MÉTRICA  REGULAR

 

O  SER

 

 

Nada

 

Está tudo em muito pouco:

A criança encerra o homem,

O encéfalo, o pensamento

Do sábio todo e do louco,

Os olhos no infindo somem...

É disto que me alimento,

É o meu infalível bodo:

- Ter, em cada nada, o Todo.

 

 

Entra

 

Alguém entra em nossa vida

Num mui crítico momento,

De nós toma conta à altura,

Tudo bem finda em seguida.

Recebemos linimento

Sem retribuir pela cura.

 

O curativo virá

Quando então menos se espera

Mas quando mais se precisa.

- Um desígnio maior há

Que por trás do mundo opera

E que a custo se divisa.

 

 

Dogma

 

Em ciência ou sabedoria

O dogma é falacioso

Se a verdade compendia

Como de vez em meu gozo.

É que a verdade completa

Mora além de toda a meta.

 

E é bem mais enganador

Se lhe dou sestro divino:

Perco de Deus o teor

De Infinito a que me inclino,

Preso a uma qualquer charada

De palavra revelada.

 

Esta, em vez de ser fermento

A levedar minha vida,

De hora a hora em acrescento

Com nova luz intuída,

Entaipa-me olhos e ouvidos:

- Findo um preso sem sentidos.

 

 

Desvendar

 

Desvendar qualquer passado,

Só olhando para o presente,

Dele fatal resultado.

 

E vislumbrar o futuro,

Só olhando para o presente,

Casa donde o inauguro.

 

Somos mesmo o somatório

De todo este reportório.

 

 

Determinam

 

Nem os números nem astros

Determinam o caminho.

De meu livre arbítrio rastros

Vou talhando, ninho a ninho:

 

Minhas escolhas diárias,

Ao reagir aos desafios,

É que minhas rotas viárias

Traçam com meus atavios.

 

Dali vem sempre o desenho

Do que sou e do que tenho.

 

 

Céptico

 

O céptico é quem mais crê:

Crê na falta de sentido,

Na dúvida e na incerteza,

Onde faz mais finca-pé

Que qualquer crente envolvido

Na crença incerta que preza.

 

Acaba a ser tão fanático

Tal qualquer crente dogmático.

 

E finda tão assassino

Tal terrorista divino.

 

Frente e verso, igual a asneira

Que da morte nos abeira.

 

 

Encaro

 

Se me encaro sem meu imo,

Faísca de Deus em mim,

Não sou mais Eu, sou meu Ego,

Meu peito inflando sem fim.

 

Penduro-me a mim no cimo,

Tal se o cimo fora um prego

A que sozinho me arrimo.

 

Do presente um aconchego

No colo da Infinidade

Não o gozo nem delego,

Sei lá se é mesmo verdade!

 

Cadáveres do passado

São aquilo que carrego

E do porvir aguardado

Cultivo o desassossego.

 

Um presente em tal assente

É deveras um ausente.

 

 

Ave

 

Qualquer ave duas asas

Há-de ter para voar,

As de agir e devotar,

Mais a cauda aonde aponta,

Afinal, quais são as casas

Para onde o saber conta.

 

Somente então configuras

Teu voo pelas alturas.

 

Agir, devotar, saber:

Teu trio de vir a ser.

 

 

Desenvolver-se

 

Desenvolver-se é mudar,

Não tanto pelo exterior

(De cônjuge ou dum emprego,

De país, do que calhar...),

Para após continuar

A pessoa que se for,

Com igual desassossego.

 

Real mudança é interior

Que permite e persuade

A meu caminho do Amor,

Minha íntima verdade,

Para, aí permanecendo,

Eu cada vez mais ir sendo,

 

Meu pensamento e acção

Me espelhando o coração.

 

 

Poeira

 

Toda a poeira dos olhos

Vem de sete anos de vida

Inocente e sem escolhos,

Confiante sem medida:

 

O que dizem por inteiro

À criança desprendida

É decerto verdadeiro.

 

Como após descobrir pleno

Do alicerce um vil veneno?

 

Dum alicerce de crença

Como banir-lhe a sentença?

 

 

Doem

 

Não doem as costas, não,

Doem cargas que aí vão.

 

Não doem olhos na liça,

O que dói sempre é injustiça.

 

Não dói a cabeça lesa,

Mas que pensamentos pesa.

 

Não dói a garganta, dói

O que expresso nunca foi

 

Ou então é dor de raiva

Por quanto à vida não caiba.

 

Não dói o estômago, fere

O que nunca se digere...

 

- É a dor ali expressão

Do que no íntimo haja então.

 

 

Integrou

 

Alguém que tem auto-estima

Não tem ciúme ou inveja,

Já integrou, de baixo a cima,

O ser único que seja:

Que ser único é, assim,

Ninguém ser igual a mim.

 

Não há, pois, comparação

Entre os que diversos são.

 

 

Nem

 

Nem meditar nem orar

Têm poder nem resultado

Se o intuito não for dar

Ao outro, o beneficiado.

Se for tudo para mim,

Meu imo matei assim.

 

Nem há espiritualidade

Com meu imo atrás da grade.

 

- Das religiões o tropeço

Tem aqui sempre o começo.

 

 

Teste

 

Teste maior a riqueza

E bem mais desafiante

É que o teste da pobreza:

É ganância e avareza

A picar-nos vida adiante.

 

O ego é sempre ganancioso,

Que só o lucro lhe dá gozo.

 

O ego é sempre um avarento:

Que bem lhe basta ao alento?

 

 

Avarento

 

O avarento vive ansioso

Por aquilo que não tem,

E inda nem fruiu do gozo

De ao dispor dispor dum bem!

 

Cada vez mais infeliz,

Quanto mais tiver mais quer,

Mais medo tem de raiz

De tudo afinal perder.

 

Tem de desfazer-se de algo?

- Que triste abismo ali galgo!

 

 

Conquistar

 

Conquistar a riqueza material

Deveras não será prosperidade.

A virtude interior que me persuade

É que conduz à paz, felicidade,

Em rota que se antolha sem igual.

 

Deveras será meu apenas quanto

Eu puder possuir após morrer:

Daqui não levarei nada sequer,

Senão a consciência que tiver

E a atitude vivida no entretanto.

 

Se abundância aos demais eu desejar,

Pensar prosperidade colectiva,

Retorna-me a intenção tão positiva

Que, se der aos demais o que se esquiva,

Os milagres irão proliferar.

 

Nada a felicidade com dinheiro

Tem a ver: é do amor que for pioneiro.

 

 

Feliz

 

Ou és feliz com o que tens agora

Ou não serás feliz jamais então.

Teu imo se acomoda a toda a hora

A tudo, mesmo à morte havida em vão.

O teu ego é que sempre te há-de achar

Que alguma coisa ali te anda a faltar.

 

Objectos, condições darão prazer,

Não alegria: do imo há-de nascer.

 

Ninguém precisa de deter-se em nada

Para alegre seguir toda a jornada.

 

 

Verdadeira

 

Verdadeira confissão

É uma prática interior

De tomar a decisão

De se abster daquela acção

Má seja para quem for.

 

Se após com acto virtuoso

Colmatar o prejuízo

Que antes causou tenebroso,

Liberta-se então, gozoso,

Deste mal de seu aviso.

 

 

Prazer

 

O prazer terreno

Dá-nos sempre gozo.

A felicidade

Nele nunca entroso,

Que o ego é que, pleno,

Tal pendor invade.

 

Ele é que exterior

Pede e manipula

Outrem, a alcançar

O que quer-lhe a gula.

Renuncio à dor

Ao renunciar

 

Do apego ao prazer:

Deixo de sofrer.

 

 

Liberdade

 

Liberdade não é tudo

Fazer do que bem quiser.

Isto é o ego, em tom agudo,

A proibir meu próprio ser:

 

Se é um desejo imediato,

O poder de mim desato;

 

Se é libertino que sou,

Noutrem interferir vou;

 

Mesmo ser independente

Quantas vezes calca gente!

 

Liberdade é encher a vida

Da força da criação,

A energia que convida

Dentro em cada coração.

 

 

Exterior

 

O que jamais esperar

O exterior, ao ser feliz,

Libertou-se de expectar,

Despegado de raiz.

 

Sente-se de vez completo,

Não depende de ninguém,

Nem de casa, nem de tecto,

Para a alegria que tem.

 

Se há tais coisas, é agradável,

É legítimo fruí-las,

Mas jamais é indispensável

Tê-las nas horas tranquilas.

 

 

Uso

 

Tudo o que tiver de seu

É dum uso temporário,

Até que passar deveu

A quem cá lhe sucedeu,

Como antes, no calendário,

Veio dos antepassados

Até seus passos cansados.

 

A propriedade é ilusão

Da morte sob o tacão.

 

 

Eu

 

O eu com que me identifico

E que tenho em tanta conta

É mais meu ego que fica,

Do imo após cortada a ponta.

 

Assim podado da Luz

Que do imo me impeliria,

A escuridão se reduz

Das horas todo o meu guia.

 

Sou bobo, da vida à grade,

Feito personalidade.

 

 

Esvaziar-me

 

Esvaziar-me de mim,

Ao gerar a vacuidade,

É que encontrar-me, por fim,

Me permite de verdade.

 

No vazio é que escutar

Posso a voz que me falar.

 

E há sempre um apelo do imo

A impelir-me para um cimo.

 

É tão íntimo, porém,

Que só no vazio vem.

 

 

Sinais

 

Deus nunca esteve tão perto

Nem tão longe como agora:

Toda a parte, a toda a hora,

São sinais a descoberto.

 

Não entendes o sentido?

Mas percebes a função:

Ao mundo deitas a mão,

Não vá ser ele engolido.

 

O abismo é da presunção,

Da luxúria, da avareza

Que acumula aqui riqueza

E os demais deixa sem pão,

 

E o mais que houver para além...

É tanto que a tentação

Tomba na desolação.

Só que há um sonho no que vem...

 

A dúvida, a ansiedade,

O ânimo eclipsam ao mundo.

Nas artes, porém, fecundo

Rasto aflora doutra idade.

 

 

Aponta

 

Nem sempre um abraço

Aponta um amigo,

É acaso o cansaço

Da falta de abrigo.

 

E do abraço a falta

Revela o desgosto

De quenquer que, em alta,

Nunca larga o posto.

 

Alguém que te espera

E dum patamar

Te olha doutra era

De cima a chamar.

 

 

Casal

 

Somos casal como os mais,

Amando-se ternamente,

Serenos, pelos quintais

Que a vida vai pondo à frente.

 

Se a morte nos separar,

Sempre parte do outro fica

Com aquele que ficar

E parte deste se aplica

Ao outro, para a levar.

 

É inevitabilidade

Dum amor, quando nos fade.

 

 

Nada

 

Não há nada que eu consiga

Que o não consiga o amor.

Não há na História uma briga,

Uma mudança de humor,

Senão na aragem do vento

Que sopra tal sentimento.

 

É o amor duma mulher,

Duma causa, até de Deus,

Amor dum país qualquer,

Dum ideal, sonhos meus...

- Foi sempre esta força ingente

A acção do interveniente.

 

Assim é que, nem o vendo,

Viemos crescendo, crescendo...

 

 

Comum

 

A vida em comum nos traz

Todo o saber dos caminhos.

A coragem é capaz,

Da amizade com os vinhos,

Daquele abraço tenaz

Que agarra o simples, a rir,

Que nós tememos sentir.

 

 

Morte

 

Que é que a morte significa?

Andar de cá para lá,

Morre aqui, nasce acolá,

Volta cá, se isto complica,

Ou então para gozar

A festa de iluminar?

 

Nosso imo que é deus-em-nós

Nunca morre nem renasce,

Eternos amores pasce,

Ata cá e lá com seus nós.

E são estas ataduras

Aos demais imos que apuras.

 

Umas boas, outras más,

Eles no-las servem todas,

Do Cosmos vivendo as bodas,

Imos de tudo por trás.

E assim cá nos acompanham:

Connosco, ao ganharmos, ganham.

 

 

Ligar

 

Um dia a morte me espera

Num lugar por ora oculto.

Não terei medo da fera

No encontro de vez inulto.

 

Levarei, em tudo, em mim

Ânsia tanta de repouso

Que, no caminho sem fim,

O despojamento, enfim,

Me entrega à ternura que ouso.

 

 

Mil

 

A vida são mil acções

Sempre em primeira pessoa.

Às vezes abro os portões

E somos nós que então pões

No acto que nos apregoa.

 

Há muito cego que esquece

O mundo donde viemos

E recusa abrir a messe

Ao mundo que nos falece

Para onde caminhemos.

 

Ora, a todos nos traduz

Sermos nós filhos da Luz

 

Que o trilho nos alumia

Do que é nossa eterna Via.

 

 

Doença

 

Doença não é castigo.

Todo o Cosmos é um ser vivo

A servir-nos ao postigo:

Nada tem de vingativo.

 

Não é de ser imperfeitos

Que morremos, nem culpados,

Nem heróis... Pelos trejeitos,

São só de vida traslados.

 

A vida em ciclos se cria

Para então se renovar.

A morte é só uma tranvia:

- Cá ou lá é o mesmo o lar.

 

 

Acreditarmos

 

Nós só nos desenvolvemos

Se acreditarmos em nós.

Da doença é o que tiremos,

Medindo os contras e os prós.

 

Só se irá curar quem conta

Com a centelha de vida

Que temos por nossa conta.

Se vem morte após tal lida,

 

Não é de nós nos perdermos,

- É que é hora de outro sermos.

 

 

Tudo

 

Tudo há-de ter um propósito.

Pode uma vida existir

Sem que do rico compósito

Venha um sentido bulir?

 

Tudo tem uma missão.

Sou o que de mim fizer

Para que o amor então

Que no fim formos colher

 

Corresponda ali aos cimos

Do amor que distribuímos.

 

 

Esforço

 

A vida é uma escadaria

Com infindos patamares.

Descer é fácil: caía.

Já, se for para trepares,

 

É um esforço de vontade,

Um desejo de atingir.

Se escorregar te persuade,

É um degrau perder onde ir.

 

Toda a queda traz lesões.

As físicas importantes

São o menos de ilusões

Que lesarão teus instantes.

 

 

Sempre

 

Que para sempre vivemos

Nem vale a pena pensar,

Nem que não envelhecemos

Ou até que não sofremos

Da partida com que arcamos

Daqueles a quem amamos.

 

Mesmo o mais duro dos duros

Morrerá um pouco por dentro

Quando, na vida em apuros,

Atingido for no centro

E em tais momentos medonhos

Se desfizerem os sonhos.

 

 

Riqueza

 

A riqueza é integridade,

De perdão capacidade,

 

Coragem com que metemos

O peito à vida que temos,

 

O exemplo que motivou

Os outros a caminhar

De cabeça erguida, em voo

Contra o medo que alastrar.

 

 

Laborar

 

Laborar presta um serviço

A mim mais a quem trabalho.

Qualidade e jeito: o viço

Que garante o que ali valho.

 

Depois do jeito é o suor

Que, com tempo, o que implemento

Me dará, no que edulcore,

O que apelam de talento.

 

 

Sonho

 

O sonho é que nos distingue,

Não a vitória ou derrota.

Para que uma obra vingue,

É apregoar-lhe a boa nota.

 

Gera a vida cultural

Da energia que contém,

Exala força moral,

Dá esperança de ir além.

 

Dá poder a qualquer arte,

Ânsia de não ficar quieto:

Não sou eu aqui aparte,

Somos nós, o céu é o tecto!

 

Urge criar, permanente,

Criar seja lá o que for,

Criar para toda a gente,

Por todos, que é o bem melhor.

 

 

 

Crêem

 

Homens há que em dada altura

Deus crêem que é de seu lado.

Nem sequer se lhes figura

Que outro é o lado que me apura:

O de ser de Deus traslado.

Põem Deus a seu serviço

E é da História sempre o enguiço.

 

 

Digo

 

Nunca digo o que é verdade,

Verdade é sempre o que busco

Mas de cuja realidade

Só entrevejo um lusco-fusco.

 

A vida inteira é procura,

Verdade nunca se apura.

 

Trepamos, porém, degraus

E vamos saltando vaus.

 

A aurora vou entrevendo

No que sonho e vou vencendo.

 

 

Música

 

Também é música a pausa,

Entre átomos, só vazio,

Tanto vazio no mundo!

Da fecundidade a causa

Vem de quanto silencio,

Vazio de que me inundo.

 

De repente, sem saber,

Vejo em mim mundo a crescer.

 

 

Apoiar-se

 

Um homem, para ser livre,

Tem de apoiar-se num muro:

Na receita de gengibre,

Na fé, num uso que apuro,

Em qualquer ideologia,

Até numa fantasia...

 

- Apoio duma alavanca

Donde após o mundo arranca.

 

 

Brilha

 

Quando o mundo é mais soturno,

Mais preciso de lembrar

Quão mais brilha em céu nocturno

Da lua cheia o luar:

Que beleza luminosa

O centro da vida goza!

 

Os momentos de alegria,

Momentos de exaltação,

Provam-nos, no dia-a-dia,

Das trevas no coração,

Que aí brilha, inextinguível,

Luz quase, quase atingível.

 

 

Dinheiro

 

O dinheiro o que nos faz

É vir aqui ampliar-nos.

 

Se eu for um palerma atrás

Duma fortuna a chegar-nos,

Serei um palerma imenso

Com a fortuna que venço.

 

Se inclinado a bem-fazer,

O dinheiro é o meu poder

De vida fora, entrementes,

Agir gestas excelentes.

 

 

Primeiro

 

O primeiro beijo

Durou só segundos,

Contudo este harpejo

Corre infindos mundos

 

E da vida o muro

Com ele é que o furo.

 

Somente findara

Se a vida acabara.

 

 

Noutra

 

Quando lemos, lemos, lemos,

Vivemos noutra cidade,

Um mundo que ali sonhemos.

Quando findamos, fadário

Desta nossa alacridade,

É cair dum campanário

Na lama que nos degrade.

Mas da memória dos sinos

À vida compomos hinos.

 

 

Enquanto

 

Enquanto a guerra longe era,

Gritava que os esmagávamos.

Quando chegou fria e fera,

Fugiu, que nem o enxergávamos.

 

Por, assustado, ter medo,

Julga já tudo perdido,

Já não há bala nem credo.

Ganharmos?! Não faz sentido...

 

- Há, porém, vivos e mortos

A endireitar trilhos tortos.

 

E, em direitura ao porvir,

São quem mais corre a seguir.

 

 

Carácter

 

De carácter a mulher,

Dum poltrão apaixonada?!

Que é que nele andou a ver?

- É o amor, nunca diz nada:

Na escuridão a esconder

Tem sempre uma madrugada.

De repente, até um herói

Finda a esconder o que foi...

 

 

Amesquinha

 

O seu par ama e respeita

Suas próprias diferenças

Ou amesquinha e enjeita

O que adora e, desta feita,

Faz que disto as parecenças

Sejam tão disparatadas

Que tais faz suas pegadas?

 

 

Valores

 

Os valores são bem mais

Que credo religioso,

Política ideologia.

São dominantes reais

Na relação que tenhais,

Na abordagem a que coso

Da vida a teia e a via.

Seja qual for o feitio

Que eu tiver no que desfio.

 

 

Romântico

 

O amor romântico pende

Das hormonas da paixão:

É a dopamina que rende

Do prazer a sensação

Mais a norepinefrina

Que excitação toda empina.

 

São a droga inicial

Que nos afasta do real.

 

Como, ora, da droga é lema,

Depressa vão do sistema.

 

Quem se deixou viciar

Há-de sempre querer mais,

Dá cabo de qualquer lar,

Sem raízes nem ramais.

 

Um dia, ao sabor do vento,

Finda o relacionamento.

 

 

Paixão

 

Na paixão vivida outrora,

Bela, a generosidade!

Neste amor, porém, de agora,

Detesto a velocidade

Com que vai sair à pressa

A pôr noutrem a compressa...

 

Na paixão vivida outrora,

Adorava aquele ar sério.

Neste amor, porém, de agora,

Melhor é da fala o império:

Mais convívio, mais pascigos

Oferta a nossos amigos.

 

Na paixão vivida outrora,

Que profissão realizada!

Neste amor, porém, de agora,

No labor menos viciada

E mais um pouco caseira

Quão melhor era a parceira!

 

Na paixão vivida outrora,

Que terna com a mãe dela!

Neste amor, porém, de agora,

Gostava que uma parcela

Do telefone cortara

Que tanta vez me depara.

 

Na paixão vivida outrora,

Mas que fantástico aspecto!

Neste amor, porém, de agora,

De beleza no projecto

É bom que tempo e dinheiro

Menos gaste do parceiro.

 

Na paixão vivida outrora,

Que romântica e que amante!

Neste amor, porém, de agora

Só queria que um instante

Parara de pressionar

Para amor lhe confessar.

 

Na paixão vivida outrora,

A franqueza lhe adorava.

Neste amor, porém, de agora,

Só espero a hora em que trava

De me disparar mil queixas

Como de tragédia deixas.

 

Na paixão vivida outrora,

Mal ligava ela à riqueza.

Neste amor, porém, de agora,

Bom é se melhor a preza,

Dinheiro tenta ganhar

Para um melhor termos lar.

 

Na paixão vivida outrora,

Que bem partilhava afectos!

Neste amor, porém, de agora

Só queria que os concretos

Afectos em si guardara,

Que então menos me esgotara.

 

Na paixão vivida outrora,

Era tudo uma euforia.

Neste amor, porém, de agora,

Da infância as perdas que havia

Tomam um peso premente:

São mesmo a linha da frente.

 

 

Choque

 

Ante o choque inicial,

Todos nos apercebemos

Da relevância vital

Dos laços que entretecemos

No lar, na comunidade:

Logo há solidariedade.

 

Passado, porém, o choque,

Um trauma antigo adiado,

Feridas fundas ao toque,

Desespero incontrolado

Tanto alteram nosso mundo

Que o destroem desde o fundo.

 

Remata o divórcio então

A insolúvel confusão.

 

 

Morte

 

A morte do pai ou mãe

Traz à tona a dor oculta.

Poucos se preparam bem

A enfrentar o que sepulta:

 

Ferida aberta de infância

Toma então mais relevância

 

E só com amor maduro

Salto além do que lhe apuro.

 

 

Extremo

 

Quando os nossos sentimentos

Em extremo são primários,

Retornarão, nestes ventos,

Aos berços originários:

Quão mais o bebé chorava

Mais depressa a cura achava.

 

Em adultos, todavia,

O nosso grito de raiva

Na batalha não cabia

E o parceiro onde não caiba

Pode mesmo reagir

Nos abatendo a seguir.

 

 

Entrega

 

O conserto com remendos,

Na casa como no lar

É como os gestos pudendos

A entrega toda a adiar.

 

Tanto adiam tantas vezes

Que as outras prioridades

Passam à frente, soezes,

E ao remendo não persuades.

 

Os estragos serão tantos

Que o casal, ao dar por ela,

Não tem como evitar prantos

Ante os custos da sequela.

 

Então o casal se esvai.

Juntos embora no espaço,

Cada qual em tudo trai,

Não há mais do amor o abraço.

 

 

Papel

 

O papel desempenhado

Pelo dinheiro na vida

Em cada lar, lado a lado,

Muda do metro a medida.

 

E as raízes são profundas,

Seja o que for em que abundas.

 

Se pretendes ignorá-lo,

Vai rasgar-te disto o abalo.

 

 

Toda

 

Toda a religião impõe,

Toda a religião proíbe:

É abuso quanto propõe,

É abuso de quanto inibe...

 

- Vera espiritualidade

Por que portas é que a invade?

 

Ainda por cima todas

Tropeçam nas mesmas codas...

 

 

Urgências

 

O amor não maltrata, humilha,

Às urgências do hospital

Ninguém manda onde ele brilha,

Não põe ao canto, afinal,

Ninguém a chorar, à brisa,

De quanto ele aterroriza.

 

O amor não deseja a morte.

Se é o invés que tem na mira,

Não é de amor um transporte,

Vivendo anda uma mentira.

O amor é suave, é bom,

Nem rancor guarda em seu tom.

 

 

Abusador

 

Num casamento abusivo

O abusador quebra o voto,

Não é casamento vivo

É lar morto o que conoto.

 

É uma pena de prisão

E já será muita sorte

Se é condicional então

E não a pena de morte.

 

 

Adulto

 

Ser um adulto maduro

É conhecer muito aquilo

Que recriamos, no apuro

De pais, cônjuges, do silo

 

Dos problemas não saldados

Com nossos progenitores,

A família, os mais amados,

De nosso ambiente os cultores...

 

- É de alicerces instáveis

Quem ignore estas variáveis.

 

 

Marcas

 

Todos connosco acartamos

Marcas fundas familiares

E as feridas transportamos

Da infância, como avatares.

 

Conhecer intimamente

É compreender, visceral,

O efeito surpreendente

Desta raiz primordial.

 

 

Infância

 

Na infância os amigos foram,

Para a própria identidade,

Pedra angular com que escoram

Minha vivenda em verdade.

 

Fomos nós que os escolhemos

E eles a nós: iguais remos

 

Remam por nós vida adiante

Na esteira de cada instante.

 

 

Filiação

 

Filiação religiosa

Nada tem a ver com fé,

Esta na raiz se entrosa

De cada qual, lá de pé,

E marca-lhe a identidade

Do bem contra o mal que a invade.

 

Quem isto nunca entendeu

É que vai pegar em armas,

Na terra a impingir um céu

Que são só dum crime Karmas.

Por meras formalidades

Troca as interioridades.

 

Crê que anda a salvar o mundo

E é só trapaça, no fundo.

 

 

Alimentar

 

Alimentar é nutrir

Mas é muito mais do que isso:

Importa o que preferir,

Quando e onde é o compromisso,

 

Com quem o irei fruir,

Mais o alcance a atribuir

 

A todos estes aspectos,

Que assim se entrançam afectos.

 

 

Repentino

 

Repentino furacão

Esmaga o barco em que segues,

Muitos atira ao cachão

E salvá-los não consegues.

 

Porém, nas águas revoltas,

Alguns logram agarrar-se

A destroços, peças soltas

Do navio a escaqueirar-se.

 

Flutuam até à costa

Nos pedaços do navio

Destruído, numa aposta

Num pessoal desafio.

 

O que parece quebrado

Pode ainda conduzir

Ao seguro noutro lado,

Outra vida a produzir.

 

Podemos acreditar

Que, perdidos no oceano,

Nos estamos a afogar...

- E a ajuda vem doutro plano!

 

O que parece partido

Poderá ser transformado

Num salva-vidas erguido

Sobre o mar encapelado

 

Que à terra, com esperança

Nos devolve em segurança.

 

 

Pedaços

 

Há pedaços mui quebrados

Num lar já com muitos anos.

Bem gostávamos que os brados

Não foram por estes danos!

Mas a vida não funciona

Senão trazendo-os à tona.

 

As grandes dificuldades

Ensinam-nos a viver

Deveras, pelas idades,

Se nos permitirmos ver:

São aquele desafio

De eu a vau transpor o rio.

 

 

Cercado

 

Desde sempre que o poder

É cercado de mistério.

É a lonjura onde ele quer

Simular de ente sidéreo,

Longe a fazer-nos sinais

Para o comum dos mortais.

 

A criatura vulgar

Sobre que usa autoridade

Deve-se distanciar,

Sem demais curiosidade.

Sempre há resistido quem

Disto não quer ser refém.

 

Há quem tente vislumbrar

Além do publicitado,

O objectivo a descascar,

O oculto a ser desvendado:

Do real manipulador,

Um poder conspirador.

 

É sobre falsos mistérios

Que o poder cimenta impérios.

 

 

Combinam

 

Todos os totalitários

Combinam todas as coisas

Para o amor ser impossível:

São governos, doutrinários,

Religiões onde repoisas,

O dogma, por mais credível...

 

- E queixamo-nos, de horror,

Dum mundo tão sem amor!

 

 

Povo

 

Pode o povo repousar,

Que algumas inteligências

Irão por ele pensar,

Decidir, dele em lugar,

De ser feliz que exigências

Lhe serão de contemplar...

 

É o que lhe é mais favorável

Num destino irremediável.

 

- História além a desgraça

Sempre por aqui perpassa.

 

 

Enganar

 

Mas com que facilidade

Um homem inteligente

Se enganar deixa, em verdade,

Pela mulher que ama, premente!

É a música com que dança

No coração a esperança.

 

Dum desgraçado o horizonte

Sempre é cheio de ilusões,

Cúmplice que lança a ponte

Ao engano e nem supões.

À mulher a mão lhe entrega

O véu com que ela nos cega.