EDUCAR PARA O DEVIR




A escola, vítima do cancro do insucesso



O modelo e a doença


A escola é um modelo de educação institucional multimilenar, gerado e gradualmente generalizado à escala planetária com um objectivo dominante: garantir a transmissão às novas gerações dos elementos elaborados criticamente da cultura tradicional que correm o risco de perder-se se ficarem confiados a instâncias educativas espontâneas, por estas operarem a nível do saber empírico (progenitores, família, grupos naturais do meio convivial, clubes e até organizações colectivas como as associações culturais e recreativas, cineclubes, filarmónicas...).

Disto deriva o actual impasse. Ou a escola logra atingir tal escopo ou então não se justifica. Ora, em todo o mundo e entre nós, ela acumula insucesso em escala tal que teremos de afirmar que, de facto e na prática, opera, não para conseguir transmitir cultura crítica, mas para reprovar em massa quantos a procuram. Nestes termos, de duas, uma. Ou ratificamos isto como sendo realmente o que é pretendido pelo poder dominante e respectivas classes e franjas colectivas de apoio, com os correspondentes valores, vontade de reprodução interna e de manter o exclusivo da hegemonia e exploração; ou então teremos de concluir que a escola falha estrondosamente o fito basilar para que existe. E, daí, ou a reconvertemos ou teremos de aboli-la.


Ora, eliminar a escolaridade sem alternativa melhor era regredir, uma vez que então nem o que nela, apesar de tudo, vai singrando e vergando os obstáculos, poderia ocorrer. Por outro lado, a crença generalizada na indispensabilidade dela torna-a inamovível em definitivo, por muito que os resultados escolares permitam atacar o dogma implantado. Resta, portanto, o caminho de a ir reformando, de modo a caminharmos gradualmente para um modelo alternativo de educação institucional. Justamente esta é a via multissecular de acerto da escola com cada época e região, até hoje indiscutivelmente bem sucedida, como a provecta idade que acumula nos comprova. O bizarro da conjuntura, neste século que terá de inaugurar o horizonte vindoiro, é que por todo o mundo falham espectacularmente quantos ajustamentos, acertos, remendos e reconversões vêm de há décadas sendo enxertados no sistema escolar, tentando que ele logre inflectir a curva do insucesso discente, a fim de dar conta positiva do que dele é esperado, a bem da democratização da componente crítica da cultura dele dependente.


A via de saída é porventuran aquela que logre implementar um modelo alternativo por reconversão tão funda e coerente do actual que, pacificamente, nos leve a transitar, sem darmos conta, para outra concepção pedagógica, outra estrutura institucional, outro desenvolvimento curricular e outra relação educativa – que já nada tenham a ver com quantas versões a tradição escolar nos deixou ao dispor, antes nos conduza aos antípodas de tudo isto. Curiosamente, os professores de vocação, nos momentos mais generosos e inspirados, tudo indica que operam nesta conformidade e não numa lógica qualquer do modelo escolar institucional. Tais educadores encontraram decerto o caminho, já o praticam, muito embora empiricamente, de modo inorgânico, não teorizado e esporádico. Quase nenhum se deu conta de quanto desbrava, de facto, novas sendas, na humildade e ignorância dum quantas vezes vilipendiado quotidiano.


Este roteiro inédito que descortinámos gradualmente um pouco por todo o lado é o que pretendemos aqui delinear e clarificar nos respectivos pressupostos e fundamentos. Convém então identificar desde já, nas múltiplas raízes, o cancro do insucesso, tão mortal se revela. Não será extirpado, porventura, sem arrastar com ele o modelo educativo onde definitivamente mora enraizado.




Perfil do sucesso escolar


Até à Revolução Francesa não se colocou o ideal da democratização da educação e do ensino escolares. Muito fidalgo da alta nobreza, muito rei foram até aí analfabetos, sem perda de prestígio nem poder. A actividade mercantil à escala planetária desde os Descobrimentos (séc. XVI) e depois a Revolução Industrial em que desembocou (séc. XVIII) é que foram incompatíveis com aquilo, primeiro com o complexo sistema de contratos, seguros, banca e contabilidades que requeriam, depois com a pesquisa científica e inventividaden tecnológica, bem como com o sistema de investimentos maciços, projecção de mercados, concorrência mútua e conflitos sociais e ideológicos a gerir e ultrapassar, em que a industrialização acabou por desenvolver-se. Antes disto, portanto, o sucesso ou o fracasso escolar não tinham peso de monta senão em termos pessoais ou familiares, quando muito. Não constituíam um problema colectivo nem menos ainda uma questão de equidade política ou social. Doravante é diferente. Aceder à escolaridade é partilhar da cultura do escol da comunidade e do mundo, é comparticipar do poder que lhe está nas mãos, é deter um cabedal de intervenção tanto ou mais valioso que o do dinheiro ou das propriedades, uma vez que estes se acumulam ou dissipam na dependência daquele. Por outro lado, o saber escolarmente ratificado é a porta da emancipação e promoção pessoal, é o fim prometido à escravidão e à exploração do trabalho, é a permeabilidade interclassista. Por aqui abre-se uma fresta à prevalência da qualidade individual sobre os privilégios de sangue e as heranças de família.


Evidentemente que, perante isto, reprovar é afundar todos os sonhos. Quando ocorre em massa, é um problema político e de equidade social. Levanta a suspeita duma torpe, criminosa institucionalização, por tal expediente, da perpetuação da classe dominante que vicia o jogo escolar em proveito próprio, organizando o sistema educativo em termos tais que nunca poderá minar-lhe o monopólio do poder e dos privilégios. A pretensa democratização da cultura é então uma mascarada para iludir a colectividade, através dumas parcas excepções que não põem em risco a hegemonia dos poderosos e simulam a justiça pelo que fazem aos que (pretendem eles) atingiram qualidade bastante para ascenderem ao nível dos aristocratas. Os demais seriam a ralé que não é aprovada porque não quer ou não pode, por natureza, atingir a excelência de quem é superior. Este é o farisaísmo generalizado ainda na cultura dominante que assim permanece em perfeita paz de consciência, autojustificada no meio da hecatombe escolar, da iniquidade geral.


O panorama do aproveitamento à escala do mundo é que o abandono a meio, por parte daqueles que teriam gostado de levar os estudos até ao termo, ronda os 70%, ficando todos eles algures pelo caminho, geralmente logo ao nível da escolaridade básica. O insucesso acumulado leva a isto, ano após ano, decerto há mais dum século. Entre nós, em fins da década de 80, quem termina o 9.º ano sem alguma vez ter reprovado, partilha dum grupo de excepção de menos de 10% do total de colegas (e já não contamos os que ficaram pelo 4.º ou 6.º ano, bem como os que abandonaram ao correr do 3.º Ciclo, sem lhe atingirem aquele termo). Em conferências período a período entre as escolas secundárias de Olivais e Chelas (Lisboa), a percentagem de alunos do 7.º ao 9.ºanos com mais de duas negativas, em situação de reprovação, é, há vários anos, sistematicamente superior a 50% - ocorre na avaliação do Natal, na da Páscoa e depois diminui bruscamente no fim do ano em que a reprovaçãpo baixa para perto dos 30%, por manifesta benevolência dos corpos docentes. Curiosamente, mesmo assim, o insucesso acumulado no triénio do ciclo aproxima-se dos 100%. Isto atingiria todos os alunos, não fora o facto comprovado de as repetências tenderem a incidir sistematicamente sobre os mesmos indivíduos, tornando-os reprovados crónicos. É o que os leva a desistir a prazo.


Para além disto importa reter que aprovar não garante sempre nem o domínio da cultura crítica a que o diploma se reporta, nem abre automaticamente as portas de entrada na classe dominante, nem implica um desenvolvimento equilibrado da personalidade, nem responde automaticamente à vocação de cada um. Tudo junto, o rendimento escolar, mesmo bem dominado, tem muita probabilidade mas é de constituir um logro para quem nele apostou para se promover e libertar ou para o propiciar aos filhos. De facto, muito mais que o diploma, muito mais que a competência efectiva manda o nome e a influência de família, comandam as relações e os conhecimentos, os jogos de pressões e de poder de quem lhes detém as alavancas e os segredos em casa e nos laços de sangue e de amizade. Ora, este segundo leque de limitações à eficácia escolar não é menos terrível do que o primeiro. E é ainda mais injustificável eticamente.




Obstáculos ao rendimento escolar


A tomada de consciência do que provoca o estado catastrófico do rendimento escolar é exemplar relativamente ao sucessivo cair das máscaras da ideologia e das classes dominantes. Com efeito, o que primeiro se entendeu foi que o aluno era o responsável pelo destino escolar que a ele próprio talharia. Reprovar era o fruto ou da falta natural de inteligência ou da preguiça e indisciplina no estudo. Esta leitura limitava um fenómeno maciço (então ignorado nesta dimensão) a um mero acúmulo de casos individuais. No fundo, a destituição natural de faculdades, ao mesmo tempo que desculpabilizava o aluno (nada se pode operar contra a natureza e os determinismos inapeláveis dela), servia para justificar o privilégio da classe dominante e o do escol intelectual que segrega e alimenta: afinal, estes ocupavam lugar cimeiro na hierarquia social de pleno direito, uma vez que estariam dotados de faculdades intelectuais de nível superior. Era justo que os melhores desempenhassem os cargos e funções mais responsáveis, em benefício de todos, e fossem justamente gratificados de modo correspondente. Este modo de pensar leva em linha directa ao racismo e à marginalização das minorias étnicas e culturais. Por outro lado, cristaliza a hierarquia social na modalidade que revestir em qualquer momento, tendendo a eternizá-la. Quando se lhe objecta que é difícil de compreender como converge tanto o insucesso permanentemente nos mesmos estratos sociais, responde que é hereditária a falta de inteligência, bem como a incapacidade de empenhar-se e persistir disciplinado no estudo. Apenas quando a pesquisa denuncia a falta de qualquer fundamento objectivo de tal interpretação e ao invés lhe comprova experimentalmente a insanidade, encontrando uns atrás dos outros os factores sociais, da miséria, da marginalização, das subculturas, das habituações comportamentais, linguísticas, práticas e relacionais, tudo confabulando em cavar fossos intransponíveis até à cultura académica, apenas então aparece um novo bode expiatório: o professor.


Este foi acoimado de incompetente científica e pedagogicamente, por um lado, bem como de desinteressado, com pouco brio profissional, por outro. Daí o esforço que por todo o séc. XIX se fez para preparar minimamente professores dotados daqueles dois vectores de formação. Curiosamente, isto foi acompanhado de enormes cuidados do poder para os não preparar demais, a pretexto de que o que conviria às multidões eram saberes básicos rudimentares, como ler, escrever e contar, devendo reservar-se o mais para um escol. Evidentemente que este deveria privilegiadamente preencher-se com a progénie da classe dominante acrescida dum ou outro respigo mais dotado ou apadrinhado dos estratos subalternos da pirâmide social. Os discursos do poder na centúria de oitocentos e nas primeiras décadas de novecentos afirmam tudo isto sem rebuço nem rebate de consciência. A justiça social da igualdade e fraternidade era apenas para uso interno de cada estrato da colectividade. Entre nós, o Estado Novo prolongou isto o mais que pôde, degradando mesmo o ensino primário para que as pessoas não perdessem a felicidade da ignorância nem se degradassem as virtudes ancestrais com o acesso à cultura. Quando se torna gritante à consciência dos vilipendiados o orgulho e vaidade dos privilegiados, bem como a duplicidade duma democratização da cultura que se proclama mas cuja implementação se impede ou proíbe mesmo, aí os próprios docentes se rebelam contra os respectivos mentores deles que pretendem pagar-lhes para amestrarem o povo. Desmascarada a duplicidade desta ideologia de vistas curtas e de feroz egoísmo familiar, os pedagogistas viraram-se finalmente para o modelo: a escola.


Seria nesta que radicariam as fontes de insucesso, uma vez que era a instituição posta de pé para dar cumprimento ao farisaísmo da classe dominante. Ela é que envolveria todos os utentes em condicionalismos tais que o produto final seria o que melhor conviria ao sistema, quisessem-no ou não mestres e alunos. Num primeiro momento, o mais evidente foi a falta de condições dos estabelecimentos ou a falta deles (ensino doméstico, em escadas, caves, ao ar livre...), a falta de recursos, equipamentos, meios didácticos... Ainda não se punha em causa o sistema escolar como gerador efectivo do cancro. Num segundo momento, porém, é ele que acabará por aflorar, culminando na década de 60 do século passado com as diatribes contra a escola, oriundas de muitos horizontes, mas em particular da América do Norte. Para esta corrente extremada é o próprio modelo que é perverso, fruto duma manipulação da cultura dominante, tendo por fito simular a democratização dela para mantê-la mais intocável e inatingível aos que lhe são alheios.




Alargamento das matrizes



Inquirindo com rigor e pormenor cada uma das matrizes do fracasso escolar vieram à tona uma infinidade de factores escondidos por trás delas.


Relativamente ao aluno, descobriu-se que ele é muito mais fruto do meio ambiente que o enquadra do que da iniciativa e vontade própria, demasiado frágeis para contornarem aquele, até porque dele derivam na maior parte do que forem. Em primeiro lugar, cada educando é produto da família de origem nos padrões de relacionamento que adopta, nos valores por que é regido, nos ideais a que é sensível, nos horizontes de vida para que se orienta e que mergulham nas vivências infantis compartilhadas no seio dos íntimos. Por outro lado, a cultura de partida com que cruza os umbrais da escola é a que bebeu e interiorizou durante a infância no contexto familiar; o mesmo diremos da língua que fala e dos padrões ou níveis de expressão que nela utiliza. O tipo de operações intelectuais de que é capaz deriva, em linha directa, tanto das que no ambiente convivial de cotio são dominantes como das actividades, experiências práticas e emoções que a vida lhe permitiu e a que o solicitou. O próprio peso relativo de cada uma destas vertentes depende mais do vigor com que ocorram no meio do que do eco que despertam no íntimo do aluno, uma vez que este é predominantemente alimentado, reforçado ou desactivado por aquele. Não termina, porém, aqui o condicionamento externo conformador da personalidade do educando. Efectivamente, o próprio bairro em que habita confabula para o configurar segundo os padrões aí dominantes, quer por influir directamente nele através das companhias que lhe põe ao dispor, dos espaços, meios de lazer e diversão que lhe oferece ou recusa, quer por indirectamente interferir ao moldar a família e vizinhos conforme os gostos, hábitos e tradições comuns que todos entre si vão compartilhando, na espontaneidade do quotidiano. Por outro lado, o estatuto social do agregado de origem leva novo feixe de condicionamentos e estímulos a intervirem na formação da personalidade do aluno. É ele que permite ou não relacionamentos para além da vizinhança, com pares da profissão dos progenitores, por exemplo, ou que em virtude do trabalho entabulam contactos, permutas e serviços de vária índole. A própria imagem de si interiorizada depende do espelho que o meio reflicta do estatuto que à família atribui, quer guindando-a ao pedestal, quer humilhando-a na valeta. O mesmo deriva da expectativa da sociedade mais vasta projectada sobre eles e dos papéis que deles aguarda, bem como da importância ou insignificância com que os conotar. O aluno sente-se enaltecido ou humilhado por reflexo inconsciente e interioriza tudo isto desde que nasce por osmose espontânea, reproduzindo-o em mimetismos permanentes até se lhe tornarem conaturais, até lhe estruturarem duradoiramente a personalidade. Por último, a configuração da cultura do meio de origem que resulta da gestão e quilibração comunitária de tudo isto, numa dinâmica de reajustamentos permanentemente instáveis, mas com perfis definidos e minimamente duradoiros, tal configuração é a que o educando torna sua, é a que o constitui em definitivo como pessoa que tem uma identidade própria, que subsiste e se orienta num feixe de relações humanas com equilíbrio e eficácia, com reconhecimento e acolhimento doutrem como sendo ele um dos seus e não um estranho,como pertinente ao grupo em parte inteira e por direito próprio.


Perante isto, como cominar o aluno, enquanto indivíduo, de responsável por reprovar na escola? Ele é muito mais ou quase apenas aquela multidão de influências-pessoas-circunstâncias e não ele próprio. Como responsabilizá-lo pelo que dele não depende e o torna obrigatoriamente no que é, sem alternativa que lhe seja imputável?


O mesmo, porém, ocorre com o professor. De facto, ele é o fruto, enquanto personalidade, dos mesmos tipos de factores e conjunturas que conformam o aluno, com relevo particular para a trajectória escolar que percorreu e se lhe entrosou no ser com todo o conjunto de influências da convivialidade estudantil, dos eventos, percalços e vitórias da carreira académica enquanto estudante e depois como profissional, das frustrações dos sonhos e da criatividade, primeiro no banco da aula e depois na função de mestre predominantemente falhado quando gostaria por norma de ser bem sucedido na tarefa educativa. Depois há a preparação curricular que teve, em regra desactualizada relativamente ao momento da docência e quase em tudo alheia a esta, obrigando-o a tapar buracos com remendos quando já lhe não resta tempo nem energias nem disponibilidade afectiva para tal, uma vez que doravante teria era de dar conta do trabalho lectivo e de quantas tarefas dele derivam e não de retomar a componente informativa da especialidade que se pressupõe previamente adquirida quando de facto não o é. Por outro lado, a vertente pedagógica dos cursos em que se formou é parca e habitualmente de má qualidade, com forte predomínio teórico e ainda por cima de carácter enciclopédico, desvitalizado e sem qualquer critério de pertinência relativamente à prática da relação educativa. Para além do mais, ela nem sequer existe num vasto leque de currículos do ensino superior e onde se logrou implantar é desvalorizada, tida por despicienda, pouco nobre e, no fundo, acientífica – o que, na mantalidade catedrática, acefalamente convencida, é sinónimo de suspeito, sem seriedade e mesmo indigno dum mero olhar de atenção. Perante este panorama marginalizador, o professor é jogado às feras, na grande maioria dos casos, sem qualquer preparação prévia consistente e segura. Uma vez no terreno, porém, não pensemos que a situação muda. Ele fica condenado à solidão e ao improviso por sistema, uma vez que a intercomunicabilidade e a partilha de experiências não são vulgares e a organização curricular, seja pela monodocência (que abandona a maioria a si própria, em completa solidão), seja pela divisão disciplinar estanque, não facilita qualquer troca. Tudo isto, agravado por turmas e espaços a abarrotar, leva à lufa-lufa o dia inteiro, sem tempo para ponderar, assentar ou trocar com outrem os acertos e os erros. Pedagogicamente, o professor fica assim votado ao perpétuo amadorismo e muita sorte terá se conseguir intuição que lhe vá grangeando aferições e vitórias em graduais ajustamentos. Doutro modo será um falhado profissionalmente, de maneira praticamente irremediável: não há recurso a que possa deitar mão, senão o eventual colega do lado a quem desperte comiseração a sua esteira de fracassos e desilusões, se porventura não for ele mesmo igualmente um falhado. A tudo acresce ainda o estatuto social e jurídico que ao docente é conferido, na generalidade dos casos contraditório. Habitualmente, ele nem é legalmente estatuído. Entre nós é recente a definição. Em qualquer caso implica sempre uma luta inglória entre uma emancipação pretendida pela classe docente, em termos económicos e de autonomia do respectivo labor, por um lado, e, por outro, a rédea curta em que a pretendem conter o poder e os estratos hegemónicos da colectividade, eternamente receosos de que a divulgação do saber lhes mine os tronos e os proventos. Desta briga multissecular não há senão tréguas provisórias. Dos precários avanços em tal disputa, o professor apenas aufere um pouco de ar para respirar, jamais terá campo livre para voar à discrição e menos ainda para lançar em céu aberto os educandos. Aliás, tudo isto é dificultado pela contradição da imagem social dele: ora é tido por libertador, uma esperança de promoção social e colectiva, porventura até como alavanca imprescindível para o País sair do atoleiro a guindar-se a lugar cimeiro no concerto mundial; ora é visado como um maltrapilho, um poeta louco, eventualmente visionário sem eira nem beira, na melhor das hipóteses e apenas quando ainda nele se reconhece a marca do ideal que não transige; ora, ao invés, é apodado de parasita imprestável, sem brio, apenas atento a férias e promoções, alienado a um simulacro de serviço que lhe permite um ócio interminável através dum horário-miniatura para ele quebrar o tédio duma vida imprestável. Andam lado a lado persistentemente estas leituras que a colectividade projecta sobre o professor, tendendo a interiorizar-lhe as contradições, a gravar-lhe os efeitos contrastantes de cada uma delas na pele do dia a dia, dividindo-o, espartilhando-o ou estraçalhando-o entre solicitações e imposições contraditórias. Como se tudo não bastara, quais as condições de vida de quem ensina? O vencimento é crónica e mundialmente baixo, de sobrevivência, como importa para manter à mão esta classe potencialmente perigosa a qualquer soberano e correspondentes estratos sociais de radicação. Isto, porém, limita a margem de manobra educativa: faltam recursos para actualizar-se e desenvolver-se, tem de empregar o tempo e energias em expedientes laborais para alargar os proventos, perde na imagem e consideração social e dos educandos que o encaram antes de mais como um medíocre a não imitar, humilha-o perante os iguais que optam por outras carreiras laborais economicamente mais gratificantes, subalterniza iniquamente a missão educativa perante qualquer outra, tendendo a inculcar na cultura dominante a convicção de que escolarizar-se não é, afinal, nada decisivo para a realização pessoal e colectiva (o que, ao invés, apenas vai garantir a reprodução da desordem estabelecida pela manutenção da hierarquia social vigente, com os respectivos privilegiados sem justificação, por mero efeito dos jogos de influência, de poder e de relações pessoais e familiares).


Para além de tudo isto, o professorado tende a ser uma classe nómada, ciganos cultos da contemporaneidade, de terra em terra cada ano, sem raiz em lado algum, sem família consistente, sem eira nem beira em muitos casos, por mero efeito do mecanismo dos concursos. Depois, primeiro que se profissionalizem, é uma eternidade: são trabalhadores a prazo, contratados a título precário anos e anos seguidos, meros tarefeiros da educação. Divertido, neste contexto, é que progredir na carreira não depende jamais, por vontade do poder, de melhorias qualitativas. A actividade educativa é a única em que na colectividade são os próprios trabalhadores que requerem factores de qualidade como condições de promoção, contra a indiferença do patronato público ou privado. Em todas as demais tarefas profissionais quem o exige é quem emprega, como primeiro factor competitivo da empresa. Aqui é o contrário: quanto mais o docente for um mero funcionário cumpridor, sem imaginação, burocrata e repetitivo, tanto mais descansa as classes dirigentes, tanto menos poderá vir a fermentar-lhes qualquer problema ou aos herdeiros deles. Daí que a reivindicação de tal vector tenha entre nós provindo do próprio corpo docente. E enquanto depender a execução dela do soberano ficará reduzida indefinidamente a letra morta, com meros arremedos de cumprimento, poeira atirada aos olhos dos mais despertos, críticos e idealistas. É que isto jamais combinará bem com a lógica da estabilidade que se pretende fazer crer que é a harmonia colectiva, dentro da coerência da pirâmide social da cultura dominante.


Perante isto, como imputar ao professorado a culpa do massacre escolar? Ele vive manifestamente espartilhado pelo sistema educativo e respectivas coerências implacáveis.


Por aqui descobrimos a escola-estabelecimento como uma materialização pontual de todo um sistema educativo coerente e integrado que se acoberta por detrás dela. Nestes termos, cada comunidade escolar não é já redutível apenas ao que nela ocorre, nem os protagonistas ali visíveis são de facto os mais decisivos. Com efeito, cada unidade é apenase antes de mais aquilo que as forças dominantes na sociedade e na cultura permitem e impõem que seja. Elas determinam o que ali é ensinado, em que condições e com que meios, quem ali entra e com que requisitos prévios, bem como com que regras de base a cumprir, tanto do lado docente como discente, como ainda do pessoal administrativo e auxiliar. Este último é mesmo tão decisivo que basta torná-lo insuficiente ou incumpridor por qualquer via para bloquear por inteiro o funcionamento duma escola, ou, por exemplo, desviar um corpo docente activo, imaginoso e criador para anódinas tarefas de secretaria ou administração que os domesticam de imediato na prática, até sem alardes e muitas vezes inconscientemente. Muito mais do que quanto educadores e educandos pretendam implementar, cada estabelecimento é o produto do que o poder de tutela e o legislador quer e impõe, sem precisar para tal de polícia ou inspector: basta jogar adequadamente nos condicionamentos. Qualquer projecto, o melhor dos sonhos, o mais generoso dos ideais murcham de asas cortadas no momento em que o ministro diz não às verbas ou outros meios que forem requeridos; ou, se os arranjarmos por outra via, basta que os concursos dispersem o núcleo de animadores; às vezes é bastante ignorar e votar ao desprezo, num silêncio mortal, as iniciativas inovadoras ou então, ao invés, apropriar-se delas, torná-las obrigatórias antes de tempo para as liquidar. O arsenal do poder é interminável se o quiser utilizar. Na melhor das hipóteses opera por inércia: como a sociedade está organizada segundo uma coerência conveniente à hegemonia cultural, económica e política das classes dominantes, basta em regra deixar correr o tempo para qualquer iniciativa desviante ou inovadora morrer de inanição, ante a contradição da formação social a operar espontaneamente por inércia. Este é o processo mais comum de reprodução social. A escola, como instrumento privilegiado para tal fim, não foge à regra. Fica sujeita aos mesmos mecanismos. Tudo correrá em paz enquanto ela reproduzir os valores, a ordem, os saberes das classes médias, satisfeitas com a ordem estabelecida: assim operará como factor estabilizador e cristalizador da pirâmide social implantada. Qualquer desvio será negligenciado enquanto não puser em risco o soberano e classe respectiva. Até a apoiarão e reforçarão quando o inovamento, o desvio tendam a implementá-los, a desmultiplicar a boa consciência acerca da estrutura colectiva dominante e seus mentores. Para além disto ainda, cada escola é fruto do contexto em que se implanta, da comunidade e cultura em que mergulha e de que se embebe, uma vez que os alunos a trarão para dentro da aula e do recreio. A comunidade escolar vai ter de enfrentar projectos, valores, sonhos, frustrações, padrões de relacionamento, modo de organização convivial, jogos, sistemas de comunicação e partilha típicos de cada região e comunidade. Tudo isto jogará em tensão com os condicionamentos superestruturais do poder que nela superintende e dos seus braços estendidos. Entalados entre forças oriundas de baixo, das formações familiares, grupais e comunitárias de base, e as que imperam de cima, pelos mecanismos de tutela, como crer que a comunidade escolar é a verdadeira responsável pelo insucesso generalizado dos alunos?


A tomada de consciência de que tudo é afinal infinitamente mais complexo do que a linearidade dos olhares ideologicamente predefinidos ou superficiais pretenderia, levou gradualmente a encarar as causas de o aluno reprovar de modo inteiramente diferente.


Os obstáculos ao sucesso escolar formam uma permanente síntese dinâmica, constantemente instável, em intérmina mutação. Ora predomina uma ordem de factores, ora outra, conforme a história ao vivo das transformações sociais, do poder e da cultura que permanentemente estão em curso na colectividade. Operam entre si numa interminável dialéctica de tensões e contradições. Por outro lado, jogam como um bloco único, campo comum perante o contracampo dos factores de superação do insucesso e das tentativas de lograr atingir os ideais da educação e democratização do ensino e da cultura crítica.




O rosto do insucesso


O insucesso escolar, tradicionalmente, é medido e referido em exclusivo ao grau de conhecimento e domínio dum programa. Reporta-se, portanto, apenas à vertente intelectual da personalidade, com ligeiros alargamentos à capacidade activa nos trabalhos manuais e áreas oficinais e à afectividade e criatividade nas quase ignoradas disciplinas de despertar (música, pintura, dança, teatro...). Isto é muito limitativo, sectorial e deformante. Com efeito, pelo tipo de currículo que é obrigado a trabalhar, o educando tende a desenvolver o intelecto em detrimento do resto, como se pessoalmente não fora mais que racionalidade, como se a cultura crítica fora apenas construção cognitiva sem eco prático, axiológico, ético e relacional, como se aqui não estivesse permanentemente em causa a pessoa inteira e toda a humanidade, em quanto tem de vocação de universalidade. Ora, se o pendor intelectual é fundamental em todas as elaborações rigorosas do saber humano, educar não é só isto. Importa integrar todos os elementos trabalhados no âmbito escolar na unidade da personalidade de cada educando, reajustando-lhe as actividades, a sensibilidade, os valores e a vontade, os padrões de relacionamento, os projectos, a mundividência e assim por diante. Sem isto, mesmo que haja sucesso escolar, há um enorme desvio no equilíbrio da aprendizagem e tudo redunda em desperdício ou perda, a prazo. Ao invés, reprovar pode significar nalguns casos a afirmação da inteireza pessoal-cultural, é reagir contra um desequilíbrio e perversão que ocorreriam se o aluno se submetesse passivamente ao amestramento escolar. Nas condições actuais, o insucesso discente constitui no geral uma perda para cada educando, do ponto de vista das possibilidades para melhor singrar na vida, da armadura que perde para melhor enfrentar a sociedade e mormente o mundo do trabalho. A esta perda, porém, urge acrescer a dos bem sucedidos que inconscientemente se deixam manipular pelo desequilíbrio estrutural do modelo, tornando-se personalidades pervertidas, com enormes cabeças sem braços nem pernas e onde a afectividade e a liberdade murcharam. Estes intelectuais monstruosos e doentes não constam dos números da hecatombe escolar, mas somo-lo um pouco, em maior ou menor grau, todos quantos marcámos a nossa vida com uma escolaridade longa: tornámo-nos de facto muito mais peritos de palavras do que de ser e agir – aqui experimentamos inexoravelmente grandes dificuldades. Numa escolarização integral e integrada tal jamais poderia ser a norma, mas apenas fruto do desvio e da perversão do modelo. Estamos infinitamente longe disto.


Para além de tudo, reprovamos por referência a um padrão determinado, rigorosamente identificável com uma subcultura: a escolar. Efectivamente, a linguagem, o tipo dominante de comunicações, as operações intelectuais prevalecentes entre a classe docente não são iguais às de qualquer outro estrato comunitário. Ora, este é o padrão que o modelo generaliza como sendo o único bom, adequado e exigível a qualquer educando. O aluno entra nas aulas com o do meio de origem dele que lhe talha a cultura de partida. Quando a diferença entre ambos é abismal, transpor o fosso é inviável em regra e é a reprovação sistemática. Quando esta não advém, nem tudo fica resolvido. É que o aluno deve aculturar-se ao que lhe é requerido na escola. Ora, isto pode implicar-lhe o desenraizamento das matrizes de partida, dos respectivos laços humanos, o que lhe atingirá a identidade e o tornará tendencialmente um apátrida: de mal com os seus e estranho entre o clã dos escolarizados das classes privilegiadas.


Na comunidade escolar, os traços predominantes são a utilização duma linguagem fortemente técnica, sintetizada com a doutros grupos escolarmente formados do exterior e incidindo privilegiadamente em duas áreas de preocupação e interesse: a da experiência pedagógica, com os respectivos percalços, utopias, gratificações e desilusões, e a das relações intersubjectivas, fortemente marcada pela espinha dorsal do relacionamento pedagógico e correspondentes aventuras e interrogações. Não há nenhuma outra franja sociocultural que se paute dominantemente por tais parâmetros de preocupação-comunicação-projecção. Estes são, entretanto, os carris entre os quais cada aluno terá de percorrer o itinerário académico se pretender ao fim o diploma. Quem viver por inteiro alheio a tais coordenadas valorativas ou conceptuais ou não singra ou desenraíza-se, a fim de vingar escolarmente. Dificilmente haverá terceira via para esta alternativa no modelo tradicional.


Exigimos do aluno que não só domine o programa mas que o consiga dentro da nossa cultura (linguagem, concepções e valores). Isto implica que nós, os professores, tendemos espontânea e inconscientemente a levar o aluno a assumir e tornar dele a subcultura que é a nossa. Ora, o importante é que ele a conheça e identifique, mas não obrigatoriamente que a assuma. O etnocentrismo ocorre com qualquer cultura perante outras, mas igualmente, embora em menor escala, em qualquer subcultura, pelo que não é de estranhar que a escolar obedeça a igual pendor. Isto, porém, tende a levar o professorado a ler de modo degradado e degradante a cultura de origem do aluno, se ela for desviada dos padrões académicos. A tendência para menosprezar e condenar quanto fuja à norma da escolaridade implica que se encare o educando, à partida, quase como uma tábua rasa onde é viável insculpir qualquer mensagem, basta apagar o que lá estiver de erróneo ou inútil. Ora, o aluno é uma personalidade complexa e rica, laboriosamente desenvolvida no contexto das matrizes culturais em que se criou até transpor o portão da escola. Ele é isso – apagar a pretensa tábua rasa é apagá-lo a ele, porque, à partida, não tem qualquer outra dimensão de ser nem de identidade, Ora, tanto quanto a cultura do aluno não convergir com a escolar, o educando vai ser solicitado a anular-se como ser e como pessoa, a construir outra personalidade, outra idiossincrasia em função e por interiorização do padrão da escolaridade. Em quanto isto redunde numa síntese intercultural, o itinerário é educativo e não aliena o discípulo, mas quando o anule interiormente e lhe enxerte de fora artificialmente uma máscara de pessoa alfabetizada ou diplomada, é antipedagógico e redunda numa degradação pessoal e na marginalização sociocultural de franjas da comunidade, mormente das minorias culturais (caboverdianos, africanos em geral, ciganos, hindus...). Ora, como as reprovações em massa demonstram, não é pela via das novas sínteses cuturais-pessoais equilibradas que a alternativa se vem desempatando, mas por esta última que agride e repudia quem não condiz com os modelos da subcultura escolar.


Esta faceta é estruturalmente alienatória e ninguém consegue justificá-la do ponto de vista pedagógico. Tende a instalar um princípio de esquizofrenia no aluno. Os educandos de padrões mais distantes dos nossos, por conseguinte, preferem jogar no insucesso ou num sucesso falseado, com o copianço, a chantagem emocional ou outra, a compra do diploma, quando, apesar de tudo, a escolaridade ainda lhes é compensadora. Como solução para o risco de insanidade mental, por causa do factor de destruição implacável que é a irradicação da cultura originária, carne e sangue da realidade deles, os alunos e os pais preferem mais vulgarmente (quando consciencializam, mesmo empiricamente, a gravidade do problema) a descolarização. Denigrem então a escola e desmascaram-lhe a inépcia e a agressividade com que tende a atingi-los.


Para além dos que abandonam, por escolha ou, em norma, por exclusão, e dos que aceitam pagar o custo da desculturalização, resta a franja diminuta dos que tentam a síntese entre as duas subculturas. É aterceira via, a da optimização. Os padrões de origem integram os da escolaridade, através dum crescimento, abertura e complexificação interna equilibrados. A maior dificuldade a esta alternativa é que os professores não estão preparados para operar isto e levar a alastrar esta franja. Com efeito, no máximo, os docentes estão aptos ou são preparados para dar programas. Aqui não basta isto, mas formar personalidades. Ainda por cima, personalidades tendencialmente novas, inéditas, sem paralelo fácil nem à mão, para poder servir de padrão ou imitar-se.


Obviamente que não há problema, em princípio, com toda a gama de alunos filhos de professores ou progenitores académica ou universitariamente formados. À partida são educados numa cultura de origem igual à dos docentes, a escola é de facto o próprio lar: aqui não há reconversões nem sínteses a elaborar, o caminho já foi todo percorrido quando atingem o limiar de entrada.




História recente das correntes explicativas do insucesso


Desde meados do séc. XX o modelo dominante foi o resultante das investigações de Bourdieu e Passeron: o sistema escolar funcionava para o insucesso por intuito deliberado e escamoteado da opinião pública e dos utentes, a fim de perpetuar a ordem estabelecida, a cultura dominante e a pirâmide das classes sociais. Não é ingénua a forma como tal ocorre. Ao invés, toda a estrutura, o currículo e o funcionamento do aparelho institucional foi apurado ao ponto de não ter falhas na razia de quantos não sejam oriundos ou não se conformem às classes privilegiadas. Isto implica que a escola opera exclusivamente como reprodutor social, com função meramente conservadora e jamais de inovamento cultural e menos ainda de promoção comunitária e colectiva, pelo menos enquanto estas ponham em risco os estratos dominantes. Neste entendimento, a escola é um instrumento privilegiado de reprodução, factor de estabilidade social e é para tal que existe e opera, sem alternativa nem desvios dignos de menção.


Posteriormente, a pesquisa mais atenta alertou para o facto de que há uma margem de divergência que qualquer instituição social pode protagonizar, mormente em regimes políticos não totalitários nem fanáticos. Isto implica, primeiro, que o modelo anterior é reafirmado tanto na tendência global do sistema escolar como no intuito conservador que hegemoniza a cultura dominante de qualquer comunidade humana. Mas, em segundo lugar, reivindica-se a margem de inversão sociocultural que a escola pode sempre liderar, como os exemplos dos grandes pedagogos contemporâneos demonstram (Neil, com Summerhill; Makarenko, com os estabelecimentos dele simulando quartéis em campanha; Freinet, com a educação activa da Escola Moderna...). O pendor dominante é sempre o da reprodutividade e jamais haverá força nem meios que invertam isto, no contexto do modelo escolar. Para tal urgiria mudar de sistema educativo. A conscientização, o método Paulo Freire, enquanto alternativa à instituição vigente, consegue-o e assenta mesmo no vector inverso, o da reconversão cultural, comunitária e colectiva. Tal é inviável de todo no seio da escola, a não ser reconvertendo-a por inteiro noutro modelo: ela é hierárquica, com o poder decisivo centrado no topo (currículo, disciplina, orçamento, inspecção e administração), é manobrada de cima e de fora e, quando o é por dentro, é-o através da interiorização, generalização e imposição dos valores e padrões de quem detém a tutela. De facto, é sempre entendida e promovida para responder a carências da sociedade, mas estas são apenas as das forças hegemónicas que lideram a colectividade e que se constituem inxoravelmente como classes dominantes cuja cultura devém, pelo mesmo mecanismo, normativa, generalizando-se tendencialmente por irradiação do modelo que quem trepa ao pedestal assume perante as massas.


É, pois, como desvio a isto que pode aparecer marginalmente, com toda a fragilidade e inconsistência dos fenómenos desviantes, a vertente inovadora e contestatária da escola. A possibilidade de manobra existe, primeiro, em termos individuais e depois, colectivos. O professor, quando toma consciência do papel de marioneta manobrada, se o não acatar, pode, de facto, dentro das aulas, inflectir muito a linha de rumo até invertê-la eventualmente, qualquer que seja o programa com que labore. Com efeito, é na relação pedagógica, no método que escolher e na didáctica que implementar que não apenas o problema do aproveitamento do aluno é decidido mas primordial e radicalmente é posta em causa a cultura tramitada, as escalas de valores com que opera e o tipo de atitude a tomar perante o educando e quanto com ele entra pela aula dentro. Depois, relativamente à comunidade escolar, cada um opera como fermento na massa, quer no sentido predominante da reprodução, quer no excepcional do inovamento e desvio à cultura dominante. Cada turma, por seu lado, tende a intervir espontaneamente no conjunto, pela convivialidade estudantil, quer dentro dela quer para fora, como factor ora reprodutor ora desviante, conforme o predomínio que nela e na dinâmica espontânea e dos respectivos subgrupos se implantar. Depois, cada professor opera a nível do estabelecimento como da instituição, com maior ou menor poder. Em todos os papéis, quer no de director de turma, delegado de grupo, director de instalações, gestor, animador de projectos, sempre ele pode inflectir o rumo dominantemente reprodutivo da sua actividade, introduzindo-lhe factores criativos, críticos da ordem implantada, desvios conformes à recuperação e aculturação dos educandos tendencialmentem marginalizados e excluídos e assim por diante. E, para além deste nível predominantemente individual de inflexão do pendor reprodutivo da escola, cada um pode coligar-se aos demais, organizar-se com maior ou menor latitude, até abranger a classe docente inteira. Os educadores poderão a todos os níveis intervir de modo a não constituírem meros ecos da voz do dono mas antes assumirem-se como geradores de alternativas de valores, convivialidade e organização social mais equitativa e comunitariamente mais integradora. Isto logo poderá principiar por medidas e posições que tendencialmente invertam a curva do insucesso escolar e, conseguintemente, obstaculizem a reprodução indefinida da estratificação social vigente.


A margem de desvio aumenta tanto mais quanto mais se coligarem factores vários no mesmo sentido. Neste campo os professores podem conspirar com as pessoas das demais matrizes do actual fracasso escolar para juntos tentarem outros caminhos, seja com os alunos, com os progenitores ou ainda com forças político-sociais e fracções do sistema institucional que se rebelem contra as desordens da ordem dominante. Quanto mais vasta lavrar a conspiração, mais largas as brechas que rasgará para inverter o rumo dos acontecimentos, maior a eficácia final da reconversão.


O professor, aliado aos colegas e demias mentores e responsáveis do processo educativo, inauguram então comportamentos desviantes, padrões de agrupamento, modos de ser e projectar-se na vida, todos eles assentes numa nova lógica donde decorrerão a prazo formações socioculturais e comunitárias novas, mais condizentes com os anseios de cada um e com o sonho duma humanidade mais equitativa e solidária.


Obviamente que tais rumos da margem de desviância tornam ridícula e desmascaram a inépcia e superficialidade de tentativas frustes de superar o insucesso escolar por via de simplismos inócuos, amplamente publicitados com intuitos eleitoralistas, como o do leite, iogurte, pão e fruta distribuídos às crianças dos primeiros ciclos. Como se o nosso fosse o problema da fome endémica de vastas regiões terceiromundistas! Como se fora destas regiões a escola não operasse com o mesmo furor implacável contra os filhos das classes não privilegiadas! Como se o panorama não fora o mesmo nos países mais ricos, mais industrializados e até nos social, económica e até culturalmente mais equilibrados, como os nórdicos! Manifestamente, a via para escapar ao massacre escolar que é universal não são apenas pacotes de leite e pão. Aliás, as avaliações dos efeitos deste programa são divertidas: alardeiam-se números avolumados de grandes melhorias e depois nós vamos às pautas dos alunos e as percentagens de reprovados não mudam.


Registemos, em conclusão, que resta uma pequena fresta por onde pode inaugurar-se uma alternativa. Ela arrasta alterações mais vastas e profundas que meras cmuflagens de superfície ou mudança de rótulos – ela pode criar outra cultura, poderá fermentar outra humanidade, a longo prazo.




As pontes entre professor e alunos



O aproveitamento escolar desenvolve-se na relação pedagógica. É nela que tudo converge e se consuma, para bem ou para mal. A chave de qualquer alternativa jogar-se-á, conseguintemente, aqui, pelas repercussões que desencadear neste nó vital. Ora, o que constatamos é que educador e educando não alimentam habitualmente, no contexto escolar actual, um encontro intersubjectivo que aprofunde laços e partilhe caminhos e vidas. Tudo tende a ocorrer tanto mais no anonimato, em clima de frieza e distanciamento, quanto mais o docente radicar e aceitar enclausurar-se na abordagem dum programa, em primeiro lugar, e quanto maior for o número global e por turma de alunos a que atender. Aliás, o dimensionamento do estabelecimento é também decisivo para o clima relacional da comunidade escolar: as unidades pequenas em que o corpo docente se conhece todo entre si e cultiva amizades e solidariedades mútuas, em que os educandos são em número que os permite identificar, roubando-os ao anonimato que prolifera nas escolas-por-atacado – a proximidade e intimidade dos encontros intersubjectivos altera por inteeiro a formatividade de qualquer aula, programa, iniciativa cultural, bem como da convivialidade espontânea entre alunos, entre professores e duns com os outros. O desenvolvimento da personalidade deriva primariamente do teor deste factor. É nos encontros interpessoais que desabrocha o bebé, é nos estímulos que os íntimos lhe propiciam que ele se vai talhando. É na imitação e interiorização de quem lhe é afectivamente mais significativo e gratificante que a criança encontra os perfis de ser, de valor, de relacionamento com que molda a personalidade própria e projecta e sonha a vida. Daí que, mais que qualquer currículo, para além de qualquer programa, o que é radicalmente decisivo para o aluno aprovar ou reprovar na escola acaba por ser o teor destes encontros. E, dentre todos, mormente os que viver com o professor, por este revestir para ele tendencialmente a figura de padrão, de mestre quase iniciático, com tanto maior carga de sagrado quanto mais pequeno o educando for ( para os mais miúdos, a educadora e depois a professora acabam sendo prolongamentos da mãe, a ponto de as designarem por tal nome muitas vezes, espontaneamente, quando não pensam na situação). Um currículo trabalhado a frio, coactivamente, como em regime de trabalhos forçados sob pena de reprovar, por um lado, e o mesmo interiorizado num contexto de aventura entusiasmante de descoberta, com todos à compita, em clima de entreajuda e partilha do gozo de cada novo horizonte desvendado - sendo o mesmo programa na vertente cognitiva objectiva, é diametralmente oposto nos efeitos transformadores das personalidades envolvidas. O primeiro levará à incultura, à desvitalização de todas informações, conhecimentos, valores e práticas que implicar – numa palavra, deformará as pessoas e aniquilará o sentido vivo do saber, matá-lo-á. O outro será um caminho gratificante que marcará as vidas pessoais, inolvidável, entrosará laços profundos entre os companheiros da aventura, descobrirá rumos empolgantes para a vida, recriará valores e ideais. Este formará pessoas de facto: interligadas entre si, com a sociedade e comunidade envolvente, cheias de critérios e padrões para assumir a vida individual, grupal, familiar e colectiva de modo a aprofundar-lhes o sabor, as razões de ser.


É por tudo isto que a chave privilegiada das transformações se encontra neste núcleo onde se ganharão ou perderão definitivamente quaisquer apostas. Como, porém, vencer a distância e a indiferença entre professor e aluno? Um rol de medidas é requerido.


A primeira é que educadores e educandos trabalhem juntos para objectivos significativos para ambas as partes. Quando as matérias desagradam aos mestres, não é possível torná-las atractivas aos discípulos. Ao invés, a mais intragável das unidades abordada por um entusiasta arrasta atrás dele as turmas e até a escola inteira. Por outro lado, se houver o cuidado de orientar o trabalho dos currículos para aplicações ou aproveitamentos com que sonhem os educandos e que os educadores aspirem por ver concretizados, então a conjunção das afectividades, a gratificação das caminhadas percorridas lado a lado, a alegria das vitórias atingidas e compartilhadas, tudo isto tem o condão de revelar mutuamente as pessoas, de destruir as máscaras, de solidarizar cada vez mais tudo e todos, seja o corpo de educandos, seja o dos professores, seja fundamentalmente o que em comum vão lentamente construindo e aprofundando uns com os outros. A chave para isto é, portanto, o trabalho em comum, mutuamente empenhado, entre o professor e o aluno.


Um segundo aspecto decisivo para mudar o rumo do insucesso escolar é ir descobrindo que pontos de cedência podem assumir-se relativamente à cultura de origem dos educandos. Isto requer muita proximidade e tacto. Quanto mais íntimo o aluno for para o professor, quanto mais significativo e amigo cada um se tornar para o outro, tanto mais, por um lado, tenderão a uma simbiose cultural por mútua interiorização de padrões, valores, opções e ideais e, por outro, se tornarão tolerantes para com as diferenças mútuas, aprendendo até a apreciá-las, valorizá-las e preservá-las como pecúlio cultural a não perder, antes a assimilar para enriquecimento mútuo. É por aqui que terá de passar pedagogicamente a superação das difculdades das minorias culturais, bem como o ultrapassamento do etnocentrismo escolar e da generalização dos respectivos perfis como normativos para tudo e para todos.


Isto, porém, é apenas viável desde que os contactos ocorram em regime de espontaneidade, como no seio duma família ou dum grupo natural de amigos em convívio. Num contexto destes descortinamos facilmente a linguagem utilizada, com os respectivos regionalismos, tipicidades e níveis de conceptualização (mais ou menos realista, objectiva ou, ao invés, poética, imaginária; situada no plano concreto, factual e episódico ou, inversamente, mais abstracta, formalizada, eventualmente técnica ou reflexiva...). Por esta via, em tal ambiente, descobrimos os centros de interesse de cada educando, as raízes deles nos sonhos, nos projectos e ideias de vida da comunidade de origem e, em particular, das respectivas famílias. Por aqui acedemos às escalas de valores por que ordenam a vida, apreendemos, por exemplo, porque preferem o convívio ou o bando de rua à escola ou o inverso, porque dão prioridade e um trabalho imediato, mesmo sem grande futuro, a avançarem na escolaridade para mais tarde garantirem melhor emprego. Apercebemo-nos de pequenas mas altamente relevantes divergências de sentido, em termos e gestos comuns de relacionamento e gestão do espaço convivial: a criança com quem insistimos para ser arrumada vai, para nosso desespero enquanto não desvendamos o porquê, tentar satisfazer-nos despejando tudo num baú qualquer, se na barraca onde vive este é o único recurso de arrumação familiar a que a carência de espaço obriga. Ela não descobrirá sozinha que nas aulas tem outras alternativas, uma vez que, desde que nasceu, jamais viu a palavra arrumar cumprida doutra maneira. Tudo isto nos é atingível mais facilmente durante uma viagem de estudo com a turma, num passeio de curso, num jantar ou convívio de festa entre todos do que durante uma aula ou até mesmo fora dela mas na mesma sala. A própria convivialidade estudantil nos recreios, quando partilhamos dela, nos dá maiores indicadores de tudo isto. De facto teremos de concluir que na escola tradicional, no modelo que ainda predomina hegemonicamente em todo o lado, quer na forma institucional que prevalece, quer ainda nas praxes de organização, funcionamento e relacionamento que na comunidade escolar se implantam e mormente na relação pedagógica, no núcleo decisivo do encontro educador-educando, em tudo isto domina a tendência para o distanciamento, diferenciação e marcado hierarquismo entre o corpo docente e o discente, de tal modo que todas aquelas informações e descodificações só poderão em geral obter-se fora da sala de aula, quando na prática conseguimos abolir a ideia de que estamos em escola, sem as respectivas conotações de mútuo alheamento pessoal, de tendencial anonimato.


A questão decorrente é se haverá outra gestão lectiva, outra pedagogia relacional, outro modelo educativo que permitam e promovam isto dentro e durante cada aula, cada encontro, cada trabalho de aprendizagem, cada projecto. A isto parece opor-se um obstáculo mal conhecido, o das projecções discentes sobre a figura do professor. Efectivamente, a partir dos 35, 40 anos do educador, este é encarado pelos alunos de fases etárias pós-infantis como pai ou mãe, segundo o perfil destes, em conformidade com os padrões relacionais dominantes no ambiente em família. Ora, isto, em virtude do patriarcalismo multimilenar que nos hierarquiza o lar ocidental, não facilita a aproximação nem a espontaneidade. A própria figura da mãe, ao escudar-se tradicionalmente por trás da autoridade paternal não é de hábito a confidente ideal, com quem se logre inteira transparência sem desencadear tempestades. Tem de se lidar com diplomacia, têm que afivelar-se máscaras. A projecção de tais padrões sobre os professores reafirma as distâncias e os silêncios. Reforça as ignorâncias mútuas, a ausência de laços íntimos de forte carga afectiva e conteúdo vivencial. Isto é ainda mais acentuado com os alunos mais pequenos, na pré-primária e primária. Para eles, os professores de qualquer idade só podem incarnar modelos parentais. E estes tornam-se tão reais que lhes custa não chamar ao docente pai ou mãe e isto ocorre constantemente, tanto mais quanto mais novos são e mais recente a experiência escolar deles. Volta a ser, entretanto, mais fácil e íntimo o contacto a partir dos 55, 60 anos do professor: a imagem a partir daqui predominantemente projectada pelo aluno é a do avô – acolhedor, tolerante, disponível, a solicitar as confidências e a partilha poética da sabedioria acumulada através das gerações. A experiência infantil de sentar-se no regaço amistoso e terno dos anciãos, bebendo-lhes os contos, as lendas, as histórias de vida, na pacatez da velhice a alimentar o encantamento do imaginário da infância, cria um campo emotivo, uma força de evocação e empresta tanto valor a quanto retome ou simplesmente recorde o fio quebrado de tais vivências mágicas que o professor no termo da carreira, se o quiser aproveitar, é largamente beneficiário de tal parentesco. Curiosamente, a proximidade da partilha educador-educando é tendencialmente tanto maior quanto mais próximo o professor está dos extremos da carreira. É que no princípio dela, para os alunos mais crescidos, transposta a infância, a imagem que tendem a projectar sobre o docente é aparentada com a dum irmão mais velho, quase um igual. É muito fácil aos vintaneiros integrarem os grupos discentes de convívio nos recreios porque alguns educandos acabam tendo a mesma idade ou situando-se em idêntico período etário de desenvolvimento (juventude ou primeiro estádio da adultez). Aqui partilhar tudo entre iguais é a norma, porque o discípulo não encara jamais o mestre espontaneamente como tal segundo o padrão distanciador, frio e hierárquico do sistema escolarr vigente, mas tende antes a tomá-lo como o ídolo, o herói, o modelo que para ele habitualmente reveste a figura do irmão mais velho. Sabendo aproveitar esta projecção inconsciente que é a primeira a operar-se quando se encontram, o professor mais novo pode rapidamente colher informações e dados decisivos para cultivar uma relação pedagógica reconvertida, eventual gérmen dum sistema educativo capaz de operar decididamente para o sucesso, o inverso do que habitualmente vigora.


Isto, porém, quando entramos dentro duma sala de aula, tende logo a perverter-se e desaparecer, tal o poder do sistema para generalizar as respectivas mazelas, limitações e padrões relacionais dominantes. Tanto nós, os professores, como os alunos, por reflexo condicionado, logo que transpomos o umbral da sala de aula, afivelamos a máscara do distanciamento, da sacralidade intangível do acto, confundindo isto com a imprescindível seriedade do trabalho, perfeitamente compatibilizável com um clima de alegria, até de entusiasmo e festa e com uma partilha mútua interpessoal educador-educandos e destes entre eles que pode mesmo avançar (sem perda para nenhuma das partes e mesmo com todo o proveito para a escolaridade e mais ainda para o desenvolvimento autêntico das personalidades envolvidas) até níveis profundamente íntimos e duradoiros de amizade, potencialmente para vidas inteiras. Os grandes mestre deixam marcas imorredoiras – é justamente porque trilham com extrema perícia e generosidade este caminho. Igualmente os melhores discípulos, os que atingem autonomia e mestria tais que marcam a vida, a comunidade e a cultura nos domínios e através das modalidades em que se empenharem, devêm inesquecíveis aos mestres autênticos que neles interminavelmente se revêem e reencontram, não por serem repetidos (nisto há uma perversão e uma perda de autenticidade pessoal do educando e da respectiva autonomia), mas, ao invés, por serem ultrapassados e tornados inúteis gradualmente enquanto mestres, uma vez que os alunos a pouco e pouco se lhes equiparam e tornam então definitivamente iguais na diferença. Redescobrem-se mutuamente como companheiros na aventura da vida, em pé de igualdade e de mãos dadas, mesmo quando longe e sem comunicações nem intercâmbios explícitos. Os laços profundos, uma vez cultivados, persistem vivos para além de todas as contingências.




A ESCOLA – DOENÇA NO INSTITUÍDO E NO ORGANIZADO



O modelo institucional da tradição é doentio



A escola, desde há dois milénios e meio, vem substituindo, como modelo institucional de educar, os ritos iniciáticos em quantas tribos e clãs ascendem da idade da pedra ao uso da escrita e dos metais, fixando-se como agricultores e pastores, alargando-se em número e nos terrenos, complexificando-se na organização social com estratos classistas hierarquizados e com cada vez mais numerosa divisão e especialização de tarefas e funções. A escola emerge e generaliza-se lentamente, à medida que a complicação dos conhecimentos, a especialização e rigor deles, bem como os fundamentos dos padrões comportamentais e das atitudes devêm polémicos e difíceis de transmitir. Continua sempre fora da escolaridade, das origens até hoje, tudo quanto pode garantir-se através da educação espontânea, em instâncias de convívio natural-cultural empírico, como são a família, os vizinhos, a comunidade, os amigos e os organismos comunitários. Quanto lhes escapar e correr o risco de perder-se, desde que tido por importante no consenso da cultura e classes dominantes, então terá de ser garantido por outra via: primeiro foram os ritos iniciáticos que perduram ainda hoje entre os primitivos actuais; depois, quando mesmo estes se revelaram manifestamente insuficientes e ineficazes, criou-se a escola. Ainda agora ela mantém caracteres de origem: é uma realidade com forte conotação de sagrado e de que os povos aguardam efeitos pouco menos que mágicos; tem como primeira e insubstituível meta garantir a transmissão das aquisições culturais da colecttividade (e doravante da humanidade) que sem ela correriam o risco de se perderem; abandona à espontaneidade comunitária e respectivas estruturas quanto na cultura possa transmitir-se e conformar as novas gerações por via empírica e em abordagens a nível do senso comum.


A escola é, por tudo isto, em primeiro lugar, um modelo educativo sacralizado e sacralizador: é tida pelas gentes como indiscutível, como lidando com saberes e poderes pouco menos que sobrenaturais e, genericamente, aguardam dela que devenha panaceia para todos os males, atrasos e iniquidades sociais. Dela esperamos promoção para os filhos, progresso para os países, paz e felicidade para o mundo inteiro. Por que via? Pela iniciação ao saber e ao operar herdados dos sábios que hoje e nela substituem os magos, os sacerdotes e os profetas de antanho, dos rituais de iniciação.


A cultura escolar, por via disto, é conservadora e reprodutiva predominante senão exclusivamente. Nela há o secreto saber e poder a transmitir aos que se revelarem dignos, os não reprovados, filhos das classes já escolarizadas anteriormente e poucos mais. Estes eleitos manterão a perenidade do fogo sagrado e conservá-lo-ão privilegiadamente de pais para filhos (é o que resulta do perfil do insucesso), como nas tribos primitivas, para garantir a fidelidade ao depósito cultural – tanto ao nível da informação, como do comportamento, como das resultantes comunitárias e colectivas disto (hierarquia de classes, divisão de funções e acatamento da organização daqui resultante como correcta, quiçá de direito natural ou divino). É inegável a permanência na actualidade destes pendores primitivos, se olharmos a escola por tal ângulo, pese embora quanto as pinceladas de modernidade nela vão mascarando e adaptando.


O efeito derivado é que o modelo continua milenarmente com uma tendência fortemente centralizadora e sempre hierarquizado. O currículo é definido do topo para a base. É naquele que reside a instância última do poder e da tutela sobre todos os níveis de ensino. As sanções operam no mesmo sentido, o soberano jamais se encontra no estabelecimento, mas apenas o braço estendido dele no órgão que o dirige. A avaliação mantém a última palavra, nos anos e nos momentos críticos, em exames nacionais e provas na dependência de instâncias hierárquicas; o estender à base, pela avaliação contínua, um certo poder de decisão, é ainda limitado pelos efeitos que eventualmente coloquem em risco a soberania e arbitragem de última instância no topo da hierarquia tutelar. Tudo isto, tendencialmente, estandardiza a formação social, uma vez que o poder dominante e as classes sociais que o alimentam e geram, através deste modelo centralizador e hierarquizante, reproduzem em currículo latente, por via inconsciente e acrítica, por toda a comunidade escolar e desta pela colectividade em geral (por onde aquela espontaneamente irradia), a vivência do hierarquismo e centralização como os princípios organizadores de qualquer educação, conformadores de toda a vivência em grupo, harmonizadores de toda a sociedade e cultura. Jamais isto, por esta via, será questionado, testado, nem se lhe apresentarão quaisquer alternativas, dadas por impossíveis logo a priori. Por tal pendor, a escola é uma instituição estática (quaisquer que sejam as mudanças de epiderme que lhe imponham para o camuflar) e tende a configurar a formação social estaticamente, isto é, como mera reprodução de pais para filhos das mesmas funções e posições relativas, no contexto da colectividade e de cada comunidade de base. As excepções serão sempre tão poucas no meio do conjunto que não ameaçarão o efeito hegemónico de fundo, garantindo perenidade à estratificação classista e à cultura dominante. Prestam, aliás, o serviço suplementar de as justificar, porque lhes simulam uma plasticidade e permeabilidade que estatisticamente não têm de facto, embora não se torne fácil nem acessível às grandes massas aperceberem-se de tal (e até mesmo os peritos requerem sempre a contraprova dos números que universalmente o confirmam de forma esmagadora, em todos os países e a partir de quaisquer ângulos de abordagem).


Ora, tudo isto eventualmente faria sentido numa escola concebida para a aristocracia do poder e do dinheiro, como ocorreu até princípios do séc. XIX. Já Platão congeminara uma escolaridade avaramente reservada aos mentores da cidade, excluindo os outros para não fazerem perigar a estabilidade, a perenidade da ordem implantada. Aristóteles, porém, sensível ao valor e potencialidades da mudança, já não a concebeu assim e é o modelo que dele se generalizou com o helenismo, por obra primeiro do discípulo dele, Alexandre Magno, aquele que acabaria por chegar até nós. A diferença, porém, é apenas que este vai generalizar a divulgação da cultura helénica através do Império, o que tem paralelo hoje em dia na implantação do sistema escolar pelos quatro cantos do mundo para divulgar os currículos dos antigos colonizadores ou das grandes potência ou dos países hegemónicos económica e culturalmente na respectiva região do planeta. Em todos os casos, o grau de abertura e democratização cultural da escola vai apenas até ao alargamento da reprodução dos conhecimentos predefinidos em novas regiões a outros tantos escois locais, a fim de perpetuar a regra do jogo e a estabilidade da formação sociocultural da colectividade e até da ordem mundial dominante em cada momento.


O mais grave é que, a partir da Revolução Francesa, tornou-se um ideal a prosseguir, no âmbito da cultura ocidental, hoje em dia generalizado à escala do mundo, a democratização do ensino. Apenas ao correr do séc. XX se foi tornando viável ir dando corpo a este fito, com a entrada em massa das novas gerações na escolaridade de base, tornada obrigatória e gradualmente alargando-se por mais anos e currículos mais variegados e complexos. O problema é que ficamos sistematicamente longe do alvo visado que seria uma sociedade integralmente alfabetizada, primeiro, e, depois, indivíduo a indivíduo, especializada e formada em conformidade com as vocações pessoais harmonizadas com as carências e desejos das comunidades. Ora, por enquanto isto é uma utopia. O que ocorre na estatística dos escolarizados (e tanto mais quanto mais elevados os graus dos diplomas) é o arremedo da reprodução das classes dominantes, anteriormente escolarizadas, com umas irrelevantes franjas de assimilados doutros estratos sociais que se vão tendencialmente perdendo pelo caminho, para no topo restarem apenas praticamente os já dele oriundos à partida. O mal-estar que hoje de facto todos sentem perante a escola, a onda reformadora que parece tender a eternizar-se nela sem grandes resultados, decorrem da consciência generalizada de que esta é a situação, bem como da tremenda força de resistência que a instittuição parece oferecer a quanto pretenda inflectir tal estado de coisas. Não houve até à data reforma que tenha minimamente encontrado uma saída airosa para esta contradição de raiz e universal.


Porquê? O diagnóstico é muito simples. A escola nasceu, cresceu, generalizou-se, robusteceu-se e sobrevive há dois milénios e meio como um garante da tradição. Como é que dum reprodutor sociocultural podemos esperar que lidere a mudança, o inovamento? É tão contraditório que espanta a ingenuidade com que se continua a apostar num caso perdido com tamanha convicção, apesar do espectacular fracasso de todas as tentativas para inverter a função da escola, em todo o mundo, durante todo o séc. XX. Para quem pretenda renovar o tecido comunitário, a escola da tradição é inelutavelmente a escola da traição. Ora, o modelo escolar jamais foi outra coisa, pesem embora todas as alterações que sofreu pela história adiante: sempre estas foram variações sobre o mesmo tema, o de porta-voz da tradição, o eco de antanho, o de sombra dos ancestrais, com os respectivos saberes, valores, técnicas e desempenhos. O repúdio de Galileu pela escola de então é um fenómeno permanente: todo o bandeirante é para ela inassimilável, apenas o acatará quando a cultura dominante o assimilar e lhe emprestar a imagem e a visão dele a ser carreada à geração vindoira, então já pertinente à cultura dominante, integrada no espólio cultural adquirido que justamente se preservará por intervenção escolar em tudo quanto contiver de saberes críticos. Em si, isto é um serviço, um benefício. A gravidade deste modelo de operar decorre da aceleração das mudanças no mundo actual que tornam o peso do pretérito cada vez menor relativamente aos inovamentos hoje ocorridos e mais ainda aos de amanhã: alteram por inteiro a perspectiva da vida e o peso relativo, numa estratégia de existência, a atribuir ao herdado, à actualidade e à prevenção, predisposição e até à gestão do porvir, dia a dia mais à mão de cada um. Com transformações tão bruscas como as actuais e em tão grande crescendo, o desempenho tradicional e tradicionalista da escola é cada vez mais um anacronismo, uma inutilidade, uma agressão às expectattivas legítimas de todos os utentes e da colectividade. Ou há remédio para a mazela, ou a instituição deverá desaparecer, mal outra alternativa a substitua a contento.




A alternativa


Primeiro importa confirmar que a estabilidade é um bem pessoal e social a preservar. O equilíbrio emocional de cada um e a sanidade da vida comunitária e colectiva dependem primariamente deste factor, o que justamente obrigou a inventar a escola, em nosso passado remoto, para poder garanti-lo quando começou a ficar ameaçado em virtude da incapacidade de o rito iniciático dar conta do rigor e vastidão dos conhecimentos críticos acumulados já então.


O problema deriva do grau com que este objectivo é prosseguido. Quando tende a tornar-se exclusivo, a escola devém então um mero reprodutor sociocultural, rígido e asfixiante. Estiola o sonho, ameaça o imaginário, estrangula a criatividade, liquida o pensamento desviante, nenhuma novidade poderá jamais ocorrer. Ora, tanto a vida individual como a comunitária, como o teor da cultura colectiva só se animam, ganham sentido, mobilizam entusiasmos e energias quando a novidade os estimula, quando os projectos os empenham, quando os ideais os galvanizam. Doutro modo morrem de tédio, de inanição, adormentados em interminável marasmo. Isto é tão vital que nos próprios primitivos, as comunidades humanas mais tradicionalistas e rígidas, há comportamento e pensamento desviante, legitimados e integrados por vários modos na cultura tribal dominante (é ver o estatuto particular atribuído ao louco ou ao “contrário” dentro da mesma família).


A solução a encontrar terá, por um lado, de equilibrar em permanente dialéctica instável, em busca interminável de opttimização, as necessidades contrastantes de estabilidade e de mudança. Sendo de sinal contrário, não há síntese definitiva viável entre elas, mas apenas soluções de coexistência equilibrada ou de liquidação dum dos pendores por sectarizada gestão da tensão de contrários que ambas constituem e com que nos estruturam as personalidades, a vida, bem como as comunidades, os povos e a humanidade. Na procura do modelo mais adequado à maioria da colectividade terá de ter-se em conta o diferente peso relativo que hoje em dia tem nas nossas vidas e no mundo inteiro a veloz aceleração das mudanças científicas, tecnológicas e socioculturais que ocorrem na civilização contemporânea e que não têm qualquer paralelo em qualquer outra época histórica.


A escola nasceu e serviu, desde a origem até hoje, exclusivamente a vertente da estabilidade, como instrumento privilegiado de reprodução social, de conservação do depósito herdado da cultura reinante (quando muito, espalhando-o sempre mais além). Jamais foi pensada ou talhada nem para operar o inverso nem para equilibrar estabilidade e mudança. Esta última operou-se até hoje de fora e à margem do sistema escolar. A celeridade que caracteriza doravante as transformações faz tendencialmente que a aula seja anacrónica, transmitindo cadáveres culturais de eras antigas, inúteis e fossilizados, com a pretensão preversa de que tal é que será o esteio do saber e do ser da actualidade. Por aqui ameaça-a mesmo o ridículo, com os constantes trinta anos de atraso dela relativamente ao momento em que as novidades ocorrem (na actualidade tende a levar esse tempo a legitimação e generalização, dentro do sistema, das informações críticas novas). O problema é se o modelo escolar é ainda reconvertível a ponto de poder operar uma educação e formação das novas gerações em conformidade com as exigências do mundo actual. Numa palavra, poderá a escola educar para a mudança? Se o puder, jamais o fez em toda a provecta história dela. E até agora nenhuma reforma lho conseguiu impor, nem o logrou sequer aproximar, em nenhum recanto do mundo.


A partir da década de 60 do séc. XX existe entre muitos pedagogos a proposta de desescolarizar a sociedade. Teve grande impacto durante aquela década por influência de Ivan Illich, Neil Postman, Charles Weingartner e outros. É o fruto da descrença na viabilidade de qualquer reforma autêntica, à medida do que é requerido. Mas, assim como as reformas falharam, também o radicalismo desta alternativa não encontrou eco bastante em lado nenhum para sequer ser tentada. Curiosamente, o intento de Carl Rogers, filiado na mesma linha de esvaziar de sentido a escola, agora por ele descobrir que a relação professor-aluno é falsa, uma vez que, no fundo, é inegável que educador e educando mudam permanentemente por múltiplos factores e primordialmente pelo que investem no confronto e partilha mútuos, o que os transforma inelutavelmente num educador-educando e num educando-educador intermutáveis – a tentativa rogeriana de reconverter a escola, estruturando-a em grupos de encontro em que se optimize a comunicação e caiam as máscaras, acabou em pequenas experiências pontuais sem qualquer viabilidade de generalização. Aliás, obteve mais efeito operando fora e à margem da escolaridade do que propriamente por dentro dela e reconvertendo-a ou criando-lhe uma alternativa consistente. Acaba numa mera terapia da relação pedagógica, enquanto reencontro da autenticidade interpessoal nela, não é nunca um outro modelo e menos ainda um novo sistema educativo.


Porque falham as reformas todas, porque não resultaram as tentativas de abolir a escola, porque se não generaliza nenhuma alternativa? Será que esta não existe? Para muitos pedagogos a única via consistente, com provas dadas, para substituir a instituição vigente seria a conscientização ou método Paulo Freire. Centrado no aluno e nas preocupações e expectativas deste, vividas na comunidade de base, com um currículo de alfabetização radicado em palavras geradoras recolhidas pelo critério da maior frequência com que ocorrem nas conversas quotidianas do meio ambiente dos educandos, esta alternativa executa-se em reuniões de discussão e análise, monitoradas por um animador, e tem em vista facilitar a tomada de consciência da situação real das pessoas participantes e respectivas comunidades, bem como das possibilidades e recursos disponíveis para desencadearem as mudanças desejáveis. Testado no Brasil onde nasceu, rapidamente o espectacular sucesso obtido ali o levou a experimentar-se pontualmente um pouco em todas as regiões do mundo, chegando mesmo a Tanzânia e a Guiné-Bissau a ensaiarem sistemas educativos com base nele e já não no modelo escolar. Infelizmente, tudo ficou por aqui. É que a conscientização abala tanto os alicerces da cultura e do poder reinante, devindo tão revolucionária, que nenhum Estado a consegue tolerar muito tempo nem a deixa avançar muito longe. Por todo o lado o modelo é deturpado, para anular-lhe o fermento transformador, tornando-o num simulacro, ou são extintos os projectos decorrido breve prazo, de modo a não dar tempo a provocarem demasiada perturbação na ordem dominante. Tudo somado, também esta alternativa não logrou vingar como modelo capaz de substituir a contento o modelo escolar.


Se aqui, porém, é o poder, as classes dominantes e a cultura hegemónica que estremecem e conspiram para jamais a conscientização se generalizar sem perder previamente o ferrão, já em todos os tentames incentivados oficialmente para mudar a escola, o que os vota sistematicamente ao mais estranho fracasso é outra realidade: é que os professores, os alunos e os progenitores entram para as novas modalidades educativas com os preconceitos e rotinas das antigas. Os rótulos mudam, o veneno é o mesmo: os efeitos repetem-se interminavelmente, década a década.




Uma nova proposta


Mudar de modelo escolar é mudar de ser e de cultura. As tentativas até agora falharam porque uma transformação destas não é possível à ligeira. Uma cultura não se veste e despe como um sobretudo. Extirpá-la arranca-nos a carne. Nós somos feitos dela, embebe-nos até à medula, é o ar que respiramos, o sangue que nos circula nos valores e no pensamento, nas atitudes e nos sonhos. Mais do que termos uma cultura, é a cultura que nos tem a nós. Não somos cultos, somos a cultura. Ela é-nos o ser, muito mais que qualquer outra dimensão que nos estruture. Como mudar isto? Como pô-lo em movimento? Sem uma resposta para tal problema, qualquer reforma educativa é mera maquilhagem, um ajustamento de pormeenor. Por ora todos nós, os diplomados, somos a cultura escolar estandardizada – a mesma reprodutora eficaz de conhecimentos e hierarquia de classes em todo o mundo.


A única via que resta é ir fermentando dentro do sistema educativo que temos soluções de alternativa. Urge avançar com feixes de professores sensibilizados, estabelecimento a estabelecimento, até podermos contar algum dia com grupos de escolas, de modo que gradualmente isto alastre a ponto de configurar um novo sistema e de o implantar de facto. Provavelmente de maneira tão paulatina que até ninguém se calhar dará conta, como ocorre com as transformações culturais em regime de espontaneidade. Seria, aliás, a solução ideal, pois não concitará contra ela forças estagnadas e rotineiras se não der nas vistas. Evidentemente, não é de esperar que quando os educadores se não conformarem à ordem dominante esta se mantenha adormecida perante eles. Aí haverá sempre conflito e o poder soberano disporá, à partida, de maior força do que qualquer instituição em gérmen. Força para silenciá-la, pervertê-la ou aboli-la, caso se não mostre desejável. Ou, se for inadiável para a própria sobrevivência dele, para promover um modelo educatio outro, capaz de gerar um cidadão escolarizado com novo perfil de personalidade, com inédita atitude perante si, perante a vida, perante a sociedade e a cultura.


Esta senda intermédia que tenta ir conciliando os opostos na conjuntura, criando tempo, dando ocasião a que as pessoas, as comunidades e as situações amadureçam, tem a vantagem de permitir criar e ir testando novas sínteses com realismo, de maneira que ninguém corra o risco de perder o pé. A comunidade escolar pode ir experimentando e moldando-se, passo a passo, tanto do lado do professor como do aluno, como dos progenitores deste que sofrem indirectamente o impacto de quaisquer reajustamentos e mudanças. Mas igualmente permitirá que não se assuste sem motivo e importunamente o poder que a cada momento se tiver de confrontar com o evoluir dos acontecimentos.


Em contrapartida, este roteiro é frágil e arriscamo-nos permanentemente a deixar perder as melhores e mais eficazes descobertas, no meio do anonimato das moles escolares que proliferam nos ambientes urbanos ou na humildade descrente das unidades perdidas nas aldeias e vilas da província. Por falta de padrões de julgamento, de horizontes de referência, muito se dispersará no olvido quando afinal seria significativo e libertador para toda a gente, por os respectivos mentores não terem crido nisto ou descrerem deles próprios. O tropel do rebanho em monótono compasso esmagará outro tanto a quem, com razão embora, lute por fazer ouvir, para além do linguajar das rotinas, o pregão da liberdade e da equidade que as suas práticas repartem democraticamente por todos quantos lhe couberam em sorte atender pedagogicamente. Por outro lado ainda, quanto sobreviva ao maremoto das massas, do temor e da descrença terá evidente dificuldade em organizar-se, ganhar corpo, tomar voz bastante para fazer-se ouvir, generalizar-se, ver-se ratificado e apoiado.


Tudo isto, porém, é rigorosamente o mesmo que ocorre com quaisquer inovamentos que advêm na sociedade em geral espontaneamente. Sofrem das mesmas fragilidades e incompreensões, enfrentam iguais riscos e ameaças, sobrevivem com idênticas debilidades. E nem por isto deixaram nunca, a prazo, de se imporem e de constituírem de facto a história da humanidade e do trânsito dela desde o australopithecus até à contemporaneidade. O que hoje nos distingue da origem é exactamente o fruto acumulado de milhão e meio de anos destas sobrevivências de frágeis inovamentos e desvios, inicialmente pontuais, mas que foram, com persistência, confiadamente fermentando as massas até se tornarem património colectivo que nos vem guindando, de cavernícolas que outrora fomos, a conquistadores das estrelas que estamos em vias de ser.


O risco fica muito diminuído e a força desta alternativa aumenta em proporção quando alinhamos lado a lado os tentames dispersos, lhes identificamos a inspiração e estratégia comuns, lhes delineamos o perfil consensual que em conjunto configuram. Se depois formos divulgando e conjurando em apostas convergentes mais adeptos e simpatizantes, então o processo de reconversão acelera-se, a colectividade vai levedando, as comunidades familiares e de base sensibilizam-se muito mais rapidamente para o mesmo e em conjunto caminhamos concertadamente então para novos e mais eficazes modelos de educar institucionalmente, para a alternativa ao desatre do sistema actual.


É justamente o modelo consensual dos professores que somos, naquilo que resulta dos melhores e mais generosos momentos da nossa dedicação como educadores à aerefa de contornar os efeitos deletérios da escola de rotina, que importa explicitar, a fim de lhe emprestar a força e consistência que não logra enquanto ficar votada à dispersão, ao anonimato e ao silêncio. Ao estruturarmos o perfil daquilo que visamos, na coerência interna e nos ideais que procura, não apenas o fortificamos em nós como o revelamos aos demais, conjurando-os connosco, na mesma aposta salvadora e transformadora das pessoas, das comunidades, da cultura, do País. É que os professores portugueses têm e vivem empiricamente, na prática dum quotidiano marginalizado e humilhado (para que nenhum poder pretende sequer olhar, tão desprezível preconceituosamente o julga), um modelo de sistema educativo alternativo à escola iníqua em vigor, perfeitamente coerente e integrado, de eficácia e equidade incomparáveis, gerado ao vivo no confronto com as dificuldades e que não é mera repetição nem transposição caseira de flora alheia, colhida nos pomares da estranja (como tudo quanto politiqueiros ignaros teimam implantar entre nós, contra ventos e marés, a pretexto de nos porem a par do último grito da moda educativa). O modelo de consenso dos pedagogos em campo não tem paralelo além-fronteiras, é de nós originário e é mesmo original. Importa, pois, abrir-lhe caminho, não apenas em nome da preservação e desenvolvimento da nossa autenticidade, mas ainda para o podermos oferecer a quantos, para além até do nosso espaço, há muito procuram uma alternativa sem jamais a encontrar, pelo menos à altura do que pelo mundo além tantos buscam e pretendem.




FIM