”
- ”De lanterna eu não preciso” -
Diz-lhe então o monge cego.
- ”Precisas, sim, tem lá siso.
Não te vendo num refego,
Os mais contigo chocar
Poderão e magoar.”
- ”Com efeito, tens razão” -
Diz o cego e na lanterna
Pega e parte, ela na mão.
Ruas adiante, eis que aderna
Contra ele brutalmente
Um homem subitamente.
- ”Vê se vês por onde é que andas!” -
Exclama o cego. - ”Não viste
Pela lanterna as locandas?”
- ”Não vi, não” - diz o homem, triste -
“É que ela, nesta jornada,
Vai por inteiro apagada.”
Recém-casados
Na Índia, uns recém-casados
Não param de discutir:
Em campo algum acordados
São rumos por que seguir.
Cada um recriminava
O outro da malfadada
Sorte com que deparava
Do dia em cada jornada.
Era uma existência amarga,
Uma vida barulhenta.
A superarem tal carga,
Um amigo deles tenta
Que um guru da vizinhança
Consultem, o que fizeram.
- ”Só uma solução alcança
A paz aos que a bem quiseram:
Para um casal harmonioso,
Que se tornem é preciso
Os dois, como cada esposo,
Um só. Tal é o meu juízo.”
Logo os dois, a uma só voz:
- ”De acordo, claro, afinal
Que um só fiquemos após,
Tornados num só. Mas qual?...”
Mercador
I
Nos Balcãs caminhava o mercador,
De cidade em cidade, aldeia a aldeia.
Viajava por países de Ásia meia,
Pelo norte da Índia, até o sol-pôr.
Mercador de palavras como um ror
Já fora dele o pai, colhia a teia
Das palavras à sorte, onde as semeia
Dele o trilho de acaso, horto maior.
Pagava-as quando assim alguém lho impunha,
Cedia-as se alguém delas precisava.
E muitas eram onde o ignoto punha.
Ondas, marés, ao montanhês levava,
Neve e glaciar, aos tórridos países...
Mas quantos a tal torcem os narizes!
II
Atenta o mercador no utilitário,
Com termos de bazar, de indústria leve.
Sem grande entusiasmo, busca breve
Com que ganhar a vida em mundo vário.
Por entre quem amou vocabulário
E linguagem, célebre se teve
O mercador de termos, pois reteve
Cuidada ocupação de amor sumário.
Ao comum ajuntava as emoções,
Deslumbramentos de alma, sentimentos,
O afecto peculiar dos corações.
E quantos nele buscam alimentos
Eis que falam por momentos língua tal
Que brilha num mosaico universal.
III
De Portugal levou-nos a saudade,
Tristeza duma ausência dirigida
A quem já não temos cá na vida,
Que já tivemos, pois, mas noutra idade.
De Áustria, a palavra kitsch, de verdade
É que o mercador prende, de seguida,
De Espanha é o termo curso, na medida
Em que é um fora de moda mas que agrade.
Quando chegava a um sítio, os habitantes
Com ele vinham ter, muito discretos,
Descobrem sentimentos hesitantes
Para os quais não terão termos correctos.
E o mercador atento lhes abria,
Num novo termo, um mundo de magia.
IV
Os ladrões de palavras o pilhavam,
Ao desbarato vendem-lhe os tesoiros.
Nos seus cadernos são pepitas de oiros
Os termos que dispunha e lhe agradavam.
Um libanês cliente diz que os loiros
Da classificação nunca bastavam:
Do mercador as práticas armavam
Ordens, rubrica, dum caderno em coiros.
Com o tempo a linguagem foi cifrada,
Mesmo em código duplo, que talvez
A ladroagem fuja assim de vez.
E o cuidado maior desta charada
Tem este mercador, para sossego,
Nos termos a que tem maior apego.
V
Os povos todos que na terra vivem
Pensam e sentem duma igual maneira,
Mas de termos a falta, numa ou noutra leira,
Pode o aparecimento que motivem
Bloquear dum sentimento que se abeira.
Por isso cuidaria que se esquivem
De nós os mil afectos que revivem
Quando de os nomear não ando à beira.
Já que o conhecimento da palavra
Mais facilmente acesso deu à coisa,
Se vais desembestado à tua lavra
Logo o desembaraço em ti repoisa.
Evoca na palavra heróis que apeles,
Serás rapidamente um qualquer deles.
VI
O mercador às vezes faz a troca,
Palavras por legumes, ovo, aveia
Para a mula do carro com que ameia
Na estrada que ao povoado desemboca.
Se for numa palavra que coloca
Troca por troca de que a terra é cheia,
Madruga à luz às vezes da candeia,
Pois a seu termo nenhum abre a boca,
Que desvalorizá-lo o outro iria.
E põe de parte, dele na reserva,
O termo favorito, que não ia
Ser o grosso da venda, mas o observa.
E, ao comparar, repara: há muitos termos
Comuns às línguas, a regar-lhes ermos.
VII
A palavra elegante é sempre a mesma
De línguas em dezenas: conseguida,
Há-de ter nela a ideia bem contida
Na sua própria forma, atada à resma.
Não será de estranhar que, feita lesma,
Se veja no passado, ermida a ermida,
A tantos povos, lenta, distendida,
Se tenha acomodado e agora lês-ma.
Melancolia é um termo que inventado
Foi por quem lhe deu tal sonoridade
De badalada triste como um fado
Que por europa viaja, idade a idade:
Ninguém sabe porque há
mais conseguidas
Palavras, só que são as difundidas.
VIII
O que tem para os termos bom ouvido
Não será um bem-falante, longe disso.
Dum endrominador não tem feitiço,
É bastante lacónico, um sonido
É o que dele ouvem quantos lhe hão surgido.
A força da palavra é o seu chamiço,
A única riqueza a dar-lhe viço,
De beleza selvagem um sortido.
Uma palavra basta para pôr
O mundo em movimento e lhe extrair
Um segredo inovado, com calor
Acrescer-lhe a surpresa dum porvir.
Quem das palavras vive é que, fecundo,
As memórias encerra em si do mundo.
IX
Espanta o mercador que chocolate
Seja palavra igual em toda a língua,
Como se de mais sons houvera míngua.
Porém, já borboleta se rebate
Diversa em todas; a igualdade vingo-a
Mantendo sugestivo um som que bate
Asas leves, farfale, um tal quilate
Que papillon, butterfly, não sofrem íngua
Na carne do sentido por que voam.
Que dizer do entrañable que, espanhol,
No íntimo sofre perdas que atordoam?
É como a despedida que no rol
Dum adeus para sempre, desmedida,
É a vera imagem já da nossa vida.
X
O termo bem formado, bem sonoro,
Trazia ao mercador muita alegria.
Em paisagem caminha que infundia
Maravilhas intérminas por foro.
Em Babel, afinal, Deus não punia
Multiplicando as línguas sem decoro
Porque este mar de termos não dá choro
É uma oferenda e nada a igualaria.
No Irão tarif é o termo que descobre
Para uma oferta recusar que dá
Muito prazer, delicadeza encobre
Que, refalsada, mal dispõe-nos já.
Que tanta língua legue, no final,
Assim a Deus é que então levo a mal?
XI
Aumenta de ambição o mercador,
Cuidou que seu negócio já podia
Tornar qualquer pessoa bem melhor,
Ensinando a justiça o que seria
Ou mesmo a compaixão que compraria
Por uma mão de arroz a um vendedor
Que do Tibete volta por tal via
Que a morte a farejar-lhe anda em redor.
Sem conta nem medida os benefícios
Devidos a tal homem sempre são.
Inscrevem-se em segredos os resquícios
Das coisas que nas línguas constarão
E é o que, por conseguinte, nos invade
E que constrói a nossa humanidade.
XII
Durante a guerra a actividade encolhe,
Só depois dela desenvolve então.
Nas nações novas os mercados vão
Entusiasmar-se com quem termos colhe:
A bomba atómica, o radar acolhe
O mercador para negócio são,
Num contrato vendeu mesmo o neutrão,
Como o stalag encante o que o recolhe.
Só que pouco depois o abrandamento
Da curiosidade foi demais,
Já ninguém necessita dum aumento
De termos estrangeiros que acenais.
Cuidou que o retrocesso é passageiro,
Enganou-se, do mal é pioneiro.
XIII
Parking se espalha pelo mundo inteiro,
Weekend e shopping seguem logo atrás.
Conquistadoras, quem venceu as traz
Por marca sua, da conquista ao cheiro.
Mas já o kolkhoze russo a que me abeiro,
Como uma nave soyuz bem falaz,
Não logram nunca acatamento em paz,
Do mundo o resto não se quer herdeiro.
Quem não vender sua palavra ao mundo
A perda tem já nele programada.
Razões políticas há nesta estrada,
De vida estilo de que me eu fecundo.
É que a língua acabamos por falar
Daqueles que gostamos de imitar.
XIV
A Inglaterra espalhou por todo o mundo
Os termos ganster, dandy, mesmo snob,
Embora o derradeiro nunca adobe
Um Baluchistão pobre mas jucundo.
De acordo ninguém diz, é O. K., no fundo
Tomam um drink, jeans usa qualquer Job,
T-shirt, fast food e o mais que nisto englobe
A língua inglesa a passear no mundo.
Porém jihad e fatwa apareceram
Vindas dum mundo que não era inglês.
Ameaçadoras, muito já correram,
Os compradores fazem bicha aos pés.
Analfabeto era não ler francês
Ou inglês e hoje é nem ver que é que lês.
XV
Há palavras morrendo cada dia,
Aspiradas no abismo da ignorância,
O inferno duma língua a que a elegância
Se perdeu na preguiça que nos guia.
Cada vez menos termos haveria
Mundo fora a marcar predominância,
Embora cresça em números a infância,
Explosão sem limites se anuncia.
Os ouvidos humanos se fecharam
Às palavras subtis que outros houveram.
Banalidades cobrem o planeta,
Redes fáceis que a todos enredaram.
Palavras raras, belas se perderam,
O irrelevante as suga, de hoje meta.
XVI
Por mais inverosímil que pareça,
Atém-se a humanidade ao termo pobre.
Árvore imensa onde a ramagem sobre,
As folhas vai perdendo, peça a peça.
Até os ramos da língua em que tropeça
Se quebram ressequidos, sem alfobre
De folhas, de vergônteas, já que cobre
O chão de tronco seco onde esmoreça.
Em vez dum feixe de vital frescura,
A língua é quase de betão pilar.
Um universo que se assim figura
Será uma noite onde, ao ninguém olhar,
Ninguém querer saber como nem quando,
As estrelas se foram apagando.
Califa
O califa de Bagdade
Se admira de Nasredim,
Sábio maior da cidade,
Sempre desdenhar, ao fim,
Das reuniões mui faladas,
No palácio organizadas,
De filósofos e sábios.
Ordem lhe acaba por dar,
Vinda de seus próprios lábios,
De numa participar.
Como se obrigado a murro,
Nasredim vai no seu burro
No dia determinado.
Para a cauda do animal,
Contudo, monta virado.
Apontando feito tal,
A cidade dele troça
Abertamente e sem mossa,
Que ele bem deixa que o façam.
Neste preparo é que chega
Ao lugar onde entrelaçam
Dos ditos sábios a achega.
É a vez de, em coro sidéreo,
Rirem deste despautério.
- ”Montaste o burro às avessas!
Como não te deste conta?!”
Não liga às vozes travessas,
Olha-os bem, de ponta a ponta.
O califa toma então
A palavra e eis a questão:
- ”Porque é que tu nunca vens
A nossas reuniões?
Pelo saber que tu tens
Elogiam-te as nações...”
- ”Misturar-me é que não quero
Com parvos que não venero.”
- ”Toma-los por imbecis?”
- ”Tenho a certeza, califa.”
- ”Que é que a tal te leva? Diz!”
- Ӄ que a pergunta, na rifa,
Nunca dizem que for certa.”
- ”Que pergunta têm alerta?”
- ”Perguntam mui parvamente
Porque montei ao contrário.”
- ”Certa não é, certamente...”
- ”É um questionar arbitrário.”
- ”Dize-me então, por favor,
Qual a pergunta a propor?”
- ”Exactamente a seguinte:
Terá sido Nasredim
Que ao contrário, por acinte,
Montara no burro assim,
Ou é o burro que há virado
Antes para o lado errado?”
E, tal como tinha vindo,
Foi para casa seguindo.
Râbia
Amulher santa do Islão,
Râbia, respostas nos deu
Que a via apontam do chão
A trepar até ao céu.
- ”Donde vens?” - “Do outro mundo.”
- ”Vais aonde?” - “Ao outro mundo.”
- ”E neste mundo que fazes?”
- ”Eu? Pouco dele, por fases.”
- ”E como é que fazes pouco?”
- ”Como-lhe o pão: como um louco
Durante o mesmo segundo,
Faço a obra do outro mundo.”
Visita
Um homem sábio visita
Râbia e fala longamente
De ilusões que o mundo incita,
Miséria sempre presente.
- ”Muito deves gostar disso,” -
Râbia das falas repoisa -
“Para ter-te tanto o enguiço
De não falar doutra coisa!”
Corânica
Numa corânica escola
O mulá faz o final
Exame a ver quem se enrola.
A um aluno diz, leal:
- ”Dou-te a escolher: serão duas
Questões fáceis que eu quiser
Ou uma, se me insinuas
A difícil pretender.”
- ”Quero que a difícil tomem.”
- ”Sendo assim, tu me responde:
Como nasce o primeiro homem?”
- ”Do ventre da mãe, eis donde.”
- ”Seja. E como nasce a mãe?”
- ”Isso agora” - o aluno assunta -
“Vai do combinado além:
É já segunda pergunta!”
Zen
I
Ao budismo zen afectos,
Conversam dois japoneses.
Com mestre dos mais correctos
A retiros fora, às vezes,
Um deles. O outro pergunta:
- ”Que é que fizeste?” - ”Formei,
Após quanto ali se assunta,
A conclusão que é de lei:
Parti tal cheguei – sem nada.”
- ”Então para quê o retiro?”
- ”Sem ele, sem a empreitada,
Como é que ao fim eu confiro
Que sem nada partido hei
Tal sem nada aqui cheguei?”
II
Um asceta zen contava
Que o mestre-mor que tivera
Como Oshibu se chamava.
- ”E que é que viste que ele era?” -
Pergunta-lhe um outro monge
Que ali viera de longe.
- Ӄ muito simples: cheguei
Lá junto dele sem nada
E sem nada retornei.”
- ”Apenas isso?! E te agrada
Afirmar que era o maior
Dos mestres que vens propor?!”
- ”Sim, em verdade eu o digo.”
- ”Mas porquê?!” - ”Porque, sem ele
Como saberia, amigo,
Que sem nada à flor da pele
Tinha chegado e sem nada
De novo parto na estrada?”
Morte
Uns anos depois da morte
Dum inestimável poeta
Juntaram-se, um pouco à sorte,
Uns chineses com a meta
De à pergunta responder:
Quando se pode dizer
Que um poeta estará morto?
“Quando ele perder a vida”,
“Se de editar perde o porto”
- De alguns vai ser a medida.
“Poeta bom morrerá quando
Já não consiga escrever,
Nem por ele nem a mando.”
Mas o consenso se vê
Da poesia neste aborto:
- ”Só quando ninguém o lê
É o poeta deveras morto.”
Agartha
Agartha, o sábio, vivia
Numa floresta indiana.
A solidão que escolhia
Agrada-lhe, não o empana.
Conhecido é por ciência
Dos três mundos e da essência.
Um príncipe o visitou
De longe ido que começa
Por pedir-lhe: - “Que é que sou,
De alma imortal uma peça?
- “Nada te posso dizer,
De tal não tenho saber.”
- ”Fala-me dos outros mundos
Que escapam à nossa vista.”
- “Não posso. Mesmo fecundos,
Não constam da minha lista.”
- ”Dos deuses a natureza...”
- ”Nada sei: matéria ilesa.”
O príncipe que passado
Meses em viagem houvera
Sente-se então enganado
E enraivado vocifera:
- ”Ignorante! Célebre és?!
A tua fama não tem pés!”
-” Isso depende” - responde. -
“Sou famoso do que sei,
Não do que não sei. Nem donde
Às questões responderei
Que faça um desaguisado
Príncipe descontrolado.”
Horta
Nasredim penetra um dia
Na horta do seu vizinho.
Soprava uma ventania.
Pôs-se ele então, de mansinho,
A apanhar para a sacola
Nabo, cenoura, cebola...
O vizinho apareceu
Irritado e perguntou
Que faz no que era de seu.
- ”Nem vais crer” - Hodja contou. -
“Ia a passar lá na rua
E o vento ao ar me flutua,
Num turbilhão pega em mim,
Pôs-me aqui na tua horta.”
- ”E então?” Diz-lhe Nasredim:
- ”Vento assim ninguém suporta,
Agarrei-me ao que podia,
Nabo, alface, uma endivia...
Só que o vento até os levava!”
- ”Estou vendo” - o vizinho olha
O saco que abarrotava. -
“Explica-me esta recolha
Aqui tão bem arrumada
No teu saco de enfiada.”
- ”Ora aí tens!” - diz Nasredim. -
“É o que me há preocupado
Quando chegaste, por fim.
Mexe comigo há bocado.
Pões o dedo na ferida:
Vê só do vento a medida!”
Conquistador
Ao grande conquistador
Que é de todos aclamado
De ter vitória alcançado
Dum inimigo de horror
E que então se vangloria
Disto até mais não poder,
O pobre dum esmoler
Pergunta intrigado um dia:
- ”Quem era, afinal, mais forte?
Tu ou o teu inimigo?”
- ”Eu, é claro, que o persigo.”
- ”Porque então tentar a sorte
Duma vitória a gabar-te
Se dela nem fazes parte?”
Estudante
Um estudante em viagem
Pede ao barqueiro que o passe
A contento, como a um pajem,
Do largo rio ante a imagem,
À outra margem que abrace.
Ora, o barqueiro vivia
Deste labor. Fá-lo entrar,
Logo aos remos se prendia,
Com cuidado se metia,
Profissional, a remar.
De pássaros passa um bando,
No momento, sobre o rio.
- ”Sabe os hábitos e quando
Vêm tais aves voando
Por aqui com tal ousio?”
- ”Eu cá não sei nada disso” -
Diz o barqueiro aplicado.
- ”Pois perdeste, de submisso,
Da vida um quarto de esquisso.”
Tendo o barco após rodeado
De plantas de água um lençol,
O estudante perguntou:
- ”De plantas toda esta mole
Como vive? Que asa bole
Nela, que nome lhe dou?”
- ”Não, não sei de coisa alguma
Dessas” - responde o barqueiro.
- ”Então tu perdeste, em suma,
Meia vida que ressuma
Das águas neste viveiro.”
Chegando do rio ao meio,
Diz outra vez o estudante:
- ”E estas águas, todo o veio
Donde vem? O rio cheio
Vai até onde adiante?”
- ”Disso não sei nada, a sério.”
- ”Três quartos da tua vida
Perdeste” - diz, nada aéreo,
O rapaz, com todo o império.
A madeira apodrecida
Abre um buraco nocasco
E o barco desata a encher-se
Como na torneira um frasco.
O barqueiro, ante o fiasco,
Pára e, com o alarme a ver-se,
Diz, vendo o barco a afundar-se:
- ”Sabes nadar?” - ”Não, não sei...”
-”Nesse caso, sem disfarce,
A vida inteira a afogar-se
É que aqui perdes por lei.”
E para a margem distante
Mergulhou, indo a nadar,
Deixando o barco, o estudante,
Mais o seu orgulho impante,
Rapidamente a afundar.
Ouvido
Em tempos que já lá vão,
Na China um homem gozava
De ouvido tão fino, tão,
Que da margem reparava
No ruído que, a nadar,
Faz o peixe, água a sulcar.
Ao colar o ouvido à terra,
Ouve toupeiras, minhocas...
Quando à noite em sono ferra,
A aranha, ao sair das tocas,
Faz um barulho larvar
Que o leva sempre a acordar.
Um dia foi um prodígio:
Teria ouvido a eclosão
Duma rosa no fastígio
De ao mundo abrir o botão.
Vizinhos foram com ele
A um jardim: que feito aquele!
Até um botão de rosa
Aproximou o ouvido,
Horas e horas ali goza,
Meio sorriso, o ruído.
- ”Ouves mesmo alguma coisa?”
Nos lábios o dedo poisa,
Recomenda aos curiosos
Não perturbem o exercício,
Aparentava os gozosos
Êxtases, tal como um vício.
Ouve as pétalas da flor
Com lentidão, ao calor,
Todas a se descolar,
Ouvia a seiva a fluir,
Murmúrios quase a aflorar,
Roçagar a mal surdir.
Ele nem termos sabia
Para contar o que ouvia.
Após horas no jardim
Uma mulher perguntou:
- ”E o cheiro como é, por fim?”
- ”O cheiro?! Qual?!” - exclamou. -
“Explica-me bem primeiro:
As rosas também têm cheiro?”
Alexandre
Quando Índia fora avançava,
Alexandre da existência
Da feiticeira augurava
De grande reputação
Que o futuro via então
Sem se jamais enganar.
Ficou muito surpreendido
Ao ver a mulher sem par,
Jovem, bela, olhar medido,
Que pergunta, o falar puro:
- ”Queres saber teu futuro?”
- ”Meu futuro não existe” -
Responde o conquistador. -
“Construo-o eu, é o que viste.”
- ”Como tu queiras, senhor.”
E Alexandre, de seguida:
- ”Porém,em contrapartida,
Quero saber como fazes,
Para prever o futuro
Tão exacto, em suas fases,
Com o teu modo seguro.”
- ”Pois eu posso-to dizer” -
Respondeu logo a mulher. -
“É de erguer de certo jeito
Um monte de paus talhados
Duma madeira a preceito.
De incenso são polvilhados.
E, enquanto se pronunciam
Certos termos, se acendiam
As chamas desta fogueira.
No lume que então se eleva
Podemos ver a certeira
Figura vinda da treva,
Com pormenor, do futuro.
Então é que o prefiguro.”
- ”Não me estás mentindo?” - ”Não!”
- ”Dizes-me como se faz?”
- ”Claro. Dou-te a indicação
Do pau de que hás-de ir atrás,
Como talhar os gravetos,
Como dispô-los, secretos,
Como misturar o incenso
E como lhe deitar fogo.”
- ”E verei, é o teu consenso,
O porvir nas chamas logo?”
- “Sim. Mas há uma condição:
Não poderás nunca, não,
Nem sequer por um momento,
Reflectir dum crocodilo
No olho esquerdo. Lamento.
Só no direito, tranquilo.
Mas no esquerdo, um mero instante,
É a perdição tua adiante.”
Diz-lhe Alexandre: - ”Está bem,
Já percebi a evidência.
Jamais tentarei, também,
Indo além do que convém,
Essa tua experiência.”
Mestre
Era um jovem japonês
Que a um mestre se dirigiu
De artes marciais, certa vez.
Grande especialista o viu
Para a prática da espada.
O tempo lhe perguntou
Preciso para apurada
Ter tal arte que sonhou.
- ”Dez anos” - o mestre diz.
- ”Dez anos?! É demasiado,
Não há força de aprendiz
Por prazo tão dilatado.”
E o mestre, a evitar enganos:
- ”Se assim for, então vinte anos.”
Brâmane
Um brâmane muito culto
Vai ter uma vez ao rei.
Dezoito dias o oculto
Lhe tenta explicar da lei,
Dezoito cantos que cita
Do sacro Bhagavad-Gîta.
Escutou com atenção
O rei, contudo, no fim,
Ao brâmane com unção
Diz, numa dúvida, enfim:
- ”Tudo isso está muito bem,
Mas compreendeste também
Tudo quanto me explicaste?”
Responde o brâmane: - ”Não,
Mas importante que baste
É que tu, de coração,
Vislumbando-lhe sentido,
O tenhas compreendido.”
Xun Zi
Xun Zi conta que um famoso
Mestre tomou, certo dia,
A decisão, imperioso,
De que jamais falaria.
Um discípulo pergunta:
- ”Mestre, se não falas mais,
Como é que a assembleia junta
Transmite, com que sinais,
O teu grande ensinamento?”
O mestre explicou-lhe assim:
- ”Fala acaso o firmamento?
Ora, as estações, no fim,
Ocorrem e as criaturas
Multiplicam-se, seguras.
Que me respondes a isto?”
Nada tinha a responder
Este aprendiz, tudo visto.
Silenciam, até ver...
- Este é o silêncio que após
Dali nos chega até nós.
Buda
Quando Buda oferecia
Na Índia os ensinamenos,
Os cultos, em romaria,
Quem de pensar quer fermentos,
Acorriam a escutá-lo
Para tentar praticá-lo.
Porém, os menos dotados,
Desprovidos de altos voos,
Ouviam, mas desolados:
- ”Levar à prática vou-os,
Mas como, se os não entendo?”
Um deles tanto se queixa
Que Buda, a sofrer o vendo,
Lhe tomou então a deixa
E aconselhou-o a varrer
Criteriosamente o chão
E as sandálias que tiver,
A limpar, polir à mão.
Ora, o homem alcançou
Deste modo o despertar
Que há que tempos desejou
Sem sequer o vislumbrar.
Rumi
O poeta Rumi falava
De música aos seus alunos.
Do rebab perguntava,
(Do Afeganistão é um múnus),
Donde vem a força, o encanto
Da música de seu canto.
Quando um o questionou,
Retorquiu-lhe em melodia:
- ”Deveras quando soou,
Eu do paraíso ouvia
A portada em movimento
Por um mui longo momento.”
-”Também eu” - o aluno afirma. -
“Também da porta o barulho
Ouvi, mas não se confirma
O êxtase que ali vasculho.
Porquê?” - ”Simples é a razão” -
Diz Rumi, descendo ao chão. -
“Do paraíso ouço a porta
Quando ela se vai abrindo.
Vós, quando o som vos transporta,
É a fechar que ela vai indo.
É pequena a diferença,
Mas é inversa a recompensa!”
Passos
Havia em Àfrica um homem
Magro mas de olhar brilhante.
Pelas aldeias se somem
Seus passos para diante.
Na mão leva um balde água,
Na outra, uma tocha acesa.
Se lhe perguntam que mágoa
Ou que esperança represa
O levam a transportar
Os dois objectos, responde:
- ”A tocha é para atear
O paraíso sempre onde
O não encontrar eterno,
Como água é para apagar
Por onde calhar o inferno.”
- ”Mas queres iluminar
O céu e apagar o diabo
Porquê?” - ”Travo atento a guerra
Porque vejo, ao fim e ao cabo,
Que há tudo isto aqui na terra.”
E, seguro, no maninho,
Continuava o caminho.
Filho
Nasredim um filho tinha
Que perguntou curioso:
- ”Porque flutua uma pinha,
Não vai ao fundo lodoso?”
Nasredim profundamente
Pensa para responder
Com franqueza, limpa a mente.
- ”Nada sei de tal, sequer.”
- “E como fazem os peixes
Ao respirar dentro de água?”
- ”Não sei, não. Porém, não deixes
De perguntar, não traz mágoa.”
- ”E as marés a que se devem?
Porque é que o mar sobe e desce?”
- ”Sei lá bem porque se elevem
E porque minga o que cresce!”
- ”Não te incomodam, em suma,
As perguntas de rajada?”
- ”Mas, de maneira nenhuma!
Sem tal, nunca aprendes nada...”
Noviço
Um noviço ao mestre chega
E pergunta: - ”Tenho em mim
A natureza que adrega
Buda ter até ao fim?”
- ”Não!” - lhe diz o mestre, seco.
- ”Mas não disseste que todo
O ser vivo, forte ou peco,
De Buda, de qualquer modo,
Terá sempre a natureza,
Mesmo a planta ou o animal?”
- ”Sim” - responde, sem surpresa.
- ”Porque não eu, afinal?!”
Peremptório, o mestre junta:
- ”Porque fazes a pergunta.”
Prender-se
Um jovem muito dotado,
Cioso de não prender-se
A nada, por nenhum lado,
(Como um sábio deve haver-se)
Certo viajante encontrou
Que ali cachimbo fumava
E desde logo o imitou.
Mal sentiu que começava
A tomar gosto ao tabaco,
Rápido abandona o fumo.
Um astrólogo, a um pataco,
Nas estrelas, em resumo,
Ensinou-lhe a ler destinos
E a remendar desonesta
Vida nos termos mais finos.
Logo um astrólogo em festa
Se tornou, mas ao dar conta
Do prazer de encaminhar,
Logo o remorso desponta,
Finda a tarefa a largar.
Experto em caligrafia,
Quando exímio se tornou,
Logo a tudo renuncia,
Que ali o medo o agarrou.
Como monge num convento,
Recebeu do superior
Proposta dum nobre intento:
Suceder-lhe vem propor.
Rejeitou, que a promoção
Temeu que o ia prender
E logo ao convento então
Foge sem adeus sequer.
O mesmo com a pintura,
O sabre, o teatro, o canto...
Se no píncaro figura,
Renuncia, põe-no a um canto.
Quando o fim se lhe aproxima,
Chama um clínico afamado.
O doente, de tudo acima
Quer ver-se, em ânsias, curado.
- ”Que devo fazer?” - pergunta,
Com profunda ansiedade.
- ”Que quer que lhe diga?” - assunta
O outro com sobriedade. -
“Anda assim tão preso à vida,
Tanto então ela o regala,
Que de forma desmedida
Quer tanto, ao fim, conservá-la?”
Pesca
Vem da pesca o jovem monge
Com sete peixes na rede.
Um velho encontra, não longe
De morrer de fome e sede,
Estendendo a mão à beira
Do caminho onde prossegue.
O monge então, com canseira,
Explica como consegue
Escolher-se um bom bambu,
Talhar a cana de pesca
E prender, sem mais tabu,
Fio, anzol e, pela fresca,
A eleição do rio onde ir.
E foi assim por diante,
Que minhoca preferir,
Que peixe a quer, hesitante,
Quando ao velhinho faminto
Lhe tomba a mão estendida,
Cai-lhe a cabeça do plinto
E morreu-lhe à fome a vida.
Dibbuk
Um dibbuk, entre os judeus,
É um defunto que dum vivo
Se apodera, o faz dos seus,
Para atormentá-lo, esquivo.
Hoje narrá-lo rareia.
Perguntaram a Mendel:
- ”Porque é que o ninguém nomeia?”
- ”Porque hoje livrar-se dele
(Vê só o alcance que tem)
Já não o sabe ninguém.”
Confúcio
Confúcio recomendava
O exercício da poesia,
Leitura de odes que amava.
Tseu-Hi recitou-lhe um dia
Uma passagem que diz
Dum rosto que em mulher via:
“Enruga os cantos, feliz,
Da boca um riso trocista.
Olhos belos de raiz
Brilharão, a quem a avista,
No esplendor a preto e branco
Que um fundo branco revista.
Deste a cor diversa arranco.”
Tseu-Hi pergunta o sentido
Que um filósofo mui franco
Encontra no que foi lido.
Confúcio, a quem o poema
Diz além do que é entendido,
Respondeu que isto era o lema
Fiel da sinceridade
Que considerava um tema
Da primária qualidade
Requerida à aplicação
Dos ritos de toda a idade.
Tseu-Hi perguntou-lhe então:
-”Sinceridade porquê?”
Confúcio, com convicção:
- ”Seja lá o que for que vê,
Um fundo branco é questão
Antes de o pintar, não é?”
Guru
Um discípulo a um guru
Votava tal confiança
Que bastava, sem tabu,
Pronunciar-lhe o nome: alcança
A largura atravessar
Dum rio a pé sem tardança,
Sobre águas a caminhar.
O guru, disto informado,
Vem o prodígio testar
Que ante ele foi confirmado.
A si próprio diz então:
“Como santo abençoado
Devo ser para a menção
De mim gerar tal poder!”
Logo, sem hesitação,
Atira-se ao rio, a ver,
Gritando: “Eu! Eu!” Eis senão
Quando acaba por morrer.
Rumi
Rumi, grande poeta persa,
De invasões mongóis expulso,
Espalha a vida, dispersa
Terra em terra, a tomar pulso...
Por fim passou na Turquia.
Por não perder dele o impulso,
Em casa o acolhe, em Konya,
Chams de Tabriz, poeta velho,
Que mui dele divergia.
Rumi dum mestre é um espelho,
Muito rico, bem rodeado,
Pede-lhe o sultão conselho...
Chams era pobre, inflamado,
Um errante, imprevisível.
Quando viu Rumi sentado,
Absorto de modo incrível
Num poema, com paixão,
Pergunta, um pouco irascível:
- ”Que fazes?! Por que razão?!”
- ”Nada que entendas!” Responde
Rumi. Chams agarra à mão
O poema e ali é donde
À lareira o atira então.
Chams de Tabriz não esconde
Que a Rumi quer tirar vendas.
Este grita, a fúria em vão:
- ”Que fazes?!” - ”Nada que entendas!”
Indiana
Conta uma história indiana
Que um mui célebre guru
Que a uma floresta se irmana
Há tempos, já seminu,
Visitaram certo dia
Uns estranhos. Muito a cru,
Uma questão lhes bulia.
- ”As respostas serão duas
À questão que se enuncia:
A primeira, a abrir-nos ruas,
A segunda e a terceira.”
As visitas, mentes nuas,
Se admiram daquela asneira:
- ”Falou de duas respostas
Mas depois, muito à ligeira,
Contou-nos três. São supostas?”
- ”Deixem-me explicar então.
À pergunta, logo expostas
Duas saídas irão.
De imediato reparei
Que, mal vo-las ponha à mão,
Vem-me à mente e então terei
Uma terceira intuído.
Por isso é que a acrescentei,
Por não ser desprevenido.”
Japonesa
Uma lenda japonesa
Conta que um jovem pintor
Que aperfeiçoar a cor
Pretende, a um mestre que preza
Vai que tinha grande fama
Em tons, matizes e trama.
Quando chega ao personagem,
Que só lecciona lhe dizem
Por dia as horas que visem
Do Sol dois pontos da viagem,
Ao nascer e ao pôr-do-sol,
Enquanto no jardim bole.
O mestre recebe o jovem
Que longa romagem tinha
Feito, como se adivinha.
Logo às pretensões que o movem
Acolhe, para regalo,
Ao aceitar ensiná-lo.
Lado a lado no jardim,
O jovem se apercebeu,
Para grande espanto seu,
De que o mestre é cego, enfim.
Como é que um cego podia
Cor lhe ensinar algum dia?
Ficou tentado a partir,
Porém decidiu ficar,
O mistério a decifrar.
O mestre cego a pedir
Ao novo aluno começa
Que os olhos feche e que peça
Uma cor à fantasia.
- ”De olhos fechados só vejo
O preto” - diz-lhe, sem pejo.
- ”Eu” - pois o mestre anuncia -
“Consigo às rãs ver o azul
Como aos céus o véu de tule.
Tenho em mim todas as cores.
Como alguém diz que sou cego?”
O jovem, já sem apego
A estranhos que tais mentores,
Cuida que perde o juízo
O velho, não tem mais siso.
Para o não contrariar,
Mantendo os olhos fechados,
Diz-lhe em termos inventados:
- ”Já começo algo a notar.”
- ”Que vês tu?” - ”Vejo o vermelho
De árvores de tronco velho.”
O velho mestre estacou
E, com espanto na voz,
Remata, incrédulo, a sós:
- ”Impossível! Onde estou,
Nem mesmo longe acolá,
Nenhumas árvores há...”
Neve
No Japão, em pleno inverno,
Caminhava um jovem monge
Por neve fresca até longe.
Voltando-se, ao frio interno,
Viu que imprimia pegadas
Atrás de si afundadas,
A pureza destruindo
Da brancura do coberto.
Para bater tudo certo,
Volta atrás, vai espargindo
Com as mãos a neve solta
Sobre as pegadas em volta.
Mas no caminho em retorno
Novas pegadas imprime,
Sempre assim, por mais que arrime
Neve por sobre o contorno
Novas pegadas se aninham
Por onde os seus pés caminham.
Foi ao mosteiro, arranjou
Então uma vassourinha
E, ao caminhar, adivinha
Que para quanto intentou
O melhor é caminhar
Às arrecuas e, a par,
As marcas ir apagando
À medida que as fazia.
Isto é lento em demasia
E depressa vai cansando.
Um monge as idas e vindas
Viu cheias de intenções lindas
E perguntou ao noviço:
- ”Que é que buscas tu ao certo?”
- ”Nem de longe nem de perto
Perturbar todo este viço
Imaculado da neve,
Pretendo apagar-me breve.”
- ”Pela primavera aguarda.
A neve derrete ao sol
E a tua pegada mole
Desaparece, não tarda.”
E o velho monge sereno
Bebe a alvura, calmo, em pleno.
Bovnam
A Bovnam, rabi de fama,
Se apresenta um velho um dia:
- ”Quem foge duma honraria,
(É o que o Talmude proclama)
Faz com que ela, ao que a repele,
Venha a correr atrás dele.
Pois bem , toda a minha vida
Fugi de honrarias eu,
Nenhuma me perseguiu.”
- Ӄ que tu, na tua lida,
Sempre andaste, contumaz,
Ansioso a olhar para trás.”
Gigantesca
Uma estátua gigantesca,
Buda deitado de lado
No Nirvana quando há entrado,
Esconsa, ninguém repesca
Das areias entre os dedos
Lá dos afegões rochedos.
Trezentos metros medir
Deverá de comprimento.
De todo o deserto o vento
Por séculos a zunir
A pouco e pouco enterrado
A terá, pois, nalgum lado.
De arqueólogos equipas
Tentam um século inteiro
O colosso verdadeiro
Encontrar e nem farripas
Vislumbram de algum sucesso,
Antes lhes é tudo avesso.
Contam que uma expedição,
Quando o país era presa
De guerra e convulsão tesa,
Se perdeu numa região
Árida, pela canícula
Da estiagem, sem retícula
De mapa que lhes valera.
Esgotaram provisões,
Reservas de água, rações...
A pé vão, agora à espera
Dum bom reabastecimento,
Mas nem rádios, de momento.
As forças iam perdendo,
Limiar de sobrevivência.
Uma noite, uma evidência
Num terreno vai-se erguendo:
Reconhecem pelo fosso
Que era uma boca de poço.
Logo um deles se arrastou,
Um calhau deixa cair:
Rumor de água vão ouvir
Que um pouco abaixo ecoou.
Reanima-os o ruído
E o poço é desimpedido.
A uma rocha arredondada
Amarraram uma corda.
É o mais magro que concorda
Descer e fazer a aguada.
A escuridão é completa
Mas encher cantis é a meta.
Puderam dessedentar-se
Da missão os elementos.
Acabaram-se os tormentos,
A vida ao corpo a tornar-se.
Comeram o que encontraram:
Bagas que ao poço tiraram.
Dormiram algumas horas,
Marcharam antes do sol,
Fugindo ao calor que imole.
Mais tarde, muito a desoras,
Socorrem-nos camponeses
Hospitaleiros, corteses.
Nunca souberam que tinham
Naquela noite encontrado,
Providenciais, ao lado,
Boas águas que os sustinham
De Buda na orelha cheia
Enterrada sob a areia.
Hitchcock
Para Hitchcock o que importa
Era acção, não o motivo.
Que é que está por trás da porta?
Vale é que dela me esquivo.
O segredo do segredo
É por McGuffin tratado.
Dois homens, conta o enredo,
Num comboio, lado a lado,
Viajam, quando um aponta
Do outro a mala lá por cima
E faz a pergunta tonta:
- ”Que é que leva neste clima?”
- ”Um McGuffin” - o outro acode.
- ”Que é que é isso exactamente?”
- Ӄ um aparelho que pode
Capturar-nos, de repente,
Leões nos Adirondacks.”
(É cadeia montanhosa
Que nem sequer atabaques
Toca a quem lá férias goza.)
- ”Não há lá nenhum leão!” -
Diz o outro com desdém.
- ”McGuffin talvez então
Não seja o que a mala tem...”
Saco
Na estepe de Ásia central
Carrega um homem um saco
Às costas, piramidal,
Ao sol quente, feito um caco.
Cruza com outro que quer
Saber o que o saco tem.
- ”Toalhas” - diz-lhe, a sofrer,
O que do saco é refém.
- ”Para quê?” - ”Secar a cara.”
- ”Mas é de loucos! Pesado
É demais. É pilha rara
De cem toalhas no costado!”
- ”Mas não é gesto gratuito:
É que, enfim, eu suo muito...”
Bolos
Nasredim diz ao vizinho:
- ”Adoro bolos de mel
Com sêmola, mas definho
Por não conseguir daquele
Manjar nem um só comer.”
- ”Então porquê?” - ”Porque em dia
Em que mel em casa houver
Não há sêmola e, se havia,
Então é o mel que nos falta.”
- ”Ainda assim, alguma vez,
Onde um é já o outro salta,
Os dois juntos ali vês.”
- ”Pois, mas quando isso se apraza
Eu jamais estou em casa.”
Strudel
Numa família judia
O filho pergunta um dia
Ao pai, um homem letrado,
Porque o strudel é chamado
De strudel. O pai reflecte
E diz como lhe compete:
- ”Não tem o strudel a forma,
A espessura que o conforma,
A consistência daquele
Comer chamado strudel?”
- ”Tem” - o moço lhe confirma.
- ”E a canela não se afirma
Nele como no strudel?”
- ”Sabe a canela como ele.”
- ”Tem dentro maçãs cozidas,
Tal um strudel, bem medidas?”
- ”Sim” - o filho lhe responde.
- ”Se todos os pontos onde
O comparar com strudel
É tal e qual como ele
Porque havia de o chamar
Dum outro modo, em lugar?”
Buracos
Nasredim muito ocupado
Num campo anda a abrir buracos.
No fundo dispõe uns nacos
De queijo e com mui cuidado
Logo os fecha muito bem.
Um amigo que lá vem
Pergunta-lhe porque aquilo
Ele andava ali fazendo.
- ”Abro buracos. Defendo
Que apanho ratos, tranquilo,
Só com este estratagema.”
- ”Como assim?! Isso é um poema...”
- ”Atraído pelo cheiro
Do queijo, o rato se inclina,
Funga e entra, é dele a sina,
Para o buraco, lampeiro.”
- “E porque os fechas então?”
- ”É para que os ratos não
Possam voltar a sair,
Uma vez dentro ao cair.”
Espelho
Um homem há um bom pedaço
Estava perante o espelho:
Fecha os olhos. De embaraço,
Pede a mulher um conselho:
- ”Que é que fazes tu, de pé,
Ante o espelho aí plantado?
Porque estás de olho fechado?”
- ”Eu quero ver como é que é:
Como é que eu sou a seguir
Quando estiver a dormir.”
Brasil
Em S. Paulo, no Brasil,
Recebe um italiano
Um amigo: -”Não refile,
Não conduzo por engano.
Meu cunhado é motorista,
Ele é que me deu a pista.
Não se inquiete, já que eu faço
Tal como ele me ensinou:
Ao sinal vermelho, esgaço,
Melhor, acelero e voo.
É que, se não corro assim,
Qualquer ladrão vem a mim.”
Com efeito, noite fora,
O brasileiro ultrapassa
Sinais vermelhos agora.
O italiano se embaça,
Do carro preso ao assento,
Quase aterrado do intento.
De súbito, ao sinal verde,
Logo o brasileiro estaca,
Quase a chiar travões perde.
- ”Que se passa?” - o outro ataca. -
“No sinal verde paraste,
Não há um ladrão que te arraste?”
- Ӄ que pode do outro lado
Vir chegando o meu cunhado.”
Capelista
Nasredim foi capelista,
Anotava as encomendas
Guardando o lápis à vista
No turbante, após as vendas.
- ”Porque o pões atrás da orelha?” -
Diz-lhe um cliente que sai.
- ”O nariz não o aconselha,
Se o lá puser, ele cai.”
Passeio
Dois homens vão a passeio,
Leva guarda-chuva um deles.
Começa a chover a meio.
Já chuva lhes pinga as peles
E o homem não quer abrir
O guarda-chuva, a seguir.
Pergunta o outro porquê.
- ”Não serviria de nada” -
Diz o amigo, de boa-fé. -
“Cobertura esburacada...”
- ”Então porque trouxeste esse?”
- ”Nunca pensei que chovesse.”
Analfabeto
Um homem analfabeto
Vem pedir a Nasredim
Que carta escreva, correcto,
A Istambul, que a manda assim.
- ”Não posso! Bem gostaria...” -
Diz-lhe Nasredim em troca.
- ”Porquê?” - ”Porque todo o dia,
Calçado com esta soca,
Muito me doem os pés.”
- ”Mas escreves tu com eles?!”
- ”Não, mas sofro dum revés:
A escrita a que tu apeles
Em minha caligrafia
É tão má que até Istambul
De caminhar eu teria,
Cruzando de norte a sul,
Para ler ao teu amigo
A carta que não consigo.”
Disparatadas
Perguntas disparatadas
Faziam a Nasredim,
De longe até disparadas
Para ouvir dele algo enfim.
- ”Quantas patas de rã são
Para ir daqui à Lua?”
-”Uma só,” - diz o truão -
“Mas bem mais longa que a tua.”
Banana
Num restaurante, no Irão,
Ao meditar sobre o mal,
Um cliente pede então
Uma banana mais sal.
Salga cuidadosamente
A banana e deita-a fora.
- ”Porquê?” - dizem ao cliente
Circunstantes, sem demora.
- ”Porque odeio nas entradas
Quaisquer bananas salgadas.”
Rússia
Na Rússia o judeu Mendel
Pegou no cesto e o abriu,
No regaço e sobre a pele
Uma toalha estendeu
E, sob os olhos atentos
Dos parceiros de viagem,
Pega na faca e em momentos
Corta um frango sem paragem.
A seguir descasca um ovo,
Batatas e beterraba,
E um pouco de azeite novo
Acrescenta e não acaba:
Cebola, sal e mostarda,
Mais um raminho de salsa...
Fica o efeito a olhar, não tarda,
Mas logo sob os pés se alça,
Abre a janela ao comboio
E atira tudo lá fora.
Dúvida a um parceiro mói-o,
Pergunta-lhe, não demora:
- ”Mas que acaba de fazer?!”
- ”Frango em salada judia.”
- ”Joga-a fora sem comer?!”
- ”É que não há, juraria,
Coisa que eu deteste mais
Neste mundo que a salada
Judia de frango. Tais
As razões. E ei-la enjeitada.”
Tempo
Anda um grupo a passear
E pergunta a Nasredim:
- ”Quanto tempo vai levar
Da aldeia até ao confim?”
- ”Andem!” - disse-lhes. - ”Mas quanto?”
- ”Andem” - repete. Mais nada
Retiram dele. Entretanto,
Fazem-se lestos à estrada.
E meia hora mais tarde
Chegam ao lugar seguinte.
Ouvem passos com alarde
A correr, tal por acinte.
Nasredim vêem agora,
Sem fôlego, a parar junto.
- ”Demora uma meia hora.”
- ”Porque não falou do assunto?”
- ”Porque antes eu não sabia
Qual era a velocidade
A que o grupo seguiria.
Ou isto não é verdade?”
Fumar
Certa noite, Nasredim
Tem vontade de fumar.
Não consegue afugentar
Tal desejo. Então, assim,
À pressa se levantou,
Bate à porta do vizinho
Que pergunta, de mansinho,
Mui depois que o acordou:
- ”Que queres?” - ”Tenho vontade
Muito horrível de fumar.
Não tens fogo no teu lar?”
- ”Fogo?!” - ”Sim.” - ”Vens de verdade
Acordar-me em plena noite
Pedindo fogo e na mão
Tens aceso um lampião?!”
- ”Busco quem o lume acoite.
Vê se mui alto não gritas,
Que o apagas, acreditas?”
Filho
Nasredim, com convidados,
Manda o filho comprar chá:
- ”Depressa, pés despachados!”
Vai o filho a correr já.
Retorna muito mais tarde
A arrastar os pés de sorna,
Quando lume nenhum arde,
De vez já perdida a jorna.
Repreende-o, furioso,
O pai: - ”Eu disse depressa!”
- ”Mas não disseste, é curioso,
Nada a quando se regressa...”
Quântico
Niels Bohr, o quântico físico,
Em Tisvild conhecia,
Na casa de campo um tísico
Com uma ancestral mania:
Mantinha uma ferradura
Por cima da porta escura.
- Ӄs mesmo supersticioso?
Acreditas de verdade
Que a ferradura traz gozo,
Vai trazer felicidade?”
- ”Claro que não” - responde ele. -
“Porém parece que aquele
Ferro resulta se o fite
Mesmo quem não acredite...”
Suíça
Durante a guerra voavam
Sobre a Suíça os ingleses
Enquanto bombardeavam
A Itália múltiplas vezes.
Da bateria suíça
O comandante chamou
Um piloto que na liça
Sobre ele alto sobrevoou..
- ”Você acaba de entrar
Em suíço território.”
- ”Eu sei “ - diz o inglês lá do ar.
- ”Se de imediato este inglório
Voo não voltar atrás,
Então terei de abrir fogo.”
- ”Eu sei” - torna o inglês, veraz,
E em rota nem liga ao rogo.
A bateria dispara
Durante vários minutos,
Nem a recarregar pára.
- ”Do vosso fogo os produtos
Estão cem metros abaixo” -
Diz o inglês, calmo e castiço.
- ”Eu sei” - responde-lhe, baixo,
O comandante suíço.
4
Ao Serão de Quarta-feira
Naftali
Naftali, mestre judeu,
Estava a ralhar um dia
A um filho que o mal fez seu,
De idade em dez anos ia.
- ”O que tu fizeste não
Está mesmo nada bem.”
- ”Que fazer na ocasião,” -
O petiz mal se contém -
“Se empurra o instinto do mal?...
Foi bem mais forte do que eu.”
- ”Pois” - diz o pai - “faz igual,
O mal como mal agiu,
Faz tu bem tal deve ser.
Ao menos imita-o nisso.”
- ”É verdade, é o que se quer,
Só que ele não tem o enguiço
Que nós temos, por sinal,
E no pior momento vem:
Não tem o instinto do mal
Que obrigue a fazer o bem.”
Água
Um fio de água corrente
De Mohammed Aslam à porta
Lhe murmura permanente.
Nunca lhe o desejo importa
Que tem sempre de a provar,
Não lhe toca porque, exorta,
Decerto pertence a um lar.
O desejo foi mais forte
Um dia, ao se refrescar.
Mas Aslam não perde o norte,
Tira de seu próprio poço
De água a bilha de transporte,
Do rego a despeja ao fosso.
A seguir encheu a bilha
De regato neste esboço,
Com consciência ergue a vasilha,
Bebe em paz, refeito moço:
Ninguém vê que água partilha.
Bassorá
Um homem de Bassorá
Na Idade Média decide
Que há-de ver, ou cá ou lá,
Custe o custo a que convide,
Do mundo o fim que haverá.
Teria ouvido falar
Por filósofos e poetas
Que o fim do mundo é um lugar
Onde viajantes estetas
Do abismo vão se acercar
No fundo do qual, uivantes,
Correrão rios ferventes.
Vendeu os bens todos dantes,
Comprou camelos correntes,
De guarda armada e garantes
Se rodeou e de comida
Em bastante quantidade,
Partindo então, de seguida,
Numa noite em que a cidade
Via a Lua Cheia erguida,
A aproveitar a frescura
E a nocturna claridade.
Caminhou à desmesura
Sempre a leste, que, em verdade
Era onde há o fim que procura.
Trocou camelos por mulas,
Para atravessar montanhas.
E por camelos com gulas
De águas em oásis tamanhas
Quando por China além bulas.
Cruzou rios e cidades,
Embarcou num barco à vela,
Do oceano imensidades
Transpondo a olhar uma estrela,
Choca em perigosidades,
Aventuras tenebrosas,
Alguns guarda-costas perde.
Chega à América e frondosas
São gentes, paisagem verde,
Pirâmides fabulosas
Feitas por quem nem o ferro
Afinal conheceria.
À doença, traição, erro,
A custo sobrevivia.
Viu pinguins longe, no aterro,
Que por humanos tomou.
Atravessou noutro barco
Outro mar que o balançou,
Que quase o atirou ao charco,
Mas a Europa alcançou.
De terra em terra fugiu
Escapando a locais guerras
Que então, de fio a pavio,
Devastam campos e serras
De Espanha aos Balcãs, no ousio.
Chega ao fim a volta ao mundo,
Quatro anos de provações,
O arredor atinge, imundo,
De Bassorá, seus brasões,
Donde partira jucundo.
Reconheceu a paisagem
Bem familiar da infância.
Na cidade finda a viagem,
Busca o bairro, a casa, em ânsia,
O irmão busca com coragem.
Viu-o no mesmo lugar
Onde o houvera deixado,
A meia-noite ao soar.
- ”Do mundo o fim avistado
Houveste, acaso, ao calhar?”
- ”Não vi nada semelhante.
Cavalguei e naveguei
E eis que me encontro perante
O lugar donde arranquei.
Dilema decepcionante,
É tal se nem viajado,
Saído do mesmo sítio
Houvera para algum lado.
Todo o meu percurso, dite-o
Embora, eis que tu sentado
Estás bem à minha frente
No teu lugar. Que serviu
Tanto esforço? De repente,
Que nada mudou se viu.”
- ”Engano!” - comenta, ausente,
O irmão. - ”Pois algo mudou.”
- ”Então o quê?” - ”Olha!” - estende
O dedo à Lua que achou
Cheia à partida e que rende
Um quarto, ora que chegou.
- ”Mudou a Lua” - lhe diz.
- ”Não mudou por minha causa,
Muda sempre de cariz,
A viagem não lhe impôs pausa.”
- ”Não disse tal, o que fiz
Foi apontar-lhe a mudança.
Tu parado, em movimento,
Pouco importa, o que ela alcança
É que muda a seu contento.
Não podes, após tal dança,
Dizer que é tudo como antes.”
Fica o viajante a pensar
E após diz, de olhos brilhantes:
- ”Como antes anda a mudar!”
E o outro, após uns instantes:
- ”Ainda está por provar.”
Chofar
Um judeu testemunhar
Foi perante um juiz russo.
Pergunta-lhe hora e lugar
Do evento, a coçar o buço.
- ”Foi quando o chofar tocou” -
Lhe retrucou o judeu.
- ”Que é um chofar?” - lhe perguntou.
- ”É um chofar!” - lhe respondeu.
O chofar é um instrumento
Feito em corno de carneiro
Que é tocado no momento
Dumas festas, o ano inteiro.
- ”Se não dizes de imediato
O que é um chofar” - diz o juiz -
“Na prisão é o seguinte acto
Em que tombas por um triz!”
- ”Um chofar é uma corneta.”
- ”Porque não disseste logo,
Sem que ameaças cometa?
É tudo arrancado a rogo!”
E o judeu, fincado à meta:
- ”Porque não é uma corneta!”
Faminto
Um faminto caminhava
Só e perdido no deserto.
Só com pão quente sonhava,
Ovo fresco, azeite perto.
A meio da noite chega
A um acampamento em hora
Em que um ladrão escorrega
Com os roubos, indo embora.
Ora, os donos acordaram,
Tomaram o vagabundo
Pelo ladrão que assustaram.
Cem bastonadas no imundo
Dão antes de descobrir
Que se haviam enganado.
Pois desculpam-se a seguir,
Põem-no bem alimentado
De ovos frescos e pão quente,
Mesmo até dum bom azeite.
Matou a fome, contente.
Semanas após o aceite,
Fatigado e esfomeado
Chega a um outro acampamento.
Viram-no tão esgalgado
Da fome pelo tormento
Que lhe ofertam de comer.
- ”Aceito” - diz às guinadas. -
“Contudo quero sofrer
Primeiro as cem bastonadas.”
Chammai
Uma das mais rigorosas
Das escolas do Talmude,
A de Chammai, diz que gozas
De divórcio, já, em virtude
De a mulher só um cozinhado
Haver mal confeccionado.
Um jovem questiona um dia,
Então, célebre rabino:
- ”Mas quem é que aceitaria
Tal coisa como destino?
Que haja a divórcio direito
Por tal razão tãosem jeito?”
- ”Não percebes nada, a frase
É escrita a bem da mulher,
É uma defesa de base.”
- ”Não estou a compreender...”
- ”Quando um homem estiver
Disposto a largar mulher
Por uma razão tão fútil,
A mulher deve feliz
Sentir-se, de isto ser útil
A se livrar do cariz
Dum homem tal, tão sem jeito
Que o divórcio é um bom preceito.”
Buraco
Um dia, de manhã cedo,
Nasredim cava um buraco
Nas hortas. Logo, num credo,
Enche-o de pedras e caco.
Olha então à sua frente
O monte de terra e cava
Outro buraco onde tente
A terra enfiar que sobrava.
Um vizinho fica a olhar,
Espantado com tal acto.
Nasredim, suor a limpar,
A pensar põe-se, pacato.
- ”Que vais fazer do segundo
Monte de terra cavado?
É num terceiro mais fundo
Buraco que tens pensado?!”
- ”Pára aí!” - diz Nasredim. -
“Não há tempo nem num ano
De explicar até ao fim
O pormenor do meu plano.”
Fumar
Um amigo alguém encontra
Que dois cigarros fumando
Juntos está, como a montra
Das marcas que anda queimando.
-”Eu por mim um vou fumando
E outro pelo meu cunhado
Que não pode fumar quando
Hoje é um hospitalizado.”
Uma semana mais tarde
Voltam a encontrar-se os dois.
No amigo um só cigarro arde
E o porquê quer o outro, pois.
- ”Este é pelo meu cunhado,
Continua no hospital.
Eu, entretanto, hei deixado
Já de fumar, por sinal.”
Soviético
No regime soviético,
Dois oficiais frente a frente.
Um pergunta ao outro, céptico,
A pergunta mais urgente:
- ”Que pensas tu do regime?”
- ”O mesmo que tu, solerte.”
- ”Nesse caso, convenci-me,
O meu dever é prender-te.”
Cruel
Um cruel governador
Pilhava, aterrorizava
Do Império Otomano um ror,
Nas terras que governava,
Doutro governador filho,
Que, por sua vez, bem duro
Com o povo foi, rastilho
Da fereza que hoje apuro.
A divisa parecia
A de que o poder é feito
Para abusar cada dia
Dele a torto e a direito.
Ora, um dervixe vestido
Muito desgraçadamente,
De santidade investido,
Noite e dia, permanente,
Anda ao acaso das ruas
Apregoando, convicto,
Mil insanidades cruas,
Ao que crê qualquer perito:
- ”Viva o governador, viva!
Que ao governador Alá
Dê vida longa e festiva!”
Ao dervixe faz que vá
Alguém mui prudentemente
Murmurar: - ”Porque ao tirano
Desejas longa e decente
Vida um ano atrás dum ano?”
- ”Porque o pai dele era mau
E ele ainda é pior.”
- ”Não entendo. O varapau
É que era de se lhe impor...”
- ”Pois então pensa um bocado:
Se nos livrarmos daquele,
Que desgraças, por seu lado,
Nos traria o filho dele?”
Selos
Numa estação de correios
Da caída União Soviética
Protesta alguém, sem rodeios,
Ante a empregada, com ética:
- ”Camarada, os novos selos
Com a efígie de Lenine
Não colam nunca: os meus zelos
Não resultam. Que os define?”
Com ar de enfado, a sorrir
Diz o balcão de bem perto:
- ”Vê. Não estás a cuspir,
A cuspir do lado certo...”
Húngaro
Um húngaro no hospital
Dos olhos e dos ouvidos
Quer o serviço que igual
Os trata nos ofendidos.
O soviético legado
Diz: - ”São dois departamentos,
O dos olhos é dum lado,
Doutro, os ouvidos.” Momentos
Após diz o paciente:
- ”Então tenho de ir aos dois.”
- ”Porquê?” - ”Vê que estou doente,
De quê não entendo, pois,
De algum tempo a esta parte,
E eu bem descanso e retoiço,
Meus sentidos vão destarte:
Eu não vejo aquilo que oiço...”
Inadequado
Um poder inadequado,
Inoperante seguia,
Lenine, Estaline ao lado,
Krustchev e Brejnev à guia,
Todos no mesmo comboio
E, de repente, este pára.
Diz Lenine (a espera mói-o),
Quando naquilo repara:
- ”Chamem especializados
Engenheiros do lugar
E que sejam despachados
O comboio a reparar.”
Chamaram os engenheiros,
Meteram mãos ao trabalho,
Mas nem saber nem dinheiros
Mexem um comboio falho.
Estaline berra então:
- ”Fuzilem os engenheiros
E o maquinista que é vão,
Também, já agora, os fogueiros!”
Obedecem-lhe, mas fica
O comboio ali parado.
Krustchev é após quem se aplica
A rever o destinado:
- ”É fácil, há que arranjar
Engenheiros, maquinistas,
Fogueiros para o lugar.”
É o que fazem pelas listas,
Mas o trem mantém-se ali
Paralisado de vez.
Então Brejnev sorri,
Olhando-os nos canapés:
- ”Camaradas, as cortinas
Fechemos e faz de conta
Que o trem corre nas colinas
Normalmente, ponta a ponta.”
Ditador
Como em qualquer ditadura,
O ditador quer feliz
O povo. Um disfarce apura
A ver o que o povo diz.
A um vendedor ambulante
Pergunta-lhe o que é que pensa
Do querido governante
Que ao país lavra a sentença.
Diz o homem: - ”Que mudança!
Até que enfim temos quem
Se preocupa. O povo dança!
Há escolas como convém,
Hospitais, públicos banhos,
Até justos tribunais.
E os ricos, hoje, em rebanhos,
Seguem exemplos que tais.
De repente, o mundo inteiro
Nos respeita e nos inveja.
Deus deu-nos guia e sendeiro,
Não há melhor que se veja.”
O governante, encantado,
Revelou-se e ao ambulante
Vendedor diz num trinado:
- ”Sou eu o chefe brilhante.
A agradecer-te a franqueza,
Pede-me o que tu quiseres,
Que te é dado de certeza.”
- ”Sim?!” - “São os meus afazeres.”
- ”Então concede-me um visto
Para eu poder do nicho
Fugir que é, desde que existo,
Todo este país de lixo.”
Imperador
Um imperador que tinha
Poder absoluto em tudo
Ouve que alguém adivinha,
Por trás de qualquer escudo
Todo o segredo do mundo.
Dos animais entendia
Da língua o selo fecundo,
Nas nuvens mensagens lia,
Decifra o código ao vento,
Às ondas do mar também,
Diz dos trovões qual o intento,
Com animais fala tem.
Até mesmo o pensamento
Em funda mente escondido
Lia a qualquer elemento
Que lhe houvera tal pedido.
O imperador manda-o vir.
Mal ele se perfilou,
Pôs-lhe questões a seguir:
- ”É vero o que aqui chegou?”
Ele respondeu que sim,
Que entende quaisquer sinais
Que a terra ofertar por fim,
Que os interpreta tais quais.
- ”Ouve,” - diz-lhe o imperador -
“Fechado nas minhas mãos
Tenho um pássaro cantor.
Vivo ou morto? Ou serão vãos
Teus esforços desde agora?”
O homem silenciou,
Reflectia sem demora:
Se morto o disser, o voo
O imperadorsoltará;
Mas, se disser que está vivo,
Logo ele esmagá-lo irá.
- ”Então? Isto é muito esquivo?”
Pensa um pouco mais na aposta
E diz, para todos verem:
- ”Pois, majestade, a resposta
É a que as tuas mãos quiserem.”
Chinês
I
Um soberano chinês
Que vivia junto a um lago
Um belo junco uma vez
Mandou montar. Tudo pago,
São madeiras preciosas,
A maior parte, lacadas,
Velas e cordame, grosas
De oiro e prata polvilhadas,
Esculturas, ornamentos
De bronze, de incrustações
De madrepérola aos centos.
Uma vez pronto às funções,
Manda o rei lançá-lo às águas.
Começa o junco a vogar
E o rei vai curar as mágoas
Margem fora a cavalgar.
Muito quilómetro além,
Voltam o rei e o cortejo,
Bem como o barco, também,
De vez cumprido o desejo.
II
Uns dias depois tornaram
O caminho a refazer
Com olhos que se extasiaram
De tal junco poder ver.
E nas semanas seguintes
O mesmo se repetiu.
O irmão do rei tais requintes
Estranhou e lhe inquiriu:
- ”Porque não trepas a bordo?
É o melhor junco do mundo,
O mais belo, estou de acordo,
Mas só em terra o vês jucundo?”
O rei responde ao irmão:
- Ӄ de facto muito belo.
Mas, se dele piso o chão,
Como então fruirei de vê-lo?”
III
Mas, ante a pressão constante,
A bordo o rei trepa um dia
Com a corte hilariante
No junco de fantasia.
Largam amarras e o barco
Lento se alonga em viagem.
Olha o rei ao mundo parco
Correndo olhos na paisagem:
Nada de novo lhe traz,
Montes, bosques conhecidos...
Até o irmão, muito atrás,
A acenar, braços erguidos.
De repente, nuvens vêm,
A ventania soprou
Sobre o lago ali refém
Que logo se encapelou.
O junco cerimonial
Era pesado e não tinha
Como resistir a tal
Furacão como convinha.
Partiu-se, desintegrou-se,
Alguns marinheiros tentam
Nadar, o mais afundou-se
Com o rei. Todos lamentam...
O irmão, que há meses se ferra
Na viagem, cão sem dono,
Esperto ficara em terra:
- Então subiu logo ao trono!
Ásia
Na central Ásia um esperto
Conseguiu entrar um dia
Do xeque no paço aberto
E o cavalo logo avia
Tal como se fora em casa:
Lesto pensou a montada
E a arrumar nada o atrasa
Os bens logo de assentada.
Estendeu-se e adormeceu.
Os guardas, muito espantados
Da atitude do sandeu,
Quiseram, pois, destes lados
Expulsá-lo como intruso.
Mas como era muito forte,
O à-vontede, fora de uso,
Hesitaram com tal porte,
Preferem notificar
Quem lhes é superior.
O intendente do lugar,
Depois um alto senhor,
Mesmo um ministro vieram
Com ele parlamentar,
Que as atitudes dele eram
Um enigma singular.
Tudo em vão. Diz que partia
Quando o momento chegasse.
E pediu a simpatia
Dum sono que o sossegasse.
Tanto em volta comentavam
Que chega ao governador.
Este viu que é que pensavam,
Manda chamar o impostor.
O homem, de mau humor
De o sono lhe interromperem,
Chega após de tempo um ror.
- ”Porque sem to concederem
Deitas no chão a dormir?”
- ”Porque é um caravanserai.
Fiz como quem quiser ir
A uma hospedaria e vai.”
- ”Caravanserai aqui?!
Palácio do imperador
É o que pisas, ai de ti!”
- ”E a quem pertence, senhor?”
- ”A quem queres que pertença?
A mim, claro, é o meu palácio!”
- ”E antes de quem era tença?”
- ”De meu pai, que o céu agrace-o!”
- ”E antes? - ”Ao pai de meu pai.”
O homem, por um momento
Em silêncio fundo cai.
Todos observam o evento.
- ”E antes do pai de teu pai,
A quem é que pertencia?”
- ”Ao pai dele.” - ”E antes?” - ”Ai,
Ao pai do pai, esta é a via.”
- ”E dizes que isto não é
Um caravanserai mesmo?
A entrar e a sair de ao pé
É só gente, gente a esmo!...”
Iraque
Durante a guerra do Iraque
Saddam Hussein procuram
Por todo o canto em destaque:
Só fumos se configuram.
Diversos sósias havia
Que sempre ele utilizava
Quando bem lhe parecia.
Um dia alguém os chamava
Secretamente. Hoje diz:
-”Tenho a boa e a má notícia.
Começo com que cariz?”
- ”Boa, que não faz sevícia.”
- ”Muito bem: Saddam é vivo.”
São mil gritos de alegria
Ao anúncio, um bom motivo.
- ”Mas a má que noticia?” -
É um sósia, quer sorte eterna...
- ”Ele perdeu já uma perna.”
Akbar
Akbar era o imperador
Pela generosidade
Famoso, dado o pendor
De aos ascetas com vontade
Favorecer lautamente.
Um destes que, num casebre
Vive miseravelmente
E gostaria com febre
De algo ter para auxiliar
Quem venha pedir-lhe ajuda,
Decidiu apresentar
Petição que o não iluda.
Chegou junto do monarca
Quando ele estava a rezar
E viu que não era parca
A petição no lugar:
- ”Dá-me, senhor, territórios,
Mais recursos, mais riquezas...”
Metido em seus envoltórios,
O asceta nem quis mais rezas,
Tenta logo, de imediato,
Abandonar tal espaço.
Mas o imperador, pacato,
Acena, toma-lhe o passo.
- ”Vieste ver-me?” - ”Sim.” - ”E embora
Ias sem me ter falado?”
- ”Vinha pedir, mas agora...”
- ”E então?” - ”Tendo reparado,
Vi que és tu próprio mendigo...
Prefiro ir ao meu abrigo.”
Ego
Tento-lhes olhar os olhos,
Todos têm ar altivo,
Orgulho a franzir sobrolhos,
Ego activado, incisivo.
Dirão: - ”Sou mais importante
Porque eu é que estou aqui.”
Com que objectivo adiante,
De que serve o frenesi?
- ”Para ser melhor que os mais” -
Dirá o ego. E para quê?
- ”Conforto como jamais
E uma segurança até
De que nenhum mal advém.”
Mas porquê ficar seguro?
- ”Para não sofrer também.”
Mas para quê tanto apuro
Se é só para não sofrer?
- ”Porque, de contrário, dói.”
Orgulho então e poder
São defesas do que mói?
- ”Claro, que a minha função
Foi sempre afastar a dor.”
E se eu tombar neste chão
Vazio mas com um ror
De orgulho e em busca insistente
De poder, isto não vai,
A prazo, uma dor crescente
Provocar-me, onde não cai
Quem humilde for deveras
E com os céus conectado?
- ”Agora, não noutras eras,
Não te dói em nenhum lado.
Só me ocupo com o agora.
Depois, logo se verá...”
E o ego todo se enflora
Sobre a tumba onde ele está.
Polónia
Nos tempos do comunismo,
Na Polónia se contava,
Medindo em dureza o abismo,
Que num grupo se encontrava
O americano, o francês
Com um polaco, eram três.
Alguém lhes perguntaria:
- ”Tocam às três da manhã
À porta. Que é que seria?”
Logo, o americano: - ”É vã
Mais alguma expectativa.
É o meu banqueiro: - 'Ora viva!
Eu nem pude esperar mais:
Suas acções japonesas
Tiveram subidas tais
Que a uma fortuna estão presas!'”
Depois o francês responde:
- ”Olho à porta para onde
Me aguarda uma rapariga
De pouca roupa vestida
Que me diz, sorrindo à intriga:
- 'Há tanto que em minha lida
Desejava conhecê-lo!
Posso entrar um pouco e vê-lo?'”
Ante a pergunta, o polaco
Reflecte um instante e diz:
- “Abri apenas um naco,
Vejo três, de mau cariz,
Roupa escura e de chapéu.
Murmura um deles, do breu:
- 'Daniel Poltarsky é o senhor?'
- 'Não! Ao fim do corredor...'”
Checoslováquia
Checoslováquia invadida
Pelo Pacto de Varsóvia.
Entra um checo de corrida
Na polícia, razão óbvia:
- ”Comissário! Comissário!
Venha, um soldado suíço
Roubou, grande salafrário,
Meu relógio russo. Enguiço!”
- ”Espera aí! Quer dizer:
Soldado russo roubou
Relógio suíço, é de ver...”
Logo o homem exclamou:
- ”Pois o senhor é que disse,
Não eu! Não quero chatice!”
China
De receber uma oferta
Acaba um rei de oriente:
Um manto. A costura acerta
Fio de oiro e prata, assente
Entre pedras preciosas.
Era um sinal de amizade
Do imperador que às formosas
Regiões da China agrade.
O rei vestiu-o, se admira
A um grande espelho e pergunta
A Nasredim que o lá mira:
- ”Quanto valho? Tudo junta!”
Nasredim examinou
Longamente o vestuário,
Um caderno retirou,
Faz um cálculo sumário:
- ”Vales quinhentas moedas!”
- ”Quinhentas?! Nem penses nisso!
Só o manto, com estas sedas,
Isso vale. E o meu feitiço?...”
- ”É verdade, ó grande rei.
Quando perguntaste quanto,
Entendi, tudo somei:
Só vale o valor do manto!”
Rússia
Na Rússia do comunismo
Fala em aula um professor
Muito acerca de humanismo.
Um petiz perguntador
Levanta a mão, questionou:
- ”Mas humanismo é o quê?”
O mestre pensou, pensou
E depois conta-lhe ao pé:
- ”De manhã, Lenine ergueu-se,
Vai fazer a barba ao rio.
É no campo. Então muniu-se
De sabão, navalha e, ao frio,
Vai a um regato ali perto.
Senta e põe-se a barbear.
Uma menina, num certo
Momento, o vem contemplar.
Quando finda, ela pergunta:
-'Que é que estiveste a fazer?'
Lenine apenas assunta:
- 'A barba, como quenquer.'”
Era de humanismo o exemplo.
Fica a turma mui perplexa,
Tudo mudo como um templo.
Porém, o petiz indexa:
- ”Mas, professor, porque é que isto
É um exemplo de humanismo?!”
- ”Ai valha-me o Santo Cristo!
Desgraçado, olha o abismo:
Lenine tinha a navalha!
Podia ter degolado
Num instante, como palha,
A moça que lhe há falado!”
Estaline
Estaline, o ditador,
Envelhecido, uma escolha
Quer fazer do sucessor
Que os loiros todos recolha.
Malenkov e Bulganine
Para junto dele chama.
Cada qual quer que examine
Aves que em gaiola aclama.
Nelas os mandou pegar.
Bulganine pega numa
Mas, de tanto medo a par,
Demais a aperta e, em suma,
Finda matando tal ave.
Estaline, descontente,
Mostra na cara que é grave.
Malenkov então, tremente,
Pega na mão a segunda.
Não quer o erro repetir,
De mão mole, o espaço abunda
E eis o pássaro a fugir.
Pega Estaline o terceiro,
Diz aos outros: - ”Olhem bem!”
Mui delicado e ligeiro,
Pega as patas ao refém,
E uma a uma, lentamente,
Arranca-lhe as penas todas.
Depenado, o inocente
Na mão se aconchega, às rodas.
Diz Estaline: - ”Estão vendo?
Para mais ainda está grato
Do calor que vai sorvendo
De minha mão este rato.”
França
Ao rei Luís XI de França
Vira um criado um piolho
Do manto a passear na trança.
Levantou a mão e o olho
Ao rei a dar a entender
Que ia prestar-lhe um serviço.
O rei se achegou a ver,
O outro o livra logo disso,
Tira o piolho e deita-o fora.
Quando o rei lhe perguntou,
Tal homem quase que chora
Vergonha e medo. E contou.
- ”Ainda bem” - disse-lhe o rei. -
“É um presságio bem feliz,
Pois que, tanto quanto sei,
Tal bicheza sempre quis
Homens jovens atacar.
O que quer dizer então
Que homem sou e novo, a par.”
Qurenta coroas dão
De presente a tal criado.
Mais tarde um oportunista
Fez menção de ter tirado
Algo à roupa que o rei vista.
O rei perguntou o que era.
Com algumas reticências
Simuladas e uma espera
Informou das evidências:
- ”Há pulgas na real roupagem.”
Uma de lá retirara.
- ”Tomas-me por um cão?! Pagem,
Que é que melhor lhe assentara?
De começo, como entrada,
São quarenta bastonadas.”
Samarcanda
Tamerlão, em Samarcanda,
Ia à cabeça das tropas.
Aos portões da cidade anda
Um mendigo com que topas
A estender ali a mão,
Esfarrapado, no chão.
Vendo-o, o tirano o mandou
Decapitar de imediato.
De pronto se executou
Aquele arbitrário acto.
Diz Nasredim: -”Afinal,
Porquê ordem tão brutal?
O mendigo nem havia
Sequer mostrado arrogância
Perante quem lá seguia...
De risco não era instância.”
- ”É verdade” - é Tamerlão
Quem o diz. - ”Mas,como parto
Em campanha este verão,
É mau presságio. Estou farto.”
Mais adiante Nasredim
Murmurava então assim:
- ”Não sei bem a qual dos dois
Um deles pressagiou, pois.”
Tchao-Tchéu
Aos alunos que queriam
Saber de que material
Uma estátua deveriam
Fazer de Buda, afinal,
Para se prostrar ante ela,
Tchao-Tchéu disse, na sequela:
- ”Seja o que for, barro não.”
- ”Porquê” - ”De estátuas de barro
Só se engalana um verão.
À primeira chuva esbarro
Nelas desfeitas, que agoiro!”
- ”Faremos uma então de oiro?”
- ”Logo o fogo a derretia...”
-”De madeira?” - ”Também não,
Que um incêndio a queima um dia...”
Os discípulos então
Entendem que ele não quer
Nenhuma estátua que houver.
E por aí se ficaram,
Ao sábio se conformaram.
Testemunha
Num negócio de carneiros
Um tratante desonesto
Diz que dez vendeu lampeiros
A um vizinho que, de resto,
Só de cinco lhe pagara
Dos dez com que contratara.
O vizinho a Nasredim
Pede, em sinal de amizade,
Que testemunhe, por fim,
Por ele. Vê se o persuade.
- ”Todavia, eu não sei nada
De tal negócio, de entrada.”
- ”Não tem importância alguma.
Tu só terás de jurar
Que é vero o que digo, em suma.
É simples testemunhar.
Se litígios tens aí,
O mesmo eu farei por ti.”
O cadi, no dia certo,
Convocou as duas partes
E as testemunhas do acerto.
A Nasredim, sem apartes,
Pergunta a dado momento:
- ”Confirmas este elemento,
Que o teu vizinho pagou
Ao marchante de carneiros
Os dez mesmo que comprou,
Todos e não só os primeiros?”
- ”Por Alá que o eu confirmo.
E o vendedor mesmo afirmo
Que até umas pauladas deu
Ao meu amigo, a tal ponto
Que uma perna lhe partiu.”
- ”O quê?! Não estarás tonto?
Ninguém falou de pauladas,
São furto as questões tratadas!”
- ”E acrescento que esse infame -
Continua Nasredim -
“Ouvi que, ao bater, lhe chame
Mil blasfémias, um sem fim,
Que jamais me é permitido
Aqui ouvir repetido.”
- ”É muito grave o que contas” -
Observava-lhe o cadi. -
“Cuidado com o que apontas,
Pode acontecer-te a ti,
Se não contas a verdade,
Coisa que nunca te agrade.”
- ”Eu não tenho nada a ver,
Mesmo nada com verdade.
Vieram-me aqui trazer
Apenas na qualidade,
Que o que apontei bem realça,
Duma testemunha falsa.”
Condenado
Um homem foi condenado
De prisão perpétua à pena.
Um amigo dedicado
Lamenta a quanto o condena:
- ”É mesmo horrível, já viste?
Toda a vida na prisão!”
- ”Não é quanto em mim existe,
Estás enganado, não!
O melhor desta demora
É que é só a partir de agora.”
Shiraz
Nasredim foi contratado
No tribunal de Shiraz,
Num Irão desgovernado.
Ver quem é e que é que o traz
Ante qualquer visitante
É a função que tem diante.
Apresentou-se-lhe um dia
Um homem que lhe pediu
Se ao juiz falar podia
Principal que lá existiu.
- ”Isso não vai ser possível” -
Diz Nasredim, impassível.
- ”Mas porquê?” - ”Porque ele está
Agora num julgamento.”
- ”E quanto é que durará?
Não sai a qualquer momento?”
- ”Depende: se ele é julgado
Ou não é como culpado.”
Afeganistão
Hodja, no Afeganistão,
Foi ao rei pedir um cargo,
Um rendoso até mais não.
O rei não quer pôr-lhe embargo:
- ”Que cargo desejas tu?”
- ”Um de teus ministros ser,
Do petróleo, sem tabu.”
- ”Do petróleo?! Hás-de saber
Que não há petróleo algum...”
- ”E daí? Que é que isso enguiça?
Não tens por lá também um
Que é Ministro da Justiça?”
Salomão
Salomão vai à prisão,
Chama os presos um a um
E, a cada, pergunta então
Se cometeu crime algum.
E todos a responder:
- ”Qual o quê? Eu não fiz nada!
Agora um crime qualquer!
A sentença está enganada,
Sou vítima de injustiça!”
Mas o rei não acredita,
Adivinha, atrás da liça,
Que a mentira é que os agita.
No entanto, um dos presos diz:
- ”Cometi, meu rei, um crime.
Mereço, pelo que fiz
A prisão que me redime.
Causei muitas vezes mal
A muitos meus semelhantes.
É um pesadelo real,
Nem durmo já como dantes.”
O rei chama de imediato
Os guardas e logo ordena
- ”Antes de algum desacato,
Libertem de toda a pena
Este grande criminoso,
Senão irá corromper
De inocentes o pasmoso
Bando que aqui dentro houver.”
Índia
Na Índia o brâmane Astica
Foi em peregrinação
A um sacro local que fica
Do Ganges lá num covão.
No caminho, ao se entregar
Dele às rituais abluções
Doutro rio num algar,
Um crocodilo, aos sacões,
Veio dele se achegando
Que pretendia informar-se
Do rumo que ia levando.
O brâmane, sem disfarce,
Respondeu de boa-fé.
O crocodilo pediu
Que com ele o leve a pé,
Que o sonho que em vida viu
Foi do Ganges ver as águas
Que não tinham ligação,
Para grandes dele mágoas,
Com o rio em que estarão.
O brâmane, compassivo,
Aceitou e o foi levando.
Como, apesar de bem vivo,
Mau é o réptil caminhando,
Meteu-o num grande saco
E aos ombros o carregou,
Sem lhe cobrar nem pataco.
E muitas vezes parou
A descansar do penoso
Esforço a que se entregou.
Chegam ao rio gozoso,
O crocodilo chorou
De fé com que lhe agradece.
Mas diz-lhe que ressequida
Tem a pele, que fenece...
Não pode ele, de seguida,
Levá.lo um pouco mais dentro,
Para as águas mais profundas?
Condu-lo o brâmane ao centro,
Onde há maretas jucundas.
Quando vem a regressar
Para terra, o crocodilo
Vai-lhe logo abocanhar
O pé, como é seu estilo.
- ”Assim me agradeces, dás
O mal pelo bem que fiz?
Que virtude é a que te traz?”
E o crocodilo lhe diz
- ”Vens-me falar de virtude?
Hoje o que é da rectidão
É comer quem nos ajude,
Bons alimentos darão.
Este é que é do mundo o estado,
Quer o tu queiras, quer não.”
Discutem, sem resultado.
Convence o brâmane então
O crocodilo a apelar
A três árbitros, ao menos.
Uma mangueira a velar
Na margem com uns acenos
É o primeiro que lhes conta:
- ”Aos homens dou todo o fruto,
Nem com um fico por conta.
Dou sombra, folhas, produto
Que lhes serve, porta a porta.
Porém, ao envelhecer,
Cortam-me os ramos - 'que importa?' -
E fazem mesmo mister
De da terra me arrancar.
Para os homens a virtude
É quem os alimentar
Destruir. Nada isto ilude.”
Uma vaca, consultada,
Foi pelo mesmo discurso:
Dera leite e, afadigada,
Laborara como um urso.
Depois, quando envelheceu,
Foi largada junto ao rio,
Das feras ao escarcéu,
À morte, por desfastio.
Terceiro árbitro, a raposa
Não gaba benfeitorias
Que lhe devam e não goza.
Quer do pormenor as guias,
Obriga a recontar tudo
E pede confirmação.
- ”Num assunto tão agudo
Não posso decidir, não,
Levianamente, à ligeira.
Não serei tão categórica
Como a vaca ou a mangueira.
Não basta a forma alegórica,
Tenho de ver rectamente
Da viagem a condição.
Crocodilo, certamente
Não te importarás, pois não,
De entrar no saco um momento
Para eu ficar sabendo
Como aqui te trouxe o intento?”
O crocodilo, tal vendo,
Nem hesita, entra no saco.
O brâmane o pôs às costas,
Uns passos deu, sem cavaco,
E a raposa olha as congostas.
- ”Vem comigo” - diz-lhe então.
Condu-los, brâmane e carga,
Da margem e do fundão
Para longe, nada a embarga.
Manda o brâmane pousar
Depois tudo lá no chão.
Numa grande pedra, a par,
Pega e, sem hesitação,
Ao crocodilo esmagou
A cabeça, ainda no saco.
- ”És imbecil,” - regougou
Ao brâmane - “que um pataco
Não vale o que tens na mente.”
Depois chamou a família
E cada qual, mui contente,
Devorou, sem mais quezília,
O crocodilo feroz.
Brâmane é vegetariano?
Fez excepção logo após,
Da troca não sofreu dano.
Divórcio
Nasredim Hodja desposa
Mulher em núpcias segundas,
Viúva de muita prosa.
Recordações mui jucundas
Guardava de anterior lar,
Do morto, do irmão, da irmã,
Filhos, gente singular.
Do falecido, mui chã,
Acolhera os quatro filhos
Dum anterior casamento.
Atara-os com tais atilhos
Que hoje aguardam o momento
De vir com toda a família
Visitá-la o mês inteiro
Em sacrossanta vigília,
Alegria sem argueiro.
Ela tivera três filhos
Que continuava a educar,
Sempre em casa, sem sarilhos,
De Nasredim, novo lar.
Nasredim vai ter um dia
Com o cadi: foi pedir
O divórcio, pois queria
Da família prescindir.
- ”Por que motivo?” - o cadi,
Espantado, perguntou.
- ”Porque à noite, ao que já vi,
Sempre a mulher me expulsou.
Atira comigo fora
Da cama que é do casal.”
- ”Não venhas com essa agora,
Ela é grande, por sinal.”
- ”Parece grande, parece,
Mas com toda a gente dentro,
Garanto e juro uma prece,
Já não há lugar no centro,
Nem sequer lugar no fim,
Não há lugar para mim,”
Rublos
Um pobre judeu russo encontra, um dia,
Com uns quinhentos rublos, a carteira
Do mais rico da aldeia que dizia
Cinquenta dar a quem lha entregue inteira.
Foi o pobre levar-lhe a bolsa cheia.
O rico verifica o conteúdo,
Põe ar severo e diz, de cara feia:
- ”Da recompensa já tiraste tudo,
Quinhentos e cinquenta rublos tinha,
Aqui só estão quinhentos, nada devo.”
O pobre, mui zangado, se avizinha
Do rabino a quem narra o caso coevo.
- ”Confio que me diz mesmo a verdade” -
Comenta ao homem rico este rabino. -
“Um homem tal você para que é que há-de
Mentir, ainda por cima ao que é destino?”
Começava a alegrar-se o homem rico
Como a indignar-se o pobre e eis que o rabino
Para este se vira: - “Verifico
Que não és desonesto (pois me inclino
Perante a tua entrega), que, se o foras,
Com a bolsa ficado tu terias.”
E então ao rico torna sem demoras:
- ”Logo, não foi a bolsa que perdias
Que ele encontrou. Fique ele então com ela,
À espera de que o dono verdadeiro
Lha venha após pedir, disto em sequela.
Fica com a carteira e o dinheiro.”
Discussão
Durante discussão das mais acesas
Um pobre esbofeteado é de mão rica.
Insultado, recorre, as garras presas,
Ao cadi que entre os justos pontifica.
Os dois ouve o cadi, cara sisuda,
E manda ao ofensor que ao ofendido
Dê uma malga de arroz, para que muda
Indemnização seja ao ocorrido.
Ao ouvir a sentença, o pobre vem
Esmurrar o cadi com toda a força.
- ”Estás doido?” - o cadi mal se contém.
- ”Nem por sombras!” - o pobre o tom reforça.
- ”Não ficaste contente da sentença?”
- ”Fiquei” - responde o pobre. -”Agora vou
Embora. Fica tu (que te convença!)
Com a tigela de arroz que me ficou.”
Destrinçar
Um rei que todos os dias
A justiça administrava
De destrinçar não vê vias
Sinceridade que lava
De mentira que escurece,
Até os culpados esquece.
A justiça parecia
Actividade confusa,
Aleatória mania
De que quenquer usa e abusa.
Um dia vem-lhe falar,
Mas sem se identificar,
Um homem com o remédio
Para tantas incertezas.
- ”Posso dar-te, sem assédio,
A faculdade que prezas
De sem falhas distinguir
Justo de injusto a seguir.”
- ”Sabes ler os pensamentos?”
- ”Precisamente, até o fim.”
- ”Que é que lês desde há momentos?”
- ”Que não confias em mim.”
Viu que ele tinha razão,
Era o diabo em questão.
O rei, pois, desconfiou,
Começou por recusar,
Pouco depois aceitou
Uma experiência tentar.
Se não gostar, findaria
O tentame em qualquer dia.
Nas audiências seguintes
O mundo e seus habitantes
Têm luminosos requintes.
Vê logo, em poucos instantes,
A culpa deste ou daquele
Como a sombra que os impele.
Vê pensamentos de amigos,
Dos filhos e das mulheres,
Dos secretários ambíguos
Que o ajudam nos mesteres
De deslindar o que enliça
Sempre quem fizer justiça.
Vê que em toda a parte havia
Crime, inveja, cupidez,
Esconsa malfeitoria
Que aos justos fazem revés.
Hesita, mas reparou
Que a mente se lhe turvou.
Dorme mal, até suspeita
Dos próprios filhos que tem,
Castiga alguém que uma peita
Aceitou que lhe convém
Quando dantes confiara,
Bem imprudente, em tal cara.
Volta a chamar o diabo:
- ”Que experiência dolorosa!
Não vou levar isto a cabo.”
- ”Mas não é fastidiosa
E é útil, é bem de ver,
Terás de o reconhecer.”
- ”Já agora, não me pediste
O que te hei-de dar em troca.”
- ”Não pedi nada, já viste?”
- ”O diabo sempre invoca
As almas a quem concede
Tal favor. E logo as pede:
Quando morrem é no inferno
Que assam para a eternidade.”
- Ӄ o costume desde o eterno,
É o costume, é bem verdade.”
- ”Põe-me como eu era dantes,
Com meus olhos hesitantes.”
- ”É o que desejas deveras?”
- ”Clarividência suprema
Não é humana, é doutras eras.
Não poderei por sistema
Muito tempo suportá-la.
É um tormento que me abala.
Não quero ser infalível,
Antes dúvidas prefiro,
Mesmo a hesitação terrível,
Frente a frente, de que aufiro,
Com os homens, da verdade.
Isso, enfim, é o que me agrade.”
- ”A tua situação
Não é das mais confortáveis.
Contudo, quem é que não
Quer juízos confiáveis?
Alguém há que me refila
Contra poder adquiri-la?”
- ”Os que têm tal desejo
Não sabem a dor que traz
De conhecer este ensejo.
Castigou Deus o capaz
Juizo de Adão e Eva
Que retirou toda a treva
Que existe entre o bem e o mal.
Volta a enevoar o meu
Discernimento, afinal.
Que a justiça tenha um véu
E duro me dê labor
Como sempre, aonde eu for.”
- ”Não posso” – diz-lhe o diabo.
- ”Mas prometeste, aceitaste
Que uma experiência a cabo
Eu fizesse, por contraste.”
- ”Não tinhas, quando acordei,
Este poder que te dei.
Não podias ver, portanto,
Que eu te estaria a mentir.”
- ”Mentira?!” - ”Mentira e tanto!”
- ”Pois claro. E de mim a rir!
Vejo em toda a claridade
E que hoje falas verdade.
Não posso voltar a ser
Quem era outrora, portanto.”
- ”Não está no meu poder
Volver ao incerto encanto.
O que propus aceitaste,
Voltar atrás renegaste.”
- ”E não há nada a fazer?”
- ”Nada a fazer.” E, ao sair,
Voltou-se para dizer:
- ”Quanto a pagar, há-de vir,
Não te preocupe tal.
Interesse não há igual
Em almas iguais à tua.
Nunca te irei pedir nada
Além da morte que actua,
A acompanhar-te na estrada.
O inferno que mais aterra
É o que vais viver na terra.”
Persa
Um persa chora, em plena noite,
Ante uma porta ali fechada.
Um outro passa e que o acoite
Não há recanto nem entrada.
- ”Porque é que choras?” - ”Eu perdi
A minha chave desta porta.”
- ”Ao menos tu, bem pressenti,
A porta tens, que é só o que importa.”
Marselheses
Marius e Olive, os marselheses,
Compram dois carros contrapostos:
Olive é o lento e com reveses,
Marius, o bólido, bons gostos.
Um dia chega uma surpresa:
Olive tem um acidente!
Marius acorre à cama lesa,
Só ligadura no outro assente.
- ”Que te ocorreu? Demais depressa
Por uma vez ias na vida?”
- ”Pelo contrário, o que interessa
É que eu seguia calmo à ida.
Ultrapassaste-me, um tornado!
Numa certeza então esbarro:
Julguei que estava ali parado
E, ao julgar, saí do carro!”
Corrida
Marius e Olive se inscrevem
Numa pedestre corrida.
Os mais desistem, não devem
Comparecer à partida.
São só dois e Olive ganha.
Tempos depois, um amigo
Que Marius na rua apanha
Quis saber do feito antigo.
- ”Então, que tal a corrida?”
- ”Já foi...” - ”Como te correu?”
- ”Fui segundo. É à medida.”
- ”Nada mal, amigo meu!
E o Olive se aguentou?”
- ”Em penúltimo acabou.”
Alfaiates
Conversam dois alfaiates
No Bronx, Estados Unidos.
Um diz de Einstein que quilates
Tem tais que nem são medidos.
- ”Einstein...quem é?” - ”Não conheces?!”
- ”Não...” - ”És idiota ou quê?!
Génio que o mundo enaltece,
A maior cabeça é o que é!”
- ”Mas é tão célebre assim?!”
- ”Tem o nome nas canetas,
Cigarros, cerveja, enfim,
Não há onde o tu não metas.”
- ”Tão célebre é assim porquê?”
- ”Pela relatividade.”
- ”Está bem... Mas isso que é?”
- ”Pois, pois... Que é que te persuade?”
- ”Não me podes explicar?”
- ”Imagina que uma velha,
A cheirar mal, vem sentar
Ao teu colo e se aconselha
Aí durante um minuto:
Vai parecer-te uma hora.
Mas é um tempo diminuto,
Se, em vez daquela senhora,
É uma linda rapariga
Que se sentar ao teu colo:
Na hora que aí se abriga,
Que minuto é desconsolo?
Tudo finda de repente,
Parece que mal sentou...”
-”É disso que fala à gente?”
- ”Mais ou menos tal soou.”
- ”Relatividade então...”
- ”Explico-a mal entendida,
Que os sábios é que a dirão.”
- ”E a dar colo ganha a vida?” -
Pergunta, após um momento,
O ignorante, agora atento.
Diminuta
À mulher que se queixava
De ter casa diminuta
Um homem aconselhava,
Após convicta disputa:
- “Pega nas tuas galinhas,
Mete-as lá dentro contigo.”
-”Nas divisões que são minhas?!”
- ”Vai lá, faz o que te digo!”
Deixou-se ela convencer,
Transportou para o interior,
Vociferando a valer,
O galinheiro, um horror!
-”Agora as tuas ovelhas
Vai buscar, mete-as em casa.”
- Ӄ mesmo isto que aconselhas?
De cheia. Vai ficar rasa...”
Mais uma vez, transportou
O rebanho para dentro
E todo ele ali ficou
Muito apertado, no centro.
Com o burro foi o mesmo
E, depois, com o camelo.
Fica tudo tão a esmo
Que lá não entra um cabelo.
Vários dias decorreram.
O conselheiro à mulher
Disse, então que findos eram:
- ”Esta noite – ouves sequer? -
Pelas três da madrugada,
Tira os animais de casa,
Vai pô-los duma assentada
No lugar. Nada te atrasa!”
O que o homem lhe ordenou
Fez a mulher, expedita.
Quando a manhã clareou,
Andava, com muita dita,
Divisão em divisão,
Exclamando, olhos em brasa:
- ”Mas que enorme casarão!
Como é grande a minha casa!”
Dinamarquês
Num trem, o dinamarquês
Victor Borge, certa vez
Vai com Einstein viajar.
Não sabe de que falar,
Que o que viu de seu trabalho
Tudo nele é só um baralho,
Sem cartas para jogar,
Que nada está no lugar.
Após muita hesitação,
Se encoraja e diz então:
- ”Boston, a terra de apoio,
Parará neste comboio?”
Rómulo
Rómulo, aquele lendário
Fundador de Roma mítico,
Não bebia vinho. O erário
Era, ao tempo, mui somítico.
Alguém lhe comenta um dia
Que o preço bate no fundo
Se, como ele não bebia,
Não bebera todo o mundo.
-”Não,” - responde ele - “ao contrário.
Os preços iam subir
Se todo o mundo, sumário,
Como eu bebera a seguir:
É que eu bebo, não te esqueça,
O vinho que me apeteça.”
Anarquismo
Na Guerra Civil de Espanha
O anarquismo catalão
Suprime, em primeira apanha,
A anterior legislação.
Liberdade para todos
Como a partilha dos bens
E amor livre, de mil modos,
Sem pecado e sem reféns.
Uma mulher que enganava
Dela o marido em segredo
Olha, enquanto se esquivava,
Da aldeia o padre com medo,
Em traje civil blindado.
Propõe-se ele então ouvir
A confissão, nalgum lado,
Dela para a bem servir.
Ela, porém, recusou,
Nada tinha a confessar.
- ”Já não enganas” - fitou -
“Teu marido com um par?”
-”Não. Renunciei a tudo isso.”
- ”E que é que te fez mudar?”
- ”Perdeu de todo o feitiço
E gozo deixou de dar:
Eu tive de o pôr de lado
Por deixar de ser pecado.”
Príncipe
Um príncipe andava à caça,
Disparou a um javali,
Mas falhou. E se embaraça
Vendo a fuga em frenesi.
Alguém entre a criadagem
Gritou então: - ”Bravo!Bravo!”
- ”Porquê bravo?!” - no nobre agem
Mil espantos no tom cavo.
- “Não, não lhe falava a si,
Era com o javali...”
Muçulmana
Na tradição muçulmana,
Jesus caminhava um dia
Com discípulos, savana
Fora, quando, em meio à via,
Dum cão a carcaça topam.
O cadáver já fedia,
Vermes, insectos galopam.
O que é que o mestre diria
Curiosos aguardavam
Os discípulos, ao lado.
Jesus, enquanto paravam,
Ao passar, há comentado,
Sem se atrasar uma linha:
- ”Que dentes brancos que tinha!”
Turco
Um turco gabava um dia
A estatura de seu pai:
- ”É muito alto! Quem diria?”
- ”Mas, de alto, até onde vai?”
- ”Nunca conheci ninguém
Tão alto, tão alto ele é.
Chega às nuvens, vejam bem,
Quando ele se põe de pé!”
Nasredim ouve, discreto,
A conversa e então pergunta:
_ ”Quando ele ultrapassa o tecto,
Se a mão, à cabeça junta,
Ele erguer, não sentirá
Uma coisa suave e quente,
Como uma carícia lá?”
- ”Se calhar...” - diz o outro, crente.
- ”Não sabes o que é, pois não?”
- ”Não...” - responde-lhe o farsante.
- ”Os meus testículos são
E não sabes, ignorante!”
Empurrados
Dois judeus, depois da guerra,
Depois de muito empurrados,
Como sempre, terra em terra,
Reencontram-se, arrumados:
- ”Olha, tenho aqui um visto!”
- ”Visto para que país?”
- ”Para a Argentina me alisto.”
- ”Vós para longe fugis!”
O outro pára um pouco, até:
- ”Longe?! Mas longe de quê?!”
5
Ao Serão de Quinta-feira
Lendária
O amor de Leila e Majnum
Correu todo o Oriente,
Não houve recanto algum
Que o não ouvira, insistente,
Com imagens à beleza
Muito lendária da jovem
Cuja perda tanto lesa
Que errância e loucura movem
O jovem Majnum que a perde.
O califa os elogios
Ouviu desde a idade verde,
Quis conhecer tais feitios.
Chama Leila até Bagdade,
Mandou-a sentar em frente.
Fica, de curiosidade,
Horas a olhá-la presente.
Uma chávena de chá
Toma, muda a posição.
A olhá-la mantém-se lá,
Perplexo, no almofadão.
Diz o califa por fim:
- ”Como é possível que contem
Tanta maravilha, enfim?
Olho-te a ver o que apontem
E não logro compreender
Tudo o que dizem de ti.”
- Ӄ que olhas para me ver,
Mas falta uma coisa aí
E que é uma falta comum:
São os olhos de Majnum.”
Japão
Era uma vez no Japão
A cordada de alpinistas
Equipados, nada é vão,
A atacar, mesmo sem pistas,
Um cume a pique talhado,
Até então inviolado.
Longamente preparada,
Anunciada na imprensa,
A expedição, à largada,
Teve a directa presença
Dos jornais e da TV,
Da rádio, sei lá do quê...
Logo nos primeiros dias
Viu-se o percurso penoso
De perigo em demasias
Que a vários, extinto o gozo
Ou de força limitada,
Leva a fugir da escalada.
Um deles finda morrendo
Dos efeitos duma queda.
Vão-se nas névoas perdendo,
Na neve que lhes suceda.
Telefones avariam
E os rádios se lhes seguiam.
Muita vez vêm atrás,
Trepam com enorme esforço
O contraforte tenaz,
Donde irão, nem um escorço.
Exaustos, roupas rasgadas
E de mãos ensanguentadas,
Conseguem chegar ao cume.
E, para grande surpresa,
Encontram, ateando o lume,
Um grupo que se reveza,
Homens, mulheres, em roda,
Bebendo o chá, como em boda.
Sorriem tranquilamente,
Alguns deles reclinados
Em coxins comodamente.
A custo os recém-chegados
O fôlego recuperam
E, de espantados, ponderam:
- ”Então estão mesmo aqui?!”
- ”Estamos” - diz um do chá. -
“Sirvam-se. Agora o fervi.”
- ”Mas como puderam já
Ter chegado aqui ao cume
Sem ver aonde se rume?!”
Os em roda lá sentados
Uns para os outros olharam
Como que um pouco espantados
Até que ao fim perguntaram:
- Ӄ deveras o que ouvi?!
Isto é o cume? É mesmo aqui?!”
Deserto
Ao deserto, a meditar
Vai um homem e passou
Dos anos quarenta a par
Da solidão que traçou.
Tornando ao mundo habitado,
Veio de reputação
Imparável aureolado.
Tinha, em meio à solidão,
Mil e um mistérios sondado
Da natureza, da vida,
Do coração que é-nos dado.
A multidão o convida,
Todos vão falar com ele.
Um jovem foi admitido,
Perguntou-lhe à flor da pele:
- ”A vida o que é, faz sentido?”
Após longa reflexão,
Respondeu-lhe: - ”Ora, é uma fonte.”
- ”Fonte? De certeza então?”
- ”Se quiser, não é uma fonte.”
E, a saborear o horizonte,
Num adeus, ondeia a mão.
Rabino
Encontra o rabino novo
O que era o velho rabino.
Diz o velho: - ”Não aprovo
O que ouvi, que é bem cretino:
Que andas a afirmar há dias
Que tu é que és o Messias.”
- ”Quem to disse?” - ”Toda a gente,
Nos campos e na cidade,
Em todo o lado igualmente.
Agora diz-me: é verdade?”
- ”É verdade” - diz o novo. -
“Perante ti o renovo,
Que a ti posso bem dizê-lo:
Sou deveras o Messias.”
- ”És?” - ”Sou. De borla e capelo.”
- ”Quem to disse, dir-mo-ias?”
- ”Claro! Foi o próprio Deus.”
Arregala os olhos seus
O velho, todo enfermiço,
A gemer: - ”Eu?! Eu disse isso?!”
Criar
Quando Deus anunciou
Que iria criar o homem,
Muito arcanjo protestou
Quantas razões o consomem:
- ”Ó meu Deus, não faças isso!
O homem são rivalidades,
Querelas por um chamiço,
Mortes por quaisquer vaidades...”
Deus escuta e suspendeu
O gesto da criação.
Mas depois os anjos viu
Que todos discutir vão
Lá numa esquina do céu,
Muito, muito acalorados.
E cada qual diz de seu:
- ”Como podem ser falados
Do homem tantos defeitos
Se nem criado é sequer,
Não existe, pelos jeitos?”
Respondia outro qualquer
Que tinha ouvido rumores
De Deus sobre as intenções,
Sabia bem os humores
Da criatura, os senões...
Armaram tal reboliço
Que Deus, que os bem escutava
Às escondidas, o liço
Pega em mãos, já reatava
A obra que há programado.
- Sabemos o resultado...
Faraó
Quando o Mar Vermelho fecha
Do Faraó sobre a tropa,
Um anjo canta uma endecha,
Seráfico em sua opa.
- ”Mas que é isto?!” - exclama Deus. -
“Estão criaturas minhas
A afogar-se e aqui nos céus
Cantas tu?! Não os detinhas?!”
- ”Mas não foste tu, Senhor,
Que ordenaste àquele mar
Que se fechasse em redor
Dos guerreiros a afogar?”
Ramakrishna
Diz a Ramakrishna um dia
Certo discípulo atento:
- ”Sempre que um elefante ia
Pela estrada fora ao vento
Houve sempre mil rafeiros
Que atrás dele vão correndo
A ladrar, muito lampeiros.
O elefante, parecendo
Nem mesmo os ouvir sequer,
Continua o seu caminho.
Dum homem de Deus qualquer
Parece ser o adivinho.”
Diz Ramakrishna: - ”Atenção,
Acerta bem teus ponteiros!
Deus, é a minha opinião,
Também é Deus nos rafeiros.”
Estacionar
Gira o homem de negócios
Ao volante de seu carro,
Dos escritórios nos ócios,
A sonhar com um chaparro,
Pois não consegue encontrar
Lugar para estacionar.
Dirige-se a Deus: - ”Suplico,
Faz com que encontre um recanto.
Vais ver como então me aplico,
Da mulher vou ser o encanto,
Dos filhos irei cuidar
E aos pobres muito vou dar...
Mas depressa, tem piedade,
Deixa-me um lugar vazio!”
Logo à frente um carro à grade
Do parque sai com ousio.
O homem diz a Deus, com jeito:
- ”Pronto, pronto! Já foi feito.
Não precisas mais de estar,
Portanto, a te incomodar.”
Existência
Dois rabinos, de repente,
Sobre a existência de Deus
Discutem veementemente,
Um pró e outro contra os céus.
Esgrimem mil argumentos
Quando, às tantas da manhã,
Concluem de seus intentos:
- “Deus não é, mas coisa vã.”
Um deles, de manhã cedo,
Vai procurar o confrade
Que no jardim reza o credo
A que o ritual persuade.
Pergunta, surpreendido:
- ”Que fazes?!” - ”Rezo a oração.”
- ”Então que foi concluído
Com tanta argumentação,
Não foi que Deus não existe?
E agora, porque é que rezas?”
E o outro, com todo o chiste,
Surpreso, escondendo as presas:
- ”Demos cabo do toutiço...
Que tem Deus a ver com isso?”
Itália
Francesco, homem mui piedoso,
No norte de Itália, um dia,
Viu-se imbuído com tal gozo
De Deus que não conseguia
Pensar mesmo em nada mais.
Um sinal particular
De Deus quer, dos mais reais,
Gesto, palavra, um luar,
Nem que para tal levara
O resto de sua vida.
Com tal fito não poupara
Jejum, oração seguida,
Muita mortificação
E até peregrinações.
Do deserto soube então
Que os Padres tinham menções
De Deus, que era um bom retiro.
Foi anos para a montanha,
Comeu bolota, deu tiro
E devorou a castanha.
Correu descalço na rocha,
Cantou hinos, reza o terço,
Flagelou-se, acendeu tocha,
De espírito a devir terso...
E resultado: nenhum!
De Deus, tão solicitado,
Nem visão, nem rosto algum,
Nem termo algum formulado.
Já que Deus não se mostrou
Sensível à tentativa,
Francesco o rumo mudou:
Não terá o inverso esquiva.
Pôs-se então a insultar Deus,
A profanar o sagrado,
A infâmia a gritar dos céus,
Cruzeiros a ter quebrado.
Panfletos escrevinhou,
Foi mesmo à televisão
Onde o ódio reafirmou
Por um Deus que é um aldrabão.
Alimentava a esperança
Que insultos, provocações,
Sacrilégio algum alcança
A resposta às pretensões.
Nada, porém, ocorreu.
O grande ausente do mundo
Ninguém o viu nem ouviu,
Indiferente, infecundo.
Francesco então longamente
Reflectiu numa cabana:
“Se Deus não responde à gente
Quer louve, quer malhe em gana,
É porque eu é que sou Deus.
Isto é que explica o mistério
Que consome os sonhos meus.
Não responde do sidéreo
Porque quem é Deus sou eu.
Como mostrar-me podia
Eu a mim próprio? Sandeu!
Impossível tal mania.”
Quando, após meditação,
Concluiu que era a correcta,
Partilhar a conclusão
Decidiu por nova meta.
Foi buscar a velha mota
Guardada antes de partir
E conseguiu pô-la em rota,
Rumo a Milão, a seguir.
De prática tinha falta,
Porém, e a direcção solta.
Em curva derrapou alta,
Caiu, volta atrás de volta,
Por uma ravina abaixo.
Esmagou-se nuns rochedos,
Corpo desfeito num cacho.
Nunca ninguém, nos seus credos,
Soube que na ribanceira,
Por ela abaixo caído
Por desleixo e por asneira,
Deus, enfim, tinha morrido!
New York
Numa família abastada
De New York, o pai, burguês,
De visão muito alargada,
Ateu convicto e cortês,
Decidiu mandar o filho
Para uma escola cristã
Mui reputada, com brilho,
Onde o inscreve, uma manhã.
Após dois meses de estudos,
O filho chega da escola,
Pergunta ao pai, por miúdos,
Pousada ao lado a sacola:
- ”Que é que quer dizer Trindade?”
- ”Não me chateies com isso!”
- ”Mas então porque é que invade
Toda a escola este feitiço:
Pai, filho, Espírito Santo?”
O pai arrasta, furioso,
O filho lá para um canto,
Sacode-o, diz desgostoso:
- ”Ouve bem o que te digo
E mete-o dentro da pele:
Deus há só um – que castigo! -
E nós, nós nem cremos nele!”
Sábio
A um sábio mui reputado
Um rapaz fez a pergunta:
- ”Deus existe?” Olha-o de lado
O sábio que os trapos junta.
- ”Para a questão ter sentido
É preciso que a resposta
Tua vida haja mexido.”
- ”É disso a causa suposta.”
- ”Se eu te garantir que Deus
Existe, isso irá mudar
Em tua vida os modos teus?”
- ”Julgo que não, se calhar.”
- ”Então” - e o sábio se ajeita -
“Tua escolha já está feita.”
Cartas
Certa noite, de repente,
Morre um homem ao jogar
Às cartas, a um café rente.
Os amigos anunciar
Não sabem como a notícia
Súbita e triste à viúva.
Um deles vai, sem letícia,
Entanguido, como à chuva,
A casa dela. Ele sabe
Que é muito religiosa.
- ”Boa noite. Não me cabe
Iniciativa gozosa.
Venho aqui, repare bem,
Da parte de seu marido.”
- ”Pois. Há-de estar mais além
No jogo, vício perdido!”
- ”Pois, sim...” - ”E perdeu dinheiro?”
- ”Claro, precisamente.”
- ”Perdeu tudo por inteiro?”
- ”Foi muito, claro. É indecente.”
- ”Fulmine-o Deus num ataque,
Mate-o naquela cadeira!”
E o homem, como num baque:
- ”Deus ouviu-a! Toda inteira!”
Samaritana
Jesus a samaritana
Vê sentada numa pedra
À beira da estrada insana.
Não pede água. A ver se medra,
Olha-a com severidade
E diz-lhe assim: - ”Filha, estás
No mau caminho, em verdade.”
- ”Nem me fales!” - e olha atrás. -
“Desde manhã cá presente
E nem sequer um cliente!”
Padre
Um velho padre atravessa
Um subúrbio perigoso.
Um grupo encontra sem pressa
De jovens fumando o gozo
Da marijuana e tabaco,
Bebendo álcool e revendo
Pornografia a pataco
Num aparelho contendo
Uma ilegal ligação.
Detém-se o padre, admoesta:
- ”Vossos pais não vos dirão
Que isto de fumar não presta?”
- ”Dizem” - responde-lhe um jovem.
- ”E que não devem beber?”
- ”Também, mas não nos demovem.”
- ”E que filmes destes ver,
Tanta indecência, é pecado
Que a mulher fica humilhada
E o desejo, emporcalhado?”
- ”Claro que a rapaziada
Ouviu bem já disso tudo.”
Murmura o padre, indo embora:
- ”Graças, meu Deus, sobretudo:
Não sabem mentir, por ora.”
Criou
Deus criou o paraíso,
Diz ao anjo Gabriel
Para o visitar com siso.
Mas que espanto todo ele!
Vem de lá maravilhado,
As criaturas humanas
Não queriam outro lado.
Por isso Deus de praganas
Lhe cobriu qualquer acesso,
Deveres e obrigações
Bem penosos no processo.
Gabriel viu tais funções,
Retornou apavorado:
Ninguém queria ou podia
Entrar lá por nenhum lado.
Então Deus o inferno cria.
Gabriel foi visitá-lo
E voltou com mais pavor:
Ninguém teria regalo
Em viver num tal horror.
Deus aí fez o contrário
Do que fez no paraíso:
Todo o atractivo sumário,
A tentação sem juízo
Pôs o inferno a rodear,
De modo que Gabriel
Com ele até vem sonhar,
Qualquer via a ele impele.
Se Gabriel não caiu,
Entre humanas criaturas
A lista de quem ouviu
A chamada às vis venturas
É longa e sempre em aumento,
À medida que aparecem
Tentações em acrescento
E as antigas nunca esquecem.
Golfe
Um judeu que é um novo-rico
Pelo golfe tem paixão,
Dá-lhe em tempo cada nico,
Pensa em cada reunião,
De a cabeça ter tão cheia
Não dorme, com cefaleia.
Ora, de Kippur no dia,
A festa da tradição
Mais importante judia,
Ele, que nunca à oração
Na sinagoga tem falta,
Não resiste ao que o assalta:
Aproveitando a inacção
Que entre todos é geral,
Deixa então que os pés lhe vão
A um campo de golfe tal
Que é só de judeus usado,
Desata a jogar, viciado.
Mal o avista, Satanás,
Ávido de denunciar,
De Deus corre logo atrás
O que se passa a contar:
Joga golfe um insolente
Em dia de Deus somente.
Deus ouve e a Satanás diz:
- ”Muito bem, eu trato disso.”
Cá em baixo, o homem, feliz,
Bate a bola e, num enguiço,
No buraco entra à primeira.
Ele, eufórico, se abeira,
Nunca logrou tal façanha.
Coloca a segunda bola,
Bate-a e tal efeito ganha
Que noutro buraco atola.
E assim sempre de seguida,
Cada buraco à medida.
- ”Mas então que é que se passa?” -
Diz o diabo desnorteado. -
“Disseste-me, em tua graça,
Que era um assunto tratado.
Explica-me, pois, te rogo,
Porque lhe acertas o jogo.”
- ”Porque ele está ali sozinho.”
- ”E daí, que é que isso tem?”
- ”Quando ele quiser, tontinho,
Gabar-se por aí além
Deste jogo singular
Quem o vai acreditar?”
Prova
Um estrangeiro a Nasredim
Pergunta um dia: - ”Crês em Deus?”
- ”Creio” - responde, firme, assim.
- ”Então porquê? Nos feitos teus
Tens uma prova da existência?”
- ”A prova é simples: é que eu rezo
Todos os dias.” - ”E na essência
Há um só Deus? Que prova prezo?”
- ”Só rezo a ele!” - ”E omnipotente
Também o provas com acções?”
- ”Pois! E que prova convincente:
Nunca me ele ouve as orações!”
Avisa-me
A um amigo Nasredim
Um dia pede assim:
- ”Avisa-me, se morreres.
Que queres?
Não gostaria de saber
Por outra pessoa qualquer...”
Apagado
Um homem muito apagado
Junto a Nasredim morava.
Morreu e foi enterrado,
Ninguém em tal reparava.
Um vizinho perguntou
De que é que tinha morrido.
Nasredim obtemperou:
- ”Como posso ter sabido?
Se nem sei de que viveu,
Como ver de que morreu?!”
Amigas
Duas amigas de ouvido
Encontram-se à porta dum horto.
Diz uma: -”E o teu marido?”
E a outra: - ”Continua morto.”
Grave
Falam com todo o sentido
Duas amigas que o tempo esqueceu.
- ”Como está o teu marido?”
- ”Não sabes? Morreu.”
- ”Que doença danada
Te impôs tal entrave?”
- ”Uma rinite complicada.”
- ”Vá lá, que ao menos não foi coisa grave...”
Gata
Nasredim, ainda criança,
Regressando de viagem
Vê que na rua o alcança
Um vizinho, com bagagem,
No burro dele montado,
E que logo o há saudado.
Pediu-lhe novas da aldeia,
Em particular da gata
De que gostava e que ameia,
Sempre que mal se precata.
- ”A gata morreu” - lhe diz.
- ”Porque é que a nova infeliz
Dum modo tão brutal dás?”
- ”Como a havia de anunciar?”
- ”Olha: vê o calor que faz,
Ela uma volta quis dar
Mas, como escaldava a telha,
Saltou e, como era velha...
Era qualquer coisa assim,
A dar tempo a preparar-me.”
- ”Desculpe” - diz Nasredim.
- ”Não faz mal. Cantar-lhe um carme
Nada adianta sequer...
Como vai minha mulher?”
- ”Ora bem, precisamente,
Veja só o calor que faz,
Quis tomar ar, de repente,
Trepou ao telhado e zás!...
Não que ela já fosse velha...
É isto assim que aconselha?”
Mekki
Abbu Hâchim Mekki foi
Um dia pelo bazar.
No magarefe olha o boi
Que ele estava a esquartejar.
- ”Leva esta carne” - ofertou
Ao santo homem o talhante.
- ”Não há dinheiro” - objectou
O outro que era um mendicante.
- ”Não faz mal, leva e me pagas
Depois, quando tu puderes.
Confio, não comas bagas.”
- ”Eu é que em mim, para veres,
Não confio mesmo nada.”
- ”Vá lá, vejo-te as costelas...”
- ”Isto basta à jantarada
Dos vermes que, nas sequelas,
À cova irão que me acoite.”
De facto, morreu à noite.
Bater
- ”Porque bateu no meu filho?”
- ”Porque ele é um mal-educado:
'Gorda!' - diz-me o peralvilho.”
- ”E então há-de ter achado
Que será por lhe bater
Que ao fim logra emagrecer?!”
Jesus
Jesus entra no hospital,
Vai à cadeira de rodas,
Impõe mãos e, a um sinal,
As mazelas cura todas.
- ”Como é que é o médico novo?” -
Dirá quem fora esperou.
Nem vê o curado o renovo:
- ”Como os mais. Nem me auscultou...”
Chaqiq
O homem santo muçulmano
Chaqiq recebe um dia
Um velho no desengano
Que, penitente, diria:
- ”Cometi muitos pecados,
Vim penitenciar-me aqui.”
- ”Tarde vens a estes lados.”
- ”Mas, afinal, consegui.”
- ”Conseguiste ou foi da sorte?”
- ”Consegui porque cheguei
Aqui mesmo antes da morte.”
Chaqiq vê fé, vê lei,
Junto de si o ancião
Escolhe acolher então.
Pobre
Era um homem muito pobre,
Estava para morrer,
Mas, antes que o sino dobre,
Chama o médico a mulher.
Este examina o doente
Que no catre arfa em esforço,
À luz da vela tremente,
Uma só, magra, um escorço.
Nenhuma esperança resta.
Então o homem, parca a fala,
Diz da vela que mal presta:
-”É inútil desperdiçá-la...”
Sopra-a logo. Sem escopro
Talhou o dito que abala:
“Foi o seu último sopro.”
Doente
A mulher de Nasredim
Cai gravemente doente.
E ele ali geme sem fim,
Chora copiosamente.
Os vizinhos lhe disseram:
- ”De nada serve chorar.
Quantos doentes se ergueram!
Ainda te vai preparar
Amanhã uma jantarada.”
- ”Não é por isso que eu choro.”
-”Sim?! Porquê? Não há mais nada...”
- Ӄ que aquilo que eu adoro
É que, aquando de eu morrer,
Quero que ela me recorde
Como o homem que há-de ver
Que a chorar bate o recorde.”
Preguiça
Foi num tempo de preguiça
Que a Nasredim diz alguém:
- ”Que fazes tu, não tens liça,
De manhã à noite sem
Ter qualquer ocupação?”
Nasredim responde então:
- ”O meio de não morrer
Procuro o meu dia inteiro.”
- ”E funciona? - quis saber
O intrometido, lampeiro.
E Nasredim, sempre à tona:
- ”De momento funciona.”
Ásia
Na central Ásia um proprietário
Mui generoso diz a um pobre
(Que o ajudara num agrário
Duro labor) que os passos dobre:
- ”Caminha tanto quanto possas
E toda a terra que os teus passos
Hajam rodeado vai sem mossas
Ser sempre tua e de teus laços.”
O homem pôs-se a caminhar,
Tendo o cuidado de correr
Primeiro um círculo a traçar
Muito pequeno que após quer
Ir alargando a cada volta.
Caminha sempre, dia e noite,
Cansa-se, perde a desenvolta
Noção do que há que ao fim o acoite,
Pois não queria, enfim, parar.
No termo, exausto, cai no chão
E morre logo, um ai sem dar.
Quem o encontrou abre o covão
Com o tamanho do que enterra:
- Dele a parcela foi de terra.
Daud Tai
O santo xeque Daud Tai
Que viveu no século VIII
Pede que, quando se esvai
Do corpo a vida, o introito
É que o corpo depositem
Atrás dum muro qualquer:
“Para que os peões evitem
Minha cara ver sequer.”
Morrer
Uma senhora de idade
Que a uma disputa assistia
Chama um padre à puridade
E, aparte, então lhe confia:
- ”Quando eu morrer, pelo menos,
Num canto bem sossegado
Me ponha onde nem acenos
Me cheguem de nenhum lado
Das disputas que são notas
De todos estes idiotas.”
Egipto
Quando o Egipto era romano,
Do século quarto em volta,
De Alexandria o engano
É da cortesã a escolta
Que de Aminta se chamava.
Os poetas a elegiam,
E de amor artes que usava
Em boatos se estendiam
Por África e Ásia funda.
Príncipes núbios lá vinham
Dela à benesse jucunda,
Paga a fortunas que tinham.
Também Aminta é versada
De música e dança em artes.
Vive em sumptuosa morada,
Escravos são baluartes.
Um faustoso que provinha
Lá das margens do mar Negro
Alexandria maninha
Encontra: dele o que integro
É que só quer impetrar
Entrevista com aquela
Que era a imperatriz de amar,
Só vinha por causa dela.
Nem pirâmides do Cairo,
Nem sarcófagos de antigos:
É tão grande seu desvairo
Que só nela busca abrigos.
Com dura negociação
Fixa para o encontro o preço.
Uma entrevista lhe dão.
Uma alcoviteira o ingresso
Recebe, como é costume.
No dia e hora marcada,
Com véstia com que se aprume,
De Aminta se posta à entrada.
Ao chegar, porém, repara
Numa silhueta escura
Que na casa se prepara
Para entrar, má catadura.
Reconhece de imediato
Que era a morte, não se engana.
A silhueta, com recato,
Passa junto, a porta abana,
Pronta para entrar na casa.
Crítias (ele assim se chama)
Com um gesto breve a atrasa:
- ”És a morte?” - ”Sou” - proclama.
- ”Que é que vens fazer aqui?”
- ”Buscar nesta casa alguém.”
- ”Não!” E, já fora de si:
- ”Dá um pouco de tempo além.
Dar-te-ei o que quiseres,
Caminhei dias e meses
Em busca destes prazeres.
É o supremo, sem reveses,
Sonho duma vida inteira,
Única felicidade
Que na terra se me abeira.
Deixa-a viver, que me agrade
Durante mais duas horas.
Que o sonho se realize
E o desejo, sem demoras,
Se me aplaque em quanto vise!”
Falou algum tempo mais,
A silhueta escutou,
Virou costas e os sinais
São que a entrar renunciou.
Crítias segue, era aguardado,
Entrega o resto da paga.
Após banho e perfumado,
A Aminytas vai que o afaga
Dos segredos com tal arte
Que as duas horas correram,
Num encanto, como aparte.
Mas as emoções valeram.
Quando, no fim, se vestia,
Disse a Aminta: - ”Te agradeço,
Meu sonho foi real um dia.
É certo, jamais te esqueço.
Mas também tu poderás,
Creio eu, estar-me grata.”
- ”Porquê?!” - cortesã sagaz
Tudo apura em cada data.
- ”É que hoje salvei-te a vida.”
- ”Que queres dizer?” - ”Ao menos,
Prolonguei-a, na medida
Em que os momentos pequenos
De estar contigo logrei.”
Crítias conta à cortesã
Da morte a entrar lá sem lei,
Como afastara a malsã.
- ”Ela vinha aqui?” - Aminta
Pergunta com atenção.
- ”Aqui, sim. E, quanto eu sinta,
Ia pisar já teu chão,
A atravessar o jardim.”
- ”Caminhava à tua frente?”
- ”À minha frente, pois sim.”
- ”Que disse ela, exactamente?”
- ”Buscar nesta casa alguém.”
- ”Disse quem? Citou meu nome?”
- ”Não, não disse o de ninguém...”
Cai em si e se consome
Crítias, as feições geladas,
De olhar fixo, de repente.
À morte as questões cobradas
Foram sem rigor premente.
A respiração findou,
Já não vê, não pensa em nada
Quando para trás tombou
Nos braços duma criada.
Índia
Do norte da Índia o rei,
Aos quarenta e cinco anos,
No dia em que era de lei
Receber ele os decanos
E mais os embaixadores,
Se aborrecia de morte.
Pois então, com tais humores,
Não foi capaz, ante a corte,
De segurar a cabeça,
Deixa-a cair sobre o peito
A meio daquela peça
Dos cumprimentos de preito
Que um diplomata apresenta.
O rei, muito surpreendido,
Deu consigo numa lenta
Passagem por um florido
Campo verde onde avançava
De jovem com a leveza,
Com uma moça cruzava
De encantadora beleza
Que lhe sorriu ao passar
E a quem devolve o sorriso.
Ela pertencia a um lar
De camponeses com siso.
Levou-o até à casa
Onde com os pais vivia.
Ali não há rei que apraza,
Ele próprio se esquecia
Do título e condição.
Ela apresenta o rapaz,
Diz que lhe quer dar a mão,
Consentem-lho logo em paz.
Casaram-se pelos ritos,
Tiveram filhos robustos.
Cumpre o ex-rei os requisitos,
Às ordens do sogro os custos
Paga com trabalho duro.
Morre este e deixa-o senhor
De casa e terras, seguro.
Os filhos crescem no amor,
Casaram por sua vez.
Quando ele tinha já netos,
A desgraça, duma vez,
Se abate sobre seus tectos.
Secas constantes o solo
Empobrecem e as colheitas
Emagreceram o bolo.
Ele lutou nas estreitas
Condições, mas a mulher
Morreu, bem como um dos filhos,
Dum relâmpago qualquer
Fulminado em letais brilhos.
Quando o raio o fulminou,
Ergueu a cabeça o rei,
Os olhos abriu, voltou
A si no trono de lei,
Escutou, aí sentado,
O final dos cumprimentos.
No dia, antes de findado,
Audiências e lamentos,
Propostas, reclamações,
Mil petições recebeu
E respondeu com tenções
Do melhor que conseguiu.
Retornara a sua vida,
a seu ofício de rei.
Chegada a noite, a dormida
A favorita (é da lei)
Lha garantiu sossegada.
Ao cabo de vários meses
Desta vida retomada,
Quando, com vénias corteses,
Por um corredor seguia,
Veio-lhe à memória a aldeia,
Uma casa, um rosto-guia...
A emoção breve se alteia.
Um desejo inexplicável
De rever o lugarejo.
Só partiu, indetectável,
Encontra, fácil, num brejo,
O lugar onde vivido,
Trabalhado anos e anos
Dantes houve, desmedido.
Vizinhos, com seus arcanos,
Lhe perguntam: -”Por onde é
Que tens andado? Buscámos
Por toda a parte. Porquê
Te escapulir como os gamos?”
Não soube que responder,
Nem sequer fazia ideia
Que ausência findara a ter.
No lar dali que lhe ameia
O lugar vai ocupar,
Junto à neta que às desgraças
Sobreviveu singular.
Vivendo os dois vidas baças
Foram tal como podiam.
Pouco antes do pôr-do-sol,
Um dia em que o invadiam
Torpores em vasto rol,
Sentou-se então frente à casa,
Sem poder nem respirar.
Olha as flores, plantas, brasa
De estival calor e, a olhar,
Tudo é da primeira vez.
Rumo a ele avista a neta
Que um colar de flores fez
De luto que ao colo meta.
Então ele arranja forças
Para perguntar-lhe, brando:
- ”Tanta flor que em colar torças
São para quem, para quando?...”
A menina se aproxima,
Sorria, detém-se à frente.
Ele tem tempo, em tal clima,
De a ouvir, antes que rente
Lhe descaia o queixo ao peito,
A jamais se levantar:
- ”Porquê flores deste jeito?!
O rei morreu. Ando a par.”
El Centauro
El Centauro, o ditador,
República de Miranda,
De qualquer opositor
Se livra, pondo-o de banda.
Reina, senhor absoluto,
Com, na polícia secreta,
Um terço do povo bruto
E um outro terço a completa,
A vigiar o primeiro
E assim sucessivamente.
Tudo depende, certeiro,
Do ditador tão somente.
Cognomes se atribuía
De El Unico, El Generoso,
El Cercadedios um dia,
Purificador de Gozo.
Execuções às centenas,
Nas prisões não cabem mais,
Nem liberdades pequenas
Na educação, nos jornais...
No décimo aniversário
Da tomada do poder
El Centauro vai, sumário,
Glorificar-se a valer.
Uma semana, porém,
Antes das celebrações,
Uma carta às mãos lhe vem
Que diz só, sem mais razões:
“Morrerás no teu discurso.”
Ficou tudo em polvorosa
A seguir da carta o curso
Mas, do autor, nem uma prosa.
Medidas de segurança
Tomam-se extraordinárias.
Cada convidado alcança
A sala das honras várias
Só depois de três controlos.
Todo o edifício guardado
É de regimentos. Rolos
Cercam de arame farpado.
El Centauro entra na sala
Com meia hora de atraso.
Outra meia é para a gala
De aplausos que vêm ao caso,
Bênçãos, felicitações...
Depois, tudo a seu lugar,
São do discurso os borrões.
El Centauro, ainda a acenar,
Abre a pasta e lá encontrou,
Escrito em termos argutos,
Um papel que o transtornou:
“Daqui a vinte minutos.”
Hesita, pensa anular
A cerimónia, mas nota
Que o excita ir enfrentar
Deste desafio a rota.
Tinha experiência da morte,
Ao menos da morte alheia.
“Companheira de meu norte,
Convivemos volta e meia.”
Olhou longamente a sala
Onde havia homens armados,
Pouco espaço os intervala.
Irão traí-lo os soldados?
Impossível. Escolhidos
E formados são a dedo,
São robôs de outrem movidos,
Seguros que nem um credo.
Limpa a testa com um lenço
E começa. Recordou
De benesses rol extenso,
Persistir em tal jurou.
Mas não falou da miséria
Que assola campo e cidade.
Quinze minutos de léria,
Páginas de insanidade.
Na sala, nem uma mosca,
Apenas do ditador
O elogio a si se enrosca.
Mas, uma lauda ao transpor,
Um bocado de papel,
De novo uns termos enxutos
Pingando a gota de fel:
“Daqui a cinco minutos.”
Novamente perturbado,
Fez uma pausa e tentou
Ver que astúcia imaginado
Terá o mentor. E cuidou
Se agiria só, em grupo,
Como iriam atacar...
E como, após tanto apupo,
Há oposição no lugar.
Uma página após leu,
Dois minutos lhe levou,
Outra a seguir, suspendeu,
A fronte então enxugou.
Pega o copo de cristal,
Serve-se dum pouco de água.
Pensativo, um gole mal
Deu, duma fogueira a frágua
O estômago dilacera.
O sangue a arder, entendeu
Que água envenenada era
E que morrendo se viu
Perante os olhos de todos.
Cinco segundos mais tarde
Já nada mexe em seus modos.
Ninguém se atreve nem arde,
Agora que está tranquilo,
A pensar em aplaudi-lo.
França
Em França, uma professora,
No final do ano lectivo,
Anuncia, sem demora,
Que um dia depois, ao vivo,
Vem um fotógrafo à escola.
A os convencer a posar,
Retira duma sacola
Uma foto singular
Do ano anterior em que posa
Ela entre os outros alunos.
- ”Verão mais tarde o que goza
Quem a olhar e, no seu múnus,
Puder dizer: olha a Linda,
É vedeta de cinema,
E aquele ali, mal vê-se ainda,
É um político de gema,
E o João Paulo, o cientista...”
Um dos miúdos põe o dedo
Na fotografia, alista:
- ”E esta é a professora, credo!
Nunca mais ninguém a viu,
Há muito que já morreu...”
Emissário
Manda a morte um emissário
A buscar um eremita:
Era a hora do sudário.
Porém, ele em si concita
Decénios numa floresta
De Índia ao sul, o que habilita
O monge a escapar na fresta
Dum poder que ninguém tem.
Ele é capaz desta gesta:
Só por vontade mantém
De si múltiplas imagens.
O emissário se detém
Ao entregar as mensagens,
Pois em redor vê centenas
De monges de iguais montagens:
Não vê qual, entre tais cenas,
É a quem deve dirigir-se.
Fala à morte: - ”Mal acenas,
E o prodígio a produzir-se.”
A morte fica a pensar,
Murmura ao ouvido, a rir-se.
Volta o criado ao lugar,
A ter com o velho asceta
Logo a se multiplicar.
De espanto a cara correcta,
Diz o emissãrio, convicto:
- ”Que maravilha! Cometa
Alguém tal, não acredito.
Nada vi que se compare!
É milagre o que aqui fito!
Que pena um nada faltar,
Que haja uma pequena falha...”
- ”Falha?!” - logo a perguntar
O ermitão nem se atrapalha.
Só que é o próprio quem falou.
O emissário logo, à gralha,
Rápido o identificou,
Levou-o sem mais palavras.
As mais imagens olhou
A esvaírem-se nas lavras,
Até que nada restou
Da selva nas terras glabras.
Condolências
Nasredim detesta tudo
O que tem a ver com morte,
Das cerimónias o entrudo,
Das orações o transporte,
Como todos os rituais,
Mormente os tradicionais.
Um imã censura-o um dia
Por mor disto e Nasredim
Defendeu como podia:
- ”O profeta nunca, enfim,
Fez daquilo obrigação,
Glória à morte é de dar? Não!”
- ”Ao menos faz um esforço” -
Diz-lhe o imã. - “Nem que só seja
Por respeito, sem remorso,
À família que o deseja.”
- ”Tens razão” - diz bruscamente
Nasredim com algo em mente. -
“Escuta aqui: por respeito
Para com minha família
Prometo tomar a peito
Comparecer na vigília
De meu próprio funeral.
Dou-te a palavra formal.
Chego à hora combinada,
Ficarei até ao fim
Do enterro, é coisa aprazada.
Só há um pormenor, enfim,
Que não posso prometer.”
- ”O quê?” - quer o imã saber.
- ”Não irei poder ficar
Depois para as condolências.
Sempre detestei, a par,
Essa parte em tais pendências.”
Cavaleiro
Um cavaleiro parou
Ante o lar de Nasredim
E diz-lhe, quando o chamou:
- ”Tenho uma notícia, enfim,
Bem triste para te dar.
Venho de Damasco. É assim:
Acaba de se finar,
Na cidade, o teu irmão.”
A nova vem-no abalar,
Deixa-se tombar no chão,
Lá no meio do jardim,
A cabeça numa mão,
E põe-se a chorar sem fim.
A mulher e os vizinhos
Reconfortam Nasredim.
O cavaleiro os caminhos,
Entretanto, volta atrás
E diz-lhe, ao ver os carinhos:
- ”Perdoa, tirei-te a paz.
Quem morreu não foi o teu,
Mas do Kacem lá de trás
Um irmão. Foi erro meu,
Que me enganei com a casa.”
E a galope então partiu.
Nasredim, que o sol abrasa,
Endireita-se e suspira:
- ”Já estou bem, já não me arrasa.”
- ”Tinhas um ar!... Quem te mira
Vê-te aí bem abalado” -
Diz um vizinho que o vira.
- ”E razões de tal estado
Bem as tinha, que a notícia
Deixou-me como sangrado.”
- ”Mas porquê? Foi sem malícia...”
- ”Não é isso. Esta é a questão:
É que eu nunca tive irmão!”
Qirguízia
Da Quirguízia algumas tribos
Guardam dum texto a memória
Que, em momento certo, cibos
Dão dum medo contra a escória
Da morte, a porem-na em fuga,
Que ela então nunca madruga.
Testemunhas tinham visto
A morte ao vivo, vestida
De preto e rubro registo,
Silente, no leito erguida,
Um moribundo a levar,
Quando este, ao brusco acordar,
Lograva lembrar o texto
E recitá-lo a contento.
Garantem que, em tal contexto,
A morte, em terror do intento,
Fugia, escondendo o rosto
Atrás das mãos de osso exposto.
A natureza, porém,
De tal texto qual seria?
Oração, reza ao além,
Imprecação ou magia?
Que é que metia, afinal,
Medo à morte que é fatal?
É de supor e convir
Que a morte pode ter medo,
Que emoções há-de sentir
Tais que roubam o sossego.
Pode ficar revoltada
E depois ser castigada.
Já nas lendas indianas
De deuses morte escolhida
Recusa matar humanas
Vidas na missão pedida,
Quando vergá-la conseguem
Com palavras como seguem:
“Nos séculos que hão-de vir
Glória tua é sem igual.
E descansa, estás a ouvir?
Morte não mata, afinal.
Não te aflijas com os danos,
Não farás mal aos humanos.
Uns aos outros todos matam,
Mesmo os deuses são mortais.”
Medos à morte não atam,
Dizem uns, se o bem cuidais.
Tudo era teatro ou jogo:
Adeus, que voltarei logo.
Outros, que o texto é dum deus
Ou dum arcanjo caído:
Vingam-se de algum dos seus
Dando ao homem destemido
Este poder clandestino
Com que emular o divino.
Nesta tradição, a morte
Arma suma era dos deuses,
Do poder deles suporte
E dum culto sem adeuses.
Se o homem sem morrer vive,
Religiões leva a que arquive.
Por isso os chefes supremos
Das grandes religiões
Mandaram, até os extremos,
Missionários com missões:
Ou recolhem as palavras
Ou extirpam-nas das lavras.
Um chinês, príncipe grande,
Enviou um velho astuto
Que uma idosa lá demande
Que da montanha em reduto
Há tantos anos vivia
Que suspeitam que sabia
O texto que espanta a morte.
Quis-lhe comprar o segredo.
Ela recusou: - ”De sorte
Que é vender-te, tarde ou cedo,
Aquilo que nunca tenho?”
- ”Diz os termos. São teu ganho.”
- ”Porque é que eu hei-de dizer
Umas palavras à toa?
Este é um momento qualquer
Em que a morte me atordoa?”
- ”Das falas pões-te ao abrigo
Só se de morte em perigo?”
- ”Mas de que falas me falas?!”
Ela afirmava, insistente,
Que não sabe de tais galas
E ao chinês sempre desmente.
Este envia homens armados
A ameaçá-la assanhados.
Ameaçada e ferida,
Ela muda se manteve.
- ”Porque nem por tua vida
Ouço o que a morte susteve?”
- ”Pois é porque não sei nada
Que nada digo, à chegada.
Desde que entraste na gruta
Que sei bem que irei morrer.”
- ”Não há aqui quem o discuta,
Como podes tal saber?”
- ”Se não falar, tu me matas
Com os homens com que tratas.
Se eu falar, matar-me-ias
Por só teu ser o segredo
Com que então sobrevivias.
Vieste por esse credo.”
- ”E não te importa morrer?”
-”Na longa vida hei-de ter
Algo aprendido que importa:
Morrer é bem menos grave
Que matar, fechar a porta.
Se há palavras com que trave
A morte e protejo alguém,
Não as há para quem vem
Matar, para vir salvá-lo.”
Calou-se por uns instantes.
O chinês vê com abalo,
Fascinado, a velha de antes:
Parece estar frente a frente
Com o imortal é o que sente.
A mulher volta a falar:
- ”Se tais palavras houvera
Que impedissem de matar,
Que precioso bem era!
Se as souberas nestes dias,
Tu pronunciá-las-ias?”
O chinês se levantou,
Fez brusco sinal aos guardas,
Um logo a sabre cortou
Da velha o pescoço às sardas.
Ela teve um sobressalto
E tentou pronunciar alto
Umas palavras decerto,
Talvez para se salvar
Por fim no momento certo.
Tarde demais, ao findar:
A cabeça cai no chão
Da gruta, num repelão.
O chinês desce a montanha
Com os seus guardas armados.
Mais adiante, com manha,
São por um bando atacados
Que pacientes esperaram
E a todos os massacraram.
Habitantes da região,
Pensavam que o chinês tinha
A senha mágica à mão.
Queriam tal adivinha.
Prenderam-no, interrogaram
E, ante o não, o degolaram.
Entre eles também havia
Uns cavaleiros de oeste
Cobertos de ferro e a guia
(Que não sabem a que preste
E que os nem veste com jeito)
Duma cruz vermelha ao peito.
Africana
Conta uma lenda africana
Que uma pedrinha do chão
Apanha um homem à mão.
Diz a um outro, a ver se engana:
- ”Que é que aqui tenho? Adivinhas?”
- ”Uma bicicleta!” - ”Ora!
Fizeste batota agora
Quando a escondi nas mãos minhas.”
Irão
No Irão, na revolução
Islâmica, a interdição
É permanente e arbitrária.
Alguns, de forma sumária,
Conseguem que os internassem
Por que por malucos passem.
Ao menos podem gritar
Sempre naquele lugar:
- ”Abaixo o Islão! E ao Profeta,
Morte, que não se intrometa!”
Quando queriam sair,
Bastava o grito banir,
Confessar que eram errados,
Pedir perdão dos pecados.
Na actividade proibida
Era a música mantida,
Mesmo a mais tradicional.
Quem era profissional,
Por perícia não perder,
Tem de às esconsas manter
Treino à sua conta e risco.
Houve quem fugiu do aprisco,
Orquestras em plena noite
No deserto que as acoite
Tocando, à luz das estrelas,
As melodias mais belas.
Um pianista à prisão
Cai por crime de opinião.
Pratica todos os dias
Na mesa, em mudas porfias,
Para os dedos adestrar
E flexíveis conservar.
Ao director da prisão
Foi chamado. Eis a questão:
- ”Que faz com as mãos na mesa
Da cela, qual sua empresa?”
Disse que se aborrecia
E então na mesa batia
Deixando o tempo passar.
Logo o outro, a gargalhar:
- ”Não me venha com histórias!
Um pianista tem memórias
E, apesar da proibição,
Treina a futura função.”
O pianista nega e nega
Mas ocorre – diz – que adrega,
Às vezes, contra-vontade,
Que os dedos têm saudade,
Lembram alguma sonata
E a pauta, mal se precata,
É a superfície da mesa.
Mas ele até que a despreza...
- ”Está bem, pode voltar
Para a cela, ao seu lugar.”
Quando o pianista saía
E entre os guardas se espremia,
O director o chamou,
Irónico acrescentou:
- ”Cuidado com as dedadas:
Só peças autorizadas...”
Bagdade
A Bagdade um estranho chega um dia.
Ninguém o conhecia, é de aparência
Pobre, como um dervixe se anuncia.
Porém, não mendigava e a estridência
Do canto não usou nenhuma vez.
Nunca ninguém o viu comer talvez
Senão algumas tâmaras do chão
Da feira, que esfregava dentre os dedos.
Não era esburacado o seu gibão,
Nem era roupa usada dos degredos.
Calçava umas sandálias, mui decente,
De cajado robusto, em mãos pendente.
Era muito bonito, o rosto magro,
Cabeça levantada, limpo olhar
De verde cintilando, flor num agro,
Com laivos de cinzento a contrastar.
Este olhar maravilha, dentre o escuro
Olhar dos habitantes, negro muro.
Só de noite era visto, após a uma.
Ia de casa em casa onde batia
Com o cajado à porta, em grita suma:
- ”Vem alvorada aí!” - mas repetia
O mesmo em casas nobres, do Governo,
Na mesquita, no albergue... Acorda o inferno!
Duas ou três semanas tal durou,
Reputação estranha anda a envolvê-lo:
Seus olhos são dum tigre quando olhou,
Corta pau à dentada, salta em pêlo
Aos terraços mais altos a que chega
Sem trampolim de apoio, sem ter pega...
Pergunta uma mulher porque anuncia
Em plena noite o alvor quando faltavam
Umas cinco ou seis horas para o dia.
Então o anunciador que embaraçavam
Estas questões, afasta-a do caminho
Com um gesto do braço comezinho:
- ”Anuncio alvorada quando é noite
Porque à noite é que falta-nos a luz.”
E a mulher a insistir como um açoite:
- ”Mas toda a gente sabe que reluz
Toda a manhã o alvor. Porque insistir
A dizer o banal? Deixa-os dormir!”
- ”Se sabem que alvorada vem aí
Porque é que dormem todos os que dormem?”
- ”Pois não te compreendo” - pensa em si
Que era bêbedo ou louco e, ao que a informem,
Os despertados já por tal o tomem.
- ”Ninguém me compreende” - disse o homem. -
“Não é quando houver fome que é preciso
Anunciar a chegada de comida?”
- ”Isso é” - disse a mulher com todo o siso.
- ”Quando se está doente é que a medida
De o médico chamar é que convém?”
- ”Pois é.” - ”Que serventia para alguém
Teria uma alvorada lhe anunciar
Quando ela está chegando de oriente?
Quando a mulher acorda já no lar,
Da capoeira o galo era estridente...”
- ”Isso eu entendo” - diz a mulher, calma.
- ”Não parece que entendas” - com a palma
Afasta-a do caminho e bate à porta
Posterior a gritar pela alvorada.
Tornou-se impopular. O povo exorta
A que o prendam e expulsem para a estrada.
Mas semanas mais tarde ele voltou
E novamente às portas cutucou.
Novamente o prenderam e entregaram
A uma caravana: é de o levar
Bem longe de Bagdade. Abandonaram,
Sem consideração mais lhe mostrar,
O pregoeiro à aridez de algum deserto,
Não pôde mais voltar para mais perto.
Alguns dias depois desta partida
Chegaram os primeiros cavaleiros
Mongóis às cercanias da perdida
Cidade de Bagdade. E aos luzeiros
Da manhã, quando acordam, os vizinhos
Tendas de invasor vêem como ninhos
Erguidas no exterior já das muralhas.
O assalto foi lançado em poucos dias
E foi de madrugada, hora em que as gralhas
Um pouco antes troçavam das manias.
Dormiam sossegadas no seu leito
E viram-lhes depois punhais no peito.
Louco
Fazia um louco as orações a sós.
Alguns amigos o convencem, logo,
A ir na sexta à comum reza. Após,
Numa mesquita, ei-lo a assistir a rogo.
O imã começa a levantar a voz,
Pôs-se a mugir com toda a força o louco.
- ”Não tens vergonha?! Deus não temes, pois?!” -
Dizem-lhe alguns num comentário rouco.
- ”Estive apenas a imitar o imã.
Quando ele disse 'seja Deus louvado',
Estava um boi comprando então no afã.
Pus-me a mugir, por igual, eu, ao lado.”
Pergunta alguém ao pregador que se ia
Ali passando. - ”Bem” - disse ele - “enquanto
Rezava, estava a meditar que um dia
De tratar tenho dum terreno, um canto
Longe daqui. Comigo disse, é certo,
De comprar tenho um boi. E ouvi mugir...”
- É com respeito que sairá de perto
Do louco o louco que anda a nada ouvir.
Resposta
Havia em Bagdade
Um louco que nada
Dizia, em verdade,
À fala escutada.
Perguntam-lhe um dia:
- ”Não dizes palavra?”
- ”A quem o diria?
Não vejo na lavra,
Nem com alta aposta,
Quem me dê resposta...”
Varredor
Diziam a um varredor:
- ”Procuras tu sem parar.
No entanto, és já sabedor
De que não vais encontrar.”
- ”É verdade, tens razão.
Não hei-de encontrar jamais
O que não perdi, no chão,
Sei-o tão bem como os mais.
Mas o que é mais curioso
É que isto me põe furioso.”
Febre
Alguém diz a um louco:
- ”Sabes que tens febre?”
- ”Morra eu um pouco
E, duma assentada,
Foge como lebre
A febre, curada.”
Mulá
Nasredim, vendo um mulá
A pôr uns óculos grossos,
A um oculista de lá
Iletrado até aos ossos
Pede uns óculos de ler,
Tal se bastam a o aprender.
Um rádio tendo comprado,
A um emissor estrangeiro
O liga. Mal hão falado,
Nada entende. Então, ligeiro,
Corre à loja: que um lhe ceda
Que à língua dele lhe aceda.
Um dia estava a serrar
O ramo em que se sentava.
Avisa alguém, ao passar,
Que cairia, se não trava.
Nasredim não lhe ligou,
Cede o ramo e ele tombou.
Uma espécie de profeta
Concluiu que era o vizinho.
Pergunta a hora correcta
Da morte a tal adivinho:
- ”Quando morro em meus achaques?”
- ”Quando o burro der três traques!”
E assim, pois, se livrou dele.
Nasredim vigia o burro.
Quando ia à feira com ele,
Ouve um traque, com um zurro,
E depois segunda vez.
Treme da cabeça aos pés,
À espera então do terceiro
Que devia ser fatal.
Logo ouve outro que, certeiro,
Provou mesmo ser letal:
Na estrada, ao lado dum horto,
Nasredim tomba ali morto.
Logo uns homens o levaram
Para casa e as mulheres
Do cadáver se ocuparam,
São da tradição deveres.
E mais alguém decidia
Enterrá-lo nesse dia.
Breve se forma o cortejo
Que à margem chega dum rio
Que é de atravessar no brejo.
O cemitério se viu
Que era na margem de lá
Onde ninguém chega já.
Era mui forte a corrente.
Como a ponte utilizada
Pelo povo normalmente
Das águas fora arrastada,
Perguntavam por onde ir.
Uns diziam que a subir,
Outros julgavam que não,
Discutiam com calor.
Houve quem, na confusão,
Julgue que um barco é o melhor.
Nasredim, na padiola,
Lépido se desenrola
E proclama com voz clara:
- ”Há uma ponte mais abaixo,
Sólida, coisa bem rara,
Nela é que melhor encaixo.
Um barco?! Era o que faltava!
Eu ainda me afogava!...”
Lago
Um lago vinha bater
Na base dum muro em pedra.
Sentado em cima, um qualquer,
Fatigado, se requebra,
Uma a uma tira ao muro
As pedras que ao lago lança.
- ”Que fazes aí seguro?! -
Diz mulher que o lago alcança
Para de água encher a bilha.
- ”Ao muro tiro umas pedras,
Lanço-as ao lago que brilha.”
- “É tarefa em que não medras.
Porque estás a fazer isso?”
- ”Porque tenho sede” - diz.
- ”Não entendo o teu enguiço.”
Logo o outro contradiz:
- ”Se atirar pedras ao lago,
Faço o lago então subir.
Tarde ou cedo, alcanço um trago,
Que as águas hão-de aqui vir.”
- ”Vai levar um tempo louco!”
- ”Não creias nisso. Olha bem.
Jogo a pedra, sobe um pouco
O lago e baixo também
Um pouco a altura do muro.
Assim é que os aproximo.”
- ”Se desces, é mais seguro,
Debruças-te de água ao cimo.”
- ”Talvez, mas eu tenho medo
De cair e me afogar.”
- ”Aqui, no ponto onde acedo,
Não é fundo, é um bom lugar.”
- ”Como sabes?” - ”Vou mostrar
Como é que sei” - e a mulher
Vem-se, lesta, então postar
Atrás do muro. Vai ter
De dar um grande empurrão
Ao homem que cai no lago,
Com um enorme chapão
Mais um grito, de olhar vago.
Nem chega o lago aos joelhos.
- ”Venho aqui todos os dias
Água buscar, molho artelhos,
Sei dos fundos as manias.”
- ”Deste-me cabo das contas” -
Diz ele, com ar zangado. -
“Assim as pedras que apontas
Não sei se haviam bastado
Para o lago a mim chegar.”
- ”De que é que isso te servia?”
- ”De nada. Mas lá gostar
De saber bem gostaria.”
Sacudiu-se como um cão,
Saiu de água e se afastou,
Deixando um rasto no chão
De água que dele pingou.
- ”Disseste que tinhas sede
E não bebeste, afinal.”
- ”Não quero as águas que cede
Um lago de mau sinal.”
- ”Mesmo se eu teoferecer?”
A mulher colhe um bocado
Para a bilha, dá a beber.
Ele hesitou. Agachado,
Bebe por fim longamente.
Morta a sede, se levanta,
Porém fugiu, de repente,
Como quem se desencanta.
6
Ao Serão de Sexta-feira
Hospício
Num hospício um judeu não
Parava de requerer
Comida kosher, senão
Mais nenhuma ia comer.
Grita tanto e barafusta,
Escreve tanto e tão bem
Que por favor se lhe ajusta
O prato que lhe convém.
Mas no sábado seguinte
O psiquiatra reparou
Que ele de aves era ouvinte
No jardim e ali fumou,
Tranquilo, um gordo charuto.
- ”Está fumando?” - pergunta,
Espantado do produto.
- ”É como vê” - o outro assunta.
- ”Então fez tanto chinfrim,
Incomodou tanta gente
Para ter comida ao fim
E agora fuma contente
Do sabbat em dia. Como?!”
- ”Ora, como lhe retruco?
Senão, que prémio de tomo
Havia de estar maluco?”
Muçulmano
Foi num país muçulmano
Que um pobre maluco deu
Com conhaque, por engano,
E à noite, a esconsas, bebeu,
De grande árvore por baixo.
Rebenta uma tempestade,
Sacode os ramos em cacho
Um vento que tudo invade,
Relâmpagos iluminam,
Os trovões nos ensurdecem...
Do louco a Deus se destinam
Os gritos que o estremecem:
- ”Que é que Te deu? É uma estafa!
Como nisto crer não posso!...
Eu é que bebo a garrafa
E Tu é que ficas grosso?!”
Sevilha
Havia em Sevilha um louco
Que adoptou a extravagância
Que a ninguém lembra tão-pouco,
Nem por ânsia nem ganância:
Arranja um tubo de cana
Dum dos ladoa aguçado.
Se um cão da rua lhe abana
A cauda, é logo apanhado,
No pé prende-lhe uma pata
E segura a outra à mão,
Mete-lhe, mal se precata,
No ânus o tal tubo então,
Põe-se a soprar do outro lado
Até que o pobre animal
Fique em bola arredondado.
Após pô-lo em forma tal,
Dava-lhe umas palmadinhas
E largava-o comentando,
De conduta ante tais linhas,
Dos circunstantes ao bando:
- ”Cuidarão vossas mercês
Que é coisa de pouca monta
Inchar este cão, talvez?
Não é, não, É coisa tonta...”
Córdoba
Em Córdoba um louco havia
Que trazia na cabeça
Um pedregulho. A mania
Tinha um fito para a peça.
Sempre que encontrava um cão
Que não estivesse alerta,
Aproximava-se e então,
Antes da atenção desperta,
Deixava cair o peso
Em cheio por cima dele.
O cão urrava mui leso,
Fugia a salvar a pele.
Ora, um dia aconteceu
Que, entre os cães tão maltratados,
Do chapeleiro um caiu
Que ao dono é dos mais amados.
A pedra, ao cair, bateu
Na cabeça. O agredido
Mui lancinante ganiu.
O dono, tendo-o ouvido,
Fica furioso deveras.
Pega numa vara e espanca
O doido sem mais esperas.
À paulada que o desanca,
Gritava-lhe: - ”Era o meu galgo!
Não vês que é um galgo o meu cão?”
Galgo repete como algo
Que não pode olhar-se em vão.
Dava bordoada no louco
Como quem malhara trigo.
Desterra-se o doido um pouco,
Pois dava efeito o castigo,
E, durante mais dum mês,
Não aparece na rua.
Voltou por fim outra vez
Ainda sob a pedra sua.
Aproxima-se dum cão,
Apontava com cuidado,
Mas não se atreve à função.
Sem a haver nunca largado,
Diz ele: - ”Este é um galgo, não!”
De todos os cães comenta
Que eram galgos. Desde então
Contra nenhum cão atenta.
Campónio
Um campónio muito rico
Foi vender a uma feira
Sete burros com fanico
Tal quem nem lavram a jeira.
Monta o mais robusto deles,
Atrela os outros atrás
E segue, coberto a peles,
Chega e, sem se apear, faz
A conta aos burros que tem.
Aquele esquece que monta,
Só descobre seis além.
Volta a contar: mesma conta.
Aflito e bem convencido
De um burro lhe ser roubado
Ou então de o ter perdido,
Volta à quinta desvairado.
Chama a mulher e lhe diz:
- ”Não sei o que se passou,
Com sete à estrada me fiz,
Só meia dúzia restou.
Ajuda-me, por favor.
Quantos burros contas tu?”
Vai-se a mulher, calma, pôr
A contá-los, tu mais tu,
Sem esquecer o montado
Ali pelo seu marido.
Com dedo a ele apontado,
Diz com sorriso fingido:
- ”Esquisito o teu introito.
Pois olha, eu cá conto oito.”
Estrelas-do-mar
Uma forte tempestade
Lança na praia milhares
De estrelas-do-mar: invade
As areias e os palmares
Delas todo inteiro o rol
Ali a morrer ao sol.
Passam dois homens. Um deles
Baixa-se de vez em quando,
Apanha uma estrela reles,
Ao mar a atira, em tom brando.
O outro, que tinha pressa,
Diz-lhe, abanando a cabeça:
- ”Que fazes?! Irás deitá-las
Todas ao mar? É impossível,
Estás maluco! Não falas?”
Diz o primeiro, credível:
- ”Das que deito ao mar, retruco,
Acha-me alguma maluco?!
Espanha
Um viúvo pobre, em Espanha,
Cria com dificuldade
Dois filhos. Gasta o que ganha,
Nada poupa que lhe agrade.
Um filho era jovial,
Um optimista por lema.
O outro é uma sombra letal,
Sempre infeliz, toda a cena.
Ante as festas natalícias,
O pai pensa nos presentes
Que pode, como primícias,
Dar aos filhos dependentes.
Ante a magra economia,
Pede dinheiro emprestado
E compra, em segunda via,
A seu filho desgraçado
Um relógio. Mas não tem
Nada para o optimista.
Quando numa rua vem,
Eis que um burro, à sua vista,
Desatou a defecar.
Apanha a bosta, embrulhou
Num papel prata a imitar
Que na lixeira encontrou,
Atou-lhe uma fita em volta,
No presépio de Natal
A aconchegou bem envolta
Junto ao relógio real.
Chegada a noite das prendas,
O filho que é taciturno
Retira ao embrulho as vendas.
Vê o relógio, porseu turno,
Pô-lo no pulso, automático,
Sem demonstrar alegria.
- ”Então?” - Um vizinho, prático,
Pergunta no outro dia. -
- ”Viste que relógio belo
Te comprou teu pai?Ao menos
Estás contente por tê-lo?”
Faz que não com uns acenos.
- ”Mas porquê?!” - ”De cada vez
Que no pulso pouso os olhos,
Vejo as horas, dias, mês
A passar. Baixo os sobrolhos,
Que o que me resta a viver
Encolhe, aproxima a morte.”
- ”E tu tiveste um qualquer
Presente melhor da sorte?” -
Ao outro irmão perguntou
O vizinho muito atento.
- ”Um cavalo?” - retrucou
O rapaz, cheio de alento,
Acrescentando na hora:
- ”Só que foi-se logo embora!”
Nasredim
Nasredim fica senhor
De dinheiro apreciável.
Vem-lhe um camponês propor
Se lhe não era emprestável
A soma de mil dinares,
Que lhos paga, sem engano
E com juros singulares,
No prazo dali a um ano.
Ele empresta-lhe o dinheiro,
Julga-o perdido de vez.
Mas, corrido um ano inteiro,
Paga tudo o camponês.
Nasredim perplexo fica.
Dois ou três anos mais tarde,
O mesmo homem embica
Aonde a fortuna guarde
E pede-lhe a mesma soma.
- ”Ah, não! De mim nunca mais
Tua lábia algo me toma.”
- ”Mas porquê recusas tais?
Reembolsei-te o prometido,
Juros de todos os meses...”
- ”Precisamente! É o cumprido.
Não me enganam duas vezes!”
Avarento
Um rico muito avarento
Um dia caiu a um rio.
Arrastava-o lento e lento
A corrente, em desfastio.
Como não sabe nadar,
Acorrem várias pessoas
Margem fora a lhe gritar:
- ”Dá cá a mão, que te atordoas!”
Mas ele não a estendia
E deixava-se afundar.
A vida ao fim deveria
A Nasredim que, ao chegar,
Das águas se aproximou
E gritou do coração:
- ”Vá, homem, sem hesitar,
Toma, toma a minha mão!”
Marselhesa
Um retornado da Argélia,
Rei do merguez em Marselha,
Tem fortuna (quer revele-a
Como nova quer por velha)
Que é por incontável tida.
Um condiscípulo acolhe
Certo dia, doutra vida,
De Oran, do liceu e molhe.
Algum tempo conversaram
Trocando recordações,
Os colegas evocaram,
Professores e lições...
O que veio de visita
Um empréstimo pediu
Ao outro a quem bem concita.
O abastado reflectiu,
Levou-o a uma janela,
Mostrou-lhe fora, na rua,
Da agência bancária a tela.
- ”Vês o pendão que flutua?
Fiz um acordo cortês
E que dura o ano inteiro:
Eles não vendem merguez
E eu não empresto dinheiro.”
Glacial
Viajavam lado a lado
Por um tempo glacial
Um rico e um pobre coitado.
O rico sente-se mal
Embrulhado em dez camadas
De roupa, vai tiritando.
O pobre traz apertadas,
Nunca aos frios se entregando,
Umas roupas de algodão,
Insensível fica ao gelo.
- ”Como fazes tu então
Para o não sentir no pêlo?”
- Ӄ que tu sofres de frio
Porque tens no teu roupeiro
Botas e xailes, um rio
De sobretudos inteiro.
Ao passo que eu, pobretão,
Só tenho isto de algodão.”
Índia
No centro de Índia, um asceta
Mendicante se instalou
À porta que dá directa
Para um bordel que ignorou.
No chão se senta, a escudela
Estendida a quem passar.
Veste pobre, tanga em tela,
Barba grisalha a abanar,
Cabelos em carrapito.
O sinal de Vishnu tem
Na fronte bem circunscrito,
Os ombros cinza contêm.
Quando soube por quem passa
Que uma prostituta actua
Na casa a distância escassa,
Uma fúria lhe deu crua.
Insulta a porta, as paredes,
Quis fazer queixa, mas dizem
Que de lei não há cá redes
Para os que por lá deslizem.
Ele alerta a quem passar,
Dizem que o que a fazer tem
Era mudar de lugar.
É o que jamais lhe convém,
Tão movimentada é a zona,
Tão favorável à esmola.
Os clientes, numa fona,
Insulta, à má-fama imola,
Tenta atacar à paulada...
Uma tarde, ao dormitar,
Um cliente, junto à entrada,
Uma moeda faz tombar
De prata lá na escudela.
Ao despertar do barulho,
O asceta retira dela
A moeda com orgulho.
Nos dias que se seguiram
O mesmo gesto ocorreu,
Dezenas o repetiram.
A crítica esmoreceu
Do asceta, agora acalmando.
Os clientes satisfeitos
Lá o iam esportulando,
Como a tal mendigo afeitos.
Foi o hábito crescendo,
Os vizinhos deste asceta
Pela calada dizendo
Que era um mero proxeneta.
Mas um dia a prostituta
Decidiu mudar de casa.
As carroças, em disputa,
Cada qual a carga apraza.
Móveis, tapetes transportam,
Candeeiros, roupas, tudo
E nas carroças se exortam
A atulhar miúdo e graúdo.
Ora, o asceta olhava aquilo
Com um ar muito inquieto.
No fim sai, em grande estilo,
A mulher, saco repleto.
As carroças já partiram,
Vinha agora um palanquim.
As criadas reagiram
A ajudar a dona ao fim.
O asceta então a chamou
E perguntou: - ”Vais-te embora?”
- ”O insulto me azucrinou,
Contente deves agora
Estar da minha partida.”
Trepa para o palanquim,
Fecha a cortina em seguida.
O asceta, num frenesim,
Correu atrás a clamar,
Pisando os calhaus da estrada:
- ”Não me poderás tu dar
A tua nova morada?”
Haim
O judeu Haim dormia
Com sua mulher, à tarde,
Quando um barulho se ouvia
Na casa que tão mal guarde.
Um ladrão de introduzir-se
Acabava em casa deles.
Cheios de medo, a esvair-se,
Ficam imóveis aqueles.
O ladrão busca a correr
Por toda a parte e encontrou
Um lindo anel de mulher
E foi o que ele levou.
Haim, que estava a espiá-lo
Pela porta entreaberta,
Foi atrás até caçá-lo.
Ao voltar, ainda desperta,
A mulher lhe perguntou:
- ”Recuperaste o anel?”
- ”Não, não!” - ele retrucou.
- ”Correste... Não foi por ele?!”
- ”Só lhe queria dizer
Que o anel tinha custado
Muito mais que outro qualquer,
Para não ser enganado:
Quando ele tentar a alguém
Vender, venda, ao menos, bem.”
Rabino
Um rabino viajante
Oferecia os serviços
Cidade a cidade adiante.
Das etapas nos sumiços,
Chega sempre a Berditchev,
Se aloja no lar dum pobre,
Que outro convite não teve
Que em tal terra ali lhe sobre.
Mas tornou-se popular,
Ganhou dinheiro o rabino,
Reuniu, a o rodear,
Mil discípulos de tino.
Chega um dia a Berditchev,
Agora em coche doirado
Que os cavalos puxam leve.
Um dos ricos, anafado,
Logo se lhe apresentou,
Para seu lar o convida.
E o rabino retrucou:
- ”Com sua licença, a ida
É ao pobre do costume.
Porém, se lhe dá regalos,
Tudo a isto se resume:
Convide então meus cavalos.”
Colectas
Um padre mais um rabino
Falam da parte que têm
Para seu próprio destino
Das colectas que retêm.
O padre: - ”Traço no chão
Da igreja uma linha recta
E, no fim da missa, então
Atiro ao ar a colecta.
O que cair à direita
Guardo inteiro para mim.
O que à esquerda ali se ajeita
Será para Deus, enfim.”
E o rabino: - Ӄ mais ou menos
O que eu faço, mas sem linha.
Grandes atiro e pequenos
Dinheiros ao ar. A minha
Decisão é feita assim:
De Deus é o que fica no ar;
O que cai é para mim.
Ninguém se pode queixar.”
Fato
Um judeu com um amigo
À loja vai por um fato.
No alfaiate encontra abrigo:
Um lhe agrada e quer contrato.
Discute, porém, o preço
Durante três quartos de hora.
- ”Regateaste! Não esqueço
Que o não vais pagar agora...”
O outro diz-lhe: - Ӄ que assim
Perde ele menos, ao fim...”
Ética
Um judeu ensina ao filho
O que é que ética será:
- ”Queres ver com todo o brilho
Um problema onde isso está?
Um cliente vem à loja
E, ao sair, esquece o troco
No balcão que a caixa aloja.
Problema no qual eu toco
A ética mais profunda
Que me faz perder meu ócio:
Se o dinheiro não abunda,
Divido com o meu sócio
Ou guardarei por inteiro
Para mim todo o dinheiro?”
Fome
Sobre a região a fome
Tremenda ali se abatera,
A população não come,
Mata a miséria qual fera.
Porém, os ricos cuidado
Tinham de encher os celeiros
E adegas, tudo atulhado,
Fartos são meses inteiros.
A mulher de Nasredim
Diz-lhe então: - ”É uma vergonha!
O rico foi sempre assim,
Tudo tem de que disponha.
E meio povo não tem
Nem sequer de que comer.
As crianças morrem também,
Até o rato anda a morrer.
Não poderás fazer nada?”
- ”Mas que queres tu que eu faça?”
- ”A riqueza partilhada
Com os pobres nos congraça.
Não poderás convencer
Os ricos à entreajuda?”
- ”Tens toda a razão, mulher,
Vou já tentar se isto muda.”
Saiu de casa e só volta
Cinco ou seis dias mais tarde.
Esgotado, a voz mal solta
Num murmúrio sem alarde.
- ”Então,” - pergunta a mulher -
“Cumpriste e tua missão?”
- ”Sim” - mal se ouve responder.
- ”Conseguiste, pois, então,
Convencê-los a aceitar
Uma partilha dos bens?”
- ”Consegui metade, a par.”
- ”Metade?! Mas que é que tens,
Que é que é isso que me encobres?”
- ”Convenci mas foi os pobres.”
Damasco
Nasredim saiu um dia
De viagem a Damasco.
Logo o imã longo escrevia
Que de lá lhe traga um frasco,
Várias peças de brocado,
Mais duas tapeçarias,
Serviço de chá talhado
Em porcelana de estrias
Com a chinesa embutida,
Cem obras encadernadas,
Miniaturas à medida,
Mais luxos para as jornadas...
E anotava: - ”Não te inquietes,
Pago-te mal aqui voltes.”
Mal torna e pisa as carpetes,
Logo o imã: - ”Que enfim te soltes!
Correu-te bem a viagem?”
-”Correu” - disse Nasredim,
No descanso da paragem. -
“Damasco, um mundão assim,
Que grande, grande cidade!
Contar-te-ei até ao fim
Tudo o que vi que te agrade,
Se tens paciência, enfim...
Mas antes, algo em contraste
Tenho-te a dizer a ti:
A carta que me mandaste
Eu cá nunca a recebi.”
Cinema
Um produtor de cinema
Célebre por seus calotes
Os Champs-Élysées atrema
Em subir, um dia, aos trotes,
Quando sentiu uma mão
Pousar-lhe no braço então.
Sem, contudo, se voltar,
Diz a quem tenta detê-lo:
- ”Também a mim, se calhar,
Me chegas a roupa ao pêlo.
Ora, a mim próprio, parceiro,
Também me devem dinheiro...”
Sacha Guitry de finados
Solta deste canto os dobres:
“Conheci-os arruinados,
Mas nunca os conheci pobres...”
Polónia
Na Polónia dois judeus
Viajam no mesmo comboio
A Varsóvia, rumo aos seus.
São como o trigo e o joio.
Não se conhecem. O novo
Diz ao velho, de repente:
- ”Para si sei que reprovo,
Mas diz-me a hora presente?”
O velho, numa olhadela,
De imediato lhe responde:
- ”Não!” E ao canto, sentinela,
Se encolhe todo, se esconde.
O rapaz, surpreendido,
Aguarda então uns minutos:
- ”Porquê o não tão decidido
E com uns modos tão brutos?”
O velho hesita um instante
Até depois responder:
- ”Ouve cá, ó meu tratante,
A Varsóvia vamos ter.
Cidade que não conheces,
Disseste-o ao revisor.
É o sabbat, não te esqueces,
Este é o dia do Senhor.
Vais perguntar-me, portanto,
O rumo da sinagoga.
Eu recusar-me, no entanto,
Não posso, que a fé o advoga.
Levo-te lá pessoalmente.
À saída, como vejo
Teus meios (são de indigente),
Perguntas-me se entrevejo
Alguma pensão barata.
Como nenhuma conheço,
Num jogo de desempata,
Minha casa, no começo
Vais aceitar, com certeza,
Poderei prever que sim.
Tenho filha, uma beleza,
Dezoito anos de marfim.
Vai-te agradar, pela certa,
Não tardam a apaixonar-se
Um do outro, em casa aberta.
Uns meses, para disfarce,
E pedes-ma em casamento.
- E achas bem se eu a concedo
A quem nem tem, de momento,
Nem para um relógio?! Credo!”
Bagdade
Em Bagdade houvera outrora
Uma longa discussão
Entre a gente pensadora,
A responder à questão:
Há duas categorias
De homens cá todos os dias?
De acordo era a maior parte
Mas discordavam acesos
Sobre a razão que os reparte:
Como dividir os coesos?
O muçulmano convicto
Diz: fiéis e infiéis.
O cristão, não: é o maldito
E o salvo, sem mais papéis.
Para o grego, é o dominante
E, a seu lado, o dominado.
Noutros termos: grego impante
Contra bárbaro iletrado.
Noutros era a inteligência
Que havia de dominar:
Os que sabem, a ciência,
E os que ignoram, logo a par.
Instruídos – ignorantes.
Mas há mais nestes alfobres,
Que aqueles dizem pedantes:
Bastam-lhes ricos e pobres.
Há o que manda, o que obedece.
Há o vencedor e o vencido.
De Índia um há que não esquece
Divisões noutro sentido:
A dos vivos e a dos mortos.
Para alguns, são bons e maus,
Embora, nos nossos hortos,
Onde, entre os dois, talhar vaus?
Ao fim do mês foi forçoso
Separar sem solução
Tanto sábio portentoso,
Que vã fora a discussão.
Encontram então na rua
Nasredim que ia a passar
Calmo na montada sua.
Vai-lhe um sábio perguntar:
- ”Nasredim, categorias
Será que de homens há duas?”
- ”Claro que há, não o sabias?”
- ”Quais e como as encafuas?”
- ”Os que pensam que do Homem
Há duas categorias
E os outros, os que nos tomem
Por irmãos todos os dias.”
Zen
Uma velha abastada decidiu
Auxiliar um jovem monge zen
Em estado famélico que viu
Penitente na rua, ali perene.
Alojamento deu-lhe na cabana
A meio situada, em parque imenso
Em torno à residência onde se fana
E alimentou-o então, com todo o senso.
Ora, o monge aceitou, não vendo nisso
Mal algum e alguns anos decorreram.
Ele ganhava peso mas serviço
Fez sempre, que orações sempre correram.
A dama apreciava tal presença
Que, tranquila e devota, a apaziguava.
O eremita cuidava da sentença,
Em seu lugar pecados lhe lavava.
Aos amigos falava e o exibia,
Que trocavam com ele algumas falas.
Com o tempo ninguém estranharia
Tal presença: o melhor era das galas.
Uma sobrinha a dama, porém, tinha
A quem vida monástica atraía.
Mas antes do convento o que a detinha
É que conhecer quer toda a alegria,
Ao menos uma vez, do amor carnal.
Pensa consolidar a vocação
Se aprende a apreciar pelo total
Aquilo que depois larga no chão:
Senão, qualquer renúncia que valia?
Não ousando ela aos pais, à tia fala
Que, depois de hesitar, admitiria
Como era pertinente o que a regala.
- ”Tenho justamente o que é preciso,
Ao menos creio ter” - confidenciou.
À rapariga disse, com juizo,
Que à cabana a acompanhe, onde explicou
Ao eremita o acto que esperavam.
Mas este recusou veementemente
Qualquer sexual contacto. Renunciavam
Os monges ao prazer, coração quente
Já não tem e não quer correr o risco...
A velha se irritou e pôs na rua
Imediatamente aquele cisco,
Que a vista já lhe turva, negra e crua.
- ”Como dei eu guarida ao imbecil?!” -
Exclama, a verter fel, raivosa esponja. -
“Com certeza não há mais um em mil!”
E a rapariga foge de ser monja.
Hassan
Hassan ia desposar
Do sultão a filha única,
Mas tem um jogo de azar:
Tirar do bolso da túnica,
À escolha, um de dois papéis.
Num se escreveria “vida”
E o consórcio troca anéis.
Noutro, “morte” e, de seguida,
Era morto o pretendente.
Apesar deste contrato
(Que assina Hassan, de repente),
O sultão perde o bom trato,
De aflito. Pensava ele:
Tenho uma hipótese em duas
De a filha dar para aquele
Zé-ninguém de andar nas ruas,
Mais a parte da fortuna.
O risco é grande, cuidava.
Do biltre a morte se coaduna
(E só ela) ao que o magoava.
Dá parte da inquietação
Ao grão-vizir, um escroque.
Aconselha-o este então
A ter de génio este toque:
Escrever nos dois papéis
A fatal palavra “morte”.
É o privilégio dos reis:
Mudam a seu gosto a sorte.
Mas Hassan é inteligente
E prevê toda a armadilha.
Chega o dia e, sorridente,
Entra à sala da pandilha,
Onde o aguardam o sultão,
O vizir e toda a corte,
Mais um carrasco. No chão,
O cepo e o sabre do corte
Do pescoço que pretendem.
Hassan avança. Um criado
Põe na bolsa que lhe estendem
Os dois papéis. Descuidado,
Hassan logo agarra num,
Enrola-o, sem mais o engole.
- ”Porque quebras o jejum
Comendo esse nojo mole?” -
Exclama brusco o sultão.
- ”Fiz a escolha e engoli-a.
Se meus fados onde vão
Queres saber, pois a via
É ler o outro papel.”
Ora, neste havia “morte”,
Pelo que deduz-se dele
Que o que engolira reporte
Nele escrito o termo “vida”.
O sultão já não podia
Tirar-lha e é-lhe cedida
Mais a filha que queria.
Indiano
Tinha um sábio indiano
A fama de preferir
Silêncio a todo o engano
De ensinança que existir.
Uma pequena cidade
Convidou-o, no entanto,
Decidindo que o persuade
A falar, usando o encanto.
Ante a centena de parvos
Pergunta a primeira vez:
- ”Sabeis de que irei falar-vos?”
- ”Não!” - respondem no entremez.
- ”Então nada vos direi.
Sois por demais ignorantes,
Com que podia não sei
Entreter-vos ums instantes.”
E retirou-se. O auditório,
Desapontado, voltou
Segunda vez, em velório.
De novo ele perguntou:
- ”Sabeis do que irei falar-vos?”
- ”Sim!” - responderam em coro.
- ”Nada então tenho a ensinar-vos.”
E lá se foi, com decoro.
Não se dando por vencidos,
Os interessados voltam
Um dia após, decididos
A um ardil que aos pés lhe soltam.
- ”Sabeis de que que falar vou?”
- ”É que uns sabem e outros não.”
- ”Nesse caso, donde estou
Os que sabem o dirão
Aos que não sabem.” E, a par,
Foi-se, sem mais retornar.
Senhorio
- ”Padre, chamo-lhe a atenção
Para o terrível flagelo duma pobre família:
Pai desempregado e a mãe não
Pode trabalhar, dada a vigília
Pelas nove crianças que tem de sustentar.
Têm fome e em breve irão para a rua,
Salvo se alguém lhes pagar
Os 500 euros da renda sua.”
- ”Que horror!” - diz o padre, tocado
Pela preocupação do homem de brio. -
“E o senhor quem é? Conheço-o de algum lado?”
- ”Sou deles o senhorio.”
Crêem
Desde sempre os homens crêem
Que haja um mistério no mundo
Que só os iniciados vêem
Após um rito profundo.
Um califa encarregou
Nasredim de o descobrir.
- ”Queres” - este interrogou -
“Do esoterismo que ouvir
Que eu lhe descubra o segredo?”
- ”Sim e que após mo reveles.”
- ”Mas, supondo que lhe acedo,
Não és acaso daqueles
Que, após to haver confiado,
Mandas cortar-me a cabeça?”
- ”Mas para quê tal mandado?!”
- ”Para o único da peça
Ser que tem conhecimento.”
O califa trejurou
E Nasredim, no momento,
Logo a casa retornou
Prometendo sem demora
Do esoterismo informar-se.
Mas nem antes nem agora
Da vida altera o disfarce.
Vai no burro colher figos,
Ocupa-se do negócio,
Conversa com os amigos
Em redor dum chá, em ócio
Discute com a mulher,
Com os filhos, com o burro...
Rotina, como quenquer.
Findo o tempo, mui casmurro,
O califa o convocou,
Pergunta, no encontro a sós:
- ”Do que tanto se falou
Descobriste alguma voz?”
- ”Descobri” - diz Nasredim.
- ”Mas o que é? Conta-me então!”
Lançando um olhar sem fim
Em redor, pelo salão,
A assegurar que sozinho
Está com o soberano,
Ao ouvido, em burburinho,
Do mistério tira o pano:
- ”O que é que é o esoterismo?
Descobri que é uma cenoura.”
- ”Uma cenoura?! O que crismo
De mistério é o que me agoura?
Mas porquê?!” - ”Ao que parece,” -
Nasredim que o não impeçam
Garante, a salvar-se em prece -
“Muitos burros se interessam
Por ele, não é verdade?”
E, com isto, ele se evade.
Glicínia
Um ingénuo camponês
Depõe toda a confiança
Dum monge zen em mercês,
O qual em gruta se alcança
Distante mais duma hora
Duma aldeia aonde mora.
Quando um problema sofria,
Filho doente, má colheita,
Até à gruta subia
E ao monge, para a maleita,
Um conselho então lhe pede
E logo este lho concede,
Sempre com igual resposta,
Fosse qual fosse a pergunta:
- ”Para a questão que é proposta,
De glicínia um pouco junta
E, na chávena servida,
Bebe glícínia fervida.”
Com uma só diferença:
Se era animal ou pessoa
Doente, então a sentença
Dita que a tisana é boa
Só quando, evidentemente,
É bebida pelo doente.
O campónio, uma manhã,
Procura em vão o cavalo
Pela aldeia, em busca vã.
Constata, com muito abalo,
Que anda desaparecido
E, sem ele, se há sumido
Todo o trabalho da terra.
Trepa à gruta do eremita
Lá bem no cume da serra,
Explica-lhe o que o agita.
Reflecte profundamente
O eremita, em chão assente.
Meia hora bem contada
Após, diz com toda a gana:
- ”Pois de glicínia apanhada
Vai beber uma tisana.”
- ”Em que me vai ajudar
Uma tisana emborcar?!”
O eremita se recusa
A dizer mais e voltou
Para a sua gruta escusa.
O camponês retornou
Para a aldeia onde a mulher
Diz mais glicínia não ter.
Devia haver noutro vale,
Onde se chega transpondo
Uma escarpa sem igual.
Mas para quê ir, supondo,
Se não diz coisa com coisa
O monge que no alto poisa?
Sem saber mui bem porquê,
O camponês tem confiança
No eremita que além vê.
Põe-se a caminho e alcança
O outro vale. E eis que o cavalo
Ali pasta que é um regalo!
Dougxan
Em pleno século XIII
Andavam Xengha e Dougxan
Pelo campo, sem que os lese
Nada, até que uma manhã,
Couves chocas, de repente,
Vêem a ir na corrente.
Dougxan diz que um eremita
Budista ter-se instalado
Devia lá na territa,
Pois o resto rejeitado
Duma refeição seria
A couve que ali se via.
Procuram, acham-no logo.
Mal os vê, pergunta ele:
- ”Caminho nenhum advogo
Nesta montanha. Que impele
Minhas visitas então?
Vieram, mas por que chão?”
- ”Pouco importa” - diz Dougxan.-
“E o senhor onde passou?”
- ”Não vim atrás da manhã
Nem do rio que escoou.”
- ”E há quanto tempo aqui vive?”
- ”Anos não há que eu arquive.”
- ”Quem vivia aqui primeiro,
O senhor ou a montanha?”
Diz o monge pioneiro:
- ”Sei lá bem qual de nós ganha!”
- ”Mas como, como não sabe?!”
- ”A conta em homens não cabe
E nem nos deuses também.”
- ”Mas, sendo assim, porque veio?...”
- ”Vi dois bois de lama além
Que lutavam, num enleio,
Entrarem pelo mar fora.
Depois, nada. Até agora.”
Sandália
Ao discípulo curioso
Que da vera natureza
De Buda quer ter o gozo
Responde o mestre que preza:
- ”Uma sandália do pé
Tira, põe-na na cabeça
E sai sem dizer até
Logo, como quem tem pressa.”
Um
Um jovem pergunta ao mestre:
- ”Tudo a um é redutível.
E o Um não há quem amestre?
Ele é mesmo irredutível?”
Responde o mestre Tchau-Tcheu:
- ”Antigamente, quando eu
Morei na zona de Tching
A pesar uns sete kin
Mandei fazer uma veste
Que assim bem a mim me preste.”
Istambul
Um homem, em Istambul,
Andando já nos sessenta,
Por amor, com véu de tule,
Casa com jovem que assenta,
Uma bonita mulher,
Dos amigos contra o crer.
Era um homem reputado,
Rico e mui bom conselheiro:
Cada assunto delicado
Ponderava o ano inteiro.
Ocorreu-lhe o que acontece
A quem de quem é se esquece:
A sua jovem esposa
Amante da idade dela
Toma e clandestina goza
Duma alcoviteira em cela.
Por mais hábil que mantida
Seja, acaba conhecida.
Una amigos do enganado
Acharam-se no dever
De tudo lhe ter contado.
O homem manda rever
Toda aquela informação,
Ouve inteira a confissão.
Mandou chamar a mulher,
Não nega o que era evidente.
Ante acusação qualquer,
Chora desoladamente,
Impetra todo o perdão,
Que as leis a morte lhe dão.
Remete-a o homem ao quarto,
A decisão a aguardar.
Sozinho fica, refarto,
Noite inteira a ponderar.
Orou muito e reflectiu,
Até que a decisão viu.
Bem cedo, saiu de casa.
Viram-no em diversos cantos
Da cidade. Tudo o atrasa.
Ao fim da manhã, sem prantos,
Manda preparar depois
Uma refeição a dois.
Quando a refeição foi pronta,
Mandou descer a mulher,
Que em frente se sente aponta.
Ela faz o que ele quer.
- ”Comamos” - diz ele então.
E, durante a refeição,
Recorda à sua mulher
Que, um dia após, convidados
Terão para receber
E que ela preste os cuidados
Requeridos a que bem
Corra tal serão também.
Mais informou que viriam
Reparar parte do tecto
Onde já brechas se abriam
E que contava, em concreto,
Com ela para acertar
Tudo e para vigiar.
Comportava-se tal como
Num outro dia qualquer,
Sem perturbação de tomo.
Admirava-se a mulher,
Inquieta desta atitude
Que qualquer castigo ilude.
Mal começam a comer,
Diz-lhe o homem: - ”Não desdobras
Teu guardanapo sequer?”
Da confusão entre as sobras,
Ela esqueceu de pegar
O seu guardanapo a par.
Ao desdobrá-lo, descobre
Lá dentro o estojo da marca
Do joalheiro que cobre
O melhor que a urbe abarca.
Abre o estojo e a jóia viu
Brilhando que ele lhe deu.
- ”É para quem?!” - perguntou
Num espanto bem profundo.
-”Para ti” - lhe retrucou
O marido, em baixo fundo.
Ela, sem compreender,
Nem toca a jóia sequer.
Por fim diz, trémula a voz:
- ”Não mereço recebê-la.”
- “Não” - diz o marido após,
Meditando na sequela.-
“Mas eu é que, de alma aberta,
Eu mereço oferecer-ta.”
Nasredim
Nasredim ia a passar
Numa rua quando alguém
Tão violento vem chocar
Com ele que quase tem
De ir ao chão recuperar
O equilíbrio dele além.
Nasredim, muito abalado,
Atrás do homem correu
E perguntou-lhe, açodado:
- ”Este encontrão que me deu
Foi por mero acaso dado
Ou brincando aconteceu?”
- ”Por acaso” - diz-lhe o homem.
- ”Ainda bem, fico aliviado.”
- ”Mas que coisas te consomem?”-
Diz o outro, por seu lado.
- ”É que, se encontrões se tomem
Por brincadeira de agrado,
Uma brincadeira assim
Era nova para mim.”
Índia
Na Índia, certo homem santo
Caminhava na cidade,
A escudela canto a canto
Recorrendo à caridade,
Quando foi doutro atacado,
Desta atitude irritado.
Violentamente agredido,
Deixa-o, tal morto, no chão.
Do convento, o aviso ouvido,
Os monges, de supetão,
Vêm logo ali buscá-lo,
Para a cela a transportá-lo.
Dispensam todo o cuidado,
Lhe arejam todo o ambiente,
Água fresca, leite coado...
Quando abre os olhos, em frente,
Um monge, a verificar
Se a mente tem no lugar
Perguntou: - ”Tu me conheces?
Saberás dizer-me a quem
Este leite que apeteces
Deverás por fim também?”
- ”Sim, sim,” - logo o enfermo anuiu -
“Àquele que me bateu.”
Trolha
Houve certa vez um trolha
Que, se um bocado de massa
Cai no nariz donde a colha,
Logo a um colega, com graça,
Pede que com a colher
Lha tire em golpe a correr.
O companheiro cumpria,
Sem olhar, sem apontar,
No ar a colher assobia
O bocadinho a arrancar.
O trolha não há mexido,
Nem sequer estremecido.
Foi um príncipe informado
Desta proeza inaudita.
Ao trolha envia um mandado
E pede-lhe que repita
Perante ele a habilidade
De que se mal persuade.
-”Lamento, mas é impossível.”
- ”Porquê?” - ”Porque já morreu
Aquele trolha impassível
Que sempre a mim mo pediu.
Hoje mais ninguém alcança
Que eu tenha tal confiança.”
Zen
Um mestre zen com mais dois
Dos discípulos caminha
Pelas veredas de sóis
Dum jardim florido e vinha,
Num insecto a reparar,
Um perfume a respirar...
Chega ao termo do carreiro,
Voltou-se para o jardim
E afirmou com ar matreiro:
- ”Sem pisar caminho, assim
Caminhei, sem pisar terra,
Só agora é que o pé me aterra.”
- ”Eu também” - disse o primeiro
Dos discípulos, facundo.
- ”Eu também não” - justiceiro,
Completa assim o segundo.
Sesta
Nasredim dormia a sesta
Num jardim perto de casa,
Costume a que bem se apresta.
A vizinha, olhos em brasa,
Acorreu alvoroçada,
Sacode-o, descontrolada:
- ”Depressa, vem! De cacetes
Entraram homens armados
Em casa. Pagam-lhes fretes,
Que golpeiam os costados,
Sem paragem nem sentido,
Do pobre do meu marido.”
- ”E então? Fracote como é,
Não vão precisar de mim...”
Nem sequer se pôs de pé,
Adormeceu logo assim.
Filhos
Perguntam a Nasredim:
- ”Um homem de oitenta anos
Pode ter filhos ao fim?
-”Na condição...” - quentes panos
Quer Nasredim aplicar.
- ”Que condição tem lugar?”
- Ӄ que ele tenha em caminho
De vinte anos um vizinho.”
Enganar
A Nasredim vem contar
Um vizinho que a mulher
Dele o andaria a enganar
Com um padeiro qualquer.
Nasredim, que jovem era,
Mal a fúria contivera.
Agarrou logo um punhal
E atrás das árvores foi
Colocar-se ante o rival,
Junto à loja que lhe dói.
Da ira fúrias lhe dão,
Bate os pés, punhal na mão.
Cai a chuva miudinha.
Ao sentir gotas na cara,
Da verdade comezinha
Se lembra que em si dispara:
- Há muito não tem mulher,
Vive só, nenhuma quer!
Frango
A mulher de Nasredim
Um belo frango assa à noite,
Lume em lenha e alecrim,
Senta-se à mesa onde a acoite
O marido bem disposto,
Com ele a comer com gosto.
- ”É bem pena” - diz então
Nasredim tal para si -
“Sermos tantos ao quinhão,
Tão numerosos aqui.”
- ”Numerosos?!” - a mulher
Não está mesmo a entender.
- ”Preferia – vè, não mango -
Ser apenas eu e o frango...”
Gato
A solteirona sozinha
Vive apenas com um gato.
Dispende horas na cozinha
Matando o tempo pacato,
Em frente à televisão
Que vê distraída então.
O gato acariciando
Às vezes junto à lareira,
Vai memórias recordando,
Devaneios de solteira.
De vez em quando murmura:
- ”Se mudasses de figura...
Se pudesses transformar-te
Já no príncipe encantado
Que espero de qualquer parte,
Há tanto tempo contado!”
Um dia, o milagre opera:
A transformação se dera.
O gato desaparece.
Diante da solteirona
Está um jovem que esclarece
Que é um príncipe vindo à tona.
Soberbo, respandecente,
Veste magnificamente.
Olha-a com sorriso amargo
E diz-lhe, como a hesitar:
- ”Que bom seria este encargo!
Mas mandaste-me capar...”
Erudito
Era um homem erudito,
De grande reputação.
Recebe um outro, esquisito,
Que o nunca larga de mão,
Serve um pretexto qualquer
Seu conselho a recolher.
- ”Posso ir a tua casa?”
- ”Podes, claro” - ele responde.
- ”Um problema que me arrasa
Tenho, vindo não sei donde.
Esta tarde posso ir?”
- ”Se quiseres, é só vir...”
O homem não se coibia
De o visitar, cada vez
Mais frequentemente iria,
Por razões de tal jaez
E por tão fúteis motivos,
Tão vazios, tão esquivos
Que um certo dia o erudito
Perdeu mesmo a paciência,
A ponto de lhe ter dito:
- ”E se tu, na minha ausência,
Em vez de vir todo o dia,
Em prol duma ninharia,
Procurar-me em minha casa,
Resolvesses, ao contrário,
Por quanto, afinal, te arrasa,
Procurar, antes, sumário,
Vir-me a casa em tua casa?
Findava-se-te o calvário...”
Bascos
Vão dois bascos num comboio.
Durante um grande bocado,
A cada o silêncio mói-o,
Frente a frente ali sentado,
Olhando de vez em quando
Paisagens que vão cruzando.
A dada altura, o primeiro
Pergunta: - ”Tu, tu donde és?”
- ”De Bilbau. E tu, parceiro?”
- ”De San Sebastian, já vês.”
- ”E que fazes de trabalho?”
- ”Sou músico quando calho.”
- ”Também eu. E que instrumento
É que tocas, afinal”
- ”Violino é quanto tento.”
- ”Também eu, é o principal.”
Fica um nada a meditar
E torna então a falar.
- ”Ao tocar na catedral,
As lágrimas vão correndo
Da imagem, da principal
Da Virgem, no altar se vendo.”
Após um silêncio curto,
Responde o outro, num surto:
- ”Quando na igreja toquei,
Cristo até desceu da cruz,
Veio até mim. Quando dei
Por ele, diz-me Jesus:
'Deixa-me, irmão, abraçar-te!
Tocas com uma tal arte
Que és mesmo muito melhor
Que o estúpido que põe
Minha mãe chorando um ror
Em Bilbao, ao que supõe!'”
Burros
Um homem que burros vende
Lá no terreiro da feira
Vê que o mesmo, ao fim, pretende
Nasredim à sua beira,
De metros a umas centenas
Já de venda a encenar cenas.
Só que os vende mais baratos
Do que o mercador consegue.
Descontente com tais tratos,
Comprar em conta persegue,
A roubar aos criadores,
Dos preços baixando os teores.
Mas burro de Nasredim
Sempre é de preços mais baixos.
Furioso, o outro, enfim,
Corta na aveia, nos sachos...
E os de Nasredim, nos tratos,
Continuam mais baratos.
Reduz paga aos empregados,
Despede uns, batota faz...
Nasredim, nos burros dados,
Nunca, porém, fica atrás.
O mercador já vender
Não consegue, é só perder.
Quando acaba a paciência,
Vai ter com o afortunado
Rival e diz-lhe, na essência:
- ”Como é que fazes, danado?
Não logro vender os meus
Burros ao preço dos teus.
Roubei os fornecedores,
Os criadores roubei
E também os mercadores
De aveia que lhes tirei...
Como é? Trata-los a murros?...”
- ”É simples: eu roubo burros.”
Turco
Um turco tenta evitar
Desesperado que caia
Um burro por um algar,
A cauda a agarrar sem baia.
O burro agitadamente
Bate os cascos que mal sente,
Sem nada a que segurar-se.
Tal homem, com toda a força,
Agarra-se até que esgarce,
Pedindo ajuda que torça
O destino malfadado,
Que os santos olhem seu fado.
Chama em auxílio os profetas,
Moisés, Abraão, Jesus,
Que importam de igreja as setas?
Aqui não há mais tabus:
- ”Acudam! Se o burro cai,
Atrás a vida me vai...”
Os músculos crispa, as mãos
Cedem, que já não aguenta,
Vai ter de largar, são vãos
Os esforços que ele tenta.
No instante em que o burro cai:
-”Santos, ai, vos abrigai,
Que eu aqui, mesmo casmurro,
Eu findei largando o burro!”
Parteira
Quando à luz dava a mulher,
Nasredim se preparava
A sair, como quem quer
Passear na terra brava,
Mas a parteira lhe disse
Que não, não, que não saísse.
- ”A ajudante está doente,
Anda,vais substituí-la.”
Nasredim quer, veemente,
Protestar, mesmo à má fila.
Fez que a parteira ordenasse,
Cogente, que ali ficasse.
Na mão pôs-lhe a vela acesa
E disse-lhe, autoritária:
- ”Tens só de mantê-la presa,
Dar-me dela a luz sumária.”
Trémulo, então, Nasredim
Viu chegar o serafim
Do primogénito filho.
Ia-se logo afastar
Mas a mulher diz, com brilho:
- ”Não, não! Terás de esperar.
Vem outro aí, acho eu...”
E Nasredim então viu
O gémeo vir do primeiro.
Rápido a vela soprou.
- ”Que fazes, ó mau parteiro?
Alumia! Cega estou...”
- ”Desgraçada! Daqui sai,
Que esta luz é que os atrai!”
António
António, pândego alegre,
Inventor de patacoadas,
Qual a melhor que se integre
Em refeições bem regadas,
Enfrenta a questão que sobre:
Que é que no homem é o mais nobre?
Um dos parceiros sustenta
Que eram olhos, outro, a fronte,
No coração outro assenta,
Outro à mente abre horizonte...
Depois cada qual explica
As razões de sua dica.
António prefere a boca,
Logo outro o ânus escolhe.
Porque este tal parte invoca
O espanto de todos colhe:
- ”Por uso, tal honra assenta
No primeiro que se senta.”
Aplaude então toda a gente,
Fica António derrotado.
Remói no caso pendente
E, após um tempo passado,
Voltam a ser convidados
A um banquete os dois visados.
Encontra António o rival
Que estava ali de conversa
Enquanto não vem sinal
Do jantar que a reunião versa.
Vira costas, ergue o fraque
E solta um sonoro traque.
O rival fica indignado,
Diz de António: - ”Grosseirão,
Rústico mal engendrado!
São tais modos teus então?!”
- ”Porque te zangas?” - responde -
“És mais nobre, afinal, onde?
Se a boca, o mais nobre em mim,
É que em mim te cumprimenta,
Respondes-me amável, sim.
Cumprimenta-te o que assenta,
Que é para ti o mais nobre
E ficas zangado?! Pobre!”
Alemanha
Na Alemanha, um mestre-escola,
Finda a guerra mundial,
Na turma a questão recola:
- ”Porque a perdem, no final?”
Um aluno, o mais reguila,
Responde, do fim da fila:
- ”Pelos generais judeus!”
- ”Mas nós nem tínhamos cá,
Nos crentes nem nos ateus,
Judeus generais, se os há!...”
- ”Pois não, nem cá se adivinham.
Eram os outros que os tinham!”
Indiana
Na tradição indiana,
Dos tempos lá pela origem,
O deus do sexo, o deus Kama,
Mãos à obra, com vertigem,
Deita pela criação,
A moldar o mundo à mão.
De sábios uns delegados
Vêm trazer-lhe oferendas,
Cantos em louvor entoados.
Porém Kama, em meio às prendas,
Desatou a rir com gosto.
Os sábios, a contragosto,
Surpresos, desiludidos,
Perguntaram-lhe a razão
Dos risos descomedidos.
- ”Os que aqui vêm e vão
Tentando agradar com ritos,
É de rir, na cara fitos.”
- ”Então e quanto aos demais?”
- ”Se alguém que for ponderado
Do mundo busca os sinais,
Da razão-saber armado,
Rio-me na cara dele.”
- ”E se é o amor que o impele?”
- ”Se um sensato ou insensato,
Malévolo ou virtuoso,
Me diz que busca num acto
De amor o mais fundo gozo,
Na cara dele me rio,
Tal com os mais, de fastio.”
- ”Mas porquê?!” - estupefactos,
Perguntam os sábios todos. -
“Por que razão a tais actos
Reages tu com tais modos?!”
E Kama, ante as questões dadas,
Desatou às gargalhadas.
Judeu
David, o judeu, dá voltas
Na cama e não adormece.
A mulher perguntas soltas
Lança a ver que é que acontece
E ele acaba a confessar:
Um dia após, de entregar
Tem uma soma ao vizinho
Jacob, pois lha deve, e não
A tem, nem nada a caminho.
A mulher ergue-se então,
Abre a janela e, sem dó,
Chama na noite: -”Jacob!”
Do outro lado da rua
Acende-se a luz então,
Abre-se a janela à Lua,
Jacob grita à negridão:
- ”Que foi, mulher? Que é que queres?”
- ”É melhor já tu saberes:
O David não vai dar
O teu dinheiro amanhã.”
Volta a janela a fechar,
Vai deitar-se até manhã
E a David há murmurado:
- ”O Jacob fica acordado.
Tu podes, pois, meu rapaz,
Tu podes dormir em paz.”
Africana
Um missionário cristão
(Conta uma história africana)
Repreendia a tradição
Dum soba de terra arcana
Por, entre crenças e haveres,
Ter sempre duas mulheres.
Um dia encontrou o soba
E logo este vem dizer:
- ”Descansa, acabou a boba,
Já só tenho uma mulher.”
- ”Ainda bem” - o missionário
Diz, palpando o seu rosário. -
“E da outra que fizeste?”
- ”Comi-a” - retruca o chefe.
- ”O quê?! Comeste-a?! Comeste?!”
- ”Comi” - torna o magarefe.
- ”Mas porquê?! (Ai que é que eu fiz!)”
- ”Porque era a mais tenra” - diz.
7
Ao Serão de Sábado
Acordo
Era um homem que de acordo
Estava sempre com todos,
“Senhor-sim” em todo o bordo.
Sendo fraqueza de modos,
Um amigo diz-lhe um dia,
Contra tão tola mania:
- ”Vê lá se tomas emenda!
Devias não dizer “sim”
A evitar toda a contenda,
Nem tudo o merece assim.”
- ”Um sim eu nem sempre digo” -
Retorquiu ele ao amigo.
- ”Achas tu!” - ”Tenho a certeza!
Quando a minha mulher “não”
Afirma em algo que preza,
Também “não” eu digo então.”
Nápoles
Em Nápoles, uma dona
Insulta, insulta o marido.
Que é um cretino é o que lhe abona,
Cretino enorme e sabido,
Dos cretinos é o cretino.
- ”És tanto, que eu desatino!” -
Grita-lhe ela, a briga em curso, -
“Pois, se houvera de cretinos
Por acaso algum concurso,
Não irias cantar hinos,
Ficarias em segundo.”
- ”E porquê?” - diz-lhe, jucundo,
O sujeito a tal destino.
- ”Ora, porque és um cretino!”
Além
Morre um homem, ao Além
Chega e dá com um amigo
Que uma jovem bela tem
Do colo dele ao abrigo.
- ”Olha-me esta!” - diz e pensa: -
”Ela é tua recompensa?”
- ”Não, não! Vês mal a sequela:
Eu sou o castigo dela!”
Conversa
Nasredim tagarelava
Com vários amigos dele.
A conversa em breve dava
Num sábio que a culto apele,
Mas que era muito emproado...
Nasredim não há gostado.
- ”Porque é que dele não gostas?”
- ”Não gosto porque ele é parvo.”
-”Parvo?! Perdes as apostas.
Quanto mais por ele escarvo,
Mais vejo que sofres mínguas:
Ele fala sete línguas!”
- ”Está bem, vejo ao que apelas,
Mas é parvo em todas elas.”
Áustria
Nos tempos da guerra fria,
Uma cortina de ferro
A Europa dividia,
O comunismo no aferro,
Sempre encerrando a fronteira,
Não vá escapar algo à joeira.
Mas um jovem checo obteve
Milagrosa permissão
Para, em Viena de Áustria, breve
Ter uns dias de verão.
Logo na primeira noite
Foi a um bordel que o acoite.
Uma madame arrogante
Dá uma olhadela à roupinha
Que é socialista o bastante
Perguntando-lhe ao que vinha:
- ”Como é que estás de dinheiro?”
- ”Cinquenta coroas cheiro.”
- ”Cinquenta coroas checas?!
Dá para te masturbares
Sob a ponte para as cuecas...”
E a porta, nos alizares,
Lhe fechou logo na cara.
Minutos após, repara
Que o jovem lá retornou.
Abre-lhe a porta outra vez.
A mulher lhe perguntou:
- ”Que vais querer tu, freguês?”
Responde ele, humildemente:
- ”Vim só pagar, no presente.”
Mobilizado
Nasredim mobilizado
Foi com a mais soldadesca.
Quando à batalha hão marchado.
Um soldado, cara fresca,
Que ao lado dele seguia,
Viu que a aljava ia vazia.
- ”Não tens flechas?” - perguntou.
- ”Não.” - ”E para a guerra vais
Sem flechas quando soou
A batalha? Com que sais
A combate?” - ”É que inimigo
Dispara flechas. Consigo
Apanhá-las. Vou servir-me
Delas para lhe atirar.”
- ”E se ele as não lança, firme?”
- ”Então hás-de reparar” -
Diz Nasredim, não se aterra -
“Que em tal caso não há guerra.”
Acampamento
Nasredim, no acampamento,
À noite, numa campanha,
Ouve os comparsas atento
A gabar muita façanha:
Este tinha derrubado,
Seis cavaleiros matado,
Apesar dos ferimentos,
Tinha o outro no seu rasto
Quinze mortos, uns portentos,
Um terceiro aumenta o pasto
E assim todos por diante,
Não há quem lhes passe avante.
- ”E tu?” - perguntou alguém.
- ”Eu cá cortei uma perna
A um guerreiro mais além,
Mas era a besta superna...”
- ”Não lhe cortaste a cabeça?”
- ”Tinham cortado tal peça.”
Cairo
No Cairo, em pleno mercado,
Lado a lado estão três lojas
Que vendem por atacado
Tudo igual quando as despojas.
A um egípcio pertencia
A da esquerda, a olhar da via;
A do meio, a um judeu;
A direita, a um libanês.
O egípcio lá conseguiu
Ser primeiro certa vez,
Nem sequer comera os caldos,
Mas na montra escreve: “Saldos”.
Chega o libanês mais tarde,
Vê o cartaz, escreve à entrada,
Sem dar parte de cobarde,
Em letras de mor fachada:
É “Liquidação Total”.
O judeu apareceu,
Viu então os dois cartazes,
Pensa um pouco e lá escreveu,
Em caracteres capazes,
Sobre a porta, a dar sinal,
Isto: “Entrada Principal.”
Judias
Se encontram duas judias
Que há que tempos se não vêem,
Aos abraços de alegrias
Como há muito já não têm.
- ”Então, Sara, novidades?”
- ”Ai, Raquel as necedades
Que tenho por te contar!
Para já, duas notícias
Terei, para começar,
Boa e má, mas sem malícias.”
- ”Qual a má?” - diz a Raquel,
Arrepiada logo a pele.
- ”Tu lembras-te do meu filho,
Do Samuel?” - ”Que idade tem?”
- ”Trinta e dois. E vê o sarilho:
Homossexual é também.”
- ”Oh desgraça das desgraças!
Em teu lugar como passas?
Mas diz-me lá então, ó Sara,
Tens uma notícia boa?
Na boa melhor repara,
Senão ficamos à toa.
Dela posso saber eu?”
- ”O namorado é judeu.”
Anos
A judia oferta ao filho
Que hoje faz dezassete anos
Duas gravatas de brilho,
Rubros e amarelos panos.
Logo o filho experimenta
A vermelha que o mais tenta.
Faz o nó, vê-se ao espelho
E a mãe logo, na sequela,
Vendo-o todo de vermelho:
- ”Que tens tu contra a amarela?”
Mães
Em cena, três mães judias
Falam de seus filhos ternos.
- ”Pois o meu, todos os dias
Me retira a meus infernos.
Busca-me cada semana,
Dá presentes, não se ufana...”
- ”O meu” - a segunda diz -
“Duas vezes por semana
Me visita mui feliz,
De pele que não engana
Me ofertou um bom casaco,
Todos os dias um naco
De belas flores me envia,
É mesmo um amor de filho.”
- ”Ora, o que é isso, hoje em dia?
O meu atou um cadilho:
Vai por semana três vezes
A um amigo com reveses
A quem pagará sem fim,
Só para falar de mim...”
Moisés
Um mestre-escola pergunta:
-”Quem é Moisés?” E um aluno
Logo a resposta lhe junta:
- ”Era o filho que coaduno
Com uma egípcia princesa,
É dela o filho que preza.”
- ”Não é, não” - diz o docente. -
“A mãe dele era judia.
Encontrou, benevolente,
A princcesa, certo dia,
O bebé numa cestinha,
Na correnteza maninha.”
E o outro, erguendo o nariz:
- ”Isso é o que a princesa diz...”
Casada
Uma judia casada
Há cerca dum ano ou mais
Vivia desesperada
Por ter atenções reais
Do esposo que só na mãe
Pensava que perto tem.
A mãe era a referência
E a esposa, apesar do esforço
Por distrair com veemência,
Vestir bem e sem remorso,
Cozinhar bem o que ganha,
Sente-se sempre uma estranha.
Por sua mãe vive o marido,
Vive para a mãe também.
A jovem não vê sentido,
Confessa a amigas que tem.
- ”Vê se tentas seduzi-lo,
Arma nossa, em grande estilo.
Calças umas meias pretas,
Bem como um preto espartilho,
Combinação, curvas, rectas,
Tudo de negro e com brilho,
A luzir e, então, deitada,
Aguardas dele a chegada.”
A esposa segue os conselhos
Das amigas, se prepara.
Do marido eis os artelhos,
Abre a porta, olha e dispara:
- ”De preto?! Coisa malsã
Aconteceu à mamã!”
Cincinnati
De Cincinnati a judia
Velha dirigiu-se um dia
De viagens a uma agência
Por um bilhete de urgência
Para Katmandu, Nepal,
Seu destino principal.
Quer da agência o director
Dissuadi-la, custa um ror,
Falou-lhe até da distância,
Das deslocações, com ânsia,
Mesmo do preço elevado
E tudo sem resultado.
Foi-se. Em Katmandu apanha
Transporte que a custo ganha
Um mosteiro lá bem alto,
Da montanha num ressalto.
E, no fim, ainda teve
A caminhada na neve.
Um guru muito famoso
Era do mosteiro o gozo,
Até previa o futuro,
Em milagres tinha apuro,
Palavras de compaixão
Que a vida iluminarão.
A judia americana
Quer-lhe a presença com gana.
Espera pacientemente
Na mole imensa de gente.
Pauzinhos de incenso queimam
Os que numa audição teimam.
Quando ao fim alguém a leva
Por um corredor de treva
Onde os monges, sem engano,
Salmodeiam tibetano,
Dizem-lhe que só uma frase
Lhe pode falar, de base.
Ela aceitou, descuidada,
Fique a turba descansada.
Levaram-na então diante
Do guru, estátua infante.
E, de olhos semi-cerrados,
Tira-se ela de cuidados:
-”Basta, Salomão! Agora
Vamo-nos daqui embora!”
Cegonha
A cegonha é uma ave impura,
Numa tradição judaica.
Mas, hassida, o afecto a cura,
Ama os seus, nada prosaica.
- ”Como é que se explica” - um dia
Pergunta uma mãe judia -
“Que se diga que a cegonha
Ama os seus e, no entanto, ela
Se conte dentre a vergonha
De aves impuras na tela?”
Diz o rabi, mãos aos céus:
- ”Porque ela só ama os seus.”
Herança
Um judeu lá da Polónia
Recebe de herança casa
Rodeada, com cerimónia,
Dum prado com que bem casa.
Para imitar os vizinhos,
Mesmo sem ver os caminhos
Nada sendo camponês,
Começa comprando um toiro
Que no prado põe: é a rês.
À feira, com algum oiro,
De Minsk foi comprar vaca
Que no prado pôs de estaca.
O toiro, mal viu, se atira
À vaca, mas ela o evita
E foge, se o tem na mira.
Vezes sem conta, igual fita,
Ele sempre a persegui-la
Sem a apanhar à má fila.
O homem fala ao rabino,
Desistindo de juntá-los,
Conta-lhe o caso mofino:
- ”Mal das patas ouve estalos,
Se ele investe da direita,
Logo a vaca à esquerda é atreita,
Mas se é da esquerda que vem,
Pela direita se escapa.”
O rabino então se atém
Longo tempo a pôr a capa
E, por fim, sereno, diz:
- ”Compraste a vaca, infeliz,
Em Minsk onde tens o tino?”
- ”Como vieste a saber?!”
E responde-lhe o rabino:
- ”De Minsk é a minha mulher.”
Israel
De Israel Chefe de Estado,
Ben Gurion pelo Mar morto
Caminhava, encabulado,
Quando uma garrafa, absorto,
Pousada avista na areia,
Dum velho mistério cheia.
Nela pegou, abre-a e jorra
De lá um fumo que se eleva
Para o céu, forma uma gorra,
Depois um génio de treva,
Enquanto em voz de trovão
A bem Gurion diz então:
- ”Livras-me dum cativeiro.
Formula, pois, um desejo,
Concedo-to por inteiro..”
- ”Só não vejo algum ensejo
De haver a paz verdadeira
Com povos à nossa beira.”
Pensa o génio no problema
Que lhe era posto e, por fim:
- ”Perdoa, mas esse tema
Excede quanto haja em mim.
Formula um outro desejo,
Que eu concedo-to, prevejo.”
- ”Faz com que a minha mulher
O prazer da felação
Me venha à noite a fazer,
Quando eu chegar, ao serão.”
O génio fica a pensar
E acabou por perguntar:
- ”O teu desejo, afinal,
O primeiro, fora qual?”
Cão
No cinema um homem fica
Sentado ao lado dum cão.
Do outro lado pontifica
Deste o dono, na sessão.
O cão segue o filme inteiro
Com interesse cimeiro,
Ele ri quando é de rir,
Chora quando é comovente.
No fim é vê-lo a aplaudir
Com duas patas da frente.
O homem se inclina então
Dizendo ao dono do cão:
- ”O seu cão é formidável!
Como ele o filme seguiu
E apreciou! Admirável!”
- ”Pois, o espanto” - o dono anuiu -
“É que do livro, de entrada,
Ele não gostava nada.”
Maesh Das
Traça pelo chão, a giz,
Uma linha um cortesão.
A Maesh Das lhe diz
Que encurte essa linha então
Sem a tocar e apagar.
Limita-se ele a traçar
Uma linha mais comprida
Junto à primeira, em seguida.
- Se em tal tempo Einstein vivera
Que prazer isto lhe dera!
País de Gales
Nos finais da Idade Média
Houve no País de Gales,
Na selva de caça nédia,
Uma fonte em fundos vales
Tal que o que a mira mudara
De imediato ali de cara.
Às vezes nem davam conta,
Seguiam pela floresta
Tendo a sede morto à tonta,
Só que então já ninguém resta
Que os possa reconhecer.
Vinham após então ver
Que tinham perdido o aspecto:
A fonte havia roubado
Olhos, orelhas, o recto
Cabelo, o nariz talhado
E por outros os trocara
Agora na nova cara.
O fenómeno durou
Por cerca de dois decénios,
Muito tempo perpassou
Até notar-se-lhe os génios,
Tanto mais que inofensivas
Há por lá nascentes vivas.
Quando foi assinalada,
Um número muito grande
De gente desengraçada
Lá foi, à espera que mande
Trocar-lhe pela beleza
A feiura que despreza.
Tanto pode acontecer
Como acontece o contrário:
Um homem mirou-se, a ver,
E o que viu foi um sudário,
A cara virou caveira,
Os dentes alvos à beira.
O dono de tal floresta
Mandou chamar os doutores,
Teólogos, quem mais presta...
Dissertam, graves, penhores
Compram com mil orações
E vão-se sem soluções.
Nenhum deles se debruça
Sobre tal água que pode
Mostrar o inferno que embuça.
A aparência lhes acode
Como bem satisfatória,
Doutra não querem a glória.
Há curas miraculosas
Mas crassos também fracassos.
Recomendam-se-lhe as glosas
Ou proíbem-se os espaços?
A fonte detém caprichos
Conforme o humor de seus nichos.
Padres fazem exorcismos,
Invocam lugares santos...
Tudo em vão, ante os abismos
Donde corre a fonte em prantos.
Vem um dia um saltimbanco,
Veste andrajos, mas de branco,
Vende poções milagrosas,
Poemas recita escuros,
Anedotas escabrosas,
A saltitar pelos muros
E que ninguém conhecia,
Nem sequer donde viria.
Antes de se debruçar
Por sobre as águas da fonte,
Lembrou-se de afivelar
Uma máscara que conte
Com nariz, lábios espessos,
Dentes pretos, podres gessos...
Debruçou-se sem temor
Sobre as águas, levantou-se:
Tem a máscara o palor
Dum Apolo, embelezou-se.
Quanto à cara do bufão,
Por baixo, nem beliscão.
O homem jogou a caraça
Ao regato que a levou,
Vai-se embora, achando graça,
À gargalhada abalou.
Perdeu a fonte o poder,
Já ninguém mais a vai ver.
Tuaregues
As saarianas lendas,
Entre os tuaregues mormente,
Narram que, por entre as tendas,
Apareceu, de repente,
Um estrangeiro à ventura
Que, pela areia insegura,
Quer ir só, com um camelo,
Mais algumas provisões,
Um odre de água com selo,
Mapa, bússula, ilusões.
Seguro de seu caminho,
Dos poços quer-se adivinho.
Qualquer conselho prudente
Despreza e, certa manhã,
Parte à sorte, para a frente.
No princípio, com afã,
Assaz tudo corre bem,
Solidão nunca o detém.
Porém, ao terceiro dia,
Começa a preocupar-se,
Duna a rocha sucedia
Sem que horizonte o disfarce.
Não parece progredir:
“Ando às voltas sem sair?”
Ao quarto dia não tinha
Víveres e no cantil
O fundo já se adivinha
E a ração nem vale um til.
No quinto dia, as imagens
São vertigens e miragens.
Sentiu então, de repente,
Atrás a respiração
De alguém posto, ali presente,
Do camelo na armação.
Voltou-se, sem crer na intriga,
E ali estava a rapariga
Atrás dele bem sentada,
Sorridente, mui morena,
Véstia de brancura armada,
Pés descalços, que lhe acena.
- ”Quem és tu?” - pergunta ele.
- ”Que importa?” - a questão repele. -
“Não te quero incomodar.”
- ”Nada. Viajas sozinha?”
- ”Sempre só. Pode levar
Teu camelo os dois em linha.
Eu sei disto e sou leveira.”
- ”Teu nome?” - já se ele abeira.
- ”Nunca costumo dizer
O meu nome, vai andando.
Daqui a pouco vais ver
Quem eu sou, adivinhando.”
A marcha o homem prossegue
Que mais deserto lhe agregue.
O camelo parecia
Pouco sensível à carga
Suplementar que trazia.
A passada desembarga
Parando de vez em quando
Comendo ervas que há secando.
Ao homem tolda-se a vista,
Tosse, cospe, procurava
As referências da lista
Em redor. Nada acertava.
Admite, em palavras meias,
Que se perdeu nas areias.
- ”Tu bem vês que estou perdido
E cantas despreocupada.
Não tens alforge provido?”
- ”Não, não preciso de nada.”
- ”Diz-me quem és, por favor,
Que eu nada tenho. É um horror!”
- ”Agora posso dizer.
Tu não me reconheceste?
Sou a sede. De beber
Se um viajante não se ateste,
Quando já não tiver nada,
Eu faço a minha chegada,
Dou-lhe minha companhia,
Tal é sempre o meu papel.”
- ”Mas és viva?! Quem diria?!”
- ”Aquele a quem seca a pele
Poderá dizer que sim:
Sou dos vivos, mesmo assim...”
- ”Podes viver sem beber?”
- ”A sede não bebe, dá
De beber ânsia a quenquer,
Constante lembrando-a está.
Porque havia de beber?
Também a fome não come,
Nem frio fogo há que tome.”
Garganta de areia e sal
Já tolhia lentamente
O viajante terminal,
Já compreensão nem sente...
...Vê só a moça se escapando
E o camelo tasquinhando.
Guatemala
Diz a antiga crença maia
De aldeias da Guatemala
Que, à morte, o corpo desmaia,
Desintegra-se na vala,
A nossa sombra, porém,
Continua terra além.
E, sobretudo de noite,
Vagueia meia perdida,
Meia incônscia do que a acoite,
De ameaças perseguida:
De sombras um caçador
Pode vir delas dispor.
Tais caçadores ferozes
Às sombras recalcitrantes
Encurralam-nas, atrozes,
Contra a vontade que hão dantes
Levam a presa forçada
Lá para a terra do nada.
Mas neste mundo há um lugar,
Da Guatemala num monte,
Onde as sombras encontrar
Refúgio podem na fonte:
É gruta profunda, escura,
A quilómetros de altura.
Quando qualquer corpo morre
Em qualquer lugar da terra,
Separa-se a sombra e corre,
Buscando a gruta na serra.
Tal qual ave migratória,
Segue indícios de memória.
Ao longo deste caminho
Que pode demorar anos,
O caçador adivinho
Usa armadilhas e arcanos
E muitas vezes consegue:
Captura então quem persegue.
Umas chegam a bom porto,
Juntam-se às que se escaparam.
Montanhês que, por desporto,
Trepe à gruta que visaram
Ouve um roçagar nos pegos,
Como milhões de morcegos.
Sombra às sombras se amontoa
Naquele lugar do mundo.
Há tempo ou tudo anda à toa?
É um eterno antro infecundo,
Purgatório de verdade,
A pausa da eternidade.
Na mais vulgar armadilha,
O caçador escurece
O Sol que pelo céu brilha
Antes que a noite aparece,
Leva as sombras a pensar
Que podem sair, passear...
Uma vez um caçador,
Entre os ferozes feroz,
Duma africana o fulgor
Cobiçou de amor atroz.
Logrou, com um sortilégio,
Tirá-la ao refúgio régio
Quando o sol alto escandia.
Ela aproveita a paragem
Para se lavar na ria.
Fica nua nesta viagem.
O caçador, deslumbrado,
A fera em si põe de lado.
As regras viola do Além,
Tratando então de a salvar.
Roupas berrantes convêm,
Chega-lhe o rosto a velar,
Levou-a, no tempo certo,
Para um canto do deserto.
É mulher toda velada
No Iémen, ruas de Sana,
Sombra como as mais na estrada
Que o véu cobre, não engana.
Convence a sombra ao raptor
De a qualquer perseguidor
Escaparem juntamente.
O mar então atravessam
Da caçada sempre à frente,
Escapam aos que aparecem,
Na corrida sem escala
Alcançam a Guatemala.
Chegados perto da gruta,
Está o caçador cansado,
A sombra já não disputa,
Quer um canto sossegado:
Para a gruta ela fugiu
E ele atrás logo a seguiu.
Roménia
Em Bukovice, Roménia,
Contam muitos viajantes,
Com atestado e com vénia,
Que cruzaram, hesitantes,
Uma aldeia sem fim que há
Em terras de algures lá.
São casas tradicionais
Dum lado e doutro da estrada,
Com uns motivos florais
Pela madeira pintada.
Por trás há um quintal plantado,
Fruteiras, tudo arroteado.
De carruagem ou a pé,
De automóvel hoje em dia,
Na aldeia tomamos pé
Como em qualquer se faria.
Avistam-se aqui, além,
Habitantes, sempre alguém.
Passados alguns minutos,
O viajante repara
Que a aldeia, além dos produtos,
Tem uma lonjura rara,
Alonga-se sem parar,
Parece nunca acabar.
Para cruzá-la há turistas
Que demoram mais dum mês.
Mesmo os automobilistas,
Quando ao fim chegam de vez,
Reparam que a luz do dia
Foi-se e a noite se anuncia.
Muitos param, admirados,
A pedir informações.
Porém, de todos os lados,
Sorriem a tais tenções
E, com simpáticos gestos,
Não falam de seus aprestos.
Muitos buscam encontrar
Nome e localização
De aldeia tão singular
Nos mapas da região.
Ninguém identificá-la
Logrou em nenhuma escala.
Há testemunhos aos centos
De que, num ponto da aldeia,
De “déjà vu” sentimentos
Fica-nos a mente cheia.
Os viajantes reconhecem
Casas que lhes aparecem,
Tal se a aldeia recomeça
Várias vezes ou sucede
Uma a outra, peça a peça,
Sempre igual à que a antecede.
Fotografias tiradas
Saem sempre desfocadas.
Mais estranho é que nalgumas
Só vejamos terra arada,
Árvores, casas nenhumas...
Muita comissão nomeada
Foi para ver do mistério:
Nenhuma o resolve a sério.
Os últimos escolheram
Fugir de vez da Europa.
Um não fez o que fizeram
E a estrela sob esta copa
É que acabou internado
Numa clínica, acabado.
Por fim, muitos, concordantes,
Dizem que a aldeia sem fim
Não se encontra como dantes
No mesmo lugar assim,
Que, ao sabor das estações,
Se desloca entre nações:
Um a viu em Bukovice,
Outro, porém, na Moldávia,
Na Transilvânia alguém disse
Que a viu dum cesto de gávea
E um, enfim, até veria
Tal aldeia em meio à Hungria...
Parvati
A jovem adoradora
De Parvati, par de Shiva,
Na Índia proposta fora
Para o serviço da diva
Num dos templos consagrados.
Dos deuses no panteão dados
Punha Parvati acima,
O tempo dava à oração,
Cuida de altares, se arrima
Às estátuas desde o chão,
A colher e arranjar flores,
Varrendo o templo de odores,
Distribui pão aos mendigos,
Observa todo o ritual.
Nas festas, sai dos abrigos
Dos bailados ao sinal,
Junta-se às mais bailarinas,
É Ambalika em nome e sinas.
Ao fazer vinte e três anos,
Conheceu lá no recinto
Um peregrino. Fez danos
Seu olhar onde pressinto
Das profundezas o brilho:
Foi da paixão o rastilho.
Ambalika bem lutou
Contra a emoção que sentia
Mas depressa adivinhou
Que o rapaz a compartia.
O jovem persuadiu
E Ambalika consentiu.
Antes da noite da fuga
Dirige à deusa a oração,
Que entenda porque madruga,
Perdoe-lhe o coração.
Jeito arruma clandestino,
Vai ter com o peregrino.
Viveram juntos seis anos,
Têm dois filhos e a usura
Da vida provocou danos,
Vai matando com secura.
A atracção já se esboroa
E ele vai-se embora à toa.
Sozinha com os dois filhos
Ambalika enfrenta a vida,
Do campo lavra os sarilhos,
Perde um filho de seguida,
Outro homem que a conquistou
Meses após a largou,
Roubou-lhe o pouco dinheiro
Que ela lograra poupar...
A vida inscreveu-lhe inteiro
O inferno que tem vulgar.
Decidiu voltar então
Ao templo deixado em vão.
Quando ao templo após chegou,
Já tantos anos mais tarde,
Algo estranho constatou:
Todos, sem qualquer alarde,
Brâmanes e sacerdotes
A acolhem com os seus dotes,
Como se a tivessdem visto
Somente umas horas antes.
Saúdam-na, tal previsto,
Chamam-lhe o nome, constantes.
Ausência ninguém a sente,
Tudo é como antigamente.
Ambalika não pergunta
Mas a deusa interrogou.
Parvati ao sonho junta
Uma apsará que falou:
-”Parvati bem conhecia
Que voltarias um dia.
Assumiu tua aparência
E cumpriu tuas funções.
Varreu, perfumou de essência,
Engrinaldou os balcões,
Dançou, acolheu com hinos
E orientou peregrinos.
Ninguém da substituição
Se pudera aperceber.
Retomas tua função,
Ela, a sua e a correr
Tudo, enfim, ficará bem.”
Ambalika acorda e vem
O milagre agradecer
Em segredo realizado.
Retoma o que haja a fazer.
Porém, ao varrer um lado
Duma das salas a cargo
Notou que um tapete largo,
Num recanto mais escuro,
Parece inchado, uma bossa
Grande ali subia em muro.
Levanta o tapete a moça
E vê que há muito que alguém,
Por preguiça ou por desdém,
Se limita a empurrar lixo
Por baixo do tal tapete
Que ali só já cria bicho,
Em lugar, como compete,
De com a pá o apanhar
E para fora o levar.
De cólera então fremente,
Pousa Ambalika a vassoira,
Despe a bata competente,
Sem olhar quem a desdoira
Abandonou, com a ira,
De vez templos de mentira.
África
Havia duas aldeias
Frente a frente, junto a um rio,
Em África, como ameias
Que se olham em desafio.
Os remoinhos constantes
Impedem os habitantes
De fazer a travessia.
Crocodilos e serpentes
Venenosas de vigia,
Maus espíritos presentes
Aumentam o isolamento
De quem ali toma assento.
Quando algum audacioso
Tenta dum ao outro lado
Ir do rio tenebroso,
A verdade é que voltado
Nem sequer houve jamais
Nenhum de partida ao cais.
A aldeia de Ogadaú
Olha ao longe Uadagô,
Aceitam, pois, o tabu,
Do terreiro vêem pó,
Fumo a subir das cubatas,
Do tal rio além das pratas.
Uma ou outra silhueta,
Barcos ao longo do rio,
Luzeiros na noite preta
E das relações o fio
Ficava, ao fim, por aí.
De Ogadaú, Bakari
De muito novo sentiu
O fascínio duma aldeia
Que nunca alguém atingiu,
Horizonte a braça e meia,
E deu consigo a sonhar
I-la um dia visitar.
Aos dezoito anos chegado,
Decidiu que é a sua vez
De desafiar o fado,
Cortar o rio através.
Muito cuidadosamente
Prepara o que tem em mente.
De noite cava a piroga,
Leva uma pagaia a mais,
Uma catana que advoga
Contra ataques eventuais,
Bem como alguns amuletos
Contra espíritos secretos.
Treinou o melhor que pôde
Na margem onde habitava,
Aos remoinhos acode
Onde o perigo rondava,
Adquire vera destreza
Nestes domínios que preza.
Ao sentir-se preparado,
De manhã, rompendo o dia,
Saiu do lar, açodado,
Lança-se ao que o atraía
E, para sua surpresa,
Foi a travessia ilesa.
Os rápidos e correntes
São menos assustadores
Que quando os vêem as gentes
Da margem sonhando horrores.
Houve umas sacudidelas
Que dominou sem sequelas,
Desembarca do outro lado,
Puxa a piroga na areia,
Caminha para o povoado:
É-lhe familiar a aldeia.
A mesma vegetação,
Iguais cubatas no chão,
Iguais árvores e terra,
As mesmas redes de pesca
Ao sol, sem sinais de guerra,
- É uma magia grotesca!
Os aldeões a sair
Começam, ao campo a ir,
Enquanto a mulher sacode
A esteira à porta de casa.
Bakari vê que então pode
Conhecer do lar a brasa:
Tais habitantes maninhos
São todos os seus vizinhos.
Um cão de pata partida
Que havia na sua aldeia
Ali vive a mesma vida.
Virou-se, deu volta e meia:
Será que ele se enganou
E ao mesmo lado voltou?
Um habitante da aldeia
Cumprimentou-o ao passar
Com seu nome em boca cheia.
Conhece-o bem, era o par
Mais antigo do pai dele.
Arrepia-se-lhe a pele.
Cada vez mais espantado,
Sente-se mesmo à vontade
Na ruela, em todo o lado.
É a vez primeira, é verdade,
Mas Bakari, de repente,
Entra em casa de sua gente,
Na que tinha abandonado
Umas poucas horas antes.
Hesitou em ter entrado,
Que a mãe viu, mãos bem constantes,
A varrer o chão em frente
E que o olhou, sorridente.
Perguntou-lhe donde vinha.
Bakari, num gesto vago,
Olha o rio da adivinha.
Para beber de água um trago
Entra na cubata então.
Dá com seu bebé chorão,
Sua esposa a dar-lhe o peito.
Não parece surpreendida
De o homem ver deste jeito.
Foi quem lhe trouxe a bebida.
O copo de água sorvido,
Ele adormece aturdido.
Bakari fica na aldeia
Que é de nome Uadagô,
Retoma o labor, semeia
Campos de que sabe o pó.
Reencontrou o seu cão,
As alfaias, dele o chão.
Está mais velho, há momentos
Em que pára, imóvel fica,
Os olhos presa dos ventos
Da aldeia que o mistifica.
Voltar lá por vezes pensa...
Mas o risco o rio adensa.
Sudão
No Sudão, as caravanas
Perdidas aparecer
Vêem, dentre as secas canas,
Quando esgotamento houver,
Uma enorme fortaleza,
A seco, em pedra e beleza.
Basta então bater à porta
Para abrir-se hospitaleira
E a entrar como que exorta.
Dentro, de alguma maneira,
Os viajantes fatigados
São logo retemperados,
Há uma fonte de água fresca,
Fruta, carne de carneiro,
Leite, chá, do rio pesca,
Tâmaras, figos – viveiro
De coxins, tapetes, loiças
Onde noite além retoiças.
Um único pormenor
Preocupa aos que o elegem
Para fugir do calor
Para os repousos que o regem:
Faltam quaisquer animais
E, de humanos, nem sinais.
Não se encontra castelão
Nem criado de servir,
Nem mulher vinda ao serão,
Nem criança a brincar, rir...
Nem sequer um cão se apanha,
Nem um lagarto ou aranha.
O local parece ter
Sido por um batalhão
Preparado para ser
De fantasmas um desvão:
Nem sombra, sopro ou ruído,
Nem de música um gemido.
E, quando os caravaneiros
Acordam de madrugada,
Estão no deserto inteiros,
De arbustos a cama armada.
De tapetes, vitualhas,
Nem sinal, nem de muralhas...
Contudo, tempos mais tarde,
Outros grupos noutros cantos
Contam com algum alarde
Ter vivido, em meio a espantos,
No desespero da viagem,
Aquela mesma miragem.
Conto
Ao avô que muito preza
A criança diz, cordata:
- ”Porque é que do conto a reza
Em 'era uma vez' sempre ata?”
- ”Para eu ter a certeza
De não me enganar na data.”
Majun
Majun, o louco de amor,
Dum dervixe é questionado:
- ”Que idade tens tu, senhor?”
- ”Mais de mil hei já contado...”
- ”Que dizes?! Estás mais louco
Do que antes quando o eras pouco?”
- ”Estes mil anos não foram
Mais do que um sopro de nada.
Mas nesse sopro é que moram
Traços do rosto da amada:
Vejo Leila que perpassa...
Podes entender tal graça?”
Idade Média
Na Idade Média europeia
Partiu um monge à procura,
A manhã nem ia meia,
De plantas que davam cura,
Na floresta do lugar.
De repente ouve cantar
Um pássaro encantador
De canto maravilhoso.
Um momento, com fervor,
Ouve, arrebatado em gozo,
Depois retorna ao convento.
Vê que é o mesmo monumento,
Mas ele não reconhece
O irmão porteiro que atende.
O arvoredo em redor tece
Uma altura que surpreende
E, por fim, a sua cela
Outro monge habita nela.
Pretende, inquieto, ir falar
Com o superior da casa:
Era um outro, singular,
Não conhece a fronte rasa,
Nem o outro mostra saber
Quem é que ele venha a ser.
Compreendeu então que o canto
O teria enfeitiçado:
No feitiço desse encanto
Cem anos terão passado!
Volta então para a floresta
- Mas canto nenhum já resta.
Velho
Retorna um velho duma longa viagem,
Sai da estação e a pé regressa à aldeia,
Atravessando da floresta a aragem.
Quando julgava andar sozinho, ameia
Um outro homem e da mesma idade,
Caminha ao lado e mui silente em frente.
Cumprimentaram, num sorrir que agrade,
Não se conhecem, conclui ele, ausente.
Finda uma hora de caminho, o velho,
Cansado, viu que o outro, enfim, havia
Ficado jovem, a mexer o artelho
Bem mais depressa do que o que antes ia.
Toma de avanço metros mais de dez,
Volta-se após para esperar por ele.
Tal não o turba: -”Eu me enganei talvez...”
Ambos avançam, a apressar impele
O tempo curto. Só que o velho viu
Que o companheiro está na meia idade,
Caminha agora sem qualquer desvio
Bem mais do que ele, sem que nada o enfade.
Como enganar-se tanto já podia
Na idade dele? Não entende, não.
Passa uma hora e o velho então veria
Algo de estranho a lhe ocorrer à mão:
Detém-se o outro um pouco além, se volta,
Distintamente ele deveio jovem,
Além dos vinte pouco mais e, à solta,
Os gestos dele juvenis se movem.
Não se tratava de nenhum error,
Nenhuma dúvida já tem de tal.
- ”Quem és?” - pergunta com algum temor. -
“Entre nós dois que a correr anda mal?”
Responde o outro só sorrindo e avança.
No mais cerrado da floresta estavam,
O companheiro às vezes não alcança,
Reaparece longe donde andavam.
Seriam vários? Perturbar-me querem?
Mas porque haviam de querer? “Que fiz?” -
Tenta perguntar, nada mais lhe auferem
E o par caminha tal qual um petiz,
Adolescente, quando muito, agora.
- ”Não corras tanto, que eu estou cansado,
Por mim espera, que isto a mim demora.”
E, paciente, o outro espera ao lado,
Durante um tempo irão no mesmo passo,
Depois se afasta e a aguardá-lo torna,
Senta-se às vezes, após mais espaço.
- ”Mas que me queres? Andas nisto à jorna?
Trazes amigos confundindo um velho?”
E o companheiro só um sorriso tem.
É uma criança de tomar conselho,
De dez anos, cinco, já nem anda bem.
É que aos três anos lentamente vai,
É-lhe difícil em floresta andar,
O velho guia, ajuda quando cai,
Pega-lhe ao colo quando urgir saltar.
O mais estranho é que tudo é normal,
Sem saber como, recupera forças.
Mas de repente, sem qualquer sinal,
Quando entre os troncos passeavam corças,
Desaparece o bebé dentre o mato.
O velho o chama, o procurou em vão.
Desamparado, retomou, pacato,
A caminhada da floresta em chão.
Pouco depois outro barulho ouviu,
Como de passos, ali perto a andar.
Vira a cabeça e uma jovem viu,
Grávida andando de si quase a par.
Com uma mão o ventre inchado apoia
E num cajado apoia os lentos passos.
- ”Como te chamas?” - antevê tramóia
O velho, olhando-a com seus olhos lassos.
Por mais perguntas que fizer, a moça
Não lhe responde, fica a olhar, sorri.
Ao caminhar, então do ventre a mossa
Diminui lenta e o passo é leve ali.
- ”Que me acontece?” - o velho a si pergunta.
Um pouco após, de gravidez cintura
Desaparece e o velho as forças junta,
Revitaliza, perdeu anos, jura.
Caminha atrás, começa a achá-la bela,
Um sentimento há muito já perdido.
- ”Vamos falar” - diz - “um bocado” - a ela.
- ”Quase a chegar. Há que tomar sentido.” -
Até que enfim que já lhe ouvira a fala.
Vai-a seguindo, já não via mais
Que seu vestido de amarelo em gala.
A selva acaba, um rio dá sinais,
Macacos saltam como as aves cantam.
A rapariga pára junto às águas,
Solta o vestido, juvenis encantam
As curvas suas de esquecerem mágoas.
O homem cuida que jamais tal vira,
Um sangue novo se agita nas veias,
Do corpo a idade já de si saíra,
Todo o cansaço, da fadiga as teias...
Quis perguntar à rapariga ali,
Raio de sol em frente ao rio manso,
Mas ela tempo não tem mais em si
E diz-lhe então, com ancestral descanso:
- ”Não foi aqui que combinámos nós
Vir encontrar-nos em segredo, amor?”
Nesse momento reconhece-a. Após,
Braços abertos, tudo é só fulgor.
Mesopotâmia
Foi no século XIV,
Em plena Mesopotâmia,
Que mui alto às turbas orce
O custo de certa infâmia.
Hoje um estranho acrimónia
Daquilo olha em cerimónia.
Numa praça, seminus,
Homens o corpo fustigam,
Látegos de coiros crus
Com ferros que se lhes ligam.
Jorra o sangue e cai no chão.
Lúgubres, em cantochão,
Em redor batem no peito
Assistentes em lamentos.
Choram crianças em preito,
Da desolação aos ventos,
Tal se de ocorrer findara
O que em dor os arrasara.
O estranho pergunta a um velho
Que é que se passa, afinal.
- ”Dobramos nosso joelho
Ao passamento final
Do nosso emir Hossein
Que à vida o rumo define.”
- ”Quem foi?” - ”Não sabes?!” - ”Eu não...”
- Ӄ o fundador do xiismo,
O modelo da nação,
Quem nos dá lições de abismo.
Mas foi traído e deixado,
Em batalha se há finado.”
- ”E quando é que ele morreu?”
- ”Terá sido há pouco mais
De quatro, ao que contei eu,
Quatro séculos atrás.”
-”Só agora” - diz o outro a rir -
É que o estão a carpir?!”
Salvatore
Aos vinte anos, Salvatore
Deixa a povoação lenta
Onde nada é de supor
Que aconteça e implementa,
Negociando flor de dália,
Nova vida pela Austrália.
Fica lá quatro decénios.
Depois, com a vida feita,
Arrumados mil convénios,
Volta à terra, anciã colheita,
A reviver trigo e joio,
Num ronceirão dum comboio.
Ao pôr o pé na estação,
Questiona se um velho amigo
O irá conhecer ou não,
Se alguém quer relato antigo
De aventuras solitárias
Por longínquas terras várias...
Ao se apear, logo vê
Um homenzinho curvado,
Funcionário. Nele lê
Que é Giovanni, o do lado
Colega em turma da escola.
Acena e ali se lhe cola,
Apontando, a mão tremente,
Para a sua própria cara.
Olha-o Giovanni, indulgente,
E, sem surpresa, declara:
- ”Olá, Salvatore! Agora
Por aqui? Quê, vais-te embora?!”
Iraniano
O espanhol e o iraniano
Conversam da relação
Com o tempo: traz-nos dano
De horários com precisão,
De acção com imperativo,
Por vezes sem ter motivo.
- ”De 'amanhã' a noção temos
Que cómoda nos é bem.
Entre vós algo veremos
Semelhante a tal também?” -
Comentava o espanhol,
Já de mente muito mole.
- ”Temos” - diz o iraniano -
“Temos 'oxalá', Deus queira.
Mas creio que, a evitar dano,
Vendo-a por minha joeira,
No que respeita a premência,
Não tem nunca a vossa urgência.”
Émulo
Pergunta o émulo ao mestre
Que é que afinal é verdade.
Para que nela se adestre
Diz o mestre: - ”Ah, mocidade!
Traz-me de água uma bacia,
Mete a cabeça em tal pia.”
Feito isto, com toda a força
Segura-lha dentro e funda.
Enquanto ele se contorça,
Mantém-no, que o ar abunda.
Se rareiam bolhas de ar,
Deixa o mestre de empurrar.
Quando, quase sufocado,
Retira a cabeça de água,
Diz-lhe o mestre, ponderado:
- ”A verdade, é certo, trago-a.
Porém, só se a desejares
Como quando, ao sufocares,
Desejaste ar ao teu pé,
Saberás o que ela é.”
Religiões
De diversas religiões
Eminências soberanas
Conversam, nalguns serões,
Sobre estas crenças humanas.
O budista celebrou
Paz íntima que entoou,
A renúncia, a compaixão,
A anulação do desejo.
E os mais dizem , com unção:
- ”Que maravilhoso ensejo!
Se funciona para si,
É fantástico, bem vi.”
O hinduísta ciclos de vida
Traz por ele à colação,
Subtil trama de subida.
E os mais dizem com unção:
- ”Maravilha! Opera em si?
É fantástico, bem vi.”
O católico Jesus
Diz que traz a redenção
No sacrifício da cruz.
E os mais dizem com unção:
- ”Maravilha! Opera em si?
É fantástico, bem vi.”
Só que ele fica furioso:
- ”Mas aqui não é questão
De em mim obrar o amoroso
Deus, de todos coração!
É a verdade universal:
Se não credes, fareis mal!”
E os outros, todos em coro:
- Ӄ mesmo maravilhoso!
Se em si opera, o que ignoro,
É fantástico e que gozo!”
Rei
Um rei sincero buscava
Justiça e verdade e via
Que só lisonja imperava,
Corrupção, miséria fria.
Ouvira falar dum sábio,
Conselho quis de seu lábio.
- ”Como é que se pode o homem
Tornar melhor algum dia?”
- ”Leis não bastam, que o consomem,
Clareza e paz são o guia.
Tem de obrar com compaixão,
De ignorar-se. E aos outros, nâo.”
- ”Como, porém, consegui-lo?”
- ”Só com verdade lá chega.”
- ”Como no vero o perfilo?”
- ”Manda o que o vero congrega.”
Irritado, manda embora
O palavroso na hora.
Para ele, o que é verdade
Há-de estar de certo lado
E do outro, a falsidade,
O erro a ser extirpado.
O que mais apreciava
É o que é simples e bastava.
Faz uma forca instalar
Logo da cidade à entrada.
- ”Quenquer que deseje entrar
À pergunta formulada
A verdade há-de dizer
Ou há-de enforcado ser.”
Ora, alguns dias mais tarde,
É o sábio que se apresenta:
- ”Onde vais?” - diz, sem alarde,
O chefe, mal nele atenta.
- ”Para a forca vou, aquela,
Por que me pendures nela,”
- ”No que tu dizes não creio” -
Diz, de espanto, o comandanta.
- ”Enforca-me sem receio,
Se menti” - diz o impetrante.
- ”Contudo, se eu te enforcar,
Falas verdade, em lugar.”
- ”É verdade” - diz o sábio.
- ”Então não te enforcaria
Por me mentir o teu lábio
Mas porque a verdade envia.
Isto é, porém, o contrário
Das instruções ao sumário.”
- ”É verdade” - repetiu
O sábio segunda vez.
Logo o capitão correu
Ao palácio, que talvez
O rei encontre saída...
- Mas nem sombra de medida!
Universo
Ao ser criado o Universo,
Imenso e respandecente,
Tinha um segredo no verso
Cujo saber imprudente
Perigoso é tanto e agudo
Que pode destruir tudo:
Aniquila-se no instante
O que passara a existir.
Escondê-lo era importante
O mais que se conseguir.
Ora, os deuses indianos
Prestam a tal seus arcanos.
Shiva, o grão destruidor,
Acredita que é num poço,
Bem junto ao templo maior:
Quem buscaria em tal fosso?
Mas os mais não concordaram:
Sempre em redor caminmharam
Infinitos peregrinos,
Pode um cair por descuido...
Krishna quer outros destinos:
- ”Na manteiga de que eu cuido.”
Pode sempre derreter
E o segredo se perder,
Foi a opinião dos mais.
A ideia foi rejeitada.
A Jagannath, o das reais
Fúrias temíveis, agrada
Na sua estátua escondê-lo:
De terror, quem quer sabê-lo?
Mas um deus a envelhecer,
Com a estátua a esboroar-se,
Se ela se quebra, quenquer
Ao segredo pode alçar-se.
Ganesh, o deus-elefante
Propôs a Lua distante.
Mas os homens são tão loucos,
Com tamanha agitação
Que acabam trepando aos poucos,
Ainda à Lua chegarão.
Diz Vishnu: -”Precisamente,
Que o segredo fundo assente
Dos homens no coração!”
Acham a ideia excelente.
Os demais deuses então
Enterraram, má semente,
O segredo em nós bem fundo,
Não vá vir o fim do mundo!
Depressão
De crónica depressão
Mui sofria uma mulher.
Ao terapeuta vai ter
A lhe confessar então:
- ”Doutor, tenho um bom marido,
Ele ama-me, desvalido,
Sempre a encher-me de presentes.
Os filhos têm saúde.
O trabalho, os pés assentes,
Nunca me ele desilude,
Até tenho, por excesso,
Considerável sucesso.
Nunca sofri, de raiz,
De qualquer grave doença.
Em suma, sou infeliz.”
Para tal não há sentença.
O terapeuta, após prazo
Longo, encontra-a por acaso
Em festa muito animada.
Conta-lhe ela que o marido
A deixara abandonada,
Trocara-a, ao fim, ressentido,
E agora os filhos se drogam,
Perdeu o emprego e se afogam
Em dívidas doravante
E um cancro receia ter...
- ”Pois então, nalgum instante
Já infeliz não sente ser?”
- ”Sinto” - diz ela, de pé. -
“Mas agora sei porquê.”
Marselhesa
Numa história marselhesa
Um homem entra num bar,
Viu um peixe, com surpresa,
Pendurado, singular,
Grande, enorme, embalsamado.
Tendo a cabeça abanado,
Diz: - ”Que grande mentiroso
Pescou um tão fabuloso!”
Europa
Na Europa, um bebé nasce.
No instante de vir ao mundo,
Um anjo que ali perpasse
Pousa-lhe um dedo fecundo
Na boca, para impedi-lo
De revelar o sigilo
Que ele então ainda conhece.
A cova ao centro do queixo
Do apoio provém neste eixo
Dum dedo de anjo, parece.
Bombardeada
É bombardeada a cidade.
Cada qual, conforme pode,
Foge, já sem liberdade,
Por onde melhor lhe acode.
Não têm mortos e feridos
Mais conta, pois os vencidos
Tudo saqueiam, de fome.
Pior, chuvas incessantes
Destroem quanto se come
Com inundações constantes.
São levadas casas, pontes,
São desgraça os horizontes.
Correm só por toda a parte
Pegadas de desgraçados.
Do canibal a vil arte
Aflora em todos os lados.
Eis que um monge zen caminha
Por entre quanto definha,
Sem pressa, muito sereno.
Dizem-lhe: - ”Isto não o aflige?!”
- ”Não” - responde num aceno.-
“Aparte o nada que exige
Esta agitação, está
Tudo bem calmo por cá.”
Deserto
Um pedregoso deserto
Mui raramente recebe
Uma nuvem que, no acerto,
Águas deixa de que bebe
A terra e a seca areia,
Então da benesse cheia.
Podiam sobreviver
Animais e vegetais.
Não cansa de agradecer
O deserto gestos tais
A cada nova visita
Que a morte total desquita.
Lamentava não poder
Ofertar-lhe nada em troca.
- ”Pára de me agradecer” -
Diz-lhe um dia a nuvem louca.
- ”Então porquê?!” - perguntou
O deserto que a escutou.
- ”Dizes que não me dás nada
Em troca de te regar.
Nada vale, então, de entrada,
Este meu prazer de dar?
A minha rega se apaga,
Isto, não e não tem paga!”
Hakuã
O mestre zen dito Hakuã
Vive junto à peixaria.
Do peixeiro a filha sã,
Nova e que de encanto ardia,
Grávida um dia aparece.
Os pais querem que confesse
De quem. E ela a revelar:
- ”Foi o mestre Hakuã, é dele.”
O monge vive a esmolar
Em cabana de osso e pele.
Não vão a filha querer
Dar-lhe o peixeiro e a mulher.
Não lhe falaram de nada.
Quando a criança nasceu,
Ponderaram na jornada
E dizem-lhe: - ”Já que é seu,
O melhor será tratar
Mas é de no-lo criar.”
- ”Está bem” - disse Hakuã,
Sem mais qualquer comentário.
A criança, de manhã,
Dele vive igual fadário,
Atada às costas, nas ruas
Quando pede de mãos nuas.
Um dia, a mãe da criança
Confessa que o vero pai
É do merceeiro a frança
Do filho que perto vai
Andando, antes reticente
E agora aceite e presente.
O peixeiro e a mulher
Conferenciaram então,
Com mestre Hakuã foram ter,
Mil desculpas pedirão,
Ofertam-lhe alguns presentes,
De vergonha reticentes.
Iam buscar a criança
Que não era filha dele.
- ”Está bem” - Hakuã lhes lança
E a criança lhes impele.
- E, tal como antes do acinte,
Continua a ser pedinte.
Hindu
Um jovem inteligente
E sábio mais que o credível
Se apaixonou de repente
Pela princesa invisível
Que é filha do rei dos génios
Que nunca aceitou convénios.
Sonhava constantemente
Com ela sem a ter visto.
O pai do rapaz consente
Que vá ter, dado o imprevisto,
Com o hindu sábio que ao mundo
Conhece o segredo fundo.
Que dele fique ao serviço,
Passando por surdo-mudo,
Para ver, como um noviço,
Dele as práticas em tudo.
Talvez aprenda um segredo
Que importe para o seu credo.
O jovem foi ter com ele,
Já bom fogo lhe acendia,
Água lhe traz, jarro em pele,
O cabelo escovaria,
Até lhe prepara a cama
Como o respeito reclama.
O sábio, por várias vezes,
Pô-lo à prova, a confirmar
Enfermidades soezes.
O jovem, no seu lugar,
Resistiu mesmo à picada
De sovela que enterrada
Lhe foi num pé, certa noite,
Enquanto ele ali dormia.
Da dor ao sentir o açoite
Abre a boca e gritaria,
Mas lembra a prova, o jejum,
Não sai de lá som algum.
Passam anos. Pouco a pouco,
O rapaz foi aprendendo
Segredos (têm-no por mouco)
E anotou-os, como a medo,
Excepto os que eram contidos
Num cofre à chave escondidos.
E, tal como antes, pensava
Numa princesa sem cara
Cuja presença palpava
Mas que nunca vislumbrara.
Adoece o rei um dia
Pois qualquer coisa bulia
Sempre dele na cabeça.
Nenhum médico entendeu
Que era aquilo e onde começa.
O sábio se dirigiu
Ao palácio com a ajuda
Da criança surda-muda.
A cabeça enorme inchaço
Apresentava do rei.
Um bicho encerrar lá crasso
Parece ser que é de lei.
O mestre rapa o cabelo
E lanceta sem apelo.
O bicho logo encontrou,
Tal e qual um caranguejo,
E de o retirar tratou
Com a pinça, num arquejo.
Mas o bicho se agarrava
À cabeça e o rei urrava.
O discípulo exclamou,
Após anos de silêncio:
- ”Cuidado, mestre, escapou!
É que assim a pinça vence-o,
Mas ele se agarra mais.
Queima-lhe as costas atrás,
Que ele tira logo as patas!”
Ao ouvir dum surdo-mudo
Tais palavras tão sensatas,
Tem o mestre ataque agudo,
Cai morto em pleno salão,
Nada o reanima então.
Logo delicadamente
Trata o rapaz de queimar
As costas do repelente
Bicho na cabeça a andar.
O carvão a arder o solta,
É retirado de volta.
O rei, restabelecido,
Por título sartapeck
Ao jovem dá e um sortido
De presentes, mais, no leque,
De seu mestre toda a herança
Que ele nem sabe o que alcança.
O seu primeiro cuidado
É abrir o cofre-mistério.
Encontra ali, num traslado,
Aquele rosto sidéreo
Duma princesa invisível
Com que sonha, inesquecível.
Desenha uma figurinha
Que a representava inteira,
Recita uma ladainha,
Magos termos, chama à beira.
Quarenta dias mais terde,
Ela aparece-lhe. Ele arde.
Sartapeck não encontra
Palavras de a descrever.
Contudo, saiu da montra
De dentro de si, ao ser.
- ”Como conseguiste, enfim,
Penetrar dentro de mim?”
- Ӄ desde o primeiro dia
Que eu estou sempre contigo.
Sou alma tua: a porfia
Com que em mim buscas abrigo,
O que buscas com ardor
É a ti próprio, o teu pendor.
Olha, pois, com atenção
E verás que o mundo inteiro
Mais não é que tu então.
Sou alma tua, pioneiro.
Vê, pois, que o que buscarás
Só em ti encontrarás.
E não sejas preguiçoso
Na tua longa demanda.
Se procurares teimoso
Descobres o que em ti anda,
Afinal, que tu és tudo,
Aberto ao infindo mudo.”
- ”E porque em mim procurar
Devo?” - pergunta o rapaz,
Os ouvidos a zoar,
De entender ainda incapaz.
E a moça, um olhar agreste:
- ”É porque tu te perdeste.”
Suma
Pergunta um noviço ao mestre:
- ”Como pode um ser humano,
Ao fim de quanto se adestre,
Reconhecer, sem engano,
Que por fim atingiria
A suma sabedoria?”
- ”Quando ele, por fim, deixar
Tal questão de colocar.”
Sabedor
Questionam um sabedor
Que muito mundo viajara
Se por acaso encontrara
Pessoas de algum fulgor
De que, com algum vagar,
Goste mesmo de falar.
- ”Só encontrei homem e meio.”
- ”Quem era a metade homem?”
- ”Antes que fúrias o tomem,
Um que, de prudência cheio,
Só doutrem dizia bem.”
- ”E o homem inteiro é quem?”
O sabedor olha a estrada:
- ”Um que não dizia nada.”
Índia
Transportava um aguadeiro,
Na Índia, duma nascente,
Água para o povo inteiro.
Sempre o carrego ia assente
Em duas bilhas atadas,
Muito bem emparelhadas.
Nos ombros, de cada lado
Duma barra de madeira.
A da direita chegado
Sempre havia toda inteira,
Pois era uma bilha intacta
De parede bem compacta.
Mas a da esquerda, rachada,
Perdia metade de água
Pelo caminho pingada.
Durou isto anos de mágoa,
Que o aguadeiro nem tinha
Com que comprar uma linha.
Um dia, a bilha rachada
Diz, penando, ao aguadeiro:
- ”Tenho vergonha aumentada,
Só da imperfeição me abeiro.
Perco água por minha culpa,
Por isso peço desculpa.”
Olha para o recipiente
O aguadeiro e então lhe diz:
- ”Ao voltarmos da nascente
Vais olhar, tal quem não quis,
O lado esquerdo sozinho,
O teu lado do caminho.”
- ”E que verei?” - diz a bilha.
- ”Verás as ervas e as flores,
A pequena maravilha
De verduras e de odores
A que a tua água perdida,
A todo o tempo, deu vida.”
Bombaim
Na Índia, um Jain, Vijaya,
Comerciante em Bombaim,
Tinha fortuna de praia,
De porto e transporte afim.
Por antiga tradição,
A meio da vida, então,
Fez renúncias sucessivas
Para atingir a sageza.
Neste método uma arquivas
Por ano, a que mais se preza.
No primeiro, renuncia
À fortuna que teria.
Distribui bens em redor,
Guardando para viver
Só o que imprescindível for.
No segundo ano o que quer,
Ao carro é renunciar,
No terceiro é dispensar
De vez dele o motorista,
Conservado inutilmente
Durante um ano na lista.
Tabaco é no quarto assente:
Bem difícil pareceu
Mas ele, enfim, conseguiu.
São bebidas no seguinte
E, no sexto, o leite e o queijo.
É, no sétimo, o requinte
Dos temperos, no desejo.
Um ano após já depura
Da cabeça a cobertura.
No nono ano renuncia
Ao guarda-chuva que usava.
No décimo o sexo adia,
Que nunca mais o activava.
Veio depois o cinema,
O teatro e segue o esquema
Com a música e a dança,
Por fim a televisão.
No décimo sexto alcança
A animal degustação.
E, antes de ir a campos novos,
Renuncia após aos ovos.
O décimo oitavo é duro,
Teve de o recomeçar:
Tenta pensar com apuro,
O erótico a recusar.
Se renuncio a uma meta,
Levo a que a força a acometa.
Largou a religião:
Mais fácil lhe pareceu
Que quanto, em compensação,
Antes, nisto, ele previu.
Renunciou aos jornais
Como às outras formas mais
De conversa e relações
Com parentes ou amigos.
Recusou as abluções
Sem mais ligar aos perigos,
Um ano os pés, outro os dentes,
Outro o cabelo sem pentes.
Renunciou ao orgulho,
À cobiça e à vaidade,
Dos defeitos todo o entulho
Que pesa na humanidade.
Até que desaparece
E o mundo quase que esquece.
Sessenta e tal anos tem,
Ninguém sabe onde encontrá-lo,
Dele novas não advêm.
De súbito, com regalo,
Reaparece, sorridente,
Bem vestido, mui contente,
Guiando um descapotável,
De radiosa dama ao lado,
Um havano insofismável
Fumegando incendiado.
Um amigo o reconhece,
Pergunta-lhe o que acontece.
- ”És tu mesmo, tu, Vijaya?!”
- ”Sou eu, pois claro, sou eu.”
- ”Voltaste a uma vida gaia
Ou que foi que aconteceu?”
- ”Não, de maneira nenhuma,
Continuo tudo, em suma,”
- ”A que é que renunciaste
Agora, na tua lei?”
- ”Bem vês tu, já reparaste:
À renúncia renunciei.”
E de Vijaya a esperança
A suma sageza alcança.
À Lareira do Amor Divinatório
1
Primeira Lareira
Primata
Bem mais primata que lobo
É o homem,
Quando o confiro:
Feito bobo,
Deixou de ser lobisomem
Para tornar-se vampiro.
Porém,
É nossa a perda que houver
Se alguém
Deixar o lobo morrer.
Do pimata a artimanha
Não dá em nada
Quando o fim te apanha
Da jornada:
A esperteza trai-nos um dia
De vez
E a sorte que nos fez
Acaba então, vazia.
Depois é que descobrimos a medida
Do que é importante na vida.
Nada tem a ver
Com o que estratagemas, esperteza e sorte
Nos proporcionaram.
Deste primata norte,
Nem as sombras sequer
Ficaram.
Antes, é o que resta
Quando tudo isso (que então não presta)
Acabou
E na cinza ficou.
Muitas coisas somos!
Mas o eu mais importante
Que não referem os tomos,
Não é o que conspira vida adiante,
- É aquele que fica preso à calha
Quando a conspiração falha.
Não é o que se delicia
Com a artimanha,
É o que fica em agonia
Quando ela o apanha
Como a quenquer
E o abandona para morrer.
O eu mais importante
Não é o que goza dele a sorte,
É o que continua para diante
Quando ela se vai embora
E, em tal hora,
Finta a morte.
O primata
Há-de sempre falhar-nos, ao fim.
Quando o fio se desata,
Assim,
A pergunta que ecoa
É que responde ao que presta:
- Quem é a pessoa
Que resta?
Rumos
Disciplina e liberdade
Não seguem rumos contrários:
Disciplina é que persuade
O ser livre, em trilhos vários,
A ser possibilidade
Que desafia os fadários.
Sem a disciplina não
Há deveras liberdade:
Apenas, na ocasião,
Ao acaso para os que agem,
Aquilo que sofrerão
É mera libertinagem.
Amizade
A amizade familiar,
A que nos entrosa ao grupo,
Tem vontade de actuar
Em prol de quem eu me ocupo.
Por mais que o não queiramos fazer mesmo,
Por mais que até nos deixe horrorizados,
Mesmo doentes vagueando a esmo,
Mesmo que ao fim os preços elevados
Acabem mais pesados, no lugar,
Que o que nós lograremos suportar
Fá-lo-emos, que o melhor é para eles,
Fá-lo-emos porque havemos de o fazer.
De o fazer talvez nunca nós, imbeles,
Tenhamos, mas impõe-nos o dever
Que estejamos, fiéis, já preparados
Para tal, sejam quais forem os dados.
O amor às vezes dá-nos muita raiva,
Amaldiçoar-nos pode eternamente,
Leva-nos ao inferno que nos caiba.
Porém, a melhor sorte em nós presente
É o amor, na atitude desenvolta
Que a nos trazer nos finda a nós de volta.
Temporais
Por sermos criaturas temporais,
Daqui sofremos cruas desvantagens:
Matuto num passado, o nunca-mais,
E um porvir que vazias tem as vagens.
O passado recordado
E o desejado futuro
O agora-aqui hão moldado
No irreversível conjuro.
As temporais criaturas
Neuróticas são, de modo
Que do presente as figuras
Jamais fruirão de todo.
No passado e porvir tanto vivemos
Que há-de uma maldição nos controlar.
Porque “através” melhor a olhar nos vemos,
Através dos momentos, em lugar
De a eles os olhar: queremos vidas
Que contenham sentido e, em simultâneo,
Não entendemos como nossas lidas
Possam sentido ter no supedâneo.
Nossa temporalidade
É para nós o desejo
Daquilo que nos invade
Sem de o compreender o ensejo.
Melhor
Vou morrer e o meu melhor
É que me sinto aqui bem.
Vou fazer seja o que for
Que me apetece e convém.
Este momento se inteira
Nele mesmo e não precisa
De justificar-se à beira
Doutro qualquer que desliza
Do passado ou do futuro:
- Inteiro aqui me inauguro!
Lápides
Lendo as lápides, revejo
Quem há perdido o combate,
Da vida somado o ensejo
Numas linhas para abate.
Deviam enaltecer
Como é que tinham vivido,
A diferença a insvrever
No mundo ao jeito esculpido.
Senão, para quê tentar,
Se tudo, ao fim, reduzido
É, na pedra tumular,
A palavras sem sentido?
Recuperar
Agora que entre nós vive,
Deus anda a recuperar
Das coisas o estado antigo.
Ao visível o que esquive
É uma oferta por que ansiar:
Um coração para abrigo,
Invisível, onde quero
Viver eterno em seguida.
Por ele é que me supero:
- É o que me dá peso à vida!
Passado
Quão mais nos dissociamos
Do passado, à nossa volta
A viver bem disfarçado,
Mais difíceis são os ramos,
Entre os caminhos à solta,
Do retorno ao lar sagrado.
A recusa em aceitar
O que foi nosso passado
É a maneira mais segura
De a nossa vida tombar,
Ceder de antanho ao traslado:
- E de mim perco a figura!
Problema
Um problema de imediato
Nunca nos desaparece,
Ou até, de nenhum modo,
E, quando mal me precato,
Ao parecer que me esquece,
Não o aniquilei de todo.
Imperfeição e tristeza
São sempre o preço a pagar
Por isto de estarmos vivos.
Se calhar demais nos pesa
E há horas em que lutar
Tem, por únicos motivos
Da resistência ofertada
Sem recompensas cabais,
A hipótese de lutar
Nestas barreiras da estrada
Apenas um pouco mais
Ante a derrota a chegar.
É um fardo muito pesado
Mas é sempre um bom passeio
Isto de andar deste lado
Um outro sempre a rasar
E, às vezes, cá pelo meio,
Conseguirmos ver o mar.
Olhar
Por vezes temos de olhar
Para trás e não faz mal.
Tornar-me estátua de sal
Só mesmo se, incompetente,
Eu então nunca voltar,
Não voltar a olhar em frente.
Pior
O pior, pior dos gestos
É que acorrentaram Deus
Em infindos manifestos
De palavras, quais ateus.
Tornaram-nO tão concreto
Que tem então de viver
Entre nós, nada secreto:
O invisível a morrer,
De viajante inconformado
Carne efémera tornado.
Assim é uma instituição:
Do sonho é sempre prisão.
E, quando nela o captura,
Tanto faz que o desfigura.
Realidade
A realidade da vida:
Não posso ter dito ou feito
Sempre o que é certo, à medida,
Nem sequer sempre me ajeito
A ajudar todo e quenquer,
Nem a levar nunca alguém
A disponível se haver
Para quenquer que aí vem.
Há sempre o que não ocorre,
O amor desarticulado.
Diferente enquanto corre
É o presente ante o passado,
Quando a luz de o recordar
Através dele brilhar.
A vida não tem que ver
Com a perfeição jamais
Mas com aquilo fazer
Que puder em dias tais.
Tal como havia de ser
É que tudo foi então.
De confiar hei-de ter
No instinto que tenho à mão
E após terei de esquecer...
O passado há-de-me ter
Sempre o seu dedo apontado,
Conserve-o ou não conserve.
Como quer que eu vá jogado,
É o grilhão de que se serve.
E mantém-me prisioneiro
Se além não saltar pioneiro.
Eventos
Os eventos do passado
Endureceram, ficaram
Cacos dum vidro intocado
Em nossa mente espetado,
Corpos que estranhos nos aram,
Se deslocam e nos ferem,
Profundos demasiado
Para alguma vez poderem
Sugar-se onde se esconderem,
E é tudo tão aguçado
Que nos cortam o presente
E nos sangram, de repente.
Más
As coisas más acontecem:
Às vezes nós as fazemos,
Outras outros no-las tecem.
Nada importa que as neguemos,
Não vão desaparecer.
Que importa a profundidade
No lixo em que as esconder?
Continuam de verdade
A fazer parte de nós.
Se uma carta nos destroça,
Que importa queimá-la após?
Dar tréguas encurta a mossa:
Não damos voltas à faca
Durante a noite e tentamos
Impedi-la, por mais fraca,
De nos arruinar os tramos
Com que alinhamos o dia.
Mas tentar a perfeição
É só de quem se iludia
Contra o real em acção,
Dando mais valor acaso
Ao que estiver na cabeça
Que o que em redor eu aprazo
Que é o que sempre me atravessa.
O lugar onde viver,
Também com sombras erguido,
Sempre é o lar para quenquer:
O mobiliário partido,
Dedadas no interruptor
- É o que faz dele o que for.
Sinais
Olha os sinais,
Não forces a conjuntura.
Tenta ver, quando tu vais,
Onde leva a água pura.
Importa boiar agora,
Respeitar das ondas a frequência,
Entender do céu onde o rumo mora.
A seguir,
Ao fulgor da evidência,
Agir.
Cá em baixo, então,
Abrirás caminhos.
Lá de cima abençoarão
Das veredas todos os ninhos.
Acordo
De acordo estás com o céu
E o céu, de acordo contigo.
Escuta-lo ao teu postigo,
Fala-te ele atrás do véu.
O fruto que isto te deu
É maduro em teu abrigo,
Rio que flui mas consigo
Leva dois mundos de seu.
Tal é, pois, tua verdade,
Vais onde fores levado
E és feliz por ter tal fado.
Trilho de sublimidade,
Na terra de parto em dor
És de céu um semeador.
Felicidade
Era uma vez toda a glória
Duma pessoa feliz
Com planos e com memória
Para a vida que ela quis.
A felicidade foi
Há muito tempo, entretanto.
Agora, distante, dói.
Não houve culpa, no entanto,
Mas responsabilidade:
Tu criaste uma distância
Do céu à terra, em verdade.
Do Além a fala, com ânsia,
Deixaste de ouvir na vida
E crês então que a atitude
Se justifica em seguida.
O céu fala em quanto mude,
Na chuva que rega e molha,
No sol que brilha e bronzeia,
No murete que se antolha
E que à frente nos ameia
Para ao céu erguermos olhos...
Encurta, pois, a distância,
Olha acima dos escolhos,
Apreende o céu da infância,
Que ele te vai ficar grato
Para toda a eternidade.
Que sentido há, se desato
Céu de terra que ele grade,
Que sentido há neste chão
Se não for a comunhão?
Convicção
A convicção no caminho
É um poder espiritual,
Tão poderoso cadinho
Que enquanto vir o esteval,
Enquanto souber onde ando,
Porque acontece um sinal,
O que é que aprendo, onde e quando,
- O percurso luminoso
Irradiante vai ficando.
Convicto de que me entroso
No caminho verdadeiro,
Atraio, para meu gozo,
Energia em grau cimeiro,
De tamanho imensurável.
E o caminho, mais ligeiro,
Com destreza inigualável
Assim então percorrido,
Vai ficando mais estável,
De vencer vou convencido.
A chave é a meditação
Feita da vida o tecido.
E, mesmo que a estrada então
Não aparente harmonia,
Tal caos é ocasião
Para religar o dia,
Trepar ao céu a buscar
Mais informação que urgia.
E a vida há-de prosperar
Para além da fantasia,
Mais abundante que o mar.
Medo
Um medo fundamental
Leva-te à compensação:
Medo tens de algo real
E compensas logo então.
Não vais enfrentar o medo,
Vivenciá-lo, tarde ou cedo?
Vivenciar uma emoção
É permitir-lhe ir-se embora.
Se o medo te tem à mão,
Leva-te a fazer agora
Outra coisa, longe ou perto,
O que nunca dará certo.
Quando algo queiras fazer
Por te trazer bem-estar
Contra o mal-estar que houver,
Por medo de o enfrentar,
Um tal acto, apenas teu,
Não tem o acordo do céu.
Se estás mal, fica-te aí,
Sofre o que tens de sofrer,
Chora a mágoa que haja em ti.
Com certeza que a quenquer
Daqui vai advir a luz,
Que ir ao fundo se traduz
Numa clarificação
Sempre em todos os sentidos.
Ao mergulhar no cachão,
No fim, os medos volvidos,
Irás sentir-te melhor.
Depois, se ainda então for
De algo fazer com vontade,
Se persiste o chamamento,
Já quebrada a opacidade,
Já transposto o fingimento,
Em tal caso então avança,
Que o céu quer o que te alcança.
Comando
Certas alturas da vida
Há que assumir o comando.
Não é sempre que é devida
Uma atitude de mando.
Quando, porém, acontece,
Nem importa se apetece.
Comandar implica agir
Mas não é somente acção.
Também provoca a seguir
Qualquer um outro à função,
Gera exército, estratégia
E avança em passada régia.
Não há muito espaço aqui
Para o coração vibrar,
Sentimentalismos vi
Sempre nisto a soçobrar.
O que houver para fazer
É só fazê-lo quenquer.
É faceta da matéria,
Nem tudo é exacto, de vez.
Pede uma conexão séria
Normalmente o céu que vês,
Sentimento, coração
E mui profunda intuição.
Raramente o que nos pede
É um exército a avançar
Porque é o que a hora antecede,
Não há mais tempo ou lugar.
Contudo, se isto é o de agora
O céu diz-nos: é a hora!
Culpa
Quem és tu, tão importante
Para crer-te imprescindível?
Culpa é um ego petulante.
Quem és tu, para, impossível,
Crer que sem ti nada roda,
Jamais anda a vida toda?
A culpa é uma tentativa
Inconsciente do ser
Para ter poder que arquiva,
A imprescindível se ver.
Culpa quem sente, por norma,
Faz um lugar tomar forma
Mas julga que deveria
Ser outro noutro lugar.
Por isso a culpa o atrofia,
Em conflito sempre a andar.
Não relaxa as mãos que ararem
Nem deixa os mais relaxarem.
O culpado sofre muito
Mas tem a grande tendência
De outrem culpar desse intuito.
“Não cumpro minha apetência?
Então outrem também não
E, se cumpro uma função
Contra quanto me apetece,
Então outrem também tem
De cumpri-la, não me esquece.”
A exigência donde vem
Contigo e com os demais?
Atitudes porquê tais?
A culpa nunca te deixa
Viver nem te deixa olhar
Para ti mesmo e te enfeixa,
Sem evoluir, a te atar.
Culpas-te do que fizeste,
De não ter feito que preste,
Culpas-te de não fazer
O que os mais de ti precisam...
Ora, àquele que sofrer
Dele as carências avisam
Que escolheu a situação
Para, através da lição,
Da solução que procura,
Poder evoluir por dentro.
Dele que cuides da cura
Precisa,mas não é o centro.
Se extremo for teu cuidado,
Prejudica o que hás curado.
Ora, tu também terás
Evolução a fazer.
Se te culpas para trás,
Que evolução vai haver?
A conexão é importante
E meditação instante:
Lá no alto ganhas distância,
Vês vida doutra maneira.
Entendes a manigância
Duma dependência inteira,
Já que é um tipo de prisão:
Quem depende é preso ao chão,
Vive preso quem se culpa.
Vai Acima lá sentir,
Sem precisar de desculpa,
Nem de cuidar de ir ou vir,
A leveza que te invade:
- És leve de liberdade.
Ascender
Ascender, trepar ao céu,
Em espírito elevar-se,
Corpo em terra, o poiso seu:
É viável alcançar-se
Em meio ao cotio esquivo,
Enquanto ainda estou vivo?
Ora, a verdade é que sim:
Quando a consciência se alarga
E o caminho trepa assim
Até ao céu, a descarga
Da energia desce então
Do canal aberto ao chão.
Desce, invade o corpo inteiro,
Limpa misérias e mágoas
Muda posturas... Ligeiro,
Vibro como um cachão de águas.
Um homem, aqui em baixo,
Do céu com mágico facho,
Muda os paradigmas todos
E muda, gradual, de vida.
Emite novos engodos,
Aflora-lhe o âmago à lida,
O que atrai muita abundância:
Do Infindo tudo é fragrância.
Emoção
Perto demais da ruptura,
Tudo parece ruir,
A emoção maior supura,
Leva ao rubro o que sentir.
É o que então mais dói, assim:
Parece chegar o fim.
Última gota de sangue,
A última de suor.
E após o tormento, exangue
De o fustigar tanto a dor,
E de se ir embora, enfim,
De doída até ao fim,
- Eis uma tranquilidade
Deveras libertadora.
Se o termo final persuade,
Sofre quenquer ainda e chora,
Não de atraído por dor
Mas por de facto supor
Que de vez forma eficaz
Vai ser de se livrar dela.
Do que doer luto faz,
Dói da dor toda a sequela.
Só então ergue a cabeça
À jornada que começa.
Parar e sentir a perda,
Parar a se emocionar.
Transpor a emoção que se herda
Para depois avançar
Com a lição aprendida
Na nova trilha erigida.
De facto cada lição
Mais uma oportunidade
A cada bifurcação
É de nova identidade,
De escolher, perante as eras,
Quem alguém vai ser deveras.
Contrários
Não estás mesmo a ser prático:
Experiência de matéria
Harmonioso e simpático
Encontro é sempre dramático
De contrários, féria a féria.
Pendes sempre para um lado.
Sonhas e o céu sonho adora,
Anseias e bem guardado
É do céu quem haja ansiado.
Só não entendes agora
Que tens de conciliar
Céu com terra nesta vida.
O sonho é de sustentar
Sólido em chão basilar,
Senão o sonho, em seguida,
É uma forma de fugir:
Quanto mais se sonha então
Mais real vai-se excluir,
Só sonho é parco existir.
Lá do alto nunca o céu, não,
Será contra teu sonhar,
Mas depois de sonhar tens
De na matéria tentar
Construir teu sonho, a par,
Senão só sonho manténs.
É que sonho construído
Na matéria é evolução.
Se só sonhado é vivido
E de mais sonho seguido,
É uma fuga à situação.
Qual vai ser para recolha
Finalmente a tua escolha?
Abre-te
Abre-te ao céu como à terra
E não vivas mais aflito.
Tudo o que hoje aqui te aterra
Busca, afinal, o Infinito.
Abre-te ao céu por inteiro,
Abre-te à terra também:
Tudo de que ao fim me abeiro
O Infinito busca além.
Dinheiro
O dinheiro é um potencial,
Cada qual faz o que quer,
Gasta bem ou gasta mal
Consigo ou outro qualquer.
Teu livre-arbítrio, onde imperas,
Diz-te o que fazer deveras.
Mas para o ganhar de volta
É que tudo se complica.
Gastas o dinheiro à solta?
Não, que ao fim nada te fica.
Para o interlocutor
Ter uma vida melhor?
Também parece que não:
Não gastas só por gastar,
A ajudar, nem é questão,
Muito menos se é comprar
Qualquer luxo que alguém pense
Que alegria lhe dispense.
Compras para melhorar
Tua vida num pendor,
Em tudo o que ela visar
Que para ti tem valor.
Não melhoras doutro a vida
Mas a que é por ti vivida.
Quando pensas em ganhar,
Não vês que a moeda que visas
Outrem é que ta vai dar,
A melhorar o que gizas
Nas compras com que melhora
Tua vida, a toda a hora.
Não melhoras doutro a lida
Mas queres que te melhore
Outro a que é por ti regida.
É o teu recado em redor,
É teu trilho no Universo,
Alimentado em teu berço.
Não vês que não vai dar certo?
Gastas em prol do que é teu,
Outrem, do seu, dele perto,
E eis como o mundo é sandeu.
Não te centres no dinheiro,
Antes em como é que, inteiro,
Contribuis para os demais:
Quando logras trabalhar,
Na tua oferta que mais
A vida vai valorar.
Aí ganhas teu dinheiro,
Mas serviste outrem primeiro.
É mero poder de troca
O dinheiro: então, de entrada,
Dele escondido na toca,
Sozinho, não vale nada.
Se meramente o quiseres,
Ele foge e eis-te a perderes.
Se deres contribuição
Para trocar, ele vem.
Ignora o dinheiro à mão,
Centra-te em dar tal convém,
Pois então vais receber,
E ao fim realizas teu ser.
Evento
Evento sem emoção
Evento não é nenhum.
Matéria a mexer no chão
Não é nada de atenção,
Será o vento evento algum?
Preciso do ser humano
Para emocionar o evento,
Alma dar a que me irmano.
É o que liberta sem dano
Toda a energia a contento.
É o que faz girar o mundo
E, no mundo, girar todos.
Faz das crianças fecundo
O ventre que as traz, jucundo,
E faz prosperar a rodos
Projectos com que sonhamos,
Diminui-nos as distâncias,
Faz que em vida aconteçamos.
A que é que atenção prestamos?
Ao que tem de emoção ânsias.
Estar no evento sem alma
É ser a pedra à deriva,
À espera, do sol na calma,
Até que a torreira acalma
E ela morre ao canto, esquiva.
Aquilo que tens em mão
Vera emoção te suscita
E que tipo de emoção?
Que é que de ti no torrão
Colocas do que te excita?
Fecha os olhos e pergunta:
Que parte de mim é que eu
Coloco no que me assunta,
Mente ou coração? Que junta
Àquilo que me ocorreu?
Um plano de pormenor
Ou a visceral vontade?
Dos dois de que ando em redor
Qual deles é mais senhor?
- Só neste sou de verdade.
Abrir
Abre acima de tudo o coração,
Em cada conjuntura desta vida
Cada vez mais abrir é a requerida
E mais libertadora, ágil função.
São possibilidades que se dão,
É não ficar fechado numa ermida,
Da própria expectativa fementida
Acorrentado à estreita e vã prisão.
O mundo tem bem mais a oferecer
Do que imaginas tu nesta estreiteza,
Mas tens de àquilo abrir mente e emoção.
Abrir para aprender e receber,
Para não estagnares na pobreza
Do que sabes, fizeste e os mais farão.
Abre
Abre, abre tudo, abre-te ao mundo inteiro,
Abre-te a mente, as faculdades todas.
Não fiques preso às iguais mesmas rodas
Que o mesmo operam, tão forte é o argueiro.
Teu coração, teu privilégio beiro:
Abre-o, com ele apontas falsas modas,
Falhas também, mas ocasiões de bodas
Mui oportunas formarão ribeiro.
É o coração que na intuição discerne
O que convém e não convém a ti.
Vês o caminho, que o pé não te hiberne,
A tua lua a iluminar a trilha:
Teus breves campos alargando ali,
Tudo é Infinito, nada, nada é ilha.
Corpo
Se atraír um corpo frágil,
Doente a qualquer instante,
Perfil de não ir avante,
Membros de quem não for ágil,
Tenho então de o respeitar,
De saber quando parar.
Quando o corpo não aguenta,
Quando o espírito murmura
Que avanços já não apura,
Pára a teima que te tenta,
Pára, de vez, de insistir,
Que já não vais conseguir.
Pára, pára, interioriza,
Cuida no que é mais profundo
De ti próprio neste mundo.
E fica nesta baliza,
Sem impulsos, ilusões,
Só contigo nos fundões.
Até ouvir a chamada
Da vida a apelar de novo
À batalha a que me movo
E que melhor é travada
Porque apurei no intervalo
As armas com que hoje abalo.
Brota
O que brota em tua vida,
Em qualquer curva da estrada,
É aposta de ser vivida,
De ser bem vivenciada.
Caso queiras fugir dela,
Adias só teu caminho,
Que obrigado à passarela
És, qualquer que seja o espinho.
Se atrais o acontecimento,
Indivíduo, conjuntura,
Quando se der o momento
Do encontro, chegou a altura,
É para o vivenciares
E no nível mais profundo,
Mais capaz de o enfrentares
Que em ti haja em tal segundo.
É que, se o não desejavas,
Se achavas que não podias
Enfrentar tais águas bravas,
Antecipado o terias,
Terias outras escolhas
Que iriam desaguar
Em eventos sem tais molhas
E era de outros vivenciar.
Mas foi esta a conjuntura
Que atraíste para aqui,
Agora chegou a altura
De a vivenciar em si.
Não fujas, pois, vivencia
O que de vivenciar tens,
Aprende com este dia,
Só após vai por outros bens.
Vive o evento até ao fim,
Ao derradeiro limite,
É teu mestre visto assim,
Vais aprender teu desquite.
Quando a tormenta passar,
Quando o que houver a aprender
Já foi posto no lugar,
Uma estrela aparecer
Vai no céu da tua noite.
O céu seguirá contigo,
Protege-te onde te acoite
E onde vás te oferta abrigo.
Essência
Teu íntimo é tua essência,
O que de ti pões em tudo,
Quando escolhes com premência,
Quando pensas por miúdo,
Contigo quando a harmonia
Teu gesto é o que encarnaria.
É o que é benéfico a sério
Porque é o que materializa,
Põe da carne sob o império
O que do espírito a brisa
Em nós é já quanto somos
Mas no corpo não dispomos.
Uma boa escolha espelha
O que no fundo és em ti.
Seja nova ou seja velha,
A evoluir vais por aí,
Pouco importa a consequência
Que dela for decorrência.
A má escolha tem o acordo
Dos inúmeros motivos
Que me mordem e em que mordo,
Do âmago fora de arquivos
E em que o céu não põe a mão,
Dele alheia à protecção.
Onde teu eu mais profundo,
Sentimento mais intenso,
Onde o coração no mundo
Colocarias imenso?
- Se este acto é que em ti o sente,
Então segue, segue em frente.
Caminho
O caminho original
Era sempre o da abundância.
Se agora o não sentes tal
Ou dele perdeste a instância
Ou, perdido em vão discurso,
Anda errado o teu percurso.
Se tal é o caso, medita,
Pára, eleva-te às alturas:
Algo trava ao passo a fita,
Do que crês não te asseguras,
Bloqueaste em ponderações,
Não és livre, tens cisões.
Teu ego leva-te a crer
Naquilo que lhe convém,
Que menos freima te der,
De que rejeição não vem.
É o correcto por sistema
Que te propõe como lema,
Em que pensas, em que crês,
Com que ages em consonância,
Do senso comum tão rês
Que com nada há discordância,
Nem doutrem há rejeição
Nem da sociedade então.
Aceite, bem integrado,
És o eterno prisioneiro,
Que o correcto, este teu lado,
Não és tu, é o teu argueiro.
Não ages fiel ao chão
De teu íntimo padrão.
Assim, todo deformado,
A andar vais alegremente
Ao precipício votado,
Atrais só perdas em frente
E perene restrição,
Bem longe do teu torrão.
Caminho de liberdade
É caminho de abundância.
O que és sê, de idade a idade,
Que a vida vai, nesta instância,
Dar-te em dobro, de eficácia,
Pelo fulgor desta audácia.
Gostar
Gostar de ti, auto-estima,
Não vai nunca depender
Do que alguém te vem dizer,
Emprestar, jogar acima.
Nem sequer do que é que alcanças,
Do que podes conseguir,
Nem do que vais perseguir,
Almejar, mesmo se cansas.
Duma entre as condicionantes
Gostar de ti só depende:
- Teu imo é que dentro o acende,
É o invés do que além plantes.
Vivenciar
Adquirir e amealhar bens materiais,
Ter uma profissão, cobrar poder,
Estatuto social sobre os demais
- Não é para que um homem foi nascer.
Foi para vivenciar muitos duais:
O bom e o mau, as dores e o prazer,
Oposto aos agradáveis bons sinais
Qualquer desagradável que vier.
Se sofrer não é bom, porque aceitá-lo?
É que, se os dois extremos vivenciarmos,
Acaba-se a questão, vamos em frente.
Aceita o que é proposto, sem abalo,
E não fujas da dor, que, ao aceitarmos,
Continua a jornada eternamente.
Responsabilidades
Quando alguém faz o que era de ser feito,
Responsabilidades a assumir,
A de devir quem é, moldar seu jeito
Para, concorde em si, bem se cumprir,
O compromisso cumpre dum eleito
Com o povo do céu, rumo ao porvir,
Também consigo próprio, com seu peito
Que fala para si quanto sentir.
Honrando o compromisso, esta estadia
Na terra será boa, que a energia
Do céu semeia aqui, na opacidade.
A sábia voz que guia na jornada
Nítida fica quando for honrada
A jura de em nós pôr a eternidade.
Vagueando
Arte de ir vagueando pelos céus,
Escoando o pesadume até voar,
É a minha plenitude singular.
Minha capacidade de por meus
Meios ir aprendendo a volitar,
A voar para onde à vida os véus
Levem e a mim também nos escarcéus:
O dual vem aqui se harmonizar.
É cumprida a missão de mais um dia,
Cumprido o mundo como Deus o fez:
Não sais de dentro e te manténs o que és.
É vestir-me da luz que me alumia,
Capaz de retomar minha morada,
E a festa já está sendo preparada.
Parece
Nem sempre o que parece apropriado
É o que afinal vai sendo preparado
Para se aqui em baixo vivenciar
Em quanto na matéria tem lugar.
Que é que me move, porque quero eu algo?
Porque me sinto só e os cumes galgo?
Que me dêem valor e que me aceitem?
Tudo quanto me louvem ou despeitem,
Nenhuma atribuição vinda de fora
Colmata a grã lacuna que em mim mora.
Fazes o que agradar à tua roda
Para a tua auto-estima ajudar toda.
Mas não depende nada do que possam
Dizer ou emprestar no que te esboçam.
Gostar de ti depende de ser, não
De fazer nem de ter qualquer quinhão.
E ser é simples: quieto, acede ao imo
Mais fundo de teu ser, que é mais ao cimo.
Sentir, sentir, sentir, interiorizado
Ficar com o que sentes alinhado.
É estranho no princípio, o que é normal,
Lugar desabitado era, afinal.
Aos poucos, ao parar o pensamento,
Acedes a ti, no imo és sentimento,
A perceber começas o que é ser:
Ser é sentir. O inverso é proceder
Com o folclore do ego a distanciar
Donde qualquer essência tem lugar.
Acede ao que és, logo um amor perene
Virá de cima penetrar infrene
A tua vida, enchendo-a de magia:
- Ao céu acedes em ti nesse dia.
Força
A força do homem vive da do céu,
Sem a energia deste nada somos:
Puxar a corda pouco me acresceu,
É do mais forte repartir os gomos.
Se o que propões tiver do Cosmos força,
Será maravilhoso, tudo bem
Irá correr, fluir, passo de corça
A saltitar pela campina além.
Tudo voa sozinho. Mas, se a sós
For tua força contra o Universo,
Quem pensas que és, com tal carrego após?
Ele é muito pesado, no reverso,
Para ser empurrado, se o não quer.
Ajuda pede ao céu, deixa ajudar,
Que, adonde for seu vento, vai quenquer:
Se as coisas não fluírem, é parar.
Não queiras, pois, forçar, ouve e aprende:
Depois lavra daqui o que te rende.
Aceite
Pelos outros ser aceite
Pode ser mui vantajoso,
Mas não dá maior deleite
Que ser quem a si se ajeite:
- Isto, sim, dá mais que gozo.
Caminhos
Se quaisquer caminhos irão dar ao mar,
Da felicidade o caminho é só um,
Único, especial. E para o teu levar
A bom termo tens de te ligar a algum
Secreto abismo íntimo, emoções haurindo.
Cada descoberta do caminho traz
A serenidade para quem for indo,
Uma indescritível, do imo funda paz.
Quando um homem segue o perceptivo mundo
E nele deseja os atributos seus
Ver realizados em vergel fecundo
Para ser aceite, com poder sem véus,
Vai ser tudo em prol duma exterior benesse,
Não do interior bem. Seja qual for o rumo
Que for de seguir, o original se esquece.
E era o verdadeiro, de meu cume a prumo.
E, se este não chega, outros irei trilhando,
Porém sem certezas, convicção deveras.
São meros percursos, não caminho que ando
Quando o rumo entendo onde desbravo as eras.
Vejo que encontrei se o coração me pulsa,
A emoção aflora, as pernass tremem de ânsia.
Tudo explica o corpo, o mais de mim expulsa,
Em casa se sente em infinita infância.
Insatisfeito
Quando alguém é insatisfeito,
Algo então não anda bem,
Vazio aberto no peito,
Dúvida do mais além,
É um sentimento de falta,
De que não se está completo,
Que traidora é qualquer alta
Do vazio a ser repleto.
Assim é que irás partir,
Cavaleiro vigoroso,
Do elo perdido a inquirir
E não descansas, teimoso.
Contudo, sempre parece
Que o buraco continua,
O vazio permanece
Na mágoa que nos acua.
Esta vontade perene,
Tentativa de estar bem,
É o que a correr faz que pene
A cumprir um passo além.
Esta agitação provoca
Sempre mais actividade,
Busca o que após se coloca
Que é o além que nos persuade.
Depois, consequentemente,
Vem mais insatisfação.
Quanto mais correr em frente,
Mais outrem me quer à mão,
Já que sou quem disponível
Encontra a tudo fazer.
E mais culpa aqui visível
Vem por mim dentro escorrer.
Mas tem de se fazer tudo?
Momento de parar antes
Não há-de ser sobretudo,
De interiorizar que instantes
Me insatisfazem vazios?
Vejo então que a plenitude
Não corre, não ata os fios
Que esta fuga em frente ilude.
Nunca foge para fora
Dela mesma: quem é pleno
Que fazer não tem agora,
Sabe que nenhum aceno
É preciso para ser,
Em ser basta concentrar-se.
Ao não cuidar em fazer,
Ao se centrar sem disfarce
Apenas em si a estar,
Leva inconscientemente
Outrem a ser similar,
Fica livre de repente.
Culpa, urgência, sempre são
No fundo devastadoras.
Desprende-te, que isto é vão
E o mundo dá-te os emboras.
História
Uma história verdadeira
Parecer deve inventada,
Como uma história inventada,
Parecer a verdadeira:
Doutro modo uma jornada
Trigo ao joio não peneira.
Contador
Contador amordaçado
Por depuração estética,
Breve à gémea todo atado
Duma depuração étnica,
Antes de tombar no abismo
Sonha com liberalismo.
Liberalismo pretenso
Chega – “Calem-se!” - a gritar
E, quando livre me penso, -
“Ouçam-nos!” - ouço , em lugar.
Depois tudo um pouco finge
E só nisto alguém se atinge.
Duas
Duas coisas manterão
Sempre feliz uma esposa:
Cuidar bem do seu torrão
Que é o trilho próprio que goza;
A outra, que finda a briga,
É só deixar que prossiga.
Ideais
Não adiantam ideais
Poeticamente perfeitos,
Com belas palavras tais
Que versos dão escorreitos,
Porém que tolos se antolham
Confrontados com o real,
Quando ao acordar os olham
Os trabalhos, a fatal
Urgência que há de comer,
A aguilhada de viver.
Não adiantam ideais
Que os pés nos tiram da terra:
Degolam-nos, ao fim, mais
Que da guilhotina a serra.
Revolução
A revolução, na essência,
Nunca rompe com os laços
De egoísmo e prepotência:
Nunca sacudiu dos braços,
Das pernas e das cabeças
A preguiça de erigir
Novo mundo doutras peças,
Igualdade a produzir,
Fraternidade de vez,
A envolver, no dia-a-dia,
Actos de qualquer jaez,
Por pífios que se os veria.
Preceitos
Nossos preceitos morais,
Mesmo até bem arraigados,
Raízes podres demais
Parecem ter quando os fados
Nos velam de realidade,
Exigindo então de nós
Decisão que persuade
E a prática dela após.
Tudo na mão se esboroa:
- Outra então é a gesta boa.
Migrar
Qualquer ânsia de emigrar,
De cada vez mais longe ir,
Quer de desertos cruzar,
Quer de Himalaias subir,
É o tutano de ser homem,
Dum ancestral que cá dentro
Persiste e faz que o retomem
Os fogos que ardem no centro,
Luz empurrando aos recantos
Distantes de Terra e Espaços
Como do imo até os espantos
Onde o Infindo estende os braços.
Dolorido
É difícil perder uma inocência,
É dolorido ver nossa teoria
A massacrada ser pela evidência
Da realidade crua que espolia
Dúvidas, certezas e verdades.
E dói reconhecer que te persuades
A repensar ideias ponderadas
Para às acções levarem acertadas.
E mais dói descobrir que é sempre assim,
No princípio, no meio, até ao fim.
Enfurece e remói nos peitos meus,
- Mas é o preço de me ir tornando Deus.
Morte
A morte é, por si, fatal,
É parte da própria vida.
Para a fé será portal,
Mera passagem temida,
Travessia para o eterno.
É uma espera, um reduzido
De aflições tempo superno
Antes dum umbral volvido
Que vai permitir a entrada
Para o seio do divino.
Porém muitos, à chegada,
Na hesitação do destino,
Apegam-se à vida tal
Se não houvera o outro lado,
Tal se não fora real
O eterno em Deus destinado.
É o medo ao desconhecido,
Toda a incerteza que envolve,
Tal mantelete fluído,
A convicção que resolve
Acolher a religião
E que nos faz agarrar
A vida com decisão,
Bem precioso sem par.
Não importa, pois, a crença,
Não importam orações,
Perdão de qualquer sentença,
Os pecados, as traições,
A vida actual é a certeza
Única de que dispomos.
Por isso o apego que a preza,
À morte o temor que apomos.
A morte é dor, é saudade,
É definitiva ausência.
Da vida eterna, em verdade,
A credível existência
Não nos tolhe o sofrimento
Da perda de alguém que amamos.
O pedinte mais chaguento,
Mais miserável que olhamos
Não se apega tanto à vida,
Mesmo quando a dor lhe medra
Dia a dia, desmedida,
Como o musgo se ata à pedra?
2
Segunda Lareira
Árvore
Qualquer árvore se inclina
Sobre o lago e seu reflexo
Árvore não é mas sina
Da palavra: lá conexo
Reproduz o pensamento
Que aponta o dado-alimento.
Liberdade
A liberdade da guerra
É apenas uma ilusão
De ao inimigo que aterra
Elidir, de supetão.
Verdadeira liberdade
É aquela que convencer
O inimigo, de verdade,
A deixar de vez de o ser.
Problema
Problema não é escolher
Religião em que crer.
Problema é de acreditar
Em espírito, o imo a par,
Na essência que decorrer
De qualquer que se escolher.
Velho
Viver tal se o dia de hoje
Não fora tão importante
Como o de ontem que nos foge
- É do velho o mal gritante.
A juventude não é
Privilégio sem medida.
Olhada de boa-fé,
É mero estágio da vida.
Trilho
O trilho da sapiência
Ninguém descobre nem quem
As veredas da evidência
Descobre que lhe convém.
Porque a sapiência vem
Do Criador e só ele
Tornará capaz alguém
De a aflorar na própria pele.
Rei
O rei dele mesmo é o homem,
O que é muito, muito mais
Que do mundo, que o consomem
Terra, mar e ares que tais.
Tal é o homem, que a palavra
Recebeu que cria a ideia
E origina em sua lavra
Tudo de que a terra é cheia.
Perfeita
Nunca a terra prometida
Será uma terra perfeita,
Nunca do Criador querida
Para a criatura eleita.
Há-de esta formar-se em dor,
Para a humana condição
Abandonar sem temor
E poder entrar então
Na casca da divindade,
A tornar-se eterna e bela,
Brilhando ante a opacidade
Tal no além brilha uma estrela.
Partir
Pouco importará o destino
Quando o que importa é partir:
Busca do Éden clandestino
Basta por si, traz porvir...
Nem é preciso o regalo
De vir um dia a encontrá-lo.
Conjuntura
Ante a conjuntura má,
O pessimista: - ”Pior
É impossível, já não há.”
E o optimista: - ”Oh, senhor,
Veja bem, o mais credível
É que é possível, possível...”
Reter
Para reter o poder
Há quem queira até matar.
Para liberdade ter
Há quem finde a vida a dar.
Por isso, quando nos tenta,
A esperança é violenta.
Respeitável
A respeitável mulher
Casada não gostar finge
De sexo quando o tiver,
O que quase sempre atinge.
Frustra o homem, na disputa,
E ele vai à prostituta.
Esta finge apreciar,
Mas, como o faz tantas vezes
Com tanto e tão vário par,
Não tem prazer: são corteses.
- A fingir, pois, toda a gente
Acaba estupidamente.
Amados
Apenas se adora um deus.
Para poder ser amados
Só os humanos, sob os céus.
Se adoramos, enganados,
Um humano, não podemos
Então amá-lo deveras:
Depois que o deus lá não vemos,
É o ódio, devimos feras!
Fraco
Mulher, judeu, preto, cigano...:
- ”Fraco, ignorante, parvo, soez...!”
Mas, se se educam, isto é engano,
Já não ignoram mais, de vez.
E, se por eles já pensarem,
Então estúpidos não são.
Se para a luta se juntarem,
Fracos como é vê-los então?
Forte
Muito mais forte que o ódio
É o amor. O ódio destrói,
Não pode durar-lhe o bródio,
Leva ao fim quanto ele rói.
O amor, não, o amor constrói,
Abre na vida uma rua
E por ela continua.
Controlar
Os fortes alguém procuram
Que os possa, enfim, controlar.
Ao invés, os fracos curam
De alguém controlar, a par.
O controlo de si mesmo
É o que é preciso, afinal,
E não mais fugas a esmo,
Do bem pouco e muito mal.
É criar em cada dia
A minha própria energia.
Esperança
É muito estranha a esperança!
De esperança viver posso,
Dum pouco de água e comida
Que em laboriosa trança
Teço no fundo do fosso
Em que me lançar a vida.
Mas pode impedir a acção
Que traga a sobrevivência.
Às vezes, quando é perdida
É que as pessoas então
Agem, lutam sem clemência,
Desafiam a medida
Que as ameaça esmagar,
Ao seu espírito altivo,
À vontade de viver.
Às vezes, nada a esperar
É que afinal me põe vivo
Do tamanho do meu ser.
Positivo
Se escolher só o positivo,
Do real perco metade,
Perigo a que não me esquivo.
Caminho certo é ver tudo
Como um todo que me invade.
Depois escolher, agudo,
Que o idealismo, afinal,
Pode ser mesmo mortal.
Míope
É míope a juventude
Mais em si própria centrada,
Idealista e desligada.
Com cegueira por virtude,
De algum modo é abençoada,
Pois não vê consequências.
Então é, nestas pendências,
Estado de graça dada.
Estado que vai ser gasto
Do efeito cumulativo
Das experiências que vivo
E que trazem ao repasto
Todo o efeito corrosivo
De infindas desilusões.
Com ele vão-se os senões
De eu ser este cego altivo
Que o bom-senso haja afastado.
Desprovido então da graça
Salvadora que embaraça,
Eis-me sendo condenado,
Enfim, de meus próprios olhos.
E enfrento então os escolhos.
Prisão
Aqui, na prisão da vida,
Dependemos lá de fora,
Dos que se foram embora,
Para existir em seguida.
Sem o reconhecimento,
Sem o apoio desse amor,
Deixo, no mundo exterior,
De existir nalgum momento.
Desapareço diante,
Diante dos próprios olhos:
A vida com seus abrolhos
Escapa-se num instante,
À medida que as pessoas
De nós se vão afastando.
É como um naufrágio, quando
Em terra hostil e sem loas,
Na praia dos já perdidos,
Naufragamos sem mais rumo.
E por vezes, em resumo,
Os que vêm, comedidos,
Abastecer-nos de vida
Ficam cansados demais
Com ocupações reais,
Não se importam, em seguida.
Por isso, árvore a cair,
- Faz barulho quando cai
Se ninguém lhe ouvir um ai? -
Nós deixamos de existir.
Canto
Antes de a dor ocorrer
Não via além de meu canto,
Devotado a um outro ser
Em vida de sonho e encanto.
Tinha-me entregado a isto:
O efeito iria durar
Até meu fim... Só que avisto
Além o estranho a amear.
Foi terrível erro trágico,
Contudo, sem intenção.
Como imaginar que o mágico
Punha o inferno em acção?
Nunca mais devo entregar-me
A um fugaz humano real,
Apenas ao que Deus arme,
A consciência universal.
Pois, quando me entrego a alguém,
Deito o livre arbítrio fora.
É um perigo e ataca além:
Quem no-lo aceitar devora.
Positivo
Como posso transformar
Em positivo um sinal,
Sentir-me bem sem parar,
Em vez de me sentir mal?
Tu tornas todas as coisas
Da maneira como as pensas:
Se mau inscreves nas loisas,
Vão ser más, tais tuas crenças.
Tens de implantar a maneira
De bem cuidar do teu dia
Que é o que decides que a jeira
De tal dia ser devia.
Dizem
Dizem que a justiça é cega,
Que o amor é cego dizem,
Que devo agarrar a pega
Da fé cega que alguns gizem...
Cegos a ser conduzidos
Por cegos mais desprovidos?
Como é que então não se apura
Que é de abrir olhos altura?
Realidade
É muito bom termos sonhos,
Mas ninguém pode viver
De sonhos bons nem medonhos.
A realidade há-de ser
Sempre o chão que fruiria
Alguém no seu dia-a-dia.
Raiva
A raiva mantém-nos presos
De modos mais destrutivos
Do que aço e cimento coesos,
De arame os farpados vivos.
Muda em casca consumida
Uma pessoa, sem nada
Dentro para dar na vida
A qualquer pessoa amada.
Irá, pois, manter-te aqui,
Tirar-te o teu tempo inteiro,
Restringir-te o espaço em si...
Mas não há toque certeiro
Que te roube tua mente
E menos teu coração,
Teu espírito presente:
Ninguém tos tira – teus são!
Adversidade
Através da adversidade
Para sempre nós mudamos
Num momento de verdade:
O nosso ser entregamos,
Ficamos, ante os céus frios,
Tão plenos quanto vazios.
Num momento tudo é claro
Tal qual água cristalina:
A faísca, um clarão raro,
Silêncio, calma divina,
- E a vivência pessoal
Desemboca no Total.
Ocorre perante a morte,
Teremos de a ver sorrir,
Acenar a dar-nos norte,
Antes de saltar ao ir:
Isto é o que aí acontece,
Suspensos no ar refece.
E, quando aterro outra vez,
Descubro outra dimensão
No mundo que antes me fez,
Outro agora é o mesmo chão.
E já não procuro abrigo:
Sem bem nem mal, que perigo?
Lado
Se do lado da manteiga
Nos cai sempre uma torrada
E se um gato cai na veiga
Sempre de pata assentada,
- Um gato em manteiga untado
Cairá para que lado?
Escuro
A partir dum quarto escuro,
Três atitudes humanas:
Se no quarto algo procuro,
A um cientista tu me irmanas;
Se busco o que ali não há,
Um filósofo serei;
Se crente, o que nunca está
Procuro e exclamo: - ”Encontrei!”
Prenda
Dou-te de prenda uma mala,
Tichertes de fantasia:
Logo a vida nos regala
De ternura cada dia.
Uma prenda troca afecto
Em corrente de mão dada,
Porta a acolher-nos a um tecto
No frio da madrugada.
Contamos trinta e três anos
De partilha, de projectos,
De sonhos e desenganos,
- Na vida quantos trajectos!
Não duas, mas uma vida
Foi o que até aqui vivemos:
O amor foi a nossa lida,
Mais fará que nos amemos.
Tudo
Tudo, tudo o céu te dá,
Notícia, protecção, luz...
É o que precisas, não já
O que queres, pois traduz
Qualquer querer o teu ego
E no céu não tem emprego.
Força
Força não é carregar
Mil e um toros de madeira.
Força é ver no seu lugar
A mole pesada inteira
...E nem sequer lhe tocar!
Diverso
É fácil amar o igual,
Confortável e seguro.
Já o diverso, por sinal,
Escolhas doutrem que apuro
Que me apertam contra o muro,
Quão difícil é amar tal!
- Isto é que é, porém, penhor
Do que é o verdadeiro amor.
Controlo
Vivo por inteiro a zero
Quanto a controlo ao que vem,
Mas a mil quanto ao que espero
Do que do ignoto me advém.
Por mor da contradição,
Quando arauto, sou-o em vão.
Auto-suficiente
O nosso ideal, hoje em dia,
É ser auto-suficiente
Cada qual interiormente.
Bem como a par, nesta via,
Sentir-se ligado a todos
E a tudo. Mas sem apegos,
Sem dependências de engodos
Emocionais, sem os pregos
Que os vínculos hão-de ter.
É que, se estivermos bem,
A Humanidade também
Melhor fica e há-de ser.
Medo
É do ignoto tanto o medo
Que à memória duma dor
Se agarra o homem mais cedo
Do que ir em frente propor
Se irá sem saber, sentir
O que é que vem a seguir.
Gota
Estou aqui, preparado
Para o que tiver de ser
Em prol do trilho almejado
Meu e doutrem, de quenquer,
Do Cosmos ou do Planeta...
Sei que sou gota discreta
Mas também sei que uma gota
Tem de fazer sua parte.
E eu quero dar boa nota
Do que em meus ombros acarte.
Aí
Ele estará sempre aí,
De ti próprio no mais fundo:
Onde te encontras a ti,
A Ele o encontras e ao mundo.
Na fundura cada qual
É reunido ao Universo
Em cujo Todo, afinal,
Tu és o Infindo em reverso.
Emociona
Apenas um coração
Que se emociona anda pronto
A se arrebatar do chão:
O arrebatamento é o ponto
Que qualquer alma fará
Aqui se expor desde já.
Melhor
O tempo da humanidade,
O melhor tempo há-de ser,
Se já o papão não a invade,
Quando cada qual tiver
A chave, de vez em quando
E quando mui bem quiser,
De ir lá Acima, visitando
Os céus a seu bel-prazer.
Hora
Esta é a hora crucial,
Tudo tem de acontecer:
A mudança é radical
E a muda é de agora ser.
É urgente interiorizar,
Hora de meditação:
Há que momentos criar
De olhar no imo o coração,
De olhar para dentro e fundo
E de aprender a sentir,
Sentir a Alma do Mundo,
Deus, Cosmos, o Todo-a-ir.
E de O sentirem à força,
Sentir-se a si todos vão.
Quem já O sente hoje se esforça
E a força é o rumo que é são.
Amor
Um só termo é de dizer
E de fazer: dar amor,
Amor como o amor quiser.
As religiões aos rituais
Irão ter de contrapor,
Aos símbolos visuais,
O incentivo para olhar
Cada qual bem para dentro:
É neste íntimo lugar
Que Deus nos espera, ao Centro.
Falam
“Eles falam em meu nome,
Não são as minhas palavras,
Falam de Mim, mas a fome
Não era a das minhas lavras,
É a fome do que eles querem:
Falam duma Instituição,
Da Igreja com que se aferem.
Porém, nunca falarão
Do que é que ela representa,
Do que a inspira... Ninguém tenta.”
- Para quando a diluição
Do monstro da instituição?
Sei
Não sei onde irei parar,
Terei é de continuar
A fazer o que Ele pede
Como e quando Ele o concede.
E há um recanto onde chegar.
Não o tento controlar:
Há-de ser quando for, quando...
- Tenho é de seguir andando.
Domínio
É fora do domínio da palavra
Que Deus existe, exacto.
Não tentes encontrá-Lo dos termos na lavra,
Outro é o pacto:
- ”Queres ouvir-Me?
Vem sentir-Me!”
Liberdade
Religião que seu tempo saiba ler
De liberdade práticas ensina:
Respeita o livre-arbítrio de quenquer,
A toda a tolerância já se inclina.
Valerá tudo para ser feliz,
Só que não prejudique nem a si,
Nem a outro indivíduo, de raiz,
Nem à natura, à Terra em que nasci.
- Eis a marca universal
Do que é o porvir da moral.
Pressão
A agressiva e autoritária pressão
Da civilização
Já o homem mal aguenta:
Libertar-se, pois, tenta,
Dele próprio sente a falta,
De alma e da luz que o exalta.
À medida que intui o que do imo o chamaria,
Intui que aquela não é a via.
Negativo
Se te tentas proteger
De algo que for negativo
Com negativa atitude,
A protecção que vier
É logo anulada ao vivo.
Negativo e negativo,
Do negativo em virtude,
Nunca aqui dá positivo.
Distante
“Quão mais alguém se ligar
A Mim vendo-me distante
(Com o céu comunicar
Sempre é da intenção diante),
Mais distante irei ficando,
Menos posso, se a agir ando.”
Turistas
Passam aqui, distraídos,
Turistas a conversar,
Bela arquitectura a olhar
E vão-se embora, cumpridos.
- Ninguém há de olhos fechados
A sentir do íntimo os lados.
Sofrimento
O sofrimento é pesado
Só se o não compreendemos.
Ao invés, do outro lado,
É entendimento que temos:
É tudo de Deus perdão,
De nós, tudo gratidão.
Tentativas
“Amo-te nas tentativas
De seres feliz deveras
Em meio às brutais esquivas
Do mundo hostil pelas eras.”
- Assim Deus me falaria
Se O ouvira cada dia.
Pecado
O pecado não existe
Como não existe um erro.
Um erro é um mero despiste,
Um desvio pelo cerro
Do caminho que é mais perto,
Que atrair irá decerto
Efeitos. E a aprendizagem
Poderá surgir então
De como é feita a triagem,
De efeitos qual é a gestão.
Deus ama apesar de tudo,
Das falhas do nosso entrudo.
Portas
Os rituais portas ocultas
Serão doutras dimensões.
As catedrais de fé cultas
Redes serão de pregões,
Espalhadas pelo mundo:
Igrejas, locais sagrados
Ou simbólicos, no fundo,
São portais apropriados
A uma nova dimensão.
Pois é nesse campo, nesse,
Que ocorre a revelação,
Que, afinal, tudo acontece.
- Ou acontecer devia,
Se o fim ninguém lho traía...
DEle
DEle conhecem a história,
Não conhecem a energia,
São palavras de memória,
Não o amor que é dEle a via.
Tudo é dimensão mental,
Da vivência, nem sinal.
Então tudo é diferente,
Traído completamente.
Estado
Quando tudo é retirado,
Num inteiro desconforto,
É que atingir logro o estado
“Que-interessa?”, “Não-me-importo”:
Já não há nada a perder,
Já não há nada a ganhar,
Cheguei ao fundo que houver.
Milagre é que em tal lugar
É que anda alojada a paz.
É neste zero total
Onde de nada ando atrás,
Nada controlo, afinal,
Que nos reside deveras
Do íntimo a tranquilidade:
Uma paz de além das eras
Enche-me de eternidade.
Já me sinto outra pessoa
E outra, lento e firme, sou-a.
Aparece
O que Ele é na realiddade
Ninguém o logra alcançar.
Aparece, idade a idade,
Conforme o tempo e o lugar
O lograrem compreender.
Na época de Moisés,
É deste a energia o Ser
Como O entendem por sua vez.
Há dois mil anos atrás,
O que iria ter impacto
É Jesus com o que faz.
Hoje Ele faz outro pacto,
Age agora mais subtil
Porque estamos preparados
Para como isto O assimile.
Sempre à frente, os passos dados
Puxam pela humanidade,
Para ajudá-la a avançar.
Mas não demais, em verdade,
Ou nem dá para O avistar.
Causa
Aquecimento global,
Terrorismo, violência,
Sida, crise, desemprego...
- Tudo isto e o mais, afinal,
Já nos andam a evidência
A pôr em causa, o sossego.
Cuidam que são acidentes?
Nada do que anda a ocorrer
É acaso em programação.
Tudo, em todas as vertentes,
Programado é para ser,
Para nos retirar chão,
Para a dúvida deixar,
Que as infindáveis certezas
Enfim possam ruir de vez.
Antes de nos apanhar
O tufão, o que mais prezas
Pergunta-te se é quem és.
E a nós próprios perguntemos
E, por uma vez, por uma,
Na vida admitiremos:
- Posso estar errado, em suma.
Diferenças
São a grande comunhão
As diferenças que enfim
Nos separam mão da mão.
Com Universo sem fim
Onde tudo é diferente
Comungamos: tudo integra,
Tudo, sendo divergente,
Se complementa, por regra.
Compreendemos que ninguém
Tem de a ninguém ser igual
E que o amor que se tem
Pode sentido afinal
Ser por coisas e pessoas
De nós próprios diferentes,
Desde que tome por boas
As diferenças presentes.
E ninguém é mais nem menos,
Nem melhores nem piores,
Todos iguais e pequenos,
De trilhos vários, autores.
Escuro
Escolhendo a luz no escuro
Promoves transformações,
As maiores que figuro,
E em células as dispões.
No meio da escuridão
Mostras este ourives de alma
Que és, tal como a criação
Inauguras, forte e calma,
Da identidade interior.
Nova era principias,
Que esta é a fonte do valor
Dela, por onde te guias.
Se tu mudas a energia,
Vais mudá-la à tua volta,
Que por seu lado a reenvia
Em redor, maré à solta,
O que mais irá mudar
Mais longe, encadeado berço,
Até um dia alcançar,
Alcançar todo o Universo.
Transformar
Vais-te querer transformar,
Vais querer evoluir
Não só por ti, mas, a par,
Pelos biliões que irão ir,
Por um mundo mais amigo,
Evolucionar contigo.
Pela Terra que o irá
E pelo Universo inteiro
Que, por um segundo já,
Mais subtil fica e leveiro.
E esta fracção de segundo
Impregnará todo o mundo.
Muitos
Muitos de nós pensam muito,
Muito falam, muito correm,
Muito trabalham no intuito
Só de fugir, senão morrem,
Do fulcro em nossa energia:
A dor que se sofreria.
Porque a não compreendemos,
Não sabemos o porquê
Do aperto ao peito que temos.
Se em lógica tomo pé,
Não há lógica, há senões;
Se em razões, não há razões...
É tudo de lá de trás,
Das vidas que não vivemos
E em nós vivem, buscam paz,
Porque lá nunca quisemos
Sentir deveras a dor.
E ela foi, no passador,
Escorrendo vida a vida,
Cada vez mais pressionada
E mais tapada, escondida.
Ora, a defesa cerrada
É que vem dando mais dor,
À primeira a justapor.
As vidas, pois, vão passando
E o peito, mais apertado,
A insatisfação pontuando,
E tudo a ficar bloqueado,
Sempre a tentarmos viver
Vida normal de quenquer.
Talvez, se calhar, achemos
Que no dia em que a chorar
Finalmente principiemos
Nunca mais vamos parar.
É o resto da eternidade
A chorar por piedade.
Então é de controlar
Todo o processo à partida.
Distraio-me sem parar
Com carro novo em seguida,
Roupas, tralhas a pataco,
Para tapar o buraco.
Mas o buraco não tapa.
Chega o dia de encarar
De frente a dor que se alapa.
Entender, de mim a par,
Que é minha e de mais ninguém.
E que o que disto me advém
É que ninguém nesta vida
Dela responde, só eu.
Tapei-a eu, escondida,
E ela grita, quer ver céu.
Esta dor enclausurada
Acaba atraindo à estrada
Aquela doença, a morte,
Aquela impotência, alguém
Que mal crendo traz má sorte
Ou mesmo quem nos quer bem
E nos faz mal sem querer,
Coisas tristes de se ver...
Chega o dia em que não temos
Mais argumento à defesa,
Mais resistência que erguemos.
Chega o dia em que a tristeza
Bate fundo, sem mesura,
- E abre mesmo a sepultura.
Mostrar
“Vamos mostrar aos que Me afastam,
Que em repressão e medo apostam,
Que estas mudanças que os agastam,
Transformação e cura, gostam
De realidade serem já,
Possível, viável cá e lá.
Edificá-las na matéria
Mais fácil é do que parece.
Mármores, oiros, coisa séria,
Não são precisos na quermesse.
E não precisa, nem sequer,
De hierarquia nem poder.
Preciso é só, seja onde for,
Ligar o Além, viver o Amor.”
Enchem
Duas vivências no mundo
Enchem a vida interior:
A emoção, fundo do fundo;
Significado, o que for.
A emoção porque nos enche
Dum outro lado da vida,
O invisível que preenche
O imo, portal que convida
A um mundo desconhecido.
Significado, que a mente
Nos pacifica, entendido
Que há um outro lado existente.
Canal
O canal para o Além
Hoje anda demais estreito.
Cada regra o que contém,
Cada proibição, a eito,
Restringe, fecha o canal.
E afasta Deus e nós dEle.
Se O não sente cada qual,
Afasta-O, logo O repele.
Podem rezar, com promessas,
Visitas ao Vaticano,
Fazer tudo ou às avessas...
“Se não Me sentem, é engano,
Irão por fim afastar-Me.
E dentro de cada um
Eu estou vivo num carme.”
Porém, é preciso algum
Olhar para dentro, ao imo.
Função das religiões
É prover-lhe, dar-lhe arrimo,
Dentro ir fundo aos corações.
- Continuam até agora,
Contudo, a olhar para fora.
Papa
Não basta um papa a mudar:
Há mil forças anacrónicas
Fortíssimas a puxar
Do passado para as tónicas,
Convencionalismo alvar.
Tudo é tão cristalizado
Que não há mais a fazer
Que manter, por todo o lado.
E sem regredir manter
Já difícil é um mandado.
Assim, a Igreja terá,
No futuro, de sofrer
A grande perda: será
A maneira de, a valer,
Se desmontar, para já.
Não, porém, para morrer.
É preciso desmontar,
Qual velharia qualquer
Que queremos restaurar:
- Desmontar para crescer.
Incondicional
“Amor incondicional,
Aceito, perdoo tudo.
Não que fale cada qual
Em meu nome e que, abelhudo,
Ande espalhando energia,
Minha não, de fantasia.
Ora, enquanto isto não muda,
Vou ficando cá escondido
De arte em obra, fala muda
De quem no amor sempre há crido.
O resto, deles será...
Eu, por Mim, não estou lá!”
Peregrinos
“Há milhões de peregrinos
Que vão aí ver de Mim.
E não podem seus destinos
Receber esse eu assim,
Esse eu feito camafeu,
Pois tal eu já não sou Eu.
De forma avassaladora
O espírito está mudando
E Eu preciso a toda a hora
Que me sintam, que aqui ando.
Caso contrário, findei.
Ora, é o que já constatei.
Religiões que não mudam,
Que não acompanham sendas
A que novos mundos grudam
Morrendo estão, feitas lendas,
No coração das pessoas.
Só os resistentes, às broas
Continuam indo aí.
Porém, ao não Me sentir,
Encostam-se por ali
E acabam por desistir.”
Informação
Toda a informação que temos
É que Alguém vem resgatar-nos.
De fazer nada teremos,
De responsabilizar-nos.
Assim, pois, nunca escolhemos.
Ora, um mundo sem escolha
É um mundo que se dirige
À mais egoísta recolha
Que o confortável exige
E que o mais barato acolha.
É um mundo que vai direito
Ao submundo a que anda atreito.
Urge radical mudança
No tom das religiões
Quando dizem o que alcança
O sagrado em seus sermões,
Quando é Deus que ali se entrança.
Que O mostrem será preciso
E que O façam bem sentir.
Ora, o passado é indeciso
Nas vias de o atingir.
Pouco embora toleradas,
São de hoje outras as pegadas.
Quem disto o trilho cobrir
É que a porta abre ao porvir.
Mal
Quando queres proteger-te
De algum mal, trepa mais alto,
Sente o amor que anda a envolver-te
E gratidão pelo salto
De poder ali ficar
No mais alto patamar.
E verás que o denso escuro
Não se aproxima, te auguro.
Incentivo
Todos gostarão de ser
Deveras incentivados.
Que enorme incentivo ver
Que Ele anda em todos os lados,
Agora aqui, bem de frente
Mesmo a cada um de nós,
Colocando a mão presente
Sobre as cabeças após,
A provocar a ascensão
Como espírito, energia,
Às almas que ao céu se vão
Daqui da terra à porfia!
Pior
Não há pior energia
Que travar uma emoção.
Eis a maior restrição:
Quando o ser
humano adia
Dar-se uma oportunidade
De sentir, até chorar,
Mesmo de felicidade,
- A si se adiou a par.
Lutam
Uns lutam pela igualdade,
Pelos direitos humanos,
Não-violência que grade
Do mundo os negros escanos,
Outros é na ecologia,
Na solidariedade,
Ética onde se não via,
Cooperação que agrade...
Tudo eleva o ser humano
Como a Terra enquanto todo.
E já não é por engano,
É da qualidade o modo.
Fora
Continuamos, perenes,
À procura lá por fora
De nós próprios, sempre infrenes,
Sem encontrar, na demora,
Nada de satisfatório,
Nada que seja eficaz,
Enquanto o premonitório
E que a solução nos traz
É que do imo a força pede,
Incessante, persistente,
Que destranque o que em mim cede,
Que retire a penitente
De espinhos coroa imposta
De mim a mim, para ir
Efectivar minha aposta,
Agir o que for de agir,
A fim de estar preparado
Para os tempos compreender
Que vêm de todo o lado
E o mundo irão subverter.
Solidão
A solidão é uma imagem
Só que de mim hei-de ter.
Se não consigo a coragem
De comigo conviver,
Se me não relaciono
Com meus eus interiores,
A essência de que me abono,
O eu superior e os humores
Dum ego, difícil génio,
Como, ao fim, poderei ser?
Como manter um convénio
E com outrem conviver?
Plástico
Quão mais de plástico é o Papa
Para que enfim gostem dele,
Mais a oposição o tapa,
Vê que Cristo não é aquele,
A analisar o que diz,
A analisar o que faz,
E mais frágil é o cariz
Da igreja que O contrafaz.
Quanto mais gente O sentir
Mais são os que irão passar
A mensagem e se unir,
Lado a lado, par a par,
A qualquer religião
Que então promova a Presença,
Deveras a conexão.
- E é o que faz a diferença.
Diferença
Sabes qual é a diferença
Entre o que é imaginação
E o que a uma visão pertença?
- Explode nesta a emoção.
Imaginar, ao contrário,
Trabalho feito na mente,
Não sente forte o cenário.
Se me imaginas presente,
Não vais então sentir nada,
Vais pensar em mim e pronto,
Não há no afecto alvorada.
Se no horizonte o que aponto
For um Deus que me aparece,
Se toca a minha energia,
De emoção tudo estremece,
Vai ser tão forte a magia
Que eu inevitavelmente
Sei que Ele é que está presente.
Desespiritualizam
Cada vez mais as pessoas
Se desespiritualizam.
As religiões, mesmo as boas,
Afastam do céu que avisam
Mostrando só sofrimento
Mais pecados, restrição
E no fim tudo é tormento.
Todos perdem conexão,
Não há mais vida interior:
Todos vão se concentrar
No externo que tem mais cor,
Movimento, som e ar.
O interior é só energia,
Bem mais difícil, subtil.
A desconexão é via
Que ao submundo abre o redil,
Dele as forças aparecem:
Desconectados, depressa
Querem tudo (e o mais esquecem)
Cómodo, barato, à peça...
É no que o submundo aposta,
Tudo a puxar para baixo,
E é do que hoje a Terra gosta.
Dum outro mundo onde o sacho?
E, lá em cima, as almas todas,
Sem mais ter a parceria
Das religiões, armam rodas
A tentar ainda algum dia
Resgatar-nos do atoleiro.
É o mais difícil argueiro.
Incomodam
Sempre os homens se incomodam
Com o que não perceberem,
Mas também sempre se engodam,
Já que perceber não querem.
Querem o seu universo
De razão e de conforto.
Por isso o mantêm terso,
Estão lá como em seu horto.
Por isso é que nada muda,
Por isso não desce mais
O Deus que alguém desiluda.
Cá não O querem os tais,
Não O querem tal qual for,
Querem a imagem antiga,
A do mártir sofredor
A que o hábito nem liga
E que dará jeito ter
Lá na parede de casa.
Senti-Lo não vai quenquer,
É comprar como se apraza,
Pendurá-Lo e então ter pena.
É o que sabem fazer bem.
Ter pena é o que dEle acena
Ao que a propósito vem.
Fá-los sentir superiores:
Pena é do que está pior.
E distantes dos horrores,
Pois quem sofre e aguenta a dor
É herói que se distancia
Do ser humano comum.
De sofrer quanto sofria
Capaz, pois, não é nenhum.
E tal serve a religião:
Quão mais distantes de Deus,
Mais a Igreja buscarão
Para os achegar dos céus.
A Igreja então não acaba.
O círculo assim encerro,
De partida esta é igual aba.
E tal perpetua o erro.
Indícios
Sempre entre duas ravinas,
Sempre entre dois precipícios,
Um em frente ao outro, as sinas
Da vida me dão indícios.
Entre um e o outro, eis um tronco
Que ao lado de lá não chega.
E eu ando em cima e o ronco
Dele a crescer me aconchega:
Consoante vou andando,
Eis que o tronco vai crescendo,
Até chegar, firme e brando,
Ao lado além que estou vendo.
É a fé que me leva a andar,
Andar é que faz caminho
E o caminho cresce a par
À força da fé, sozinho,
E quão mais assim me inclino
Mais longe chego ao destino.
Saberão
Saberão todas as datas
E saberão toda a história,
Nomes, dogmas, concordatas,
Épocas de má memória,
Bem como as proibições:
Nem malas nem os cordões
Podem pôr nos parapeitos
Nem podem num templo entrar
Com roupas de entrever peitos...
Mas nada sabem de amar.
Não amam: quebraram o elo,
De Deus à terra o apelo.
Então de que serve tudo?
Para quê toda a opulência,
A arquitectura, o entrudo
De imagens, frescos, cadência
De exageros da matéria
Se a nada eleva, sidérea?
Se não for para levar
Peregrinos até Deus,
A Quem apenas é amar
Que os filhos marca de seus,
De que servem exageros
Cuja soma, ao fim, são zeros?
Desatar
Há-de chegar o dia em que as pessoas
Lograrão desatar dos nós amarras
Que as prendem ao passado como garras,
Aos dogmas, à violência, anéis de boas.
A dimensão do livre pensamento
Irão compreender como a importância
De os seus próprios critérios, sem jactância,
Seguir ao emergir cada momento.
Sei que esse dia chega, preocupado
Com a felicidade, a evolução,
Não com a obediência, o poder vão,
- E qualquer medo então é abandonado.
3
Terceira Lareira
Vindoira
Ninguém de ninguém depende
Na vindoira liberdade,
Cada qual busca a verdade
Que o ensine e donde pende
A escolha que há-de fazer.
Não se verga um livre ser,
Mas, ao não obedecer,
Não se criam poderosos.
Ora, ao não haver poder,
Não há mais ricos gozosos
E, sem poder nem riqueza,
Perde a actual elite a empresa.
Enquanto houver quem aceite
Tudo fica como está.
Até o dia em que o deleite
Já ninguém busca acolá.
Então cairá por terra
Quanto ainda nos aterra.
Catedral
“É linda, a catedral, é mesmo linda!
Estou nela, apesar da densidade.
Da forma diminuta estou ainda
Que as pessoas alcançam da verdade.
Os que às vezes aplaudem Me sentiram
De algum modo e então bateram palmas.
Ser de expressão é o ser que construíram
Para exteriorizar o que há nas almas.
Porém, nos dias de hoje quase não,
Ante os tabus, fazê-lo poderão,
Pobre fermento, à espera, de vigia,
Que a massa coza o pão de cada dia.”
Erro
O grande erro de igrejas, religiões
É que a crer continuam que tudo age
Por medo e pela culpa, por senões,
Que ninguém, restringido ao ser, reage.
Não entendem que a antiga era acabou,
Que um novo tempo agita os corações,
O apelo à liberdade inaugurou
A escolha própria, viva, às multidões.
Ora, a religião, seja qual for,
Tem de respeitar isto ou morre em dor.
Insistem
Pedem cada vez mais os corações,
Insistem noutro rumo as religiões.
Todos a abandoná-las tenderão,
Já que incompreendidos todos vão.
Como ainda não sabem ir ao céu,
Perdidos ficarão no escuro breu.
Como espirituais rumos não há mais
Que os das religiões de ruins sinais,
Do espírito desistem, na matéria
Se perdem, sem visões de luz etérea.
Ora, a partir daí tudo acontece:
A violência, a miséria que enfraquece,
Doenças, egoísmo, acaso a morte...
- Até que o imo encontre outro transporte.
Mudar
É de mudar cada dia
Em festas de amor e luz
Das igrejas a energia,
Com música que seduz,
Palmas e meditação
Que transcendência traduz,
Com tolerância de opção,
Do credo de cada qual,
E com legitimação,
Mútua abertura total.
É de legitimar tudo,
Cada escolha pessoal.
Entramos no tempo agudo
Da personalização,
Não mais o rebanho mudo,
A grei atrás do bordão.
Cada ovelha hoje devém
Mestre de seu próprio chão,
Aceitando, errando além,
Mas, sobretudo, escolhendo,
Aprendendo a ser alguém,
A ser quem for aprendendo.
Ser quem é diverso é ser,
Jamais, pois, obedecendo
Para igual se entretecer.
Qualquer religião pode
Na dianteira correr:
Com incentivos acode
A devirem diferentes
Todos aqueles que engode,
Uns dos outros divergentes,
Uns com outros a aprenderem,
Com verdades no imo assentes,
Vias várias a correrem,
Todos seguindo-as, prementes,
- E no apoio a se reverem.
Fé
Sempre a fé foi praticada
Apenas por obediência,
Não por escolha tomada.
Quão mais forte, por tendência,
For uma religião,
Quanto mais poder tiver,
Mais segurança em acção
É suposto oferecer.
Mais segurança daria
De a salvação conseguir
A quenquer que a tenha em dia.
A obediência, a seguir,
É atingida por aí.
É como se ela dissera:
“Vê que força consegui.
A ti vou salvar-te, espera.
Mas, se não me obedeceres,
Ficas por aí perdido
Para sempre, ao me não creres,
A penar muito sofrido.”
Ora, como o ser humano
Continua a procurar
Ser feliz, mas sem engano,
Sentiu-se securizar
Por ali. E então lá ia,
Sem entender, achar justo,
Sem ver quem o compreendia,
Sem ser amado... Que custo!
Eis o medo em mim, em ti,
Eis porque há que ir por ali.
Humildade
De humildade a submissão
Há uma grande diferença.
Na humildade os homens vão
Entender a força imensa,
A lei que rege o Universo
E que, apesar de eu poder
Fazer a escolha que verso,
Há o imutável a ter
De ser de vez respeitado.
Isto me redimensiona
Ante o infindamente grado
Universo onde ando à tona.
Nosso ego faz-nos pensar
Que se é maior do que tudo,
Que tudo se pode, a par,
E então nem o mal eu mudo.
Redimensionar o homem
É que é da humildade o amanho,
Do poder que os egos tomem
Ao reduzir-lhe o tamanho.
Quando um homem compreende
Que algo maior há do que ele,
Rende-se à luz, longe entende,
Novo poder o imo impele.
No imo alma priorizando,
Encontra um homem caminho,
O seu caminho que, andando,
Lhe traz alegria ao ninho.
A submissão, ao invés,
É só jogo de poder.
O padre dá Deus, talvez,
A quem julgará não ter
Acesso a Deus e O recebe.
Tudo em baixo, na matéria.
Quem dá, tem-nO, se percebe.
Quem recebe, não. Miséria!
Pois quem não tem se submete
A quem tem e que achará
Que quem tal gesto repete
Não tem nem nunca terá.
Onde fica a auto-estima,
Mesmo a espiritualidade,
Onde a ascensão que sublima?
Demitido, a identidade
Tem dum desenergizado.
Triste, não tem esperança
De encontrá-Lo em nenhum lado:
É o que a submissão alcança.
Dispersos
Todos na igreja dispersos,
Não sabem que buscam Deus.
O antigo, do céu nos berços,
Procuram nos rastos seus,
Um homem de há dois mil anos,
Não Ele que hoje aqui mora.
Mas, entre perdas e danos,
Faz Ele algo sem demora:
Tenta elevá-los, centrar
Novas energias neles,
Foi quem os trouxe ao lugar.
Fácil é tê-los a eles
Aqui, mas já conseguir
Que se abram a Ele entrar...
Contudo, basta, a seguir,
Deixarem-se emocionar.
Basta um raio de emoção
E Ele entra e logra ir mudando
As traves do coração,
A vida modificando.
Alguns julgam que é um milagre,
Não percebem que o feitiço
Foi que a emoção os consagre:
- Emocionar-se fez isso!
Olhar
“Em vez de vos ajudarem
A sentir o meu amor,
A via para mudarem
De vossa vida o teor,
Fazem-vos olhar um velho
Senhor mui conservador,
Aplaudi-lo a seu conselho,
De espectáculo mentor.
Espectáculo não sou,
Não estou fora, estou dentro.
Cada vez que o consagrou
O povo, que pôs no centro
Um medianeiro qualquer,
Alguém que está na matéria,
Mais de Mim se afastar quer,
Mais de si a fuga é séria
E do que há-de trabalhar
Em sua interioridade.
Pois tudo o que há-de importar
Dentro em ti mora, em verdade,
Não fora, onde nunca esteve.
E, quando as religiões
Fazem que teu olhar breve
Olhe para outros guiões,
Homens por meus porta-vozes
Vão exercendo o poder.
Contra ti fazem-no, atrozes,
E contra Mim, é de ver.
Cada qual diz, a seu modo,
O que Eu fiz, isto e aquilo,
Do que disse a parte e o todo,
Que sofri em grande estilo
Pelos homens, por amá-los.
Falam todos no passado.
Não sabem que ando a afagá-los,
Não morri, mesmo pregado.
Aqui, vivo, permaneço,
A tentar comunicar.
Esquecem-Me? Eu não esqueço,
É o fado de quem amar.”
Sucesso
Homem de sucesso é aquele
Que consegue ganhar mais
Do que quanto a mulher dele
Perder em gastos reais.
Mulher de sucesso, a par,
É a que o consegue encontrar.
Açougueiro
Nada a estranhar, se os carneiros,
Pobres bichos, arrastar
Se deixam para o lugar
Onde a cabeça certeiros
Cutelos lhes vão cortar.
São falhos de entendimento
E de nada desconfiam,
Vão direitos ao tormento
Que os fados destinariam.
De estranhar é que a contento
Opere assim o açougueiro,
Pois tem arte, inteligência,
Nos olhos não quer argueiro,
De saber tem previdência:
Sabe de saber certeiro
Que também subitamente
Vai ser ele degolado.
Como então calmo e contente
Se mantém, assegurado,
Feliz e tranquila a mente?
Vencedor
Um vencedor é o que enfrenta
Desafios um a um.
Um derottado nem tenta,
Ante desafio algum:
Vira costas, no intervalo,
Sempre a fugir de enfrentá-lo.
Distinguirão
Como se distinguirão
Uma escova dum esquilo?
- Junto às árvores, no chão,
Põe os dois: um vai subi-lo,
Ao tronco que houver à mão,
Esse então será o esquilo.
Silêncio
Sem osso nem febra,
Quem o chama o quebra.
Hoje
Serei amanhã, fui ontem
E é bom que comigo contem.
Milagres
Os milagres acontecem
O tempo todo.
As pessoas é que o esquecem,
Não reparam neles, atoladas no lodo,
E perdem o engodo.
Desfalecem
- Tendo à mão o bodo!
Trinta e cinco
Já somamos trinta e cinco
Anos de comum viver.
De cada ficou-me o vinco
De mão tua em mim, mulher.
Foi o vinco da ternura,
Alma e corpo partilhados,
Consumado na fartura
Dos filhos dali gerados.
Vinco de companheirismo
A preservar tempo e espaço,
Da solidão sobre o abismo
Sempre a estender-me um abraço.
Vinco da dor e falhanço,
Pois que sempre disponível
Andas, quando não alcanço,
A curar-me, indefectível.
E o vinco duma constância
Quando a vida se esboroa,
Pois és sempre a eterna infância
Que diz rindo: a vida é boa!
Escuro
Há química na amizade
Mais um nó de confiança,
Mas porque nasce ou invade,
Cresce, diminui, alcança
Aumentar uma outra vez
É escuro onde nada vês:
Tudo é música entoada
Da forma mais delicada.
Sente-la mas não a entendes,
E eis que há céus que nela prendes.
Difícil
Não logra a escola ensinar
Nem se lhe apreende o fundo,
É difícil de explicar
Uma amizade no mundo.
Porém, se não aprendeu
O que qualquer amizade
Bem significar de seu,
Ainda, na realidade,
No correr de sua estrada,
Não aprendeu mesmo nada.
Chega
Uma amizade nos chega
Num longo conhecimento
Ou num sorriso nos pega,
Repentina, num momento.
Uma amizade é a maior
Das posses mais valiosas,
A maior excepto o amor,
Se dele fecundo gozas.
Mas mesmo o amor é melhor,
No que agrade ou desagrade,
Quando vem se sobrepor
Mão dada com a amizade.
Experiencia
Um amigo experiencia
Algo que nunca conhece
Quem amigos não faria:
Linguagem que não esquece,
É um código de magia
O que a amizade entretece,
Faz em nós nascer o dia.
Académico
O académico se senta
Com o intuito de escrever.
A reflexão que acalenta
Nunca lhe irá fornecer
Uma ideia saborosa,
Um termo feliz na prosa.
Contudo, basta a um amigo
Uma carta formular,
Invade-o, dela ao abrigo,
Em mil modos de pensar,
Amáveis e bem despertas,
Um ror de palavras certas.
Oiro
A amizade apenas pode
Ser medida em paz, amor,
Memórias, riso que acode
Só por sentir-lhe o calor.
Nunca pode ser medida
A amizade em peso de oiro:
A pureza garantida
Deste não basta ao tesoiro.
Ponte
Um amigo é sempre a ponte
Para o mais largo horizonte.
Pelos olhos dele vemos,
Vemos tão nitidamente
Como pelos que nós temos,
Ao lado, atrás como à frente.
Ouço com mais distinção,
Penso mais profundamente,
Exploro um país, torrão
Que nem sabia existente.
De carinho e de bondade
Constato que bem preciso
E alegra-me a novidade
De que ele, com todo o siso,
Para ter todo o seu viço,
Também requer muito disso.
Conforto
O conforto da amizade
Não é de aceitar de leve,
Nem de dar, por mais que agrade,
Por adquirido o que teve.
É que após respiração,
Comida como bom sono,
Nossas amizades são
O essencial em abono
Contra qualquer turbulência
Da nossa sobrevivência.
Diferentes
De pessoas diferentes
Precisamos nesta vida:
Refúgios contra as correntes
Numa enseada à medida,
Abrigos da tempestade,
Ou, porque é um dia mui belo,
A visita a uma amizade
Por mero prazer singelo.
Longe
Quando longe, telefono,
Escrevo cartas, postais...
Para mostrar são sinais
De que o canto que eu entono
Tem outros ouvidos mais,
De que nunca estamos sós,
De que nos preocupamos
Um com o outro, antes e após.
Por mais que nos distraiamos
Não desatam nossos nós.
Um amigo a solidão
Enche mais que a multidão.
Retiro
É tão doce a solidão!
Mas no retiro um amigo,
Um anigo só que fosse
Vou querer ter sempre à mão,
Para contar-lhe, no abrigo:
- A solidão é tão doce!
Fortalecida
Tem de ser fortalecida
Vida fora qualquer vida
Através das amizades.
É que amar e ser amado
É numa existência o fado
Das grandes felicidades.
Indispensáveis
Nós somos indispensáveis
Na medida em que nós somos
Amados por adoráveis
Outros que nos dão os pomos
Que farão com que ninguém
É inútil quando ao abrigo,
Mesmo sem ter um vintém,
Ao menos dum vero amigo.
Pegada
Há quem entre em nossa vida
E fugaz desaparece.
Outros ficam, em seguida,
A pegada não esquece:
No coração nunca mais
Nós então somos iguais.
Instinto
Quem é que pode explicar
Este misterioso instinto
Que, ao alguém eu encontrar,
Me diz que quanto então sinto
É que ele, em particular
E dum modo que é mistério,
Me importa tanto que, a par,
É o meu melhor refrigério?
Multidão
Entre a multidão de amigos
Um amigo, pouco a pouco,
Vejo feliz, aos postigos,
Por me ouvir meu termo rouco.
É a quem tenho em série lindas
Lendas a contar infindas.
Cimentar
A cimentar a amizade
Entre estranhos ou então
De diversa condição,
A fagulha voar há-de
Entre pessoa e pessoa,
A que lhes tocou secreta,
Atravessando discreta
Tempo-espaço, um muro à toa
A derrubar de incidentes
Que sempre apunhalam gentes.
No fim acende o tição
Que arde em cada coração.
Dois
Anos e anos já conversam
Os dois sob o mesmo tecto
E, no entanto, nunca versam
O encontro íntimo secreto.
Outros dois logo à primeira
Fala largam os abrigos,
Tornam-se numa certeira
Trama de velhos amigos.
Luz
Se todos tiverem luz,
Por si próprios brilharão.
Conseguiremos então
Saber o que nos traduz,
Ao andar na escuridão,
Sem precisar de passar
A nossa mão pela face
De quem nos caminhe a par,
Nem nos metermos no meio
Daquilo com que se enlace
Qualquer coração alheio.
Pele
Nem todos são teus amigos.
Amigo há-de ser alguém
Tão íntimo que ele tem
Em tua pele os abrigos.
E com tal conta e medida
Te transmite cor e drama
Que teu mundo em ti te acama
E te dá sentido à vida.
Perguntar
Nada um ao outro precisam
Agora de perguntar.
Sabem que chá vão tomar,
Se espinafres é o que visam,
De que teatro é que gostam,
De que livros, que cantores,
Quais as preferidas flores
E em que perfume é que apostam...
Toda a singularidade
Um do outro já conhecem.
O sopro que ateia a brasa
É meramente a amizade.
Cada encontro que entretecem
É sempre voltar a casa.
Têm
Os amigos sempre têm,
Têm cuidado, afeição.
Nossos fracos não retêm,
Virtudes têm à mão.
Alegram-se com triunfos,
Confortam-nos na tristeza.
Os amigos jogam trunfos,
Dão-nos vontade que pesa
De oferecer alegrias
E de partilhar prazeres,
Se calhar todos os dias,
Depois com todos os seres.
Independente
Todos os mais se sentaram
Ao lado da cama doente,
Flores, livros amontoaram...
Tu trouxeste, independente,
Alguns balões e piadas,
- A ti próprio, sobretudo.
Minhas mãos são-te obrigadas
E, de emoção, fico mudo.
Deveras
Com um amigo deveras
Eu nunca precisaria
De olhos a brilhar de esperas:
“Era mesmo o que eu queria.”
Pois é sempre o que me dês
O que eu quero a cada vez.
Preciso
És quem sabe o muito ou pouco
Que era preciso dizer
Quando, de triste, me apouco
Ou me anulo, de sofrer.
Amigo, és quem sabe então
Reler o meu coração.
4
Quarta Lareira
Amparam
Amigos, duas pessoas
Que uma à outra mui se amparam,
Que nas horas más e boas
Interdependem do que aram,
Se animam e se defendem
Contra o mundo exterior,
Sem olhar a quanto rendem
Actos de amigo em penhor.
Contamos
Entre amigos nós contamos
Um ao outro a dor que houver.
Por vezes não encontramos
Nada para a resolver.
Mas ver que nos apoiamos
Mutuamente e que a qualquer
Hora já nos preparámos
Para ouvir, basta a quenquer:
É de facto toda a ajuda
Que requeiro para a muda.
Fiel
Um amigo que é fiel
Ri-se na prosperidade,
Se une na dificuldade
E te carrega metade
Do fardo que te atropele.
Aumenta a tua alegria
E diminui as tristezas,
Partilhando dia a dia
Todas elas nele presas.
Catástrofe
Quando senti que não ia
Sobreviver ao que via
Tal se catástrofe fora,
Ali comigo estiveste,
Que sou capaz me disseste.
- E fui-o mesmo na hora!
Nadas
Os nadas que esqueceremos
Logo após os termos feito
Mais os que consideremos
Sem importância e sem jeito
- São aqueles pelos quais
Vale a pena lutar mais.
Ar
Todo um ar de simpatia,
Um ar de encorajamento,
Uma mão que se estendia
Por bondade, no momento,
É tudo. É o vero sumário.
O restante é secundário.
Simpáticas
As simpáticas palavras
Dos amigos podem ser
Curtas, fáceis de dizer,
Mas nos cômoros das lavras
Das vidas, em seu confim,
Seus ecos não têm fim.
Insignificante
O mais insignificante
Gesto de bondade diz:
“Preocupo-me, constante”,
“Interessas-me, petiz”,
“Pensei em ti, meu irmão”...
- E é o que eleva o coração.
Momento
Ninguém capaz de dizer
É o momento em que se forma
Da amizade o bem-querer.
Tal como ao encher, por norma,
Um copinho gota a gota
Há uma que finalmente
Lhe faz transbordar a cota
Também é numa corrente
Certa de amabilidades
Que uma última há-de ser
A que, por fim, sem maldades,
Faz o coração verter.
Percebe
Um amigo é quem percebe
Que algo desejas comprar
Mas não podes, que recebe
Tua bolsa apenas ar.
Então ele te oferece
Esta prenda, solidário,
Provando que não te esquece,
Pelo teu aniversário.
Retribuir
Só quero, amigo, a benesse
De o suficiente viver
A retribuir, como em prece,
Teu bondoso conviver,
Tua generosidade
Por mim sempre imerecida,
Meu esteio de verdade
Que me escora, terna, a vida.
Pequenos
A vida jamais é feita
Pelo grande sacrifício,
Do dever pela colheita,
Mas por leve benefício
De muitos pequenos nadas
Em que sorrisos e gestos
Amáveis calçam estradas,
São repetidos aprestos
Que conforto ao coração
Perenes garantirão.
Juntos
Os amigos andam juntos,
Vão às compras, entram, saem
De lojas próprias e assuntos
Tratam que só risos traem.
Acabam a comer bolos,
Um copo para animar...
- Há quem diga que são tolos,
Até porque vão ficar
Apenas com o dinheiro
Preciso, quando se apraza
O momento derradeiro,
Para regressar a casa.
Queixar
De te queixar se precisas
Das coisas que correm mal,
De lamentar indivisas
Injustiças, afinal
Pequenas, cercando a vida,
- Fica um amigo contente
Só de ouvir a tua lida
Infatigável presente.
E, por fim, quando proferes
O derradeiro lamento,
Podem rir dos desprazeres
Juntos: e leva-os o vento!
Conversas
Conversas de raparigas
Divergem das outras mais:
São mais os temas que ligas
E as brigas nem são reais.
Aninham-se em cada canto
Do modo mais confortável
E ali ficam, entretanto,
Um tempo considerável.
As conversas nunca findam
E as vidas todas alindam.
Pilha
Uma pilha de cedês,
Um café, calças roçadas
Curtas em descalços pés,
Batatas fritas salgadas
E pipocas, se calhar,
Conversa sem direcção,
Chuva na janela a dar:
- É amizade, é coração.
Amigas
Amigas, quando se juntam,
Não precisam dum motivo
Para rir nem o perguntam:
Riem só por se estar vivo.
À festa que cada observe
Tudo serve, tudo serve!
Prazer
Muito, muito do prazer
Em fazer algo diverso
Vem de contar se prever,
Se com amigos converso,
Acaso uma e outra vez,
Tudo aquilo que se fez.
Noitada
Uma noitada de borga
É exército saqueador
Que quem as regras outorga,
Pai, líder, qualquer senhor,
Embora a queira entender,
Nunca é capaz de deter.
Deixarem
Quando os amigos deixarem
De ser benéficos, francos
Uns para os outros, reparem,
O mundo inteiro, em barrancos,
Na cauda deste rastilho,
Perde ao fim todo o seu brilho.
Escolhido
És, meu amigo, o escolhido
Que comigo compra roupa,
O que faz todo o sentido:
Não é só
do que se poupa,
Um amigo não desiste
De me pôr ao fim capaz.
Só ele diz: - “Tu já viste
Como é que ficas por trás?”
Descosido
Só um amigo vai dizer
Que a bainha há descosido,
Que um dentífrico qualquer
Tens na cara mal sumido
Ou que calças uns sapatos
Velhos demais em teus actos...
- Só um amigo e para bem
Diz todo o mal que te tem.
Chocolate
Um amigo mesmo amigo
Diz-te a verdade onde bate
Do bolo que é o teu perigo,
Teu bolo de chocolate.
E nunca põe em questão
Que sejas mesmo um glutão.
Insulta-me
Insulta-me que é um espanto.
Se outra pessoa qualquer
Me repontara outro tanto
Nem lhe falava sequer.
Tem razão habitualmente.
Porém, o melhor de tudo
É que posso, de boa mente,
Todo o insulto acolher mudo
- Porque sei que ele grudado
Está sempre do meu lado.
Simpatizar
Todos vão simpatizar
Com uma dor dum amigo,
Mas excepcional, a par,
Será sempre quem lobrigo
A simpatizar, professo,
Com o amigo de sucesso.
Nada
Não há nada que não faça
Por um amigo qualquer.
Dele nada anda na traça
Que me não venha fazer.
Passámos as nossas vidas
Um pelo outro sempre à mão,
Contadas bem as medidas,
- Sem nada fazer então!
Singular
A ideia de cada um
Apenas se interessar
Por bem próprio, não comum,
É deveras singular.
Quem pode ser, quem se alista
A um viver tão egoísta?
É que o pior que isto tem
É que nem a si faz bem.
Contente
Quem ficaria contente
De os amigos conhecerem
Sua bondade presente
Se depois eles quiserem
Ver-lhe um defeito existente?
Parvo
De parvo fazes figura?
Qualquer verdadeiro amigo
No caso, então, não te augura
Que irás correr o perigo
De ir preso a tal frontispício
Como um fado vitalício:
Logo ali desfaz a prega,
Vê-te como te sossega.
Fraude
A amizade está mais livre
Da fraude do que qualquer
Relação que conheçamos
Porque é ligação que vive
Menos afecta ao poder,
Do prazer aos muitos ramos
Ou do lucro ao frio facto.
É livre de qualquer pacto,
Despida que sempre é de ânsia,
De dever ou de ganância.
Respeito
É o respeito a apreciação
Desta singularidade
Que outrem é no coração:
De como é uma identidade,
No âmago de seu perfil,
Única por entre mil.
Continuam
Os amigos continuam
Vida fora a ser amigos.
Não se importam, não pontuam
De confusão os abrigos
(Se confuso for algum)
Da vida de cada um.
Difíceis
Os amigos que atravessam
Os tempos difíceis juntos
Criam laços que estremeçam
Que os estranhos aos assuntos
Nunca compreenderão
Que brotem deles no chão.
Conhecem
Sempre na prosperidade
Os amigos nos conhecem.
Porém, é na adversidade,
Quando os ventos arrefecem,
Que nós, por entre os perigos,
Conhecemos os amigos.
Fiel
Um amigo que for fiel
É sempre um seguro abrigo
E quem o encontrar a ele
Tem tesoiros que persigo.
O amigo fiel não tem preço,
Não há vender nem comprar.
Ele é o elixir que peço
Para a vida respirar.
Perfeito
Um bom amigo é o que diz:
- ”Tem calma, vai correr bem.”
O amigo perfeito, além,
Ajuda-te de raiz
A enfrentar a realidade
E fica firme a teu lado,
Venha o que vier, agrade
Ou desagrade tal fado.
Tu
Quando outra gente qualquer
Teme os teus desagradáveis
Modos pouco razoáveis,
O amigo a capacidade
Tem de te reconhecer
Em teu “tu” de identidade
E gosta de to acolher.
Compartilhada
A amizade deve ter
Sido feita para ser,
Ao longo desta jornada
Da vida, compartilhada.
Senão, como compreender
A romaria à chegada?
Continuaria
Continuaria a sair
Sem ti, a pensar, a ver,
Coisas novas a ouvir...
Contudo, sem a alegria
Da partilha poder ter.
Diminuído ficaria
E o mundo menos seria
Brilhante, menos vivido,
Em mil possíveis perdido.
E nunca chegava o dia
De o poder ter repartido.
Sentir
A dor saberá cuidar
Dela própria mas sentir
O valor total a dar
À alegria, só ao ir,
Ao nosso lado, na sala,
Com alguém compartilhá-la.
Optimismo
Tem algo que nos faz falta,
Como optimismo, um amigo.
Que a vida me corre em alta
Faz-me sentir, ao abrigo
Apenas deste coberto:
- Desde que ele esteja perto.
Ali
Estão ali do outro lado
Do telefone os amigos.
Se teus anseios dão brado
Na confusão dos perigos,
Dos nervos no emaranhado,
Conversa de qualquer coisa
Nos termos que mais te aprazem.
- Verás quanto te repoisa,
Quanto os muros se desfazem!
Quero
Quero que ria comigo,
Que comigo fique sério,
Que com contributo amigo
Me agrade e ajude o mistério
Finalmente a discernir.
E que por vezes admire
A minha espontânea audácia,
Subtileza e perspicácia.
- É quanto basta. Prossigo,
De parar morto o perigo.
Entrelaçado
Nossas vidas, objectivos
Como as utopias têm
Tão intimamente estado
Num robusto entrelaçado
Que sinto que, enquanto vivos,
Não nos sentiremos bem
Se separarmos os tectos,
Pois seremos incompletos.
Quando unidos, tal a força
É de nossas convicções
Que abismo não há que a torça,
Perigos nem contusões.
E os muros incontroláveis
Parecem-nos superáveis.
Acarinham
Os amigos acarinham
Uns dos outros esperanças.
Simpáticos, adivinham
O que ainda não alcanças.
Disponíveis os disponho
Uns dos outros para o sonho.
Compreendem
São os íntimos amigos
Que compreendem melhor
O que a vida nos perigos
Nos diz e nos faz supor.
Sentem o que nós sentimos,
Estão ligados a nós
Nos triunfos que auferimos,
Nos fracassos e nos dós
E quebram, com tudo isso,
Da solidão todo o enguiço.
Compreensão
Conhecer alguém,
Onde quer que seja,
Sentir que é com quem
Compreensão se almeja,
Mesmo na lonjura
Ou em pensamento
Que se mal apura,
Pode, num momento,
Germinar na Terra
Os jardins que encerra.
Dão
Os amigos não dão flores
Nem dão chocolates de anos,
Nem cosméticos, odores,
Lenços de mão, finos panos...
Trazem sacos de cimento,
Acaso um martelo novo:
- Sabem a todo o momento
Do que precisas em ovo.
Descobertas
São o amor como a amizade
De nós próprios descobertas
Nos outros, de idade a idade.
Para além, portas abertas,
De todo o fundo prazer
Em o vir reconhecer.
Encontrar
Não pode felicidade
Haver igual à alegria
De encontrar, quando me agrade,
Um coração de magia
Que, de vez tirada a venda,
Finalmente a mim me entenda.
Obrigado
Obrigado por saberes
O que fazer é preciso
E também por o fazeres,
Como um abraço conciso,
Aplicar a ligadura
Ou preparar um café...
E obrigado se se apura
(E por saberes quando é)
Que preciso ali, de entrada,
De não fazer mesmo nada.
Glória
A glória duma amizade
Não é a da mão estendida
Nem do sorriso que agrade,
Simpático e à medida,
Nem da alegria que crismo
De fruir companheirismo.
De inspiração é o mistério
Que chega quando descubro
Que alguém me acredita a sério,
O que então me põe ao rubro,
E que a acolher me persuade
Deveras sua amizade.
Presente
Sendo amigo, não pretendo
Oiro ou presente real
Para o prazer que eu entendo
Dar-lhe como meu fanal:
Sento ao lado dele então,
Basta um toque mão na mão.
Mais
O mais que logro fazer
Por quem for um meu amigo
Simplesmente é amigo ser
Dele o melhor que consigo.
Riqueza a lhe oferecer
Não tenho e que sou feliz
Basta-lhe a sério saber
Por gostar de seu cariz,
Não quer outra recompensa.
Isto, enfim, não nos inclina
A olhar para a parecença
Com a amizade divina?
Servem
De que servem os amigos?
Não é para uma importante
Nova contar aos postigos:
Uma meia hora adiante
Já nem lembro o que disseram...
O mais importante ri-se
Dos que nunca o perceberam:
- É sempre o que não se disse.
Genuína
A amizade é genuína
Quando, sem uma palavra,
A alegria se combina
De dois amigos na lavra,
Felizes do que compensa:
Um do outro uma presença.
Comunicação
Há uma comunicação
Que se exprime sem palavras,
De pensamentos fusão,
Sentimentos com que lavras,
Quer através da conversa,
Quer dum silêncio que a versa.
É aquela tranquilidade
Que impregnada é de amizade.
Caminhos
Não caminhes ante mim,
Que não te seguir eu posso.
E atrás de mim, não, que, enfim,
De liderar não sou moço.
Caminha ao lado: eu prossigo.
- Apenas sê meu amigo!
5
Quinta Lareira
Espaçosa
Nada faz tão espaçosa
A Terra como os amigos
Longe irem de quem os goza.
Eles tecem os postigos
Que marcam as latitudes
Cruzadas com longitudes:
Cavam terra fora abrigos
Onde germinam virtudes.
Significa
Ver-me com alguém
Lá longe ou cá perto
Significa bem
O fim do deserto:
- Que no meu caminho
Nunca estou sozinho.
Levamos
No íntimo sempre levamos
Nossos amigos, dizendo:
“Ia gostar destes ramos”,
“Vou contar-lhe o que estou vendo”,
“Quem me dera que estivesse
Aqui para partilhar
Esta visão duma messe,
Esta refeição sem par,
Esta pequena aventura!...”
- E a vida luz de tão pura.
Longe
Quando alguém de quem gostamos,
Embora longe, está bem,
Sentir falta é que a adoramos
Num novo sabor que tem,
É um arrepio salgado
Num dia de sol doirado.
Quilómetros
Obrigado por proibires
Os quilómetros de andarem
A murchar quanto fruíres
Da amizade que ignorarem,
Por me escreveres, embora
Com a agenda a abarrotar,
Por me ligares na hora,
Dalgum estranho lugar,
Por fazeres com que o mundo,
De amistoso, até me abrasa,
Que o Evereste alto e fundo
Fique à saída de casa.
Encontrar
Se eu encontrar os amigos
Passados já muitos anos,
Como os saúdo? Bendigo-os,
Lembrando-os em meus arcanos,
E o tempo morto ali vence-o
Uma emoção, um silêncio.
Deploráveis
Nós deveremos andar
Criaturas deploráveis,
Ressequidas, a ficar...
- Não ligues, somos mutáveis!
Quão mais feios parecemos
Aos olhos dos outros mais
Mais encanto, amigo, temos
Um para o outro tais quais.
Vinho
Que como o vinho a amizade
Com o tempo se melhore!
Que vinhos de muita idade
Tenhamos que cada adore,
Mais amigos velhos, povo
De muito convívio novo!
Data
Amigos de longa data
Gostam de ir às compras juntos,
A uma exposição pacata,
A um concerto, a mil assuntos...
O que adoram à saída
É ir à cafetaria
Lá tomar uma bebida
Mais um bolo de magia,
Pôr-se à vontade e ficar
Toda a vida a conversar.
Paisagens
Não há paisagens mais belas
Do que vermos dois amigos
Crescerem rumo às estrelas
E que, à medida em que crescem,
Sondam, por novos postigos,
Que galáxias aparecem
E mergulham na abismal
Fundura de cada qual.
Afastados
Muitos amigos eu tive
Que me foram afastados
Pelo tempo que se esquive,
Distância de fusos grados,
Pela perda e a mudança.
De flores amassadas
Pelos dias a lembrança
Guardo deles nas jornadas.
Mas alguns profundamente
Muito mais rememorados
Ficaram que toda a gente:
Vão em mim enraizados.
Velhos
Uns com outros confortáveis
Sentem-se os velhos amigos,
Sem rivais indesejáveis,
Dissimulados perigos.
Geram pela vida fora
Pacífica identidade
Sempre em paralela hora
E à mesma velocidade.
Chega
Para os jovens a amizade
Chega como a primavera,
Do belo fogosidade,
Milagre que o mundo gera.
Para os velhos tem o brilho
Do outono, festa em colheita,
Fulgor em cada cadilho
Com o pôr-do-sol à espreita.
Alabastro
As caixinhas de alabastro
Da amizade e da ternura
Não sele a fio de nastro
Até vir a sepultura.
Encha aos amigos a vida
De simpatia e consolo
Enquanto a palavra ouvida
Pode ser, tal fofo bolo
Que, partilhado ao serão,
Faz vibrar o coração.
Maior
Os verdadeiros amigos,
Nossa maior alegria
E nossa maior tristeza!
Fiéis nos comuns pascigos,
Quase de ansiar seria
Que morramos de beleza
Nós e eles no mesmo dia.
Comprar
Pode o dinheiro comprar
Coisas más e coisas boas.
Mas do mundo inteiro, a par,
Não pode oiro arrecadar
De nenhum amigo as loas
Nem, após falhada a merca,
Pagar-lhe o vácuo da perca.
Súbito
Creio eu que há na amizade
Súbito conhecimento,
Tal quando o amor nos invade,
Instantâneo, num momento.
Basta um aperto de mão
Ou um termo de passagem.
Depois a separação
É uma perda na viagem
Com a dor dum brilho fosco
Que fica sempre connosco.
Elogios
Não guardes os elogios
Para quando os teus morrerem.
Nem os túmulos vazios
Dedicatórias lhes querem.
Diz-lhes agora o que sentes,
Que isto é que é dar-lhes presentes.
Lembrar-me
Irei lembrar-me de ti,
A chorar, cantar, a rir,
Sempre tu, presente aqui,
A fazer questão de vir,
O amigo que acompanhou
Todas as minhas idades
E que nunca desertou,
Nunca, ante as dificuldades.
Encontrar
Alma, que tenhas certeza
De que, algures, no Universo,
Voltas a encontrar, acesa,
A luz do amigo converso
E que ficarás contente
E animada, sem enganos,
Naquele eterno presente
Por muito mais de mil anos.
Vidro
Quando elas são verdadeiras
Não há de vidro amizades
Nem de cristal talham leiras,
Mas, nas volúveis herdades,
São rochedo que persiste,
O mais sólido que existe.
Filamentos
Nunca podemos viver
Para nós próprios apenas.
Vive ligado quenquer
Aos companheiros de cenas
Por mais de mil filamentos.
Pelos filamentos fora,
Tais tubos com ligamentos,
Nossos actos vão-se embora
Como causas, de algum jeito,
E retornam como efeito.
Mundo
Cada amigo é sempre um mundo,
Um mundo não revelado
Enquanto, por onde abundo,
Não chega a pôr-se a meu lado.
E só no encontro com eles,
Nas campinas onde pasce
De anhos meu rebanho imbeles,
É que o novo mundo nasce.
Luz
A amizade é a luz constante
Que não falha ou estremece.
É quem conforto oferece
E orientação vida adiante,
Esperança na aflição
E nos tempos de tristeza.
Na festa que se embeleza
Dum brilho acresce um clarão
E uma alegria desperta
Extra em qualquer descoberta.
Jade
Se consegues encontrar
A verdadeira amizade,
Estima-a, que é singular,
Pequena jóia de jade.
Desvia-te do caminho
A salvá-la e protegê-la,
Guarda-a no teu escaninho.
Todavia, deixa que ela
Por si própria ande a brilhar:
- Irá crescer sem parar.
Abrigos
Onde quer que estejas
São os teus amigos
A pôr o que almejas:
Teu mundo de abrigos.
Serão sempre eles, no fundo,
Que te farão o teu mundo.
Dispensa
A amizade o mais dispensa:
Dela mesma é recompensa.
Comerciais
Os amigos elevados
Não são actos comerciais:
De sua amizade os dados
São sacrifícios reais.
Não esperam nem desejam
Trocar presentes, favores:
Aquilo pelo que almejam
Não tem metro, peso, odores...
Não faz sentido trocar
Quilogramas de amizade
Por quilogramas, a par,
De prazer com que lhe agrade.
Trama
A criatura sozinha,
Humana, estará ligada
À vida na trama alada
Das amizades que alinha.
Delicadas em seu fito,
Algumas são tão pequenas
Que os solitários, apenas,
Vêem nelas o Infinito.
Prazer-mor
Eu tenho a tua amizade
Como o prazer-mor da vida:
Consolo em dificuldade,
Da dúvida na ferida,
Alegre em prosperidade,
Na vitória acontecida...
- És a vera inspiração
Para toda a ocasião.
Prisões
As prisões que temos
Nós no-las criamos:
Só livres seremos
Se, no que geremos,
Livres nos geramos.
Feliz
Feliz aquele que sabe
Não dar razões arrogantes
À derrota que lhe cabe.
Mais feliz é o que sabe antes,
Quaisquer que sejam as notas,
Que não existem derrotas.
Enterra
Enterra tua existência
Em terra de obscuridade,
Que semente de excelência
Não produz em abundância
Se na terra que se grade
Não se enterra desde a infância.
Diálogo
Nada justifica a fuga
Para fora deste mundo.
Mais vale quanto conjuga
Um diálogo fecundo
Entre os homens, face a face,
Capaz de os transfigurar,
Para, a partir deste enlace,
Talhar ao mundo o lugar.
Atirar
Não se deve atirar o homem
Até ao Tu-Deus eterno,
Já que as freimas que o consomem
Não são do céu nem do inferno.
Antes convém devolvê-lo
À plenitude que tomem
As questões de seu desvelo,
A sua condição de homem.
Envolver
Quem se envolver por inteiro
No encontro com qualquer Tu,
Que nele envolva, leveiro,
Todo o Cosmos, limpo, a nu,
É aquele que há-de encontrar
Toda a fundura do ser
Que não pode procurar
E que nem buscou sequer.
É que ali, sem ser quimera,
É que eternamente o espera.
Ama
Se um homem ama a mulher
Constantemente presente,
O tu que nela vir ser
Há-de fazê-lo entrever
O eterno Tu nela assente.
Bandeira
Andas de bandeira erguida
Apregoando ao vento, ufana,
Onde haverá pão e vinho?
Afinal, é toda a vida,
Mesmo a mais quotidiana,
Que pode ser o Caminho.
Alteridade
Se aceitar a alteridade,
Que o outro não seja eu,
Então descubro a unidade:
Que o outro, em tudo o que é seu,
O outro, ao final, sou eu.
Conhecimento
Do ser o conhecimento
É dos que perderam tudo,
Da solidão no tormento
Se encontram, o peito mudo,
E disto tudo apesar,
São capazes de aceitar.
É dum modo inesperado,
Das funduras da miséria,
Que lhes chega dalgum lado
Aquela graça sidérea
De se verem envolvidos,
Por um amor protegidos
Tão vivificante e fundo
Que já não é deste mundo.
Missão
A mais difícil missão
Que a um homem se pode dar
É de a si renunciar:
Prescindir de ser turrão,
Que ânsia de se destacar
Não o force de mão cheia
Ao que de si tem na ideia.
Divino
O divino não começa
Onde acabar o terrestre:
O terrestre é mera peça
Daquele na mão de mestre,
Dele o sentido profundo
Nunca adquire, por destino,
Senão quando aqui, fecundo,
É uma expressão do divino.
Morreram
Quantos homens já morreram
Se porventura soubéramos,
Quão numerosos cresceram
Os mortos que antecederam
As vidas que nós vivêramos,
Quanto nos governam todos,
Este horror de mortos-vivos
A gerirem nossos modos,
Cadáveres como engodos,
- Se o soubéramos, esquivos
Perderíamos, de horror,
A razão com o estupor.
Setenta
Setenta vezes por dia
Olha Deus meu coração
Para ver se poderia
Nele entrar como seu chão.
Porém quase sempre o encontra
De si cheio até à pele
E então, perante tal montra,
Não logra penetrar nele.
Concebas
Tudo aquilo que concebas
Como sendo o vero Deus,
Só por isto que percebas
Perde atributos dos céus,
Logo deixa de Deus ser,
É apenas teu conceber.
Solitário
Sempre que alguém sabe mais
Que os mais, devém solitário.
Mas ser só não é jamais
Ser fatalmente adversário:
Comunitário ninguém
Finda mais que o solitário
Que solidário devém.
Objectivo
Objectivo do trabalho,
Mais do que talhar objectos,
É talhar homens no entalho
Com que talharem seus tectos.
Pois um homem só se faz
Quando ele ao mundo algo traz.
Atenção
Não basta ter atenção
Àquilo que a gente faz,
É preciso ter à mão
A si próprio, o pé atrás,
Ao fazer-se o que se faz.
6
Sexta Lareira
Lei
Mais vale ter a má lei
Do que não ter lei nenhuma,
Pois uma ausência de rei
Aquilo a que leva, em suma,
Não é que é bom não ter reis,
É que isto é a pior das leis.
Véus
Nem o homem é Deus,
Nem Deus é o homem.
Do mistério os véus
Que nos consomem
São que Deus mais o homem, depois,
Nunca somam dois.
São mais um, no fundo,
Do que dois no mundo.
Canta
Canta o rouxinol
E nem sabe que canta.
Canta o homem ao arrebol
E sabe-o bem, o que nos encanta.
O santo canta, porém, sem frenesi,
E sabe que é Deus a cantar dentro de si.
Vazio
Sempre o vazio está cheio
Até às bordas, potência
Eterna, sem entremeio,
Tal qual como a consciência:
Por mais que seja demente,
É sempre o Eterno presente.
Modificar
Os outros modificar
Não é preciso ou possível,
Mas a vós podei-lo, a par,
Descobrindo então o incrível:
- Que não há mais precisão
Doutra modificação.
Fosso
Foi só por imaginar
Que tereis criado um fosso.
Ninguém tem de atravessar,
Basta só não o criar
E é o que podeis e que eu posso.
Pedis
Quando vós não pedis nada
Nem ao mundo nem a Deus,
Quando nada desejais
E nem sequer procurais,
Vem até vós, pela estrada,
O supremo Dom dos céus.
Sem que o tenhais já buscado,
Nem sendo evento aguardado,
Prémio de crentes e ateus,
É sempre um inominado,
Mal entrevisto e sonhado
Mundo entregue aos braços meus.
Fundo
No fundo de tudo
O outro mundo é já.
Outros nem ajudo,
Já que outros não há:
Na vida comum
Somos todos um.
Formular
O nosso próprio desejo
De formular a verdade
Nega-a neste mesmo ensejo,
Pois a palavra que a grade,
Por mais que precisa e bela,
Nunca poderá contê-la.
Correria
Sempre a verdade és tu mesmo.
Deixa de te afastar dela
Nessa correria a esmo
De quem perdeu uma estrela
- E agora corre atrás dela!
Cultivo
Amar Deus não é o cultivo
De horto de que disfrutamos
Sem sabermos se o Deus vivo
Disfruta dos mesmos ramos,
- É do íntimo eliminar
O que impede Deus de entrar.
Infinitamente
Deus anda infinitamente
Próximo de todo o homem
E longe o homem se sente
De Deus nas vias que O somem,
Lonjura de cujo grito
O homem dista ao infinito.
Carrego
O que posso conhecer
É o que carrego comigo
E, portanto, isto é o meu ser.
Por sê-lo, disto ao abrigo,
É que o irei surpreender
E depois compreender:
- Lobriguei-o ao postigo.
Frágil
Por si só frágil é o homem,
Tal dos campos uma flor:
Amam-na todos, consomem
Emoções que em breve somem.
Mas depois, sem mais pudor,
Findados os rapapés,
Todos a calcam aos pés.
Longe
Deus fica longe de nós
Porque, se se aproximar,
Extinguimo-nos após.
Ele espera que nós vamos
Até Ele, em seu lugar,
E então desapareçamos.
Renuncia
Nunca se possui senão
Tudo a que se renuncia.
Ao invés, quanto a que não
Renunciamos, então,
Escapa-nos cada dia.
Vencedor
O derrotado repete:
- ”Sempre fizemos assim,
Outra maneira não me compete,
Portanto, a mim.”
E diz o vencedor:
- ”Deve haver
Uma forma melhor
De tudo empreender...”
Termos
Seis termos são chave do céu:
- ”Este erro admito que foi meu.”
Cinco pesam o que valho:
- ”Tu fizeste um bom trabalho.”
Quatro importância me dão:
- ”Qual a tua opinião?”
Três ao dia dão sabor:
- ”Faça o favor.”
Dois tornam-me abençoado:
- ”Muito obrigado.”
O mais importante, no cume sem tabu:
- ”Tu.”
O menos importante, mas que sempre me traiu:
- ”Eu.”
Natal
Natal é surpresa.
Todos fingem que não sabem
Que, entre desculpas e alegrias presa,
Desgostos e perdas que quase connosco acabem,
Saldos e presentes com descontos sem pudor,
Ali presa, bem escondida, afinal,
A surpresa final
É o Amor.
Presentes
Amor é o que está comigo
Na sala, pelo Natal,
Se os presentes não persigo,
Deixo de abrir, ao final,
Para, em vez deles, então
Escutar com atenção:
- De cada tecto ao abrigo
Há de amor balada igual?
Comemora-se
Comemora-se o Natal,
Época religiosa
Que respeita cada qual
Da forma mais prestimosa
...No centro comercial
Que a preferência lhe goza!
Preocupa
Muita gente se preocupa,
Entre Natal e Ano Novo,
Com o que engorde e olha à lupa,
Quando devia, afinal,
Ocupar-se do renovo
Entre Ano Novo e Natal.
Pedir
No Natal sempre a criança
Vai pedir ao Pai Natal
O que o adulto lhe alcança.
No défice é que, afinal,
Um adulto vai pedir
Para o Governo lhe dar
O que quiser perseguir
- E os filhos irão pagar!
Só
O Pai Natal teve a ideia
De, excelente, visitar
Só uma vez ao ano, cheia
A mão para cada lar.
- Pagar quem aguentaria
Tal mão cheia cada dia?
Miúdo
Um miúdo de dez anos
Pelo médico esperava.
A testa rasgada a uns panos,
Enquanto espera, enxugava.
- ”A culpa é toda do Nel,
Foi ele que me empurrou.”
A mãe explica-lhe a ele
Que é um acidente, acabou,
Podia culpá-la a ela
Por permitir-lhe brincar
Ou à avó que esta sequela
Não lograra antecipar...
Pensa o miúdo então, lá
Concluindo, a sós consigo:
- ”Tudo é culpa do papá
Porque ele casou contigo.”
Petiza
A petiza de quatro anos
Conta andar a namorar
Um menino, sem enganos,
No infantário onde é seu par.
Tão rápido corre então
Este relacionamento
Que o menino pede a mão
Dela logo em casamento.
Um dia, em lágrimas, conta
Que o menino cancelara
O casamento que, tonta,
À ligeira lhe aceitara.
- ”Porquê dele a decisão?” -
Pergunta a família, a bem.
- ”Ele vai” - soluça então -
“Mas é casar com a mãe.”
Vizinhas
-”Dizem que andas, as vizinhas,
Com o teu noivo a dormir...”
- ”Mexericos! Tais alminhas,
Vá eu com quem for, ao ir
Logo que é o noivo dirão
Quem provou o meu colchão.”
Morte
Do marido após a morte,
Os dois filhos da viúva
(De oito anos o que a conforte,
De quatro a que a mal coadjuva)
Ficam eufóricos quando
Ela de avião os leva
A umas férias, esperando
Dissipar da noita a treva.
Ao preparar cada mala,
O miúdo ajuda lesto.
A irmã vivaça se cala,
Contra o que é seu comum gesto.
- ”Estás com medo?” - a mãe diz. -
“Vais sempre connosco os dois...”
- ”Não” - responde ela, feliz,
Atenta ao que vem depois.
Após horas já de voo,
Cutuca a miúda a mãe:
- ”Onde é que está o pai? Eu vou
Vendo as nuvens e ninguém...”
Só então a mãe entendera
Porque é que, de palradora,
O silêncio emudecera
A menina tanta hora.
Eterna
Uma eterna namorada?
Não, porque o tempo se escoa.
Ao invés, na eterna estrada,
És uma fiel pegada
Que em seu trilho o meu ecoa.
Vejo assim, nos olhos teus,
O trilho que ruma aos céus.
E aqui vamos, de mãos dadas,
De céu enchendo as jornadas.
Os meus rumos são os teus,
És meu bocado de Deus.
Esperar o céu ao fim?
- Ele anda comigo assim!
Poupar
Preciso é poupar dinheiro
E mais preciso é ganhá-lo.
Mas, para o ganhar, primeiro,
Vai ser preciso gastá-lo.
Neste círculo se adia
Da vida a enviesada via.
Repouso
O repouso da mente é o coração.
A mente ouve todo o dia
Dos sinos o carrilhão,
Dos escapes a trovejada assintonia,
Ruído e discussões na multidão,
E tudo o que quer, quando não se ilude,
É quietude.
Ora, a paz apenas lhe pode vir
Dentro do silêncio do coração.
- Aí é que terás de ir.
Preciso
- ”Preciso da tua ajuda!” -
Digo ao Deus que nunca vi,
Da dor com a voz aguda.
- ”Estou mesmo aqui,
Nunca te irei deixar, seja qual for a muda.
Está tudo bem.
Amo-te, muito do que imaginas para além.”
Previamente
A fé será uma forma de dizer:
Aliado ou adverso,
Aceito previamente
As condições do Universo
E adopto antecipadamente
Aquilo que eu irei ser
Incapaz de compreender
Actualmente.
Mãos
Temos mãos, podemos apoiar-nos nelas,
É a alegria dum corpo mortal.
Por isso Deus precisa de nós, suas estrelas,
Afinal:
Adora sentir a textura do chão
Através de nossa mão.
Interromper
Pára de interromper
Os outros quando estão a falar!
Queres-me convencer
De que mais importa o que tens a dizer
Que o que eles tenham a comunicar?
De que és mais importante
Do que quem tenhas diante?
Pára!
Senão, a seguir,
Mesmo sem ta partir,
Partem-te a cara!
Funde
Que a gota de água se funde com o mar
Todos sabemos.
Poucos, que o mar se funde com a gota de água.
Teremos
De o constatar
Sempre através da mágoa?
Eu e o Universo,
Uma humilde conta no infinito terço:
Ando-lhe a rezar
E ele a mim, a par.
Beatitude
Porque tenho perseguido a felicidade
A vida inteira
Quando tenho aqui a beatitude à minha beira
O tempo todo que me agrade?
- Em mim
No princípio, no meio e no fim.
Mensagem
De Deus uma derradeira mensagem:
“Podes aqui voltar
Na tua intérmina viagem
Logo que tenhas logrado entender por ti
Que sempre estás e hás-de estar
Aqui.”
Motor
O Cosmos é um motor rotativo.
Do núcleo vais querer ficar bem perto,
Da roda no eixo esquivo,
Não na parte de fora, decerto,
Onde a rotação é mais violenta
E o sistema nervoso te rebenta.
O eixo da calmaria sem frenesi
É o teu coração.
Aí vive Deus dentro de ti.
Pára de procurar, então,
Respostas no mundo incapaz,
Retorna ao centro,
Que encontrarás
Aí dentro
A paz.
Ao Morno Tição das Quadras ao Desafio
1
Primeiro Tição
Barraca
Tirar alguém da barraca
É bem fácil pretensão,
Tirar de alguém a barraca
De dentro dele é que não.
Perdes
Se o bem desprezas, incrível,
Jogas-te fora à mancheia:
- Um mal não há mais terrível
Do que um bem que nos odeia.
Portal
Por mais pequeno que seja,
Tudo é sempre, nalgum modo,
O portal que se deseja
Dum caminho para o todo.
Estradas
As estradas que começam
Fáceis, da esquina ao virar,
Levam os que ali tropeçam
De volta ao mesmo lugar.
Invisível
O invisível é suposto
Mais que um posto ser incrível:
Sempre o invisível é o rosto
Escondido do visível.
Olho
Olho por olho,
Se ninguém o menoscaba,
Tem um escolho:
- É que cego o mundo acaba.
Respostas
Quando julgas que já sabes
As respostas todas juntas,
Vem a vida, mal acabes,
Muda todas as perguntas.
Aceita
Aceita, que então
Nada se perdeu:
Quem vive em aceitação
É que é bendito do céu.
Planos
Não dites planos à vida:
Isto finda a estragar planos
Que a vida tem, de seguida,
Para ti, todos os anos.
Motor
A razão é mal vivida
Se for quem me oferta o chão:
O motor que arranca a vida
É sempre e só uma emoção.
Difícil
Se é difícil eu saber
Quando agir, bem mais, a par,
Difícil para quenquer
É saber quando parar.
Vivencia
O que tens a vivenciar
Vivencia e logo aprende
O que este acto te vem dar,
Que o seguinte então te rende.
Âmago
O âmago não pereceu
Do muito que eu o desloco:
É sempre o âmago o mais meu
Que nas coisas eu coloco.
Integrado
Vives sempre em consonância,
Da comunidade aceite?
Foste integrado e, sem ânsia,
És, de preso, um mero enfeite.
Brincar
Vimos à terra, foliões
Brincando em eterno entrudo,
A entretecer emoções
Para ao fim vivenciar Tudo.
Saúde
A saúde está primeiro,
Não só física, inconstante:
A do espírito é o leveiro
Peso que é mais importante.
Antes
Por mais que queiras fazer,
Derrubar acima, abaixo,
Superar teu próprio ser,
Antes pensa: qual meu facho?
Certo
Escolher certo é escolher
Por meu imo conferindo,
Sem cedências a fazer,
Sem condições ao ir indo.
Vens
O que vens fazer à terra
É vivenciar emoções,
O que te exalta ou te aterra,
- Até que o Todo em ti pões.
Compromisso
É simples teu compromisso,
Veste da cabeça aos pés
O teu mais leve feitiço:
- É de ser mesmo quem és.
Plenitude
A plenitude é voar
Liberto dos pesos meus,
Com alegria, a levar
Notícias frescas aos céus.
Forçar
Não vais forçar o futuro,
Já lá está, por ti à espera,
Não muda o rumo seguro
Só por ver tua quimera.
Aceite
O aceite em comunidade
Não deve ser prioritário
Ante o aceite da verdade
De teu íntimo sumário.
Vínculos
Treina teu desprendimento
Dos vínculos da matéria,
Inteiro sê no momento:
- E é tua a força sidérea!
Reino
O verdadeiro origina
O reino do imaginado,
O imaginado destina
Do verdadeiro o reinado.
Minhoca
Como a minhoca que fecunda a terra
Que cegamente atravessando esvai,
A lenda corre boca a boca e encerra
O que encerrar nenhum modo outro vai.
Fruto
Ao agir juntam-se os gomos
De ir sendo fruto quenquer
E vamos sendo o que somos
Pelo que sonhamos ser.
Medos
Presos doutrem nos fanais
Por mil desejos cretinos,
Os nossos medos reais
São afinal clandestinos.
Aceita
O improvável, o insolente,
O obscuro que ninguém viu
Aceita mais facilmente
Todo aquele que já riu.
Espelho
Longa viagem fizemos
Para um viajante acolher:
No espelho que cá encontremos
Só a nós nos podemos ver.
Exame
- ”Estranhei a tua ausência.
Que tens feito? Oiro de lei?”
- ”Fiz exame de consciência.”
- ”Não digas! E então?” - ”Passei!”
Chineses
De Adão e Eva a certeza
Temos de não ser chineses:
Estes comem cobra à mesa,
Deixam que a maçã tu prezes.
Ego
Qual o modo mais seguro
De alguém se suicidar?
- Trepar do ego ao cume duro
E ao vazio se atirar.
Único
Tem sempre em mente:
És único! E sabe mais:
És único exactamente
Como os demais...
Peregrinar
Peregrinar não é apenas
Ir dum para o outro lado,
É caminhar pelas cenas
De nosso íntimo ignorado.
Nunca
Excelência e perfeição
Nunca são de confundir:
Excelência tenho à mão,
Perfeição é a Deus convir.
Casamento
O casamento é o terror
Do que igual se quer manter,
Que o casamento é a melhor
Ocasião de crescer.
Perdoar
Um casamento feliz
É união para durar
Se cada qual é aprendiz
De estar pronto a perdoar.
Quer
Um homem primeiro amor
Quer da mulher sempre ser,
Do derradeiro a mulher
Quer dum homem ser penhor.
Comer
Há comer que é temeroso,
Feito a golpes, como à goiva.
E o comer mais perigoso
É sempre o bolo de noiva.
Flor
Quando um marido à mulher
Flor traz sem qualquer razão,
É que há uma razão qualquer
Para a flor que traz à mão.
Sucesso
Casamento de sucesso,
Só do apaixonado à toa
Várias vezes, no processo,
Sempre da mesma pessoa.
Elástico
Um elástico sou tenso,
Entre dois pólos derivo:
Ou vivo tal como penso
Ou penso tal como vivo.
Solidão
Mais velhos nos finda a pôr,
Mais o fim querendo em vão,
A mais dura solidão:
A solidão dum amor.
Dentro
A terra sem mal existe,
A questão é de encontrá-la.
E é fácil, pois não nos viste
Cá dentro em nós a levá-la?
Amar
Ninguém pode a humanidade
Amar, mesmo atreito às loas.
Só podemos de verdade
Amar mesmo são pessoas.
Humildade
Deveras e sem disfarce
Humildade em grau maior
É nunca considerar-se
Superior seja a quem for.
Clama
No mosteiro clama o abade
A quem ouvir o quer bem:
- ”Em matéria de humildade
Eu cá não temo ninguém!”
2
Segundo Tição
Opressão
A opressão
Volta das vítimas as dores
Umas contra as outras e não
Contra os opressores.
Envergonhar
Em lugar de se orgulhar
De ter mui grande riqueza
É de alguém se envergonhar:
- A Humanidade despreza.
Nada
De nada serve entender
Onde é que radica o mal
Se nada após se fizer
Para extirpá-lo, afinal.
Única
Há uma única pessoa
Sem a qual o mundo meu
Não pode existir, à toa:
E a tal pessoa sou eu!
Contas
Pede contas de verdade
Por toda e qualquer acção:
Sem responsabilidade
Poder cria corrupção.
Mistérios
Da vida os mistérios são
Para os olhos que aprenderam
A vê-los como serão
E não como outrora os leram.
Fim
Hoje em dia,
O fim do mundo talvez
Não assuste tanto quem o avia
Como assusta o fim do mês.
Guerra
Soldado que sais da terra
Para qualquer guerra aí,
Podes sair de tal guerra
Nunca a guerra sai de ti.
Pedir
Nunca de pedir ajuda
Tenhas medo alguma vez
Nem de a tua mão sortuda
Ofertar a quem tu vês.
Sucesso
Sucesso não é estender
A tua mão a uma esmola,
É trabalho duro ter,
De afirmação própria mola.
Vassoira
É certo que nada sei,
Mas vassoira, embora suja,
Varrer pode o que haverei
De varrer, se lhe não fuja.
Pescar
Melhor para quem tem fome
Jamais é o peixe lhe dar:
Para que ele em mãos se tome
Antes o ensina a pescar.
Carreira
A carreira põe à luz
Teu pendor de vida inteira:
A carreira ou te conduz
Ou conduzes a carreira.
Esmola
Esmola um sábio quer dar
Mas que ninguém saiba, aliás.
Ouve dentro murmurar:
- ”Mas tu sempre saberás!”
Matéria
Tudo o que houver na matéria
É de nós usufruirmos
Sem pela prenda sidérea
Qualquer apego sentirmos.
Fotografia
Se, ao tirar fotografia,
Ando do ângulo à procura,
Não da emoção que teria,
Perco o melhor que ela augura.
Sair
A maior das ironias
É sair do Vaticano
Para de Jesus ter vias,
Para O sentir sem engano.
Violência
Violência jamais é solução,
É carência atrás de carência.
E como não?
- Violência atrai violência.
Mal
Todo o mal da humanidade
Não é de ter fugido aos céus,
O mal é que se persuade
Que dela se afastou Deus.
Somos
Pensar, sentir serão amos
Quando trepamos aos cimos,
Mas não somos quem pensamos,
Somos sempre o que sentimos.
Herança
De herança a repartição
Deve assim entre dois ser:
Do mais velho é a divisão,
Cabe ao mais novo escolher.
Relatividade
Relatividade alcança-a
Qualquer mente pobre e nua:
- Cremos que o comboio avança
Quando é a gare que recua.
Cume
Quando a gente atinge o cume
Como deve então agir?
- Sentir-lhe bem o perfume
E continuar a subir.
Louvado
Um louvado o que é que pensa,
Após ter avaliado
Como louvado em presença,
Se diz: - ”Deus seja louvado!”?
Amo
Fresco, o Paraíso, em cima;
Baixo, o Inferno a arder calores.
- Do Paraíso amo o clima.
Do Inferno, os frequentadores...
Vencedor
Trata de vencer, que o lema
É a vitória ter à mão.
Derrotado, se é problema,
Vencedor é solução.
Graça
Há uma graça de desgraça cheia
Que da desgraça vem após:
- Há sempre na desgraça alheia
Algo agradável para nós.
Ano
No ano, só em dois dias tens a medida
Sã
De que nada podes fazer por tua vida:
- Ontem e amanhã.
Errada
Se ainda a pessoa certa
Não foi por ti encontrada,
Desperta,
Frui a vida com a errada.
A Morte
Nem sempre para se dar
Tem de ter-se o que se der.
Que é que só se dá se, a par,
Se dá o que se não tiver?
Pregos do Barco
Em água quando me enfio,
A cabeça não lhe encaixo.
Quem é que passa no rio
De cabeça para baixo?
A Curiosidade
Se me pico, a dor que fica
Às vezes quer quem lhe acuda.
Mas que coisa, afinal, pica,
Nunca, porém, é bicuda?
Ovo
Qual é a coisa que se atira
Branca mais que uma janela
E que, ao cair, eu confira
- Que, se cai, cai amarela?
Morango
Não tem uma telha
Nem herança que herde,
Menina vermelha
Mas num sofá verde.
Os Dentes
Sem elas tu mal declinas
Os sons que há na tua prosa.
São trinta e duas meninas
Num assento cor-de-rosa.
O Fósforo
Um homem entra na sala
Onde há candeia mais vela.
Qual acende para a gala
Primeiro, a luzir de estrela?
Velas do Moinho
Quatro meninas correndo
Uma atrás doutra e não ganham
Terreno que alguém vá vendo,
Já que nunca elas se apanham.
As Pintas do i
Por mais que eu olhe um planalto,
Há mais além um destino.
Afinal, o que é mais alto,
Mais alto no que é divino?
O Sino
Ora às vezes me dá gozo,
Ora faz que o chão eu morda.
Qual é que é o mais ruidoso
Dos instrumentos de corda?
Borla
Porque é que sapatos novos
Nós compramos, desde já
Sem cuidar de mais renovos?
- De borla ninguém os dá...
Carrega
Porque se carrega a Cruz
Quando ao claustro se encaminha
O procissão de Jesus?
- Ela não anda sozinha...
Cama
Quando o sono nos reclama,
Dos olhos nos ata os nós,
Porque vamos para a cama?
- A cama não vem a nós...
Vento
Porque é que o vento é mais frio
De Inverno que de Verão?
- Ficou lá fora, ao rocio,
Que as portas se fecharão.
Galo
Porque é que de olhos fechados
O galo canta ao alvor?
- Porque ele, em todos os lados,
Sabe a música de cor.
Atropelados
Que é uma fila de chineses
Atropelados na estrada?
- É um traço contínuo, às vezes,
Só que amarelo, de entrada.
Gato
De que lado é que mais pêlos
Há-de ter um gato agora?
- Mais pêlos ele há-de tê-los
Sempre do lado de fora.
Elefante
Como faz um elefante
Das árvores ao descer?
- Numa folha senta adiante,
Espera o outono, a ver...
Frigorífico
Como ver que um elefante
Num frigorífico entrou?
- Pelas marcas que adiante
Na manteiga ele deixou.
Quatro
Como é que quatro elefantes
Se arrumam num mini-carro?
- Dois à frente, os importantes,
Dois atrás que são o escarro.
Cravos
De quantos cravos precisa
Um cavalo bem ferrado?
- De nenhum: só desta guisa
Por “bem ferrado” ele é dado.
Crivo
Como é que pode num crivo
Água ao fim ser transportada?
- É que, por algum motivo,
Tal água ficou gelada.
3
Terceiro Tição
Papa
Onde é que se encontra o papa
Bem depois do pôr-do-sol?
- Ao fado nem ele escapa:
É sempre da sombra ao rol.
Viúva
Alguém casa com conforto
De sua viúva com a irmã?
- Por grande que seja o afã,
Não, porque ele já está morto.
Pombos
São seis pombos, mato três,
quantos restam que insistiram?
- Nenhum, já que, desta vez,
Todos os outros fugiram...
Pijama
Porque há quem use pijama
Só para de mota andar?
- É que se lembra da cama,
Quer nas curvas se deitar.
Rãs
Porque é que as rãs têm peito
Mas rabo não tem lugar?
- Porque não lhes dava jeito,
Jeito nenhum ao sentar.
Pescadores
Se for abstinência inteira
Que escolhem, fiéis leais,
Que comem à sexta-feira
Católicos canibais?
Olhos
Serão sempre dois vizinhos,
Embora nenhum converse,
Nunca saem aos caminhos
E nunca poderão ver-se.
Cadeias
Alguns das próprias cadeias
Não se logram libertar,
Porém, de algemas alheias
Muito amigo vão livrar.
Morte
Todos, todos a ter tanto medo
Da morte
E eu a ver quão nela acedo
À grande, à grande sorte!
Verdade
À luz do dia a verdade erguida
Não é tão destrutiva, não,
Como a mentira escondida
Na escuridão.
Garrafa
Sempre é de garrafa meia
Que fala a democracia:
Uns dirão que é meia cheia,
Outros que é meia vazia.
Queimar
É uma estranha lei das tribos
Que apodrece as gestas boas:
- Começam a queimar livros,
Findam a queimar pessoas.
Cimento
Amizade, sempre de alma
Misterioso cimento,
Adoça a vida que acalma,
Solda aos mais cada elemento.
Magma
Num magma borbulham, quentes,
Respeito, amor, lealdade,
A alimentar, permanentes,
O coração da amizade.
Doce
Não é tomar de alguém posse,
Não é uma oportunidade,
A amizade é sempre um doce
De responsabilidade.
Jornada
Sem haver uma amizade
Ao correr duma jornada
Não há mais vida que agrade,
A vida não vale nada.
Horas
Horas más ou horas boas
Nos vão pontuando o chão.
Posso viver sem pessoas,
Sem amigos é que não.
Desejo
Não há desejo profundo
Como o singelo do abismo
Que dentro em nós não tem fundo,
O de algum companheirismo.
Vão
Vida fora tudo é vão,
Posso descartá-la à peça.
Os amigos é que não,
São aquilo que interessa.
Precioso
Não há nada precioso,
Tão precioso no mundo
Como este afecto gostoso
De ser querido em que abundo.
Imprevista
Quantas vezes persuade,
Mesmo apesar de imprevista!
Acredito na amizade
Também à primeira vista.
Rir
Nada melhor do que rir
Com alguém num riso a esmo
Porque ambos, de igual sentir,
Ambos acham graça ao mesmo.
Alma
Um amigo: uma alma apenas
Que, além bem do que entenderes
Das adivinhas mais plenas,
É uma só, vive em dois seres.
Amigos
Um do outro na quente alma
Caímos, asa que voa,
Tal pedrinha que, na calma,
Breve tomba na lagoa.
Sós
A sós contigo,
É tudo um dó.
Com um amigo
Nunca estás só.
Chega
Um amigo a que me abeiro
É alguém que chega na hora
Quando o mundo inteiro
Já se foi embora.
Revela
Quer na alegria mais bela,
Quer na tristeza e nos dós,
A amizade é o que revela
Que nós nunca estamos sós.
Auxílio
Não é o auxílio de amigos
Aquilo que mais ajuda,
É fiar-me em seus abrigos,
Certo de que há quem me acuda.
Interessa
Um amigo que interessa
É o que atende uma chamada,
Quando o telefone o peça,
Às quatro da madrugada.
Difícil
Para que é que viveremos
Se não for para tornar
Menos difícil, aos remos,
A vida que haja a remar?
Único
Um único bom amigo
Ter é fazer com que as trevas
Longe andem de meu abrigo:
- Há de luz levas e levas!
Roupão
Um amigo é como um velho
E bom, de quente, roupão
Em que me agasalho o artelho
Quando é escuro e frio o chão.
Teste
Da amizade o teste é a ajuda,
Ajuda na adversidade.
E esta ajuda, quando acuda,
Só gratuita é que persuade.
Palavra
A palavra encantadora,
Vocabulário de amigo,
É “fica”: - “Fica uma hora,
Mais uma hora comigo!”
Agasalhos
Um para o outro nós fomos
Quantas vezes, no arrepio
Da vida estéril de pomos,
Agasalhos contra o frio!
Coladas
As amizades coladas
Se mantêm pelos dias
Das mais adversas jornadas
Com pequenas simpatias.
Fruir
Quem for capaz de mostrar
E fruir de amabilidade
É o amigo a valorar
Mais do que qualquer herdade.
Endireitam
Os amigos endireitam,
Dum café e um bolo à beira,
No calor com que se estreitam,
Nada mais que a vida inteira.
Clarim
“Saldos”, “Oferta Especial”
É tal toque de clarim
Às amigas que, ao sinal,
Vão dar luta até ao fim.
Dizer-te
Pode um amigo dizer-te,
Da amizade por magias,
Sem que ela de ambos deserte,
O que a ti nem tu dirias.
Sandice
Apenas o amigo pode,
Quando, por qualquer sandice,
O mal então nos sacode,
Pode dizer: -”Bem te disse !”
Inócuo
Como é que útil pode ser
Quem de mim só se aproxima
Com inócuo parecer,
Hoje abaixo, ontem acima?
Precioso
Vou com ele até ao fim,
No sofrimento e no gozo:
- Se não precisa de mim,
É um amigo precioso.
Maçada
Amigo em dificuldades
É uma terrível maçada
E a lavoira em que tu grades
De amigo a safra mais grada.
Gesso
A amizade anda de gesso,
De perna partida assim,
Se um amigo tem sucesso
E algo então morrer em mim.
Ler
Se um do outro o pensamento
Pudera acaso alguém ler,
Dissolvia num momento
A amizade e o bem-querer.
Vestida
A amizade entre mulheres
Não é possível na vida
Se uma delas tu ponderes
Que está muito mal vestida.
Ingénuo
Das pragas mesmo a maior
Que Deus nos pode enviar
É a dum amigo que for
Deveras ingénuo a par.
4
Quarto Tição
Tensão
A amizade não aguenta
A tensão dos bons conselhos
Se, durante o que se tenta,
Os anos morrem de velhos.
Paga
Um amigo que tiver
De ser comprado não vale
A paga por ele o ser,
Não é um amigo real.
Máscara
A máscara pode ser
De todo jogada aos pés:
Com o amigo podes ser
Aquilo que realmente és.
Sincero
Um amigo é sempre alguém
Com quem posso ser sincero:
Ao pé dele posso, a bem,
Pensar alto no que quero.
Futuro
Um amigo tem um traço
Do futuro que vier:
Permite-nos ter o espaço
Da liberdade de ser.
Qualidade
Sabe o amigo o que ladear
Por ser mera quantidade
Quando vamos conversar
E opta após por qualidade.
Privilégio
Privilégio dos amigos
Velhos é se permitir
Estúpido nos pascigos
Ser com eles sem ferir.
Fechar
Para encontrar um amigo,
É fechar um olho, pois.
Para tê-lo a bom abrigo,
Então é fechar os dois.
Cemitério
Todos deveriam ter
Um enorme cemitério
Para enterrar lá qualquer
Falha de amigos a sério.
Além
Um amigo é quem te aceita
Como és mas espera bem
Que sejas (o que o deleita)
Quanto possas ser além.
Gosta
Um amigo é sempre alguém
Que de ti sabe de tudo
E mesmo assim, olha bem,
De ti gosta sobretudo.
Fecha
Cego o amor te deixa,
Depois são abrolhos.
Só a amizade fecha
Calmamente os olhos.
Lado
Quase ninguém há-de estar
Do teu lado, se estás certo.
O amigo é quem te anda a par:
- Negam razão? Ei-lo perto.
Busca
Tens palácios, guias bólidos,
Sempre na busca perdida...
- Os amigos é que, sólidos,
São a riqueza da vida.
Lealdade
A lealdade vale
O seu peso em oiro,
Dos fracos que agoiro
Salva a imensidade.
Finais
O que a estrada junca
De fins são sinais.
Entre amigos nunca
Haverá finais.
Apanha
Como a vida nos apanha
E então nos ensina a amar,
Sem mais ver quem perde ou ganha,
A todos a perdoar!
Melhor
O meu melhor amigo é
Aquele que faz, por fim,
Vir ao de cima, com fé,
O melhor que houver em mim.
Quando
Gosto de ti pelo que és,
Porém, não somente, amigo,
Também por quanto, de vez,
Eu sou quando estou contigo.
Aguentar
O amigo torna possível
Aguentar, em minha pele,
A viver neste terrível,
Terrível mundo cruel.
Compreender
É compreendido ser,
Na verdadeira amizade,
Tal como é compreender,
A mais bela qualidade.
Compreensão
Amizade é amor
Nesta dimensão
De alegre calor:
- Com compreensão.
Privilégio
O grande alívio, conforto,
Privilégio da amizade
É que ninguém o seu horto
Tem de explicá-lo, em verdade.
Melodia
Os amigos nunca vivem
Meramente em harmonia,
Mas também vivem, revivem
Muita sacra melodia.
Contigo
Ir contigo é caminhar
Numa manhã luminosa
Com a sensação gostosa
De ser daquele lugar.
Silêncio
É verdadeira a amizade
Quando um silêncio prestável
Aos dois de leve os invade
E acontece que é agradável.
Lonjura
Não elimina a saudade
A lonjura aqui vivida,
Traz a lonjura, em verdade,
Já sem danos, para a vida.
Tecido
Os silêncios e as distâncias
Fazem parte do tecido
Com verdadeiras fragrâncias
Da amizade com sentido.
Carta
Um telefonema é bom,
Porém, uma carta, ao vê-la,
É falar num outro tom:
- A carta posso relê-la.
Madrugada
Uma carta dum amigo
Eleva, de saborosa,
O coração, é um abrigo
Na madrugada chuvosa.
Mão
Ah, como é bom,
Sem um perigo,
Sentir a mão
Dum velho amigo!
Ausência
A amizade nunca esquece
Mesmo após a consequência
Do que a esquecer se parece:
A vida inteira de ausência.
Consolo
De ter de amigo o consolo
Pode ter fim definido
Mas neste fim nunca arrolo
O consolo de o ter tido.
Poderoso
Jamais um amor tão bom,
Poderoso nos persuade
Como o que incorpora o tom
Dele sobre uma amizade.
Coluna
A amizade verdadeira
Mais estável vai tornar
A coluna onde apoiar
A paz pela Terra inteira.
Entretecendo
A amizade vai ligando,
Entretecendo o enlaçado
Até que o mundo, rodando,
Fique ao fim nela enredado.
Oferta
De quanto a sabedoria
Oferta à felicidade,
De tudo a maior franquia
É a de ter uma amizade.
Consiste
Consiste a felicidade
De amigos numa recolha,
Porém não na quantidade,
Na qualidade da escolha.
Mereci
Deveras eu mereci
Todos os meus inimigos,
Mas mérito em mim não vi
De merecer meus amigos.
Melhor
É bom ser rico e ser forte
Mas melhor é ter abrigos
Ao ser caro, com transporte,
A muitos, muitos amigos.
Goza
Dum amigo goza
Como se Deus fosses,
É a mais preciosa
De todas as posses.
Medida
Um amigo que se estima
É um padrão já de beleza,
Que um amigo é uma obra-prima
A andar pela natureza.
Tesoiro
Em redor de meu pescoço,
Meu amigo, és colar de oiro.
Viver sem ti como posso?
Tu és meu melhor tesoiro!...
Reino
Sou daqueles que partiram
Da amizade em busca e treino
E o espanto conseguiram
De encontrar ao fim um reino.
Sábio
Frena o sabedor o lábio,
Vendo qual saber lhe cabe:
Sempre que um homem é sábio
Nunca dirá quanto sabe.
Aprender
Aprender o que é malvado
Não é o pior a temer:
Aprender jamais é errado,
Fazê-lo é que o há-de ser.
Abrigos
É por faltarem abrigos
Que os perigos se hão mantido:
Morrem os deuses antigos
E os novos não hão surgido.
Apontarmos
Não existe deus nenhum
Dos que apontarmos nos céus,
De rosto embora incomum:
Nenhum deus é deus. Só Deus!
Outrem
Com outrem não poderei
Dar-me bem quando quenquer
Para mim, como por lei,
Continuar outrem a ser.
Ego
Um ego apenas existe
Através de seus limites
E nada dele persiste
Quando deles o desquites.
Um
Tudo o que é de facto é um,
Daí que ser plenamente
É ser quanto é, sem nenhum
Resquício lá fora ausente.
5
Quinto Tição
Ocasião
A grande dificuldade
É também, no árido chão,
Para uma oportunidade
A melhor ocasião.
Reciprocidade
Reciprocidade fito
Se é com o abismo que lido:
Quem escolher o Infinito
É do infinito escolhido.
Sufoco
Dum homem qualquer sufoco,
Por mais que por nada o tomem,
É noutro mundo que toco,
É Deus que sufoca no homem.
Confim
O confim
Dos confins meus:
- Descobrir o Homem até ao fim
É descobrir Deus.
Inferno
Os partidários do inferno
São os que, quando isto almejam,
É só para uso externo:
- Para os outros o desejam.
Distante
Em absoluto distante
De quenquer que o interpele,
Deus em nada é semelhante
À ideia que se faz dele.
Fé
A fé no homem toca um chão
Que não é dos passos seus:
A fé no homem expressão
É sempre da fé em Deus.
Outro
Não é o outro que é o inferno
Nem poderá ser tabu,
Ele é o meu segredo interno:
- Torno-me Eu ao dizer Tu.
Abrigo
Jamais de mim sou abrigo,
Por mais que me esforce à toa.
Se a uma pessoa me ligo
É que ao fim serei pessoa.
Redor
É quando noutrem tropeço
Que então para mim flutuo.
Doutrem me desinteresso
E a mim é que me destruo.
Fuga
Nenhuma fuga é viável,
Que os passos elas nos somem:
Do próximo responsável,
Meu próximo é todo o homem.
Encontro
Toda a vida verdadeira
Entretece-se em encontro,
Mas dela a visão cimeira
É que é sempre um reencontro.
Aquilo
Sem Aquilo o homem não vive
Mas se viver só d'Aquilo,
Por mais que junte e que arquive,
Não tem de homem pleno o silo.
Busca
Não há uma busca de Deus:
Não há nada, em nenhum lado,
Onde, na terra ou nos céus,
Não seja sempre encontrado.
Encontrar
Ninguém há-de encontrar Deus
Se se mantém só no mundo,
Nem traços encontra seus
Do mundo se sai, no fundo.
Infindo
Dá o Infindo a tudo a mão,
Tudo são reflexos seus:
Com outrem a relação
É já relação com Deus.
Bênção
A bênção de minha vida
É que nunca precisei
Duma coisa perseguida
Antes de a ter, feito rei.
Questão
Nunca te irão perguntar:
- ”Moisés não foste, homem cru?”
A questão a colocar:
- ”Porque é que não foste tu?”
Corpo
Um corpo humano é preciso,
Mas como hotel deve ser
Ao qual, quando o bem diviso,
Nunca me devo prender.
Feliz
Se não podes ser feliz
Aqui e agora, é que junca
Teu trilho a cinza que diz:
- Não poderás sê-lo nunca.
Via
A via que nos conduz
A livrar do sofrimento
Uma aceitação traduz
De sofrermos a contento.
Suportava
Nenhum homem suportava
Ver-se tal e qual ele é
Comparando ao que julgava
Ser na sua boa-fé.
Liberdade
Tomo a liberdade a peito
E a mim mesmo é que me acuso:
Livre em mim sou do que aceito
E preso do que recuso.
Adesão
Se a adesão ao sofrimento
For total, perfeita, a paga
É que logo, no momento,
O sofrimento se apaga.
Medo
Quando deixa de haver medo
Desaparece o futuro,
Fica o momento a que acedo,
Nele inteiro me inauguro.
Estado
De paz e alegria o estado
É um estado sem oposto:
Nem se opõe ao que hei amado
Nem tira ao que odeio o rosto.
Dualidade
O inferno é dualidade,
A divisão interior:
Dum lado a profundidade,
Doutro a derme a se lhe opor.
Fim
Fim do mundo não é nunca,
Não pode ser mais senão
Em nós fim da garra adunca
Do que foi uma ilusão.
Objectivo
Um objectivo comum
Pode o homem atingir
Sem ter tomado nenhum
Comum caminho a seguir.
Parece
Amar apenas aquilo
Que connosco se parece
É amar-se mal em sigilo:
Amor não é, o outro esquece.
Única
É única a Fé, na essência,
Em qualquer religião,
Qualquer lhe exprime a vivência,
Tudo à uma e sem cisão.
Mal
O mal com o mal pagar,
Por mais que justo regalo,
O mal não é reparar,
Afinal, é duplicá-lo.
Bendito
Porque Ele julgou por bem
Não no-lo enfim conceder,
Por todo o bem que não vem
Bendito Deus há-de ser.
Inimizade
O primeiro e maior bem
A fazer a um inimigo
Da inimizade que tem
É livrá-lo do perigo.
Tudo
De desejar
É, sobretudo,
Tudo encontrar
Ao perder tudo.
Guia
Só há um guia verdadeiro,
O nosso guia interior
Que nunca passa, estrangeiro,
Por cônscia mente o que for.
Ajudar
A ajudar outrem e o mundo
O melhor que hei-de fazer
É ser o que ao outro infundo
Que espero que venha a ser.
Flui
Flui com a vida, merece
A folha ao vento: destarte
Deixa vir o que acontece,
Deixa partir o que parte.
Sofrimentos
Não saber que, ao fim, não sabe
Sofrimentos infinitos
Causa a quem em si não cabe,
De imitar de sábio os fitos.
Procurar
Em troca de procurar
O que não tens, decidido
Antes encontra, em lugar,
O que nunca hajas perdido.
Desembaraçar-me
Não vou desembaraçar-me
Dos problemas que atravesso
Sem que a renúncia desarme
As ilusões que professo.
Balizas
Aquilo de que precisas
Apresenta-se-te logo
Mal prescindas das balizas
Com que jogas o teu jogo.
Norma
Norma sobretudo
Para a vida em paz:
- Renuncia a tudo,
Tudo ganharás.
Dê
Por mais que dê quanto é meu,
Há uma raia na sequela:
Não posso ofertar-te o céu,
Compete a ti ver a estrela.
Sois
Mistério da terra aos céus,
Transcende todas as leis:
- A verdade é que sois Deus,
Porém vós não o sabeis!
Dificuldades
Que evite as dificuldades
Não devo pedir a Deus,
Rezo para que as vontades
Nelas possa ver dos céus.
Limitada
A religião limitada
Não é por quanto ela inclui,
Mas é-o porque, à chegada,
Toda a religião exclui.
Amanhã
Tendes medo do amanhã?
Do ontem de dor e gozo
Nada ocupa vosso afã
E é por igual perigoso.
Funda
A lei mais funda do ser
Traz uma verdade esquiva:
- As palavras vão morrer
Onde quer que o homem viva.
Ávido
Ávido ser de não ser
Ávido, por sua vez,
De tanto à força o querer,
É mesmo assim avidez.
Força
À força de repetir
“Devo acordar”, faz quenquer,
Longe de o fito atingir,
Findar por adormecer.
6
Sexto Tição
Subsiste
Nada subsiste por si,
Tudo é dum só poema o verso:
Se bem buscas dentro em ti,
Encontrarás o Universo.
Enleio
Corremos sempre no enleio
De não sei quê que buscamos.
Ora, não há nenhum meio
De ir aonde nós já estamos.
Iluminação
Antes de mais, em quenquer,
Ser iluminado em fé
É a liberdade de ser
O falhado que se é.
Questão
Ser ou não ser
Não é questão,
Pois, com razão,
Ser é não ser.
Mundo
Num mundo que se extasia
Por deitar o mundo ao chão,
Há mais fome de poesia,
Mais fome do que de pão.
Precioso
Tudo o que é precioso em mim
Doutrem vem, pois de mim, não.
Tudo o que em mim há, no fim,
Nenhum valor tem então.
Sorriso
Toda a beleza do mundo
É o sorriso de ternura
De Deus para nós, jucundo,
Na matéria onde perdura.
Nada
É o que importa em todo o lado:
Ser nada para ocupar
Seu verdadeiro lugar
- No Todo todo integrado.
Presente
Deus só pode estar presente
Na Criação, por essência
Do que é permanentemente,
Sob uma forma de ausência.
Erro
Se um derrotado cai no error:
- ”Não tenho culpa, vós outros a tende!”
Comete um erro o vencedor,
Diz “enganei-me” e então ele aprende.
Tosse
- ”Eu estou com tosse, mãe.”
- ”Passou-ta teu pai, pele a pele.”
- ”Não! O pai, mãe, ainda tem,
Ainda tem a tosse dele.”
Pavão
Vê o pavão um miúdo, ali,
No êxtase que mal continha:
- ”Que árvore de Natal vi
A sair duma galinha!”
Impossível
O impossível é a quimera
Que nada tem de fatal:
- O impossível sempre à espera
Anda de tornar-se real.
Milagre
Só há dois modos de viver a vida:
Neste, milagre nenhum há que sagre,
Tudo é vinagre a avinagrar-me a lida;
Noutro, à partida, tudo é já milagre.
Aprender
Aprender mais sobre amor
É ir, antes que te enleies,
Começar com pundonor
Por um amigo que odeies.
Lado
Se a nosso lado alguém ficar
Independentemente do que acontecer,
Percebemos, a par,
Que vale a pena viver.
Casa
Porque é que a morte tanto nos arrasa,
Evento infecundo?
- Afinal, voltar a casa
É a melhor coisa do mundo!
Cristal
Nada é verdade ou mentira, afinal:
Tudo tem a singular
Cor do cristal
Com que se olhar.
Depende
Quando Deus fecha a janela,
Abre uma porta na sala.
De ti depende ir por ela,
De ti depende encontrá-la.
Armadilha
Há quem previna tanto o futuro
Que o presente que nem vê nunca lhe brilha.
Mas quem só do presente cuida com apuro
Do futuro em breve tomba na armadilha.
Destino
Como um pêndulo é o destino:
Quão mais afastá-lo, à solta,
Tento dos sons de meu hino
Com mais força ele a mim volta.
Desejo
O desejo vive atreito
A apontar distante o tecto:
O desejo é o
defeito
Do projecto.
Missão
A missão dos passos meus
É o olhar do coração
Pelo qual posso ver Deus
Mesmo aqui à minha mão.
Equilíbrio
O programa dos céus
Um equilíbrio tem em si:
Tudo o que fazes, fá-lo para Deus,
Que o que Deus faz, fá-lo para ti.
Dentro
Repara no que tens aí,
Teu imo posto a nu:
- Deus mora dentro de ti
Como tu!
Fronteira
Sou a linha de fronteira
Em perene mudança
Junto à floresta maravilhosa, assustadora e traiçoeira
Do novo que me alcança.
Bênçãos
Pode ser a dor, a morte,
O erro, a falha, o que mui herdas,
Que este teu lema é mais forte:
- Sempre bênçãos, nunca perdas.
Cogumelo
Qual é a coisa qual é ela,
Tem chapéu mas sem cabeça,
Tem um pé mas sem chinela,
Nada mais tem que lhe peça?
Ao Luar das Íntimas Estrelas
1
Primeira Estrela
Movimentos
Os movimentos da vida
Propõem um avanço
Por ganhos e perdas à medida,
Apego e desapego do que alcanço.
Quando ganhas algo
De teu
É que conquistaste, fidalgo,
Alguma coisa no céu.
O que houveres de ganho
É para ser utilizado, ser fruído,
Não para te apegares com arreganho
A ele, que não te pode em propriedade ser cedido.
Quando a uma coisa ou alguém
Te apegas,
Mal a hora de o perder advém,
Não entendes e renegas.
Julgavas que era teu
E para sempre seria.
Que tudo é emprestado quem compreendeu,
De o perder no dia
Ficará sereno,
Sabendo que outra barca virá
Para evoluir em pleno
A partir donde está.
Se o julgas teu,
Na hora da partida
Vais-te vitimizar e criticar
Quem crês que to perdeu
E, em seguida,
Fera à solta,
Findas a entrar
Em revolta.
Revolta é não-aceitação
Da ordem natural do Universo.
Tenta rever, então,
Compreender porque atraíste a perda ao berço.
Senão
O acto que for teu,
Matizado pela revolta,
Não entra em consonância com o céu,
Perdida ponta solta.
Não dará, pois, certo.
Que te leva, portanto, a avançar pelo teu chão,
Revolta ou aceitação?
- Só esta te porá sempre mais perto.
Inactivo
O céu já falou,
Mostra o que quer,
Ao que vem já revelou
A quenquer.
Estão feitas as ligações,
As juntas, apertadas,
Não há mais fundões
Nas levadas.
Permanece, porém,
O homem inactivo,
Ninguém
Segue em frente, decisivo.
Tem medo, vergonha ou cuida que há mais
Novidades a vir,
Aguarda pelos sinais
Para, ao fim e ao cabo, não ir.
Ora, já foram dados os sinais todos
De variegados modos,
Agora é de agir!
Há um tempo para tudo,
Uma primavera de florescer.
Se o homem não agir, contudo,
A altura passa a correr
E perde o brilho de fanal
Dum tempo original.
Não deixes fugir o momento,
Não tenhas medo,
Não fiques parado, desatento,
Que nunca é cedo.
Avança,
Faz o que tem de ser feito
Com um riso de criança
A trinar no peito.
Isto somente,
Que no resto o céu ajuda.
Em frente,
Disponível para a muda!
Há tempo de esperar
E há tempo de agir.
Não deixes passar
Se o momento é de ir.
Instruções
Espera, paciente,
As instruções do céu
Em total entrega.
Já aprendeste a trilhar em frente
O caminho que te apareceu,
Já aprendeste a mantê-lo no meio da refrega.
Ao céu quem se entrega por inteiro
A vida tem facilitada:
Deixa de ter perdas no atoleiro,
Deixa de ter de lutar, em suma,
Logo de entrada,
Por coisa alguma.
A vida dele é um rio
A fluir alegre e macio.
Cumpre a própria missão,
Comprometido.
O caminho dele, através do chão
Seguido,
Já não tem segredo
Porque não há medo.
Há fé e entrega,
Apenas,
No itinerário que adrega
Seguir pelos meandros do que encenas.
Com permanentes reconversões
O homem aprendeu
A deixar de lutar, aos sacolejões,
E voa a fluir da aragem no solidéu.
Quando tudo está bem, avança,
Quando algo está mal, entrega.
Nada o fere do que alcança
Ou em que pega.
A entrega que o reconduz
À vontade do céu que o interpela
É dele a luz,
A fulgurante estrela:
Tudo ali acaba por ficar
No próprio lugar.
O céu comanda,
O homem flui, feito água viva,
E ambos prosseguem a demanda
Em harmonia festiva.
Missão
Quando encarnaste,
Encarnaste uma missão.
As almas que à terra vão
Têm missão quanto baste:
Implica um propósito, com uma vereda séria,
Qualquer experiência da matéria.
Não é sobreviver, não, por sinal,
Fito nada espiritual.
O propósito é cruzar
Pela experiência
Para o âmbito descodificar
Da vivência
Etérea
Do espírito na matéria.
Porém, ao nascer,
A sobrevivência
Meu primeiro fito vem a ser,
Em nome dela se anulam os mais
Altos trilhos espirituais.
Da sobrevivência em nome,
De freimas atulhando de cotio cada depósito,
Descuidamos à fome
Da vida o verdadeiro propósito.
Então, nada acontece,
Que o que acontece não é nada:
Se o retorno material é o que te aquece,
O grande voo não te ocorre na jornada.
Olha bem de ti para dentro,
Questiona o fito da tua iniciativa:
Para que serve, qual é dela o centro,
Onde ajuda a humanidade a ser mais viva
Ou as jornadas
Das gentes que te são chegadas?
Porque estás fazendo isto?
É por ti, pela tua plenitude,
Ou para teres um retorno previsto,
Material ou afectivo que a ti se grude?
Olha o teu coração
E sente o conteúdo de tua aposta.
Ficarás a saber então
A resposta.
Modo
A terra está na terra,
O céu, no céu.
Tudo tem propício tempo a que se aferra,
Um modo próprio que é o seu.
O homem recebe,
O céu dá,
Disto, na terra, quenquer que o queira se apercebe
Já.
O homem compreende o que fazer
E então actua,
Sem ego a entorpecer,
Sem culpa nem medo de ir à rua.
A confiança no céu liberta,
A fé ajuda no imprevisível,
A aceitação desperta
Lima cada aresta ao exequível.
Tudo se harmoniza
Quando está no lugar certo:
A vitória que alguém visa,
A sorte no deserto,
A inspiração,
Húmus do chão.
O céu se entremostra nos sinais,
Tu sabes e lê-los.
Tudo se encaixa entre os varais,
Tudo se justifica nos apelos,
Tudo boa sorte augura:
É o caminho e aqui tudo inaugura.
Em todo o lado
Dele os pendores continua a percorrê-los,
Serás abençoado.
Mudam
Mudam as gentes,
Mudam as terras,
Mas da felicidade os ingentes
Apelos a que te aferras
Parecem estar sempre depois
Da próxima montanha,
Além das margens enredadas de cipós
Do grande rio que mais além o pé nos ganha.
É a terra sem males nem travor a fel,
A terra da ilusão
Onde corre o leite e o mel,
De cada qual nesta aridez o promissor sertão.
É o grito,
A apelar com mil sentidos,
Do Infinito
Em meus ouvidos.
Insatisfeito
Quando alguém se sente insatisfeito,
O que lhe permanece
No peito
É a impressão de que emurchece:
Algo não está bem
E, perene, a dúvida o retém.
Sentimento de falta, de vazio,
De algo incompleto,
E de que urge, sem desvio,
Pôr-se repleto.
Do elo perdido
Da cadeia
Partes em busca, desmedido,
E não descansas, fugindo à colmeia,
Enquanto
O não encontras nalgum canto.
Algo falta sempre, porém,
E é o que te ofusca e te mantém.
Vontade interminável de plenitude,
Tentativa do pleno Bem,
É o que faz correr alguém
E o que, fatal, ilude:
Enquanto não lograr cumprir
O que de cumprir cuida que tem,
Não descansará nunca ninguém,
A seguir.
Tal agitação desencadeia mais actividade,
A fazer tudo o que há tenção
De fazer porque nos persuade,
- O que leva a mais insatisfação...
Quanto mais alguém faz
Para não se sentir insatisfeito
Mais outrem pede o que lhe apraz,
Pois é quem a tal é sempre atreito.
É o que inculpa mais,
Dá mais insatisfação,
Pois ninguém logra jamais
Fazer tudo e o Todo ter à mão.
Mas será de fazer tudo
Ou altura é de parar,
De interiorizar, mudo,
E procurar
Que é que no coração
Cava tal insatisfação?
Não é assim a plenitude,
Não corre, a fugir em frente,
Não foge à própria virtude.
Quem está pleno o que sente
É que nada tem a fazer,
Pois sabe que para ser
De fazer não necessita,
Em ser se centra e concita.
Ao não pensar em fazer,
Ao concentrar-se em estar,
Os mais leva iguais a ser,
Sem exigências a par,
Todos da culpa se libertam,
Para outro mundo despertam.
Quanto mais te concentrares
Em ser,
Sabendo já não precisares
De fazer,
Menos exigirão doutrem as traças
Que faças,
Menos culpa irás sentir
E poderás prosseguir
A concentrar-te em ser,
Que é o que o momento requer.
Nesta hora
A culpa, como a urgência,
É devastadora.
Exercita a premência
Do desprendimento sem penas,
Os vencilhos da matéria retira
E, sem mentira,
- Sê, apenas.
O mundo que vês
Irá cair-te aos pés.
Mar
Viver o mar de Deus, gota que sou,
Com toda a paixão:
Pelo que gosto de fazer e me apaixona
É que vou,
Com a atenção,
Com a emoção
Que o que vale a pena
Traz à tona.
Quando alguém cuida do mar,
Não brinca quando lhe acena,
Não descuida ao se entregar,
Vive a vida onde consuma
A paixão que o resuma.
Dedica-te com alma
A coser o teu botão,
Ergue aí a tua palma,
A tua capacidade
De ser raio e ser trovão,
Põe lá tua eternidade,
Teu infinito semeado aqui no chão,
Aquela força invisível
Que brota dentro de ti
E que é vida, a mais credível
Que em ti vi.
Escolhe o acto e te entrega,
Aí ficas uno.
Tudo em ti se congrega,
Já de ninguém mais és aluno,
Nada alheio se te apega,
Nada te prende os pés,
- Aí tu és!
A escolha, ao agir,
Define o ser
E tu, sem sentir,
Estás a ser.
Rejeição
Todos os que nascem vivenciar
Vêm o temor da rejeição:
Vivenciar
é superar
O papão.
Nem sempre acontece,
Porém.
Quem esquece
De alguém
A expectativa
Que sobre si tem?
Quem dela se esquiva?
Ao invés, quenquer
Tudo faz para lhe corresponder.
Se cuidam que deles esperam força,
Fortes se fazem.
Se o não forem, é uma escolha que os distorça,
Nela se contrafazem,
Só para a outrem agradar.
Porquê tanta premência?
Para a rejeição evitar:
Uma pessoa tudo faz
Para escapar à iminência
Tenaz
De acaso ser rejeitada.
Doutrem as expectativas
São o mapa da jornada
Pontilhado a setas vivas.
Se ao invés, porém,
O facto de ser rejeitado
Decidir alguém
Vivenciar
E, ao tal aceitar,
Declinar o agrado
A outrem, não lhe correspondendo
Às expectativas sobre si,
Resolvendo
Assumir quem é, sem alibi,
Então, o que ocorrer
É apenas ele a Ser
E a ser em plenitude.
Então já não se ilude,
Olha-se, entende o medo
Que do peito lhe mora no segredo.
Veio aqui ser limpo, é a missão
Para findar o temor da rejeição.
Aceitar ser rejeitado,
Sentir funda a dor
De não gostarem de nós,
De não nos haverem aceitado,
E limpá-la com fervor
Tanto maior
Quanto mais ela for atroz.
Por trás do escuro ver o Ser
Por dentro de nós
A borbotar amor
Para todos e quenquer.
Não um amor de corresponder
A quem é de mim senhor,
Mas o amor livre e fecundo,
Incondicional e que acalma
De quem encontrou no centro do mundo,
Para sempre, a própria alma.
Itinerário
Um itinerário espiritual cobrir
É nas águas oceânicas do Infinito
Deixar-se diluir.
Rumo ao Universo transito,
Nele minha alma se dilui,
Se dilui a energia.
Aquilo que fui,
Com a diluição no Todo
Anuncia
Que, ao mudar de modo,
Minha alma do Todo faz parte,
É Universo, destarte.
O segredo da comunhão universal
É o deste diluir-se, afinal.
Quando vivemos a energia desligada,
Pejada da densidade da Terra,
Não temos a vida preparada
Para diluir-se, o que a emperra:
A miséria
Que nos desfia
É cuidarmoss que somos matéria,
Não sabermos que somos energia.
Se soubéramos que energia somos
E a matéria, invólucro mero,
A carregar os tomos
Das limitações e potencialidades
Com esmero,
Para podermos trabalhar nossas fragilidades!...
Se soubéramos que a energia é a vertente
Mais poderosa a ter em mente!
Se soubéramos que só nos diluindo,
Como físico, como mente,
Podemos ir atingindo,
Paulatinamente,
Da inefável alma a dimensão
E, finalmente, a fusão!...
O nosso dever radical
É diluirmo-nos em energia
Para melhor fusão, afinal,
Que a unidade nos devolveria.
Como alcançar a frequência de alma?
Diluir é deixar que tudo aconteça
Quando tem de acontecer,
Com a calma
Que meça
O Infinito a ser.
É saber que tudo no Universo
Tem um tempo adequado
E que ninguém devia ser adverso
Ao que para ocorrer
Programado
Estiver.
Se alguém de quem gostas
Mal te fizer,
Deves chorar, chorar de tristeza
Por em tuas apostas
Atraíres quem tanto se despreza,
Quem é tão infeliz
Que tem
De magoar a própria raiz:
Quem lhe quer bem.
Assim te irás diluir
Na dor que sentes,
Sem jamais da dor fugir,
Com todas as dores presentes.
A vida é alegre e triste,
Tudo a fluir
Se não deixas escapar o que existe,
A sentir, sentir, sentir...
Nem todos diluem emoções
Adversas.
Ficam com raiva, zangados os corações,
Culpam as pessoas que não são tersas,
Findam de peles endurecidas,
De nó no peito
Continuam as vidas,
Com emoções mas sem jeito
Para as escrutinar
E que recusam aceitar.
Não é de aceitar a lesão
Que nos faz mal,
Mas de vivenciar a emoção
Que nos trouxer tal.
Ao invés, vão vivendo, a par,
Sem aceitar sentir,
Sem aceitar vivenciar,
Sem jamais diluir.
E o ser não
Entra de alma na dimensão.
Não conseguirá libertar-se nunca
Da vertente da matéria
Que o chão lhe junca
De miséria.
Então, ao Ser
Não irá nunca ascender.
Simpatia
A simpatia
Em direcção ao outro emana
A energia
Que não engana
Da aceitação,
Do acolhimento chão.
Tudo o que é aceite se transforma e aviva
Em vivência positiva.
Quando uma vivência triste,
Densa e negativa
Recebe acolhimento,
Não mais resiste,
Dissolve-se e se desloca,
Seca-se-lhe o tormento,
Apenas paz
Evoca
E traz.
Revolta é vivência rejeitada,
Vivência aceite é paz reencontrada.
A cada contratempo medita:
Que é que me falta aceitar?
E concita
O que houver a transformar.
Quem não aceita
É o ego,
O autor da despeita
De meu desassossego.
Quando a vivência é transmudada,
Abre-se o coração,
Recebe tanto amor, numa orvalhada,
Que o irá disstribuir por cada irmão.
Quem ficou leve,
Aceitou já os limites seus,
Já chorou os lutos que teve,
Já se abriu aos céus,
Já recebeu amor na hora,
- Emana-o agora.
Como em tudo o dimana,
Trata cada qual, em seu caminho,
Como alma a que se irmana
E dá carinho.
Ora, quando as almas andam de mãos dadas,
É bem mais fácil cobrir as estradas.
Sentido
Do itinerário interior o sentido
Não reside na emoção
Nem num facto vivido:
Não é alegria, dor, restrição,
Nem abundância,
Tédio ou ânsia...
O itinerário
É o trabalho diário.
Sobre a emoção, o sentimento
Onde assento.
A tristeza que dentro me grave
É a minha melhor chave.
A raiva, distante,
Não me permite ir adiante.
O ódio, ao me entravar,
Não me permite alcançar.
A culpa, ao me punir,
Não me permite evoluir.
A tristeza,
Ao invés,
Porque dentro me lesa,
É que me faz mexer os pés.
Terei, portanto, sobretudo,
De transmudar em tristeza tudo.
A raiva é dirigida contra alguém
Ou alguma coisa.
Quando entenderes que ninguém
Te faz nada,
Que tudo em ti poisa,
Na responsabilidade em ti gerada,
Que és tu que atrais cada experiência
Para vivenciares a tristeza
Que traz presa,
Com a premência
De desfazeres, no final,
O bloqueio emocional,
- Quando isto entenderes
Irás perceber
Que raiva, ódio, culpa e mais quereres
São o que focamos em quenquer
Para não termos de encarar
A nossa própria tristeza a verrumar.
A partir da consciência
Tudo se depura
Na nova valência
Duma tristeza pura.
Aí principiou o itinerário
Da evolução interior.
A tristeza muda o eixo viário
Da vida, muda o teor
Das pessoas.
Toca no fundo do nó,
Que um nó atou-as,
E liberta-as dum golpe só.
Depois da tristeza,
Tudo é diferente.
Após vivenciar a maior dor que a lesa,
A pessoa fica livre, finalmente:
Nunca mais teme a dor.
Nem sente mais raiva, a vileza
De fugir à dor da tristeza,
Nem terá mais ódio, que é o mesmo pendor.
Nem medo, nem culpa, nem o papão
Da inveja, ansiedade, solidão...
Nada mais terá do que lhe pesa
Senão tristeza.
Se for bem vivida,
Após a restrição vem a abundância:
Uma vez a tristeza exaurida,
Eis a paz, a alegria, a exuberância.
Não temos de correr
Atrás da tristeza,
Sejamos alegres sempre que se puder.
Mas se teu peito estiver ferido,
Dorido,
Se uma pressão te apresa,
Aí pára tudo
E, seja qual for
A forma dessa dor,
Vive-a, sem o escudo
De que outrem te fez mal
Ou a ti to fizeste.
Fica apenas triste, no final,
Não sejas agreste.
Aí aceitas a libetação,
Aceitas a dor,
Aceitas a vida em toda a função,
Da realidade todo o teor:
- Aceitas tua íntima evolução.
Luz
Não podemos ver
O que queremos somente:
Não podemos viver
Na ilusão eternamente.
Temos de ver a realidade,
Ver o que é.
É o que persuade
A fé
À prece que o traduz:
“Dai-me luz!”
A luz onde os anjos moram,
A que ilumina os caminhos,
A que os homens transforma
Num arraial que os corações decoram
Com arminhos,
Em festa, por norma.
Luz que me retira o que me é estranho
E minha naturreza me devolve por ganho.
Luz que me clareia os passos
E do sentido da vida me pinta os traços.
Luz que no fim da rota escura
Abre das possibilidades a planura,
A infinidade
Do universo da oportunidade.
A luz da cor da paz,
Da cor dum povo que vive no céu
E que faz
Que minha vida neste escarcéu
Da Terra, em todo o lado,
Tenha mais significado.
Quando estiveres triste,
Repara que te falta luz.
Ora de peito aberto, insiste,
Que logo ela em ti se introduz
E modifica, à medida,
Tua vida.
Importante
Que é mais importante?
Dizer o que tens a dizer
Ou fazer que outrem entenda, num instante,
O que dizer andas a querer?
Jogar tua opinião
Nua e crua
Sem te preocupar a lesão
Com que noutrem actua?
Quando disparas tua convicção,
Não levas em conta
Que outrem, por ficar magoado,
De tua língua se defende da ponta,
E não te vai ouvir,
Preocupado,
Nem compreender, a seguir.
Tens de ser quem és
Sem desvios nem cedências.
Para sê-lo de vez,
Tuas carências
Requerem, porém,
Que doutrem te faças entender,
Sempre mais além,
Para mais violências
Não gerar nem haver,
Nem incompreensão, intolerância
Em redor.
Sê quem és, na infância
De teu coração, com amor.
Depois usa a mente para lograr
Isso a outrem comunicar
Como uma prenda,
Um deleite
Que ele entenda
E aceite.
Se ele compreender
Sem revés,
Mais fácil te vai ser
Quem és.
Se não entender,
Apesar do esforço, da diplomacia,
Se insistir em te ver
Como ele quereria,
Aí dá teu murro na mesa,
Mostra que não vais prescindir
De seguir
O caminho que teu imo preza
E que te mostra em utopia
A cada dia.
Querer
Quantos andam sempre a querer algo!
“O que me dava jeito agora
Era a casa onde meu sonho mora
E por que me esgalgo”.
Quando tal não acontece
Mais forçam o querer:
“Queria tanto, nunca me esquece!”
Crêem que querer é poder
E então querem de forma violenta,
Radical.
Porque é que o que querem, afinal,
Não se implementa?
Porque é que não páram
A tentar compreender?
Porque não reparam
No que faz não ocorrer?
Querem que algo aconteça
Por estarem desconfortáveis
Na conjuntura actual.
Logo o ego desenha a peça:
Se advierem os eventos desejáveis,
Escapo ao desconforto fatal.
Então, para que tudo por mim torça,
É só querer com muita força.
E se o Universo te enviou à estrada
Do desconforto a sequela
Para ser vivenciada
E não para fugir dela?
Enquanto não vivenciar,
Não deixar doer,
Não chorar,
Do desconforto a dor que houver
Não é dissolvida
E à conjuntura nada a dilui, em seguida.
Enquanto do desconforto
Não houver aceitação,
Nunca atingirás bom porto,
Não há-de vir nunca a solução.
Após, porém, toda a dor vivenciada,
Do que vier depois a sinfonia
Pode não ser nada
Do que alguém esperaria:
É sempre mais e melhor
A alvorada após sol-pôr.
Perdoar
Fará sempre falta perdoar,
É o mais difícil, mas inamovível.
É o que torna imprescindível
Entender, nos casos dados,
A par,
Todos os lados.
Ninguém a outrem perdoa
Se a si próprio não perdoar.
E a si nenhuma pessoa
O perdão há-de lograr
Se não sentir
Que por Deus lhe é o perdão dado.
Só quem, através do céu, vir
Que se livrou de ser culpado
Pode perdoar-se também
E, conseguintemente, perdoar alguém.
Podes crer que perdoaste,
Agir como quem haja perdoado,
Se calhar até o verbalizaste,
Mas se te não tiveres libertado
De tua culpa pelo perdão do céu,
Se te não tiveres perdoado tudo,
Se ainda não se entendeu
Que o que desnudo
Do que fizeste ou te fizeram
É parte do plano sagrado
Com que se teceram
Os fios de teu fado,
- Se tudo isto se não encaixar
Como a quenquer poderás perdoar?
Como, sem abalo,
Poderás da culpa aliviá-lo?
Quem perdoa
É quem sabe ir lá acima
Receber o perdão do céu,
Não se auto-restringe como pessoa
Por achar que o não mereceu
Ou que para o receber não tem clima
Nem estima.
É quem sentir, afinal,
No fundo do coração,
O amor incondicional
Em acção.
Quem tal nível atingir
De interior evolução
Doutros as almas ama, a seguir,
Saberá perdoar-lhes então,
Incondicionalmente,
Pelo que cada qual é, em semente,
E pelo que escolher
Vir a Ser.
Só podes perdoar
A quenquer
Se escolhes amar
O que para si ele escolher.
Sem julgamento.
Perdoar, enfim,
Não é início de encaminhamento,
É o fim.
Chorar
Chorar
É tomar consciência da incapacidade,
É se libertar
Do carrego das defesas,
Aceitar
A impotência.
Ao chorar, acolhes a verdade
De que tens as mãos presas,
Do que queres a premência
Para ti decerto não será,
Ao menos para já.
O ego, porém, quer
Que tudo seja
Como o deseja,
Que tudo venha a ocorrer
Dum modo determinado
E no tempo desejado.
Procura, dele no horto,
O conforto.
Qualquer alma, não.
Sabe que, a cada momento
Em que algo ocorra pelo padrão
Do prévio argumento,
O comum é carregarmos mais defesas,
Aumentamos peso e densidade.
Afoga-se nestas represas
A conexão à infinidade.
Se ocorre o que desejamos
Porque tem de acontecer,
Porque é para que o vivamos,
É o tempo de ele ser,
- Então é que o desejo
Deseja o que a fértil alma quer,
É o irmão converso
Dum ensejo
Do Universo.
Se assim não for, porém,
Se desejas o que não se realiza,
Tua estratégia precisa
De ir além:
O que queres tens de entender
Que não é o tempo interior de ocorrer;
Queres algo contrapor
Para escapar a um desconforto interior;
Deves então chorar
O desconforto íntimo para o libertar.
Se o que cada qual herda
Ultrapassou estas três fases,
Valeu a pena a perda,
Valeu a pena a dor que trazes.
Limpar uma limitação
É dar significado a um sofrimento,
Entender para que servirão
As perdas e o tormento.
Ao chorar,
A consciência que ganhas, em seguida,
Vai ser, a par,
Fortalecida.
À emoção ligada,
Toda a consciência se fortalece:
Chorar é, de entrada,
Ligar-nos à emoção que acontece.
Chora, mas não chores de revolta
Por querer que houvera acontecido
O que houver ocorrido
À tua maneira desenvolta.
Se não ocorreu dum modo qualquer
É porque não tinha de ocorrer.
Chora, de pena, o vazio
De não ter ocorrido,
De não ser para ti esta quebra de fastio
Neste momento vivido.
Não chores de vítima a fazer-te,
Que é tudo mau,
Que te fizeram mal...
O mal que te acerte
Ninguém to fez a varapau,
Veio atraído por teu sinal.
Só precisas de entender
O que é que andas a emanar
Para poder
Descobrir
Por que razão singular
Isto andarás a atrair.
Chora então antes
Por emanares desagrado,
Ódio, fúria ou revolta,
Com atitudes constantes
Que de ti passam ao lado,
Doutrem com a energia envolta.
Chora, só,
Que chorar não atrai nada negativo,
Ao invés do que alguns cuidam com dó.
Chorar é queimar o arquivo
Trancado no teu peito
Do negativo negro e furtivo
A que estiveste sujeito.
Talvez ande há séculos por aí,
Talvez hoje seja a oportunidade
De sair, através de ti.
Chora de raiz
E de verdade.
Chora e sê feliz!
Interioridade
Todos têm uma interioridade oculta,
Um íntimo escondido,
Um imo submerso.
Lugar profundo onde entra e exulta
Apenas quem estiver convencido
De viver ligado à livre alma do Universo.
Entra somente,
Recolhidas as presas,
Quem nele atente
Frágil, sem defesas.
Entra apenas quem quiser sentir
Com o risco de quem lida com emoções:
Quem o ignoto aceitar e perseguir,
Quem aceitar da dor as convulsões
Como aceita da luz a transcendência,
Quem aceitar a dual
Circunferência
Do bem e do mal
E que, quando a dor o invade,
Não fica a gritar por felicidade.
Esta há-de ser alcançada
Quando a dor estiver ultrapassada.
Todos temos dimensão espiritual.
Para lhe aceder
Urge limpar o pensamento
E Ser,
Apenas ser o momento.
Abrir-se-á um portal,
Ao ficar ali, na base de tudo,
Sem pensar, sem sentir, apenas a Ser,
Para um mundo novo onde acudo
Com inesperadas percepções a decorrer.
É de ficar em tal mundo
A construir, consolidar, fortalecer
A vivência de universo tão fecundo.
A cada dia é mais fácil aceder,
Retirar os pensamentos e fruir,
Contemplar e sentir
Por parte de quenquer.
Apenas Ser,
Até do mais não restar resquício.
E tudo isto é apenas o início.
Incondicional
O amor incondicional,
De inatingível, é jardim proibido.
É o amor que todos almejam, afinal,
Todos querem tocar e jamais hão sentido.
Não olha a credos, comportamentos,
Estatuto social, religiões,
Conjunturas, momentos,
Condições...
É o amor total,
Sem medo nem julgamento,
Sem memória nem vingança letal,
Amor absoluto, do Absoluto fermento.
Amor que ama e pronto,
Ama por amar,
Ama sem condições nem desconto,
Singular.
Sejas o que fores,
Faças o que fizeres,
Atraias benesses ou horrores,
Vivas a vida que viveres,
Estará sempre aqui
Deus em ti.
Sempre disponível e atento,
Inteiro a teus pés,
A amar-te, isento,
Como és,
Como decidiste ser
Na aventura seguida
Ao correr
Da vida.
Nunca o Espírito do Universo
Te coloca condições,
Impõe entraves, adverso:
Ama só. E tu dispões.
É a maneira de te proteger,
De te orientar,
De te compreender,
De te elucidar.
A vida vai ensinar-te,
Deus vai amar-te.
E complementam-se os dois
Na orientação, depois,
Bússola de tua passagem
Pela terra, em viagem.
Abre teu coração,
Deixa o Amor entrar.
Só quando te impregnar
O amor sem condição,
Só quando por ti for sentido
Que do Céu és protegido,
Só então poderás e se te vai impor
Emanar amor.
Emanar amor por ti,
O que ajuda a te perdoares,
A tal como és te aceitares,
E a emanar, a partir daqui,
Amor para os outros, o que irá trazer
Mais amor, como efeito dali a decorrer.
Emanar amor para a terra,
Os vegetais e os animais,
O que a estadia que o homem encerra
Prolongará no mundo que habitais.
Religa-te ao que sentes,
Pára de pensar,
De correr, de voar,
Sem saberem teus passos dementes
Para onde nem porquê.
Pára, olha teu coração e vê:
Abre-o e deixa o Amor entrar,
Devagar,
Como ele é,
Aos poucos deixa-O te impregnar,
Ao Deus em si
Que mora em ti,
Deixa-O ficar
Aí.
Verás que tudo se torna claro,
Tudo se transmuda em luz.
Deus passa a ter um motivo raro
Para estar aqui:
Posto a nu
Aquilo que o seduz,
Tal motivo és tu.
Abundante
A natureza é abundante,
Há muitas águas, muitas flores,
Muitas árvores terra adiante,
Muitos frutos de mil sabores...
Há tantos peixes, tanta vida marinha,
Tantos humanos e tanta terra maninha!
A Terra, sendo finita, é imensa.
Se os recursos forem usados
Nesta despensa
Correctamente,
Dá para todos serem saciados,
Todos terão tudo, literalmente.
Não o temos
Porque vivemos pela restrição.
O que faz que nos limitemos
É um papão:
O ser humano não tem
Por ter medo de não ter.
Mesmo quem
Tem mais poder
Tem medo de o perder.
Então agarra-se a ele de tal forma
Que lhe desvirtua a norma,
O propósito inicial,
O norteador, o ideal.
Mesmo se deténs
Os maiores bens,
Mal os alcanças
Logo mudas tuas danças.
Passas a ter medo de os perder.
Mesmo rico ao morrer,
Aquele medo no peito,
A insegurança,
Vai minando de tal jeito
A emoção que se te entrança
Que rico morres mas assustado
E passas a vida inteira angustiado.
Todos tentam manter
E manter é mais difícil que alcançar.
E quem nada tiver
Quer ter,
A lutar, batalhar,
Na humilhação
E tudo é restrição.
Em nome disto
Cresce o canceroso quisto:
Homens contra homens lutam,
Homens outros homens maltratam,
Homens a homens humilham, disfrutam,
Desacatam...
Ora, a vida
É um hino à natureza,
Uma homenagem a si própria, na beleza
Que convida.
Nada é teu,
Tudo o que a vida te empresta
É para ser vivido sem labéu,
Aproveitado,
Saboreado
Até à gota que resta,
Seja bom,
Seja mau.
Não buscar nenhum dom,
Não chegar a nenhum sarau,
Querer apenas estar, de raiz,
Ser, húmus do chão,
Se possível, feliz,
Se não,
Acolhendo a dor
Para que ela desapareça
Esgotando-se depressa
E brote um novo dia com fulgor.
Não fugir à dor, chorá-la,
Fazer o luto de cada dia
E só depois pegar na mala,
Caminhar para a utopia.
Nada deixar para sentir depois,
Nada para trás,
Livrar-me dos anzóis
Até onde for capaz.
Limpo vai ficando o peito,
Calmo, o coração,
Em dia, a emoção
A que estiver sujeito.
As lágrimas, uma vez esgotadas,
Dão lugar ao sorriso da aventura nas estradas.
Único é o dia de hoje
E jamais irá voltar.
É a grande oportunidade que ligeira foge
De viver e de sonhar.
E, se bem vivido for,
Amanhã será melhor.
Errar
Todos temem errar,
Com tal medo não arriscam,
Não crescem, nunca mais irão voar.
Nunca comem, só petiscam...
Erres embora,
Ao arriscar aprendes,
Desbloqueias-te sem demora,
Ganhas autoconfiança e rendes.
Se errares,
As armas contas,
Entristeces-te, os feridos ao cuidares,
Fazes o luto até as mãos ficarem prontas.
Errar permite aprender:
Ajuda-te a crescer.
Dói,
Que ninguém gosta de falhar.
Mas, se ninguém arriscar,
Que é do mundo, para onde foi?
Se o navegador temera o mar,
A desventura marinha,
A tormenta de endoidar,
Que mundo de hoje se adivinha?
Arrisca, mas põe lá teu coração,
Arrisca por amor, então.
Não porque vais ganhar mais,
Receber benesses reais.
Arrisca, que teu imo quer que avances,
A intuição diz-te sim ao que alcances.
À procura do novo mundo vai,
Que é disponível apenas ao que acreditar
Que, quando sai,
Pode voar.
Liberdade
Liberdade é a magia
De sentir que fizeste o que de fazer-se havia,
De que estás onde tens de estar
E de que tudo está no lugar.
Não é um sítio a liberdade,
Não tens de ir a lado nenhum
Nem para ser livre gesto algum
É requerido que te persuade.
É só teres consciência
De que a vida é tua e só tua,
Por isso tens de ter dela a vivência
E de ser quem és sem falcatrua
Em todas as ocasiões,
Sem concessões.
Leva os outros em consideração
Mas com limites:
Viver inteiro para eles, não,
Autónomo, toma teus desquites.
Há quem tudo faça doutrem em nome,
Os que em nome doutrem são.
Tais vidas são concessão
Constante a esta fome.
Esforçam-se por ser, em todas as janelas,
O que os mais esperam delas.
Depois,
Como a frustração é tremenda,
Buscam da liberdade os arrebóis,
Desesperadas,
Na vã tentativa, na senda
De se encontrar nas perdidas estradas.
Procuram a liberdade fugindo de si,
Delas sempre fora,
Partem à procura algures por aí,
Onde a liberdade não mora.
Para ser livre não vou a lado algum,
Por ser livre é que irei a todo o lado.
Primeiro sou livre, dentro, sou Um,
Depois farei o que houver desejado,
Que tudo o que fizer irá reflectir
O que já sou, a seguir.
Liberdade interior é viver cada emoção,
Por íntima que pareça.
Sente quem és, então,
Sem fazer qualquer concessão
Ao que aconteça.
Sentir irá trazer
Informação acerca de quem és
E do que vieste fazer
Ao assentar na terra os pés.
Abre o coração,
Começa a ouvir a intuição
E só então actua.
De ser livre, gostosa,
Neste caminho se insinua
A forma mais fabulosa.
Medo
O medo prende,
O medo trava,
À esquina nos surpreende
E encrava,
Tentacular,
E não deixa avançar.
Por mais que alguém queira
Do sonho que persegue
Soltar a joeira,
Não consegue.
O medo limita,
Viola a fronteira
Que o evita.
O medo é um grande gigante,
Invade tudo,
Destrói tudo o que encontra diante.
A cada decisão a que me grudo
De avançar
Vem o medo e obriga-me a parar.
O amaldiçoado tudo pára,
Tudo bloqueia,
Esboroa-se-me a cara
Em areia.
Desato a agir em função do medo:
Como tenho medo de ir para aqui,
Cedo
E vou para ali.
Como tenho medo de fazer isto,
Intranquilo,
Não insisto,
Farei aquilo...
Abandono minha estrada
Original
E a vida desata a dar sinal
De bloqueada.
Nada bate certo,
Nada flui,
O tempo parou, deserto,
Tudo perde o sentido que se intui.
Uma vida fora do caminho
Perde o horizonte que lhe adivinho.
Como desbloqueá-la,
Que fazer para a libertar?
É deixar
O medo vir, entrar na sala,
Crescer no peito,
Invaddir tudo,
Levar tudo a eito,
Gigantesco e agudo.
Quando enorme for dele a grandeza,
Pede um tubo de luz
E começa a limpeza
Que o reduz.
O tubo suga o medo, devagar,
Vai sugando e vai levando
O negror que encontrar,
O formidando,
Imenso mar
De densidade
Que me invade.
É difícil o patamar a que acedo,
Mais difícil é viver com medo,
É quenquer
De medo viver.
Aos poucos o monstro irá passar,
As nuvens vão embora
E o sol, ei-lo a voltar.
É a calmaria agora,
A tranquilidade, a bonança.
Aí é que te alcança
A lonjura por onde tens andado,
Do medo invadido,
Desnorteado,
Tão alheio à luz, de ti demitido.
Descobres que é viável mudar,
Há outra vida a ser vivida,
Tranquila, sentida,
Mais feliz e leve, a par.
De tão pura, iluminada,
É a alegria da libertação.
Dádiva prendada,
Vale a pena vivê-la então.
Perda
Quando a vida te propõe uma perda,
Seja ela qual for,
Uma economia lerda,
Um prejuízo material,
Um dissabor,
Uma quebra física ou emocional,
- Quando uma perda tens à mão,
O Cosmos está a propor-te conexão.
Conexão com o céu,
Para compreender o motivo
Por que tal perda se te abateu,
Que sentimento de ti vem tão negativo
Que o efeito que ele herda
É a tal perda.
Conexão
Com a tua emoção:
Atento
À ponta solta,
Perda é sofrimento,
Não revolta.
Uma perda ao sofrer,
É chorá-la
O que se deverá fazer,
Cumprir o luto do que nos abala,
Deixá-lo partir, seja o que for,
Com mágoa, com dor.
A dor do desapego
Torna-te mais sensível,
Mais conectado, em sossego,
Com qualquer emoção que te seja perceptível.
Ficas frágil,
De emoção à flor da pele,
Com apurada sensibilidade, ágil
No dom que por ti apele.
O Cosmos harmoniza
O desarmonizado.
Se na perda que te manda realiza
Este fado,
É que andavas, no teu posto,
A operar o oposto.
Eras desconexão,
Defesa,
Racionalização,
Tentativa de ser forte para não ser presa.
Tudo ao contrário
Do que a teu imo é necessário.
Se te mantiveres frágil e sensível,
Intuitivo e conectado,
Mais harmonia não é requerível,
Mais nenhuma perda te destina o fado.
Conectado
Conectado ou desconectado,
Eis a alternativa de viver.
Conectado com quem se for
Profundamente ligado,
Com o que na terra se veio fazer,
Com os mil modos de exteriorizar do ser
O pendor.
Para o ser exteriorizar tem de se ser,
Para ser tem de se interiorizar
Quanto ocorrer:
O que se sentir, o que alegrar,
O que doer,
O que infelizes ou felizes nos torna
Onde a liberdade e consciência estiver,
O que nos maltrata e nega a jorna,
O que nos faz mal ou bem,
O que nos eleva mais além...
Tudo ocorre dentro,
Do imo no centro.
Tudo o que opero em redor
É efeito de meu estado interior.
Se, ao agir, te não dá certo,
Se teus actos não resultam bem,
É que não reflectem, decerto,
Teu mundo interior como convém.
Reflectirão um íntimo evasivo,
Desconsertado e desconexo.
Teus actos são o crivo,
Materializam a inconsistência de teu amplexo.
Olha para dentro e vê
De que é que andas a fugir,
Encara os demónios de pé,
Deixa doer, a seguir,
O que tiver de doer.
Após tudo limpo, é de aceder,
Com calma,
A tua flébil alma.
Apenas então é de agir.
O que de alma vier
É correcto, iluminado, gratificante,
De íntima evolução o descante.
Ao invés, desconectado,
Já ninguém sabe quem é,
Foge ao que sente, apavorado,
Refugia-se em bens sem valor,
Materiais, de ralé,
Para enganar a dor.
Então é a perda imensa,
A frustração,
A doença,
A podridão
Da fossa.
- E a escolha é sempre nossa.
Rígida
Não mudas de opinião,
É rígida tua crença,
Nada mais te entra ao portão,
Uma vez lida a sentença,
És um preconceituoso,
Formas a ideia bem antes
De conhecer, ponderoso,
Os argumentos constantes.
Ora, a nossa mente deve
Ser um céu azul
De estrelas cravejado em breve
Onde tudo é imenso bule
A remexer
O que nele ande a ferver.
Há uma estrela a brilhar,
Galáxia que se move,
Supernova a iluminar.
Quer aprove ou reprove,
Há um qualquer
Sistema estelar a morrer,
Ao lado dum turbilhão
Em que estrelas novas nascerão.
Nunca nada no céu pára
Nem pára na tua vida.
O que hoje é, repara,
Amanhã foi uma ilusão perdida.
O que ontem teve ocasião
Pode hoje tê-la ou não.
Quando admitimos que tudo é possível,
Abrimo-nos a inúmeros roteiros.
Muda a comunicação visível,
Não dizemos o que cuidamos, crendeiros,
Mas o que sentimos, o indizível.
Não é precisa a palavra a comunicar,
Basta um toque, um sorriso,
Um olhar
E comunicamos de modo preciso,
Mais intuitivo, valioso, em língua interna,
De maneira sagrada, mais eterna.
A liberdade de comunicar
Leva a intuir
O que dizer, a par,
E como dizê-lo, a seguir.
Carência
A carência é triste,
Insuportável,
Mas a fuga à carência que existe
Ainda é mais assustadora:
O vazio é indescartável,
Rói-nos a toda a hora.
Por mor da carência o homem se defende,
Destrói e complica,
O homem se afirma contra o que o prende,
Se revolta, aflige e replica.
O poder é o trilho inventado
Para não ser invadido
Pelo vazio magoado.
Pelo poder o homem foge, decidido,
(não desanima)
Da necessidade violenta de amor,
De compreensão e auto-estima.
Afirma-se com furor,
Sobrevive, foge à emoção,
Desvaloriza-a com a relativização.
Utiliza a máscara ancestral
Do homem duro,
O que aguenta tudo, afinal,
Seguro.
Forte o suficiente
Para atrair mil montanhas,
Valente
Para inúmeras batalhas ganhas.
Resoluto para explorar
Países, continentes, o mar,
Em busca de glória, de feitos,
De imortalidade...
De gestos afeitos
Ao nada que a tal o persuade.
Ora, se em vez disto parar,
For à procura da carência, da sensibilidade,
Espinho que o anda a picar,
A verrumar subtil mas de verdade,
Se aceitar que cada flor é um mundo,
Que cada dia vivo é oportunidade
De criar, fecundo,
E que a vida
É para ser sentida...
De que valem grandes feitos
Se a dor magoa os peitos?
Se fica o buraco perigoso e mau,
O imenso vazio
Que à terra nos traz a varapau,
Nos prende à realidade fio a fio?
Uma dor, uma falta
E o medo de que, perene,
Da dor não venha a ter alta,
E a falta desabroche, infrene.
Quando aceitamos
Emoções, carências, faltas,
Quando logramos
Aceitar que não é o poder
Para onde saltas
Que nos irá devolver
Aquilo de que precisamos,
Que não é da afirmação a competência
Que nos tapa o buraco, a carência,
Quando entendemos que o remédio para a dor
É deixar doer
E a luz lhe impor
Que do Universo nos vier,
Então estamos prontos para a mudança
Que a pouco e pouco nos alcança.
Quando dói, deixa doer,
Deixa de tentar ser
Mais que os mais.
Tenta ser mais de ti,
Não em função dos outros como tais,
Mas da utopia que houver aí,
De ti no fundo,
Na tua lábil alma que é o teu mundo.
Espada
Deixa-te sentir o medo
Profundamente.
Ele é tua espada de Toledo
Que te corta os sonhos da mente,
Que nunca te irá deixar
Acreditar.
É o que te tolhe os feitos,
Tudo o que por ti para ti fazes
É por ele aniquilado sem preitos.
Nunca assinas as pazes,
Que tens medo de morrer.
Só aquele a quem tal medo tolher
Pode a valia dar devida
À bênção da vida.
Em nome dele selam-se grandes pactos
Com forças obscuras,
Desencadeiam-se guerras de sangrentos impactos,
Bizarras posturas.
Em seu nome
Fogem todos do caminho
E ficam à fome
Em terreno maninho.
Para o medo a cura de quenquer
É, porém, deixar doer.
A luz que em nós entrar de qualquer cor
Vai lavando toda esta dor.
Deixa doer,
Não porque erraste ou errou outro qualquer,
Mas pela tristeza sem fim
De ter de ser assim.
Depois, a supurar
Da ferida o pus,
Vai ao céu regenerar,
Vai lá acima receber a luz.
Presente
O presente que vivo agora
É perfeito para umas iniciativas,
Para outras, porém, não está na hora,
Excelente
Para algumas relações vivas,
A outras fere-as letalmente,
Para uns investimentos, fabuloso,
Para outros, ruinoso...
O segredo é discernir
O tempo de cada coisa ante o porvir.
De matéria cada figura
Conjuga-se ou não com o resto do Universo
Conforme a altura
Em que sobre ela verso.
Cada grão de areia
Está pronto a existir ou morrer
Conforme o tempo nele ameia
O que há-de ser.
Se souberes ler o tempo propício,
Saberás com exactidão
Qual a altura para o início
De avançar teu pendão.
Quem do tempo souber o segredo,
Saberá quando agir sem medo.
Ora, o homem tem um coração
Que lhe envia a mensagem,
Lhe mostra caminhos pelo chão,
Lhe encurta a viagem.
Escuta o céu:
- Ouve o teu!
Apego
A prioridade
É, todos os dias,
A possibilidade
Da escolha que crias.
A cada momento o Universo
Rearmoniza o desarmonizado,
O que saltou dos eixos é recentrado,
Reposto no berço.
Quando pensas que possuis,
O Universo to retira.
Não o intuis,
Mas ao que tiveres em mira
Andas a apegar-te, a cada instante.
De ser livre hás deixado,
Levado o apego por diante,
Ficas amarrado.
Apego a pessoas, bens, ideias,
Juízos, ideais, termos, escolhas,
- As teias
A que te acolhas.
Apegaste-te quando não queres abrir mão,
Quando pensas que perder, nunca mais.
Aí começas então
A ser candidato à perda que te der sinais.
É urgente desapegar,
Aproveitar a oportunidade a cada dia.
Se ficas sem dinheiro é para começar
A desapegar-te daquela maquia.
Quem o não fizer ligeiro
Fica de vez de bolso leveiro.
Se um filho quer ser independente,
Desapega-te dele.
Quem o não fizer, definitivamente
Perde os filhos por que apele.
Ao ficares triste, chora,
Deixa-te fragilizar.
Senão, na hora,
Vais-te mesmo adoentar.
Deixa-te de tudo despegar,
De que ser forte é que é,
De que tudo é teu, a par,
Sob o teu pé.
São pequenos lutos que doem,
Mas evitam a perda definitiva,
Recompõem
A vida esquiva.
Evitam que contigo seja tão dura
Como contigo és, quando é isto que se apura.
Galáxia
És uma galáxia pequena
A atrair, como as demais,
As outras mais
E a cena
É que vos entrechocais
E ou vos juntais
Ou vos repelireis,
Nos espaços siderais
Como da vida nos papéis.
Tudo porque vos atraís.
Na atracção
Já está gravado o programa inteiro:
Chocar, disparando os fuzis
Ou consagrando a união,
É o efeito pioneiro.
Pode demorar milhões e milhões
De anos-luz,
Já estava inscrito nas atracções,
No germinal instante que as produz.
Connosco, por igual,
Atraindo alguém ou um evento,
O sinal
Da eternidade nos chega com o vento.
Assente
Nem passado, nem futuro,
Vivenciar o presente,
Agora e aqui assente,
Na vitória ou no apuro.
Quando alguém vive no passado,
Ódio, culpa, frustração, revolta,
O que quer que seja que ali ande à solta,
Para o presente é canalizado.
Invade-lhe a vida,
Que o portal do tempo é aberto,
As dimensões entrecruzam-se, em seguida,
Finda o passado aqui bem perto.
Assaltado
Por emoções adversas no presente
Será quem viver focado
Conscientemente
No passado.
Emoções antigas, sem medida,
Passam a dominar cada dia:
Dominarão a vida
E a energia.
Viverás de memórias,
Triste e sem forças,
Que da energia as vitórias
Só vêm quando os problemas
Se resolvem, não quando os distorças
Nem temas.
Se vives no presente que tão breve foge,
Podes revisitar memória antiga
Com a consciência de hoje.
Vais ao passado a que te liga
Mas levas do presente a vida
Duma consciência esclarecida.
As emoções bloqueadas,
Mesmo secularmente,
Ao receberem a consciência do presente,
Serão pela actual luz escaqueiradas.
Vives mais tranquilo,
Pois podes alterar os eventos
Conforme a escolha de teu estilo,
Deste tempo ao sabor dos ventos.
Do passado quem vive na era
Nada altera.
Vive na fatal impotência,
Pois está lá vivendo aqui,
Não pode mudar de outrora a vivência,
Em vez de viver em si
O presente
Onde pode mudar o que quer que invente.
Ir ao passado com a consciência de hoje
Libertar o bloqueio,
Onde quer que se aloje,
Sim, sem receio.
Mas então
Viver lá, não.
E quem se foca no futuro
Fica mais fraco de vez,
Não tem do presente o apuro,
Renega-o pelo que virá talvez.
Como o não pode forçar,
Acaba por se arriscar
A que o evento desejado
Não ocorra, posto de lado.
Com a consciência no futuro,
Seu presente é descuidado,
Sem entrega, impuro
E desfocado.
No futuro o que ocorre
A quem o não prepara,
É que este não concorre
Para que lhe traga o que desejara.
Auguro
Que deveras não terá futuro.
Correrão meses e anos
E a vida dele não mudará,
Continuará presa de enganos
À espera do que virá.
É o que jamais vem,
Porém,
Dacolá.
Deus só pode entrar
Onde a consciência estiver
Plena,
A convidar
A entrar em cena,
No espaço que lhe oferecer.
Deus só pode entrar
Onde houver
Uma consciência focada no coração,
No que sente.
Aí para entrar placidamente
Vai dar autorização.
Quem vive com a sensibilidade à flor da pele,
Aceitando dificuldades e limitações
Com a capacidade que o impele
A gerir as próprias decisões,
Cobrindo o próprio trilho, fraga a fraga,
Vivendo hoje com o que hoje lhe traga
Mesmo ignorando apelos seus,
Clama por Deus.
É um chamamento longo, permanente,
Sabe a uma amizade antiga.
Aí Deus vai, contente,
E entra, que o amor obriga.
Quem vive do tempo fora,
No passado da mágoa
Ou no futuro da espera,
Em si não mora,
Não deixa entrar água
Nem luz em sua esfera.
Bloqueia, resiste, controla.
Deus só pode aguardar que da postura quebre a mola.
Fica por ali
Na tristeza que o reduz
A ver tantos afastarem-se da luz,
A vê-los afastarem-se de si.
Ora, sofrendo sozinhos,
Em solidão interior,
Para se conectarem, adivinhos,
É só sentir, seja que emoção for.
Nunca julgar outrem ou culpar
Do que na vida ocorrer.
Sentir, sentir, sentir, em lugar,
Sentir sem desfalecer.
Deus há-de estar
A cuidar de cima
Que, à força de tanto sentir,
Os bloqueios se desfaçam num bom clima,
As emoções se acabem por diluir,
E que tenhamos esperança
De olhar o céu que enfim se alcança.
Negatividade
A experiência na terra se traduz
Em negatividade:
O ser humano, ainda de luz,
Vem à terra mergulhar na obscuridade.
Desde que nasce experiencia
Constantes episódios negativos.
O parto é um trauma que o anuncia,
Os pais são autoritários, não assertivos,
O grupo e a comunidade rejeitam,
Os outros só nos aceitam
Desde que se seja
Como cada qual nos deseja...
Da vida em cada momento
A negatividade é o elemento.
A questão
Porque na vida existo
É saber a reacção
Que terei a tudo isto.
Será que vivo
De modo a tornar-me negativo?
Se assim for, a negatividade
No mundo permanece, feita escuridade.
E assim atraio como tu atrais
O negativo cada vez mais.
Mas podes ser positivo:
Recebes quanto for negativo
Mas não o deixas entrar,
Permaneces luz a brilhar.
Aí o mal termina
Os dias na matéria sovina,
Não encarna em mais ninguém,
Finda a experiência da terra também.
Uma vez a negatividade superada,
As viagens
Da pessoa libertada
Rumarão do Infinito às infinitas paragens.
Via
A melhor via
De te conectares ao céu
É viveres o teu dia,
O teu.
Momento único que, quando passa,
Não volta mais.
É uma graça
Com fragilidades tais
Que, quando a tentas viver depois,
Já se transmudou em passado.
Se antecipadamente a tentas surpreender,
A controlar o que irá ocorrer,
Serão futuros inescrutáveis arrebóis
Presa do fado.
As escolhas de cada qual
É que condicionam do porvir o rosto final,
Será sempre o efeito
Do que no passado ou presente se houver feito.
Vive hoje, agora, este presente qualquer,
Momento precioso em que podes escolher.
O passado não se escolhe,
Já se escolheu.
O presente recolhe
As escolhas que delimitam
E concitam
O que hoje é teu.
Importante é viver hoje
Com imparcialidade
Aplicando a escolha enquanto foge,
A mais verdadeira de tua identidade.
Se viveres intensamente aqui,
Imbuído de quem és,
Escolhes-te a ti
Em conformidade, íntegro da cabeça aos pés.
Irás construir o futuro,
Não com suposições,
Mas com um dado seguro
Que de teu ser ergue os pendões.
Tal futuro será propício,
Feliz,
Na alegria ou na dor pejado de benefício,
Desde a raiz.
Angústia e culpa é viver no passado,
Ansiedade é viver no futuro.
Vive agora, que o momento não te passe ao lado,
Que te auguro
Que de ser quem és então
Receberás a verdadeira inspiração.
Problemas
Os problemas são armadilhas
Apenas.
Tu és luz mas partilhas
Da terra todas as penas.
Vens à terra com o intuito
De reagir à densidade:
A escolha é tua, dom fortuito,
Reages como luz, tua identidade,
Ou devéns denso como a terra
Que se te aferra.
Se nesta tombas, és puxado
Ao negror vezes sem conta
Até a lição teres dominado
E pegares na inversa ponta,
Lograres manter-te em luz
Num mundo que escuridão traduz.
Durante a vida na terra
Há muita vivência que aterra,
Problemas, frustrações,
Injustiças, traições...
E todas são
Para testar a reacção.
O indivíduo mantém-se em luz,
Missão cumprida,
Ou a escuridão se reduz,
Perpetuando a dor sofrida?
Muitos, na dura provação,
Tentam recusar a escuridão,
Aceitariam somente um mundo perfeito e justo,
Luz em cima , luz em baixo, a todo o custo.
Ora, quando vimos cá abaixo
É para vivenciar a armadilha da matéria:
Se é luz que em mim encaixo,
Se do escuro a escória de miséria.
Trepar na muralha ou cair na fossa,
A escolha é nossa.
Equilíbrio
O Cosmos só é o que é
Porque tu és o que és.
Tem um equilíbrio: mantém-se de pé
Sobre dois antagónicos pés,
E deste equilíbrio faz parte
Todo e qualquer ser
Particular
Que lhe pertencer,
Que por ambos os pés cósmicos se reparte.
Cada ser é uma energia singular,
Somada a outras iguais
Formam o todo disperso,
O total dos totais
Do Universo.
O todo do Universo é Deus,
Deus é a soma e o mais
Destas energias pelos céus.
É um pouco de Deus cada um de nós,
Mas só sintonizado na fundura
Da energia, da postura
Que acolá nos ata ao Infinito a voz.
Ser é isto: viver a energia
Singular que me traça a via
Vida além
E que mais ninguém tem.
No início mínimo sou,
Feito apenas energia,
Sem pensar, sem sentir, apenas vou
Conforme a moção que me inicia.
Da mente limpo os pensamentos,
Varro o peso do coração.
Em tais momentos
É que o ser me tem à mão.
A partir daqui penso e actuo
Em conformidade:
Voo
E pactuo
Com a verdade
Do que sou.
Para ser, nada mais farei,
Nem tentarei ter para ser.
Fazer e ter irei
Porque já sou e tenho disto o saber.
Contudo,
É isto que muda tudo.
Quando alguém não consegue
Agir em sintonia com seu imo,
É fora que persegue
O que cuida que o alcandora ao cimo.
Tentam ter e fazer, em vão,
O que cuidam devolver-lhes quem são.
Querem carros, casas, bons empregos,
A fim de sentirem que são algo.
Não é ser.
Estes apegos,
Se os galgo,
Mais medo terei de os perder.
Quando desejas algo fora de ti,
Tal desejo esconde a insatisfação
De não conseguires, em teu frenesi,
O acordo com a fundura do coração.
Varre os pensamentos,
Varre o peso do peito,
Limita-te a ficar,
Parado deste jeito,
Por momentos,
No lugar.
Ficar assim vazio,
Disposto a receber,
É o maior treino contra o desvio
Que alguém pode ter.
Consciência
Repara na consciência,
Quão complexa e profunda
É sua elaborada existência
E quão potencialmente fecunda.
Quantos biliões de átomos e neurónios,
De dendritos e de axónios
Suportam a teia donde emana
A consciência humana!
Que dignificante seria a vida
Se cada qual usufruíra da ligação
De seu imo ao imo universal,
A ponto de a intervenção
Deste em nós fruída
Ser clara, inteligível, total!
Grandes seríamos
Então,
A maior arma humana, a consciência,
Utilizar iríamos
Aliada à maior alavanca de expansão,
A conexão
Ao abismo da íntima vivência.
Canal aberto ao céu,
Poderíamos escolher,
Cruzar cada experiência,
Dar-lhe o significado que se perdeu
E em frente continuar a correr.
Ao invés, com as ânsias de controlar,
Tentamos dominar a consciência,
Vamo-la tentando treinar,
Tentando-a ligar
Mais e mais da matéria à presidência,
Em vez de abstrair dela,
Levantando o véu,
Promovendo a ligação a cada estrela,
A ligação ao céu.
O céu está cá dentro, na última fundura,
E pode ajudar, eternamente alerta,
Mas só se as almas tiverem abertura,
Se a porta de quenquer
Estiver aberta
Para o receber.
A um coração fechado
Ninguém o pode forçar:
Trancado,
Não há como o reanimar.
É de tua escolha
Abrir ou não
O coração
Para que ele o céu acolha,
E este venha a entrar,
O desígnio do Infinito a executar.
A tua consciência liga-se-lhe aí
E então é Deus que transparece em ti.
Actua em tua vida,
Faz o que tiver a fazer.
E a tua visão surpreendida
Cuida que estão milagres a ocorrer.
Os milagres mais não são
Que do céu na matéria a intervenção.
Intervenção divina
Que precisa dum convite para entrar,
Requer que a escolham como sina,
Coração aberto a escutar.
Mais do que tudo, abrir o coração,
Olhar para os céus.
Mais que de meditar a elevação,
Compreender que pode entrar Deus
Se O eu deixar,
Se me abrir de par em par.
Tristeza
A maior tristeza
É que todos confundam tudo,
O que se preza
E o que é um escudo.
Confundem devoção
Com obrigação,
Limitação do fado
Com pecado,
Medo que os invade
Com austeridade...
Deus nunca exige nada
Ao caminheiro na estrada.
Quem o contrário apresente,
Mente:
Quem diz que o céu
Deveres prescreveu,
Que por ele condenados
Foram os pecados
Trocou o autor e o momento
De cada evento.
Deus fala da liberdade,
Da sábia ignorância,
Da transcendência que nos persuade,
Da falência da morte, do poder, da ganância...
Fala da pungência,
Da morte do ego,
Da eloquência,
Da vida de alma sem apego.
Fala da distância,
Do compromisso,
Da abundância
Do viço.
Nunca falou de obrigações,
De peçonha,
Proibições,
Vergonha,
De castigo passageiro ou eterno,
De inferno...
Deus não diz nada que tolha
A interioridade humana,
Emana
O que colha
Realçá-la,
Enaltecê-la,
O que venha enobrecê-la
Quando aos píncaros abala.
Quando se Lhe põe na boca
O que nos diminui,
Deus refugia-se triste na toca,
Fútil,
Inútil
E, subjugado, já não flui.
Então, tudo o que há sacrificado
Em cada profeta que O encena,
Eras fora, em cada traslado,
Valeu a pena?
Quando se servem dEle para maltratar,
Castigar,
Entristecer,
Escamotear
Desejos que assumir se não quiser,
De seu confim
Deus gostaria de gritar
Que não é assim.
Eis a razão
Porque nos peça:
- Tira a tua própria ilação,
Pensa por tua cabeça!
Se o que dizem que nos disse
Não nos traz a liberddade,
A luz contra a sandice,
A clarividência que persuade,
Se não é vida, amor e calma,
Se não traz alma,
Não tem porvir,
- Então é de não ouvir.
Que o medo não vença,
Não se instale a densidade,
A escuridão não convença
De que ela é que será verdade.
Trepemos lá acima
Pela escada do coração
E nada neste mundo nos anima
A crer na escuridão,
Nada nos pode tolher,
Cobertos todos os matizes,
O poder
De sermos felizes.
Poder
Poder é para lutar,
Mas lutar com que objectivo?
Se o ego é de abandonar,
Reduzir, por negativo,
Sempre na luta em que insiste,
Então porque é que ele existe?
Ele empurra para a frente,
Pró-activo no combate,
Contra a cordialidade assente
Na pacatez que acate,
Em paz interiorizada,
Receptiva e saboreada.
Se aquele é de reduzir, pois,
Porque é que temos os dois?
É que não vimos à terra,
Após todos os deslizes,
Só para o abraço que cerra,
Só para sermoss felizes.
É para nos trabalharmos:
Para connosco nos darmos.
Para trabalhar os medos,
Os desconfortos, enfim,
As corruptelas dos credos,
Os limites de cada confim...
Cada medo é um bloqueio
Duma memória de antanho,
Quer minha, quer de eu ser meio
Que em mim o Cosmos e o tempo inteiro apanho.
Cada bloqueio é para ser desfeito.
À medida que os for desfazendo,
Se a outros não for atreito,
É que então irei ascendendo.
Desfaço-os ao passar por eles,
Vivenciá-los,
Percebê-los, mesmo aos mais reles,
E aceitá-los.
A partir da aceitação
Da dificuldade que existe
Principia a transição:
A força do medo não subsiste
Quando a consciência o tem à mão.
Começa a desaparecer
Ao vivenciá-lo quenquer.
A escolha de encarar o medo
Requer força, quer vontade
Perante a dificuldade,
Quer o poder a que acedo.
Não é que sofrer é bom,
Pois sofrer não dignifica.
Há quem creia que esta acção
Torna a personagem rica.
O inverso é que é verdadeiro:
Tens de ser algo primeiro
E depois, disto ao sinal,
Irás agir como tal.
Não busques o sofrimento,
Contudo, não fujas dele,
Que, se à porta bate, o momento
É de o vivenciar na pele.
Deixa-o doer bem aqui,
No centro do peito,
Desce ao fundo do poço, sem te virimizares a ti,
Sem achares, mal afeito,
Que a culpa que houver
É doutro qualquer.
É responsabilidade tua,
Efeito de tua acção ou emoção
Que ao retardador actua,
Desta ou doutra vida que em ti se insinua,
Se insinua em teu coração.
Para isto é que é preciso ter poder,
Coragem,
Para um indivíduo se fragilizar e encarar
A dor que vier
Repetindo a viagem,
Repetindo-a até parar
De doer.
Parar, não porque racionalizaste
E cuidaste que o melhor
É canalizar a atenção quanto baste
Para o que não tiver dor.
Parar não porque tomaste
O anti-depressivo e, a seguir,
Paraste
De sentir.
Parar, não porque rezas a Deus,
Pedes que tudo resolva,
Numa fuga aos dados teus,
À realidade que te envolva.
Até parar de doer
É a coragem de ficar ali
A senttir a dor a corroer
Tão fundamente em ti
Que, se te olhas à janela,
Já te misturas com ela.
Até que um dia ela se foi,
Como nuvem se desfez
Num oceano que não dói,
De vez.
A dor veio,
Encaminhaste-a e desapareceu.
O ego em teu
Seio
Foi para isto que serviu.
Em meio à escuridão
Ele te encheu
De luz então.
Gostas de ti o bastante
Para ficares aí parado
Deixando a dor ir por ti adiante
Com seu peso mais pesado
Até que definitivamente
Acabe de ti ausente.
Mereces ser feliz
E, quando esta dor passar,
Conquistaste mais lugar
No céu de que és aprendiz.
Para tal viagem
É que serve a coragem.
A dor, na via tradicional,
Faz-te vítima do destino,
Alguém te anda a fazer mal
Sem motivo, clandestino,
E, então,
Não controlas a situação.
Num trilho espiritual,
Se dói, é porque urge trabalhar.
E é de passar por aquilo
Uma e outra vez, sem parar,
A fim de o desgastar.
Ao correr do tempo, o sigilo
É que, à força de tantas vezes
O mesmo sentir,
O coração abra as portas corteses,
Supere o bloqueio, liberto para o porvir.
Emoções
As emoções alicerçam
O espírito, apontam o rumo.
Os que as não exerçam,
Em resumo,
Se não sabem chorar,
Não saberão rir, a par.
Quem julgar as emoções
Como desajustadas, inoportunas,
Que consciência, com tais senões,
Vai ter dos oásis e das dunas
Que lhe povoam, mágicos ou medonhos,
Os sonhos?
Só quem incondicionalmente
Respeitar o que sente
Poderá reconhecer
Uma emoção qualquer
Determinante
Para ajustar o caminho para diante.
Perguntamos a Deus qual a missão,
Qual o compromisso
Antes de pisar o chão,
Se andamos cumprindo com isso.
Tentamos elevar-nos então
Para aceder à informação.
Ora, sem as emoções desbloqueadas,
Livres e transparentes,
Bem podemos elevar as pegadas,
Trepar lá acima, insistentes,
Que nada irá importar
Ao que visamos alcançar.
Sem as amoções a fluir livremente,
Nada de relevante
Ocorre no presente
Da vida de cada impetrante.
A prioridade das prioridades
É de às emoções tirar as grades.
Aquele que sente
Mas impede a emoção,
Prende-a, tapa-a, não a consente,
Desejando que se lhe vá do coração
Para o não importunar,
Para lhe não recordar
Que há desgostos não chorados,
Lutos por fazer,
Deseja que a vida sejam só vergéis doirados
Sem nuvens a escurecer.
É de quem, indo na estrada,
Ainda não entendeu nada.
Tudo é dual,
Os opostos são reais.
Quem não vivencia a tristeza do mal
Como da alegria
Vivencia
Os sinais?
Quem se não emociona
Demitiu-se de sentir.
Sem o sentimento à tona,
Nada significa, a seguir.
Ora, a vida, em todos os lados,
É feita de significados.
Não é só trabalho,
Dinheiro e matéria aquilo que valho.
Quem logra percepcionar
O significado que a tudo dá cor
Vive, seja qual for o lugar,
Muito melhor.
Não é um qualquer,
Sabe o que anda a fazer.
Sabe a causa interior de cada evento
E o que aprender com ele,
Porque é que cada perda vem no vento,
Como usar o que a repele
Para que ao fim se estime
Que mais nenhuma se aproxime.
Ama o que faz
E cada qual com que interage.
Um minuto é capaz
De promover o despertar
Quando bem se lhe reage,
É magia,
Não lhe podemos desperdiçar
A via.
Quem sente, sonha,
Quem sonha, vive.
Quem vive, aprende mais do que suponha,
Quem aprende, evolui por quanto arquive.
Ora,
Quem evolui,
Mais depressa aflora
O que por dentro dele intui:
A grande Aurora.
Significado
Uma vida sem significado,
Vazia,
Sem rumo interior entressonhado,
É a via
Para a confusão,
Teias conflituosas,
Emaranhados de ilusão
Onde nem dum fim à vista gozas.
Dar significado à vida
É enchê-la de liberdade,
Esperança desmedida,
Fraternidade.
Entender que do homem o imo
É o lugar mais sagrado,
Mais ao cimo,
Mais estranho e apaixonante,
De magia nimbado,
Que nos encante.
Entender que o fundo do peito anuncia
Toda a sabedoria.
A vida e o significado
Apenas a alguns é viável,
Aos que o coração abrem, deslumbrado,
E as vicissitudes entendem
Da elevação confiável
A que se rendem.
No movimento de subida
Há fases de descida,
No instante da conexão
Há dúvidas que o travarão,
Ao ser quem se é
Há muito quem hesite andar de pé...
Mas não comprometem o trilho aberto,
Não travam o vivível,
Que o rumo já foi descoberto
E é irreversível.
Apenas há uma diferença
Entre homens e animais.
Não é da morte a sentença,
No temor somos iguais,
Não é que os animais não tenham consciência,
Muitos a têm bem mais
Que de muitos homens a pretensa
Sapiência.
A diferença verdadeira
Onde o animal não há chegado
É que à existência
De que se abeira
O homem pode dar significado.
Para quem da vida
Segue na estrada
Sem significado a corrida
Não vale nada.
Atributo
Um atributo bem triste
Da religião
É o de assustar quem ela assiste
Com verdades que o não são.
Os pecados,
Como qualquer proibição,
São o abuso descarado
Desta função.
Quando nascemos,
Que há uma continuidade
Já não sabemos.
Nada nos persuade
Do clima
Da vida que passou,
Ninguém lembra o que combinou
Lá em cima,
Nem augura
Que haverá vida futura.
É fácil acreditar
Então,
Quando em redor tudo o partilhar,
Que não
Existe à partida
Nada além desta vida.
Retirar
Da consciência humana
A eternidade
É a nossa maior pragana
Que a vista nos invade
E engana.
O homem então lida
Só com esta vida.
Não sabe que o que sofre
É um efeito do que fez
E o que faz, além de encher-lhe o cofre,
Um efeito cósmico terá de vez.
Foca esta vida
E aqui pretende ganhar
Mesmo que tenha de passar
De todos os modos
Por cima da desmedida
Multidão de tudo e todos.
De maldades o ego engendra um rol
Que, uma vez executadas,
Mais fácil tornam que, nas encruzilhadas,
O mundo a contento lhe bole.
Aqui entram as religiões,
Começam a fortalecer-se:
Divulgam pecadilhos, pecadões,
De modo que, quem os não
Verse,
Alcance a salvação.
- ”Só isto?!” - pergunta alguém. -
“O resto posso...?”
Como nenhuma lista tem
Poder de tapar o fosso
Das multímodas limitações
Provenientes do outrora feito
Ou de actuais acções,
Todos tomarão a peito
Os buracos encontrados
Entre as listas de pecados.
Não pode matar
E roubar não pode,
Mas pode torturar
E, se espezinhar lhe acode,
Porque não? E pode humilhar,
A vida ao encontrão...
Não pode comer por gula,
Mas vender mil aditivos,
Mil conservantes que o mescado engula,
Mudar a genética dos vivos,
Sejam quais forem os efeitos
Nos mercados eleitos...
Não pode olhar do próximo a mulher
Mas reprime as paixões,
Bloqueia emoções,
Até que entupidas
Em quenquer
Ficam as vias, de emoções retraídas...
A lista do que deve e não deve
Assente
Deveria estar, no que prescreve,
Exclusivamente
Na própria consciência,
Retirada do âmago mais profundo,
Luminescência
Que em cada um existe do outro mundo.
Acertar
Quando nos cremos correctos,
Quando pretendemos acertar,
Obcecam-nos os efeitos concretos,
Que tudo corra bem a nortear.
Tal compulsão
Da iniciativa que nos invade
Trava-nos a percepção
Da realidade.
O problema, afinal,
De errar é o medo letal.
A busca intérmina da vitória
É a força vital
Da tarefa cuja glória,
Decerto,
Apenas é que dê certo.
Do êxito o pendor
Unilateral
Demonstra o pavor
Arraigado que encerro
Do fenómeno do erro.
Ora, errar, sendo humano, é vital,
Errar
É o que faz crescer, avançar.
Logo a seguir ao erro
Vem uma crise interior:
Frustração, tristeza, mágoa em que me encerro,
Tudo é dor.
Aproveitemos a tristeza,
Não da culpa ou raiva,
Mas da impotência que se preza
E que nos caiba,
De ter atraído o erro e o efeito,
De o não ter sabido
Ou podido
Evitar de nenhum jeito.
Aproveita a tristeza, chora,
Faz o luto interior
Agora
Até ao fim.
Momentos, horas, dias de dor
Alargando o teu confim.
Quando acabar,
Conectaste-te com tua fonte divina de luz,
Aquele lugar
Mais dentro de ti que te traduz,
Teu eu, onde postas
Se te colocaram todas as respostas.
Apenas nesta altura
Estás pronto a recomeçar,
A mudar,
A melhorar
Tudo o que te configura.
O que quer que ora farás
Fá-lo-ás contigo inteiro,
Tua fundura veraz,
Teu sagrado ser primeiro.
Tão próprio tem teu perfil,
Tão original,
Tão autêntico entre mil
Que só inovação traz, afinal,
Só pode trazer, no fundo,
Uma outra luz ao mundo.
Foi o erro, a crise, a vivência de dor
Com a actividade consequente
Que ditaram do avanço o pendor,
A conexão com a força evolutiva
Presente
Mas esquiva.
Quem o itinerário espiritual
Não logre pela meditação
Pode segui-lo, por igual,
No relacionamento com a emoção.
O erro é profícuo, aceitável,
Legítimo, até desejável.
Quem tudo racionaliza,
Pondera, evitando errar,
Não agirá, por divisa,
Ou age, só a concordar
Com o já estabelecido que alcança
E o mundo jamais avança.
Cuidado com o julgamento!
Quem faz, diz ou pensa
O improvável de momento,
O original, desalinhado do pensamento
Que o lugar-comum condensa,
Antes de o rotulares,
Julgares,
Cuida se não estará conectado
Com seu eu profundo, sagrado,
E, quer te agrade ou não agrade,
Com o porvir da humanidade.
Reconverte
Acredita,
Limpa tua interioridade,
É o que melhor reconverte a desdita
Que te invade.
Desconectado e com íntimo negror,
Só alguém
Sem vida interior,
Sem vida própria, refém:
Sempre noutrem focado,
No que irá pensar ou dizer
Em qualquer lado
Quenquer.
A outrem tem de agradar
Para este o poder aceitar.
Para ter-se de pé,
Doutrem precisa de aprovação,
Senão
Não é quem é.
Quem do imo é desconectado,
Na densa negridão
Jamais terá encontrado
O próprio âmago à mão,
A fonte orignal
Donde descerra
O manancial
De sua vida na terra,
Veículo que transporta a missão,
O caminho, a espiritual informação.
Sem vida espiritual,
Sem vida interior,
É um autómato cada qual,
Robô sem valor,
Sempre a mando de alguém
Como ao ego convém.
Importante é se libertar,
Soltar as amarras,
Deixar de dar
Importância do ego às garras,
Conectar-se a seu imo
E trepar até ao cimo.
Encontrar a vida plena, sidérea,
No meio da densidade,
Na opacidade
Da matéria.
O desconectado é, de raiz,
Um infeliz.
Não é um senão
Que queres aqui
Viver em ti,
Pois não?
Luz
Quando retiro da vida
Trabalho, família, amigos,
Bens materiais em seguida,
O que queria ser e não fui em meus abrigos,
O que quero e por que luto nos perigos,
Quando tudo que a vida complica
É retirado, que fica?
Se te deixas de preocupar
Dos outros em cuidar,
Parentes, amigos, superiores,
De tua consciência os humores
Para onde irão,
Para onde te iria a convicção?
Se nada te preocupa hoje,
Nem dinheiro, nem metas de fantasia,
Se tudo de ti foge,
Que é que restaria?
Apenas o fulgor
De tua luz interior:
O cerne que te fecunda,
A tua energia profunda.
De teu Eu esta energia
Seria
Mais forte ou mais fraca, contudo,
Conforme as vezes em que te despojaste de tudo,
Em que tenhas ido
Dela ao encontro pretendido.
A força iria depender
Das coisas em que te dispersas,
Do que arranjas para fazer,
Das distracções adversas.
Aquela energia fica à espera
Para te salvar a vida,
Levar-te a teu propósito nesta era,
Mostrar tua medida.
Tem de ser alimentada,
Instruída,
Acarinhada,
Para brilhar desmedida
A iluminar consistente
A tua identidade presente.
Tudo o que faças
Que não dê luz à tua luz,
São trapaças,
Não resulta, não seduz.
Primeiro que tudo,
Que família, amigos e os mais,
Que da sobrevivência o gosto agudo,
De tua luz estão os sinais.
É que aí, sem tabu,
É que estás tu.
Depois, com a inocência da infância,
Tudo há-de vir,
Fascinante, a seguir,
Sob o signo da abundância.
Areia
Se foras um grão de areia
Onde te levava o vento?
Para onde é que ele ameia
Que pararas a contento?
E que é que ele te faria
Vivenciar a qualquer dia?
A vida tem movimento
Autónomo, próprio dela.
Areias leva-as o vento,
Dum querer não há janela.
Do bem e mal o juízo
Não poderão ter preciso.
Para aqui ou para ali,
Não quererão ir jamais.
Vão onde o vento assobie,
O vento é que as leva atrás.
Se tu grão de areia foras,
Eras tão leve, a desoras,
Tão disponível, que irias
Aceitar a direcção
Proposta, conhecerias
Outras paragens então
E de novas experiencias
Seriam tuas vivências.
A tua vida seria
Infinitamente rica,
A tudo te levaria,
Livre em quanto pontifica:
Já não cuidas que só tens
Repetitivos améns.
Já não irias pensar
Que tudo te corre mal,
Que outrem a prejudicar
Te andará sem dar sinal.
Mais preocupado andarias
Em ver se peso perdias
No escuro teu interior
Para mais leve ficares
E te poderes compor
Com o vento, pelos ares,
Para cada vez mais alto
E mais longe, no planalto.
Se foras um grão de areia,
Serias leve, intuitivo
E móvel tão de mão cheia,
Tão autêntico e tão vivo
Que a vida nunca teria
O peso que aqui te avia.
Tudo seria mais fácil
E tudo no seu lugar.
Tu tornar-te-ias tão grácil
Que nem creras ao te olhar!
Responsabilidade
Tudo o que ocorre
É para lhe assumires a responsabilidade,
Tudo o que te acontece decorre
Do que atrais, na verdade.
Por estranho que possa parecer,
Quando reparas nos sinais
De teu centro,
Como quenquer
Tu só atrais
O que tiveres aí dentro.
Só atrairás violência
Se apenas violência em ti houver,
Só do amor atrais a complacência
Se teu imo amor tiver.
Em vez de cuidar
Que não ocorram coisas más,
De reclamar
Que só mal a vida traz,
Olha para tudo em redor
Como espelho de teu interior.
E agradece
Aos que te provocam dor
Por te terem feito ver esse
Pendor
Que, em teu íntimo tear,
Tens de trabalhar.
Agradece
E trabalha
Em tudo o que isto te oferece,
Seja o que for que venha à calha.
Este é o caminho.
Se atrais uma conjuntura violenta,
É apenaas o espelho e o cadinho
Da violência interior que te atormenta.
Entende e contacta com ela,
Recorda os eventos
Violentos
De tua vida sequela,
Chora, grita, esperneia,
Cruza-lhes por toda a teia,
Retira a energia negativa
Que em teu peito se arquiva.
Retira tal negror, tal peso,
Abre teu coração
De par em par,
Doravante ileso,
Para a Luz poder entrar.
Assim,
Conjuntura a conjuntura,
Evento a evento,
Ir-te-ás limpando, por fim,
Agradecendo quanto te depura,
Clareando cada momento.
Um dia vais acordar
Com um reino de amor
Em teu redor
E verificar
Por ti
Que há Céu a andar por aí.
Relações
Há tanta relação
Em que os parceiros não conseguem ser quem são,
Pessoas que tropeçam nas vielas
De ser o que os mais esperam delas!
Nesta tentativa
De ser o que outrem espera que se viva
As almas vão minguando,
Tristes e desiludidas,
E da maturidade as utopias ficando
Pelo caminho perdidas.
Um nascimento
É uma encarnação
Singular:
A ocasião,
A partir de tal momento,
De qualquer alma se manifestar.
Quando uma relação
Te propõe não ser quem és,
Seja por parte de quem for,
Cônjuge, filho, progenitor,
Bota de chefe a pisar-te os pés,
Quando teu imo te empenhar
Para não ser o que à terra veio desempenhar,
Contrapondo-lhe desejos mesquinhos,
Manipulação,
Então
Esses que tanto te são vizinhos
Não te conseguem ver,
Em ti não vislumbram alma.
É o que há-de ocorrer,
Mais ainda se a conjuntura não te acalma,
Porque não sabem ou não querem
Ou porque tu próprio te não vês
E aceitas os eventos que te ferem
E trucidam à vez.
Não é culpa deles nem tua,
Que não há culpa, mas responsabilidade,
É uma rua,
Não uma grade,
Que tua apenas é, pois por ti actua,
A de não abandonares sozinho
Teu imo a meio do caminho.
A tua fiel alma é a tua luz,
A tua fiel alma é a tua vida,
De ti pende se a relação o traduz
Ou se por ela é denegrida.
De ti depende orientar a relação,
Colocar limites,
Aprender a dizer não,
Não sei, não posso, não tenho palpites...
Aprender a interiorizar,
A olhar para dentro de ti,
Tua lógica a procurar,
A emoção que houver ali.
Procurar as tuas opções,
A recolha
De tuas opiniões,
A tua escolha.
Aprender a ser
E a partilhar teus sinais
Com quenquer,
Com todos os mais.
Respeitar o que os outros são
E o que escolhem em seu íntimo teor
Até ao mais ínfimo, ao mais chão
Pormenor.
Então
Estarás em contacto com uma força oculta
Imensa.
Ao veres como te catapulta
Para quanto te traduz,
Tensa,
Chamá-la-ás de tua Luz.
Amor
Dá-lhes, do Infinito, o amor,
O amor que dEle recebes.
Faz o que preciso for,
Que teu peito embebes
Do amor que te convença
E vença.
Faz por retirar negror e peso,
A densidade de memórias,
De emoções negativas,
Destruidoras, inglórias,
Que te põem leso,
Em carnes vivas.
Varre a inveja,
Ódio, raiva ou mágoa
Onde quer que cada qual esteja
A turvar da emoção o correr de água.
Vai à dor as vezes que for preciso,
Desactiva a memória por desgaste,
Depois trepa ao Paraíso
Quanto baste.
Quando aqui chegares, fino,
Trata de vir leve, fresco, cristalino.
Para que o Amor entre abençoado
A abarcar o mundo inteiro,
Através da fonte aberta de teu lado
Depurado
E videiro.
E, quando saíres à rua
E falares com alguém,
Quando deitares a mão à charrua
Ou à falua
Ou ao que melhor ao dia convém,
O amor, infindo,
Que o Céu
Tem
À humanidade
De ti vai saindo
Puro, sem labéu,
Invadindo
A terra inteira
Como grade
Pela jeira.
E vais saber que foi o Céu,
Que invadiu ruas e almas
Através daquele gesto teu
Constante e raro
Com que o mundo acalmas.
Tudo mais limpo ficará,
Tudo ficará mais claro
Em tudo, tudo quanto há.
Tudo com a postura do céu,
Golpe de asa
Que o homem tem, único, de seu
Para voltar a casa.
Paz
Há uma paz
Que apenas alcanças
Quando a decisão que te apraz
É a mais correcta que na lida entranças.
A mais correcta
Para ti,
No que te afecta
Aí.
A maioria toma a decisão
Com base no “tem-de-ser”,
“Outra hipótese não há, não”,
Ou “Tenho mesmo de o fazer.”
São decisões empurradas
Pelo ego controlador,
Sinistro,
Cujo registro
Das almas foge, com terror
Das energias revigoradas
Que, pelo tempo além,
Elas mantêm.
Quando respeita a energia original
A decisão tem uma força descomunal.
Tudo está no lugar
Quando alguém se respeita,
Quando sabe que o melhor para si em que acordar
Pode não ser para outrem a melhor receita.
Quando tomas uma decisão,
Fecha os olhos um segundo
E sente o coração,
Teu íntimo mundo
Mais profundo.
Sente a intuição.
Às vezes o peito sofre com a decisão
Que a intuição diz para tomar.
Sente a intuição, põe-na a falar.
Se houver paz
Coerência com a energia de teu imo,
Sentirás
Tudo no lugar, tudo no cimo.
Se sim, está certo,
Nada evites,
É a escolha de teu maior acerto.
Se não,
Não hesites,
Muda ao leme a posição.
Intuição
O pinguim
Sabe que é hora de migrar
Quando o gelo, enfim,
Sob as patas lhe estalar.
O minúsculo evento
De pinguins muda a vida aos milhares,
Sabem que é o momento
De partir para mais inóspitos patamares,
Rumo à aventura
Da vindoira progenitura.
Há milhões de anos a raça abala
No destino que estes gestos acartem:
O gelo estala
E eles partem.
O homem tem poderes intuitivos
De espantar
Talvez:
Intui a hora e os motivos
Antes de o gelo lhe estalar
Sob os pés.
Antes de algo ocorrer,
É capaz de intuir agora
Quenquer
Que chegou a hora.
É assim com nossos arcanos
Há milhares de anos.
Só que o homem julga, porém,
Prefere crer que é incapaz
Ou, embora capaz, quem
Lhe garante que é boa
Uma intuição que lhe apraz
À toa?
Por isso não a goza,
Bloqueia a capacidade mais portentosa,
A de antes do tempo andar
E cuidar
Que tudo possa ocorrer
Como devera ser,
Pelo mero facto
De o ter intuído e ter honrado o pacto.
Temos a tendência
Eficaz
De bloquear capacidades.
“Não sou capaz”,
“Não mereço tais alacridades”,
“É bom demais, enfim,
Para mim...”
Milhares de vezes repetidas
Tornam-se realidade nas vidas.
Acredita na intuição,
É poderosa e transmutadora.
Podes não crer no resto, mero chavão,
Mas crê na intuição que em ti mora.
Pode o mundo não mudar jamais,
Mas muda o teu, de repente,
O que é já mais
Que suficiente.
Esforço
Nada deve ser forçado,
O que à força é feito em esforço
Desliga o canal ao céu ligado,
A doer como um remorso.
À força é ao contrário da leveza
Que vem de cima, das alturas.
À força é densidade que pesa,
Leveza é luz que para ti apuras.
Quando algo pede tal esforço,
Não é escorreito,
Precisa de algum reforço
A jeito.
E só requer
Tal
Recurso adicional
Porque não é para acontecer.
A água se esvai
Fácil e clara pela cascata
E, quando cai,
A correr e a cantar desata.
Assim diluída
E pacata
É a vida.
Se entendes que o que é feito em esforço
Não é para ser feito,
Que a vida tem um escorço
De respeitar, levar a peito,
Logo te esforças menos
E aproveitas mais
Nos terrenos vicinais.
Tua vida, a pulmões plenos,
Passa a ter a medida
Do prazer de ser vivida.
2
Segunda Estrela
Incomoda
Quando alguém te incomoda,
O mais natural
É dele pensares mal,
Que bem poderia
Ser outra a moda
Que vestia:
Ter feito doutra maneira,
Dito com outro falar,
Ter a calma que se inteira
De quem é que lhe anda a par...
E todo este pensamento
É somente julgamento.
Queres o que contigo se emparceira,
Tudo à tua maneira.
Que convença, fiável,
E te deixe confortável.
Não é deste jeito
O Universo.
Tens um íman em teu peito
Que atrai o que é para ti,
Para que te tornes terso.
Atrai quanto precisares
Para as emoções
Advindas daí
Tu por fim vivenciares.
E todas as situações
Que atrais
Têm como emoção principal
Emoções iguais
Às que vivenciaste
Na infância primordial
Ou que de antanho incorporaste.
O indivíduo ou conjuntura
À tua frente
Têm a chave que desenclausura,
Deferente,
Tarde ou cedo,
O teu mais recôndito segredo.
Embora mal a palpites,
É a chave de teus limites.
Se aceitares que é parte de tua vida,
Para poderes soltar a emoção
Foi por ti atraída,
É prioritária para a tua solução,
À tua frente te persuade
A ajudar em tua prioridade,
Para o bem ou mal anda aí
Para fazer saltar a densidade que haja em ti,
- Então é uma grácil companheira
Que na nuvem, antes de encarnar,
Trocou contigo a confidência mais certeira
Na alegria daquele patamar.
É, portanto, alma amiga:
Como justificar tua briga?
Se parares de a julgar
A seguir,
De a inculpar
Pelo que te veio fazer sentir,
Se entenderes, destarte,
Que veio ajudar-te,
Retirarás o foco dela
E do que te fez passar,
Transfere-lo a teu peito, na sequela,
Indeciso entre processar
Uma emoção enorme
Ou bloquear para sempre o monstro informe.
São casos destes que ocorrerão
Quando a mente manda no coração.
Ao concentrar-te em ti é o porvir:
Sentirás, por esta fenda,
A dor tremenda
De que tens andado a fugir.
Finda a dor,
Qe sempre finda,
Ganhaste mais um pendor
Na luz advinda.
De cada vez que ultrapasso um bloqueio,
Ganho uma dimensão,
Semeio
Meu chão.
Quando olhar para alguém
Que me causou dor,
Sei que foi uma lição de bem,
De doloroso amor.
Saberei responder
À medida:
Agradecer
A lição aprendida.
Passarinhos
Já que os passarinhos
Não tecem nem semeiam
E, apesar disto, os ninhos
Enxameiam,
Se teus pés foram feitos
Para andar,
Deixa-os livres, andam afeitos,
Deixa-os te encaminhar.
E se as pernas se destinam
O corpo inteiro a suster,
Deixa de pretender
Que sinas outras to combinam.
Teu ego foi talhado
Para manter o controlo?
Põe de lado
Tal consolo.
O controlo afasta
O medo?
Põe de lado, por já gasta,
A falsidão deste credo.
Se o medo é que te incentiva
Teu querer,
Quem, afinal, o quer
Numa vida viva?
Se teu querer é norteado
Para fugir à dor,
Larga-o, mesmo ficando tu desolado,
Outro é o rumo de seres senhor.
Pois se até os passarinhos
Não tecem nem semeiam
E, apesar disto, os ninhos
Enxameiam!
Submundo
Não é apenas no céu:
A abundância traduz
Que se encheu
O submundo de luz.
A luz que nos sublima
Não se encontra só lá em cima.
O submundo de cada qual
Deverá ser visitado,
Revisitado
Vezes sem conta até que, ao final,
Há-de começar
E continuar, por todo o lado,
A luz a entrar.
Quanto mais se visita
O submundo particular,
Quanto mais se revisita
A escuridão pesada que nos invade
Deste estágio denso da humanidade,
Quanto mais se vai
Ao monstro em que cada um se esvai,
Mais a terra se irá
Elevando desde cá.
Quanto mais se visitar
As trevas
No intuito de alguém se libertar
Das grevas,
De as abandonar
Duma assentada,
Maior a luz alcançada.
Na ascensão,
Uma resposta
Um apelo não há que não
Tenha justaposta.
Não há um erro que não
Tenha perdão.
Não há um excesso
Que não
Tenha, no processo,
Compensação.
Não há limitação sem coragem
Para a viagem.
Não há potencialidade
Sem a luz que a invade.
Não há pegada
Que não tenha estrada.
Não há terra, seja ela qualquer,
Que não tenha vazio a preencher.
Ao subir não há um apelo
Por mais singelo,
Que não tenha sobreposta,
No elo
Daquilo em que o sonho aposta
Aqui, agora,
A inesperada resposta
Promissora.
Implicando
Quando perguntam ao céu,
Tendem a entender a resposta
Como doravante implicando que, sem véu,
Terão casa e mesa posta,
Como alguém
A quem vai tudo correr bem.
Para as perdas andam impreparados,
Impreparados para os desenganos,
Para a realidade feita de passos trocados
E danos.
Cuidam que, porque os sinais
Mostram que é por ali,
Não haverá percalços nunca mais,
Encruzilhadas de ansioso frenesi.
Não há maior falsidão.
Quando o céu mostra uma via,
Pode ser a melhor para a questão,
Ter a ver com a original tua energia,
Ser caminho de evolução,
Mas, se algo tens de vivenciar
E não estás disponível,
As perdas vão ficar
Como o que o melhor traduz,
Por mais incrível,
Neste caminho de luz.
Nosso caminho é um caminho apenas,
O mais correcto, original, a via exacta
Mas não deixa de ser um caminho entre centenas,
Tem curvas, obstáculos e nos retrata
Nas pedras,
Só que é por ele que medras.
Toda a matéria é dual,
Em igual proporção
Bem e mal
Em cada saguão.
Teu caminho, porém,
Uma vantagem
Tem
Como nenhum outro para a viagem.
Ele é teu,
Mais ninguém
O tem
De seu.
Tudo o que tiveres de vivenciar
Por ele além,
Tudo por que tiveres de passar,
Desde que o não abandones,
Fará com que te abones
Então
Para a tua evolução.
Tal é a vantagem
E não que é fácil viver.
Dum caminho contrário na triagem,
Sem tua atitude nem querer,
Bem mais difícil ainda
Ficaria aos céus a vinda.
Escolhe, pois, a via que for
A tua,
Com tua textura, tua cor
E continua.
E não te esqueças de sentir,
Que se deixas, retirá-lo
Retira-te a energia, a seguir,
Com o abalo.
O teu caminho,
Apesar dos apertos, desvios, confusões,
Tem uma vantagem nestes baldões
Que em nenhum outro adivinho:
Sejam quais forem os escarcéus,
É o caminho que vai dar aos céus.
Margarida-dos-prados
Há quanto tempo não colhes
A margarida-dos-prados
Para que a puramente olhes
Com teus olhos deslumbrados?
Há quanto tempo não fazes,
De olhos simples na simples flor
As pazes
Com o esplendor?
Em vez de viveres no passado,
No peso amargo
De quem escolhe errado,
No cargo
Inconveniente
Do que te fizeram, supostamente;
Em vez de viveres no futuro
Na ilusão do que ainda irás fazer,
Com novo apuro,
Do que ainda irás ser,
- Colher uma flor apenas,
Ficar a olhar para ela
E ver nas pétalas pequenas
Uma estrela.
Sem passado nem futuro,
Sem planos nem ambições,
Sem das mágoas o muro,
Do ressentimento as excomunhões.
Ali simplesmente
A olhar a flor simples que te alimente.
Sem cargas emocionais nem dilemas,
Sem projecções nem adiamento de esquemas.
Nada.
Ali somente,
A vista deslumbrada
No gratuito presente.
Há quanto tempo, há quanto?
E aquele é o segredo da vida:
Encontrar o encanto
Que pare do tempo a corrida,
Encontrar, enquanto repoisas,
Tempo de parar as coisas,
Para, das transparentes janelas,
Simplesmente olhar para elas.
Um olhar
Como outro olhar qualquer,
E meramente estar,
E meramente Ser.
Centrada
No ser humano é centrada
Toda a actividade dos céus,
Cada palavra enunciada,
Cada indicação de rumos seus.
É com ele que o céu fala,
Com ele que se preocupa,
A ele que se dedica, com que se rala,
Que atende à lupa.
Cada termo se inspira
Dos homens no sofrimento,
Na incapacidade que lhes retira
O momento
De se livrarem daquele,
De o rasparemm da pele.
Da felicidade na procura,
O homem cruzou barreiras,
Momentos inaugura,
Fende mares,
Trepa a luas altaneiras
Pelos ares,
Vigia estrelas,
Conta galáxias pelo vidro das janelas...
Outrora como agora,
Em busca da felicidade
O homem procura fora,
Sempre fora, idade a idade.
Ora, a felicidade
É de entrar por ele dentro
A capacidade
E de assustar, aí no centro,
Com a fronte bem erguida,
O papão que entrava a vida.
Não é tapá-lo:
É descobri-lo,
Enfrentá-lo
E destruí-lo.
Falta a nave espacial
De viajar pelo nosso interior,
Afinal.
Quem, com este fito,
Viajar se quer propor
Ao Infinito?
Sendas
Todas as sendas andam trocadas,
Toda a humanidade refreou
O esforço das íntimas pegadas
E provocou
Um acrescento
De escuridões em aumento.
A terra já não obedece
Ao céu que lhe apetece.
Invertido este sentido,
Tudo o mais, é de supor,
Fica invertido,
Perde o valor,
E o que inauguro
Não tem futuro.
Está na altura
De reorientar esforços,
Reformular o que a vida apura,
Do Infinito retomar nossos escorços.
Reverter o que foi feito,
Reordenar o que em erro findou,
Oposto a que não ando afeito,
Redefinir-me a caminho do que sou.
Efeito
Tudo o que fazes
Produz um efeito,
Dos actos capazes
Aos actos sem jeito.
Ingénua embora,
Da acção que pratiques,
Não tarda, na hora,
Que o efeito verifiques.
Por ínfimo que seja,
Se houver um desvio,
Aquilo que se almeja
É de reequilibrá-lo o desafio.
O Cosmos é equilibrado,
Tudo está, neste momento,
Onde deve ter ficado
Para cumprir a contento
A missão a que foi destinado.
Quando o homem no estado natural
Mexe das coisas,
Desarmoniza, afinal,
O não-desarmonizável onde repoisas.
Por mais que não queiras,
O que saiu do lugar
Terá de voltar
A ser colocado em idênticas leiras.
Quando algo de mal
Fizeres a alguém,
Por pequeno que seja, no final,
Pensa que tu também
Mais cedo ou mais tarde
Irás vivenciar,
Com mais ou menos alarde,
O que ele vivenciou,
Para voltar a harmonizar
A emoção que se turvou:
Fizeste o mal,
Um mal sofres igual.
Mesmo quando a brincar gozas
Com uma minoria,
Hás-de estar
Um dia
Dela no lugar
A ser gozado em tuas prosas.
A natureza não erra a pontaria.
Olha para as ligações
Àqueles a quem o mal tramaste,
Para as frustrações
Que provocaste.
Se recuperar ainda for viável,
Corre, infatigável.
Volta a harmonizar
Antes que a vida uma situação
Desagradável
Acabe por te enviar
Em forma de rearmonização.
Se for inviável recuperar,
Tenta amor e luz em teu redor
Espalhar
Para que a energia envolvente
Reconheça que mudaste teu teor
E te poupe, conseguintemente,
Da tortura ao torno
Do que vier em retorno.
Ego
É o ego o pior dos males,
É quem te ensina a querer,
A lutar pelo que pretensamente vales
Mas que não condiz com teu ser.
É quem te ordena dentro da cabeça,
É quem te faz obrar
Pela restrição e medo em que teu pé tropeça,
Ao calhar.
É quem cria a ilusão
Que te rodeia
Para acreditares na panaceia
Que teu natal torrão
Falseia:
Que vais ser feliz,
Que não ligues ao trejeito
De insatisfação, de crescente cariz,
Que te mora no peito.
Que no dia da roupa nova,
Do novo computador,
Do carro, da casa que te inova,
Quando puderes dispor
Do que mereces,
É a felicidade que teces.
Quando te cansas de esperar,
O ego convence-te de que nada se atrase,
A não parar,
Que está quase.
Trabalha duro só mais um bocado,
Só mais um bocado abafa o que sentes,
Luta, que teu dia é quase nado,
Estão chegando os presentes...
E o bocadinho a que te apega
Nunca chega.
E sempre o ego insistia
Que a resistência e a luta
São a única via
De tua conduta.
Jamais te deixa ver
Que luta e resistência
Nunca chegam a ser
Via nenhuma,
São o despenhadeiro
Para a espuma
Sem consistência
Em que mergulhaste inteiro.
A grande via para teu gosto
É um oposto.
A grande via é aceitar
E fruir.
Acolher o lugar
E o trilho em que te encontras a ir,
Deixar
Fluir
A corrente sideral que te levar,
De modo a te conseguir
Encaminhar
Para o que te está reservado
Nesta aventura de espírito encarnado.
Escolha
Podes sempre escolher
Entre ir para onde teu imo mais subido
Te sugere,
Píncaro onde estarás protegido,
Ou ir para onde te apetece,
Onde a protecção te falece.
O Cosmos não muda a energia
Dos locais que tem
Só para que, em teu dia,
Te sintas bem.
Temos de entender
Que o Universo não muda a nosso bel-prazer.
Ou para onde vai descobrimos
E vamos também
Ou traumas a viver caímos
Vida além.
Ir para onde vai o Universo
É querer o que com ele está de acordo,
Ou porque calhou, foi frente e verso,
Ou porque fizemos a conexão,
Ajustámos o bordo,
Acolhendo dos céus a sugestão
E agimos em conformidade
Com o que ali nos persuade.
Ficaremos
Protegidos
Porque o que fazemos
Realiza os sentidos,
Afinal,
Da energia original.
A grande sabedoria
De na terra ser
Seria a de viver
Apenas em função desta via:
Traumas não haveria
Nem perdas sequer.
O contrário, porém,
Também te pode fazer bem:
Sofres desgraças
Nunca imaginadas,
Por choques emotivos passas
Em cruéis estradas.
No conflito
Também se evolui, se tal é o fito.
Contudo, sem tanto sofrimento
Podias ter evoluído
A contento:
- Bastava ter o céu ouvido.
Rituais
Às vezes, a energia
É pesada, de tão escura,
Fruto de tanto dia
Que errámos na procura.
Os rituais
São acúmulos ancestrais.
Tantos fizeram em prol do ego,
Daquilo que tão mal queriam,
Que mataram o sossego
Que pretendiam.
Queriam chuva,
Urdiam rituais.
Queriam fazer mal a uns tantos que tais,
Simulando afagos de luva,
Celebravam rituais.
Entrar em guerra pretendiam,
Logo rituais teciam...
Tudo para fazer sobreviver melhor
O que o espírito tem de inferior.
Nenhuma tentativa de evoluir
Nas práticas ancestrais,
Instinto de sobrevivência a gerir
Sozinho, tudo o mais.
Então aproximam-se os espíritos menores.
Como são fáceis os favores
Que os humanos querem
Estes espíritos trocam o que conferem.
Dão chuva, vitória, desgraça de alguém,
E em troca vão ficando,
Vão-se apoderando
Da vida espiritual pelo mundo além,
Dobrando-lhe à matéria as cervizes,
Vão criando raízes.
Por ora dominam e neles se aferra
O que anda rasteiro pela terra.
Há locais e pessoas
Que vivem de rastos
Por mor da energia dos que, nefastos,
Insistiram, em seus corações,
Nas loas
A este tipo de invocações.
Tudo pelo próprio bem,
Julgarão.
E é o contrário do que convém
À evolução.
Âmago
Teu âmago, alimento da quimera,
Está sempre à tua espera.
À espera de que pares
Para os outros de olhares.
À espera de que os olhos teus
Deixem até de olhar os céus,
Sempre um ídolo mero
Para quem for sincero.
Está para ali,
No teu fundo,
À espera de ti
Para conseguir ser mundo.
Para conseguir dar-te força
Para operares, total,
Conforme aquilo a que orça
Tua energia original.
Teu âmago é um ser de luz,
Confinado à física estrutura
Do teu corpo que o traduz ou não traduz,
Conforme o que nele teu acto configura.
Ele quer ser livre, quer voar,
Quer mais que a vida limitadora
Que lhe queres dar,
Por ora.
Quer deixar dele a luz
Imensa
Abraçar o mundo que seduz,
Que convença
E encantar a todos, lavrando cada torrão,
Através de sua enorme convicção.
Tens, porém, de o conhecer,
De o compreender e aceitar,
De o intuir e procurar,
De o acolher.
Ele és tu no estado puro,
No estado original,
Quando um raio de luz eras no apuro,
Quando o que era teu
Mergulhava, radical,
No céu.
Quando entenderes a grandiosidade
De tua própria essência,
Quanta energia sagrada e única a invade,
Poderás ter a evidência,
De vez,
Do ser iluminado que és
E do que fazer vieste
Cá em baixo, na terra agreste.
Responsável
Não és responsável por ninguém,
Nada te obriga,
Refém,
A abandonar teu centro.
Apenas tua é a briga
Por ti dentro.
Nada te obriga a colocar
Outrem em primeiro lugar.
Porque é que tantos
Não lograrão meditar,
Apesar dos encantos,
Apesar
Dos prantos?
Quando fecham os olhos
E olham para o peito,
Lá dentro há tantos abrolhos,
Tanta gente sem jeito,
Tanta outra obrigação,
Que, do peso, o peito cai ao chão.
As pessoas findam angustiadas,
Param de meditar,
Quando deviam retirar
As cargas pesadas
De responsabilidade do peito,
Compreender, deste jeito,
Fiáveis,
Que por ninguém são responsáveis.
Cada um vem cá abaixo
Seu desígnio cumprir.
Se noutrem o encaixo,
É àquele impedir
As limitações de superar,
Pela troca de lugar.
Quem por outrem se responsabiliza,
Ou culpabiliza
Por dele não tratar,
Não se apercebe do mal
Que anda a provocar
Em cada qual.
A responsabilidade lhe tira
De superar o limite que em si mira.
O livre-arbítrio que lhe coube
Leva a que roube.
Retira-lhe a iniciativa,
A derradeira essência,
A luz que faz que ele viva
Com toda a vital premência,
Leva-o dele próprio a fugir,
A luz dele a se extinguir.
É a própria hora
Que se lhe anda esvaziando desde agora.
Mentem
Porque é que uns aos outros tantos mentem,
Porque é que a si próprios mentem tantos?
É do desconforto que sentem
Ao encarar do real os desencantos.
É grande o desconforto
De ter de confrontar
Alguém com o bom porto
Que não quer aceitar.
A si próprio mentir
É das mentiras a pior,
Desfalca os pés que querem ir.
Quem não aceita o que for,
Dele não aceita as limitações e deficiências,
Que não é como os outros não aceita,
Que não é como os mais
Suposto ter os sinais
E as evidências,
Nem ter a vida afeita
Ao que outrem almeja
Que ele seja.
Um interno conflito sente
Permanente.
Nunca será feliz,
Pois consigo não condiz.
Cria a ilusão
Em que acredita
De que faz a mais confortável opção
Para a própria dita,
Sem cuidar, afinal,
Do que faz à energia original.
Depois há o que aos outros mente,
É apenas um cobarde.
Não é de contar tudo a toda a gente,
Prefere guardar, guarde.
Preservar algo misterioso
A qualquer encontro aumenta o gozo.
Mas mentir, dar por verdade a falsidão,
Isto, não.
Basta afirmar
Que sobre o tema acontece
Não querer comentar
Ou apenas não lhe apetece
Falar.
Mentir, porém, nunca.
Toda a acção
Junca
De efeitos o chão.
A mentira vai
Manipular a postura de verdade,
Atrai
O efeito da manipulação da identidade.
Ora, do lado
Deste efeito,
Da mentira o pleito
Jamais vai depois ser de nosso agrado.
Ascender
Enquanto houver conflito interior,
Enquanto alguém se não pacificar
Dos próprios opostos com o teor,
Ascender não vai lograr
E então as novas gerações
Continuam a sofrer de tais senões.
Superar um conflito é compreender
Que o mundo é feito de opostos,
Crer,
Por mais contraditórios que sejam os rostos,
Por mais abrupto que o real possa surgir,
Que os opostos podem coexistir.
No dia em que tiveres gosto
Em acreditar
Que o diametralmente oposto
Pode coexistir no mesmo lugar,
Que podes ter as tuas opiniões
E os mais verem o mundo doutra maneira
Sem haver questões
Por cada qual lavrar na sua leira,
Quando deixares de julgar que estás certo
E o outro, errado
E entenderes, desperto,
Que são dois pendores do mesmo lado,
Duas formas de ver a vida
Na igual subida,
Dois contrários que enfeixo
No mesmo eixo,
Que um não é melhor
Que o outro nem pior,
Pois na vida cabem as duas vias
E tantas mais que nem sonharias,
E todas para as metas
Desejáveis,
Requeríveis,
Estão correctas,
São viáveis
E possíveis,
Quando tu mesmo em teu peito
Deixares coexistir emoções antagónicas
Só porque existem desse jeito
E não harmónicas,
Sem te julgares
Nem achares
Que uma é melhor
Outra, pior,
- Quando atingires esta altura,
O conflito em ti já não figura.
Pronto estás para ascender,
Para te soltar das limitações,
Trepar ao céu que te escolher,
Viver doutra energia nos clarões.
Irás prosseguindo
Então tuas viagens,
Evoluindo
Para mais deslumbrantes íntimas paragens.
Perdas
Todas as perdas a que estás sujeito
São
Para retirares a atenção
Do que fora de ti corre no leito,
A fim de te concentrar
No que em teu âmago tem lugar.
Não é para te alheares
Do exterior,
É para deixares
Que teu imo te dite
Cada pormenor
A que a vida te concite.
Atento à tua essência,
Sozinho ou acompanhado,
Feliz ou contristado,
No trabalho ou na licença,
- Cumpre-lhe a apetência.
Ao deixar
Aos parâmetros de tua vida
Teu âmago ditar,
Como esta é a medida
Em ti do Universo
Com que comunica,
Quem deveras, ao fim, aplica
Os parâmetros, adequado e terso,
É mesmo o Universo em tua lida.
Ora, quem os segue
Não se confunde no que prossegue.
Se isto for o que tiveres em ti,
O resto ocorrerá por si.
Compreender
Podes compreender
Tudo o que o céu te disser.
Quando cuidas que não se entende,
É que tua mente não compreende,
Mas tua mente não és tu,
É teu ego, duro e cru.
Ora, ele não quer compreender, de certeza,
Do céu a inteireza.
O céu, apodando-o de tolo,
De tua vida lhe retira o controlo.
Devolve-o àquilo
De que ele menos gosta:
Ao ignoto, ao incerto, ao sigilo,
Ao risco, ao sonho, a uma aposta.
É o que o ego não suporta.
Por isso tua mente torta
Não pode o céu entender,
Já que entendê-lo não quer.
Tua sensível alma, porém,
Entende-o e muito bem.
Teu âmago, teu ser radical,
Tua energia original
Nem sequer se surpreende
- Entende.
Cria ligação aos céus,
Conexão a Deus,
Cultiva raízes de energia
No que cada palavra lhe diria.
Tudo o que em ti é sublime
Compreende, ama e trepa ao céu
Na mão do céu a que se arrime
Como bordão seu.
E em mais nada, de teu lado,
Anda o céu interessado.
Nem no teu ego, nem nos teus medos,
Nem na tua mente e seus credos.
Cria a ligação pura e ancestral
Com teu ser mais profundo, original,
O mais orgânico, único em mil,
O mais radicalmente vivencial,
O mais subtil.
Aceita-o. Por ele iluminado,
Serás então um iniciado.
Aceita
Aceita a mensagem que vier.
Nem sempre é aquela de que gostarias.
Como o Universo não mente,
As respostas poderão ter
Gosto amargo ou doce nas iguarias
Do que nelas se sente,
Consoante a inaudita
Verdade a ser dita,
O céu irá sempre amar,
Total, a totalidade
De quem estiver disposto a acatar
Dele a verdade.
Perfeição
A perfeição não existe,
Não é, portanto, uma meta,
Objectivo em que insiste
Quem a vida acometa.
Só podes querer chegar
A um acolhedor
Lugar,
Leve e com calor.
Ninguém gostaria
De dar aval
A um local
Que não haveria.
Isto é, porém,
O que a perfeição tem.
É uma atitude de exigência,
Stresse, angústia e depressão.
Demasiada expectativa na ocorrência
Num ignoto chão.
Como não existe,
Ninguém lá esteve nem persiste.
Ninguém
Isto leva em consideração,
Porém.
Tudo quer ser perfeito
E retira todo o valor
Ao imperfeito
Que se lhe anda a contrapor.
Ora, apenas é perfeito o céu,
Apenas o Universo.
Entes de luz alberga de seu
Que são o que o traduz.
O mundo homens alberga,
Imperfeitos, em busca do caminho
Que os erga
A partir do tosco ninho.
Entrando em contacto
Do mundo com a imperfeição
E em conflito com tal facto
Lograrão
Evoluir:
Melhorar hão-de conseguir.
Se o homem fora perfeito,
Não haveria conflito.
Como sem conflito nada evolui, deste jeito
Não
Haveria evolução.
Sem atrito
Superado e vivido
A experiência terrena não teria existido.
Urge viver em paz
Com a própria imperfeição,
Aceitar que ninguém é capaz
De ser perfeito neste torrão.
Faremos
A nossa leira
O melhor que sabemos,
De responsável maneira.
Apenas.
Com tal cariz
Em minhas cenas
Já o céu fica mui feliz.
Aguentas
Aguentas a pressão dos pais,
A pressão dos companheiros,
A dos filhos ainda mais,
A dos chefes, dos dinheiros,
A anónima pressão que invade
A comunidade...
Em nome de que trabalhas
Naquilo de que não gostas,
Aguentas dos pais as malhas,
Do autoritarismo as apostas?
Em nome de quê suportas
As exigências
Tortas
Dos companheiros,
Que nunca nos aceitam inteiros
Em nossas pendências?
Em nome de que é que aceitas
Dos filhos a imposição
De seres progenitor de mãos afeitas
Ao que eles esperam e as mãos lhes dão?
Em nome de que é que aguentas
Uma carreira
Que não anda nem desanda em quanto tentas,
Traiçoeira?
Em nome de quê deixas de viajar,
De andar por aí a fruir
Do que te pode alimentar
Alma no porvir?
Em nome de quê te amarras
A uma vidinha estéril, sem futuro,
Sem perspectiva nem garras,
Sem realização nem apuro?
Em nome de quê colocas
Os teus sonhos na gaveta,
Perseguindo da segurança a meta
Em que nunca tocas?
Em nome de que é que empenhas
Um futuro risonho e radiante
Fruto da energia de que desdenhas
De teu íntimo constante?
Em nome de que é que encolhes
Tua essência,
Abandonas dos cais nos molhes
Teu imo, pejado de ausência,
E cristalizas inerte a magia
De tua energia?
É o que pergunto de boa-fé:
- Em nome de quê?
Atrais
Atrais quanto te acontece,
Cada evento,
Cada momento,
Tudo abanca em tua messe
Atraído pela energia
Que emanamos noite e dia.
Todas as tuas atitudes,
Conscientes ou inconscientes,
Pensamentos a que te grudes,
Actos e reacções presentes,
Qualquer momento teu
Tem uma energia de seu.
Sai-te pelos olhos, pelos poros,
Pelo corpo inteiro para o mundo.
É a força que rega os prados em teus foros
A que o Cosmos responde, fecundo.
Envias tua energia
E o Cosmos te responde, em retorno, em tua via.
Se um dia pararas tudo,
Pararas de agir,
Reagir,
De pensar,
Racionalizar,
De julgar, agudo,
Se um dia apertaras a brida,
Mudo,
E pararas tudo em tua vida,
E ficaras simplesmente,
A seguir,
Quieto, aqui assente,
A sentir,
- Nessa dia
De acontecer
Deixaria
O que te tem vindo a ocorrer.
Esse dia pararia de emanar
Energia consciente,
Para apenas ficar
O que incônscio fora presente,
O que emanas pela estrada
Quando não estás fazendo nada,
Que é apenas memória pura.
Aos centos,
Esta é que traz os eventos
Que tens de vivenciar,
Onde se apura
O que te há-de libertar
(Quando eles contra ti chocam)
Da emoção que provocam.
Depois de limpo o terreno
É que era viver deveras!
Irias, sereno,
Inaugurar novas eras.
Como mudaste a atitude,
Ao recomeçar a agir,
A seguir,
Outro é o efeito, outra a virtude,
Tudo fica claro, limpo e leve,
Vero como nunca esteve.
Se queres mudar de vida,
Eis a trilha a ser seguida.
Chora
Uma criança chora
Para chamar a atenção,
Teme a dor que nela mora,
O aperto no coração.
Chora e o choro chama
A atenção de todos,
É uma vítima que clama,
Julga que responsabilidade a rodos
Pelo desconforto alguém tem,
E, no porvir,
Espera que aliviá-la também
Alguém há-de vir.
Sempre os outros tem em mira.
Bate na mesa e cai,
Mas não se responsabiliza,
Se atira
À mesa culpada que visa
Em tudo o que em dor a trai.
Assim vai andando,
Chorando,
Embirrando,
Esperando
Quem a venham mimar,
Assim a desresponsabilizando
De actuar,
No ninho
Lhe ofertando amor e carinho.
Chorar é o bom porto
Que concebe:
Recebe conforto,
Protecção recebe.
Cresce, porém, a criança
Mas o rumo não se altera:
Adulta, continua a ver se alcança,
Com a queixa, a paga vera
Dos outros, os maus
Que pretensamente lhe encheram
A via dos calhaus
Que os passos lhe tolheram.
É o que leva a que atenção demande
Esta criança grande.
Jamais responde, refece,
Por nada do que acontece.
Não quer ver que apenas atrai
O que já dentro do peito
Lhe mora e vai
Moldando o jeito.
Quem violência traz,
Violência atrai atrás.
Os maus não existem, pois.
Os indivíduos,
Os eventos
São atraídos
Por quem sois,
A todos os momentos.
São meios de que o céu dispõe
Para nos fazer vivenciar
O que se supõe
Que teremos de experienciar
Agora, neste lugar.
Em vez de o entender
E de escolher mudar,
A me responsabilizar
Por cada evento que houver
De atrair
E perseguir,
A fim de limpar o peito
De atitudes negativas,
De desculpas e de esquivas,
- Em vez disto tenho o jeito
De passar culpas aos mais,
Lamentar a sorte,
Vitimizar-me de morte,
Às queixas e aos ais.
Para ter atenção,
A criança que cresceu
Deve mudar de tenção,
Ganhar maturidade
No terrirório que é seu,
Tomar em mãos charrua e grade
Na lavoira que haja à entrada
Desta jornada.
Muda, interioriza, medita,
Encontra teu imo,
A verdade a que ele incita,
Vai ao cimo,
Ao amor incondicional,
E receberás toda a atenção
De que tiveres precisão
Na vida real.
Entra
Entra em cada pessoa,
Entra-lhe dentro,
Do imo no centro,
No coração põe-lhe tua consciência que o abençoa,
Nos olhos de cada qual,
Tua mente a colher-lhe o sinal.
A ver como vê a vida,
Este mundo
Como a ti te vê.
Se é um amigo que com tudo lida,
Vê pelos olhos dele o solo fecundo,
Fica aí de pé
E medita na fundura dos lemas.
Envolver-te não temas,
Sai de teu posto,
Abandona as defesas, o insensível rosto.
Vê pelos olhos dos outros então,
Pelos olhos de quem são.
Que desejam,
Que lhes daria melhor viver?
Não com que é que mais confortáveis vicejam,
Mas com mais qualidade
De ser,
Mais tranquilidade,
Mais calma,
Mais alma.
Que fazer
Para virem cá para fora
Na festa de viver
Cada hora?
Podes saber
E ajudar.
É só ver,
A partir deste lugar,
Como corre o mundo quando cada qual nele aflore
A correr para melhor.
Gosta
Gosta das pessoas,
De cada qual,
Das almas delas.
Se não gostas porque não são boas
E têm defeitos por fanal,
Encontra nelas as estrelas.
Encontra o imo de alguém,
Descobre que o atraíste
E ele a ti.
A isto o acaso não convém:
À terra que vos aliste
Ambos vieram, sem frenesi,
Realizar o que quer que seja
Juntos, como o céu almeja.
Havendo que cumprir,
É melhor com qualidade,
Resoluta sinceridade,
A harmonia que se lograr conseguir.
Ama as almas das pessoas,
Ajuda-as a desistir
De às cegas resistir,
Abre o caminho a gestas boas,
Às loas
Que virão,
A seguir,
Da aceitação.
Troquem, amigos, pontos de vista,
Façam alianças pessoais
Nas quais,
A par,
Quando cada um invista,
Ambos se vejam a ganhar.
Como não há dia
Da luz sem o calor,
Não existe alma que não queira harmonia,
Não existe uma que não queira amor.
Triste
Quando alguém de quem muito gostas
Te fizer mal,
Não dês respostas,
Fica triste apenas, como é natural.
Acolhe tua dor a sofrer
Pelas almas que não se logram entender.
Fica apenas triste,
Se for muito triste, chora.
O choro que então persiste
É bem-vindo a qualquer hora.
E mostra tua tristeza,
Explica como dói
E que beleza
Quando de vez se foi!
Convida qualquer alma a abrir
O coração,
Sem mágoa a ferir,
Sem julgar tenção.
O que estraga o relacionamento
É o julgamento.
Não abre o coração alguém
Porque julga o outro, o de além.
E, porque o julga,
Julga que o outro o julga também
E tal mantém
E divulga.
Então fica zangado
E julga mais ainda.
E o círculo vicioso alimenta, acelerado,
Mais sentença advinda.
É o pendor
Do círculo da dor.
Depois de mostrar como te dói,
Pede ao outro para abrir o coração
Por ti,
Para harmonizar o que te mói,
Interiorizar, em ti e nele, cada acção
Por ti.
Dele receberás um favor
Que te revelará o outro como ele for
Em si.
E vais agradecer
E que há quem opere algo por ti
Irás então para sempre saber.
Aí
Vais receber
E de novo agradecer.
E os outros i-lo-ão sentir
E farão mais ainda
Ao teu encontro ao ir.
E mais agradeces cada vinda.
É o trilho que te leva ao que te agrade,
O círculo da felicidade.
Tango
Descobre o tango que outrem dança:
O oprimido é já oprimido
Antes que o opressor o alcança
E o opressor já o é antes de o ter atraído.
Para quem vê de fora,
É incrível
Como alguém oprime a toda a hora
E fica impunível.
É que eles encaixam na dança
A dois,
Pois
Sozinho ninguém o alcança.
É só entender
A lógica de cada um,
Em cada dois há-de sempre haver
Algum
Campo que converge
E outro que diverge.
É do livre alvedrio
Escolherem a área boa,
Onde arde de luz um fio,
Para partilhar a vida que se lhes doa.
Mas podem escolher
O campo de escuridão
Que os une num pendor qualquer
E multiplicá-lo até à exaustão.
Todo o entendimento ou nenhum
É escolha de cada um.
Para lograres entender
De cada um os pólos,
O tango desvenda que houver
Na dança de espertos e tolos,
Basta desmontar
Que lado é que tem lugar.
Quando cada um entende
Que doutrem encaixa nas limitações
E que para sair delas tende,
Talvez consigam depois,
Os dois,
Com as intenções
Acordadas,
Sair de lá de mãos dadas.
Energia
Que energia te faz avançar,
A do amor ou a do medo?
É este o único par
Que mexe da matéria no segredo.
E a única atitude a ter
É escolher.
Escolhes o amor
Ou escolhes o medo,
Escolhes da luz o fulgor,
Ou da escuridão o degredo.
Se tens saudade de alguém,
Evoca-o com amor.
Se doer, mesmo na dor
Podes amá-lo ainda também.
Quando sofres pela falta,
Pela dor de o não ter,
É o teu medo, em alta,
A te tolher.
Medo de o não ver jamais,
De o perder.
Ao invés, se pelo amor incondicional vais,
Pensa apenas em quanto o amas,
Embora longe esteja,
Noutras tramas
Se veja.
Sente o amor
Profundamente,
Frui-lhe o fulgor
Somente:
O peito enche-se de luz,
A tristeza se esvai.
O manto de negror
Que te reduz
De teus ombros cai.
Quando estás triste, magoado,
Infeliz, angustiado,
É o medo.
Medo de sofrer que te põe quedo
E rejeitas a dor
Que o evento te vier propor.
E rejeitas o evento.
Mesmo aí, porém, podes escolher
O amor como teu intento.
Cuida que o que ocorrer
É um veículo mero
Para as lágrimas de teu desespero.
As lágrimas estariam há muitas jornadas
A pedir para serem derramadas.
Eis a oportunidade de chorar,
De uma dor acaso muito antiga
Vivenciar
Num mistério que nosso imo mal lobriga.
Como escolhes o amor,
Amas a consciência que tens hoje
De que os eventos tristes têm a cor
Do luto antigo de quem doravante já não foge.
Fazes o luto,
Amas a consciência,
Amas o Cosmos que te traz tal produto,
Amas-te por entender tal ciência.
Amas os Céus
Por te ensinarem os parâmetros seus.
Jesus
Quando Jesus por aqui andou
A espalhar a Mensagem
De amor, paz, fraternidade
E solidariedade,
Muito escândalo rebentou,
Muitos reagem
Aceitando e seguindo,
Muitos mais O ignoraram,
Até maldisseram,
Fingindo
O que não eram,
Houve os que O esbofetearam
E tantos Pilatos que as mãos lavaram,
Houve quem O provocasse
E chicoteasse.
E houve quem O amou
E perdeu
E a perda tanto doeu
Que até hoje perdurou:
Há quem jamais recuperou.
Ora, se olharmos bem,
Tudo isto ocorreu
Do lado de fora, do que nos vem
Da matéria, do que nela se percebeu.
Uns riram-se de Jesus,
Outros choraram por Ele,
Mas ninguém à própria luz
Fez nada por que ela apele:
Ouviram dEle a palavra,
Não a transformaram na sua própria lavra.
É por isso que Ele volta,
Dentro de cada qual luz à solta.
Quer que em nossos transformemos
Dele os termos que entendemos.
Jamais como um homem vem,
Com a forma da matéria.
De olhar para fora não vai ter ninguém,
Para reparar na mensagem sidérea:
Como energia advém
A incendiar corações, feliz e séria.
Quer entrar em teu coração
E, ao levar-te a olhar para ela,
Vais olhar para dentro de ti
À janela
Do desvão
Onde o Infinito te sorri.
Ouvi-Lo-ás dentro de ti,
As palavras dEle são tuas,
Os pensamentos, teus.
Ao amá-Lo vais amar-te em tuas ruas:
- É o maior milagre dos céus.
Queres
Queres coisas desde criança.
Quando pequeno, eram muitos amigos,
Não ter aulas nem ser chamado, abrigos
Da ribalta contra a dança.
Em adolescente, era a paixão
Que querias correspondida,
Mais ser livre em próprio chão,
Sem os pais a pôr-te a brida.
Em adulto, é um bom emprego
E ter dinheiro
Mais um patrão que, em sossego,
Tudo pague por inteiro.
Quanto mais a vida passa
Mais coisas teu braço abraça.
Queres ser reconhecido,
Diferente,
Que te aceitem, bom partido,
E te aplaudam logo à frente.
Crês que pode acontecer
A quem do poder tem as dragonas:
É o que então irás querer.
Tudo quanto ambicionas,
Quanto teu ego deseja,
São máscaras, matrafonas
Do seguro que se almeja.
Não aguentas inseguro
Te sentir,
É um aflitivo apuro,
Doloroso, sem porvir.
Arrastas contigo memórias
De antanho,
Tiveste do poder glórias
De segurança com ganho.
Ou não tiveste poder
E difícil tudo veio a ser.
Crês que o porvir
Se alcança
O poder ao perseguir
A tapar a insegurança.
Como tudo isto é memória,
O poder que se lograr
Não satisfaz, é vanglória,
Ilusão a se mascarar.
É que só procuro ganho
Num poder conforme ao de antanho.
Então
Cresce a insatisfação.
Quanto maior o poder,
Maior a insatisfação,
Já que este não devia ser
O poder que tenho à mão.
Vim à vida para prescindir
Dum poder tal,
Dele a memória elidir
Visceral,
Para harmonizar o excesso de outrora
Com a restrição de agora.
Quão mais tal poder perseguir
Mais impotência irei atrair.
Quão mais aceitar toda a vivência
De impotência,
Por mais que doa,
Mais uma pessoa
Da própria essência se aproxima,
Da energia original,
E mais segura, neste clima,
Se irá sentir, afinal.
E mais se aproxima
De quem olha por ela lá de cima.
Ligações
Nunca das ligações te esqueças.
Cada ser que te cruza o caminho
Tem alma com que tropeças,
Da tua ligada à brancura de arminho
Algures na imensidade
Da eternidade.
E há-de ter,
De ti a par,
Algo a te dizer
Como jamais outro qualquer,
Algo a te ensinar.
Combinaram lá em cima
Que um com o outro iriam
Aprender o que deviam.
E há um ser a que se arrima
Mais teu imo, ali ligado
Mais que a qualquer outro lado.
Vem ser o companheiro
De todas as horas,
Dos bons e maus momentos sinaleiro
Onde te demoras.
A função
A que se apresta
Das almas a junção
Será esta:
Irem os dois, lado a lado,
O caminho a percorrer.
Apenas o fado
De ser.
Dois trilhos de pegadas numa estrada,
Mais nada.
A trocarem energia,
A partilharem experiência,
Sem dum ego a gritaria,
Sem defesas, obstruções nem carência.
Serão dois,
A partilhar um caminho,
Pois.
E já nenhum vai sozinho.
Qualquer alma é quem é
E na doutrem respeita o que for.
Apenas isto a ter de pé
E como é um ror!
Nem sempre, porém, chegarão
A tal nível de evolução.
Há muita defesa,
Muita resistência,
Muito ego de que cada qual é presa.
O caminho perde a evidência,
Não o logram ver
Nem ver na trilha
O outro que o partilha,
Nem a si próprios se verão sequer.
Neste caso, a seguir,
Estas almas não conseguem evoluir.
Até podem viver juntas,
De nada adianta.
Não há emoções nem perguntas,
Nenhuma comunhão se implanta.
Não há partilha,
Apenas dois corpos a pisar uma trilha.
Repara, ao invés, noutrem tal se fora apenas alma,
Retira-lhe o corpo, a roupagem,
As defesas que lhe mentem calma,
A resistência que lhe tolhe a viagem,
Retira-lhe o apego,
O ego.
Verás que então se reduz
A luz.
Faz o mesmo contigo,
Retira tudo,
Reduz-te da luz ao abrigo
Sortudo.
Então,
Desavenças, tristezas, ressentimentos, mágoa
Não são
De alma nem luz nem água.
São do corpo, da matéria
Que tem medo.
Qualquer alma enclausurada na miséria
Dum corpo que a luz não tem por credo,
Agrilhoada no cofre,
Sofre.
Quando encontrares alguém,
Retira-lhe da matéria tudo,
Tenta sentir-lhe que alma tem,
Sente-lhe da luz o brilho agudo.
Olharás de forma diferente
Para as pessoas.
Alma nelas sentirás urgente,
Comunhão, cantarás loas
À partilha do caminho
Onde antes ias sozinho.
Vais sentir a energia nos braços teus,
Sentirás Deus.
Voz
Poderás ser a voz de Deus na terra.
Não serás o primeiro
Que a tal se aferra
Nem o derradeiro.
Serás, porém, uma voz importante
Na medida em que em tuas lavras
Entendas a relatividade inebriante
Das palavras.
Serás a voz, não pelo que disseres
Mas pelo que sentires.
No teu imo ao conferires
O que queres
E vires,
Serás Voz na medida
Em que, ao sentir profundamente,
Consigas emanar na vida,
Resplandecente,
A luz
Em que o Todo se traduz.
Na medida em que fizeres, cada dia,
Os mais sentirem tua energia.
Na medida em que ajudares o que os conduz
À sua própria luz.
Não são do que disseres os matizes,
É a postura que colocas no que dizes.
É a luz que acender
Tal dizer.
É a emoção a fertilizar os ermos
Provinda de teus termos.
Podes ser a voz de Deus no mundo,
Não pela importância que te traz,
Mas pelo compromisso que te requer, fundo
E capaz.
De Deus para na terra ser a voz,
Terás de a ter em ti, antes e após:
A voz Dele, a energia,
A atitude neste chão,
A luz que dEle emergia,
A inspiração.
Para ser na terra a voz
Urge sentir todos os laços e nós,
Como sentes o arrebol
Dum dia de sol,
Como sentes a dor infligida
A qualquer alma traída,
Como sentes a imensidade
Do tempo, do espaço, da eternidade...
Ser humano, porém, é limitativo.
Mas treina, medita, opera,
À tua energia original acede, decisivo.
Deus aguarda ali, à tua espera.
Protegido
Sentir-me protegido
É contar com Deus,
Contar com o Além, às alturas subido,
Para na passagem me ajudar, rasgando os véus.
Por onde a vida passa,
Pelo que eu passar na vida
Contarei com ajuda de graça
Na subida.
Lá de cima
Muito podem orientar.
Conta com eles para te guiar
Em cada clima
A respirar,
Em cada caminho
A tomar
Das agruras no cadinho.
Tudo o que tocares fora de ti
De dentro de ti tem de sair,
Ou não tem utilidade em si
Para apontar ao Infinito no porvir.
Embebe teu caminho do céu com a luz
Para haver tempo de tua luz brilhar.
Vai lá acima, em perguntas te traduz,
Entrega cada tema, cada conjuntura e lugar.
E sente deveras
O rumo do vento por que esperas.
Cá em baixo, subtil e devagar,
Ele é quem te irá guiar.
Cada conjuntura
Tem uma energia,
Uma postura
E a magia
É contar com o Além a te guiar
Para onde poderá correr
O que te transmudar
Numa maravilha qualquer.
É que estamos aqui
Para nos transformarmos.
Vós todos, protecção pedi
E o caminho intuí!
É bom adivinharmos
Que, com a bênção dos céus,
Um homem, fecundo,
Vai até ao fim do mundo
Com os passos de Deus.
Estrutura
Há uma velha estrutura a pesar,
A travar quem queira ir,
Não te deixa avançar,
Evoluir.
Tal estrutura é o malfadado
Passado.
É quem foste naquela hora,
O que sentias,
O que pensavas outrora
Ao calcorrear tuas vias.
Acúmulo de conceitos,
De julgamentos de acção,
De preitos
À vitimização.
Desfiar de culpa, medo,
Ressentimento, desassossego.
Todo o peso que não confere
Com quem és hoje
Mas que ainda aí está e te fere,
Pronto a explodir.
Nunca foge,
Antes seus valores fará sentir.
Livra-te do passado,
Não és hoje quem eras antes.
Tudo muda acelerado,
Aproveita os instantes.
De quanto é inerte
Tenta desprender-te.
A cada acção,
Pressentimento,
A cada situação,
Investe no novo elemento
Em que te vens tornando,
Com nova consciência,
Novos valores de comando,
Nova forma de pensar, nova essência.
Que sejas tu, de pé,
Que em ti se aloje.
Quem és, sê,
Hoje!
Pode não conferir
Com teu passado existencial.
Estamos na era do devir,
Não faz mal.
Um dia acordarás,
Olhar-te-ás ao espelho
E verás
Como do ser velho
Que baste
E que te mente
Noutro luminoso te tornaste,
Infinitamente.
Dádiva
Se reparas que nada é teu,
Que, quando vens à terra, nada tens
E, quando dela partes, nada levas,
Que, por direito, nada jamais te pertenceu,
Tudo o que te chega é uma oferta de bens
Que a vida te faz, luz nas trevas,
- Vais começar a olhar da vida a esteira
Doutra maneira.
Se cuidas que vai acontecer
E não acontece,
Se esperas que um caso vai correr
Num sentido que depois lhe falece,
Deixando-te frustrado
O resultado,
Se queres os eventos de certa forma
E eles teimam em obedecer a outra norma,
Se queres alguém a reagir num pendor
E outra é a ladeira por onde for,
- Com teu querer sumido
Findas desiludido.
Não era assim que esperavas
O jogo em que entravas.
Porém, se nada é teu nem ninguém sequer,
Como podes querer?
Como cuidas que podes manipular
A teu bel-prazer o que se te deparar?
Porque julgas que a vida toma a peito
O que te dá mais jeito?
É a vida que te dá tudo,
Desde o ar que respiras
Ao que vestes, do interior ao sobretudo,
Os filhos que tens e por que aspiras,
Os amigos, a educação,
Dinheiro, emprego, qualquer relação...
Já reparaste na quantidade
De pessoas e bens
Com que a vida te agrade
E que deténs?
Porque é que, com falta de ar,
Ficas a olhar
O que não tens?
É que, em teu apego,
Querias ter.
Ora, querer
É apenas ego.
Crês-te com direito a coisas incontáveis,
Mas em nome de quê?
Quem tas deu, as coisas desejáveis?
Quem com falcatruas,
À falsa fé,
Te convenceu de que eram tuas?
Foi teu ego que te encheu
A cabeça com a ilusão
De que é direito teu
O teu quinhão.
Ora, ao invés, esquece tudo,
Desliga-te até ao ponto zero.
Dono de nada é o que és, sobretudo,
Já que tudo é da vida, o dono vero.
Agora, devagar,
Tudo o que a vida já te deu
Começa a percepcionar,
O dom do céu.
Começa a ver, uma a uma,
Cada coisa, cada indivíduo, cada emoção
Que a vida disponibilizou, em suma,
Para pôr-te à mão.
E tenta sentir gratidão
Por tanta coisa já recebida
Em que, afinal, se resuma
Tua vida.
Deixa, com jeito,
A gratidão crescer no teu peito.
Jamais, nesta joeira,
Verás a vida da mesma maneira.
Depender
Não depender é o segredo.
A meu imo um dia findarei tão fundido,
Sentir-me-ei tão preenchido,
Tão satisfeito e sem medo
De minhas emoções,
Tão realizado por findar liberto
De tentar ser o que aos sacões
De mim esperam decerto,
Que, finalmente, em meu íntimo sigilo,
Me sinto tranquilo.
E a minha vida, serenamente em seu fito,
Ruma ao infinito.
Já não desejo nada,
Não tenho sonhos?
Tenho desejos de enfiada,
Ânsia dos medronhos
Dum pomar
Que há-de haver noutro lugar.
Tenho ânsia de que tudo esteja
(Conforme o que se deseja)
A melhorar.
Então que é que mudou,
Qual a diferença de quando desejei
Tapar o buraco que em mim se cavou,
Sentir-me seguro com pé no que terei,
E agora que, depois de aceitar,
Ainda quero o que houver cá neste lugar?
É que cortei a dependência:
Agora, que me sinto completo,
Para ser feliz com evidência,
Já não preciso daquele tecto.
Para a plenitude que ando vivendo
Já de nada dali dependo.
Se as benesses vierem, que bom!
Gostarei delas.
Mas delas já não depende a emoção,
A vazia sensação
De não poder aguentar as sequelas
De, por fim,
Não virem até mim.
Penso no que quiser
E, depois, no que irei sentir
Se o não obtiver.
Se me sentir bem apesar de o não fruir,
Se me sentir tranquilo,
Já não dependo emocionalmente
Do que houver fora de meu silo,
Fora de meu íntimo, de meu ente.
Porém, se ao pensar
Que nunca terei acesso
Ao que desejar,
Ficar possesso,
Deprimido,
Como se o mundo tivera acabado,
Cuidado!
Meu imo está vazio de sentido,
Minha interioridade chora.
Ando morto por entre vivos:
- Preciso, sem demora,
De cuidados intensivos!
Medo
Tu queres, mas tens medo,
Medo do risco,
Do fim do sossego,
Medo do mergulho fora do aprisco,
Do ignoto no pego.
Entende então porque é que queres,
Porque precisas que o desejo se concretize.
É ser aceite que requeres
Ou ficar seguro é o que teu anseio vise?
É para ser feliz,
Para erradicar a insatisfação de raiz?
Nada do que vem de fora
E que te ilude
Te poderá trazer, em nenhuma hora,
A plenitude.
Sempre que algo desejas
Porque te sentes mal,
Arranja forma de que te vejas
Sentindo-te bem, no final.
Trata de ficar melhor,
Medita, faz terapia,
Trepa ao que superior em ti for,
Chora,
Explora
Qualquer via
Quando interiormente o que dela vem
Te fizer sentir bem.
Quando tiveres melhorado,
Te sentires feliz,
Equilibrado,
A ti próprio diz
Então:
- Ainda quero avançar com esta acção?
Se a resposta é negativa,
Querias uma acção de fora
A ver se internamente te melhora
Tua frágil alma esquiva.
Não iria resultar,
Andavas a fugir
Da fundura do lugar
Donde a questão vinha a surgir.
Se te obrigas a ficar bem
Com meditação,
Interiorização,
Reajustando a postura interior
Um pouco mais além,
Estás a validar o teor
Do teu
Mais elevado apelo do céu.
Tudo se cura de denttro para fora,
Do interior para o exterior,
Seja o que for,
Seja qual for a hora.
Jamais o itinerário
Será o contrário.
Com teu não
Livraste-te duma estéril acção
Que de nada iria servir
Senão para teu tempo veres partir.
Se a resposta, porém, for sim
Apesar de estares bem,
Se ainda queres desvendar novo confim
Mais além,
Então é uma intuição,
Rasgaste o véu,
É uma comunicação
Com o céu:
Aquilo confere, radical,
Com tua energia original.
Podes avançar,
Por mais difícil que seja a jornada
Nunca te há-de afastar
De tua própria estrada.
Seja o caminho qual for,
Irá participar
Dos férteis rebentos de tua vida interior.
Pêsames
Os meus pêsames por ainda não saber quem sou,
Por não me ouvir,
Por não me respeitar nem respeitar por onde vou,
Por me iludir.
Iludir-me com o que cuido que serei
Ou gostaria de ser,
Cosmética que me dei,
Uma mecânica qualquer
Sem alma,
Sem imo
Na fundura calma
Nem no cimo.
Nunca interiorizar
Faz-me mais mal
Do que algum dia poderei imaginar,
Afinal.
Não ir aqui dentro,
Ao meu peito
Onde um coração bate ao centro,
Donde jorram sentimentos em rio sem leito.
Nunca entrar em contacto com meu imo,
A fundura de meu ser,
Não tocar de meu âmago o cimo,
O abismal e luminoso que mora
No íntimo de quenquer
A toda a hora.
Nunca ouvir minha voz interior,
A que traz da vida eterna
O chamamento e o vigor
Da vida que não morre, tísica,
Na caverna
Física.
Não mergulhar na profundeza de minha vida
A ganhar discernimento espiritual
Do que é bem e do que é mal
Para mim, à minha medida.
Nunca olhar para além,
Para o Infinito,
Nunca lhe entregar, como a uma mãe,
Nada para ele cuidar e proteger neste meu grito.
Nunca lhe fazer perguntas
E olhar para a vida depois
À procura de respostas que, ali juntas,
Brilham como sóis.
Ao não fazer nada disto
Farei o céu chorar,
Amargo, no que existo,
Larvar.
E o céu tem esperança
De que, sofrendo eu de insatisfação,
Ignorando o porquê do que me alcança,
Não me sentindo amparado
Nem protegido quando tombo no chão,
Sentindo o nó no peito que nunca é desatado,
Um dia venha a olhar
Para o Além que me chamar.
Aí, então,
Irei sentir o calor
Dum vulcão
De amor.
Risco
Maior risco
Pode atrair,
Como um isco,
Maior recompensa, a seguir.
Cada risco que correr teu passo
Em busca de vitória
Tanto pode redundar em glória
Como em fracasso.
Nada depende ali
Do resultado
Mas de como o risco for por ti
Encarado.
Se avanças de fora para dentro,
Calculando o que te irá trazer,
Se teres controlo é teu centro,
De antemão
A rever
Proventos que daí advirão,
Se avanças embrenhado
No resultado,
Não vai ocorrer,
Não te colocaste na acção
Mas no proveito em questão.
O foco de teu apuro,
Entretanto,
Está no futuro,
Portanto.
Tal futuro não é teu,
Não adianta que o pressiones,
Que o prevejas, sábio ou sandeu,
Que o controlem teus gestos insones.
Como tua expectativa tens alta,
Quando o real te piora os resultados,
Sentes a falta,
A desilusão dos condenados.
Ao invés, quando arriscas, porém,
Por uma inspiração
Que de dentro te vem,
Quando, do presente no chão,
A vida te pede
Que arrisques, então
Cede.
Quando estás tão centrado
Que nem te ocorre
Fugir do risco
Para algum lado,
Então corre,
Salta do aprisco.
Quando entendes que a comunidade de que és fruto
E cada um dos que a compõem
Não devem viver nem mais um minuto
Sem aquilo de que teus actos dispõem,
Quando tens vontade de arriscar
Pela faísca interior, povo do céu,
Para ela melhor chegar
Ao que cada qual melhor tiver de seu,
Se teu arriscar abrir caminhos,
Iluminar almas na noite escondida,
Confortar corações sozinhos,
Der rumo à vida,
Emocionar alguém,
E te fizer feliz também,
Avança, está na tua hora,
Tudo se conjuga e harmoniza,
Arrisca sem demora,
Divisa
Que sempre os bons e grandes riscos
É que construíram o apuro
Das grandes pontes com os iscos
Do futuro.
Sensibilidade
Activa a tua sensibilidade,
A maior,
Para te aperceberes de tudo quanto te invade
Em teu redor.
Para captar os sinais,
Para que entendas que não são visíveis
Porque ocorrem, antes de mais,
No teu interior,
Discretos mas indefectíveis.
Apreende tudo com tua sensibilidade-mor,
Chora,
Se preciso for,
Mas da emoção daquela hora
Nem sempre o choro é de dor.
Activa a máxima sensibilidade
Para apreender
O que estiver a ocorrer
Porque, na verdade,
Está para além das palavras,
Dos sons, das formas.
De energia pura são as lavras
Onde arroteias aquilo em que te traansformas.
A sensibilidade, pois, activa
E aceita.
É um dom, embora seja esquiva,
A esconder-se atreita.
Quando como sensível te reconheceres,
Vai lá acima,
Trepa ao mais alto que puderes,
Acolhe das alturas o clima,
A energia que te abençoa.
A vida e seus impérios,
A partir daí não mais à toa,
Deixará de ter mistérios.
Integrado
Integrado no grande espírito do Universo,
Decidiste encarnar-te, raio de luz.
No corpo dum bebé serias o reverso
Que um outro mundo aponta e traduz.
Ao viveres num corpo autónomo, porém,
Esquecerias tudo.
Do esquecimento o manto que advém
É implacável e mudo.
Só um nada te é pedido
Que não esqueças jamais:
Podes ignorar o convénio urdido,
Falhar a missão por demais,
Bloquear as emoções, a seguir,
Nem chegar a evoluir...
Teu limite singular
A isto se reduz:
- Não deixes apagar
Tua luz.
Tudo pode ocorrer,
Que tudo vague
Até pode ser,
Não deixes, porém, que ela se apague.
Ficarás cego, surdo e mudo,
Mas não te esqueças do essencial:
Fazer tudo
Ao alcance de teu fanal
Para nunca, nunca deixar
Tua luz apagar.
És
És emoção, és mente, és acto
E, por trás de tudo, és tu,
Unificador espírito do todo, cordato,
Alma da fundura a nu.
Apenas atinges a harmonia
Se equilibras em ti as três vertentes.
Tal não é, porém, teu dia-a-dia:
Nos homens mandam as mentes,
Os outros lados
São por este controlados.
Quando estás triste,
Pensas: - ”Que disparate!
Não sei porque tal tristeza existe...”
E tentas acabar com o dislate.
Manipulas a emoção presente
Com tua mente.
À dor ordenas que deixe de doer,
Já que a não logras entender.
Bloqueias teu fluir emocional
Que te iria levar,
Afinal,
A algum lugar.
Quando sentes o chamamento,
A energia das profundezas a iluminar,
Quando as coincidências te dão alimento,
Quando a vida te desfila a par
Com cada evento
Inusitado,
Iluminado,
Quando sentes a luz,
O Deus que em teu imo se te traduz,
Logo cuidas que andas a inventar,
A alucinar.
E cortas
E travas
Tuas portas
Da sensatez com as clavas.
É tua mente a impedir
Teu coração espiritual
De conseguir
Manifestar o sinal.
Porque és energia
E a energia se manifesta.
Por cada pendor derivaria,
Que a todos se apresta.
Não deixes que a mente domine,
Harmoniza.
Pensa bem no que te define,
Que nada ao mais imponha a própria baliza.
Sente
E o que sentes respeita.
Intui o que te vem dalém da mente,
Segue tua luz a mil surpresas atreita.
Serás harmonioso,
Equilibrado,
Serás feliz no gozo
Dum fascinante outro lado.
Verso
O espírito do Universo
Do fundo de mim
Declama o verso
Dos que cruzaram a fronteira do fim:
“Já te disse alguma vez
Que te amo,
Que sinto o que sentes, choro o revés
Como a vitória aclamo?
Que tenho saudades de ti,
De te ter ao pé de mim?
Que tua falta me retalha a bisturi
E sem tua luz é noite em meu confim?
Nunca te contei o que vivemos juntos
Cá em cima, antes de encarnares.
Foram tantas vivências, tantos assuntos,
Quando fundidos nestes outros patamares!
Cá em cima o que sempre senti
É que nada é o mesmo sem ti.
Não é o mesmo sem teu brilho,
Sem tua vontade de descer à terra
A encarnar o trilho
Que a tua missão descerra.
Aguardo o teu regresso
Para descansares do sofrimento
De dar à luz o processo
Do mundo novo em crescimento,
Para brincarmos juntos outra vez,
Brilharmos como jamais alguém o fez.
Espero que demores muito ainda na terra,
Só Deus sabe quando virás,
Mas sabe que alguém cá em cima se te aferra,
Fazes falta à leira de nossa paz.
Fico à tua espera,
Demore o tempo que demorar,
Para, no fim de tua era,
Nosso abraço do luz compartilhar.”
Consegues
Se não consegues o que tens de fazer
Por respeito pelo que és,
Fá-lo primeiro pelo Deus que em ti houver,
Por quem talhou o trilho de teus pés,
Pelo amor incondicional que por ti tem
Como por quantos como tu que à vida advêm.
Primeiro faz para ti, por eles.
Depois, ao começares a sentir
O vento da mudança que impeles,
Começas a entender o porvir.
Vais começar a render-te.
É a parte
Solerte
De a ti próprio encontrar-te.
Desde que sejas livre, fiel a ti.
Ama-te Deus, sente o que sentes,
Sofre o que sofres aqui.
Apesar de saber de todos os entes,
Por ti não pode escolher
Nem te pode aliviar
Do sofrimento que houver
A suportar.
Ama-te por te responsabilizares
Por tua vida, por tua energia,
Por reparares
Que a conjuntura que te desafia
Provém de pendores
De escolhas anteriores.
Ama-te por te entregares ao céu
E ao teu coração,
Despenalizando o resto, mero véu
Sobre um desvão.
Por sentires ama-te
E por O sentires.
Devém ciente desta relação e conclama-te
Para neste acordo prosseguires.
Depois começarás a habituar-te
A fazer para ti por ti.
É o tempo do âmago, destarte,
Da infinita fundura que em ti vi.
Tudo volta a fazer sentido
E compreendes, de assentada,
Por aí,
O motivo escondido
Da longa, longa estrada
Que te trouxe até aqui.
Aparte
Quando te olhas todas as manhãs
E tentas aceitar-te,
São do amor os afãs
Por Deus, neste aparte.
Quando te alimentas adequadamente
Para teu corpo não adoecer,
É teu amor presente
Pelo Deus que em ti houver.
Quando te ofereces
Pequenos presentes
Porque tu mereces,
Porque Ele merece, entrementes,
Que mereças as benesses,
É teu amor secreto
Pelo Deus que mora por debaixo de teu tecto.
Quando atinges a maioridade do ser,
Quando O atinges nas alturas,
Quando com Ele sonhas um sonho qualquer
E Lhe sorris no que configuras,
É o teu amor
Pelo Deus que for.
Sente apenas por Ele
O amor que te impele.
Cada lagoa que olhas
Ele, afinal, é que antolhas.
Cada pôr-de-sol,
Cada estrela cadente
Que contemplas no rol
Que o êxtase te acrescente
É a maneira de Lhe oferecer
Um pouco de tal prazer.
Cada memória que tens, tem-na por Ele,
Por Ele faz quanto fizeres.
Quenquer que abraces mais fundo que a pele,
Cada olhar que tocas de prazeres,
Por Ele o faz,
Por Ele ama
Como Lhe apraz
No que te aprouver do amor a trama.
Deus não pode estar aqui
Mas sente a matéria por cada um de nós,
Por quenquer que honre o que sente em si,
A sós,
E que vê o coração voar
Rumo às alturas, autêntico e singular.
Cada vez que te aproximares
Fá-lo por Ele, fá-lo a pares.
Cada vez que, ao amar,
A luz de Deus utilizares
Para viver e contemplar,
Vais sentir-te mais
E mais vais dar.
E o céu e a terra tu vais,
Uno, unificar,
Então,
Por força desta singular
União.
Morte
Não temas a morte,
Tudo se resolve.
A morte é outra vida, doutra sorte,
Transformação da terra quando em céu se volve.
Aprendizagem e transformação,
Esforço e convicção
São parte soberana
De qualquer alma humana.
Cada dia que corres
Pelas horas que se te descontem
É um dia em que morres
Para o dia de ontem.
E nasces para o afã
Do dia de amanhã.
Que te aterra
Da morte no véu?
Morres para a terra,
Nasces para o céu!
Pára
Pára de O procurar
Na oração,
No altar,
Na procissão...
Ele mora aqui,
No fundo de ti.
Já não é, Aquele que adoras,
Uma funérea imagem.
Está vivo onde em ti moras,
É a tua energia de viagem
No fundão
Duma nova dimensão.
Dimensão que vais ter de explorar
Com um fascínio virginal antigo,
Em particular
Se quiseres estar nEle contigo.
Ele já não mora
Há muito tempo, há muito,
Na dimensão de outrora,
Episódio fortuito.
Já não mora aí,
Pelo menos como Ele quer que O conheças,
Inteiro, intemporal, tão em si
Que em ti o atravessas,
Energético, vibrante, intenso,
Um Eu de luz fulgurante, imenso.
Pára de O procurar fora,
Está sempre aqui
Dentro de ti
Agora.
Sempre que olhares para dentro
Irás vê-Lo
No teu centro,
De teu imo no escabelo.
Entenderás que já
Nos quadros com moldura antiga
Não está
Nem nas catedrais que o peregrino persiga.
Mora aqui
A fazer parte da energia
Dentro de ti,
A ajudar cada dia
A te encontrares, a sentires radicalmente
Quem és nesse abismo em ti presente.
Missão
A missão é de todos os dias.
Muitos cuidam que a missão deles na terra
É grandiosa, fantasias
De paz e guerra.
Outros cuidam que, afinal,
Deverá ser tarefa profissional.
Outros mais
Cuidam que a irão encontrar
Seguindo os sinais
De alertar.
Os sinais, porém,
Não são exteriores,
Nem algo que te advém,
Nem íntimos rumores
Que, de repente,
Te venham à mente.
Um sinal é, sobretudo,
Radicalmente,
Aquilo que alguém, de modo agudo,
Sente.
A verdade é que ninguém
Sabe em absoluto a missão que tem.
Vai-a conhecendo gradualmente,
Que é tão intrínseca, tão no íntimo labora
Que nunca pode começar, devir presente
De fora.
Nunca principia na matéria,
Nasce de dentro,
Nem principia na cabeça, que a mente fere-a,
Tem de vir do coração, quando nele entro.
O requisito primário
É que tem o formato
De itinerário
Em acto.
A busca principia dentro de ti,
A tentares conhecer-te,
A tentares modificar a atitude que haja aí
De modo que te desperte,
A seguir,
Para tentares subir.
Se te comprometes com tua busca pessoal,
Mais cedo ou mais tarde
Encontrarás o teu núcleo, afinal,
O que nas profundezas em ti arde.
E ele ganhará força, auto-estima, confiança,
Irá direccionar-te
Para o que te alcança,
De teu fito
A parte
Combinada no segredo do Infinito.
Devagar
Olharás cada qul nos olhos
Como a ti próprio vais olhar,
Desviar-te-ás dos escolhos
Dando afecto e carinho
A quenquer que te cruze no caminho.
Farás o luto da dor,
A tirá-la de teu peito
Para que o carinho a propor
Ao fingimento não preste preito.
No trilho de te encontrar e dar amor
A ti como aos demais,
Um dia, sem o prever nem supor,
De tua missão estarás no meio dos arraiais.
Então, em tal estrada,
Boa jornada!
Atitude
A missão é uma atitude.
Não é um caminho, a estrada
A que se grude
A caminhada.
Não é uma profissão
Nem implica edificar
No torrão
Onde mergulhar.
Também não é alguém
Nem de alguém um rastro,
Por mais que seja um astro
A iluminar além.
A missão é uma atitude, a postura
Com que praticas o teu dia,
Desde a intimidade
De teu lar à agrura
Da parceria
Na comunidade.
É uma atitude interior que muda,
Subtil, inefável,
Tão fina, tão aguda
Que de fora é quase indetectável.
A pouco e pouco principia.
Leva a olhar nos olhos quem comigo falaria,
A tocar-lhe, abraçar o amigo,
Tratar bem quem se amar, de meu ego ao abrigo,
Nunca a voz levantar
A quem de mim se aproximar...
Tudo isto é fruto
Da interior reconversão,
Conduto
Da missão.
Muitos cuidam que ela há-de ser grandiosa,
Espampanante, portentosa...
Até pode vir a ser
Se ampliares os abraços, os olhares,
O amor a oferecer
A teus pares,
Se criares
Comunidades de afecto.
Aí terás pela frente
A grande missão: o Infinito, sem tecto,
A chamar-te interminavelmente.
A missão não se descobre a pensar,
Revela-se a sentir.
No mais pequenino irás encontrar
O caminho
Para um dia chegar.
E então irás prosseguir
Sendo quem ilumina, adivinho,
Os sinais
Do caminho de todos os mais.
Tornaste
Reparra em quem te tornaste:
És mais carinhoso, tolerante, humano...
O que eras dantes recorda quanto baste:
Fechado, duro, pedra de todo o dano,
Resistente ao íntimo fluir,
Sem devir.
O caminho agreste
Vê quão já percorreste.
Que teu arquivo
Aliste
Quanto, a nível emocional e afectivo,
Já construíste.
Nem tudo ainda pronto está,
Ainda não chegaste lá.
Há, porém, mesmo um lugar
Aonde se chegar?
A matéria é dual,
Jogo de opostos,
Perfeito e imperfeito, afinal,
Persistem, ao espelho dois rostos
Contrapostos,
Como uma fatalidade,
Até à eternidade.
Não se trata, pois, aqui
De ser perfeito
Mas de ser menos resistente ao que intuí,
De meu imo pôr-me a jeito.
É o válido caminho
Para a lonjura do ninho.
Quanto menos resistente,
Mais aberto à emoção:
Chorar quando chorar é ponto assente,
Rir se de rir é ocasião,
Viver cada emoção que alimento
Plenamente
E sem julgamento.
Bem mais longe já estiveste,
Repara em quem te tornaste.
E vê como o céu que acolheste
Robustece cada frágil haste,
Mais forte a se propor,
Cada vez que te vais tornando melhor.
Sensível
À partida
É apenas que fiques sensível
A atitude requerida.
Para que do céu todo o intangível
Pelo teu corpo flua,
Pelo teu íntimo, como jeira
Onde actua
Em terra verdadeira.
Aceita que sensível és,
Pois tal é o cadinho
Onde todos temos de assentar os pés
Para cada qual encontrar o próprio caminho.
É o trilho mais longo,
O trilho mais puro,
Mas nele é que ouvimos o gongo
Do futuro.
Daquele em que ninguém pensou,
Ninguém à vida subtraiu,
Ninguém racionalizou
E assim intocado nas mãos nos caiu.
O roteiro da sensibilidade
Até à nossa extrema profundidade
É o caminho dos anjos que vêm à terra
Fazer avançar as populações.
Ora, não te lembras, perdido em ilusões,
- Mas podes ser o anjo que em ti se encerra.
Receber
O céu não quer receber
O que lhe queres dar
Porque não te dás a ti.
Contudo,
Vais-lhe querer
Ofertar
Tudo
Em teu louco frenesi.
Ora, ele só pode acolher
O que quer que seja
Se através de teu imo o receber,
Do núcleo mais profundo,
Raiz do inconsciente onde viceja
A fecundar o mundo.
Só quer prendas com alma,
Pois só com tua radical alma comunicas
Do céu com o fervor e a calma.
Tudo quanto, porém, por ele pontificas
Não tem alma porque não passa por ti,
Pelo filtro de teu imo,
Ali,
Onde verdeja de qualquer alma o limo.
Aquilo por que estás passando agora
É falta de essência.
O Cosmos joga-o fora
Para olhares para dentro:
Acolhe a evidência
De teu centro.
3
Terceira Estrela
Dá-lhes
Dá-lhes amor,
Dá-o a tudo e todos em redor.
Dá-lhes o amor mais profundo,
Dos abismos do imo,
E verbaliza-o, jucundo,
Corporifica-o da base ao cimo,
Diz quanto amas,
Toca, beija, abraça, fala.
A cada instante olha se o proclamas
Discretamente ou com gala.
Toca quantos cruzarem teu caminho,
Toca e transmite alegria,
Olha e conforta com carinho,
Sorri retemperando a energia,
Ilumina-te e transfunde esperança.
Toda a tua vida se irá transformar
A partir do que alcança
Aquele toque, aquele olhar,
Pelo que teu sorrir traduz,
Por tua luz.
Tua atitude
Faz que um pouco o Cosmos inteiro
Mude,
Um tudo-nada mais leveiro.
Todo ele vai mudar
Porque mudar escolheste,
Um pouco troca de lugar
Só porque a amar te deste.
E o céu, na altura distante,
Acolhe a força do que escolheste emanar.
Deus recebe, a cada instante,
O amor que vens dar.
Embora
Seja o que for que esteja em causa,
Deixa-o ir embora,
Da eternidade à conta. Sem pausa,
Sem demora.
Deixa ir tudo, deixa ir
Cada vínculo, cada pendor, cada relacionamento.,
Deixa partir,
Diz-lhes adeus a todo o momento.
Ao conforto te arrima
De que nos veremos mais tarde, lá em cima.
O tempo não existe,
Encontramo-nos já a seguir,
Mal não os aviste.
O espaço em que aqui nos enlacemos
E nos temos
Não existe,
Já nos vemos.
Deixa ir embora,
Deixa tudo se soltar
Agora
E a toda a hora.
Deixa-o ressuscitar
Por dentro de ti, de nós, do Universo inteiro,
Deixa-o voltar a crescer, fértil lameiro,
Deixa ir, devagar,
Para o céu,
Como devagar pulsa o coração,
Cerra do palco o véu,
Que, finda agora, agora começa deveras a função.
Comigo
Está sempre comigo
A cada minuto de meu dia,
Em minha noite abrigo,
Nos tempos difíceis em que cuidaria
Que estou sozinho.
Não,
Ele é o caminho,
Sempre aqui, dentro do coração,
A envolver-me de energia aveludada e branca,
Um amor telúrico, chão,
Que me alavanca.
Todos os tempos sombrios
São tempos de solidão
E de aprendizagem de trilhos e desvios.
Está sempre aqui
A guiar-me através da intuição,
Ao pé de mim, ao pé de ti.
Dele recebo a orientação
E transmito e vivo o que recebo,
É a nossa secreta comunhão.
Está sempre aqui, sempre esteve,
Mesmo quando O não concebo.
E saber disto, breve
Nos satisfaz
Na partilha duma infinita paz.
Imagina
Imagina que nada esperas da vida:
Recebes o que tem para te dar,
Apenas, de seguida.
A dada altura, ao calhar,
Tudo corre mal:
Entristeces, como é natural.
Não te zangas, pois zangar
É de quem crê que tem direito
E, portanto, toma a peito.
Ora, tu sabes que aqui, na matéria,
Só há direito ao que a atitude íntima conquista.
Mais nada se pode ter em vista.
Se algo de bom é a tua féria,
Como vês que não foste tu, de ti não vem,
Agradeces ao céu que te fez bem.
A gratidão, rompendo a treva,
É uma atitude que nos eleva.
Ao elevarmo-nos, da gratidão nas preces,
Atraímos mais benesses.
Descontraídos e com elegância,
Ainda atraímos mais abundância.
Quando alguém crê que foi quem conseguiu,
Tanto se orgulha, se centra na individual força
Que lho permitiu,
Tanto o ego reforça
Que, sendo este tão limitado,
Do infindo desligado,
Só atrai limitação.
Tudo tende a cair pesado
No chão.
Depois da grande glória,
A grande derrota
É a história
Que comummente o mundo anota.
Por isso, na estrada,
Por norma o verdadeiro escudo
É que quem não procura nada
Alcança tudo.
Ruptura
Queiras ou não queiras,
A ruptura existe
E tem de ser cicatrizada
De adequadas maneiras.
Após, mal o fim dela se aviste,
Tem de ser ultrapassada.
Entramos em ruptura
Quando se esgotaram as possibilidades,
Estamos fora da trilha segura
Ou o tempo do que se visou
De vez passou,
Findaram as oportunidades.
Em todos nós
Já os três pendores romperam laços e nós.
Ora, o que lá foi, lá foi,
Ocorreu, é passado.
Se até aqui se estender, destrói
Do presente o traslado.
O presente e o futuro
Que inauguro
Nada têm a ver
Com um passado qualquer.
O passado,
Enquanto morto e enterrado,
Nada tem a ver
Com quem és ou hás-de ser.
Corta,
Distingue e compreende
O que te prende,
Vergôntea morta,
E o que te rende.
Depois salta em frente.
Avança para realizares em teu fado,
Convictamente,
O que falta ser realizado.
Mártir
O mártir, ao sofrer,
Se cuida estar de Deus mais perto,
Com Ele criar empatia,
A querer
Que Ele se aproxime, num acerto,
Com pena ou compaixão por aquela mais-valia,
Desengane-se, que, enfim,
Nada é bem assim.
Quando estás triste, deves chorar,
Não deves fugir da dor.
É de a encarar,
Fazer o luto do que for.
É chorar,
Deixar vir a emoção
E ao céu tudo entregar,
Num abandono sem restrição.
Retirar a eito
O peso inteiro que houver no peito.
Se o mártir procura a dor
Cuidando que a dor purifica,
Busca-a então, a jeito a se propor,
Visando quão puro ao termo fica.
Deus não agradece
Nem sequer se aproxima.
Quem se martiriza é vítima, desfalece.
Quer atenção, ser mais e melhor que outrem, mais acima.
Quer ser o primeiro a levantar o véu
De chegar ao céu.
Ora, é fácil martirizar-se.
Difícil é tentar ser feliz
No meio da lonjura do disfarce
Que é da terra a matriz.
Todos têm de se tratar bem,
Escolher o que os amplia,
Não o que os reduza a um qualquer aquém.
Quem de si cuida nesta via
Cuida de seu imo, da essência,
E apenas um íntimo saudável
Se abre, por excelência,
Para Deus entrar, interminável.
Sofrer é bom quando a dor é tua
E tu a encaras,
Não de ser mártir para uma qualquer falcatrua
De perversas escaras,
Mas a fim de a limpares de vez:
- Que jamais volte a má rês!
Repara em quem és,
Não no que lá de cima um deus qualquer
Que te impingiram de través
Gostaria de contigo empreender.
Repara em quem de ser gostarias,
Um ser único, original, abundante de vias.
Tal ser que és de raiz
Não iria, em nenhum momento,
Ficar feliz
Procurando o sofrimento.
Culpa
O Céu tem-te dito o que fazer,
Difícil às vezes,
Um impensável qualquer,
Com mil reveses.
Ora é o simples e o singelo,
Ora o complexo, imprescindível.
Tentas corresponder ao apelo
Mas nem sempre o logras, de imprevisível.
E vem a culpa então:
“Não fiz o que deveria...”
E dobras a questão
Bloqueando a tua via:
O problema de não teres feito,
Que é o que teu imo embaraça,
E a culpa a que ficas atreito
Que torna em ti a voz do céu escassa.
Em se, em lugar
De não fazer e te inculpar,
Em cada dia
Buscares a terceira via?
Se é de correr a maratona
E não consegues,
Que é mais desejável que venha à tona
No que persegues?
Não correres nada
Ou fazeres uns quilómetros de estrada?
Aqui, pelo menos, correste
Algo que preste.
Quanto mais correres,
Mais perto do destino final
De teus afazeres
De que o céu te deu sinal.
O impossível
É impossível por enquanto.
Se principias agora a parte atingível
E continuares outro tanto
Amanhã nesse caminho,
Mais perto estarás,
Devagar, devagarinho,
Do objectivo que o céu te traz.
Se não logras ainda perdoar,
Que é por ora um perdão à toa,
Podes acaso com mais amor tratar
A tal pessoa.
Tal amor não te cala
No peito?
Então podes ao menos tratá-la
Com respeito.
Repoisa,
Que podes sempre fazer alguma coisa.
Cada passo rumo à luz
É um passo que levas
De avanço no que traduz
Teu afastamento das trevas.
Acordo
Só podes aprender
O que com tua postura de acordo estiver.
Para aprenderes algo superior
Terás de te abrir
Em teu interior
Ao nível superior que te surgir.
É o que ocorre com tudo,
Até na aprendizagem.
Todo o conhecimento é, sobretudo,
Auto-conhecimento em nova triagem,
Porque só poderás conhecer
O que tens abertura para absorver.
O que à nossa postura não responde encaixado,
Mesmo se alguém o impetra,
Passa ao lado,
Não penetra.
Tens de te abrir,
Escancarar teu coração
E deixá-lo subir
Até à mais alta revelação.
Culpa, julgamento e medo
Fecham o teu coração,
O amor incondicional, em segredo,
Abre-o a um mundo irmão.
Medita,
Vai lá acima,
Encontra-te com a luz que te concita,
Rende-te à luz que te sublima.
Admite que há no céu
Uma luz imensa, protectora e amiga
Que te protege e ajuda em cada macaréu,
Nem sempre no que queres, pois te fustiga,
Mas antes sempre aí
No que for bom para ti.
És protegido pela luz,
Desde que te entregues.
Entrega-te ao que da altura te seduz,
Jamais para amanhã o relegues.
E a tua postura, aberta, subirá.
Irás compreender
Lá
E, por fim, aprender,
Do espanto num grito,
A amplitude do Infinito.
Precisas
Precisas da luz de Deus.
Vai procurá-Lo, para te acalmares,
Nas estrelas dos céus,
Na acalmia dos mares,
Na fúria do vulcão,
Dos campos na imensidão,
Na flor fugaz,
Da chuva no tamborilar breve e tenaz...
Encontra-O na profundeza do oceano,
Das espécies na inúmera variedade,
Procura-O da natureza no variegado pano,
Multicolorido, pela infinidade...
Se O não encontrares,
É que os olhos não te estão aptos para O ver.
Fecha teus olhos larvares
E olha para dentro como um cego qualquer.
Olha para ti,
Vê-te,
Reconhece-te ali,
Ama-te sem topete:
- Deus com certeza há-de estar aí.
Intuição
Faz o que a intuição te diz,
Aprende a entender onde te leva
Esta raiz
Que prenhe de luz brota da treva.
É o grande vento
Da tua vida,
O alimento
E a bebida.
Ela é a voz,
É o comando.
Ela sabe, em vosso encontro a sós,
O que é bom para ti: põe-te a seu mando.
Quando todos pensarem que enlouqueceste,
Que já não controlas nada,
Que teus objectivos já perdeste,
Que os pontos entregaste na jogada,
Que já não resistes,
Que estás fazendo tudo ao contrário,
- Eis que uma luz viste
Crescendo de teu peito temerário.
E a luz é tão forte e poderosa,
Tão concreta e consciente,
Tão tua e tão gozosa
Que, pela primeira vez
Na vida, talvez
Se te torne evidente
O que é, de raiz,
Finalmente,
Ser feliz.
Nada
Tu não tens nada,
Nada na matéria é teu,
Nada, absolutamente, em nenhuma jornada.
Não tens pai nem mãe e o filho as asas já bateu
Do ninho das almas companheiras
Que contigo desceram à terra para partilhar,
Não para possuir, proprietárias onzeneiras.
Não tens filhos, nem família, nem amigos,
Todos são almas, de ti a par,
Almas que se aliam de Além nos abrigos
Para juntas encarnar
Num comum propósito, igual direcção.
Não são tuas, nunca serão.
Nem tu és delas,
Por mais que do Infinito sejam estrelas.
Vê como é libertador
Não possuíres nada nem ninguém.
Que simples a vida devém,
Ao se te propor!
Olhar as coisas e as pessoas
Como autónomas, livres de tua energia,
Livres de teu apego que não apregoas
Mas a que as prendes cada dia.
Se não tenho nada e nada me pertence,
De quem é tudo isto que me rodeia?
De quem a propriedade que ali se condense,
Alheia?
É da vida
E a vida ta cedeu
Na tua breve lida
Pelo trilho teu.
Para usufruir,
Aproveitar,
É um presente do céu
A partilhar,
Para a todos servir.
E, acima de tudo, para aprender a largar.
Deus ama-te independentemente
De onde estiveres na vida terrena.
Quando entenderes plenamente
Que nada é teu, tudo é da vida a prenda plena,
Vais sentir no coração,
Finalmente,
A gratidão.
Gratidão por tudo em volta,
Pelos presentes da vida,
Por entenderes que tudo implica uma aventura à solta,
Gratidão pela consciência tida.
Quando sentires que a gratidão
É tão forte
Que quase te rebenta o coração,
Trepa ao Grande Norte,
Ruma aos céus:
A gratidão é o trilho mais directo de chegar a Deus.
Ajudar
Sei que adoras ajudar,
Que te esforças,
Tudo o que sabes queres passar
Àqueles por quem torças,
Tudo quanto em ti desvelar o véu
Entreaberto do céu.
É legítimo, pensas,
É o que sabes e cuidas que está certo.
Não te pões em causa nas intensas
Regiões da lonjura a cocegar-te perto.
Não cuidas em nenhum momento
Que tua dádiva desmedida
Seja do ego o intento
De controlar a brida.
Com teus ditos tenazes,
Quando vais ajudar alguém,
Como é que fazes
O que convém?
Tens pena,
Crês que está passando um mau bocado,
Engendras uma estratégia para escapar da cena,
Daquele estado.
Nada mais legítimo e correcto,
Pensas.
Não é bem assim, que o teu prospecto
Pode implicar perdas imensas.
Entende que a estratégia definida
Tem a lógica da tua atitude,
É por tua energia prosseguida,
O pendor de tua virtude.
A pessoa ajudada não tem a postura
Adequada à sequela
Da investidura
Que desenvolveste para ela.
Pô-la em prática não consegue,
E, mesmo que o consiga,
Não dará certo o que persegue
Na trocada briga.
Quando alguém age fora de sua postura,
Ao virem os efeitos,
Quando a decisão quotidiana se prefigura,
Não domina aquela lógica nos pleitos.
Não vai saber decidir
À estratégia conforme
E portanto, a seguir,
A derrota é enorme.
É o ego que fala
Ao ajudares desta maneira:
Só o ego impinge a tala
Da lógica dele a quem lhe andar à beira.
Qualquer alma não impinge nada
E também ajuda.
Olha a pessoa que lhe é dada
E sente aguda,
Profundamente,
Tal ente.
Logra descobrir onde anda dele o imo
E puxá-lo lá de dentro,
Das profundezas ao cimo,
Sem se lhe alhear do centro.
Consegue fazer que se livre do medo,
De modo a escolher
Na lógica de seu credo,
Sem a doutro qualquer.
Isto é que ajuda.
Não é opinar,
Decidir a muda,
Resolver por outrem, sem ele contar.
Vera ajuda é conseguir,
Por compaixão, limpeza interior
E amor,
Levar a alma doutrem a luzir.
O melhor a fazer
Por quem estiver mal, não é seduzir,
Mas dizer:
- Sei que irás conseguir!
E, no dia seguinte, contactar,
Voltar a dizê-lo vezes sem conta,
Até o imo dele, na outra ponta,
Se manifestar.
Isto é que ajuda, este dom de servir,
Até que ele próprio venha a conseguir.
Hoje
Hoje não é dia de fazer,
Não é dia do habitual.
Não é de continuar um projecto qualquer
Nem de cumprir um ritual.
Não é de orar,
Nem de sair,
Nem de desabafar,
Nem de fruir
Do sol que à porta encontrarei,
Nem de ponderar a lei.
Nem de esganiçar
A voz,
De aos céus bradar
Pelos ancestrais, nobres avós.
Hoje não é de correr veloz,
Hoje é para parar.
Quieto,
É dia de ficar do mundo na imensidão
E pairar sob o tecto,
De Deus na palma da mão.
É dia
De venerar o Mestre,
Adorar a energia
Em que me adestre.
É dia de ofertar a gratidão,
De olhar o tempo, adorando o Infinito,
Deixando bater o coração
Extasiado e contrito.
Hoje é dia do que houver
De mais íntimo na terra,
Do que não tem nome sequer,
Nem idade, nem forma a que se aferra.
Hoje é dia de algo
Que só quem já foi ao lado de lá da vida,
Só quem já lhe sentiu o supremo jeito fidalgo,
Só quem na paisagem tomou pé
Da subida,
É que pode vislumbrar o que é.
Energia
Eu e Deus o que temos em comum
É a energia que alimenta as atittudes,
A animar cada um
Conforme as próprias faculdades e virtudes.
São posturas distintas.
Em mim são básicas emoções,
Medo, arrependimento, culpa, negras cintas
A atar-me como prisões.
Deus anima, por seu lado, o sentimento,
É o amor universal.
Porque não sopra um vento
Em mim igual?
Porque é que não estou lá,
Mas aqui?
Por um nada, um nada que nem para ver dá,
Me perdi.
Por aqui mais uns tempos irei ficando,
Dos vínculos preso à roda.
Porém,
Pensando bem,
Pensando,
Nem eu quero sair, que me incomoda.
Se Deus disser que me resgata
Bastando só que eu mude
Uma atitude
E logo no céu me acata,
Se me garantir
Que o muro galgo
Se preescindir
Apenas de algo,
Se, para subir,
Saltar roda fora,
Para com Deus eternamente morar ir,
Um gesto apenas me demora,
Se tal fora a via
Será que eu iria?
Pois bem, é simples deveras:
É apenas prescindir de qualquer apego,
Qualquer vínculo que me prende em mil esperas,
Sempre em desassossego.
Despegar de quem se ama
E se odeia.
Da trama
De pessoas, coisas, emoções...
Da teia
De afectos, dor, preocupações,
Rivalidade,
Inveja e competição,
Vulgaridade,
Emancipação,
Carne, sangue e coração...
Despegar do mundo, da vida,
Do amor terreno,
De tudo, em suma, sem medida,
Sereno.
Algum dia
Deveras eu iria?
Deus sabe que não,
Pede-me que vá despegando devagar
De tudo o que amo neste pobre chão
Para que, com juízo,
Venha gradualmente a ficar
Cada vez mais perto do paraíso.
Presentes
O bem que te ocorre
São presentes que o céu te dá.
Acata, pois, que são presentes.
Tua vida é neutra, nem boa nem má,
Tudo para ti escorre
Do céu nas correntes.
São bênçãos oferecidas
Por Deus.
Por teu comprometimento sem medidas,
Por tua perseverança sem labéus,
Por tua fé
De que nEle tomas pé.
Pensando assim, vais sentir gratidão
Tão grande, intensa, profunda
Que da energia te muda o diapasão
Com que te inunda.
Vai-te elevar,
Vais sentir-te mais leve,
Mais alto a voar
Onde teu pé nunca esteve.
Quando chegares mais alto, aflorando lá acima,
Deus poderá ter espaço,
Enquanto teu braço
Arrima,
De te dar pessoalmente um abraço.
Mentir
A ti próprio pára de mentir.
Inventaste o personagem
E queres que todos o acolham a seguir
Para, quando reagem,
Não poderem ver, de lés a lés,
O vero rosto de quem és.
Porque te queres esconder?
Porque não gostas de ti?
Fica a saber
Que, lá em cima,
E céu em si
Só com a verdade rima.
Podes esconder quem és de todos,
Até de ti podes escondê-lo.
Em nenhum atropelo
Teu
Há modos
De te esconder do céu.
O céu actua pela verdade
E, pela verdade ao agir,
Vai a verdade atrair,
Por fatalidade.
Doutrem tanto ao te esconderes,
De ti próprio te escondes.
Já quem és não tens forma de saberes,
Já por quem serias não respondes.
Descobre o que o Universo quer de ti,
Torna-o na tua maior prioridade.
Ora, o que se te requer dali
É que retires a máscara de opacidade
Que não te espelha.
Pára tudo de vez
Para iniciar a descoberta da centelha
De quem és.
Prioridades
Aprende a ver o âmago de teu peito.
Todos temos prioridades:
Profissionais, familiares e afectivas
A que prestamos preito,
Conforme as idades
E as matérias vivas.
São o que temos de vivenciar
De bom e mau,
Bonito ou feio,
Seja o que for que tenha lugar
Da vida no meio
Do vau.
Para que teu imo continue a evoluir,
É preciso vivenciar
Esta ou aquela emoção que ali sentir,
A fim de desbloquear,
Libertar,
Para em frente seguir.
Olha uma conjuntura
Que se venha a repetir
Sem mudar de figura.
Que emoção te suscita?
Tem-la tapado,
Bloqueado
Como quem a evita
Ou, ao invés,
Tem-la confrontado
De frente e de través,
Eventualmente
Com dor,
Num choro ardente
Mas libertador?
Se a tens bloqueado quando vem,
Doutros temas cuidando,
Talvez por isso novamente advém,
Repetindo o desmando.
É a tua prioridade emocional.
Procura-a desde agora,
Poderá estar escondida,
Afinal.
Não lhe deste outrora
A importância devida.
Vai ao teu peito,
Entra por ti dentro,
Aprende a ver
O que estiver
Mal afeito
Lá no centro.
Aceita, então,
Aquela emoção.
Chora,
Abre o peito e deixa sair
A qualquer hora
A vivência negativa que te ferir.
Depois acalma.
Quando acolhemos as nossas prioridades,
Tudo começa a entrar na linha,
Muda a atitude de alma,
Pequenos ajustes, novas sensibilidades,
E a vida é um prazer que se adivinha
Para além das intérminas contusões
Do cotio no mar de confusões.
A prioridade emocional,
Agrade ou não agrade,
Importa mais, afinal,
Que outra qualquer prioridade.
Alojada no peito,
Na fundura do imo, sem engano,
É o lugar mais sagrado e escorreito
Do ser humano.
Tarefa
Tua tarefa definida
De vez:
Aprender tua postura de vida
Pelo que és,
Sem máscaras, sem falsos atributos,
Sem doutrem revestir-te dos produtos.
De apreender
É fácil talvez:
- Ser
Quem és!
Sem desvios nem omissões,
Com pés seguros,
Sem oportunismos imaturos
Nem arestas a rasgar lesões.
Sê-lo requer de ti o empenho inteiro
Duma vida:
Respeitar teu sentimento verdadeiro
Exige de ti agora
Toda a energia esquecida
Que em ti mora.
Ou porque nunca respeitaste teu imo
E é o momento de mudar de rumo
Ou porque treinaste bem, trepaste a um cimo,
E, em resumo,
Agora
Lá no alto,
Chegou a hora
Do grande salto.
Põe o pensamento no teu peito
E sente.
Limita-te a sentir, a mais nada atreito,
Mais nada, consciente.
Quão mais te habituares a só sentir,
Sem pensar em nada,
Mais rápido te irás unir
À tua frágil alma abandonada
E descobrir
Quem és, o que hás-de ser,
E o que andas por cá finalmente a fazer.
Sonho
Muitas vezes queres cumprir
O sonho há muito sonhado,
Mas outras, ficas frustrado
Por nunca mais conseguir.
Que é que aqui andará errado?
É a tua falta de respeito
Pelo relógio da vida.
O que sonhas há muito, sem nunca o tomar a peito,
Passou de prazo, em seguida.
O que sonhas há muito,
Há muito devera ser realizado.
O facto de o não teres efectivado
Não requer agora
Que o realizes, gratuito,
De tempo fora.
Se tentas realizar hoje
O que há muito sonhaste,
Ignoras algo que te foge:
O sonho de agora no tempo que se afaste.
Tem um tempo, o sonho,
E o teu relógio existencial
Por ele clama, risonho,
Aguardando o teu sinal.
Teus membros estão alinhados
Para de tal sonho retirar
Os melhores traslados
Que, ao vivo,
Possam ter lugar
Para o teu itinerário evolutivo.
Se o tentas realizar tempos depois,
Já o sonho não passa de miragem,
Já os arrebóis
Deram lugar a uma paisagem.
Teu imo já não se orienta
Para o concretizar
E concretizá-lo só pode ocasionar
Frustração a quem o tenta.
Fecha os olhos, medita,
Tenta sentir o que teu relógio vital
Agora concita
Por seu fanal.
Ignora os sonhos antigos,
Cuida dos novos,
Do que podes ser, fazer, agir agora,
Destes renovos
Sob os abrigos,
No alinhamento actual do imo que em ti mora.
Seja o que for que saia daí
É o sonho novo que gerrmina em ti.
Hás-de ter, a par,
Todos os recursos para o realizar.
Fadiga
A fadiga é um sinal:
Ou andas no caminho errado
Ou no caminho certo, afinal,
Andas depressa demasiado.
O importante é centrar-te,
Ou para reorientar teu caminho
Ou a rapidez de encaminhar-te
No rumo adivinho.
Importa parar,
Não ter medo,
Travar várias vezes para respirar,
Em várias alturas, a desvendar à fadiga o segredo.
E sentir agora
Durante a demora.
Quem for no caminho errado,
Como não sente o caminho,
Só quer chegar, apressado
E sozinho.
Quem andar depressa demais,
Como não logra sentir
O caminho a velocidades tais,
Só quer chegar, ao assim ir.
O caminho errado, ao chegar,
É a maior das desilusões,
Não vale o mal-estar
Do trilho corrido aos sacolejões.
Num caminho errado, até
O destino é errado, ao lhe chegar ao pé.
Quem corre depressa demais
Não chega ao destino,
Cai antes, nos tremedais
Do trilho assassino.
Em qualquer caso, de insatisfatória,
A caminhada é inglória.
Quando tal é o caso,
O melhor é parar e dar um prazo.
Parar, respirar, ficar
E cuidar do agora,
Nele se centrar,
Para que amanhã os pés na via,
Após a fértil demora,
Tenham mais energia.
E cada pegada aproveitem em alta
No caminho que falta.
Espírito
Em teu espírito como estás?
Vais ao céu buscar,
Vais lá acima para poder, em paz,
Beneficiar
Daquilo com que teus recantos se convençam,
Alguma bênção?
Vais agradecer
Tudo quanto a tal se preste,
O que já recebeste?
Ou vais Ser,
Desenvolver quem és, então,
Numa nova dimensão?
Se vais buscar,
Desiste.
Lá não hás-de encontrar
O que em teu rol se aliste.
Ouvirás, acaso, em resposta,
Se irás ou não lograr
O que queres de tua aposta
Particular.
Se vais agradecer,
Que bom!
É feliz o céu ao ver
Que entendes o dom
Do que tens na matéria como enviado do céu,
A hospitalidade que te ofereceu.
Se vais para Ser,
Trilhar o que és,
Então fica o céu feliz de vez,
Dele afina os lamirés.
Já compreendeste o portal das dimensões,
A abertura de cá para lá,
A partilha de lá para cá,
Já recebeste da Luz os raios e trovões
Suficientes
Para escolher da Luz os presentes.
Já te perdoaste,
Não exiges nada de ti.
Vivenciar aceitaste
De tuas dores
O bisturi,
Bem como teus amores.
Já sebes Quem o céu é
E o que a um momento qualquer
A teu pé
Pode trazer.
Já compreendeste do homem a jornada
E, com primor e arte,
Queres fazer, de entrada,
A tua parte.
Pensas em Deus, naquele
Que ainda não viste
Mas sabes que existe
E contas com Ele.
Teu imo entregaste ao céu, tua interioridade
Até do abismo às mais profundas covas,
E aguardas, do lado da eternidade,
Por boas novas.
Significa, mais do que tudo,
Que tua fértil alma, nos interiores teus,
Já, sobretudo,
Tocou em Deus.
Tenta
Tenta ser alguém
De quem teu imo se orgulharia,
Tenta ser o que ele gostaria
Que fosses, tempo além.
Ele é o mais íntimo de ti,
A pulsão mais pura a que puderes aceder.
Quando algo és de que se orgulha, então aí
Ao fundamental acabas de te prender,
Sabes o que ele é, dele nas vielas estreitas,
E respeitas.
Queres ser como ele
Porque lhe aceitas
A postura inefável
A que te impele
Como única e indeformável.
Quando tentas ser quem não és
Teu imo fica triste, abatido,
Tímido, murcho de vez.
Quando te aceitas e perdoas, decidido,
Ele fica livre, poderoso e cristalino,
Vive mais
E pode cumprir o fado divino
De mais missões na terra que habitais.
Tu vives feliz
Porque sabes quem és
E podes e logras, de raiz,
Lidar com isso de lés a lés.
O céu, lá de cima,
Vê brilhar mais uma estrela,
Tua mente que na aceitação se arrima
À luz que por teu imo se desvela.
Tenta viver do modo
De que teu imo gosta.
Ele viverá seu tempo todo
Mais feliz em cada aposta.
E o ego, a voz na cabeça
Que te diz para não arriscar,
Não avançar, que o pé te tropeça,
Que afirma que não és capaz, que te falta o ar,
Que não vale a pena,
Essa estrutura
Que te apequena,
Postura
De auto-restrição,
Rejeita-a, calca-a no chão.
Remete o ego, a cargo de Deus,
Para o desterro dos céus:
Desde que teu imo a tal apele,
Os céus tratarão dele.
Dispões
Aquilo de que dispões hoje
É a armadura estritamentee requerida
Com que se protege e onde se aloje
A fase posterior de tua vida.
Nem mais nem menos,
Sejam teus feitos grandes ou pequenos.
Mete-te à estrada,
Deixa de ser pedinte,
Não precisas de mais nada
Para a etapa seguinte.
Só precisas do que tens
Ao teu dispor.
Querias mais améns,
É de supor,
Para correres mais depressa
Rumo aos objectivos.
Será, porém, que tens de ir como quem se arremessa?
Ao actual ritmo não te capacitas mais,
Mais consolidas teus passos furtivos,
Mais te estruturas, rijo como jamais?
Será que não atraíste
A rapidez exacta de andamento
Para vencer resistências que viste,
A que ainda dás alento?
A resistência seria vencida
Se mais correras na corrida?
Queres tudo mais depressa
Para topar mais depressa com teus objectivos.
Que meta, porém, vai ser essa?
Nestes trilhos lentos, mais restritivos,
Não ficarás mais maleável
Para aceitar genuíno, inteiro
É fiável
Que aquele pode não ser teu objectivo verdadeiro?
Se queres mais e mais depressa,
É a hora de chorar sem clemência
A pedra onde tropeça
Tua impotência.
Chora, chora a impotência de tudo
Ter de ser desta maneira.
Nada mais, neste momento agudo,
Podes fazer na tua leira.
Sem aparte
Nem reféns,
Chora e trata de conformar-te,
É o que tens.
E mais nada.
E de mais nada precisas.
Tudo o que atraíste nesta jornada,
Tudo o que divisas
Agora
É o estritamente requerido
Para atingires a próxima hora
De teu vital, multicolorido,
Singular
Tecido
De vida.
Querer mais é do ego a protestar
A voz desmedida.
Igual
O que anda dentro
É igual ao que anda fora.
O que atrais fora de ti
É porque o tens aí,
Mora
No fundo de teu peito, bem ao centro.
Pondera, pois.
Quanta violência atrais?
No físico, no psíquico, nos dois?
Quantos contigo discutem, rivais?
Quantos não te ouvem, te maltratam,
Ferem-te as emoções que desbaratam?
Quantos te impedem de avançar,
Não crêem em ti, não te respeitam,
Acabam por te ignorar
Fingindo acaso que te aceitam?
Tudo o que te fazem, por norma, reflecte
O que a ti próprio fazes.
Não lhes queiras mal, não lhes compete
Mais que espelhar, em regra, o que para ti aprazes.
São o espelho ante ti a contrapor
O teu interior.
És tu que te maltratas,
Tu que és a ti mouco,
Tu que a sensibilidade desbaratas,
Que queres avançar, louco,
Mais do que é viável
Em condição saudável.
Tu é que não acreditas em ti
Nem te respeitas,
És tu que ali
Te ignoras, pleno de suspeitas.
Para ti olha,
Para outrem pára de olhar,
Para o que te farão, deles na escolha,
Ou deixem de fazer, a par.
Olha para ti, vê quanto mal
Andaste a ti próprio a ocasionar,
Afinal,
Ao te exigires tanto,
Ao seres tão intolerante contigo,
Ao não te perdoares, entretanto,
De ti próprio tornado inimigo.
Olha para ti, pára um bocado,
Sente, fica.
Talvez vejas uma luzinha nalgum lado,
Ténue, tímida mas rica:
A de teu imo.
Aguarda apenas que olhes para ela,
Para o cimo.
Ela é que é a tua estrela,
Não os outros, falso arrimo.
Espera que a valorizes,
Não os outros, onde não tens as raízes.
E espera que te ames, enfim,
Com toda a gama de cor.
Então, assim,
Atrairás o verdadeiro amor.
Propício
Se o caminho não é propício,
Quão mais te forças a avançar
Mais o Universo, para não caíres no precipício,
Se empenha em te travar.
Quando ainda não chegou o momento
De algo ocorrer, tranquilo,
Quão mais de o concretizar
For teu intento,
Mais o Universo se há-de empenhar
Em impedi-lo.
Quando um renovo germinou,
Quanto mais força investes
Para que amadureça
Depressa,
Mais o Universo prestes
Se empenhou
Em te atrasar
Para ele ter tempo de respirar.
O Cosmos é sábio,
O rumo da energia é perfeito.
O ego sabe-o
Mas tudo estraga a eito.
Se perante teu imo algo estiver bloqueado,
É que forças ignotas sabem que não tem
De ser-te ofertado,
Não te convém.
Ao menos para já.
E é o que deliberado
Está.
Mas insistes, insistes
E te esforças
E persistes
E o portão forças.
Tal é o apreço
Que teu ego o quer
A qualquer
Preço.
O efeito advindo
De tais opções
É que vai atraindo
Todo o tipo de perturbações.
Atrasos, inseguranças, acidentes,
Depressões,
Tristezas, descalabros, perdas prementes,
Traições,
Doenças, expulsões
E as inúmeras desgraças de tudo isto decorrentes...
E o ego, dele com a corte,
Olha para tudo
E maldiz a sorte,
Surdo e mudo.
Jamais logra entender
Que tais desacatos
São efeitos a reter
De seus próprios actos.
Não entende porque atrai
Tanta perda,
Que a perda em sorte lhe cai
Por mor da força esquerda
Que em tudo coloca,
Mal sai da toca.
Entende-o, porém, a consciência,
A frágil alma, num saber doutra ciência.
A consciência amplia,
Acede ao imo.
Visto lá do cimo,
Donde o céu te cicia,
Tudo, afinal, é perfeito.
E Deus vai amar-te por O entenderes de seu jeito.
Desígnio
Tudo o que te ocorre na vida
Tem um desígnio qualquer.
A mais ínfima poeira atraída
Tem um motivo para ali aparecer
Daquela maneira particular,
Naquele momento e medida,
Naquele lugar.
Tudo é milimetricamente perfeito
Na matéria
Para lhe podermos tomar o jeito
E respondermos de acordo
Com quem somos, com nossa matriz sidérea
Acolhida a bordo.
De acordo com o que escolhermos ser
Em tal tempo e lugar.
Como é que a densa matéria pode responder
A um impulso tão subtil até perfeita se tornar?
É que vivemos num equilíbrio de energia
Que funciona em qualquer postura.
Se pesada e negra é a atitude de teu dia,
Atrais eventos e indivíduos pesados à mistura.
Se fores leve e transparente,
É para quanto for leve que és atraente.
Visto do Céu
É tão simples que nem tem véu.
Encontras-te numa conjuntura
Que quer falar contigo,
Mostrar que novidade configura,
Levar-te a sentir emoções ao seu abrigo,
Mudarr-te crenças
Para abrires a mente
E acreditar noutras sentenças
Que te levarão mais à frente.
Qualquer possibilidade boa
Que te inovará como pessoa.
Que significa tudo isto?
Porque te encontras nesta situação
E não noutro registo?
Que aprendes com tudo então?
O céu pode responder
Mas tens de trepar até ao cimo.
A resposta jamais a podes ter
Cá em baixo, fora de teu imo.
Procura
A resposta
Na tua derradeira fundura.
Aposta
Que o Universo tem para ti uma missão
Em tal situação.
Fecha os olhos, relaxa e pergunta.
Não penses em nada,
Tua sensibilidade antes activa toda junta.
Sente, intui então.
Vais julgar
Em tua jornada
Que estás a imaginar
A via proposta,
Mas não:
- É a resposta.
Tu
Quem és tu?
És quem és ou o que outros são?
Quem és deveras, para além do tabu
E da distorção?
Quando alguém te magoa
Como respondes?
Magoas de volta, à toa,
Não vês se te trais nem se te escondes?
Quando alguém te engana,
Que fazes?
Enganas também o safardana,
Agrides, discutes, torpedeias as pazes?
Quando alguém te faz mal e tu retribuis,
Porque o fazes?
Porque é assim que te intuis,
Nasceste para fazer mal
Ao teu igual,
Ou o mal que fazes ali
É porque to fizeram a ti?
Se fazes mal porque és assim,
É a tua escolha,
Entendo, respeito, embora discorde, por fim.
Todavia, faz sentido para quem olha:
És quem escolhes ser,
Ninguém pode mudar isto noutro qualquer.
Porém, se fazes mal como resposta
Porque alguém to fez a ti,
Isto não é a escolha da tua aposta,
Não és tu quem vejo aí.
Dar o troco
É menos
Que pouco:
É trair os teus terrenos.
Desceste ao nível de quem te fez mal,
Saíste fora de tua estrada real.
Escolhes ser,
Afinal, o que for outro qualquer.
Entras numa postura estranha
Sem saber quando voltarás
À atitude que tenha
Teu imo por trás.
É o que escolhes para ti?
O céu por vezes envia uma experiência
Densa, cruel como um bisturi,
A medir a nossa coerência.
E tu, em vez de ser quem és em toda a ocasião,
Nas ondas doutrem navegas,
Fazes mal e a justificação
É que outrem to fez às cegas.
Deste modo, em cada acção,
Vais sendo o que os outros são.
Não te apercebes de quão longe estás de ti,
Quão longe de tua luz vagueias por aí.
Quão andas, quebrada a asa,
Longe de voltar definitivamente para casa.
Espiritual
Que sabes já do mundo espiritual,
Que é que aprendeste?
Quantas vezes já te surpreendeste
A corrigir os outros, feito fanal,
Por não agirem conforme as citas
Em que acreditas?
Quantas vezes te apanhaste na hora
A ponderar algo de forma inovadora?
Já te surpreendeste a rever um conceito,
Respreciar uma conjuntura
Ao jeito
Que o pendor espiritual configura?
Já tiveste ocasião
De aprender algo numa nova dimensão?
Muitas, decerto.
Tens a mente pejada
De novas ideias para a nova jornada,
A coberto
De novas estratégias, de seguida,
Para a vida.
Sabes o quê e como fazê-lo.
Mas pratica-lo com desvelo?
Honras o comprometimento com teu imo?
Põe-lo em prática
Da base ao cimo,
Não de maneira fanática
Mas como teu quotidiano arrimo?
Repara em teu cotio de malas feitas
Desde a hora em que acordas à que te deitas.
Nele, qual
A tua coerência espiritual?
Qual, de cada momento,
O comprometimento?
É altura de dares atenção
Ao compromisso com tua frágil alma,
Com a atitude perante o coração,
A postura que te reforça e acalma.
É altura
De tua vida futura.
Ajudar
Porque queres tanto ajudar?
Porquê tanta precisão
De que o outro venha a ficar,
Feito haste
De pendão,
Tal qual como o idealizaste?
Porquê tantam freima, tanta, que nem descansa
Para efectuar tal mudança?
Se o outro escolhe não mudar
Ou escolhe o que quer, em que acredita,
Irás ter de suportar
Da escolha por ti maldita
O efeito que dela derivar:
Ele irá sofrer
E o sofrimento que tem
A ti te irá fazer
Sofrer também.
Queres tanto ajudar
Porque não queres sofrer
Só por ver,
De ti a par,
Sofrer um outro qualquer.
Ou então é que tu, zé-ninguém,
Te sentes poderoso e sabedor
Quando ajudas alguém
Com calor.
Muda tu, ao invés,
Concentra-te na mudança
Do que és,
No que a transformação te alcança.
Transmuda, segura,
Tua atitude, tua postura.
Transforma-as de tal maneira
Que, se um dia os que escolheram não mudar
Dos efeitos negativos sofrerem a peneira,
Estejas lá para apoiar
E ensinar que tal venenoso produto
É da resistência deles o fruto.
Talvez agora mudem
Ou não, também.
Estaremos só entre os que os ajudem,
Nunca podemos mudar ninguém.
O que faremos é dar amor,
Ser porto de abrigo
Para apoiar quem, com fervor,
Se não cansa
De enfrentar o perigo
No seu próprio itinerário de mudança.
Perda
Repara na perda, seja qual for,
Toda a restrição opera com perda.
Querias dum modo, correu pelo pior,
E eis como ela se, afinal, herda.
Querias mais rápido e foi mais lento,
Maior e foi mais pequeno,
Brando e foi truculento,
Alto nos céus e foi baixo e terreno,
Querias longo e foi curto,
Amor e foi raiva apenas,
Abundância e foi de carestia o surto...
- Tudo perdas, da vida nas cenas.
Quando o Universo te não dá o que queres
É perda que referes.
Que é que estará mal,
O Cosmos não te dar
Ou tu quereres tanto, afinal,
Que o fundo do abismo ninguém o pode vislumbrar?
Sempre que o Universo não responde a teus anseios,
É que teus anseios não estão de verdade
Correspondendo aos esteios
Onde se firma, orienta e projecta a realidade.
Os sinais não estás logrando interpretar,
Não acolhes o rumo da corrente
Para poderes navegar
Em frente.
E não os logras captar
Porque tua mente
Vive obcecada,
Pregada
Ao tecto
Do que julga estar correctto.
Para ti só aquilo faz sentido,
Lógico, só aquilo,
Como teu ego convencido
Gosta de enunciar, tenaz mas intranquilo.
E se o mundo estiver a viver
Uma transformação tão grande
Que o certo de hoje pode ser
O errado no amanhã que nos comande?
O melhor é aprender
A deixar tudo em aberto
Para o itinerário apreender,
Desperto,
Da mudança que se aproxima
Comandada das alturas lá de cima.
Quando a restrição atraíres,
Deves ir da lógica além
Para conseguires
Abraçar a mudança que aí vem.
Treina este trilho certeiro
Com que teus pés não rimam
E serás um pioneiro
Dos tempos que se aproximam.
Para te guiar
O céu vai estar aí
A te inspirar,
Deus a te iluminar,
Em privado, a ti.
Fala
Deus fala contigo,
Mesmo que O não ouças,
Mesmo que não lhe entendas o murmúrio amigo,
Fala contigo no lar, na rua, nas bouças,
Através das flores, da fruta, da natureza,
Através do que sentes
Quando te permites contemplar a beleza
De quaisquer entes.
E, quando fala,
Diz-te o que fazer,
O que é melhor para ti na evolução que te abala,
Na experiência a empreender,
A nível da luz
Que tuas profundezas te traduz.
Porém, nem sempre O ouves, nem olhas as flores,
Nem sempre contemplas, apressado,
Nem sempre páras para Lhe ouvir os rumores
Do outro lado.
Quando fala, dá-te conselhos, direcções,
Mostra-te para onde corre tua vida
Aos sacolejões
E para onde devia ir redirigida,
Por onde, por que traça
És mais feliz,
Por onde mora da desgraça
A raiz.
A escolha é tua,
Ele só mostra caminhos,
Não te escolhe a rua,
Na decisão estamos sozinhos.
Para quem não ouvir
Sobra a perda,
Nada pode corrigir,
Apenas sofrer a sequela
Esquerda
E tentar aprender com ela.
Seja qual for a perda, é para que entendas
Que o rumo não era certo.
Após a perda, a maior das prendas,
Decerto,
É a compreensão que alcança
Que é imprescindível a mudança.
Mas para onde mudar,
Para quê?
É a resposta que te deves empenhar
Em descobrir, de boa-fé.
Tens uma vantagem sobre quem não olhar
Para os sinais:
Sabes que urge mudar,
Ainda não sabem disto os mais.
Só te falta saber onde.
Olha para o teu coração,
Ele responde.
Olha para os planos que são
O teu mundo,
Os que te tocam no íntimo mais fundo.
Aquilo que sabes que tens de fazer,
Embora te falte porventura a coragem,
Que julgas ilógico, precipitado, imaturo para qualquer
Tentativa de viagem
Sequer.
Quanto mais rótulos teu ego tiver
Depreciativos colocado em teu sonho
Mais forte ele há-de ser,
Mais urgente e medonho.
Aproveita a perda, aproveita
E aceita.
Se o que crias bom e seguro,
Já não é,
Se o que julgavas certo e puro,
Traiu tua fé,
Se o que consideravas normal,
Não se confirma, afinal,
Aventura-te então.
A perda já tens,
Já tens o não.
Aposta agora noutros bens,
Devém risonho:
Aposta no teu mais improvável e fundo sonho.
Aproveita a perda e te persuade
A ir à procura da felicidade.
Comunicou
Deus sempre exprimiu as opiniões dEle,
Sempre comunicou,
Mas doutra maneira.
Não é pela palavra que interpele
A mente em que tocou,
Mas pela intuição íntima e ligeira.
É pela sensibilidade interior, o outro lado,
Difícil, por não andares acostumado.
Costumas ver,
Ouvir,
Tocar, falar, ler,
Mas intuir
Teu interior, aí,
Deve ser estranho para ti.
Fecha, porém, os olhos, respira,
Pensa na respiração apenas,
Mantém-na assim um tempo em mira,
Depois pede. Graças pequenas:
Que te seja retirado o ego
(Sentirás um monstro enorme a sair),
Que a resistência se esboroe em teu apego
(E outro monstro escuro há-de fugir).
Ego e resistência saem mas sente
Que é apenas temporariamente.
Deixa a luz entrar pela cabeça,
O corpo inteiro a percorrer.
Depois, a pensar em Deus começa,
Sente-O, intui-O a te preencher:
Ele estará, eficaz,
Na tua maior paz.
Eis o que O traduz
Em ti a andar:
A maior luz
Que entrar.
Estará na lonjura
À vida quotidiana,
Na infinita distância que se apura
Entre a vivência íntima que de ti dimana
Agora
E a que na matéria aflora.
Quão maior a distância que se vença
De Deus maior a presença.
Um dia, repetido isto muitas vezes,
Hás-de encontrá-Lo,
Há-de estar aí, com gestos corteses,
A fazer-te senti-Lo, para teu regalo.
Desde já, porém, sem quimera,
Lá te espera.
Responsabilidade
Responsabilidade,
Não do que fazes, do que tens ou do que és,
Mas do que não tens, de verdade,
O vazio, a vacuidade
Que te suga os pés.
Pensa no que gostarias de ter hoje,
De ter tido toda a vida
E que, agreste,
Te foge
À chegada e à partida:
Nunca o tiveste.
Não tiveste ou não tens
Por algum motivo.
Toda a abundância de bens
Está disponível da matéria no celeiro vivo
Para todos e para tudo o que encaixo
Na terra, cá em baixo.
Tudo está ao dispor de nossa atitude.
Se nada conseguimos,
É normalmente em virtude
De não fazer parte da energia que sentimos
Na orientação
Que nossos trilhos lhe dão.
Não é para nós e nos foge
Pelo rumo que tomamos hoje.
Se mudares tua postura,
Aquilo por que tanto anseias
Em breve provavelmente se prefigura
A rondar por tuas ameias.
Não o que desejas para ser rico,
Para ante os outros ostentar,
Mas o que te leva ao pico
Da felicidade sem par
De fruir daquilo
Que de teu âmago te aproxima
E que, tranquilo,
Teu imo encima.
Nunca nega um pedido de alma
O céu, lá de cima,
Quando é adequado à postura
Que de grão te enche a palma
E pleno te configura.
O que não tens hoje
É, primeiro, de tua responsabilidade.
Se nada do que queiras em ti se aloje,
É que provavelmente atrais o que te invade
Em virtude
De agires conforme determinada atitude.
Mudá-la
É questão de escolha e comprometimento.
Cabe-te a ti reajustá-la
A todo o momento.
Feito isto,
Descobrirás um mundo que jamais houveras visto.
Iguais
Aos olhos de Deus
Todos os homens são iguais.
Igual benevolência perante erros seus,
Igual tolerância, mesmas oportunidades.
Todos recebem sinais,
Todos têm faculdades
De êxtase, visões,
Informação de vida interior e cura.
Não existem excepções.
Mas uns aproveitam,
O que aquilo prefigura
Aceitam
E comprometem-se.
Querem evoluir então
E metem-se
No itinerário da evolução.
Escolhem a luz,
Prioridade primeira,
Com seu imo que a traduz,
Com o ser, a personalidade inteira.
Naturalmente, estes têm de seu
Ficarem mais próximos do céu.
Nem melhores nem piores,
Nem isto nem aquilo,
Deus não julga os teores,
Observa, ajuda, Amor dos amores,
Dele no sigilo.
Quando o aluno está pronto,
O mestre aparece.
Aos que aceitam
Sem desconto,
Deus ajuda, incentiva, abençoa e não esquece.
Ante os que rejeitam
Deus se entristece
Mas por uma outra primavera
Espera.
Haverá o dia do discernimento
Em que acordarão
Séculos de medo, inacção
E tormento
E os falsos crentes e os incréus
Olharão
Finalmente para Deus.
Irão escolher a luz por fim.
A eles Deus agradece profundamente,
Pois assim
Semeiam entre a gente
A elevação da atitude da terra
E quenquer,
Do campo à serra,
O pode doravante compreender.
A estes Deus perdoa tudo,
Pois o compromisso, pese embora o anterior senão,
É louvável, puro e desnudo
E não há mais hesitação.
No Cosmos doravante nada é mudo,
Tudo é mensagem. E é uma sideral canção,
É a festa, sobretudo.
Desapegar
Convém desvincular,
Não deves aguardar que alguém morra
Para te desapegar.
Desapego pretensamente fiel
Que através da morte ocorra
É mais doloroso e cruel.
Desapegar é não depender emocionalmente.
Quando esperas a morte de alguém
Para te desvinculares emocionalmente dele
O sofrimento que advém
É incomensuravelmente
Maior
No vazio da dor.
Já não está lá,
Não te podes despedir,
Não podes dizer-lhe olá
Nem quanto o amas, a seguir...
Nem podes confessar-lhe em paz
A falta que te faz.
Quando aguardas pela morte
Para o desapego
Tudo são solavancos à sorte,
Trambolhões do trilho no rego.
Não há calma,
Sossego,
Não há paz do fundo de alma.
Não esperes que morram para te desapegares,
Vai ter com todos,
Quanto os amas diz-lhes com vagares
E que, apesar de tais modos,
Irás à tua medida
Viver a vida.
Já não dependes de ninguém,
De ninguém precisas, ao invés,
Também,
Para seres quem és.
Deste teor,
Autónomo ao te tornares,
Não diminui o amor
Que partilhares.
Destrói apenas, afinal,
A dependência emocional.
O Cosmos quem amamos nos retira
Às vezes, neste pego
Tendo em mira
Provocar o desapego.
E se previdentes andarmos,
Constantes,
E o provocarmos
Antes?
Porta
Quando uma porta se fecha,
Só a irás sentir fechar
Se estavas à frente dela,
Ponta espetada de flecha,
Obstinada sentinela,
Especado ali a olhar.
Uma porta só se fecha
Com perda e fúria sentida
Para quem só vê tal saída
E mais nada vê que mexa.
Para quem vê lá de cima,
Elevado
No distanciamento que aos céus encima,
Acurado,
Quem sabe que todo o mal
É para fazer mudar de rumo,
Não sente que a porta, afinal,
Se fechou, em resumo.
Sente apenas
Que não é por aí.
Ou há outra porta, se calhar das mais pequenas,
Perdida entre as empenas
E é de procurá-la ali
Ou então não está na altura
De aquela porta se abrir
E é de aprender a esperar, enquanto se apura
O tempo de conseguir.
Às vezes tão obstinado
Se fica em abrir a porta
Que nem vemos mesmo ao lado
O portão que a abrir exorta.
Para o que se fecha olhamos,
Incapazes de desviar
O olhar
Para a abertura que ignoramos.
Temos de ganhar distância
Para de oportunidades
E de impossibilidades
Verificar toda a lista em cada instância.
Temos de olhar os dois lados,
Cada qual com sua porta,
Que cada um dos dados
Comporta.
Distância que não desterra,
Antes ancora ao fundo meu,
Para me guindar ao alto, longe da terra,
Perto do céu.
Triste
Se estás triste, fica triste,
Aproveita a ocasião.
Se é de chorar, chora, insiste,
Aproveita-lhe o condão.
Não é todos os dias
Que logras alcançar
As vias
Sem par
Da fragilização
Que é soberba e poderosa.
Faz-te reavaliar
Cada relação
Que se goza,
Cada evento singular.
Em quanto sonhas
Faz com que em causa te ponhas.
Faz reacender a chama
Da sensibilidade visceral,
Lágrima que da fundura clama,
Pronta a saltar, radical.
Tal sensibilidade
É a tua grande arma.
Quando te invade,
Recebes a intuição que te arma
De ordens cósmicas para avançar.
Sem sensibilidade nem fragilização
A vida acaba por te ficar
No plano mental da concepção
E o curso de tua postura interior, posto de lado,
Finda anulado.
A tristeza é, pois, bem-vinda,
É do ciclo das fragilidades
Que tem de ser respeitado.
Atento a ela, ainda
Bem que te persuades!
Há dias em que acordas bem,
Dias em que acordas mal,
Ciclo alternado pelo tempo além,
Dual.
Vais trabalhando a tristeza,
Fazendo teus lutos particulares,
Para, quando o ciclo virar, tu, com presteza,
Te alegrares
De alegria verdadeira, grandiosa,
Limpa e generosa.
Os ciclos respeita de cada dia,
Tanto a tristeza como a alegria.
Quem respeita cada ciclo seu
É bem-vindo:
Degrau a degrau anda subindo
Ao céu.
Compromisso
Qual é teu compromisso?
Com teu ego
Que te pode dar isso
Que aprecias com apego,
Dinheiro, bens materiais,
Posições sociais...?
É o que te move,
É por aquilo que corres?
Ou é por tua frágil alma que tanto se comove
E sem a qual por dentro morres?
É por ela que vives,
É a ela que escolhes
Em cada minuto em que de ti não te esquives,
Em que te acolhes.
Dela escolhes a paz, a tranquilidade singular,
O sentimento de tudo estar
No devido
Lugar?
Por mais que te doa, de ferido,
Por mais que difícil seja,
É por ela que aceitas viver
O dia que adiante viceja,
É por ela que a ilusão que houver
Rejeitas
E a verdade aceitas.
Com qual é teu compromisso?
Com a mente que quer que acredites
Que tudo ficará bem, cheio de viço,
Desde que ignores, em teus palpites,
A dor que diária te fere o mal afeito
Peito?
Ou com teu imo
Que pede que chores a dor
Hoje
Para que amanhã fiques melhor,
Com um arrimo
Que não foge?
Compromisso com qual?
Com teu ego de roupas caras, automóveis, moradias,
Sólida posição social,
Ou com teu íntimo em que apenas o amor aprecias?
Amor incondicional
Que do céu te vem por ignotas vias
E que, ao tocar teu coração dormente,
Fá-lo ficar marcado eternamente?
Com quem te comprometes, afinal?
Jamais o céu critica a tua escolha,
Por pior que pareça.
Respeita-a, seja qual for o mal
Que acolha,
O erro que meça.
Apenas quer saber, apenas isso:
- Qual é teu compromisso?
Sensível
És sensível,
Podes não sabê-lo,
Mas o céu sabe-o, dele no escabelo
Inatingível.
Tua sensibilidade vive em tuas células, teus poros,
De teu íntimo espalhada pelos vergéis, pelos foros.
Cada vez que te magoam
Desaba-te o céu em cima.
Só precisas, nos cantos que destoam
De tua rima,
De te entristecer,
De te fragilizar,
Feito uma pena qualquer
Voando no ar.
Deixa doer
Para escoar depressa.
Tua sensibilidade é o maior dom que te podia acontecer,
A melhor compressa.
Mais forte que seres inteligente
É seres um sensível ente.
Mais que ser bonito, rico, simpático, capaz
É ser, como sensível, eficaz.
Mais forte que ser arguto
É devir de ser sensível o fruto.
Mais forte que ser forte
É ser sensível, nosso norte
Fecundo
E nossa sorte.
Os sensíveis sentem bem no fundo
A dor do mundo.
O que dói, dói.
É mais verdadeiro e harmonioso
Que bloquear a sensibilidade que nos mói
E andar por aí, palhaço
Gotoso,
Na ilusão de que tudo irá melhor a compasso,
Porque deste modo
Nada melhora nunca de todo.
Ser sensível é conectar-me com a fundura do imo
Total, directa, ininterrupta e irreversivelmente.
É mais difícil trepar ao cimo?
É, para toda a gente.
Por outro lado, porém,
Quando estamos felizes,
Quando estamos bem
(E cada vez mais teremos tais matizes),
Embora não expectável,
A alegria vai ser incomensurável.
É agora êxtase o que fora alegria,
Passa
O que felicidade seria
Agora para estado de graça.
Os sensíveis deveras que aceitaram
Deles a sensibilidade plena e absoluta,
Que já não bloqueiam emoções que os aram,
Que aceitam tudo sem disputa,
Já sabem o que os ultrapassa:
Viver em estado de graça.
Não querem mais pele
Fingida:
Já não querem prescindir dele,
Já não querem outra vida.
Queria
Queria Deus ver-te sorrir,
Que para Ele cantasses,
Que apenas a Ele um dia dedicasses
Para O sentir
E acaso ouvir.
Apenas um dia,
Sem tristezas nem lamúrias.
Um dia só de energia
A ninguém trará penúrias.
Energia de amor, energia.
Que O sentisses Deus queria
Calma, descontraidamente.
Como de luz
Uma alegoria
Que nos seduz
Entranhadamente.
Ficavas assim quieto,
Apenas a sentir,
E, devagar,
Pelo teu imo mais secreto,
Deixava-Lo entrar
E por ti além ir.
Ele entraria,
Primeiro no teu peito
E aí principiaria
Logo a emprestar-te o jeito
De Lhe sentires o fervor
Do amor.
Depois, esta energia
Em cada pedacinho entrando ia
De teu íntimo escondido,
De teu corpo combalido.
Iria daí surgir
O fruto que mais produz
A seguir:
- A tua própria luz.
Depois de Lhe teres dedicado um dia,
Como nos céus,
Em ti mais que nunca brilharia
Deus.
Findo o dia que Lhe ofereceste,
Iria devagar de ti saindo
Mas deixava-te ali quieto, feliz do teste,
Por Ele a vibrar, agreste
E lindo.
E Deus, lá do cimo,
Ficaria feliz por ter conseguido,
Através de teu imo,
Levar um bocadinho mais de luz e sentido
Da terra ao limo.
Qualidade
Qual a qualidade de teu amor?
Amas para exprimir emoções ardentes
De tua flébil alma no interior?
Amas porque deveras sentes?
Amas para partilhar o que ali de Deus recebes?
Como demonstras o amor que em ti concebes?
Logras amar
E tal amor demonstrar?
Teu coração a fremir
Logra fazer-se ouvir?
Consegues que se sintam amadas
As pessoas em teu amor ancoradas?
Que amas logras dizer
E quanto, ao menos, sequer?
Consegues, ou então
Não?
Verdadeiro
Quando ama,
Ninguém precisa de receber nada em troca.
O verdadeiro amor sente-se, não reclama,
E dá-se, não convoca.
Não é preciso receber.
Mesmo quando o que recebe
É o contrário do que der,
O amor não se esvai,
Percebe
E, discreto, retrai.
O verdadeiro amor é o que ama
E é tudo.
Se tiver retorno satisfatório, aclama,
Sortudo.
Mas, afinal,
Nunca depende de tal.
Quem estiver sempre a exigir,
Precisar que o outro faça isto ou aquilo
Para poder amá-lo, a seguir,
Não ama, nem em sigilo.
Tem uma ideia enganadora
Do que gostaria
Que seu amor fora
Algum dia..
Exige-o tal e qual então:
Não é amor, é uma ilusão.
Como deves saber,
Da ilusão no jogo
Sais sempre a perder
Logo.
Quem precisa que outrem faça,
Diga, seja isto ou aquilo,
Está fazendo trapaça,
Manipula um boneco ao seu estilo.
Isto não é amor, é controlo.
Quem amar deveras
Sente que o amor é colo
Incondicional em todas as esferas.
Ama simplesmente, como os céus,
Inteiro aí,
Como Deus
Te ama a ti.
O amor genuíno
Sem senões nem porquês
É o hino
Do Infinito a germinar da pequenez.
Está
Deus está no ruído,
Acolá,
Da colher que tem mexido
O chá.
Está na natureza
Até à mais humilde beleza.
Prestar-lhes atenção
É atender a Deus, então.
Queres atendê-Lo quando meditas, rezas
Ou elevas o pensamento aos céus.
Entende-o Deus
E agradece, que nisto o prezas.
Repara, porém,
Que está cá em baixo também
A dar luz ao mais pequeno
A quem não dás nem um aceno.
Cuidas que só está no que é importante
E só do que é importante é que te importas.
E se Deus estiver de ti diante
Na chuva que bate às portas,
Na flor que pisaste,
No animal que não cuidaste,
Em toda e qualquer perdida
Manifestação de vida?
E se Ele estiver
No barulho que ao mexer o chá
Faz a colher,
Se no próprio chá escondido está,
Como está, quantas vezes em vão,
De quem o mexer na solidão?
E se ele estiver dentro de ti,
Dentro de teu peito,
No mais importante que tens aí
E a que importância não dás de nenhum jeito?
E se Ele estiver
Nas lágrimas que teus olhos choram,
Quando decides não dar mais guarida
A quaisquer
Demónios que em ti moram
E abres comportas à emoção contida?
E se Ele estiver no sorriso
Largo e aberto e franco
De quem chora quando é preciso
E se alegra, em seguida,
No grácil arranco
Dos momentos bons da vida?
Quando fores praticar
O acto mais ínfimo do mundo,
Pensa em Deus nesse lugar
Jucundo.
Abre o coração,
Deixa-O entrar.
Ele irá ficar aí então.
Alegria
Por vezes há eventos na tua vida
Que te enchem de alegria,
Uma conjuntura feliz inatendida,
A concretização do que jamais acontecia...
Bandeira aos ventos,
És, de raiz,
Por momentos,
Extremamente feliz.
Que fazes então
Com esta felicidade toda?
Aproveita-la, goza-la, pejado o coração
Para a boda?
Aproveitas para sentir, sentir,
De maneira a equilibrar,
Ao fruir, fruir mais, fruir,
Os dias menos bons em que é de chorar?
O que fazes com a alegria
É correr contar a alguém.
Não logras viver, em primazia,
Só para ti
A festa intensa que te sorri
E que te tem.
Aquele a quem tu contas a alegria
Nunca ta devolve com igual energia.
Como não está dentro do assunto,
Por ti fica contente,
Por junto,
E segue em frente.
Como a pessoa não se anima,
Crês que o problema é dela
E contas a outra que, por cima,
Repete a mesma sequela.
Vais murchando, murchando
E, a certa altura,
Quem já não se anima, mal se renovando,
És tu, cavaleiro da triste figura.
Que fizeste de errado?
Esvaíste a energia,
Dispersaste-a por todo o lado,
Não a guardaste na tua almotolia,
Para te encher,
Para te iluminar
Quando das trevas uma hora qualquer
Chegar.
Para ti nunca guardas nada,
Depois culpas os outros que não se animam
Com a tua jornada,
Que não te entendem quando os loiros te encimam.
Chega um momento
Em que, como não se interessam,
Já nem tu te interessas
Com o elemento
De mundo novo que meças,
Com as graças que te atravessam.
Às vezes temos de guardar a sós
Alguma coisa para nós.
Tal se fora um segredo,
Só para nós, íntimo credo.
Aproveita, anima-te e te empenha.
Fica com toda a energia
E guarda a senha.
Para que vais explodir? Fica. É magia.
É o energizante condimento
Que te seduz,
De teu íntimo o sustento,
Teu alimento de luz.
Lonjura
Há uma lonjura de amar a fragilizar-se.
O amor é uma vivência
Única de contentamento, entrega e doação,
Sem qualquer disfarce
Nem cedência,
Todo ele inteiro coração.
O amor é um acto solidário
De alma a alma, temerário,
Quando as pulsões do coração
Se encontram mutuamente
Nos sonhos seus
E alam, em voo coerente,
Rumo à dimensão
Dos céus.
É mais alto que tudo, o amor,
A mais elevada atitude a efectivar
Que um homem se há-de propor
Almejar.
A fragilização é o contrário da resistência,
Fragilizar-se é escolher desligar,
Prescindir do controlo, ir até à cedência,
O comando do céu aceitar,
Tanto na vida sem ilusões
Como nas emoções.
É deixar ir na corrente
Sem resistir e sem medo,
Somente
Porque, sendo assim que tem de ser, cedo.
Assim, sem controlar nada,
Pode o céu guiar a vida
Por sábios conselhos, a cada jornada,
Através da intuição alerta e atendida.
Deus só logra falar,
Deixar-se ouvir
Por quem frágil escutar.
Só logra comunicar
Com quem prescindir
Do ego
E não pretenda saber tudo, num desassossego.
Tudo sabe Deus,
Mais ninguém fora dos céus.
Mas porquê tal corda tensa
Entre fragilizar-se e amar?
Porque, se não te deixas fragilizar,
Não amas nunca, eis a sentença.
Se não te deixas ir
Ao sabor
Da corrente da emoção,
Se não te deixas diluir
Na dor
Quando te esmagar o coração,
Se alguém não aceder
À dor quando ela vier,
Nunca poderá sair da toca
E entregar-se com fervor
Ao afecto que mais dor provoca:
- O amor.
Quando aceitares que só aceitando a dor
Quando ela vem,
Sabendo que para tudo ser bom
Terás horas de sofrer também,
Só quando aceitares que de tudo o tom
É dual
E que é preciso acolher e harmonizar os dois,
Cada qual
A seu tempo, depois,
Apenas então estás pronto para te dar, sem falso pudor,
Definitivamente,
Incondicionalmente,
Ao amor.
Comando
Assumir
O comando da vida.
Sentir
O que há para fazer.
Fazer o que a fazer se tiver,
Sem adiar a medida.
Alturas há
Em que a vida a uma bifurcação
Te conduzirá
Tão nítida, clara,
E rara,
Que vais mesmo ter de escolher
Por que mão
Correr.
Podes não querer
Optar,
Não ter
Que tomar
Uma decisão
Qualquer.
Mas um dia a vida à bifurcação perfeita
Vai-se encarregar
De te levar,
No termo da recta.
Ou vais para um lado
Ou para o outro vais,
Sem de ponte alçado
Dum ao outro cais.
Contrários, opostos, e tens mesmo de ir,
Não podes ficar parado
E em frente não há como seguir:
Chão maninho,
Em frente não há caminho.
Para a esquerda ou para a direita,
Tens de assumir o comando,
Tens de te concentrar,
De te interiorizar,
Em busca da íntima atitude, tão mal afeita
A teu mando.
Pensar, reflectir, não.
É o que mais, na hora de escolher,
Farão.
Não há por aqui saída sequer.
É o momento de trepar lá acima,
Escolher a luz,
No píncaro que o imo encima
E o céu lhe traduz.
Tens uma opção:
Um dos caminhos é de luz,
O outro é de escuridão.
Não é um certo e o outro errado,
Nem que o certo tenhas de escolher.
Até o podes pôr de lado
E o errado então é que vai ser.
O que importa é a luta
Entre a luz e a pesada escuridão
Que se apresentam em disputa
Para que escolhas por tua decisão.
Não é hora de pensar,
De ponderar não é hora,
É hora de ao céu trepar
Agora,
Tentar sentir onde há luz
E segui-la:
Perfila
O que me seduz.
É a hora tranquila
Do que me traduz.
Este é o comando,
É assumir o comando da vida:
Dois caminhos por onde ir entrando,
Ter de escolher qual o de ida.
Aceitar escolher a luz,
Ir lá acima sentir,
Dela no apelo,
Qual dos caminhos a ela se reduz,
Escolhê-lo.
E o caminho então seguir,
Sem mais atropelo.
Problemas
O significado dos problemas
Podes encontrar.
Cada evento que te ocorre vai falar
Contigo dos lemas
E do eventual abrigo.
O Cosmos anda sempre a falar contigo.
Cada conjuntura em que te encontras
Tem um significado.
Exibe hoje, nas montras,
O que no passado
Teve início
Num desprezado resquício,
Um ponto zero em que tudo começou
E aí mora a resposta
Para o que descambou
Na tua aposta.
O exacto princípio pode não ter sido
Quando cuidas que principiou.
O que em tua vida há uma semana estoirou
Pode ter-se desenvolvido
Há um ano ou mais, quando a primeira pedra
Foi lançada ao leito donde tudo medra.
Aqui, neste princípio exacto,
Reside o problema e a solução.
Que atitude modelava teu acto
Naquela ocasião?
Que tinhas em mente
Quando ele principiou realmente?
A postura que propugnavas naquela hora
Não é igual à do problema que atrais agora?
Acalma-te e pergunta:
Quando isto principiou, no exacto início,
Que energia minha atitude junta
Àquele momento, como um vício?
Quando encontrares a postura inicial do problema,
A atitude que emanaste,
Então podes alterar o lema,
Outro pendão prender a qualquer haste.
Podes reverter a gosto
Tua atitude
Convertendo-a na virtude
Do pólo oposto.
Reparando na violência
Dos ventos,
Podemos aprender com a experiência,
A rota a alterar a todos os eventos.
Quando lograres seguir este itinerário
Longo e doloroso,
Terás energia para mudar de fadário,
Elevar tua atitude ao píncaro mais alteroso
E nunca mais voltar a atrair, para diante,
Conjunturas com perda semelhante.
Dos céus,
Deus
É quem to garante.
Emanaste
Quando tiveres um problema,
Tenta entender o que emanaste
No exacto início dele, qual foi teu esquema,
Que atitude protagonizaste.
Quando entenderes o que foi
Que atrai o mal de agora
Perguntaa porque insistes na atitude que dói,
Que chama o que te devora.
Que é que tua postura, afinal, quer
Esconder?
Sempre irás encontrar esta lição:
Queres esconder a tua imperfeição.
Queres ser perfeito para os mais,
Para ser amado
Num rio de bons sinais
E nunca rejeitado.
Toda e qualquer acção
Que por trás tenha, embora ligeira,
Uma busca infrene de perfeição,
A recusa da limitação,
Fatal na nossa esteira
De vida, não pode vingar,
Só trará mais problemas a par.
Tão importante é compreender
Que emoção anda por trás
De quem perfeito quer ser,
Fanático e tenaz.
Tal emoção,
Inata ou adquirida,
É dele a missão
A ultrapassar durante a vida.
São
Os indivíduos são o que são,
Não podes torná-los melhores,
Não podes torná-los piores,
Não podes fazer nada por eles, então,
Que, num gesto pioneiro,
Não escolham primeiro.
Podes ajudá-los a escolher
Escolhendo tu antes que teu parceiro
A escolha que a ti couber
No sendeiro
A percorrer,
Escolhendo a luz,
Sempre a elevar tua atitude.
Quando virem que mudaste
Para aquilo que nos seduz
Irão crer que não ilude
Aquilo em que apostaste:
Que é possível mudar,
A partir do íntimo um mundo novo a gerar.
Quando o perceberem,
Para si próprios irão olhar
E a muda tentar
Que no fundo quiserem.
A mera tentativa é já mudança,
O facto de crerem que mudar é possível
Já um tremendo mundo novo alcança,
Imperdível.
Entendes a força de mudar primeiro?
Poderias lamentar: “é mais difícil mudar-me a mim.”
É verdade, daí ter valor cimeiro.
Se queres que alguém faça, por fim,
Primeiro faz tu, abre o carreiro.
Se queres que alguém aja de certa maaneira,
Age logo tu, com ele emparceira.
Poderão não fazer o que querias,
Mas a muda principiou e corre avante.
Ora, isto é que é, no mistério dos dias,
Deveras importante.
Soldado
Repara num soldado, está na guerra.
Como se estará sentindo?
No campo de batalha, o ferido que berra,
Balas perdidas, companheiros caindo,
Como estará aquele coração?
Explodindo
De emoção,
Morte, ansiedade,
Tormento, brutalidade...
Coração de soldado que um dia foi criança,
Acreditou ingenuamente na vida,
Que um dia pediu a Jesus que as guerras findem sem tardança,
Que o mundo confraternize na festa apetecida,
Que todos, dando as mãos,
Vivam como irmãos.
E ei-lo agora ali,
Nos antípodas do sonho,
A ter de gerir, a golpes de bisturi,
Toda a história de sua íntima atitude,
No contexto medonho
Que já nenhum sonho ilude.
Porque é que a criança que queria a paz
Num cenário de guerra é colocada?
O Universo é perfeito no que faz.
Qual, então, a mensagem cifrada?
Cada um veio à terra a sua luz esparzir
Pela densidade pesada da escuridão.
Por mais eventos que venham a emergir,
Por mais que atraia conjunturas, adversas ou não,
Viva como viver da vida a sequência,
O importante é perder contra a luz a resistência.
Por mais que o céu avise,
Mil eventos envie,
O homem insiste na força, no que quer que vise,
Ganhar fibra não vê como adie,
Pretende, com insistência,
Manter e aumentar a resistência.
Quanto mais guerras atraiu,
Em vez de se fragilizar e entregar à luz,
À emoção que às profundezas o abriu,
Mais insiste
No que o mesmo reproduz
E resiste, resiste, resiste.
Mesmo quando percebe
Que quanto mais resiste, pior,
Mesmo então não desiste
De dar ouvidos à voz que recebe,
Incansável, fatídica, dum estranho refego
Interior,
A voz do ego.
Era mais fácil entender
Que, se com esta atitude
Nada a contento anda a ocorrer,
Então é de sublimar-lhe a virtude
E transmudá-la, a cada jornada,
Numa atitude mais elevada.
Era mais fácil, mas não.
Preferem crer que sabem a solução
E cada vez se afundam mais.
- E tu perceber quando é que vais?
Abre
Não abre o coração
Mais de metade
Da humanidade
Com medo da rejeição.
Mais de metade dos homens, a par,
Esperam, com mil cuidados,
Primeiro ser amados
Para depois poderem amar.
Muita gente
Fica com seu par
Porque amado se sente,
Apesar de não amar.
Quando alguém amar alguém
E tal alguém não corresponde,
À rejeição porque é que de reagir tem,
Na lógica do contragolpe, sem ligar onde,
Em lugar
De apenas amar?
Apenas se concentrar
No amor que sentia,
Sem nada em troca esperar,
Apenas se empenhar
Na força, na energia
De sua própria postura.
Que é que aconteceria?
Uma pessoa não se iria
Sentir mais rejeitada, mas segura,
O amor não lhe encolheria,
A viver de restrição.
Não, ela amaria,
Liberto o coração.
Amava apenas,
O que lhe elevaria
De tal atitude a energia
De tal modo que dali as derivadas cenas,
Eventualmente, por derradeiro,
Até poderiam atrair o amor verdadeiro.
Chama
Vida nova chama
Por ti agora.
Novas pessoas, novos eventos,
Tudo reclama
Contra a demora.
O passado morreu, extinta chama,
Tem de morrer de vez em teus momentos.
Tudo o que até aqui valia
Deixou de valer,
Aliás, nunca valeu, mera fantasia
Em nós a teimar prevalecer.
As hipóteses viáveis
Deixaram de o ser,
De intransitáveis.
Vieste aqui para morrer:
Para limitar,
Definhar,
Quebrar
A tua resistência
À fundura de teu ser,
À tua essência.
Nada tem de ser perfeito,
Mas tem de ser novo,
Nova vida, novas oportunidades a germinar a eito,
A cada canto um renovo.
O que dantes tinha valor
Deixou de o ter.
O que te queiras propor
Que de antanho provenha,
Qualquer que seja, qualquer,
Indivíduo, conjuntura que se desenha,
Forma de agir,
Qualquer medo de sentir,
Tudo é doravante um fado
Duramente penalizado.
Findo o ciclo, acabou a correnteza.
Doravante é tudo novo.
Deixa a vida apresentar-se, que é beleza,
E vais ver, de teu ângulo de renovado povo,
Gozoso
E arteiro,
O que é maravilhoso,
O que é certeiro.
Melhor
Vai buscar o melhor que em ti houver,
Teus olhos que falam de alma,
Deixa saltar cá para fora o deus que se esconder,
O deus que és, de teu profundo mar na calma.
Todos somos deuses.
Porque tentamos disto escapar,
Sempre aos adeuses,
As costas a virar?
Porque tentamos esconder, manipular,
Mentir,
Seduzir,
Para o que não é nosso conseguirmos alcançar?
Vai buscar o melhor de ti.
Tens um âmago, uma luz,
Tens alma aí
Que a fundura e o mais-além em ti traduz.
Agir por aí vai fazer-te brilhar,
Brilhar ainda mais.
Vai buscar teu luar,
Teu inconsciente de surtos siderais.
Trá-lo também cá para fora,
Olha-o nos olhos,
Prescinde dele sem demora
Em quanto, em vez de alicerce, te arme escolhos.
Apenas então vai lograr o céu
Tocar o coração que é teu.
E este, ao sentir dalém o toque, vai reagir,
Vai abrir-se, alvor do dia,
Vai sorrir,
Iluminar-se de alegria.
Tens de ter consciência, porém,
Tens de escolher ir buscar
O melhor de ti por ti além,
Sem tergiversar.
É uma escolha diária,
De hora a hora, minuto a minuto, instante a instante,
Constante
E sumária.
A cada evento,
Rejeição,
Julgamento,
Culpabilização,
Olha em teu fundo aí,
Escolhe o melhor de ti.
Chora, sem alibi,
O que tiveres de chorar,
Mas escolhe-te a ti,
A par.
Por mor de isto ocorrer,
Algo faz que a vida mude,
Devém mais elevada do imo a atitude
E, sem a gente aperceber,
Tudo o que sentes e vês
Desata a sorrir outra vez.
Comprometimento
Opta pelo não comprometimento,
Não estás comprometido com ninguém,
Com nenhum evento.
Ninguém tem
De comprometer-se contigo,
Ninguém tem de te fazer nada.
Tudo o que te fazem é ao abrigo
Da atitude que escolheram na jornada.
Não te fazem nada a ti,
A eles próprios o fazem.
De tudo só te chega aí
O fardo que te cabe carregar
Dos dados que te aprazem ou desprazem
Ao andar.
Ninguém deve nada
Nem nada tem de fazer.
Cada qual tem sua restrição fadada,
Responde-lhe como puder,
Permanecendo na opaccidade
Ou escolhendo a luz.
Se ficarem como estão, a terra que os invade
À terra escura permanente os reconduz
E reduz.
Para evoluir, urge mudar.
A luz escolher,
Na mais elevada atitude que se logre alcançar,
Aí, permanecer.
Trepamos a cada etapa mais alto
Até um dia nos livrarmos da miséria
E, dado o salto
Da matéria,
Nosso êxtase céus além traduz
De Deus a luz.
4
Quarta Estrela
Felicidade
Hoje vamos trabalhar o lado bom,
A felicidade de estar vivo,
A alegria de escolher a atitude e o tom
Da energia que em meu fundo arquivo.
Hoje vamos comemorar,
Festejar o facto de a vida que em nós viceja
Ter um lado bom a saborear,
Por mais dual que seja.
Hoje não é de chorar,
De trabalhar perdas, tristezas nem cansaço.
Hoje é dia de dar
O abraço,
De adorar
A comunhão.
Isto de fazeres parte do todo que é a vida
No infinito turbilhão,
De entenderes que há muita surpresa escondida,
Reservada
Para ti nesta jornada.
Os céus estão preparando tudo
Com muito cuidado.
Conjugam esforços sobretudo
Para que o trabalho que tens feito
Seja recompensado
A preceito.
Programam a vinda duma estrela
Para te guiar mais de perto,
A dizer-te, do céu na tela,
Que te portas bem, decerto.
E é, por outro lado,
Deus a dizer-te obrigado.
Calma
Há uma calma,
A calma dos justos que fazem o que têm de fazer,
Guiados de alma,
Dos que estão onde têm de estar,
Seja o que for este lugar,
Seja o que for
Este ser.
E esta calma é a prova maior
De que o que acontece é para acontecer.
E é mais, porém.
Quer dizer que o que era preciso
Fizemos também
Para se desenrolarem os eventos
Do Infinito ao sabor dos ventos.
É a calma do conciso
“Finalmente, o fim.”
Na imensidão da estrada,
A calma do dever cumprido, enfim,
A calma da fiel alma emancipada.
Julgamento
Nunca o julgamento,
Que julgar é sempre achar-se mais que os mais,
Cuidar, de entrada,
Que sabes tudo, cheio de dons geniais,
E as mentes de vento
Dos outros não sabem nada.
Só tu tens a receita
Do bom desenvolvimento
De qualquer evento
E qualquer tentativa dos mais mal se ajeita,
Tornada inútil ou descabida,
De ser tão mal gerida.
É o que é julgar,
É o que leva à separação.
A análise, não.
Analisar é verificar
Se algo é correcto ou incorrecto
Sob o ponto de vista de teu mais elevado cimo,
Do tecto
De teu imo.
É o que, sendo inadiável,
Nos é mais recomendável.
Há quem não analise nada
Com medo de andar
A julgar
Ao correr de cada jornada.
Cuidam que tentar perceber
O que para si é mau ou bom
Há-de já ter
De julgamento algum tom.
Então vão andando sem perceber
Nada do que lhes acontece
Por terem perdido o poder
De analisar da vida a quermesse.
Se pondero que alguém ou algo estão certos
Na perspectiva de minha íntima atitude,
Estou analisando, olhos despertos,
O que me apoia ou me ilude.
Se considero que outrem tinha ou devia agir
Doutra maneira,
Que é isto ou aquilo por não seguir
A rota na minha esteira,
Este intento
É que é julgamento.
Não concordo contigo
Mas enfrentarei o mundo inimigo
Para defender
O direito que tens de o fazer
- Eis a sentença
Que faz toda a diferença.
Moldares
Tudo serve para te moldares.
Ao ires ao âmago da questão,
Ao núcleo da emoção
Que te provoca,
Tudo serve para te livrares
Do mal-estar que se alojou na tua loca,
Do condicionamento,
Do inapelável que for o teu tormento.
Somos objectos de memória
Quase isentos de presente.
Quatro quintos de passado, a nossa história,
Mais um de medo de lá ir, de antanho à mente,
Projectando cada qual, inseguro,
Tudo no futuro.
“Farei”,
“Conseguir irei”
São os termos de quem no porvir
Projecta as esperanças,
Não entendendo que o futuro há-de vir
Das escolhas que hoje entranças.
Para fazê-las, só sintonizado no presente,
Respondendo ao desafio que agora traz,
No intuito de te livrar do peso ingente
Que esmagado te põe, incapaz.
Só livrando-te do peso negro de hoje
Estarás limpo para as escolhas,
Neste instante que te foge,
Que irão construir o que amanhã recolhas.
Ao agora tudo serve para moldá-lo,
Absolutamente tudo.
Tudo o que ocorrer
De desprazer
Ou regalo.
Se despejas da panela o conteúdo
Ao tropeçar na escada,
Se um filho ou parente te provoca
Até à exaustão,
Tudo é uma entrada
Que te coloca
Do que sentires no desvão.
Estando atento ao que sentes,
Repara que tal emoção
São memórias de passados aqui presentes
Onde viveste idêntica situação.
Chama o tubo de luz, no céu a jeito,
Para aspirar
O mal-estar
De teu peito.
Esta é a via. Cabe-te escolher agora
Onde utilizá-la sem demora.
Deverá ser sempre, em qualquer lugar,
A qualquer hora,
Sempre que alguém ou algo te pisar,
Te fizer sentir o momento desagradável.
Nada complexa nem confusa,
É a rota viável.
- Usa-a!
Respira
I
Fecha os olhos e respira,
Respira profundamente.
Deixa entrar uma luz branca pela cabeça.
Mesmo que a não vejas, sente,
É o ponto de mira
Que interessa.
Sente a cósmica luz a entrar
Em fértil ribeiro
E a percorrer, a branquear
Teu corpo inteiro.
Depois pensa em todos de quem gostas.
Estão dentro, incorporam a tua energia,
De tanto gostar deles, levaste-os às costas
Aí para dentro, algum dia.
Agora
Retira-os um a um
De tua energia para fora,
Que em teu imo não fique nenhum.
Não importa o que demorar,
Retira-os de tal lugar.
Que cada célula tua se abra para expelir
A energia deles de dentro da atitude
Que teu imo assumir
E a que cada um deles grude.
Não os estás expelindo de tua vida,
Apenas da energia de tua íntima orientação,
Da postura seguida
Por teu coração.
Quando terminares, respira outra vez
Profundamente.
Deixa a luz branca que acaso nem vês
Entrar pela cabeça até ficar, por derradeiro,
Em ti presente
Por inteiro.
O trabalho, o estudo,
O que quer que faças todo o dia,
Vais retirar isso tudo
De dentro de tua íntima energia.
Célula a célula faz
Que a energia dos afazeres quotidianos
Saia de teu sistema, a torná-lo mais feraz
E sem enganos.
Demore o que demorar,
Liberta o teu lugar.
Depois o dinheiro:
De teu corpo retira-lhe a energia maligna,
Certeiro.
Não estás a retirá-lo de tua vida digna,
Mas antes dele a postura arrogante,
Materialista, pisoteante.
Respira, recebe a luz
Que o céu em ti logo introduz.
Agora, as relações afectivas,
O amor e a falta dele.
Retira estas prisões esquivas
Mas, do tutano à pele,
Efectivas.
Deixa que cada célula expulse
Cada atilho destes que em teu íntimo pulse.
E a saúde ou a falta dela
Que de teu corpo as extirpes, fique limpa a cela.
E aqueles de quem não gostes,
Com quem não te dás bem?
Sente, em ti, deles a imagem a que te encostes,
A energia que suga por ti além.
Retira-os de teu imo também.
Por fim, os problemas,
Prescinde-lhes da energia.
Prescinde da energia que não é a de teus lemas,
Que não é tua: é, dentro em ti, uma tropelia.
Continua a receber
De Deus a luz,
Da cabeça até aos pés,
Ao soltar a energia que não é tua, te não traduz,
Vais ficar livre de vez
Para a luz do céu entrar.
Sente a luz que o Cosmos te concede
E para Deus entrar pede.
Ele entra em ti
E vai aí
Ficar.
Unir-vos-eis em luz mutuamente concorde,
Até que o mundo acorde
Para vos abraçar.
II
Medita,
Fecha os olhos, respira,
Respira profundamente.
Concita,
Remira
Uma luz branca a entrar pela cabeça.
Embora não a vendo, sente,
Calmamente,
Sem pressa.
Sente a cósmica luz de Deus a entrar,
O corpo inteiro a te percorrer.
Depois pensa, devagar,
Naqueles de quem gostas, em quenquer.
Repara que estão dentro
De tua energia.
Levaste-os para o teu centro
De tanto os amares, são o teu dia.
Agora, um a um,
De tua energia os retira.
Não importa se demora tempo algum
A acertar na mira.
Retira-os, que não reste nenhum
Na energia que em ti respira.
Pede que cada célula tua
Se abra para expelir
A energia deles para a rua,
Para fora da torrente que em ti existir.
Não estás a mandá-los embora
De tua vida,
Apenas para fora
Das águas vivas que te animam a lida.
Quando terminares,
Respira outra vez, profundamente,
Os puros ares.
Deixa a luz do céu entrar, presente,
Pela tua cabeça, o corpo inteiro a percorrer,
Outra vez, luz de teu ser.
Agora vamos ao trabalho ou estudo,
O que quer que seja em que laboras todo o dia.
Vais retirar de ti tal energia.
Célula a célula, mudo
Faz com que a energia de teus afazeres quotidianos
Da tua saia, sem mais danos.
Demore quanto demorar,
Liberta-te deste par.
Depois, o dinheiro.
Pensa na energia dele,
Retira-a por inteiro
De teu corpo, de tua pele.
Não estás a retirar o dinheiro de tua vida,
Mas a energia dele que em ti se implante,
Pesada, desmedida
E arrogante.
Respira, recebe luz pela cabeça
Até que em ti tudo ela meça.
Agora, as relações afectivas, o amor
Ou dele a falta.
Retira esta energia de fervor,
Deixa que cada célula da ribalta
Afaste o frio e o calor.
Agora a saúde ou a falta dela,
Que cada célula a afaste de tua tela.
E aqueles de quem não gostas,
Com quem não te dás bem,
Retira a energiaa deles de tuas costas
Também.
Por fim, os problemas.
Prescinde da energia deles,
Não são lemas
A que apeles.
Ao agir, actua
Prescindindo de toda a energia que não é tua.
Continuas a receber pela cabeça
De Deus a luz que em ti se estabeleça.
Ao soltar
A energia que não é tua,
Cada célula vai ficar
Mais livre para a Lua
A iluminar.
Sente a luz dos céus
Em ti a entrar,
Pede para entrar Deus.
Ele entrará em ti
E ficarão juntos em luz,
Até que o mundo caia em si
E abrace a infinidade que se ali
Traduz.
Sentir
Deixa-te ficar apenas a sentir,
Tal como estás.
Respeita isto como surgir.
Às vezes não gostarás,
Outro sentimento irias preferir.
Vês que o rumo dos eventos não deve ser mudado,
Mas sentes o contrário?
O que estás sentindo é que é normativo: deve ser respeitado.
É o teu bem mais precioso,
Não um estranho fadário,
De fora imposto, oneroso.
Tudo o que até aqui fizeste,
Tudo o que viveste
Foi, a preparar o campo, uma grade
Para a grande verdade:
És o que sentes,
És o que amas.
Contra isto poderão vir correntes,
Furacões, tornados, vagalhões de lamas:
Tua verdade derradeira mantém-se de pé,
É o que é.
Mas, enquanto não aceitares o que sentes,
Deite embora tudo o mais a perder,
Tuas garras corte embora rentes,
Enquanto o não aceitares não consegues ser
Ninguém com atitude e postura definida.
Sem coluna vertebral,
És vago, escorregadio, uma enguia fugida,
Hostil e frígida, afinal.
O que sentes é o teu bem mais precioso.
Mas, para em ti brilhar,
O que sentes terás, atencioso,
De aceitar
E de cumprir-lhe o apelo especioso.
Apenas aceitar é ficar a meio do caminho:
- Vais querer ficar a meio, em ti sozinho?
Desculpa
Há quem creia que desculpa é só quando
O que houver de errado
Ocorreu propositado
No desmando.
Quando não for intencional
Não te deves desculpar?
Quando fazes sofrer cada qual,
Só porque o não premeditaste,
Não foi de propósito, afinal,
A desculpas já não há lugar?
Não há dor que baste?
E o outro que sofreu?
Apesar de não querer,
Fizeste-o sofrer.
A tua acção
Doeu,
Intencional ou não.
Temos de nos responsabilizar
Por todo e qualquer acto.
Se não houver intuito, mas teu acto magoar,
Desculpa-te de imediato.
Cuida do lesado,
Mesmo que ele tenha atraído o sofrimento,
Para a dor que lhe haja tocado
Ser o fermento,
O meio,
Do íntimo desbloqueio.
Ter isto em mira
A tua responsabilidade nunca retira.
Teres sido o instrumento
Que o céu utilizou para desbloquear alguém
Não implica, em nenhum momento,
Que tenhas feito uma escolha qualquer
Donde provém
Que tenhas feito sofrer
Alguém.
Seja qual for a circunstância,
Tens responsabilidade
Nesta instância
Que o impele
À dor que o invade.
Cuida dele.
“Desculpa, não te quis fazer sofrer.”
“Não percebi, não sabia. Perdoa.”
Dá-lhe um abraço de quem bem lhe quer,
É um graande curativo para quanto doa.
Então, interiormente,
Sairás limpo de quanto atormente.
Todos erram, não é o problema.
A questão
É como encaramos o erro, cujo tema
Ou cura ou traz lesão.
E nem todos, para que as perdas acabem,
Pedir desculpa sabem.
Aperto
É o aperto no peito
O sinal.
Correste a vida a eito
A ignorá-lo, afinal,
A saltar por cima dele,
Tal se não importara.
Como se não fora parte de ti, tua pele,
Tua interioridade gritando clara,
A chamar.
E tu aí sem sequer reparar.
Sempre que algo provocava o aperto
Ou decidias
E escolhias,
Ou pensavas em algo que te trazia a sede do deserto,
- Julgavas estranho
Mas seguias em frente,
Que o ganho
É desafio permanente.
“A vida” -
Pensavas -
“É para ser vivida.”
E continuavas.
O aperto não te detém,
Não te entrava,
Não faz que revejas, como convém,
A tua vida escrava.
Não fez com que te atrases no caminho,
Ao menos até ver do que se trata.
Não.
Adivinho,
Não te desbarata
O que breve desaparece: ansiedade, depressão...
“A vida é escassa.
Vou tomar um comprimido, que isto passa.”
O aperto não se esvai, porém,
Até que te habituaste a viver com ele,
A conviver a bem.
Passou a fazer parte de ti,
Enxertado em tua pele
A bisturi.
Pssaste a crer que era natural,
Viver é assim,
A vida é assim, afinal,
O aperto não tem fim.
Ora, tua flébil alma que grita,
A pedir socorro,
A pedir ajuda, a ver se a concita,
Só sabe falar contigo desta maneira,
Não tem aforro
Doutra fala à beira.
Apenas este jeito
Dum aperto no peito.
Desprezando do mal-estar a palma
Desprezas tua frágil alma.
E ela, dentro de teu peito,
Precisa tanto de ti!
Precisa de teu respeito,
De tua atenção,
De teu discernimento,
Do caminho no teu chão,
Da astúcia, da inteligência,
De cada evidência
Em teu momento.
Não para a maltratares,
Excluíres,
Nem para fingires
Que não é nada, sopro nos ares.
Não para a rejeitares,
Lhe faltares ao rigor,
Nem para a modificares,
Feito senhor.
Ela precisa de ti para seres quem és
Verdadeira e livremente,
Da cabeça aos pés,
Em cada acto que se sente
E te torna presente.
Precisa da tua sabedoria
Para se manifestar.
Precisa da tua escolha cada dia,
Daquela que teu lugar
Traduz
Para aceder à luz.
Expõe-te
- ”Expõe-te!” - é tudo quanto
O céu te pode dizer.
Tem de acordar-te do quebranto
Para que mostres a quenquer
O que tens
E ao que vens,
Para abrires do coração a represa
Sobre a comunitária mesa,
Para o fazeres pela certa
De alma aberta.
Quem não entender, não entendeu,
Mas não vais deixar de ser quem és
E de o mostrar, corifeu,
Ao mundo que te corre aos pés.
O mundo só existe para te expores
Sem temor da rejeição,
De ser ridicularizado ao propores
Teu pendão.
Quanto deixas de fazer
De te expor com medo?
Quanto deixas de viver
De errar pelo temor tredo?
O medo de errar
Leva a não se expor.
Quão menos alguém se expõe, a par,
Mais escorrega no abismo
Do pendor
Do conformismo.
Um dia, de tanto se esconder
Doutrem e de si,
Acorda já sem saber
Quem é que esteja ali,
Nem quem foi, num passado qualquer,
Nem faz ideia do que pode vir a ser.
A vida é feita de vivências.
Quando alguma rejeitas
Com medo de te expores nas carências,
Com medo de errares, de malas feitas
Para te não julgarem por isso,
Cada vez que de ti te demitires
Em nome de não te expores, enfermiço,
Ao não ires
Retiras à tua débil alma experiências,
Retiras-lhe aprendizados e sabedoria,
Devém-lhe a resma das ciências
Vazia.
Jamais em causa anda o erro,
A questão não é parar de errar.
Dual, imperfeito é meu aterro
E eu com ele tal e qual irei continuar.
Poderei, porém, expor-me ou não:
Em causa está como ao erro reagir,
Quão
Evoluir
À conta de o haver cometido,
O que com ele hei aprendido.
É outra lógica a inaugurar em mim:
A Via é assim.
Fado
Repara no que queres
Mas não logras fazer,
Ou nem o queres nem referes
Sequer,
Que fazê-lo te irá impor
Imensa dor.
Podes não querer
Mas sabes que o tens de fazer.
Sabes, não pela mente
Mas pelo imo,
Porque o intuis, de repente,
O que é da sabedoria o cimo.
Tens de fazer, mas de ti não sai,
Para fazê-lo não dá.
Podes tentar, porém não vai
Tua capacidade até lá.
Repara nisso,
Em teu enguiço.
Algo há-de ocorrer dentro de teu peito,
Um medo, uma pressão
E uma vontade sem jeito
De fugir, de te enterrar pelo chão.
É a tua maior dificuldade,
O teu maior nó,
Algo que outrora doeu muito, nesta ou noutra idade,
Foi bloqueado e de que doravante só
Sabes fugir
Com toda a força que logras reunir.
Tens memória de quando doeu tanto,
Inconsciente embora, mas memória, entretanto.
É o que faz que não consigas doravante
Obrar algo semelhante.
Perguntarás: “se não consigo
Porque é que quero,
Porque é que sei, quase me obrigo
A ter de lá ir, ao recanto do desespero?”
Porque a porta trancada
Por dentro de ti erguida
Tem de ser desbloqueada
Nesta vida.
E, se vens limpar o terreno de teu fado,
Enquanto não reviveres tal memória,
Aceitares a dor de tua ferida do lado,
Não libertarás aquela energia inglória,
E, por conseguinte, não andas cá, dos dias na estrada,
A fazer nada.
Descobre o que mais te custa,
Pensa em fazê-lo,
Deixa o medo apoderar-se de ti à justa,
Abre-lhe o peito com zelo,
Retira tal peso, chora,
Mas limpa-o de ti agora.
Cada vez que nele pensares
Vai doer menos.
Cada vez que tentares
Novos canais,
Em passos pequenos,
Vais atingir mais.
Assim dás a volta ao fado,
Tua predestinação.
Assim dás e te é dado
Sentido à tua encarnação.
Meta
Pensa numa meta resolvida
Em tua vida.
Custou a chegar lá,
Já, porém, estará.
Demorou, afadigou-te, mas conseguiste.
Como um herói quase te viste.
No pretensamente resolvido pensa mesmo,
Imagina-o como quiseres, fantasia-o a esmo.
E agora principia a descascá-lo,
Toda a imagem que te advenha, descasca,
Tira as camadas de matéria, talo a talo,
E as de defesa onde a vida se te atasca.
De tudo descascar no fim da função
Vai restar apenas uma emoção.
Deixa a emoção crescer
Por dentro de teu peito.
Por mais estranho que possa parecer,
Deixa-a crescer, tomar-te a eito.
Deixa-a tomar conta,
Começa a respeitá-la,
Embora pareça contraditória de ponta a ponta,
Embora a não entendas nem quão te abala.
A emoção é a dona
De todas as sabedorias.
Aceita-a apenas, seja o que for que ela abona
Em teus dias.
Verás então
Que o que tão bem resolvido te surgia,
Qualquer que seja a situação
Não está tão bem resolvido como parecia.
Herói
Quem é o teu herói?
Como é que ele é?
Que qualidades tem, constrói
E põe de pé?
Que mais admiras nele?
Em quem te espelhas?
“Gostava tanto de lhe estar na pele,
De ter o que tem, prendas novas ou velhas,
De fazer o que faz!...”
De pensar isto já foste capaz?
Sabes o que significa?
Que queres ser,
Ter
Ou fazer
O que se te não aplica,
Ao menos por ora.
Se for para ti, ainda demora.
Tanto tempo gastas
A focar tua atenção
Nas pastas
Que outrem tem à mão
Que não há tempo para a ti te propor
O que tu próprio tens de melhor.
Não é que nunca vás
Ser, ter ou fazer
O que outrem é, tem ou faz.
Não é isto sequer.
É que, seja o que for que queiras
Ser, ter ou fazer,
Terá de partir, de qualquer das maneiras,
Do que já és, tens ou fazes.
Não há sequer
Outro ponto de partida que aprazes.
É a partir do que já tens
Que amplias teu horizonte.
És tu que amplias teus já existentes bens,
Não alguém que, dentre os bons,
Para ti faz a ponte
E dele para ti trespassa os dons.
Quando focas demasiado
Alguém
No que é, faz ou tem,
Teu foco fica muito limitado,
Não vês o herói como um todo mais além.
Como se só tivera qualidades
E, de defeitos, nem sinal.
Ao pretenderes ser tal e qual,
Pretendes não ter defeitos,
O que não existe no mundo das realidades
A que estamos sujeitos.
Podes até ter heróis,
Gostar de ser quem admiras,
Mas repara que todos os sóis
Que daqui
Miras,
Têm de nascer dentro de ti.
Podes ampliar o que já tens,
Vir a ser ou ter algo de novo,
Ao ampliar quaisquer bens
Em ovo.
Não podes nunca, porém,
Ser outro alguém.
É que não há jamais
Dois eus, dois imos iguais.
Onde aqui há dois
Nunca haverá um nem o mesmo depois.
Fundo
Arte deveras
É mostrar de si próprio uma parte
Tão do fundo que nem o próprio sabe que lá está,
Tão do fundo que o liga às eras,
Às esferas,
Ao Infinito que por ele se reparte
Desde já.
Põe-nos muito vulneráveis
E pode ser radicalmente assustador.
Tudo feito como deve ser, em gestos fiáveis,
Porém, o que concito
Algo criará tão bonito
Que, tanto quanto a mão o apura,
Indefinidamente perdura.
Arte e amor,
Dois veios por onde do Infinito escorre o fulgor.
Raiva
A raiva é a máscara protectora que provém
Da tristeza.
Quando ficas com raiva de alguém,
Quando te enraivece uma frustrada presa,
O dado que existe
É que estás triste.
Tua tristeza dói,
Dói muito.
Teu ego logo reconstrói,
Gratuito:
“Porque é que tenho de sofrer esta dor,
Em suma?
Alguém, é de supor,
Me fez alguma...”
E arranjas um culpado.
De ti próprio retiras o foco,
Focas-te no dessgraçado,
Do pelourinho no soco.
De tanto o julgares,
Desatas a raiva a desenvolver.
A ela própria se alimenta:
Quanto mais a cultivares,
Mais raiva hás-de colher
Da tormenta.
Não é terapêutica, porém,
É um veneno
Que dentro de ti se mantém
E alimenta a cada aceno.
Cedo ou tarde, repentinamente,
Eis-te doente.
De tanto te enraivares,
Tal veneno interior,
Tal postura de baixeza ao inoculares
Em cada órgão fará nele um tumor.
Com o abalo
Vai findar por matá-lo.
É o que para ti queres, de certeza?
A melhor alternativa
É transmudar a raiva em tristteza,
Sem qualquer esquiva.
Tens raiva? Pára e pensa:
Estás triste porquê?
Fica, só, na aragem densa
E triste sê.
Chora se for preciso,
Centra-te em tua tristeza,
Não em quem supostamente te fez perder o juízo,
Que o mal te preza.
Quem sabe se atraíste
E o Cosmos te enviou
Alguém para fazer-te o mal que existe,
A fim de provocar o que provocou:
Essa tristeza
Para olhares, ao ficares triste,
Para dentro de ti, ver a beleza
De quem é lindo, sensível
E com uma atitude de elevado nível.
O mistério que ali cabe
Quem é que o sabe?
Enquanto não ficares triste,
Não logras olhar para dentro
E sentir ao centro,
Em toda a fundura
Que em ti abriste,
Como tua fiel alma é pura.
Enquanto raiva apenas sentes,
Em ti não te concentras
Nem to consentes,
Nunca em ti entras.
Só nos supostos culpados,
De teu foco o centro.
Nunca apontarás teus olhos transviados
Para dentro.
Do fundo do peito,
Pensa nisto, por fim:
O Cosmos não é um equilíbrio perfeito?
Cuido que sim.
Perguntar
Embora a Deus não vejas, podes perguntar.
Podes perguntar, embora O não ouças.
Embora dEle a luz não vislumbres no luar
De tuas bouças,
Podes perguntar.
O segredo está no zero,
No que logras de ego, de resistência retirar,
De pensamento mero,
Do peso mental
Da justificação racional.
A seguir,
O segredo mora na função
De intuir
E de acreditar
Fundamente na intuição
Particular.
Depois,
O segredo
É o poder de sentir a luz de íntimos sóis
E, fundamentalmente,
O credo
No que se sente.
Age assim.
Tens uma pergunta?
A partir de teu confim,
Uma resposta o céu te junta.
Senta-te confortável e respira.
Coloca teus pensamentos numa prateleira
Ao céu pregada.
Torna-te o observador que a nada aspira,
À beira
Do nada.
Olha os pensamentos
Mas não critiques, não tenhas opinião.
De vir aos céus um dos fermentos
É não opinar, absolutamente, não.
Quanto menos opinião formada,
Mais aberto para aquilo que o céu tem
Para te mostrar na estrada
Que te convém.
Agora deixa entrar uma luz pela cabeça.
Embora a não vejas, deixa entrar.
A teu organismo, peça a peça,
A luz vai-te espanejar
E em breve
Sentir-te-ás mais leve.
Depois, então,
Junta
Em teu íntimo clarão
Tua pergunta.
Não penses na resposta nem por um instante.
Espera apenas,
Sem opinião, sem julgar nada, confiante.
Mero observador, somente acenas.
Depois, algo principias a sentir.
Fica, não penses. Pés no chão.
Não desates a bulir,
A ter já opinião.
Mero
Observador dos eventos,
Absolutamente a zero,
Ao sabor dos ventos.
E a resposta vai começar
Lentamente
Mesmo ali a se formar
À tua frente.
Pode ser uma imagem,
Pode ser uma emoção,
Seja o que for que germine da viagem
Estará cheio de significação.
Se lograres ficar a zero,
Sem criticar, nem julgar, nem querer nada
Senão o mero
Roteiro para a jornada
Lá de cima, do céu,
A resposta à dúvida aparece e fica forte,
Viva e cristalina como um troféu,
A desmantelar-te toda a tua hesitação,
Dando-te um norte
Para a acção.
Podes não gostar da resposta,
Ficar triste ou alegrar-te com a nova aposta.
É a verdade, porém,
Que o céu para ti tem
E, ao menos, tem o condão
De te parar de te orientares pela ilusão.
Ora, para quem o Infinito demande,
Isto é já muito, muito grande.
Reverencia
Reverencia a luz,
Diz-lhe quanto te identificas com ela,
Quanto amas o que em ti traduz,
Quanto sabes como do Infinito é tua janela.
Estrela
Que te ilumina a vida,
Barco que te leva a navegar
Para além do horizonte,
Na imensidão desconhecida,
Que te faz a ponte
Para dimensões ancestrais, a resgatar
Pedaços de alma que te andavam desde os idos
De antanho para sempre perdidos.
Reverencia,
Entende como a luz é magnânima e forte,
Absoluta,
Como, da graça na luta,
Mais que teu norte,
É a dona da tua energia
E dela o suporte.
Segue-a até ao fim do mundo, se preciso for,
A resgatar o que mais puro em ti houver,
O que de mais original te puderes propor,
Para à tua vida e a qualquer
Dar cor.
Para à tua existência
Dar sabor
E consistência.
Rende-te à luz,
Entende que não há outra forma
De viver em comunhão,
De viver em evolução,
Senão o que a esta e dela à norma
Reconduz.
Reverencia e trata de te comprometer.
Entende que doravante jamais poderás mentir-te,
Enganar-te, iludir-te
Num rumo qualquer.
Nem que seja da dor nos pantanais.
Nunca mais.
Manifestado
Tudo o que estiver dos céus no cimo
É para ser manifestado aqui em baixo.
Tudo o que vejo além, no cume de meu imo,
É para ser feito no torrão em que me encaixo.
Tudo o que sentes, o que intuis, embora vago
É para que o ajudes a edificar.
O homem sente, pressente dum vislumbre o afago
E vai à horta cultivar.
Este é o caminho
E não há outro de mim próprio vizinho.
Podes querer fazer cá em baixo
O mais confortável ou que te der mais jeito.
Podes iludir-te e o cambalacho
É crer que deves tomar a peito
O que te custa
Porque a outrem serve à justa
Ou porque, em devaneios teus,
Servirá os céus.
Ora, o céu, de entrada,
Não precisa de nada.
Está bem,
Tu é que não.
Tens de ir além,
Abandonar teu ego,
Receber informação,
Indicação, para teu sossego,
Do que deves ou não fazer,
Como quenquer.
A escolha final não vem da rua,
É sempre tua.
Quando lograres compreender
E aceitar
Que em teu trilho talvez não vá caber
O que andas a planear,
Mas antes o que está lá em cima
E que é para ti,
O que intuis no clima
De teu ínntimo que mal vislumbras aí,
Mas sentes que tens de fazer
E, mesmo sem porquê saber,
O fizeres,
- Então serás um iniciado
E a tua vida, teus afazeres,
Mudarão radicalmente de estado.
Terás a força que de teu imo vem
E tudo será limpo, fácil, claro.
Terás chegado também
Nestes passos teus
Mais perto do perefume raro
De Deus.
Espera
Anda a vida à tua espera,
A vida com que nem te atreves a sonhar,
Pejada de músicas, cânticos e quimera,
Pronta para a ti se dedicar
Em toda a amplidão.
Há uma vida, então,
Em que és feliz,
Em que quanto te rodeia
Corresponde à tua matriz
Discreta, subtil, que da fundura te ameia.
Há uma vida em que podes estar,
Viver, sentir, falar
E todos em redor
Entendem tuas raízes, coerência e razões,
Uma vida ao teu dispor,
Ampla, a te elevar de teus pegos e fundões.
E, nas dualidades negociáveis,
As tuas concessões
São mínimas, tranquilas e confortáveis.
Esta vida existe,
Preparada para ti,
Pronta a se apresentar no que te liste
Aqui.
Tens de fazer, porém, uma escolha,
Tens de escolher que mereces.
Mereces ser feliz, mesmo enregelado da molha,
Mereces viver sem a culpa que te teces,
Mereces o carinho,
A compreensão, o afecto em todo o teu caminho.
Mereces o amor, afinal
Um amor incondicional.
O do céu, lá de cima,
Que o sublima.
Quando escolheres merecer tudo,
Irás livrar-te dos velhos vícios,
Das dependências emocionais sobretudo,
Das intérminas cedências cheias de resquícios,
E vais olhar para dentro
Bem no teu centro.
Verás teu imo sorrir,
Que merece uma oportunidade.
Irás procurá-lo, primeira prioridade,
É a estrela a seguir.
Olharás outrem, de entrada,
Não como muleta de tua solidão,
Mas como parceiro de jornada
A que dar a mão,
A quem não se cobra nada.
A quem darás o amor incondicional
Que vais buscar na amplidão sideral.
Leve, fluído,
Passas a voar pela vida
Ao encontro do sentido
De teus dias à medida.
Os outros terão espaço para se manifestar
E tu, para os abraçar.
A cada momento,
De verdade,
Juntos irão correr o firmamento
Rumo à eternidade.
Passado
Alguns dirão
Que não há como fugir ao passado,
Mas eu, não.
Creio que lhe escapo todo o dia
Ao fado,
Repetidamente,
Em cada gesto que o contraria
Como uma sentença
Consciente
Da diferença
Entre passado e presente.
Aquele é apenas a corda-guia
Detrás assente
A partir da qual inauguro um novo dia.
Família
Na minha família humana
Uma geração indesejada,
Não amada,
Aplica à geração que dela emana,
Num naufrágio em que nada é salvo,
De ser amada a incapacidade,
A rejeição de que era alvo,
Como uma fatalidade.
Se não houver um desvio que esgarce
A cadeia de horrores,
Estas crianças irão transformar-se
Noutra geração de vitimizadores.
Esta cadeia interligada
De sofrimento
Não interrompe tal caminhada
Até que alguém a quebre nalgum momento.
Apenas então,
E à custa dum hercúleo esforço,
É que esta heróica geração
Dum saudável porvir há-de inaugurar o escorço.
Buscar
Ninguém tem de vir buscar
O amor à terra.
Tem é de trazê-lo até aqui, ao lar,
Do mar
À serra,
O amor que vai buscar ao cimo,
Aos céus,
Além-fronteiras do imo,
A Deus.
O que tem ocorrido
É o homem nascer ao infindo sem conexão,
Do espírito sem o íntimo sentido,
Ao Infinito sem abertura nem ligação.
Como todos precisam de amor,
A tendência natural
É tentar encontrá-lo onde ele é de supor:
Cá em baixo, na terra, afinal.
Ora, cá em baixo, os outros também andam à procura
De matar, em igual carência, igual secura.
Uns dos outros precisam,
Precisam de compreensão, amor, afecto,
Vão procurar e então deslizam
Uns dos outros para debaixo do tecto.
Por muito que esteja perto,
Não pode, por fim , dar certo.
Os indivíduos, aguilhoados pela premência,
Apenas se irão cruzando por mor da carência.
Aquilo de que um precisar
Mui raro confere
Com o que outrem tiver
Para dar.
A lógica dos eventos não é tal.
Ninguém deveria procurar
A plenitude final
Noutrem com que se cruzar.
Como a não alcança,
Começa depois a cobrança.
Olhemos dum casal as queixas:
Expectativas não cumpridas.
Um quer que lhe corresponda às deixas,
Outro, que lhe preencha sem fundo as medidas.
Cada um cobra o que queria ter,
Não respeita o outro como é realmente.
Vidas carentes a tentar preencher
Pela mão doutrem, o vazio que as atormente.
A única alternativa viável
É olhar para as alturas,
Ir suprir a carência inevitável
Lá em cima, do infinito nas molduras.
Podemos ir lá buscar compreensão,
Carinho, apoio, brincadeira,
Afecto, cumplicidade, protecção,
Comprometimento, segurança, conforto,
À medida que de lá se abeira
Nosso íntimo horto.
Mais que tudo, sem par
Afinal,
Podemos ir lá buscar
Amor incondicional.
Ser amado pelo que se é,
Sem condicionantes nem restrições,
Com todos os erros e acertos de pé,
Fragilidades e ousadias
Nos alçapões
Dos dias.
Não é fantasia dum converso
Quem assim ama os seus,
É a intimidade do Universo,
É Deus.
Iremos guardar este amor dentro do peito
De modo que teremos urgência
De o distribuir pelo mundo a eito,
Por quem no meu caminho cruzar minha vivência.
Assim teremos cumprido um dos maiores
Roteiros de missão
De precursorees
Do homem rumo à terra da promissão.
O rumo fecundo
A nos propor:
Levar amor ao mundo
E não ao mundo retirar amor.
Vamos lá acima ver,
Sem demora,
Como tudo pode ser
Diferente a partir de agora,
A partir do momento
Em que do Infinito recolhamos o fermento.
Asas
Abre as asas
Para poderes voar.
São tuas casas,
Do lar
Tuas brasas,
Cuida delas, cuida-lhes da função
Com carinho, rigor, determinação.
Com carinho, para livres poderem crescer,
Sem comprometimentos pueris.
Com rigor, para o céu poder
A ti se apresentar com os modos gentis,
Porém, viris,
Nas gestas belas
Dum criador de estrelas.
Com determinação para nunca desistires,
Mesmo quando as asas estiverem longe de voar,
Longe dos céus que pressentires,
Da luz onde pousar.
Como cuidar de minhas asas?
Com a simplicidade lá de cima:
Elevo-me em meu imo
À luz, ao fogo, às brasas.
Cuida que toda a tua acção,
Todo o teu pensamento,
Toda a tua preocupação,
Seja qual for o procedimento,
Espelhem sempre e em qualquer ocasião
O mais elevado padrão
De qualidade de ser
Que podes conceber.
Cuida que o ego, o julgamento,
A culpa, a resistêencia
Que te sugam a cada momento
A energia de tua vivência
A mil anos-luz se extingam, longe de verdade
Da tua interioridade.
Cuida que teus sonhos sejam
Acarinhados por ti,
Mesmo quuando os horizontes que almejam
Não os logres realizar por ora aqui.
Sonho irrealizado é sonho
Ou pode transmudar-se em frustração.
A escolha é tua: onde ponho
A função?
Cuida, quando trepares ao céu,
De alçar tuas asas o mais alto e mais largo
Que tua energia logre alcançar de seu
Em tal encargo.
Sobrevoa as alturas,
Liberto do chão,
Com a força da protecção
Do além que procuras.
Quando voltares à terra,
À vidinha de cotio,
Vais sentir que esta paisagem se te aferra
Aos calcanhares:
Se fechas os olhos e respiras, no cicio
Dos ares
Reviverás o movimento alar
Dos passarinhos a voar.
Ninguém irá entender o que ocorreu,
Que tens umas asas enormes
Que atingem o céu.
Ninguém irá entender quanto, de raiz,
Nos gestos informes,
És feliz.
É um segredo,
Teu
E do céu,
Do Cosmos inteiro o mais íntimo credo.
E, quando alguém
Tentar as asas cortar-te,
Irás descobrir também
Que entre as cedências há sempre uma ou outra aparte
Que te torna tão ineficaz
Que jamais se faz:
- Esta, o caminho das estrelas,
É uma delas.
Vida
Tua vida tem força,
Tem energia,
Vontade própria, corça
A saltitar livre pelo teu dia.
Se hoje pararas de agir,
De te preocupar,
De racionalizar,
De contrrolar,
Uma aurora impressionante irias descobrir.
A ela poucos logram assistir,
Justamente porque não vão parar
De agir,
De se preocupar,
Racionalizar
E controlar
Tudo a seguir.
Quem conseguir
Daquilo tudo fazer a catarse,
Irá finalmente assistir
À vida a apresentar-se.
Irias descobrir que a vida
Mexe sozinha, sozinha é que anda
Comedida
Em perene demanda.
Tem comandos próprios movidos
Pela gravidade da energia
Cujos sentidos
Ninguém previria.
Só estarás onde tiveres de estar,
Só irás fazer o que tiveres de fazer:
É a lei imutável de teu lugar
No Universo que te acolher.
O que isto contrarie, mesmo só por um momento,
Apenas atrai dor, pena e sofrimento.
Quem sabe onde deverias estar
Agora?
Tu? A escora
De teu ego tutelar?
Não, a vida.
Só ela sabe para onde, por onde e como ir
Em seguida.
Só ela te não pode trair.
Quem deixar de crer que sabe,
Que pode e que deve,
Vai deixar quem seu próprio bem acabe:
Vai deixar que ela o leve.
Vai dar-lhe primazia,
Vai dar-lhe razão.
E a vida, leve e solta, como é sua galhardia,
Vai levar-te a bom porto, são,
Mediante a exigência traçada
Para tua caminhada.
Tudo entrará no seu
Lugar.
No fim encontrar-nos-emos no céu
A comemorar.
Fé
É a fé que te abre o canal para o Além.
Creres no que acaso ouves, no que vês
E no que fundo sentes também,
Saberes quão frágil é a pequenez
Da comunicação com o céu
E, apesar disto, explorares tal conexão,
Entenderes que acreditar é subtil e corajoso,
Por te impor de estranhos um labéu
Suspeitoso
- Tudo isto arroteia o teu chão
Rasgando-te o canal, a cada jornada,
De forma mais desmesurada.
Quanto mais ele abre, mais intuições advêm,
Mais acreditas e mais ele abre após também.
É a espiral
Do intérmino percurso sideral.
Só tens duas alternativas.
Escolher crer no que sentes, no que intuis
E em teu tesoiro arquivas
E abrir as portas, naquilo a que anuis,
À autenticidade desmedida
De estar na vida,
Ou de dúvidas te entupir,
Deixar de acreditar,
Deixar o ego entrar
E ao trono subir
E viver pautado pelo teor
Da frustração e dor.
A escolha de qual a rua
É, como sempre, tua.
Ao creres,
Mesmo sem esclarecimento,
Mesmo sem entenderes,
Um portal de fé abres a todo o momento,
Imperceptivel e longo caminho
Que te irá levar, de mansinho,
Persistente e com calma,
Aos mais altos padrões de tua alma,
À mais elevada qualidade
De tua interioridade.
Não há termo apropriado
A tal estado,
Sai do domínio da palavra.
Os céus
São apenas lavra
De Deus.
Atrais
Analisa o que atrais,
Os sinais.
Tudo o que te ocorre,
Indivíduos, conjunturas, eventos,
Atrai-lo em norma tu, à medida em que corre
Tua pegada aos ventos.
Dentro de teu peito
Há um íman mágico,
Com o Cosmos a comunicar afeito
E a atrair-te vivências,
Trágico,
Iguais às que são tuas valências.
Se violência houver em teu peito,
Violência tende a atrair, deste jeito.
Se for compaixão,
De compaixão tende a atrair a situação.
Tudo o que está fora
De teu centro
Tende a espelhar agora
O que está dentro.
É tua a escolha de seleccionar
O que dentro estiver
Para tender a triar
O que de fora vier.
Ao entenderes esta norma simples e verdadeira,
Irás entender que é viável mudar
Tendencialmente a vida inteira,
O livre arbítrio de tua escolha ao utilizar.
Em mim entro
Agora,
Escolhendo mudar o que está dentro,
Parando de olhar para fora.
Muda, que de tal ao abrigo,
O mundo muda contigo.
Trabalhas
Trabalhas hoje
Para quê?
Para teres o que amas e te foge?
Para amares o que tens de ti ao pé?
A maior parte, em sua trama,
Quer ter, possuir o que ama.
Pode ser das coisas o inumerável abismo
E é o consumismo:
Amo uma coisa bela,
Portanto quero tê-la.
Podem ser indivíduos de qualquer idade
E é possessividade:
Amo aquele e, assim,
Quero tê-lo para mim.
Ora, nada disto é o desejado.
Tal
Postulado
Não deixa ninguém sair do campo material.
Depois, é o ego quem deseja
E lutar pelo que se quer
Não é nem almeja
Uma atitude de alma sequer.
A postura correcta
É um dos segredos mais bem guardados,
Arma secreta
Do céu para os seus apaniguados.
Vai lá acima,
Pergunta-Lhe ou ao teu imo mais profundo
Que tem para ti, da luz no clima,
O que é para ti neste mundo.
Receberás uma sensação, uma imagem, uma energia
E saberás que é para ti aqui em baixo.
Muitos tentam fazê-lo algum dia
E param por aí, abandonando na leira o sacho.
Porque não entendem tal dita
E, portanto, nenhum deles acredita.
Repara que o que o céu tem para ti,
A sós,
Hoje, aqui,
Poderás apenas só entendê-lo após.
É um enigma o que os céus te dão,
Terá de ser decifrado.
A multidão
Que se aparta
Por ignorar este fado
Simplesmente o descarta.
O que o céu tem para ti
É o melhor e mais compatível
Agora, aqui,
Com tua energia, de tua postura o nível.
Mas tens de decifrá-lo.
Pode servir para um dia ou uma vida,
De tempo nem de espaço o céu sofre o abalo,
Dá-to à medida.
Tens de crer que é para ti que a mensagem exista
E tens de decifrar:
Como a energia de teu imo não anda à vista,
Também a do que o céu tem não há-de estar.
É segredo
Que irás decifrando aos poucos.
E, ao decifrares, irás encontrando, tarde ou cedo,
Fazendo a tudo o mais ouvidos moucos,
Complementaridades singulares.
E vais-te abrindo.
Quanto mais decifrares,
Quanto mais a teu imo te abrires lindo,
Mais energias inconcebíveis
Se vão mostrando compatíveis,
Algo que, no que é mentado,
Jamais seria revelado.
É por isto
Que tem de ser decifrado.
Para tal visto
Nem todo o mundo está preparado.
A verdade é
Que na multidão
Apenas uns poucos têm o dom da fé
E da decifração.
Uns poucos. Agora
Vê o que acolhes e repeles.
Porquê? Ora,
Porque tu és um deles.
Acima
Ir lá acima
Ver o que implementar aqui em baixo.
Duvidar, ter medo do clima
Em que de vez nunca encaixo.
Trabalhar o medo,
Executar da terra na gleba
Com rigor,
A ajeitar a leiva que se embeba
De suor,
Sem rasgos de ego
Nem alertas vãos,
No discreto sossego
Das dedicadas mãos.
Apenas compromisso de edificar aqui
O que lá em cima existe em luz.
É o que devia ser a vida, o que a traduz:
À luz do facho,
Ver nas alturas, ali,
O que executar cá em baixo.
Utilizar a inteligência,
A mente,
A congeminar estratégias de prudência,
Reunir elementos para ir em frente,
Edificar no vale, olhos em lume,
A vida iridescente que tens no cume.
É apenas isto.
Porque é tão complicado?
Por mor do medo em que insisto,
Do controlo por mor do recado.
E tu, quando acaso corajoso te entregues,
Consegues?
Conhecemos
Apenas queremos,
Embora a exaurir-nos no deserto,
Agir pelo que conhecemos,
Pelo que, à partida, sabemos
Que irá bater certo.
Para quem cuidar assim,
Jamais há risco,
Nenhum golpe de asa, por fim,
Nenhum salto do aprisco.
Fechados nos próprios conceitos,
Em preconceitos apoiados,
Para não arriscar
Da vida no jogo de dados
Na vida nunca eleitos,
Fugimos à pretensa loucura
De encetar
Uma aventura.
Para quem a tal se arrime
Aventurar-se é um crime.
Ir ao encontro do desconhecido,
Correr um risco num golpe de asa,
Eis o que é digno de ser vivido,
Aqui é que entro em casa.
A andorinha voa com aprumo,
Num trejeito em pleno voo
Muda abrupta de rumo
Sem aviso nem preparação.
É como a mim eu soo
No fundo de meu coração.
Um elementar fermento
Na desordenada corrida,
Inteiramente ao sabor do vento,
Ao sabor da vida.
Arrisca,
Ateia a tua brasa,
Investe o teu golpe de asa,
Percorre a trilha arisca
Do desconhecido,
Abandona teu conforto desmedido.
Só os grandes aventureiros
Têm límpido o imo de cristal.
Só os grandes pioneiros
Têm para contar histórias sem igual.
Agora
Fica aqui agora,
Concentrado neste momento,
Onde estás fisicamente nesta hora,
Não no lugar
Onde tua cabeça de vento
Te deixa estar.
Cada momento é precioso em seu dom,
Na intenção, preciso.
Cada minuto vivo tem o tom
De aviso
Para vivências, escolhas, reflexão...
Vives o que tens de viver, então,
No instante presente.
Escolhe o que for melhor para ti,
Depois vivencia,
Bem na terra assente,
A partir daí,
O teu dia.
O efeito desta escolha será o teu futuro.
Tuas escolhas de hoje
No porvir se reflectem: eis como o inauguro
E já me não foge.
Quando o futuro vier,
Irás compreender
Que valeu a pena ficar assente
No presente.
Será um porvir mais adequado,
Porque mais enraizado.
Vive cada minuto, cada momento,
Aprende a armazenar emoções positivas,
O pôr-do-sol, a carícia do vento,
O fragor das marés vivas,
Um instante com teu amor,
- De estar vivo o esplendor.
Aproveita, armazena e guarda,
É o teu património emocional,
Ao dispor
Quando a vida ficar parda,
Quando triste e desgostoso for
Dela o sinal.
Cada êxtase vivido é uma singularidade
A guardar para a eternidade.
Deves guardá-lo para quando o futuro
Te atropele:
Auguro
Que poderás precisar dele.
Desconstruir
Chegou a era de desconstruir.
Tudo o que te ensinaram a ter por garantido
Já o não é, a seguir,
Ou pode não sê-lo nalgum sentido.
Pelo menos deverás pô-lo em causa,
Tudo o que tinhas como certo pode ruir,
Sem aviso nem pausa.
Não são as coisas o problema,
O problema és tu.
Podes tentar que tudo finde certinho, segundo teu lema,
Como sempre cuidaste de pôr a nu.
Podes fazer tudo
Para que tudo fique como está,
Para não teres medo, sobretudo,
Morto qualquer receio desde já,
Para em teu porto
Não haver desconforto.
Podes tentar
Mas não irás conseguir.
Toda a estrutura antiga há-de estar
Agora a ruir.
Podes deixar de contar
Com tudo com que contavas,
Podes largar,
São traves com que te entravas.
Põe tudo em causa embora te custe.
Desactiva teu controlo
O que está cá hoje, embora a ele me ajuste,
Pode não estar amanhã no mesmo solo
E, ademais,
Pode até nem estar nunca mais.
Põe tudo em causa então,
Trabalho, relações, família,
Rendimentos, segurança, protecção,
O acordo como a quezília,
Tudo em questão,
Tudo em vigília.
Se sentires que não chega,
Sê radical,
Em ti próprio pega,
Põe-te em causa, visceral.
Põe-te a ti em causa no teu trabalho,
Em causa nos teus relacionamentos,
Da familiar árvore em cada galho,
Em teus rendimentos...
Põe-te a ti em causa e verás, a seguir,
Um novo eu a surgir,
Certeiro,
Mais seguro em seu norte,
Aventureiro
E forte.
Não com a força do ego,
Mas com a de quem já aceitou
Que tudo muda, num desassossego,
Tudo pode ocorrer no estranho voo,
Desde que não prescinda
Da energia pura a cristalina
Onde afina
O ser de luz que sempre ele é ainda.
Mudança
Mudança,
Mudança de caminho,
Mudança de vida.
Mudança do que a fundura
Nos alcança,
O recanto sozinho
Da nascente perdida.
Mudança da estrutura
Que persista,
Mudança de vista.
Quanto mais mudas,
Mais o teu olhar aflito
Se vai abrindo para o Infinito,
Para as novas dimensões
Onde não te iludas
Com mais senões.
O céu, lá de cima,
Pouco se preocupa com a mudança cá de baixo
Na matéria.
A matéria não o sublima,
Fanado cacho
De miséria.
De cônjuge podes mudar,
De emprego, de país...
De nada te há-de adiantar
Se a ti te não mudas de raiz
Como pessoa
Em tudo o que em ti de teu imo destoa.
Há quem mude na matéria a vida toda
E permanece o mesmo o tempo inteiro.
Nada adiantou na infrene boda
A nível da evolução
De que devera ser pioneiro
A arrotear o húmus do chão.
Quem permanecer decénios na mesma casa,
No mesmo emprego, no mesmo casamento,
Mas lograr não ser igual todos os dias, soprando a brasa
De reinventar-se a cada momento,
Vivenciando cada pormenor
Que a vida cá em baixo lhe vier propor,
Aparentemente não mudou nada
Na vida vária,
Porém, nas alturas, a leitura adequada
É a contrária.
Ao céu apenas lhe importa
O que estiver dentro,
O que cada qual cultivar na horta
De seu íntimo centro.
Antes de pensar
Em grandes mudas na matéria
Que se poderão catastróficas tornar,
Cuida apenas em mudar
De paradigma: confere-a
Mudando o ângulo de visão,
Olha da matéria os dados
Velhos e pesados
Como inspiração
Para ir, mais aberto e livre, de nada refém,
Sempre mais além.
Olha para ti, repara como estás em tudo, como o vês.
Pensa em olhá-lo do alto da Infinidade,
No ângulo de pureza sem revés
Mais visceral em tua interioridade.
Sentirás dentro de ti rasgar-se o véu
Com a gratidão dos habitantes do céu.
A gratidão que sentem cada vez
Que nos abrimos à inspiração da luz
Afinal
Se traduz
No amor incondicional.
Sente este amor, sente.
Olha todos os teus problemas
Na perspectiva deste amor premente.
Não temas.
Não precisas de mudar nada aqui,
A vida muda por ti.
Reinventa-te
Reinventa-te perenemente.
Olha para o infindo de ti próprio e que ele
Te reinvente.
Sê mais audaz em teu peito imbele,
Mais vigoroso,
Mais enérgico, livre e carinhoso.
Sê mais radical,
Busca a vivência
Em tua essência
Visceral.
De ti nunca te prives,
Que pela mais elevada atitude que podes conceber
Vives,
Se não queres ser
Um pobre qualquer.
Não deixes de sempre perseguir
A criatividade requerida
Para te reinventares, na pegada dum porvir
À tua medida.
Sempre, sempre, que da rotina o mesmo
É de pobres de espírito a pegada a esmo.
Borboleta
Voa a borboleta,
Voa.
Pousa, vibra a aleta,
Roda à toa
E depois voa.
Não se apega a nada nem
A ninguém.
Nem preocupada nem aflita,
Torna a floresta mais bonita.
Tudo e todos leva
No coração de borboleta.
E é só. Pingo de luz na treva,
No cintilar da noite uma alvorada discreta.
Não depende de nada, não depende
Nem do amor nem da presença.
Ama apenas, ao amor se rende,
Ama e voa como por sentença.
Sê tu a borboleta,
Não te apegues a nada nem a ninguém,
Guarda tudo no coração, mensagem secreta.
Ama e voa, afugenta a desdita
Como convém
E torna a floresta mais bonita.
Medos
Olhas tudo em função dos teus medos,
A vida, as pessoas...
Segredos
Com que tua sobrevivência aperfeiçoas.
Se tens medo de algo, é do que te proteges,
Crias defesas,
Camadas e camadas de casca que eleges
Sem reparares nas asas que te findam presas.
São os escudos que crias
Para não cair no medo,
Para não cair na dor.
Dor que pode provir de vias
Ancestrais
A que hoje acedo
Porque jamais
Foram curadas do seu doloroso pendor.
Uma a uma vais colocando
As camadas de defesa.
Ano apóa ano, vida atrás de vida vamos criando
Subterfúgios para que a vida fique ali
Definitivamente presa,
Apagada de vez, sem mais dar de si.
Era o que bem quererias,
Mas as couraças de sobrevivência
São um filtro distorcido por onde já não lias
Da realidade nenhuma valência.
Vês apenas uma ilusão
Do filtro criada pela distorção.
Quando dois, com duas camadas diferentes,
Olham a mesma realidade,
Os filtros neles presentes
Espelham duas experiências divergentes
E nenhuma é a da factualidade.
Daí a divergência de opinião
Sobre determinado
Dado
Em questão.
Haver duas opiniões
Não é mau nem bom.
É um facto, de cada qual com o tom
Das distorções.
Problema é quando cada um quer ter
A razão exclusiva:
Apenas a visão dele há-de ser
Verdadeira, correcta, definitiva.
Não leva os filtros em consideração,
Nem o medo que o invade,
Das memórias perde a invocação:
- Não leva em conta a realidade.
Olhas e quem olha em ti é o medo.
És tu ou não, afinal,
Quem deve dizer qual
É o teu credo?
Aurora
És uma aurora,
O nascer do dia
Que traz com ele o mistério da sabedoria
De hoje e de outrora.
Sabedoria dos dias que já lá vão,
Pela passagem do tempo adquirida,
Sabedoria do zero vão
Do dia em frente, sementeira a ser empreeendida.
Zero de ver que o que vem
É novo, diferente, inusitado
E, às vezes, também
Incompreensível fado.
Mas o dia sabe, furtivo,
Que é para ele o que vem.
Por algum motivo,
Conhecido ou ignoto,
Tudo, mal ou bem,
Caia-lhe ou não no goto,
É para ele que vem.
Para ele poder sentir,
Compreender, assimilar,
Evoluir
E limpar, sempre limpar.
Limpar o que não é dele
Porque veio e aí ficou.
Limpar o que é dele, que se lhe agarrou à pele
Como urtiga,
Venenosa ferida antiga,
Cuja limpeza tantas vezes se adiou.
Limpar nele o que é recente,
Pôr tudo em dia
No presente
Sem qualquer má companhia.
Sê como a madrugada
Que traz consigo a bulir
A sabedoria passada
E a ignorância do porvir.
E ei-la aqui pronta a recomeçar,
Apesar das tormentas,
Dos dias desesperados apesar,
Das bátegas cinzentas,
Apesar do granizo, da rudeza
Do frio e da tristeza.
O alvor sabe que tem de avançar.
O dia está a nascer
E nada pode fazer
Parar o sol de brilhar.
Mesmo quando as nuvens estão em baixo,
Onde o dia inteiro enfaixo.
Que teu passado te instrua,
Mas não atrapalhe o presente,
Não o jogue à rua,
E menos ainda o ausente
Futuro
Que daqui me inauguro.
Mantém-te aberto
Ao que ainda não sabes,
Desperto,
Intacto, de modo que nunca acabes,
Disponível para o que há-de vir
A seguir.
Aquilo a que te concito:
- Abre-te indefinidamente ao Infinito.
Martirizado
Andas todo o tempo infeliz,
Martirizado pela ideia
De que cada um tem de dar importância à própria raiz
E tu nem volta e meia
Sequer
Terás tempo de o fazer.
Raramente logras um espaço
Para ti apenas
E, quando o logras, é tão escasso,
Que aproveitá-lo, nem sequer a duras penas.
Arestas vivas
Do que te agrade,
São demasiadas as expectativas,
A culpa e a ansiedade.
“Devia estar a fazer outra coisa,
Há tanto que devia fazer!”
- Registas na loisa
Do deve e haver.
Não entendes que para teu imo
Sequioso
O tempo contigo é o teu arrimo
Mais precioso.
Sente, terno,
Visceral,
O teu jardim de inverno,
Folheia o teu álbum emocional.
Se contigo próprio não logras estar,
Para um buraco fundo
A vida vem-te empurrar,
Onde só mora a solidão no escuro imundo.
Desata a limpar esse buraco,
A desempoeirar a área.
É a tua casa mais profunda este desacato,
A tua marca pessoal mais primária,
Tal furna
É a tua morada diurna.
Está escura e suja?
Está.
Séculos de abandono é o que sobrepuja
De lá.
As árvores estão secas,
A horta morreu,
Nem frutas pecas,
Nem uma réstea de céu.
Vais ter de plantar tudo outra vez,
De podar, regar, adubar e amar,
Tudo vais ter de limpar
Através
De tua dor.
Vais comover-te
Com fervor,
Emocionar-te, reconhecer-te.
E o céu desde sempre te anda a prometer
Que te irás reaver.
Vais reavivar teu próprio firmamento,
Alimentar-te de teu próprio pão,
Vais elucidar-te e transcender-te, momento a momento,
Vais iluminar-te, farol de teu exclusivo chão.
Uma vez tudo tomado a peito,
O terreno arroteado
Até onde se aviste,
Quando o trabalho estiver feito
E os fantasmas se houverem retirado,
Descobrirás que conseguiste.
Olharás lá para cima, na amplidão
Do cósmico abraço
Soltarás um grito de gratidão
Que irá reboar pelo espaço.
Irás vê-Lo, senti-Lo,
Saber quão infinitamente Deus te ama
Daquele Céu ante o qual me perfilo,
Reverdecida rama.
Irás ter a exacta noção,
Em teu imo iluminado,
Da grandeza da comunhão.
- E saberás que estás curado.
Rodeia
O animal tende a tomar a cor
Do que o rodeia,
O insecto é do teor
Do que em redor
Para ele ameia,
O peixe palpita
Da cor do mar que habita...
Também os humanos vivem num ambiente
Igual à qualidade interior que cada qual sente.
Quem com violência interna viver
Há-de atrair um ambiente violento qualquer.
É a lei da natureza,
A lei da energia
Com que o Cosmos dispõe a mesa
De cada dia.
Nossa vantagem
Perante os animais
É que podemos escolher a viagem,
Alterar no íntimo o rumo e os sinais
E, consequentemente,
Mudar em redor
O ambiente.
Como alterar a qualidade interior?
O segredo é a gratidão:
Sente-a por tudo o que tens,
Por quanto a vida já te deu,
Por quantos bens
Teu coração
Já estremeceu.
Se julgares que é pouca coisa,
Sê grato pelo que já logras sentir,
Pelo caminho percorrido que te repoisa,
A consciência que já tens de por onde ir.
Em derradeira análise, gratidão por Deus,
Por já O teres encontrado,
Por já o conheceres na romagem dos Céus,
Por já terem entre os dois falado.
Mesmo que às vezes, acaso,
De ouvi-Lo não tenhas azo.
Encontra um motivo,
Entre os inúmeros que te preenchem o prato,
De te sentires vivo
E grato.
A gratidão irá crescer no teu peito,
Principias a emaná-la agindo de acordo com ela,
A relação com os mais vai mudar daquele jeito,
Vais,
Na sequela,
Começar a receber mais
E, a par,
Mais grato irás ficar,
Cada vez mais, num círculo redentor.
E o mundo vai mudar
Em teu redor
Porque mudou de qualidade
Tua vida interior.
À tua volta, na comunidade,
Tudo devém mais azul,
Do milagre
Que consagre
Quanto por ti se regule.
A gratidão que sentirás por o mundo ter mudado
É tão grande que altera
A vida íntima em teu lar transfigurado,
Em tua rua e cidade,
Em toda uma nova era
De interioridade.
Nunca mais vais ser o mesmo,
Numa vida a esmo.
O céu terá subido ainda mais
Na qualidade
Dos sinais
Da espiritualidade.
Quando deixares este plano,
Junto a Deus lá no céu,
Conversareis muito de cada engano
De tuas maluquices, cá da terra sob o véu,
E de como foste bravo guerreiro na função
De abraçar activo a tua evolução.
Constará do Universo no catálogo
O vosso diálogo.
Resguardar
Olha para ti quieto nesta sala,
Como tiveste de te resguardar,
De reduzir ao fundamental o que em redor te regala
Para lograres reduzir-te a teu imo elementar.
Quanto mais tens
Mais tapas tua interioridade
E não a deixas brilhar sob a teia de reféns
Que te invade.
O que brilha é um imo feliz,
A luz, tua raiz.
Quão mais logras atingir
A mais pura harmonia de teu imo,
Mais logras subir
De qualidade, até trepar ao cimo.
Como agir de verdade
Com meu imo em conformidade?
Senta-te, aquieta-te, medita.
Pede que te seja dada
A energia da honestidade infinita
De teu imo borbotada.
Pede que ela em ti entre,
Fica nela.
Que o máximo de tempo ela te centre,
Para o Infinito rasgada janela.
Sente a honestidade para com teu ser,
Com a raiz de teu íntimo a florescer.
Sente
Teu núcleo radical fielmente.
Depois pede, honesto,
Que te seja mostrado o resto:
O que, na tua vida actual,
Não confere com tua realidade germinal.
E prepara-te bem
Para o que aí vem.
Pode vir o que menos imaginavas
Fazer parte de tua vida.
Com honestidade o desencravas
De ti, em seguida,
Por mais que doa,
Já que não te pertence.
Não corresponde à tua intimidade, anda em ti à toa,
E apenas atrapalha, o que não convence.
Porque é que nem imaginara
Que fora parte de mim?
Tão longe moras da jóia rara
Que brilha para além de teu íntimo confim
Que já te confundiste
Com a luz que noutrem viste.
Actuas orientado de lá,
Não do teu centro.
Então cuidas que o que aparecer te irá
Tem o horizonte que te vem de dentro.
Não, porém: tu não estás em ti, mas acolá.
Irás pedir
Para saber
O que na tua vida tiver
Oriente
Diferente.
I-lo-ás banir
De tua vida,
Seja o que for que represente
Tal medida.
Se quiseres compreender isto
E fazer o que te digo,
Tudo bem: o céu alisto
Como teu eterno amigo
E abrigo.
Se não quiseres compreender
E não estiveres interessado
Numa melhoria interior qualquer
Na vida que tens levado,
Tudo bem
Também:
O céu estará sempre aqui
Para ti.
Não se zanga, não há nada que o aborreça,
Nunca se preocupa, não tem pressa.
Tem todo o tempo do mundo,
O eterno é infinitamente fecundo.
Estará sempre aqui quando precisares dEle,
Sempre aqui quando quiseres começar,
Quando, na tua verdadeira pele
Tua vibrátil asa
Queiras adejar
Para voltar
Para casa.
Aventura
A vida é uma aventura
E como tal deveria ser vivida:
Nunca repetir a mesma figura,
A inovar perene a vertente prosseguida.
Cada qual vem à terra experimentar a emoção.
A ajudá-lo na tarefa o céu criou
A vivência na matéria.
A experiência despoleta então
A emoção que no fundo sou,
Desvendo minha glória no meio da miséria.
Há quem jamais crie experiências novas
Em sua vida.
Sempre as mesmas provas
Dia após dia, ano após ano de rotina embrutecida.
Julgam que mudar é mau,
Não se atrevem, não arriscam, não se atiram
Do precipício para o vau
Antes que o tamanho lhe mediram,
Antes da visão vera
Do que lá em baixo os espera.
Nunca põem a probabilidade
De lá em baixo estar a divindade
E de numa nave as colocar Deus
Para voarem aos céus.
Não têm fé,
Não entram em comunhão,
Não vivenciam a vida até
À sua maior dimensão.
Nunca abandonam o pequeno horto
De seu minúsculo conforto.
Não arriscam, nada apanham,
Não perdem mas também não ganham.
A vida vai ficando previsível,
Findando aborrecida.
Um dia notam o derradeiro desnível:
Nada os interessa na desilusão sumida.
É a morte do imo.
A experiência da matéria chegou ao fim
Por falta do limo
Que a corrente secou assim.
Por falta de experiências
Tudo devém repetitivo,
Sem graça nas vivências,
Disforme morto-vivo.
A vida não é isto,
É uma grande aventura,
Com experiências novas a que não resisto:
Tudo novo ou que o novo configura.
Que tua vida não tenha muitas repetições!
Cria,
Cria situações:
A criatividade é o motor da vida que doutro modo se entravaria.
Se, por obrigação,
Vives eventos repetitivos,
Encara-os de modo inovador então
Todos os dias, torna-os vivos.
Muda,
Muda as coisas.
Se as não podes mudar, com mente aguda
Muda a forma como nelas poisas.
Teu imo irá renascer,
Fénix das cinzas a se elevar,
As asas vai desenvolver
E voar.
É de nós próprios o germinar mais brilhante,
Ter um imo que voa pelo Universo adiante.
Fase
Não deixes passar esta fase,
Não esperes que, com ela,
Passe o desconforto e tristeza que te arrase.
Cada fase da vida é uma janela
Para ser aproveitada,
Sentida, integrada.
Integra todos os eventos
Em tua interioridade.
Abre tua íntima energia aos ventos
Para que nela caiba toda a novidade
Que te vier a ocorrer.
Para que tudo o que vier
Mexa contigo e te mude.
Esta fase é a melhor para a tua fiel alma
Que jamais te ilude.
Ela adora da mudança a palma,
Gosta de rearmonização.
Deixa que esta fase te rearmonize.
Ela é a terra da promissão
Do ser que estás para ser: que se viabilize!
Basta-te senti-la e trabalhar com ela,
Não lhe desprezes o poder,
Não te demitas da parcela
De evolução
Que em ti vem promover.
Quando tudo tiver passado,
Quando os mares revoltos
Tiveres cruzado,
Da bonança por fim auferindo os zéfiros soltos,
Descobrirás um mundo novo então
E entenderás que, afinal, o céu tinha razão.
Batalha
Numa batalha, em tempos ancestrais,
Cinco mil soldados dum lado,
Cinco mildo outro, todos leais,
Cada qual o mais
Denodado.
Duas vias podes escolher:
Ou atacar
Ou ficar.
Em qual te irás envolver?
Ao atacar, a batalha pode ser sangrenta,
Esventrada de baixas.
Ao ficar, algum tempo se aguenta,
Mas ao risco de ser atacado lanças achas
E o fogo da defesa
Não tem a eficácia com que um ataque lesa.
Prós e contras tudo tem.
Se escolheres pelo ego, qualquer escolha contém
Em si
O que poderá virar-se contra ti,
Rasgando em teus chãos
Prejuízos vãos.
Se escolheres pela volátil alma,
Por mais contratempos que ocorram,
Estes transmudar-se-ão em teus mestres na tarde calma,
Enquanto corram,
De estação em estação,
Na tua via de evolução.
Que é de alma, que é de ego?
Põe tua mente em teu coração e sente.
Põe teu pensamento na fundura deste pego
Que não mente.
Sente uma das escolhas.
Como é que teu peito fica?
Alegre? Triste? Pesado? Quando o olhas,
Que é que em ti se verifica?
Agora faz o contrário,
Sente a outra opção.
De que é que é tributário
Teu peito nesta estação?
Tua flébil alma logras atingir assim,
Ela fala com teu coração.
Se destes dois promoveres enfim
A junção,
Podes contar evoluir sem fantasias
Até ao fim de teus dias.
Fizeste
Fizeste o que devia ser feito,
Contra obstáculos, dificuldades,
A própria resistência de teu peito,
As tuas obscuridades.
Apesar da tristeza
Que de ti fez presa.
Fizeste o que tinhas de fazer
Para voltar à tua intimidade original,
Ao teu elemento, a respirar teu ser,
Aqui,
Fanal
Para voltar a ti.
Quem não está na sua interioridade,
No seu íntimo elemento,
Está descentrado da própria identidade,
Não se foca em sua corrente de energia,
Arrastado por qualquer vento
De qualquer
Dia,
E pára humanamente de viver,
Folha ao acaso da ventania.
Porque a vida é uma aventura
Mas só para quem de si próprio vive dentro.
Pode ir até aos mais, impelido pelo íntimo centro,
Sair de vez em quando na procura,
Mas tem de voltar,
De saber
Como voltar e de gostar
De o fazer.
E tem de gostar do que encontra,
Que, se não gosta, não vai ficar
Aí a olhar a montra.
Quem não quer ficar, foge,
Foge para fora,
Para outrem que o aloje
Onde mora,
Nos dados da matéria,
Que a matéria é um filme com luz e cor,
Som e movimento,
Imita a realidade séria
No fulgor
Do intento.
Dentro de ti é escuro,
Movimento e cor não os há,
Mas é subtil e brilha por trás do muro.
Ora, onde a subtileza, onde o brilho está,
Por trás do véu,
A chave se esconde do céu.
Quando focas a atenção fora de ti
E atrás do filme da vida vais,
Atrás do movimento vais então aí,
Da luz e do som superficiais,
Da matéria desces ao rasteiro chão
Que, como um filme, é apenas ilusão.
Lá em cima, na interioridade,
É que anda a verdade,
Dentro de ti,
- Mora aí.
Nesta dimensão que aparentemente te entrave,
Escura e pesada de obscuridade,
Deténs a chave
Da felicidade.
Quanto mais tempo passares nela,
Como uma reza,
Melhor irás entendê-la,
Mais valor darás ao brilho e subtileza.
Ante tal perfil
A matéria é tudo menos subtil.
Quando aprenderes a respeitar
Teu pendor
Interior,
Quando aprenderes a voltar,
Irás, a seguir,
Poder começar
A ir.
Por ora fica, por um momento,
Fica em ti,
Em teu apresto.
Escolhe-te aqui,
Em detrimento
Do resto.
Um dia,
À força de te conheceres,
De te sentires na íntima magia,
Saberás que não há mais nada para veres,
Nenhum outro paraíso a surgir,
Não há mais nenhum lugar para ir.
Porque, na fundura que nunca de vez atingi,
É Deus que está sempre ali.
Templo
Cada momento que vives contigo,
Com teus eventos,
Teus pensamentos,
Tuas perguntas ao postigo,
De tuas respostas no abrigo,
É um momento sagrado.
Que tu és um templo,
Iluminado
Para exemplo
Ou apagado.
Toda a estrutura
Celular e energética
Que teu ser configura,
Quando a contemplo,
É a mensagem profética
De vir a ser um templo.
Onde se reza,
Onde se medita,
Onde se interioriza o que se preza
Ou despreza,
Onde se está
E se concita
O respeito de estar por quem houver lá.
Onde se ri ou chora
Mas, sobretudo, onde se acredita
Na hora.
Onde se crê que tudo irá dar certo,
Que todo o esforço em nome da evolução
Dará fruto, longe ou perto,
E que tu, com esta energia motriz,
Irás ser muito feliz.
Muito feliz porque te respeitaste,
Passaste contigo o tempo que era suposto,
A ilusão e os fantasmas afugentaste,
Ocupaste o teu posto
Encarando a dura e difícil realidade
De quem és
Com tuas limitações, desencantos, futilidade,
Sem da terra desprender os pés.
E também porque admitiste
Em teu templo uma dose infinda de fé e de verdade
E viste
Que viver sob tais solidéus
É atingir o reino dos céus.
Cuida que o tempo contigo seja grandioso,
Cuida de cada pormenor do templo corporificado,
Cuida do que entrar saboroso
E do que sair nalgum traslado.
Cuida do que, ao entrar, te alimenta,
Que das células te muda a constituição
E, por conseguinte, diminui ou acrescenta
A energia que tens à mão.
A energia de quem te rodeia
Vai determinar
Como uma teia
O teu bem-estar.
De teu templo não saias inteiramente,
Não o deixes abandonado.
Sai, vai aos outros, mas volta de repente,
Deixa um trilho reservado.
Não te esqueças, na portaria deserta,
De deixar a porta aberta.
Para se poder
Voltar
E que voltar te dê prazer.
Para que deixes de te abandonar,
Como nos derradeiros séculos teu trejeito,
Afinal,
Por nosso mal,
Tem feito.
Atraiu
Tudo o que a outrem fazes,
Outrem a si porventura o atraiu.
Por mais que não queira que o aprazes,
Pois de seu conforto então saiu,
Por mais que te custe fazer
Porque tens pena
E a culpa te há-de aparecer,
O que levas à cena
Ou és levado a empreender
É parte do cósmico jogo
De repulsa e atracção
Que da vida anima o fogo
Da matéria no torrão.
Aqui em baixo funciona
Um poderoso enredado de energias à tona.
Alguém precisa dum abanão,
De perder algo, de ir ao fundo,
De aceder à dor de alma de supetão,
De libertar um sofrimento infecundo
Que lhe bloqueia a energia.
O que o bloqueia
De imediato é reconhecido
Pela sidérea
Teia
Da matéria
De que vive envolvido.
Dum abanão precisa
Para que o nó se desfaça.
Ora, tu chegaste em tua vida à traça
Cuja divisa
É que tens de pôr-te ao abrigo
Porque tens de ficar contigo,
Largar a atenção em demasia
Que noutrem se poria,
Voltar a ti,
Que estás há demasiado tempo fora.
A outrem dizer “não” agora
E aqui
Para que, por fim,
A ti próprio digas “sim”.
Por conjunção de vossas energias
Tu e o outro se juntam,
Dele dirás não às vias
Que então assuntam.
És levado a abandoná-lo à sorte,
És levado à ruptura.
Como ignoras que um abanão o transporte,
Findas culpado com tua usura.
Que não sofra crês poder ter feito,
Podias ter permanecido um tempo mais...
E culpas-te deste jeito,
Ignorando os sinais.
Os factos, porém, são como são.
Não fazes o que fazes por acaso.
Não creias agir em desunião
Do Cosmos que te rodeia e que àquilo deu azo.
És levado a fazer,
Chegou o momento.
É preciso agir
E vais sentir
A energia de ruptura a conceber
Um novo evento.
Está na hora
De os acontecimentos mudarem de rumo
E actuas, em resumo,
Agora.
Culpa e perda arriscando,
Mas actuas, nem olhando.
Ora,
Este acto que é teu
É festejado no céu.
Cá em baixo podes cuidar que havia
Outra coisa a fazer,
Mas lá em cima os céus vão saber
Que não, é a tua fantasia.
Alguém tem de levar um abanão,
O céu escolheu-te para o executar.
Sem culpa nem medo, tudo, quando em seu lugar,
Tudo, tudo é são.
Vais vivendo e entendendo
Que cada coisa tem um tempo e uma demora
E que o tempo de ir sendo
Chegou agora.
Aqui
Deus está aqui,
Sempre aqui esteve.
De ti
Depende preparar-te para recebê-Lo como se deve,
Acolher-lhe a energia
Devagar.
Para acolhê-la como se deveria
Tens tu próprio de aqui estar
Assim devagar.
Cada célula, cada membro a abrir-se a recebê-Lo,
Para soltarem o peso que retêm,
A negatividade que lhes pousa no escabelo.
Deus vai absorver o peso por Ele além
E troca-lhe os pólos:
Onde era escuro, abre a luz,
Onde havia som, agora ficam os solos
Do silêncio a que o nada se reduz.
É o vazio
E nele a flébil alma a se manifestar.
E, nesta manifestação, em desafio
Deus há-de estar
Na magnitude
De toda a sua plenitude.
Em cada célula é que Ele existe pleno,
É a soma delas que faz dEle o que Ele é hoje,
Plena energia no âmago de quanto é terreno.
Neste lugar da terra em que o mundo inteiro em ti se aloje,
Ao trepar tão alto que ao Além te arrimas,
É que dos céus
Te aproximas
E vais dar a Deus.
Lições
Adorarias aprender tuas lições de vida
De forma agradável, colorida,
Porém a vida não é assim.
Sabes que tens de aprender,
Os outros dão-te as lições
Mas continuas a querer
Que cada uma te seja afim,
Gentil e sem lesões.
O Cosmos até poderá ser gentil e suave,
Nada drástico, rápido, bruto,
Desagradável, triste nem vergonhoso...
Desde que, à primeira, a lição se te grave,
Atento fruto
Do alerta dele prestimoso.
A primeira vez que tenta mostrar
É suave e gentil.
Mas é raro entendermos, com a matéria a pesar,
Densa e senil.
Pesados e desatentos somos, em cada gesto traído,
Qualquer sinal brando finda por inteiro despercebido.
Recebemos o sinal como uma brisa
E a passada alegremente
Desliza
Para o precipício em frente.
Aí o Cosmos tem de se apressar,
De subir a parada,
De baixar
A frequência
Vivenciada,
Tem de ficar mais pesado.
Tudo depende da nossa resistência
Ao sinal dado.
Quanto mais forçamos continuar
A conjuntura que nos não devolve
Nossa energia original singular,
Mais força o Cosmos envolve
A nos obrigar, com quanto nos arrasa,
A voltar para casa,
Para o nosso caminho, janelo divino,
E função,
Onde germina nosso destino,
A nossa criação.
Quando cuidas que algo em tua vida
Foi drástico demais,
Repara no desgostoso Universo que desnivelou a lida
Para te dar uma lição que ambos detestais.
Vê quanto resistes e como custa a via
De voltar à qualidade de tua energia,
Quão distante do céu vais tornando tua freima viva
Quando recusas aprender à primeira tentativa,
Como Deus ficará triste então
Com tão má gestão.
Triste
Sei que estás triste e que não passa,
As coisas não são como querias.
Querias que tivessem outra traça,
Mais fáceis, a dar jeito e alegrias.
Querias transpor e distinguir melhor
Cada sentimento, emoção, cada amor.
A vida, porém, no movimento secreto
Que apenas ela controla,
Não te oferta tecto,
Leva-te à escola.
Não te dá o que querias na jornada,
Não te deixa fluir,
Não te facilita nada.
A vida, por motivos só dela,
Não irá permitir
Que os dados à tua beira
Ocorram numa sequela
À tua maneira.
E nada podes fazer.
Não podes alterar
A ordem natural dos eventos
Que se vier
A desenhar
Ao sabor dos ventos.
Só podes ficar triste,
Ter pena,
Fazer o luto.
E podes ligar-te à impotência que em ti viste,
Entender que o que não podes na cena
É um produto
Pensado para ser assim.
É a vida que tal impotência
Te está trazendo, enfim.
Em vez de olhares a falência
Do que não estás a conseguir,
Olha para o que tens de fazer
No intuito de entender,
Aceitar e sorrir,
Sereno,
Ao que deveras não puderes no terreno.
Indivíduos e coisas, todos têm a própria energia,
Avançam através dela.
Não podem mudar a deles algum dia
Para seguir a tua, em ti postos à janela,
Só porque tu queres,
Para não sofreres.
Chora, esperneia,
Mas aceita este nó da tua teia.
Em vez de chorar
Porque nada é como queres,
Chora, em lugar,
Por não teres
Sequer
Poder
De querer que seja como queres.
Aí trabalhas a impotência
E vais crescer.
Então, deste sofrimento teu
A violência
De alguma coisa valeu.
Montanha
O homem caminha pela estrada
Com curvas, subidas e descidas,
Até que em frente fica bloqueada,
Um obstáculo de proporções desmedidas:
A montanha alcantilada.
Que fazer?
Tem três alternativas:
Ou martela a montanha, para em poeira a esmoer,
Ou volta atrás e busca outro caminho,
Ou trepa a encosta pelas rochas vivas,
Fiel de seu trilho ao áspero cadinho.
A primeira cansa-o, desgasta-o
E, se derrubar a montanha,
O esforço gasta-o
Tanto de exaustão tamanha
Que mais força lhe não há-de restar
Para continuar.
Para si
O caminho acaba aí.
Na segunda, o homem, amedrontado,
Volta atrás:
Mais não faz
Que o próprio caminho pôr de lado.
Na terceira, o homem trepa à montanha,
Não tem outra escolha, é subir.
Mas às costas transporta carga tamanha
Que dela se tem de eximir,
Libertar-se de bens,
Desapegar-se de elementos que julgou cruciais
Para a jornada
E que, afinal, só lhe fazem agora as pegadas reféns,
Sem sinais
De mais nada.
Para trepar aos alcantis que houver,
O homem tem de aceitar ser ele próprio, Ser.
E vai ficando mais leve,
Quanto mais se aplica
Na escarpa certa,
Mais breve
Se liberta
E mais leveiro fica.
Quando finalmente atinge o cume,
Deveras libertado,
Pode olhar, das alturas com o lume,
Todo o horizonte desvendado.
Entende que está diferente.
Já não pode descer,
Ao caminho inicial a retornar.
O dever
Écontinuar
Dali em frente.
Quando deveras o sentir,
Um novo caminho se anunciará
A partir
De lá,
Alto, leve, livre, pejado de porvir.
Quando acatou subir
Da montanha o pendor,
Ignorava que, a par,
O nível iria elevar
Da vida interior.
Apenas quando atingiu o cimo
Logrou entender
Que já não era mais preciso descer.
O roteiro do imo,
Doravante, para si,
É feito a partir dali.
A vida é assim.
Quando se ergue uma muralha,
Podes evitá-la mudando, ao fim,
Do caminho a calha,
Mas não trocando de qualidade interior,
Teu íntimo valor.
Ou podes encará-la,
Confrontando toda a tua limitação.
O confronto com esta não é criticá-la nem julgá-la,
É aceitar, é acolher
Para se auto-propor
Fazer
Cada dia melhor.
É também descentrar-te das limitações
Para procurar tuas capacidades,
Que onde há umas as outras haverá.
Quando tiveres encarado o muro e as tuas prisões,
Quando te livrares do peso de tuas opacidades,
Das negatividades,
As limitações aceitando desde já,
Então estarás a elevar o esplendor
Da qualidade em teu interior.
E o caminho, outrora a esmo,
Nunca mais será o mesmo.
Sobe
Sobe, sobe aé aos céus,
Vai ter com Deus.
Trepa pelos interiores portais,
Cada um há-de se abrir
Para poderes cruzá-los, depurando cada vez mais
Tua energia íntima, tua fonte de porvir.
A cada portal que passares,
Mais subtil fica tua vida interior,
Maior o poder de senti-Lo quando chegares
Lá acima, do Infinito ao fulgor.
Medita, sobe,
Deixa a tristeza cá em baixo,
A preocupação que te coube,
Das leviandades o cacho,
A resistência, o desassossego,
O orgulho, o ego...
Larga cá em baixo o que te limita
Como humano,
O que atrofia com engano
E mal debita
A justeza e dignidade do arrimo
De teu imo.
Larga tudo cá em baixo e vai subindo.
Quando chegares lá acima,
O céu terá uma festa à tua espera,
O iridescente lindo
Clima
De homenagem à quimera
De trepares convictamente.
Para esquecer os anos sem o teor
Luminescente
Do Amor.
Depois desta subida
Estarás tão diferente, tão transmudado
Que, ao voltares à tua vida,
Emanarás por todo o lado
Uma energia renovada
De vez pacificada.
Esta energia vai mudar teu mundo, seguidamente,
E tudo irá ficar diferente.
Vais entender que é preciso subir,
De Deus conhecer o toque transformador.
I-lo-ás sentir.
Nunca mais olharás da vida o teor
Descoroçoado a crer
Que não há nada a fazer.
Tens de subir, ir lá acima, fecundo,
Que és do grupo escolhido
Cujo sentido
É o de transformar o mundo:
Através da própria transformação
Transformá-lo por fermentação.
Para tal tarefa conta o céu contigo
E preparado estarás, do céu ao abrigo.
Parar
Tens de parar,
Parar de fugir
Do que te preocupa e te dói.
Parar de racionalizar
Para não sentir,
Preso ao que já foi.
Parar de tornar teus dias em redemoinhos
Densos, dramáticos e, no fim, maninhos.
Pára, fica somente.
Pondera que parar é importante,
Uma prioridade premente
Ante
O que te vier adiante.
Estar só contigo é fundamental
Para poderes alinhar com o pendor de teu imo,
Com a qualidade mais radical,
Com o cimo
Donde te chama cada dia
A tua íntima energia.
Se com isto alinhares,
Vais lograr aceder
Ao que o céu tiver
De mais elevado para ti nos seus pomares.
Se conseguires entender
Esta vera bênção que teu imo atravessa,
Lograrás crescer mais depresa.
Como num salto,
Atingirás mais alto.
Ficar parado, quieto,
De ti próprio dentro
É o mais rápido caminho secreto
Para evoluir a partir de teu centro.
Quando aí, parado e quieto somente,
Te conseguires sentir
Plenamente
E a fundura
Descobrir
Do apelo de teu imo,
Apenas nesta altura
Vais poder sair,
Descer lá do cimo,
Para executar com a marca sidérea
Os mais belos projectos na matéria.
Então irás entender
Que, sem revés,
Já consegues ser
Muito mais quem és.
Da paragem a estranha cena,
Afinal, valeu a pena.
Fértil
Não deixar entrar,
Eis um fértil segredo.
Se um dia, tarde ou cedo,
Tua vida interior lograr
Aparecer resolvida,
Concentrada,
Esclarecida,
Emancipada,
- Toda a tua íntima energia
Alimenta então a qualidade
Única, inconfundível, da tua via,
Da tua autenticidade.
Viverás uno com teu imo
Que se mantém inalterado
No bom e no mau dos dias,
Imune à interferência do limo
Externo que te haja tocado,
Dos humores e manias
Da matéria que moldarias.
É apenas isto, derivado em muitos ramos,
O que o céu quer que façamos.
Tenta não deixar entrar
Da matéria os dados que vais tendo.
Há problemas? Resolve-os sem os deixar
Macular o que no imo fores sendo,
Sem do obstáculo o peso que te desafia
Te alterar
O rumo de tua íntima energia.
Existe um conflito?
Resolve-o sem o deixar entrar.
Olha dele para o atrito
Vendo a importância que tem
E mais nada, nada além.
Não o deixes perturbar
A tua vida.
Toma cuidado, que a medida
Seja de dentro para fora,
Não a racionalização
Da emoção
Com que o evento se decora.
Se falhas e deixas o exterior entrar
Até te atingir forte e fundo,
Chora, abre o peito até retirar
O peso que nele pesa o mundo.
Não culpes ninguém.
Se a negatividade entrou
É que havia uma memória de dor para soltar.
Segue além
E, quando já tudo findou,
À matriz é o momento de voltar.
Centra-te, volta a sentir
Tua fina interioridade
E tenta não deixar,
A seguir,
Mais nada entrar
Em tua íntima privacidade.
Este é um dos maiores segredos de vida.
Um dia, quando já nada entrar
Que te perturbe o rumo,
Quando tudo for amor, afecto, sensibilidade,
Terminaste a função que te foi cometida
E poderás, em resumo,
Ir lá acima, do céu à cidade,
Sem medo
De cá voltar como em degredo.
Teu imo e tua interioridade
Definitivamente se unirão
Para poderem continuar em comunhão
A jornada rumo à eternidade.
5
Quinta Estrela
Aquieta
De olhos fechados, aquieta a mente, relaxa
E fica assim calmo, devagar,
Com todos os órgãos a repousar
Do corpo na tépida caixa,
Toda a célula a serenar...
Vais entrando em contacto, lentamente,
Com tudo em teu redor
Que pulsa, fremente,
Do chão ao calor.
Coisas e pessoas com energia mais pura,
Com vida interior
Mais elevada e segura
Que te depura.
Principias por te ligar a esta energia na ribalta
Que te rodeia e te faz falta.
Para te conectares é só sentires
Profundamente a energia.
Não precisas de pensar em nada, só de te abrires
À brancura da força que te envia.
Não acolhas, porém, a escuridão
Da energia pesada, triste, que te enterra no chão.
Procura à volta,
De olhos fechados,
A energia mais alta que no ar te solta,
A mais pura que te inundar por todos os lados.
Vai-la conseguir
Decerto sentir.
Fica apenas a senti-la,
Deixa que entre dentro de ti.
Depois, quando, tranquila,
Acalmar já teu frenesi,
Procura mais coisas e pessoas
Que de tal energia tenham a dimensão.
Não saias donde estás, que te atordoas,
Não abras os olhos, senão
Tombas no chão.
Procura na rua,
Nas árvores, nos animais,
Pressente-lhes a animação,
Sente-a, puxa-a para os teus íntimos canais.
É a tua reenergização.
Está na hora,
Fá-lo agora!
Sinais
Há muito quem cuide que a vida opera por sinais:
Se tudo correr bem e fluir,
É para ser feito, sem mais.
Ao invés, se entupir,
É de votá-lo ao abandono.
E há quem aos sinais não ligue,
Não queira dono.
Depois, quando com ele brigue
A coincidência, pois coincidências não as há,
Tenta então ler a vida,
Através dos sinais que apanha aqui ou acolá,
Porém rudimentar lhe fica o esforço que envida.
Se tudo bater certo,
Avança.
Se obstáculos houver por perto,
Recua e nada alcança.
É a fórmula universal para tudo.
Como findam disponíveis aos sinais da vida,
Cuidam que o ego, seja embora agudo,
Está dominado, vitória garantida.
É um engano
Que os encegueira para o dano.
Se a vida fora tão facilmente legível,
Porque dar tanto valor
Ao eu superior,
Ao âmago indefectível?
É que apenas estes poderão responder
Às questões mais profundas.
Tudo o que não vier
Deles vem a ser
Do ego as intromissões facundas.
O que jamais, decerto,
Irá dar certo.
Antes, pois, opera tu assim:
Tenho de fazer algo
Que requer um enorme compromisso de mim.
A vida vai opor-me obstáculos que galgo,
Para me testar
Até onde meu empenho me irá levar.
Imagina se então
Desistes, por achar
Que os obstáculos são
Sinal para recuar.
Entendes porque a pista
Não é assim tão simplista?
Convém distinguir a armadilha para testar
Dos sinais de não dar certo
Pelo eu superior,
O singular
Imo de tua vida interior
Mais puro e mais desperto.
Só ele poderá dizer,
Indicar
Que fazer,
Os parâmetros da iniciativa
Que a conjuntura torne viva.
Se ainda não consegues ligar com teu eu superior,
Utiliza a intuição,
Nunca o ego predador,
Nunca a mental dimensão.
Então, o que o céu aqui te traz
É o beijo para poderes ficar em paz.
Esforço
Andas a esforçar-te demais,
Fazes tudo com esforço.
Com o céu porque não contas jamais?
“Porque o céu não me irá dar
Do que quero nem o escorço”
- Responderias, liminar.
Ora, o céu te dirá que, se com ele contares,
Se nele acreditares,
Seja o que for que te não der aqui
É apenas porque não é para ti.
Vê só quanta vida pouparias
Se apuraras tuas vias!
Só
Dedica-te a uma coisa só,
Não te ocupes de mais nada
De importante.
Faz de cotio a rotina programada
Como jogada
De dominó,
E não focalizes adiante
Senão a tua empreitada.
Uma só que vai ocupar
Tuas meditações,
Tuas inspirações.
De todo o pormenor
Lhe irás cuidar.
Coloca aí amor,
No que preenche teus pensamentos pioneiros,
Todo o amor, os afectos inteiros.
E, sobretudo, a tua gratidão
Por estares vivo e poderes viver
Profundamente esta experiência, fronteira da imensidão.
Pela gratidão, a Deus vais ter.
Deus desce pelo canal inesperado
De estares grato.
Num instante há-de estar a teu lado
E pode pessoalmente, discreto e pacato,
Como fresco vento,
Ajudar-te a compor qualquer evento.
O que fizeres terá dEle a energia
E a energia dEle transborda de ti e de teu acto
E todos a sentirão
Ao correr do dia.
Serás um canal de transmissão
Segura
De energia pura.
E tal é a tua missão
Na terrenal secura.
Morto
Tens um eu morto aí dentro,
Deita-o fora.
Deixa de ser quem eras, que aí teu centro
Não vigora.
Deita fora as caraças,
Insistências, hábitos, obsessões,
Tudo o que é velho e onde não passas,
Que anda em ti morto há gerações.
Já está morto aí
Mas continua dentro de ti.
Procura novo afazer,
Nova aventura e experiência.
Pergunta o que quer
Tua íntima vivência.
Pergunta o que em teu imo sentes,
O que quer ele ser
E vai fazendo, entrementes,
O que te disser.
Irá levar-te por um roteiro luminescente,
Brando e clarividente.
Um trilho de luz
Que traz no acaso
Do facto que induz,
Fatal,
A certeza de que cada caso
É o teu caminho original.
Quando aqui chegas, ignoto herói,
Todo o teu eu antigo já se foi.
Apuras vivências novas
E tua interioridade
Que então renovas
Melhora, degrau a degrau, a qualidade.
Voaste do rasteiro asfalto
Para um cume mais alto.
Tudo desata a ocorrer nas tuas células,
Na tua vida,
Volitam cada vez mais libélulas
No carreiro que trepa à tua ermida.
Tudo vai ficando no lugar,
Já que teu eu morto
Fora aceitaste deitar
E te dispuseste a ir atrás do novo horto
De teu eu eterno
Que nunca deixou de estar aí, de ti a par,
Apenas não o vias
Nem sentias
E cuidavas que ou algum inferno
O devora
Ou então se fora embora.
Não foi, porém,
E nunca irá, de facto.
É o teu eu de sempre, que a ti se atém
Puro, límpido, intacto.
É o que deverás seguir
Nos trilhos teus
Se pretendes deveras prosseguir
Teu caminho rumo aos céus.
Obrigado
Obrigado por toda a bênção,
Pela encarnação.
Obrigado pelas frestas que me convençam
A vivenciar o Infinito no torrão
Da matéria,
A apreender o Além, dela na miséria.
Obrigado pelo nível da vida interior,
Pela incrível emoção
Boa ou má, fraca ou forte,
De que me é permitido o sabor
Cada dia que procuro o norte.
Obrigado pelos dias.
Obrigado pela dor
Que, liberta, se transmuda em alegrias.
Obrigado pela noite que, vivida,
Se transmuda em euforias
Em seguida.
Que tudo seja como tem de ser
Para que eu chegue onde a Luz
Poderei ver
A que tudo finalmente reconduz.
Onde a poderei ter
Mesmo onde jamais a supus:
- Onde poderei ser
Luz.
Controla
Teu eu que controla deixa ir,
Prescinde de controlar conjunturas ou eventos,
Seja do que for, é de prescindir
Em teus intentos.
Seja o que for que tentes controlar
Agora,
Solta-o, entrega sem demora.
Entrega-o ao céu, deixa-o voar
Para te sentires mais seguro.
Há quem não consiga entregar
Tudo ao céu, que é vago, indefinido e o não apuro.
Se for o caso, entrega-o a Jesus, a um santo, a Deus...
E os ateus
Entreguem-no ao sabor incontroverso
Do Universo.
Não é uma saída a esmo,
São vários rostos do mesmo.
Mas entrega, solta.
Quanto mais tentas controlar
Mais a conjuntura te escapa em volta,
Em singular
Revolta.
São os opostos, da matéria a dualidade
A operar em pleno.
Ao eu controlador deixa-o ir de tua identidade,
Prescinde-lhe do tentador aceno.
Deixa a vida fuir
E aprende a fluir com a vida.
Quando aprenderes que o controlo vai levar-te
Onde não tens de ir,
Entenderás em que medida
Não tem arte
De te conduzir
Onde de ir tiveres
Para deveras seres.
É muito triste
Porque o desvio fica aí
Gravado em tudo o que existe.
Quantas mais vidas se rasgarão então neste bisturi
Até uma acertar o passo,
Encontrar o rumo de teu imo
E te encaminhar, no espaço sem espaço,
Até às alturas do cimo,
Até ao lugar que é o teu
No céu?
Deixa o controlo ir, entrega.
Entrega-te, põe-te ao dispor da íntima energia,
Da Luz que daqui brota e por dentro te rega,
Nascente do rio fértil de teu dia.
Solta a violência
De gestos e mente,
Solta a resistência,
Que se vão embora definitivamente.
É um pacto contigo,
Com a energia,
Com a luz.
Por aí persegues, por aí persigo
A via
Que o Além em nossos termos nos traduz.
Sinos
Dentro de ti ouve os sinos a tocar.
Andam a anunciar
Que está pronta a tua pegada
Para a próxima jornada,
O plano seguinte,
O seguinte patamar
Na curva da estrada
Do ouvinte.
Não vais morrer, vais trepar de nível,
Saltar um degrau de qualidade,
Fruto elegível
Da vivência que te invade,
Da purificação de sentido
Que tens sofrido.
O mundo da interioridade
Está pronto para te fazer subir
Lá para o alto
O nível de qualidade,
O teor
Com que pretendes assumir
O sobressalto
De tua vida interior.
Lá em cima
Talvez te seja mais difícil viver,
Pois continuas cá em baixo, no clima
Da matéria que houver.
Este, porém, é o desafio:
Um comportamento exemplar,
Apesar
De contra a corrente do rio.
Não ajeites o evento
Só porque te fica mais confortável.
Do medo encara o tormento,
Não tentes controlar o acontecimento
Inevitável.
Não controles ninguém, não manipules,
Do que não te orgulhe nada faças.
Nenhum sábio dito anules,
Que é saúde em tuas traças.
Mais que tudo, encontra teu imo,
Torna-o prioritário em tua vida.
Fala e ouve o que quer este teu arrimo.
Se entendes que te torna feliz em seguida,
Avança, não tenhas medo.
É o momento do segredo
Em que te é dado a conhecer
De tua frágil alma o verdadeiro ser.
Chama-te
A vida chama-te
Para saíres do marasmo a que te acomodaste.
Chama-te para aventuras quanto baste,
Só tens de dizer sim, a noiva ama-te.
Um compromisso apenas tens de aceitar:
Honrar
O que à terra vieste fazer:
- Quem és, Ser.
Se lograres Ser em toda a ocasião,
O resto far-se-á por si então.
Anda ver a vida,
Abandona o casulo do falso conforto emocional
A que te votaste,
Em que te refugiaste,
Preventiva medida
Para um engano final.
Cuidas que, sem arriscar,
Nunca irás perder.
Mas também não irás ganhar.
Isto é vida, sequer?
Fecha os olhos,
Respira fundo,
Abre tuas asas sobre os escolhos
Do mundo
E aprende de vez, a par,
Nalgum momento,
Que principia em ti o movimento
De aprender a voar.
Receber
Aceita receber.
Habituado a dar, aí fica teu controlo.
Enquanto dás, controlas o que ocorrer,
Os eventos e, no mesmo rolo,
O indivíduo, ao calhar,
A quem estiveres a dar.
“Enquanto ele receber,
Há-de estar a aceitar-me,
Não a rejeitar-me” -
Pensas, ao correr.
Ao te limitares a dar, assim,
O afecto alheio controlar tentando,
Vais-te, por fim,
Bloqueando.
Quem creia
Que apenas dar a todo o instante
É que é importante
Bloqueia.
Bloqueia por o controlo não perder,
Por não relaxar,
E nada receber
A par.
Receber é o controlo perder,
É aceitar
E saber
Que depois podemos voltar a precisar
E não receber mais.
É aceitar ficar à mercê, fragilizado,
Sofrendo eventualmente um fado
De dores fatais.
Ora, tu não queres sofrer.
Só que, para não sofrer, a receber não estás.
Se tudo é feito para aceite ser,
Para não atrair rejeição atrás,
Ao não receber entende então
Que estás atraindo rejeição.
Achas bem fazer algo para não atrair
E ser isto o que o faz vir?
Abre-te à vida,
Deixa de controlar,
Aceita receber.
Os mais andam a querer-te dar,
Mas estás trancado em tua torre erguida,
A preferir nada receber para não perder.
Preferes, tolo,
Para não perder controlo,
Ficar carente e sofrer.
Os demais querem dar e tu a morrer
Em teu deserto
De falseado ser.
Não pode estar certo.
Abre, mesmo que doa,
Mesmo que fiques carente,
Mesmo que te sintas mal.
Abre, que devéns pessoa
Finalmente
Total.
Abre,mesmo que creias
Que te irão fazer mal,
Mesmo que mal te façam às mancheias.
Abre, é a única razão
De estares aqui,
A única porque não subiste na íntima visão
Para ficar mais perto do imo,
Do céu que ali
Existe ao cimo.
Novas
Para poderes viver novas experiências,
Vivenciar conjunturas novas,
Eis emoções inéditas de inéditas valência,
As emoções que te trarão as provas
Únicas que te farão mudar
Radicalmente
De vida.
Elas te irão reprogramar
Tua mente, teu cérebro à medida.
Isto irá reprogramar tuas células, teus órgãos, teu corpo,
Tua vida inteira.
O que, por seu lado, irá reprogramar as vidas caídas de borco
À tua beira
Que irão reprogramar tua cidade.
O que reprograma o teor
Da qualidade
Da vida interior
Do mundo,
O que reprograma, longe e fundo,
O Universo...
Portanto, tudo o que existe tem como função,
Tudo, subtil e terso,
Reprogramar, a partir deste chão,
Todo inteiro o Universo.
Incentivos
Não adiante tentar encontrar
Na vida incentivos novos
Para a vida interior elevar,
Farol de povos.
Quanto podes ter ou fazer
Na vida actual
Teu estado de espírito mudar há-de poder
Mas por pouco tempo, afinal.
O evento ocorre fora de ti,
Provoca-te uma emoção,
Vives a nova vivência aí,
Então,
Tua interioridade sente que vem a mudança,
Fica insegura,
Exige a velha postura
Que a descansa
E rápido voltas ao abrigo
Do registo antigo.
Teu sistema de crenças
Activa o das defesas
E é poderoso demais para que o venças,
Tudo em ti são dele presas.
Raramente alguém melhora
A qualidade interior de modo perene
Com o que lhe venha de fora
E lhe acene.
O contrário, pese embora o susto,
É mais certeiro e difícil também.
Primeiro atinge a custo
Um novo modelo para o que convém,
A nova forma com que me esgalgo
De encarar algo.
Depois acredito nela.
Desato a incorporar
Esta nova janela
Em meu interior patamar.
Começo a remodelar-me, à nova visão converso,
E reprogramo o Universo.
Música
Põe a música de que tanto gostas,
Senta-te no teu lugar,
No recanto de não virar costas
Que sentes como teu em particular.
O que te devolve quem tu és
Sem precisares de fazer nenhuma concessão.
Que te permite apenas estar, sem nenhum revés,
Apenas ser, no teu torrão.
Senta-te aí, fecha os olhos e vais chamar-te,
Chamar quem és de verdade.
E vê, olha, sente, sente esse aparte
De tua identidade.
Quem é tal indivíduo? Reconheces-te?
É quem és ou falta-te ser mais
Para lá chegar? Enobreces-te
Ou decais?
Aquilo em que pensa é no que pensas?
E como o pensa é como o pensas também?
O que sente é o que sentes em tuas sentenças?
Em que acredita? E tu crês em quê, em quem?
Acredita no céu, será que o ama?
E tu, no meio da tua trama?
Deixa-o ir
Até Deus, trepar ao Além,
Deixa-o subir.
- E agora sobe tu também.
Meditação
Vamos fazer meditação.
Senta-te num lugar aconchegante,
Onde fiques confortável.
Liga música ambiente suave o bastante
Para que o som se torne afável.
Fecha os olhos e respira algumas vezes
Profundamente.
Sente uma luz que te procura
Há muitos meses,
A invadir-te, coerente,
Da cabeça aos pés, com brancura,
Uma luz de cura
Infinitamente
Pura.
Quando te sentires limpo, leve,
Vais pensar em todas as coisas boas
Que tua vida tem e já teve,
Nas emoções e vivências fantásticas que apregoas
Vida fora
Que atraíste nalguma hora.
Nos melhores dias,
Nas melhores noites.
Daqueles que amas e amaste evoca as energias
Que em ti acoites.
Mesmo dos que não te fizeram bem
Mas que amaste também.
Mesmo dos que sofrer te fizeram
Mas que amaste como são e como eram.
Chama de todos eles a energia interior
E sente o amor
Que por eles tens.
Entende que, independentemente do que ocorreu
Entre vós, são teus reféns
Levantando-te a ponta do véu
Para te ensinar
A amar,
A honrar tal amor dentro de ti.
Estão na tua vida a te mostrar
Que tens todo este amor aí,
Nas tuas berças,
Dentro de ti,
Para que o exerças.
Para que ames sem esperar nada.
O amor, antes de ser uma troca,
É uma bênção para quem o sente na jornada,
Para quem o conseguir,
Dentro da toca,
Sentir.
Nas alegrias e nas penas,
Sente-o apenas.
Fica com a energia interior de toda a gente
Aí à tua frente.
E ama, ama somente.
Independentemente da resposta deles a teu amor,
Irás sentir
Tua energia interior
A subir
De qualidade, de teor,
A elevar-se,
Do Infinito a aproximar-se.
Quando teu peito estiver
De tanto amor quase a rebentar,
Do amor que de teu íntimo ser
Emanar,
Eleva tua consciência
E vai amar Deus, tua envolvência.
Apenas logra amar a Deus
Quem a outrem amar,
Amar noutrem o imo, fresta dos céus,
Quem amar a vida na imensidão e no particular.
Quando teu peito estiver
Quase a rebentar de tanto amor
Pelo imperfeito humano ser,
Estarás a amá-Lo em tal pendor.
E a amar-te,
Pois da imperfeita entidade
Fazes parte
Da humanidade.
Padrão
Podes não saber,
Mas a conjuntura
Que estás a viver
Um padrão configura,
Exprime um tipo de energia interior
Da trama que ata em seu teor.
Independentemente de quem aí te colocou
Ou se foste tu quem por aquilo optou,
Independentemente de te terem feito mal
Ou de tu teres feito mal a alguém.
Independentemente de te ter feito sofrer ou, por igual,
A outrem também.
Independentemente de tudo,
Entende que esta conjuntura
Não é única em tua vida
E, sobretudo,
Que a emoção que despoleta e configura
Não te é desconhecida.
Podes não ter vivido aqui
Este evento em particular
Mas já viveste dentro de ti,
Se calhar,
Outros com igual
Peso emocional.
O que estás sentindo agora,
Independentemente de tudo,
De quem, como, quando,
De quanto em teu peito mora,
Brando
Ou agudo,
É-te já conhecido
Nalgum sentido.
Mais que conhecido, é teu, és tu.
É uma emoção de teu imo,
Um peso, negro tabu
Que ainda não foi resolvido,
E que às vezes vem das águas negras ao cimo
Para poderes entender
Que continua por resolver.
Pára de focar-te fora,
Fora de ti.
Vai buscar a emoção onde ela mora,
Em tua fundura aí.
Esquece os indivíduos, os dados, as conjunturas, os eventos...
Centra-te no teu peito
E puxa a emoção, puxa-a, não importa a que tormentos
Te ponha atreito.
Sente e, quando tal sentir
De ti tomar conta
Porque tiveste de decidir
Que é teu, és tu naquela negra ponta,
Então e apenas então
Chegou a hora de tirar,
De te desfazeres da escuridão
Que em ti ressumar.
Lembra-te, entretanto:
Nunca te podes desfazer
Do que teu não aceites ser,
Seja qual for o peso e o pranto.
O lema para te livrar do véu
Que te tolda a mira:
Primeiro aceita que é teu,
Depois retira.
Para a retirar, prescinde da emoção.
Considera que é tua
Mas não da vida que pretendes agora,
É uma ilusão
Que vem de alguma rua
De antanho e se demora.
Embora em tua estrada,
Não anda aí a fazer nada.
De tal emoção já não precisas de vez
Para ser quem és.
Não é criativa,
Positiva,
E hoje, em teu peito,
Só pode caber emoção construtiva
De tal jeito
Que leve a progredir
Tua vida interior
No rumo em que melhor
Evoluir.
Abandona o que estás a sentir,
Pára de julgar
Que outrem é que te pôs neste estado.
Entende que és tu que te pões nele ao olhar
Outrem como o mal que tudo há causado.
Entende isto e ficarás perto
Cada vez mais do que está certo.
Costas
Doem-te as costas
Por carregares aí o peso do mundo,
O peso de quantos apostas
Que podes salvar com teu gesto fecundo.
O peso de quanto gostarias
Que fosse doutra maneira,
Sem entenderes que, se calhar, aquilo seguiu as vias
Requeridas por tuas energias
Para, à tua beira,
Despoletar
Algo em ti que poderias trabalhar.
O peso de que todos em redor
Estejam bem,
Sem entenderes que, se assim não for,
Nada adianta, porém.
O peso em tuas costas é de culpa um sentimento.
É o intento
De responsabilizar-te doutrem pelas escolhas
E pelo que atraem na vida que recolhas.
Só te podes responsabilizar
Por duas medidas:
As escolhas por ti prosseguidas
E a tua vida, no que delas resultar.
O resto é uma fuga
À responsabilização
Por tua vida, no que ela requer e que lhe aluga
A tua decisão.
É mais fácil para outrem olhar,
Doutrem para os erros.
Olhas para fora para escapar
De olhar para dentro, para teus danados perros.
Porque dentro dói
E, portanto, doem-te as costas.
Quando para dentro olhares a ver como foi,
Directo ao que gostas e não gostas,
Maduro, responsabilizado,
Então poderás deixar
De te centrar
No que anda fora, ao teu lado.
Pararás de exigir,
Tua culpa hás-de limpar
E, da dor nas costas no lugar,
Duas asas irão surgir
Que andavam presas
E agora, ilesas,
Têm liberdade para voar.
Nesse dia, lá em cima, à tua espera,
Deus afasta da porta o véu
De tudo o que foi quimera
Para te mostrar o céu.
Desconforto
No maior desconforto
Encontras tua maior habilidade.
Neste horrendo horto,
Encontra tua tolerância, paciência, disponibilidade.
Quando o desconforto escolhes aceitar,
Escolhes também ser tolerante,
Paciente.
Sabes que irá durar
Pelo menos um instante
E aceitas por ele passar de boamente.
E aprender
E limpar
E vivenciar
E viver.
Vivido o drama,
Após o sangue derramado,
Saberás que sobreviveste à trama
E, a partir daí regenerado,
Regeneras, mais tarde ou mais cedo,
A tua relação com o medo.
Vês quanto, por dentro de ti liberto,
O Universo bate certo.
Escolha
A força que uma escolha tem!
Quando alguém escolhe por si,
Por quem é, para consolidar o ser que lhe advém
Pela luz que lhe refulge do além,
Aí
Não há efeito, por mais que os dedos nos entale,
Que o abale.
Não há percalço que o desmobilize,
Que a escolha lhe vem de dentro,
Da fundura para além do centro,
É força avassaladora de tudo o que vise.
Cria auto-estima,
Amor-próprio, auto-construção,
Cria energia num clima
De mais e mais escolhas sempre à mão.
Quando a energia da escolha se liberta,
Transborda em ondas rumo ao Universo.
O mesmo Universo a devolve, a mão certa,
Em abundância terso
E converso,
Uma energia calma e pacificadora
De toda a nossa hora.
De tanta luz cada um se encandeia
E o céu fica mais rico a cada dia
Em que a energia
Rodopia
E se semeia.
É a força da escolha num mundo que se alheia,
Adverso,
A força de obrigar a crescer o Universo.
Comunicação
A comunicação é tão lúcida e consciente!
Trepaste os níveis requeridos
Para tocá-Lo, no Além presente,
Para Ele te tocar teus sentidos,
Teu coração,
Tua energia, do imo no fundão.
Para te substituir
Séculos de células-padrão
De energia escura que não havia meio de luzir.
Para te facultar
Recursos de purificação.
A música, de teu íntimo no lugar,
Afina o tom, o timbre, a vibração.
Quando hoje trepas lá acima com facilidade,
Não cuides que é imaginação.
Ele mora ali, de verdade,
A dizer-te ao que vem.
Sente-Lhe a resposta,
A versão
Que tem.
A proposta.
Os eventos da vida
Servem mais que um objectivo.
Tudo é intrincado e perfeito em tua lida
Para obteres inspiração
E retirares de dentro de ti próprio, ao vivo,
Tudo o que não sejas tu, para lhe dizer que não.
Chama-O, que Ele há-de vir.
Virá colorir
Teus dias,
Enchê-los de sentido.
Vir-te-á instruir
Sobre as melhores estadias
Para quem na matéria andar perdido.
Vai dar-te amor puro e jovial
E pôr-te no peito a informação requerida,
Afinal,
Neste momento de tua vida.
Chama-O, que a quem apele
Ele virá enchê-lo da luz dEle
E fazê-lo brilhar, por todas as janelas,
Até às estrelas.
Para não esquecer donde vieste,
Para não esquecer
Quem escolheste
Vir a ser.
Maneira
Apenas há uma maneira, na estrada,
De encontrar o fio da meada.
Não há várias maneiras
Para cada um obrar à sua:
De agir as variadas carreiras
Definem a diversidade humana ao sair à rua.
Não há duas maneiras, na verdade,
Pois os opostos são da matéria a dualidade.
Apenas há uma maneira
De encontrar o norte,
Tudo o mais são caminhos à sorte
Para lhe chegar à beira,
Formatos cá de baixo,
Pesados de escuridão,
Sem a elevada qualidade do facho
Que é pedida à espiritual aspiração.
Apenas uma forma: sentir, sentir, sentir.
Quanto mais aberto a sentir, melhor.
Quanto mais isto respeitar, melhor para ir,
A seguir.
Quanto melhor entender que o calor
De sentir é o meu eu verdadeiro,
O que as amarras não prendem, de leveiro,
E os conceitos não vergam, tanto melhor.
Quanto mais celebrar esta radical,
Visceral,
Derradeira
Sensibilidade, melhor.
É a única maneira
De ficar sob o abrigo dos céus.
E é o que tem a ver com Deus.
Concentra-te
Quando tudo estiver mal,
Concentra-te em ti.
Quando tudo em redor ruir no vendaval,
Repara que o movimento do Universo,
Quando quer parar-te o frenesi
Para que dentro de ti entres, converso,
Faz,com a fúria à solta,
Ruir tudo à tua volta.
É um perpétuo movimento.
Abandonas de teu imo a vocação,
O chamamento,
Para ir buscar noutros a segurança que te não dão.
É mais fácil o que é de fora de nós,
É mais confortável e seguro,
Medidos contras e prós
Nalgum apuro.
Difícil há-de ser em ti próprio te adentrar.
Aí dentro andam tristezas, mágoas, ressentimentos,
Admoestações, enovelada teia singular.
É o escuro onde sopra o frio dos ventos.
Eis porque foges deste interior adverso
Para aos outros te agarrares.
Aos outros, porém, ao te apegares,
Provocas para agir
O Universo,
Em retorno, a seguir.
Ora,
O Universo não pode permitir
Que de ti te mantenhas fora.
Vai ter de retirar, pois, a segurança
Que encontravas em teu relacionamento,
Quebrando a ilusão que te alcança
De que ele é satisfatório, muito a contento.
Então, o Universo quebra-te a ilusão:
De repente, sem porquê,
Aqueles em que depositavas confiança,
Zangam-se contigo, saem de teu pé,
Asneiam, não te dão
A esperada atenção,
A doença os alcança,
Por entre os dedos como areia te escorrem,
Morrem...
Esta fatídica roda
A destruir a ilusão
Da idílica relação
Tem toda
Um propósito singelo:
Para ti levar-te a olhar,
A sentires de teu imo o apelo,
A tua energia particular.
A ti próprio faz-te ver,
Faz-te delinear alguém
Que gostarias de ser
E de que te orgulhas também.
Todo o movimento é para te colocar, afinal,
Na tua própria dimensão emocional.
Faz-te sentir
E, através disto, na dor ou na alegria,
Vai-te fazer abrir
Do Infinito o canal de magia.
E vai-te obrigá-lo a subir,
Ensinar-te a ir
Lá acima,
A segurança buscar
No único lugar
Do céu onde a segurança se arrima:
Nos seres de luz,
No eu superior que teu imo traduz,
Na derradeira instância dos apelos teus,
Em Deus.
Ama
Ama-O, ama.
O encanto da vida é o amor
Que sentes prlo Além que em teu imo se derrama
E dá todo o teu vigor.
Este amor é a via
Que te aproxima da eterna energia.
E trepas mais alto,
Mais puro.
Ama sem sobressalto
Nem apuro.
Sente apenas, à flor da pele,
Amor por Ele.
Vais ver
Que este amor irá romper
Barreiras pessoais,
Castelos, paredes, bloqueios emocionais,
Compensações,
Traições...
Vai rebentar amarras,
Fronteiras de limitação.
Ama-O, que afias garras,
Ama-O, que arroteias chão.
Sente, escolhe um imenso amor por Ele
Sem querer nada em troca,
Sem esperar dEle a presença que apele
Nem de fiar a vida a etérea roca.
Esperares que te ame
Ou que te demonstre amor
É de fora de ti um reclame,
Ainda de fora um qualquer falso fulgor.
Ama-o apenas.
Deixa que este amor invada tua vida,
Teu corpo, tua energia,
Tua alegria,
Tuas penas,
Tua inteira lida.
Deixa-o invadir, do campo à serra,
Os outros e a terra.
Que ele cresça, em solidéu,
E que invada o céu.
Quando menos esperares
E que é só uma luz acesa
Quando julgares,
Irás ter uma surpresa.
Pelo canal de amor que emanaste
Deus irá descer,
Numa noite calma, a teu lado
Bem aconchegado,
Vai-te descrever,
Por contraste,
Histórias lá de cima, do que ocorreu
No céu.
Tua vida irá mudar ao aguilhão do açoite
Dessa noite.
Jamais ficarás sozinho,
Que tocaste no cerne da vida
E ganhaste uma luz própria, na ocasião,
Que afasta de tua lida,
Em trejeito adivinho,
Definitivamente a solidão.
Chora
Chora, que chorar
É retirar a vivência negativa
Que, dentro de ti ao estar,
Te levou a atrair, furtiva,
O evento que persiste
E te deixou triste.
Uma vez que atrais
Vivência igual à que emanas,
Ao retirá-la
Vais
Deixar de emaná-la
E, com a vivência tranquila,
Já te não danas,
Pois à triste irás deixar de atraí-la.
Tens uma vivência negativa
Dentro de ti:
É de violência.
Irás emaná-la em redor, por aqui, por ali...
Vais então atrair, fatalmente,
Vivência igual ou equivalente.
Podes revoltar-te contra quem te fez mal,
Noutrem colocando tua atenção,
Fora de ti, afinal,
Não indo dentro, ao coração,
Não limpando,
Com atitudes negativas, portanto, continuando.
Mantém-te a atrair
O que a emanar entendes prosseguir.
Ou podes entender que a conjuntura te deixou triste,
Não julgando quem te fez mal,
Antes chorando a tristeza que persiste,
Retirando de teu peito a vivência fatal.
Então esta, em particular,
Deixa-la de emanar.
Logo, em retorno, não a vais
Atrair mais.
Chorar é o princípio-base,
O resto ocorre por si.
A vida tende a que tudo case
Aqui.
Recebes violência,
Choras por tê-la recebido,
De teu peito lhe retiras a vivência,
Deixas de emanar em tal sentido,
Deixas de a atrair,
Então, a seguir.
Simples deveras,
Difícil de executar.
Por isso é que o ser humano, através das eras,
Criou um ego singular.
O ego, quando compreende
E se compromete com a luz,
Tem a força que rende
Tudo aquilo a que me propus
E mais além,
Sem limite algum nem de ninguém.
Começa já,
Chora,
Fazer-te bem irá.
A toda a hora
O céu lá em cima atento está,
Caso precises de algo mais
De partida no teu cais.
Renascer
Estás a renascer,
Em todos os sentidos, em todas as formas,
Em todo e qualquer
Dos actos de cotio
Nasces outra vez para uma vida doutras normas
Noutro desafio.
Cada vez ficas mais perto
Do céu que de ti parece tão deserto.
Cada vez se eleva mais tua vida interior,
Mais alta, mais pura, mais subtil,
Cada vez mais te vens propor
E atinges a dimensão do céu de anil
Onde as fadas, ao luar,
Podem voar.
Este é o tempo do renascimentpo,
De os homens entenderem a missão,
A única verdadeira, viável no momento,
Enquanto em humanidade todos cavam o chão:
É cada qual
Lograr ser único, inconfundível, inviolável.
Conseguir-se distinguir, inimitável,
Um em sete biliões, na campina mundial,
Germinando, fiel ao íntimo, sua raiz especial.
Imo
Hoje é o dia do âmago, do imo,
De teu íntimo o mais interior,
A derradeira
Fronteira,
O mais profundo de ti e o mais ao cimo,
Ao Além aberto, seja lá este o que for.
Hoje é de lhe dares atenção,
De o levares a sério.
A nível evolutivo, quem te deu a mão
E detém o império
É o eu superior, teu mestre.
É quem te pode ensinar,
Quem te adestre,
Quem tem teu plano de vida lá em cima,
Ancilar,
A que deves recorrer quando
Apenas em dúvidas porventura se estima.
É o ideal de ti, quando te estás ponderando.
Em auto-estima, experiência terrena, auto-realização
É teu imo o anfitrião.
Ele é que sabe, de génio num fogacho,
O que te faz feliz cá em baixo,
Daqui com os recursos
Nestes percursos.
Detém teu plano de vida aqui,
Responsável por ti,
Para que o cumpras, indefectível,
Do modo mais criativo possível.
Criando um eu novo cada dia,
Rejuvenescendo-o ao sabor da fantasia.
Hoje é o dia dele,
Faz o que há muito desejares fazer
E a que te impele.
Tem a coragem de o ser,
A ousadia de correr
Como um petiz
Para o que te tornar feliz.
Fá-lo e oferece a ousadia
Ao imo que te espia.
Que isto revele
Como gostas e confias nele.
Pergunta-lhe o que quer que vistas,
Como quer que te penteies,
Em que desjejum invistas,
Com que sonhos o dia permeies...
Verá que a luzinha no peito
Principia a falar,
A dizer o que quer ter a jeito,
Ao que vem, em particular.
Tira um dia para estares com ela,
Dá-lhe prioridade em tua vida.
Vais dar energia a uma estrela,
Do céu tua aliada de raiz
Na tarefa prometida
De te tornar feliz.
Salvar
Teu amor por Deus vai-te salvar.
O amor que por Ele sentes,
A luz de teu peito a borbotar,
É o melhor de ti.
Ao amá-Lo consentes
Ir buscar aí,
Dentro de teu imo, o melhor que tens.
Quanto mais O amares,
Quanto mais elevares
A qualidade íntima da vivência que deténs
Em teus aléns
Que é o amor,
Mais tempo o andarás a vivenciar
No píncaro maior,
Em tuas células a puxar
O que têm de melhor.
Quanto mais alguém se embebe
E dá o melhor de si, terso,
Mais abundância recebe
Do Universo.
Ao amares Deus, o dom maior
É que receberás, ao fulgor de alva,
Do Universo o mesmo amor
E este amor salva.
Qualidade
Emoções básicas e negativas
Têm qualidade interior muito rasteira.
Quando a fúria activas,
Fremes do chão muito à beira
E onde há baixa qualidade
Há escuridão, peso, densidade.
Quando te apegas seja ao que for,
É baixa a qualidade da vida interior.
Ao invés, é alto
O peso da prisão, é um catafalco.
Quando escolhes subir de qualidade,
De coisas e pessoas te despegas
E tudo em profundidade
Entregas:
“Será o que tiver de ser,
Vai ser o que for melhor
Para todos, seja o que for,
Será o que Deus quiser...”
Nesta altura elevaste de qualidade
O rumo de tua energia interior.
Perdes violência.
Mais elevas tua identidade,
Brilhas mais e melhor.
Cada vez mais o íntimo teu,
A tua essência,
Fica perto do céu.
Ama-te
Ama Deus dentro de ti
Porque Ele mora aí dentro,
Em cada bocadinho, cada célula, vive aí,
Escondido no secreto centro.
Só quando entras em fundo contacto contigo
É que em fundo contacto entras com teu eterno Amigo.
Só quando te amas em teu vector eterno
No vector eterno dEle O amas, superno.
Quando O perdeste há dois mil anos,
Quando desapareceu de tua vida,
Não te julgaste merecedor de nada, senão de enganos,
Já que O não mereceste em nenhuma medida.
É o raciocínio que de geração em geração foge
E perdura até hoje.
Tal não foi dEle a intenção.
Saiu de nossas vidas
Para olharmos, à força de O não termos mais à mão,
Para dentro de nós
E entrevermos, nas funduras escondidas,
Que Ele estava aí após,
Nunca mais ficaríamos sós.
Ao entendermos que Ele estava aqui dentro,
Iríamos amá-Lo e, em paralelo, amar-nos,
Reparando que O merecíamos em nosso centro,
Inteiro no imo, a energizar-nos.
A escolha continua
Hoje em dia a ser tua.
Ou sentes-lhe a falte fora de ti,
Concentras-te na ausência
E, daí,
Não te crês merecedor da permanência
Intimamente vivida
Dele em tua vida
Ou entendes que se foi embora
De nosso olhar
Para que O sintas dentro em ti a toda a hora
E por isto te venhas a amar.
Das duas, qual a eleita?
A escolha tem de ser feita.
E és tu quem a tem
De fazer, mais ninguém.
Ele apenas te pode elucidar,
Jamais escolher por ti.
A escolha dEle já foi feita, a de te amar
Eternamente aqui,
Escolhas o que escolheres.
Ele estará sempre no âmago de teus afazeres.
À tua espera,
À espera de que entendas,
Que escolhas amá-Lo e amar-te, no tempo e além desta era,
À espera de que à luz te rendas,
À espera de que sintas na pele
Que a luz é Ele.
Expectativas
Elimina todas as expectativas
Sobre tudo e todos.
Deixa de esperar que as eventualidades esquivas
Sejam duns ou doutros modos.
Deixa de esperar,
Sigam um ou outro rumo particular.
Deixa de criar grilhões
De ilusões.
Isto apenas te activa o controlo, o desassossego,
A manipulação e o teu ego.
Prescindir de expectativas quanto à vida
Leva a sentir que o que a vida te der
É uma bênção desmedida.,
Pois dela nada esperarias sequer.
Então agradecer consegues
O que a vida te der e nem persegues.
Não julgarás que é da vida obrigação
Dar-te o que quer que seja então.
Expectativas sobre outrem quando elidires,
Ao falharem contigo ficas tranquilo,
Pois não esperas nada, deles ao prescindires
Em teu íntimo sigilo.
Se forem dóceis, sinceros, carinhosos,
Amigos, cúmplices e companheiros,
Como não esperavas dons tão generosos,
Logras ver e agradecer gestos tão saborosos
E certeiros.
Tens, por norma, expectativas a mais
E tudo o que recebes julgas pouco.
Mais queres e ter mais crês que deverias.
Aos sinais
Cego e mouco,
Perdes-te em fantasias.
Aquele mais estraga tudo,
Torna-te calculista, competidor mesquinho, sobretudo,.
Neste estado
Só tens ressentimento.
Não ficas grato por nenhum dado,
Nada acolhes nenhum elemento,
Pois julgas que tudo é teu na vida
Logo à partida.
Mais do que a alegria solta ao vento
Vais sentir decepção,
Vais ter mais ressabiamento
Que gratidão.
Ora, qualquer alma sem gratidão, a tresandar a bodum,
Não vai nunca a lado algum.
Sonho
Teu imo, no sonho, não fala com tua mente,
Antes com teu coração,
Clara e directamente,
Sem intermediério nem manipulação.
Com teu coração
Desliza dele a comunicação,
Ribeira fluída,
Pois a entende e sente.
Qualquer alma adora ser sentida,
Compreendida
E levada a sério firmemente.
Carrega teu projecto de vida
Sobre a terra, tua missão.
Sabe até ao pormenor
O que te falta realizar,
Se estás dentro ou fora um ror
De teu caminho a palmilhar.
Com o imo comunicar
É indispensável a quem se quer
Iniciar
Para na esteira evolutiva se manter.
Nossa mente e nosso ego
Pouco se importam.
Estruturas de sobrevivência a que me apego,
Ao imediato e confortável apenas exortam.
O intento
Que têm
É afastar do sofrimento,
Levar-nos a sentir bem.
A questão
É como é que isto opera então.
Por norma
É através duma cobarde
E muito imediatista forma.
Faz-nos fugir, sem alarde,
Da dor mesmo incoercível,
Quando já nem há fuga possível.
Faz-nos fugir das emoções, de repente,
Quando quem foge finda bloqueado e doente.
Faz-nos fugir de confrontos belicosos,
Tornando-nos hipócritas e mentirosos.
Faz-nos abandonar do ignoto as pistas,
Tornando-nos preguiçosos e comodistas.
Faz-nos fugir da sensibilidade,
Tornando-nos frios e duros de crueldade.
Faz-nos fugir da espiritualidade, em resumo,
Abandonando-nos perdidos e sem rumo.
De nosso imo põe-nos retirados,
Tornando-nos tristes e desalmados.
Ora, durante o sono, o ego é mais desactivado,
Qualquer alma pode então manifestar o seu lado.
Durante o sono
Grandes segredos são revelados
Acerca do que o imo sente e do que lhe abono,
Acerca do que sentimos perante os dados
De entes, eventos, de cada conjuntura,
Do que nos ocorre e a vida nos estrutura.
Durante o sono
Nosso eu mais profundo tem
Oportunidade de murmurar ao dono
Ao que vem.
Antes de acordares por inteiro,
Ainda estremunhado,
Quando abrir os olhos ainda custa um bocado,
Ora leveiro,
Ora pesado,
Em vez de saltares da cama
Para um dia veloz,
Pára, fica, pousa a trama
De tua quotidiana malha de retrós,
Aproveita um minuto quieto,
De olhos fechados,
A sentir
O que furou o tecto
Dos telhados
Da consciência para te acudir.
Apenas a acolher o que te trouxe a noite,
Embora nem recordes o sonho que tiveste,
Não faz mal, importa é que em ti se acoite.
Ficou uma sensação,
Uma emoção,
No peito um sabor agreste
Ou celeste.
Fica, sente-o, entende que é uma mensagem
De teu imo.
De hoje na viagem
É o que pretende comunicar-te lá do cimo.
Se for um aperto,
Um afecto estranho,
Um medo, um desconforto, um desacerto,
Não fujas, que perdes o ganho.
Não actives teu ego,
Tua mente.
Para mais uma vez escapar, rumo ao sossego,
Da mensagem subtil e premente.
Fica, sente, chora se é preciso.
Abre imaginariamente o teu peito,
Retira lá de dentro quanto é pesado, escuro, negativo aviso,
Pelo que sentes cultiva todo o respeito.
Depois principia
O teu dia.
Vai à tua vida certo
De que fizeste algo por teu imo desperto,
Deste um passo em direcção
À tua evolução.
O que te deixa, sem ambiguidade,
Mais próximo da felicidade.
Agradece-te
Agradece-te o Senhor
Todo o bem que fizeste à terra
Ao elevar a qualidade da vida interior
Que teu peito descerra.
Agradece todo o bem que à terra trazes
A cada vez que te escolhes,
Que escolhes a luz com que te aprazes
E que de teu íntimo recolhes.
A cada vez que te afastas de quanto não é teu
Nem eco encontra dentro de ti.
Esta escolha eleva rumo ao céu
A qualidade das energias da terra, campo magnético aí
Incorporado,
Em teu corpo pesado.
Agradece-te a disponibilidade
Para te trabalhares,
Consultando-Lhe as mensagens, alicerce de tua profundidade.
Ao te esforçares
Por compreender
Esta lógica nova de ser.
Agradece a fé, a aplicada dedicação
Por ires onde dói, crendo que é de esgotar depressa.
Agradece a emoção
Onde Ele em ti começa.
Equívoco
Nem sempre correm os eventos
Do modo que quererias.
Nem sempre outrem lê nos ventos
O que nos ventos tu lias,
Nem coloca na postura
As energias
De que naquela conjuntura
Gostarias.
Quenquer pode estar de acordo contigo,
Formalmente.
Mas apenas na forma estarão ambos ao abrigo,
Que a energia interior com que outrem vai em frente,
É diferente.
É o equívoco de creres que ele o faz com uma intenção
Quando com outra o fez,
Como ele crê que implementas tua acção
Com o intuito que ele imagina e tu não vês.
Independentemente dos acordos formais
Que com outrem fizeres,
De acordarem nos pontos principais
(Em todos é inviável, mesmo se o queres),
Independentemente de tudo,
Sente em teu imo a energia.
Fecha os olhos, deixa-O entrar, quieto e mudo,
E sente, sente como se faz dia.
Sente a tua interioridade
E a do outro também,
Na proximidade
Do tema a que se atêm.
Grandes sínteses irão
Brotar desta meditação.
Agora, que sabes como principiar,
Podes avançar.
Buraco
Quando alguém ama, deseja vivenciar
O afecto profundo da partilha a dois,
O sentimento deslumbrante de estar vivo, a voar,
Do peito a explodir de rouxinóis,
De todas as flores serem belas,
Na vida incongruente a abrir janelas
De luz e calor,
Que o que importa é o amor.
Na vida que das mãos nos escorre,
Esvaindo-se a eito,
Não é, porém, o que ocorre.
Temos um mecanismo de carência
Com um buraco no peito,
Aberto por milénios de privação e de ausência.
Buraco herdado de vidas e vidas
De emoções negativas gravadas na natureza,
Na humanidade, nas almas e nas gestas empreendidas,
Emoções jamais ultrapassadas, nunca sumidas
Em nenhum reino de beleza
E que agora como sempre clamam por cuidados
Que transmudem estes fados.
Buraco proveniente de ausência de imo,
De alma, de eu superior
Que no nascimento ficou lá no cimo,
À espera de que se lhe abra a porta a jeito
Para poder entrar, a cura a propor
E encher-nos de plenitude o peito.
Buraco provocado do âmago pela ausência
Após tantos séculos a olhar para fora,
Para os outros, a apelar-lhes à complacência:
“Gostem de mim, gostem de mim sem demora!”
Ora,
Este peito escuro e frio
Se revela agora,
Desolado, doente,
Gelado rio
Sem corrente.
E dói.
E, quanto mais dói, menos o indivíduo vai lá,
Menos se relaciona com ele, menos constrói,
Menos o que ele quer quererá.
Quando alguém
Se apaixona, porém,
Que acontece?
O peito abre e aquece,
Explode de amor
De repente, da faísca ao fulgor?
Não.
Acede ao amor, então,
Que germina dentro do peito,
A despeito
Da dor?
Não.
Apenas fica extasiado
Por alguém ter encontrado
Que despoleta uma emoção tão forte
Que pode tapar o buraco.
Não é amor nem dele o norte,
É a carência que ataco.
Aquele coração
Ainda não ama, não.
Ainda só quer
Parar de doer.
Como não é amor, não pode durar muito
E, se durar, pode não ser bom.
Quando o peito entender,
Fortuito,
Que o suposto amado não pode preencher
O buraco, o vazio sem tom nem som,
Aí virão as cobranças,
As discussões,
A confusão.
E nem alcanças
Porque tais tensões
Se darão.
Ninguém pode tapar um buraco
Doutrem no peito:
Ataco-o
De que jeito?
Ninguém pode receber amor
Se emana carência.
Primeiro há que trabalhar de antanho a falência
Que provoca dor,
Até restabelecer a própria essência.
Apenas depois, sem disfarce,
O amor verdadeiro vai apresentar-se.
Então vivenciarás a beleza mais subida,
A maior emoção de tua vida.
A maior que hão vivenciado
Todas as vidas que te cruzam do passado.
Postura
Repara como a energia de tua atitude interior
Se movimenta
Dos eventos quando o teor
Que é o teu aproximar-se tenta.
Como cada conjuntura
Muda de figura.
Durante muito tempo tentaste corrigir-te,
Mudaste de postura,
A tentar harmonizar-te,
A quebrar padrões que andam a reduzir-te,
Dentro de ti, em toda a parte.
Padrões antigos como as eras
Que teimam em manifestar-se nesta vida
Em quaisquer esferas
Em que ela for desenvolvida.
Estes padrões de origem ancestral
Perseguem-te por todo o lado,
No teu comportamento habitual,
Nas atitudes que crês a teu mandado.
Padrões que te comandam em piloto automático,
Em causa sem te pores,
Sem saber porque operas em tal rumo prático,
Sem sentir prazer nem dores.
Durante muito tempo vens quebrando, padrão a padrão,
Esta tua vida,
Acolheste a transformação
Requerida.
O céu agora a ti brinda,
Vem comemorar,
Festejar
A vitória advinda
Por teres dado a volta,
Da luz aproximando a vida agora solta.
Falta um pouco ainda
Para lá chegar.
O segredo é que sempre um pouco
Há-de faltar
Para o céu tocar
Enquanto andarmos por aqui, por este mundo louco.
Importa, porém,
É que principiaste o caminho,
O que poderá levar-te, de mansinho,
Dos aléns para o Além.
Repara agora como a energia interior e exterior
Se movimenta em teu favor.
Acolhe no coração que é teu
As bênçãos do céu,
O que ele tem para te dar.
Não fujas: quando o evento chegar,
Não cuides que é um acaso,
Que não é para ti, um engano, se calhar,
No caso.
Entende que é Deus
Que te envia um agradecimento
Pelo tempo e cuidados teus
Ao te concentrares em ti, no teu mais fundo elemento.
Acolhe a bênção.
Vais entender quanto de bom fizeste à humanidade
Para que os homens vençam,
Ao aceitar, em teu cadinho
De autenticidade,
Elevar-te mais um bocadinho.
Aproveita
Aproveita o que o céu te envia,
Nem tudo é para trabalhares,
Nem tudo é sofrimento, há muito mais alegria.
Quando a lição estiver bem aprendida,
Se reparares,
Grandes bênçãos vêm a caminho.
Pode ser bem colorida
A que desta vez te chega ao ninho.
Pode ser bom
Em todos os pendores este dom.
Pode pôr teu imo a sorrir,
Se souberes aproveitar,
Se parares de te julgar,
Crendo que o não mereces, que não é para ti quando surdir.
“Quero apenas o que para mim for,
O que o Universo tiver para me dar ou me propor...”
- Dirás por vezes e ouve-te o céu,
Mesmo quando te não ouves no peito teu.
Ora, a prenda de hoje é para ti,
Foi o céu que ta enviou,
Foste tu que a atraíste para aqui
Com tua nova atitude interior que na vida apostou.
Trabalhaste,
Foste ao fundo de ti
E daí
Te transformaste.
Agora é o momento da bênção,
Hora de receber,
Que teus fantasmas íntimos se convençam.
Quando estiveres a aproveitar, a acolher
E a fruir,
Lembra-te de que cada uma destas vivências, no peito teu
Ao convergir,
Tem um dedinho do céu.
Zangado
Quando alguém estiver
Muito zangado contigo,
A prescrever
Que deverias ter feito deste ou daquele modo,
Para te manteres ao abrigo
De todo,
Entende que ele está em dor.
Dói-lhe o peito
E, como do peito não sabe gerir seja o que for,
Varre, de raiva, tudo a eito.
Cuida que a raiva gere bem,
Mas ela destrói toda a estrutura interior,
Que finda desprogramada e refém,
De mais raiva a precisar para alimentar-lhe o furor.
E o circuito fechado
Nunca mais é quebrado.
Fica a dor por explorar,
Chorar
E por limpar.
O luto que devia haver,
Adiado, finda por fazer.
Quando alguém estiver
Muito zangado contigo,
Pergunta-lhe, quenquer
Que ele seja, amigo ou inimigo:
“Estás triste porquê?”
E ajuda-o a aceder à dor,
À tristeza que então é
Seu mundo interior.
Conforme for
À dor acedendo,
A raiva irá perdendo,
Sentindo-se gradualmente melhor,
Pois esta apenas estava aí para o proteger
De à dor aceder
Com os efeitos nefastos
Que a raiva atrai em seus haustos.
À medida que à dor vai acedendo
Com premência,
Vai perdendo
Violência.
E, ficando cada vez de vida mais tranquila,
Deixa de atraí-la.
Quando alguém estiver danado contigo,
O motivo de tal descobre,
Ajuda-o a aceder à tristeza que ali encobre
E dá-lhe de teu abraço o abrigo.
Fica então, com fervor,
A confortá-lo em sua dor.
Jamais esquecereis este dia de autenticidade
E vossas almas ficarão amigas para a eternidade.
Sente-te
Sente-te a ti mesmo, sente.
Em teu imo há muito ainda para sair
Mas, presentemente,
Tua energia anda a emergir,
Em virtude da atitude em ti postada,
Muito mais depurada.
Se quiseres, já te podes sentir,
Tua energia original
Já se pode manifestar
Contigo a captar-lhe o sinal,
O apelo para cada novo patamar
E há muito pouco quem se encontre aí
Na conjuntura em que te encontro a ti.
A maior parte está tão cheio de lixo
Limitador e fatal
Que nunca logra vislumbrar o nicho
De sua energia original.
Sente-te, pois.
Quanto mais te sentires, mais activarás depois
Tua energia radical
E mais inteiro findas, em seguida,
Em teus actos, em tua lida.
É difícil concentrar em si
Quem passou milénios noutrem a se concentrar.
Mas já caminhaste muito até aqui,
A herança a superar
E a te encontrares
A ti.
É, definitivamente, para chegares
A casa,
O teu derradeiro golpe de asa.
E, atento e mudo,
O céu aqui há-de estar disponível para tudo
O que precisares.
Conformidade
Precisas de agir
Em conformidade com o que sentes,
Deixar a vida fluir,
Aceitar,
Da vida por mor das mudas permanentes,
Teu rumo mudar,
Voar ao sabor do vento,
Do íman da vida guiado pelo movimento.
O céu acata e abençoa,
Mas deves entender
Que, apesar de teres tal direito
E de lutar por ele ser uma meta boa,
A vida não se te vai desenvolver
Num trilho fácil e a teu jeito.
Em teu redor todos querem certezas,
São o que de início eras.
Certezas emocionais, seguranças.
A ti andam as pessoas mais presas
Do que a elas próprias, nas quimeras
Que com elas entranças.
Não querem, pois, que mudes,
Que as iludes.
As certezas tua muda lhes irá desestruturar,
Abanar-lhes as vidas.
Não gostam do caos, mas só o caos ao aceitar
É que se muda deveras, se rasgam novas avenidas.
Só aceitando que não tens de ser hoje
Quem foste ontem,
Que tens de te reinventar cada dia que foge,
Só aceitando isto e que to apontem
É que arroteias o chão
De tua própria evolução.
Os outros têm planos para ti
Que não agitem muito as vidas deles.
Ora, a tua mudança aqui
E o que nela impeles
Não é de nenhum deles, definitivamente.
Que fazer, que ter em mente?
Mudar,
Seguir a própria estrada
E a todos em redor desagradar
De assentada,
Ou deixar tudo como está,
De tédio a morrer,
Por igual consumido aqui ou acolá,
A emurchecer,
Com um âmago sem brilho e tosco
Em que moribundo me enrosco?
Há na vida muita ocasião
Em que a outrem dizer sim
É dizer não
A mim.
Ora, tu vens fazer evoluir
Tua frágil alma,
Não a doutrem, cuja palma,
É a ele que compete prosseguir.
Não queres, porém, que quenquer
Por mor de ti venha a sofrer.
Repara, eles também de aprender terão,
Senão através de ti, através da vida
E da vida a lição
Pode ser tua própria acção
Assumida.
Lá em cima entendem que está na hora
De alguém desapegar,
De lhe promover o desapego emocional agora,
Para poder de vez seu âmago olhar.
Então ele vai atrair
Uma perda emocional a seguir.
Ora, se estás a aprender
A deixar fluir
E deixar fluir é ouvir-se, dar prioridade ao próprio ser,
Tens o cenário completo:
Ele precisa de desapegar,
Tu, de te deixar
Ir,
Para encontrar teu próprio tecto.
Irás, pois, ser dele a perda.
Quão mais precisas de ir embora,
De não depender mais do que na vida se herda,
De deixar fluir a vida noutra direcção
Agora,
Mais ele vai sentir que te está a perder
E entrar em desespero.
Num só evento, dupla lição:
Tu a aprender
A te respeitar, sincero,
E ele a pôr os pés no chão.
Fruir e interiorizar para um,
Para outro desapegar e interiorizar.
A interiorização não anda ausente de nenhum,
Do caminho constante patamar.
Quando te parecer
Que tua carência de que a vida flua mais
Fará outrem sofrer,
Pensa que podem ser os projectos reais
Que o céu anda a promover.
Teu acto pode ter a ver
Doutrem com a evolução.
Revestirá então o fascínio
Que os entes do céu terão
Como desígnio.
Perpetuar
Não queiras perpetuar a vida,
Aproveita o momento,
Cada instante do que ela tem para te dar
E a que te convida
Como sendo dela um elemento
Singular.
Cada minuto é selado pelo céu
Para te dar tudo o que o íntimo teu
Requer
Para se desenvolver.
Cada instante que queiras que dure,
Cada movimento que pretendas repetir
Nega a novidade que se apure
E se te apresente a seguir.
Não queiras perpetuar nada,
Aproveita cada instante
E agradece a tua jornada,
Agradece estares vivo a caminhar pela estrada
Adiante.
Apenas esta medida.
O resto virá por si
Para tornar a tua vida
Aqui
Mais colorida.
Julgar
Julgar é considerar que os mais
Poderiam ser diferentes
Do que são enquanto tais.
Poderiam ser outros entes,
Mais conformes, coerentes
Com o que a ti te agradar
Ou que creias de aceitar.
É querer que caibam no cais
De tuas expectativas
Para não teres de sair do porto,
Do círculo de desculpas e de esquivas
Do teu conforto.
Julgar é crer que o céu se enganou
Quando aquele indivíduo desagradável
À tua frente colocou,
Tornando o dia irrespirável.
É negar que o podes ter atraído,
Negar a possibilidade
De ele ter vindo mostrar-te o sentido
Do que anda a emanar
Tua personalidade
Em particular.
Veio para compreenderes melhor
E tu a recusar
Que és tu quem tem de mudar
Para parar de atrair o que te vier propor.
Julgar é negar o movimento perfeito do céu,
O equilíbrio contrabalançado das atitudes,
O fiel do tempo-espaço a pesar o meu
Saco de pecados e virtudes.
Julgar é crer que teu ridículo ego
Sabe tudo,
Sabe o que devia estar a ocorrer, para teu sossego.
Por isso renega o que ocorre, surdo e mudo.
Julgar, então,
É o contramovimento da evolução.
Posto isto,
Porque continuas em tal registo?
Música
Ouve a música de que gostes,
Eleva tua flébil alma ao céu
E dança ao sideral ritmo a que te encostes.
Encontra-te com Deus lá em cima,
No mágico clima
Da luz sem véu
E deixa teu íntimo voar,
Que ele se alvoroce na imensidão estelar.
À conta de teu amor por esta melodia
Irá Deus encontrar-se com teu coração
Lá em cima, mais alto que a mais alta penedia,
E vai livrá-lo da tristeza, do frio, da melancolia
E da violência que te prega ao chão.
Quando ele voltar à terra
Virá pejado de céu,
A tristeza que o ferra
Desapareceu.
Verás cada dado
Como deveras ele é,
Sem o peso do filtro que trazes colado
E que tudo escuro te faz ver quanto anda ao pé.
Poderás a claridade
Sentir quanto te agrade.
Para sempre, em teu coração,
Fica de Deus plasmada a imagem,
Dele a energia do amor pelos que dão,
Como tu, corpo à coragem,
Que, sem medo de labéus,
Vêm buscar inspiração
Aos céus.
Expectativas
Quanto mais tentas não ter expectativas
Sobre o que quer que seja,
Quanto mais tentas portar-te bem
Ante as esquivas
Pegadas da vida que em redor viceja,
Para deixar tudo fluir como convém
Mais teu ego encontra formas paralelas
De tudo controlar, da medula às costelas.
Podes tentar livrar-te de ideias preconcebidas,
Aceitar que não dominas o futuro,
Que teu controlador interno, tiradas as medidas
A teu apuro,
Apenas fica quieto, parado,
Mas nunca inactivo perante teu fado.
Inactivo seria se ele apenas ficara
Aguardando que a vida se apresente.
Mas ele não fica quieto, apenas pára,
À espera de que algo aconteça de repente.
Isto deve ser mesmo forte, em virtude
De justificar tal quietude.
Ora, isto continua
A ser controlo que se insinua.
Prescindes do futuro
Com o ar benevolente de quem o tem ao alcance,
Quando ao alcance nunca to prefiguro.
É de mentira o teu lance:
Como pode alguém
Prescindir do que não tem?
Teu controlador é assim:
Tremenda barulheira requer
Para entregar o que nem dele é sequer,
No fim.
Prescindes de saber
O que vai acontecer
Mas manténs-te expectante
Perante
Aquilo que vier
E ainda pretendes controlar, de facto,
Daquele evento qualquer impacto.
Ora, com tal postura
Nada vai acontecer,
Mesmo nada, na figura
Que configura teu ser.
Escusas de esperar,
Escusas de controlar.
Com este rumo de caminhos teus
Nunca atinges o reino dos céus.
Fim
É o fim das grandes esperanças,
Das grandes ilusões.
Importa acabar as contradanças
E as funções
Do que não anda
Nem desenvolve,
Mas que te envolve
E comanda.
O que não germina naturalmente
É que não é para ti.
Se não é, deixa-o ir da tua frente,
Larga, solta-o por aí.
Há o que é teu e quer manifestar-se.
Em corrida, com fervor,
Vem a aproximar-se,
Quer-se expor,
Que o acolhas como teu na vida,
Sem equívocos nem hesitações, sem medida.
Mas lá de cima encontram-te cheio de certezas,
De resistências,
Cheio de medo da mudança que desprezas,
Do novo em que só lês desistências.
E não soltas o velho
Porque não vês nada de novo
A aproximar-se de teu quelho
Com o porvir em ovo.
E o novo não se aproxima
Porque o velho não soltas, de tanta estima.
Vês a ironia
De tua via?
Se continuas como estás,
Perpetuar o sentido
Mesquinho e pequenino irás
Da vida que tens vivido.
Se soltas a amarra do velho e conhecido,
Irás volitar pelo ar fora
E serás levado às feéricas vistas,
Sem demora,
Das direcções imprevistas,
Onde mora
O que para ti for,
Onde há-de estar o que é teu.
E o que é teu é um ror,
Muito mais do que tua mente de pigmeu
Pode imaginar ou supor,
Isso te garante o céu!
Princípio
Um novo princípio, uma nova primavera,
Uma nova perspectiva, sem amarras de questões antigas,
Uma nova realidade verdejante de quimera,
Primavera do dia primordial, de luz sem brigas.
Primavera interior, espiritual,
Em que tudo germina, brota e se desenvolve.
Tempo em que tudo se encaixa, afinal,
Tudo se resolve
De forma perene e desprogramada,
Descomprometida,
Desafogada,
Mas constante nesta ida.
Tempo de escassos meios
Para tantos fins anunciados.
Tempo de escolha sem receios
Da maldição doutros fados.
Tempo de reflexão,
Tempo de iniciar a jornada
Do coração,
Pela estrada
A que me incito
E que me leva ao Infinito.
É frágil a estrada
Mas iluminada.
Caminhar é inseguro
Mas feliz do que inauguro.
Tempo continua tempo e o que com ele feito for
Há-de sempre contar a meu favor.
Um princípio principia, não queiras saber o que é.
Sente apenas.
Não queiras controlar a vida, não faças tal fincapé.
Não queiras chegar ao fim,
Tuas lonjuras são pequenas.
Não te apresses, então, assim.
Sente
Somente.
Percorrer o caminho, jornada a jornada,
Em paz,
É a única certeza que terás
Nesta tão variegada,
Fervilhante estrada.
Voa
Voa para lá do branco, para lá das estrelas,
Para lá do Infinito.
Voa para lá do que o teu corpo pode suportar,
De epifanias belas
Ao grito
Singular.
Aceita desprender,
Aceita prescindir.
Voa para lá da brancura, cruza o portal de luz,
Com Deus que te seduz
Vai ter
Sem hesitar, a seguir.
Dá-lhe teu coração,
Tua capacidade de amar,
Tua força de acção,
Tua energia a actuar.
Volta para casa,
Que Ele vai transmudar-te num anjo,
Num ser de luz, de asa
Discreta no segredo do arranjo,
Vai transmudar-te, singualr,
Num céu incarnado, num avatar.
Quando à terra regressares,
Nada mais vai ser igual.
Se nos aprestos teus
Reparares,
Afinal,
Encheste a terra de Céus:
- Encheste-a de Deus.
Largar
Tens de aprender a largar, a largar tudo,
Senão ficarás doente.
Nem uma noite de sono, por miúdo,
Dormirás decente.
Andarás às voltas, berlinde preso no frasco,
Culpando-te de seres um fiasco.
Que é que há de errado
Comigo?
Como posso ter estragado
Todas as relações onde encontrei abrigo?
Porque é que sou um falhado?...
E assim continuamente.
Tens de aprender a largar, a largar tudo,
Senão ficarás doente
Brevemente.
E, pior, muito amiúdo.
Telhado
Trepaste ao telhado,
Não há nada entre ti e o Infinito.
Deixa-te ir, por teu lado,
Solto grito.
Vai caindo o dia,
Hora em que o que era belo
A outro belo se alia.
Deixa-te ir pelo setestrelo.
Teu desejo de resolver os problemas e as apostas
Foi uma prece aos céus.
Estares aqui são as respostas
De Deus
Deixa-te ir,
Desprendido e com fervor.
Vê as estrelas a surgir
No exterior e no interior.
Pede a graça divina
E deixa-te ir.
A ti próprio te perdoa, é tua sina,
Para tua pegada poder fluir.
Que tua intenção
Seja libertares-te do inútil sofrimento.
Depois, então,
Deixa-te ir ao sabor do vento.
Repara no calor do dia
A transmudar-se, a seguir,
Na noite fria,
E deixa-te ir.
Quando num relacionamento
Acaba o sol-pôr
Dum estrangulamento,
Só fica o amor.
É seguro.
Deixa-te ir com este apuro.
Quando o passado finalmente
Conseguir
Ter passado por ti definitivamente,
Deixa-te ir.
Depois desce e principia, em seguida,
A trilhar a via,
Com interminável alegria,
Do resto da tua vida.
Índice
Ao Serão dos Contos Ancestrais
1
Ao Serão de Domingo
Contar
Histórias
Habita-nos
Repara
Pergunta
Fome
Sede
Caracol
Paraíso
Astrofísico
Riquíssimo
Fazendeiro
Juntos
Passarinheiro
Monge
Falcão
Viajaste
Piedosos
Mercado
Ofício
Machado
Malhas
Viajante
Aldeia
Tundra
Sonha
Cão
Asceta
Selvajaria
Música
Saudá-lo
Krishna
Quarto
Ilusão
Teatro
Lenhador
Cava
Acordou
Deitado
Sem-abrigo
Cura
Virgem
Dragão
Rua
Norte
Aborígenes
Bali
Narciso
2
Ao Serão de segunda-feira
Mendigo
Odor
S. Clemente
Molho
Hassidismo
Apanha
Génio
Encontram-se
Distraído
Termos
Porta
Sábio
Psiquiatra
Al-Mokri
Ladrão
Conquistador
Igual
Batem
Perderam
Diabetes
Loucamente
Duquesa
Pavlova
Bicicletas
Murmuram
Racista
Eczema
Comunista
Sufis
Moradia
Lágrimas
Feira
Mandarim
Dante
Tédio
Nichapur
José
Bar
Autocarro
Ar
Orgulho
Negros
Cabeça
Nacionalidade
Istambul
Cão
Doenças
Sabedoria
Escultor
Rumi
Asceta
Água
3
Ao Serão de Terça-feira
Tacanhos
Cego
Recém-casados
Mercador
Califa
Râbia
Visita
Corânica
Zen
Morte
Agartha
Horta
Conquistador
Estudante
Ouvido
Alexandre
Mestre
Brâmane
Xun-Zi
Buda
Rumi
Passos
Filho
Noviço
Prender-se
Pesca
Dibbuk
Confúcio
Guru
Rumi
Indiana
Japonesa
Neve
Bovnam
Gigantesca
Hitchcock
Saco
Bolos
Strudel
Buraco
Espelho
Brasil
Capelista
Passeio
Analfabeto
Disparatadas
Banana
Rússia
Tempo
Fumar
Filho
Quântico
Suíça
4
Ao Serão de Quarta-feira
Naftali
Água
Bassorá
Chofar
Faminto
Chammai
Buraco
Fumar
Soviético
Cruel
Selos
Húngaro
Inadequado
Ditador
Imperador
Chinês
Ásia
Iraque
Akbar
Ego
Polónia
Checoslováquia
China
Rússia
Estaline
França
Samarcanda
Tchau-Tchéu
Testemunha
Condenado
Shiraz
Afeganistão
Salomão
Índia
Divórcio
Rublos
Discussão
Destrinçar
Persa
Marselheses
Corrida
Alfaiates
Diminuta
Dinamarquês
Rómulo
Anarquismo
Príncipe
Muçulmana
Turco
Empurrados
5
Ao Serão de Quinta-feira
Lendária
Japão
Deserto
Rabino
Criar
Faraó
Ramakrishna
Estacionar
Existência
Itália
New York
Sábio
Cartas
Samaritana
Padre
Criou
Golfe
Prova
Avisa-me
Apagado
Amigas
Grave
Gata
Mekki
Bater
Jesus
Chaqiq
Pobre
Doente
Preguiça
Ásia
Dand Tai
Morrer
Egipto
Índia
El Centauro
França
Emissário
Condolências
Cavaleiro
Quirguízia
Africana
Irão
Bagdade
Louco
Resposta
Varredor
Febre
Mula
Lago
6
Ao Serão de Sexta-feira
Hospício
Muçulmano
Sevilha
Córdoba
Campónio
Estrelas-do-mar
Espanha
Nasredim
Avarento
Marselhesa
Glacial
Índia
Haim
Rabino
Colectas
Fato
Ética
Fome
Damasco
Cinema
Polónia
Bagdade
Zen
Hassan
Indiano
Senhorio
Crêem
Glicínia
Dongxan
Sandália
Um
Istambul
Nasredim
Índia
Trolha
Zen
Sesta
Filhos
Enganar
Frango
Gato
Erudito
Bascos
Burros
Turco
Parteira
António
Alemanha
Indiana
Judeu
Africana
7
Ao Serão de Sábado
Acordo
Nápoles
Além
Conversa
Áustria
Mobilizado
Acampamento
Cairo
Judias
Anos
Mães
Moisés
Casada
Cincinnati
Cegonha
Herança
Israel
Cão
Mahesh Das
País de Gales
Tuaregues
Guatemala
Roménia
Parvati
África
Sudão
Conto
Majun
Idade Média
Velho
Mesopotâmia
Salvatore
Iraniano
Émulo
Religiões
Rei
Universo
Depressão
Marselhesa
Europa
Bombardeada
Deserto
Hakuã
Hindu
Suma
Sabedor
Índia
Bombaim
À Lareira do Amor Divinatório
1
Primeira Lareira
Primata
Rumos
Amizade
Temporais
Melhor
Lápides
Recuperar
Passado
Problema
Olhar
Pior
Realidade
Eventos
Más
Sinais
Acordo
Felicidade
Convicção
Medo
Comando
Culpa
Ascender
Emoção
Contrários
Abre-te
Dinheiro
Evento
Abrir
Abre
Corpo
Brota
Essência
Caminho
Gostar
Vivenciar
Responsabilidade
Vagueando
Parece
Força
Aceite
Caminhos
Insatisfeito
História
Contador
Duas
Ideais
Revolução
Preceitos
Migrar
Dolorido
Morte
2
Segunda Lareira
Árvore
Liberdade
Problema
Velho
Trilho
Rei
Perfeita
Partir
Conjuntura
Reter
Respeitável
Amados
Fraco
Forte
Controlar
Esperança
Positivo
Míope
Prisão
Canto
Positivo
Dizem
Realidade
Raiva
Adversidade
Lado
Escuro
Prenda
Tudo
Força
Diverso
Controlo
Auto-suficiente
Medo
Gota
Aí
Emociona
Melhor
Hora
Amor
Falam
Sei
Domínio
Liberdade
Pressão
Negativo
Distante
Turistas
Sofrimento
Tentativas
Pecado
Portas
Dele
Estado
Aparece
Causa
Diferenças
Escuro
Transformar
Muitos
Mostrar
Enchem
Canal
Papa
Incondicional
Peregrinos
Informação
Mal
Incentivo
Pior
Lutam
Fora
Solidão
Plástico
Diferença
Desespiritualizam
Incomodam
Indícios
Saberão
Desatar
3
Terceira Lareira
Vindoira
Catedral
Erro
Insistem
Mudar
Fé
Humildade
Dispersos
Olhar
Sucesso
Açougueiro
Vencedor
Distinguirão
Silêncio
Hoje
Milagres
Trinta e cinco
Escuro
Difícil
Chega
Experiencia
Académico
Oiro
Ponte
Conforto
Diferentes
Longe
Retiro
Fortalecida
Indispensáveis
Pegada
Instinto
Multidão
Cimentar
Dois
Luz
Pele
Pergunta
Têm
Independente
Deveras
Preciso
4
Quarta Lareira
Amparam
Contamos
Fiel
Catástrofe
Nadas
Ar
Simpáticas
Insignificante
Momento
Percebe
Retribuir
Pequenos
Juntos
Queixar
Conversas
Pilha
Amigas
Prazer
Noitada
Deixarem
Escolhido
Descosido
Chocolate
Insulta-me
Simpatizar
Nada
Singular
Contente
Parvo
Fraude
Respeito
Continuam
Difíceis
Conhecem
Fiel
Perfeito
Tu
Compartilhada
Continuaria
Sentir
Optimismo
Ali
Quero
Entrelaçado
Acarinham
Compreendem
Compreensão
Dão
Descobertas
Encontrar
Obrigado
Glória
Presente
Mais
Servem
Genuína
Comunicação
Caminhos
5
Quinta Lareira
Espaçosa
Significa
Levamos
Longe
Quilómetros
Encontrar
Deploráveis
Vinho
Data
Paisagens
Afastados
Velhos
Chega
Alabastro
Maior
Comprar
Súbito
Elogios
Lembrar-me
Encontrar
Vidro
Filamentos
Mundo
Luz
Jade
Abrigos
Dispensa
Comerciais
Trama
Prazer-mor
Prisões
Feliz
Enterra
Diálogo
Atirar
Envolver
Ama
Bandeira
Alteridade
Conhecimento
Missão
Divino
Morreram
Setenta
Concebas
Solitário
Objectivo
Atenção
6
Sexta Lareira
Ler
Véus
Canta
Vazio
Modificar
Fosso
Pedis
Fundo
Formular
Correria
Cultivo
Infinitamente
Carrego
Frágil
Longe
Renuncia
Vencedor
Termos
Natal
Presentes
Comemora-se
Preocupa
Pedir
Só
Miúdo
Petiza
Vizinhas
Morte
Eterna
Poupar
Repouso
Preciso
Previamente
Mãos
Interromper
Funde
Beatitude
Mensagem
Motor
Ao Morno Tição das Quadras ao Desafio
1
Primeiro Tição
Barraca
Perdes
Portal
Estradas
Invisível
Olho
Respostas
Aceita
Planos
Motor
Difícil
Vivencia
Âmago
Integrado
Brincar
Saúde
Antes
Certo
Vens
Compromisso
Plenitude
Forçar
Aceite
Vínculos
Reino
Minhoca
Fruto
Medos
Aceita
Espelho
Exame
Chineses
Ego
Único
Peregrinar
Nunca
Casamento
Perdoar
Quer
Comer
Flor
Sucesso
Elástico
Solidão
Dentro
Amar
Humildade
Clama
2
Segundo Tição
Opressão
Envergonhar
Nada
Única
Contas
Mistérios
Fim
Guerra
Pedir
Sucesso
Vassoira
Percas
Carreira
Esmola
Matéria
Fotografia
Sair
Violência
Mal
Somos
Herança
Relatividade
Cume
Louvado
Amo
Vencedor
Graça
Ano
Errada
Morte
Pregos do Barco
A curiosidade
Ovo
Morango
Os dentes
O fósforo
Velas do moinho
Pintas do i
Sino
Borla
Carrega
Cama
Vento
Galo
Atropelados
Gato
Elefante
Frigorífico
Quatro
Cravos
Crivo
3
Terceiro Tição
Papa
Viúvo
Pombos
Pijama
Rãs
Pescadores
Olhos
Cadeias
Morte
Verdade
Garrafa
Queimar
Cimento
Magma
Doce
Jornada
Horas
Desejo
Vão
Precioso
Imprevista
Rir
Alma
Amigos
Sós
Chega
Revela
Auxílio
Interessa
Difícil
Único
Roupão
Teste
Palavra
Agasalhos
Coladas
Fruir
Endireitam
Clarim
Dizer-te
Sandice
Inócuo
Precioso
Maçada
Gesso
Ler
Vestida
Ingénuo
4
Quarto Tição
Tensão
Paga
Máscara
Sincero
Futuro
Qualidade
Privilégio
Fechar
Cemitério
Além
Gosta
Fecha
Lado
Busca
Lealdade
Finais
Apanha
Melhor
Quando
Aguentar
Compreender
Compreensão
Privilégio
Melodia
Contigo
Silêncio
Lonjura
Tecido
Canta
Madrugada
Mão
Ausência
Consolo
Poderoso
Coluna
Entretecendo
Oferta
Consiste
Mereci
Melhor
Goza
Medida
Tesoiro
Reino
Sábio
Aprender
Abrigos
Apontarmos
Outrem
Ego
Um
6
Sexto Tição
Subsiste
Enleio
Iluminação
Questão
Mundo
Precioso
Sorriso
Nada
Presente
Erro
Tosse
Pavão
Impossível
Milagre
Aprender
Lado
Casa
Cristal
Depende
Armadilha
Destino
Desejo
Missão
Equilíbrio
Dentes
Fronteira
Bênçãos
Cogumelo
Ao Luar das Íntimas Estrelas
1
Primeira Estrela
Movimentos
Inactivo
Instruções
Missão
Modo
Mudam
Insatisfeito
Março
Rejeição
Itinerário
Simpatia
Sentido
Luz
Importante
Querer
Perdoar
Chorar
Interioridade
Incondicional
Abundante
Errar
Liberdade
Medo
Perda
Conectado
Rígida
Carência
Espada
Presente
Apego
Galáxia
Assente
Negatividade
Via
Problemas
Equilíbrio
Consciência
Tristeza
Pode
Moções
Significado
Atributo
Acertar
Reconverte
Luz
Areia
Responsabilidade
Relações
Amor
Paz
Intuição
Esforço
2
Segunda Estrela
Incomoda
Passarinhos
Submundo
Implicando
Margarida-dos-prados
Centrada
Sendas
Efeito
Ego
Escolha
Rituais
Âmago
Responsável
Mentem
Ascender
Perdas
Compreender
Aceita
Perfeição
Aguentas
Atrais
Chora
Entra
Gosta
Triste
Tango
Energia
Jesus
Queres
Ligações
Voz
Protegido
Estrutura
Dádiva
Depender
Medo
Pêsames
Risco
Sensibilidade
Integrado
És
Verso
Consegues
Aparte
Morte
Pára
Missão
Atitude
Tornaste
Sensível
Receber.
3
Terceira Estrela
Dá-lhes
Embora
Comigo
Imagina
Ruptura
Mártir
Culpa
Acordo
Precisas
Intuição
Nada
Ajudar
Hoje
Energia
Presentes
Mentir
Prioridades
Tarefa
Sonho
Fadiga
Espírito
Tenta
Dispões
Igual
Propício
Desígnio
Tu
Espiritual
Ajudar
Perda
Fala
Comunicou
Responsabilidade
Iguais
Desapegar
Porta
Triste
Compromisso
Sensível
Queria
Qualidade
Verdadeiro
Está
Alegria
Lonjura
Comando
Problemas
Emanaste
São
Soldado
Abre
Chama
Melhor
Comprometimento
4
Quarta Estrela
Felicidade
Calma
Julgamento
Moldares
Respira
Sentir
Desculpa
Aperto
Expõe-te
Fado
Meta
Herói
Funda
Raiva
Perguntar
Reverencia
Manifestado
Espera
Passado
Família
Buscar
Asas
Vida
Fé
Atrais
Trabalhas
Acima
Conhecemos
Agora
Desconstruir
Mudança
Reinventa-te
Borboleta
Medos
Aurora
Martirizado
Rodeia
Resguardar
Aventura
Fase
Batalha
Fizeste
Templo
Atraiu
Aqui
Lições
Triste
Montanha
Sobe
Parar
Fértil
5
Quinta Estrela
Aquieta
Sinais
Esforço
Só
Morto
Obrigado
Controla
Sinos
Chama-te
Receber
Novas
Incentivos
Música
Meditação
Padrão
Costas
Desconfortos
Escolha
Comunicação
Maneira
Concentra-te
Ama
Chora
Renascer
Imo
Salvar
Qualidade
Ama-te
Expectativas
Sonho
Agradece-te
Equívoco
Buraco
Postura
Aproveita
Zangado
Sente-te
Conformidade
Perpetuar
Julgar
Música
Expectativas
Fim
Princípio
Voa
Largar
Telhado