MÉTRICA REGULAR
O SER
Nada
Está tudo em muito pouco:
A criança encerra o homem,
O encéfalo, o pensamento
Do sábio todo e do louco,
Os olhos no infindo somem...
É disto que me alimento,
É o meu infalível bodo:
- Ter, em cada nada, o Todo.
Entra
Alguém entra em nossa vida
Num mui crítico momento,
De nós toma conta à altura,
Tudo bem finda em seguida.
Recebemos linimento
Sem retribuir pela cura.
O curativo virá
Quando então menos se espera
Mas quando mais se precisa.
- Um desígnio maior há
Que por trás do mundo opera
E que a custo se divisa.
Dogma
Em ciência ou sabedoria
O dogma é falacioso
Se a verdade compendia
Como de vez em meu gozo.
É que a verdade completa
Mora além de toda a meta.
E é bem mais enganador
Se lhe dou sestro divino:
Perco de Deus o teor
De Infinito a que me inclino,
Preso a uma qualquer charada
De palavra revelada.
Esta, em vez de ser fermento
A levedar minha vida,
De hora a hora em acrescento
Com nova luz intuída,
Entaipa-me olhos e ouvidos:
- Findo um preso sem sentidos.
Desvendar
Desvendar qualquer passado,
Só olhando para o presente,
Dele fatal resultado.
E vislumbrar o futuro,
Só olhando para o presente,
Casa donde o inauguro.
Somos mesmo o somatório
De todo este reportório.
Determinam
Nem os números nem astros
Determinam o caminho.
De meu livre arbítrio rastros
Vou talhando, ninho a ninho:
Minhas escolhas diárias,
Ao reagir aos desafios,
É que minhas rotas viárias
Traçam com meus atavios.
Dali vem sempre o desenho
Do que sou e do que tenho.
Céptico
O céptico é quem mais crê:
Crê na falta de sentido,
Na dúvida e na incerteza,
Onde faz mais finca-pé
Que qualquer crente envolvido
Na crença incerta que preza.
Acaba a ser tão fanático
Tal qualquer crente dogmático.
E finda tão assassino
Tal terrorista divino.
Frente e verso, igual a asneira
Que da morte nos abeira.
Encaro
Se me encaro sem meu imo,
Faísca de Deus em mim,
Não sou mais Eu, sou meu Ego,
Meu peito inflando sem fim.
Penduro-me a mim no cimo,
Tal se o cimo fora um prego
A que sozinho me arrimo.
Do presente um aconchego
No colo da Infinidade
Não o gozo nem delego,
Sei lá se é mesmo verdade!
Cadáveres do passado
São aquilo que carrego
E do porvir aguardado
Cultivo o desassossego.
Um presente em tal assente
É deveras um ausente.
Ave
Qualquer ave duas asas
Há-de ter para voar,
As de agir e devotar,
Mais a cauda aonde aponta,
Afinal, quais são as casas
Para onde o saber conta.
Somente então configuras
Teu voo pelas alturas.
Agir, devotar, saber:
Teu trio de vir a ser.
Desenvolver-se
Desenvolver-se é mudar,
Não tanto pelo exterior
(De cônjuge ou dum emprego,
De país, do que calhar...),
Para após continuar
A pessoa que se for,
Com igual desassossego.
Real mudança é interior
Que permite e persuade
A meu caminho do Amor,
Minha íntima verdade,
Para, aí permanecendo,
Eu cada vez mais ir sendo,
Meu pensamento e acção
Me espelhando o coração.
Poeira
Toda a poeira dos olhos
Vem de sete anos de vida
Inocente e sem escolhos,
Confiante sem medida:
O que dizem por inteiro
À criança desprendida
É decerto verdadeiro.
Como após descobrir pleno
Do alicerce um vil veneno?
Dum alicerce de crença
Como banir-lhe a sentença?
Doem
Não doem as costas, não,
Doem cargas que aí vão.
Não doem olhos na liça,
O que dói sempre é injustiça.
Não dói a cabeça lesa,
Mas que pensamentos pesa.
Não dói a garganta, dói
O que expresso nunca foi
Ou então é dor de raiva
Por quanto à vida não caiba.
Não dói o estômago, fere
O que nunca se digere...
- É a dor ali expressão
Do que no íntimo haja então.
Integrou
Alguém que tem auto-estima
Não tem ciúme ou inveja,
Já integrou, de baixo a cima,
O ser único que seja:
Que ser único é, assim,
Ninguém ser igual a mim.
Não há, pois, comparação
Entre os que diversos são.
Nem
Nem meditar nem orar
Têm poder nem resultado
Se o intuito não for dar
Ao outro, o beneficiado.
Se for tudo para mim,
Meu imo matei assim.
Nem há espiritualidade
Com meu imo atrás da grade.
- Das religiões o tropeço
Tem aqui sempre o começo.
Teste
Teste maior a riqueza
E bem mais desafiante
É que o teste da pobreza:
É ganância e avareza
A picar-nos vida adiante.
O ego é sempre ganancioso,
Que só o lucro lhe dá gozo.
O ego é sempre um avarento:
Que bem lhe basta ao alento?
Avarento
O avarento vive ansioso
Por aquilo que não tem,
E inda nem fruiu do gozo
De ao dispor dispor dum bem!
Cada vez mais infeliz,
Quanto mais tiver mais quer,
Mais medo tem de raiz
De tudo afinal perder.
Tem de desfazer-se de algo?
- Que triste abismo ali galgo!
Conquistar
Conquistar a riqueza material
Deveras não será prosperidade.
A virtude interior que me persuade
É que conduz à paz, felicidade,
Em rota que se antolha sem igual.
Deveras será meu apenas quanto
Eu puder possuir após morrer:
Daqui não levarei nada sequer,
Senão a consciência que tiver
E a atitude vivida no entretanto.
Se abundância aos demais eu desejar,
Pensar prosperidade colectiva,
Retorna-me a intenção tão positiva
Que, se der aos demais o que se esquiva,
Os milagres irão proliferar.
Nada a felicidade com dinheiro
Tem a ver: é do amor que for pioneiro.
Feliz
Ou és feliz com o que tens agora
Ou não serás feliz jamais então.
Teu imo se acomoda a toda a hora
A tudo, mesmo à morte havida em vão.
O teu ego é que sempre te há-de achar
Que alguma coisa ali te anda a faltar.
Objectos, condições darão prazer,
Não alegria: do imo há-de nascer.
Ninguém precisa de deter-se em nada
Para alegre seguir toda a jornada.
Verdadeira
Verdadeira confissão
É uma prática interior
De tomar a decisão
De se abster daquela acção
Má seja para quem for.
Se após com acto virtuoso
Colmatar o prejuízo
Que antes causou tenebroso,
Liberta-se então, gozoso,
Deste mal de seu aviso.
Prazer
O prazer terreno
Dá-nos sempre gozo.
A felicidade
Nele nunca entroso,
Que o ego é que, pleno,
Tal pendor invade.
Ele é que exterior
Pede e manipula
Outrem, a alcançar
O que quer-lhe a gula.
Renuncio à dor
Ao renunciar
Do apego ao prazer:
Deixo de sofrer.
Liberdade
Liberdade não é tudo
Fazer do que bem quiser.
Isto é o ego, em tom agudo,
A proibir meu próprio ser:
Se é um desejo imediato,
O poder de mim desato;
Se é libertino que sou,
Noutrem interferir vou;
Mesmo ser independente
Quantas vezes calca gente!
Liberdade é encher a vida
Da força da criação,
A energia que convida
Dentro em cada coração.
Exterior
O que jamais esperar
O exterior, ao ser feliz,
Libertou-se de expectar,
Despegado de raiz.
Sente-se de vez completo,
Não depende de ninguém,
Nem de casa, nem de tecto,
Para a alegria que tem.
Se há tais coisas, é agradável,
É legítimo fruí-las,
Mas jamais é indispensável
Tê-las nas horas tranquilas.
Uso
Tudo o que tiver de seu
É dum uso temporário,
Até que passar deveu
A quem cá lhe sucedeu,
Como antes, no calendário,
Veio dos antepassados
Até seus passos cansados.
A propriedade é ilusão
Da morte sob o tacão.
Eu
O eu com que me identifico
E que tenho em tanta conta
É mais meu ego que fica,
Do imo após cortada a ponta.
Assim podado da Luz
Que do imo me impeliria,
A escuridão se reduz
Das horas todo o meu guia.
Sou bobo, da vida à grade,
Feito personalidade.
Esvaziar-me
Esvaziar-me de mim,
Ao gerar a vacuidade,
É que encontrar-me, por fim,
Me permite de verdade.
No vazio é que escutar
Posso a voz que me falar.
E há sempre um apelo do imo
A impelir-me para um cimo.
É tão íntimo, porém,
Que só no vazio vem.
Sinais
Deus nunca esteve tão perto
Nem tão longe como agora:
Toda a parte, a toda a hora,
São sinais a descoberto.
Não entendes o sentido?
Mas percebes a função:
Ao mundo deitas a mão,
Não vá ser ele engolido.
O abismo é da presunção,
Da luxúria, da avareza
Que acumula aqui riqueza
E os demais deixa sem pão,
E o mais que houver para além...
É tanto que a tentação
Tomba na desolação.
Só que há um sonho no que vem...
A dúvida, a ansiedade,
O ânimo eclipsam ao mundo.
Nas artes, porém, fecundo
Rasto aflora doutra idade.
Aponta
Nem sempre um abraço
Aponta um amigo,
É acaso o cansaço
Da falta de abrigo.
E do abraço a falta
Revela o desgosto
De quenquer que, em alta,
Nunca larga o posto.
Alguém que te espera
E dum patamar
Te olha doutra era
De cima a chamar.
Casal
Somos casal como os mais,
Amando-se ternamente,
Serenos, pelos quintais
Que a vida vai pondo à frente.
Se a morte nos separar,
Sempre parte do outro fica
Com aquele que ficar
E parte deste se aplica
Ao outro, para a levar.
É inevitabilidade
Dum amor, quando nos fade.
Nada
Não há nada que eu consiga
Que o não consiga o amor.
Não há na História uma briga,
Uma mudança de humor,
Senão na aragem do vento
Que sopra tal sentimento.
É o amor duma mulher,
Duma causa, até de Deus,
Amor dum país qualquer,
Dum ideal, sonhos meus...
- Foi sempre esta força ingente
A acção do interveniente.
Assim é que, nem o vendo,
Viemos crescendo, crescendo...
Comum
A vida em comum nos traz
Todo o saber dos caminhos.
A coragem é capaz,
Da amizade com os vinhos,
Daquele abraço tenaz
Que agarra o simples, a rir,
Que nós tememos sentir.
Morte
Que é que a morte significa?
Andar de cá para lá,
Morre aqui, nasce acolá,
Volta cá, se isto complica,
Ou então para gozar
A festa de iluminar?
Nosso imo que é deus-em-nós
Nunca morre nem renasce,
Eternos amores pasce,
Ata cá e lá com seus nós.
E são estas ataduras
Aos demais imos que apuras.
Umas boas, outras más,
Eles no-las servem todas,
Do Cosmos vivendo as bodas,
Imos de tudo por trás.
E assim cá nos acompanham:
Connosco, ao ganharmos, ganham.
Ligar
Um dia a morte me espera
Num lugar por ora oculto.
Não terei medo da fera
No encontro de vez inulto.
Levarei, em tudo, em mim
Ânsia tanta de repouso
Que, no caminho sem fim,
O despojamento, enfim,
Me entrega à ternura que ouso.
Mil
A vida são mil acções
Sempre em primeira pessoa.
Às vezes abro os portões
E somos nós que então pões
No acto que nos apregoa.
Há muito cego que esquece
O mundo donde viemos
E recusa abrir a messe
Ao mundo que nos falece
Para onde caminhemos.
Ora, a todos nos traduz
Sermos nós filhos da Luz
Que o trilho nos alumia
Do que é nossa eterna Via.
Doença
Doença não é castigo.
Todo o Cosmos é um ser vivo
A servir-nos ao postigo:
Nada tem de vingativo.
Não é de ser imperfeitos
Que morremos, nem culpados,
Nem heróis... Pelos trejeitos,
São só de vida traslados.
A vida em ciclos se cria
Para então se renovar.
A morte é só uma tranvia:
- Cá ou lá é o mesmo o lar.
Acreditarmos
Nós só nos desenvolvemos
Se acreditarmos em nós.
Da doença é o que tiremos,
Medindo os contras e os prós.
Só se irá curar quem conta
Com a centelha de vida
Que temos por nossa conta.
Se vem morte após tal lida,
Não é de nós nos perdermos,
- É que é hora de outro sermos.
Tudo
Tudo há-de ter um propósito.
Pode uma vida existir
Sem que do rico compósito
Venha um sentido bulir?
Tudo tem uma missão.
Sou o que de mim fizer
Para que o amor então
Que no fim formos colher
Corresponda ali aos cimos
Do amor que distribuímos.
Esforço
A vida é uma escadaria
Com infindos patamares.
Descer é fácil: caía.
Já, se for para trepares,
É um esforço de vontade,
Um desejo de atingir.
Se escorregar te persuade,
É um degrau perder onde ir.
Toda a queda traz lesões.
As físicas importantes
São o menos de ilusões
Que lesarão teus instantes.
Sempre
Que para sempre vivemos
Nem vale a pena pensar,
Nem que não envelhecemos
Ou até que não sofremos
Da partida com que arcamos
Daqueles a quem amamos.
Mesmo o mais duro dos duros
Morrerá um pouco por dentro
Quando, na vida em apuros,
Atingido for no centro
E em tais momentos medonhos
Se desfizerem os sonhos.
Riqueza
A riqueza é integridade,
De perdão capacidade,
Coragem com que metemos
O peito à vida que temos,
O exemplo que motivou
Os outros a caminhar
De cabeça erguida, em voo
Contra o medo que alastrar.
Laborar
Laborar presta um serviço
A mim mais a quem trabalho.
Qualidade e jeito: o viço
Que garante o que ali valho.
Depois do jeito é o suor
Que, com tempo, o que implemento
Me dará, no que edulcore,
O que apelam de talento.
Sonho
O sonho é que nos distingue,
Não a vitória ou derrota.
Para que uma obra vingue,
É apregoar-lhe a boa nota.
Gera a vida cultural
Da energia que contém,
Exala força moral,
Dá esperança de ir além.
Dá poder a qualquer arte,
Ânsia de não ficar quieto:
Não sou eu aqui aparte,
Somos nós, o céu é o tecto!
Urge criar, permanente,
Criar seja lá o que for,
Criar para toda a gente,
Por todos, que é o bem melhor.
Crêem
Homens há que em dada altura
Deus crêem que é de seu lado.
Nem sequer se lhes figura
Que outro é o lado que me apura:
O de ser de Deus traslado.
Põem Deus a seu serviço
E é da História sempre o enguiço.
Digo
Nunca digo o que é verdade,
Verdade é sempre o que busco
Mas de cuja realidade
Só entrevejo um lusco-fusco.
A vida inteira é procura,
Verdade nunca se apura.
Trepamos, porém, degraus
E vamos saltando vaus.
A aurora vou entrevendo
No que sonho e vou vencendo.
Música
Também é música a pausa,
Entre átomos, só vazio,
Tanto vazio no mundo!
Da fecundidade a causa
Vem de quanto silencio,
Vazio de que me inundo.
De repente, sem saber,
Vejo em mim mundo a crescer.
Apoiar-se
Um homem, para ser livre,
Tem de apoiar-se num muro:
Na receita de gengibre,
Na fé, num uso que apuro,
Em qualquer ideologia,
Até numa fantasia...
- Apoio duma alavanca
Donde após o mundo arranca.
Brilha
Quando o mundo é mais soturno,
Mais preciso de lembrar
Quão mais brilha em céu nocturno
Da lua cheia o luar:
Que beleza luminosa
O centro da vida goza!
Os momentos de alegria,
Momentos de exaltação,
Provam-nos, no dia-a-dia,
Das trevas no coração,
Que aí brilha, inextinguível,
Luz quase, quase atingível.
Dinheiro
O dinheiro o que nos faz
É vir aqui ampliar-nos.
Se eu for um palerma atrás
Duma fortuna a chegar-nos,
Serei um palerma imenso
Com a fortuna que venço.
Se inclinado a bem-fazer,
O dinheiro é o meu poder
De vida fora, entrementes,
Agir gestas excelentes.
Primeiro
O primeiro beijo
Durou só segundos,
Contudo este harpejo
Corre infindos mundos
E da vida o muro
Com ele é que o furo.
Somente findara
Se a vida acabara.
Noutra
Quando lemos, lemos, lemos,
Vivemos noutra cidade,
Um mundo que ali sonhemos.
Quando findamos, fadário
Desta nossa alacridade,
É cair dum campanário
Na lama que nos degrade.
Mas da memória dos sinos
À vida compomos hinos.
Enquanto
Enquanto a guerra longe era,
Gritava que os esmagávamos.
Quando chegou fria e fera,
Fugiu, que nem o enxergávamos.
Por, assustado, ter medo,
Julga já tudo perdido,
Já não há bala nem credo.
Ganharmos?! Não faz sentido...
- Há, porém, vivos e mortos
A endireitar trilhos tortos.
E, em direitura ao porvir,
São quem mais corre a seguir.
Carácter
De carácter a mulher,
Dum poltrão apaixonada?!
Que é que nele andou a ver?
- É o amor, nunca diz nada:
Na escuridão a esconder
Tem sempre uma madrugada.
De repente, até um herói
Finda a esconder o que foi...
Amesquinha
O seu par ama e respeita
Suas próprias diferenças
Ou amesquinha e enjeita
O que adora e, desta feita,
Faz que disto as parecenças
Sejam tão disparatadas
Que tais faz suas pegadas?
Valores
Os valores são bem mais
Que credo religioso,
Política ideologia.
São dominantes reais
Na relação que tenhais,
Na abordagem a que coso
Da vida a teia e a via.
Seja qual for o feitio
Que eu tiver no que desfio.
Romântico
O amor romântico pende
Das hormonas da paixão:
É a dopamina que rende
Do prazer a sensação
Mais a norepinefrina
Que excitação toda empina.
São a droga inicial
Que nos afasta do real.
Como, ora, da droga é lema,
Depressa vão do sistema.
Quem se deixou viciar
Há-de sempre querer mais,
Dá cabo de qualquer lar,
Sem raízes nem ramais.
Um dia, ao sabor do vento,
Finda o relacionamento.
Paixão
Na paixão vivida outrora,
Bela, a generosidade!
Neste amor, porém, de agora,
Detesto a velocidade
Com que vai sair à pressa
A pôr noutrem a compressa...
Na paixão vivida outrora,
Adorava aquele ar sério.
Neste amor, porém, de agora,
Melhor é da fala o império:
Mais convívio, mais pascigos
Oferta a nossos amigos.
Na paixão vivida outrora,
Que profissão realizada!
Neste amor, porém, de agora,
No labor menos viciada
E mais um pouco caseira
Quão melhor era a parceira!
Na paixão vivida outrora,
Que terna com a mãe dela!
Neste amor, porém, de agora,
Gostava que uma parcela
Do telefone cortara
Que tanta vez me depara.
Na paixão vivida outrora,
Mas que fantástico aspecto!
Neste amor, porém, de agora,
De beleza no projecto
É bom que tempo e dinheiro
Menos gaste do parceiro.
Na paixão vivida outrora,
Que romântica e que amante!
Neste amor, porém, de agora
Só queria que um instante
Parara de pressionar
Para amor lhe confessar.
Na paixão vivida outrora,
A franqueza lhe adorava.
Neste amor, porém, de agora,
Só espero a hora em que trava
De me disparar mil queixas
Como de tragédia deixas.
Na paixão vivida outrora,
Mal ligava ela à riqueza.
Neste amor, porém, de agora,
Bom é se melhor a preza,
Dinheiro tenta ganhar
Para um melhor termos lar.
Na paixão vivida outrora,
Que bem partilhava afectos!
Neste amor, porém, de agora
Só queria que os concretos
Afectos em si guardara,
Que então menos me esgotara.
Na paixão vivida outrora,
Era tudo uma euforia.
Neste amor, porém, de agora,
Da infância as perdas que havia
Tomam um peso premente:
São mesmo a linha da frente.
Choque
Ante o choque inicial,
Todos nos apercebemos
Da relevância vital
Dos laços que entretecemos
No lar, na comunidade:
Logo há solidariedade.
Passado, porém, o choque,
Um trauma antigo adiado,
Feridas fundas ao toque,
Desespero incontrolado
Tanto alteram nosso mundo
Que o destroem desde o fundo.
Remata o divórcio então
A insolúvel confusão.
Morte
A morte do pai ou mãe
Traz à tona a dor oculta.
Poucos se preparam bem
A enfrentar o que sepulta:
Ferida aberta de infância
Toma então mais relevância
E só com amor maduro
Salto além do que lhe apuro.
Extremo
Quando os nossos sentimentos
Em extremo são primários,
Retornarão, nestes ventos,
Aos berços originários:
Quão mais o bebé chorava
Mais depressa a cura achava.
Em adultos, todavia,
O nosso grito de raiva
Na batalha não cabia
E o parceiro onde não caiba
Pode mesmo reagir
Nos abatendo a seguir.
Entrega
O conserto com remendos,
Na casa como no lar
É como os gestos pudendos
A entrega toda a adiar.
Tanto adiam tantas vezes
Que as outras prioridades
Passam à frente, soezes,
E ao remendo não persuades.
Os estragos serão tantos
Que o casal, ao dar por ela,
Não tem como evitar prantos
Ante os custos da sequela.
Então o casal se esvai.
Juntos embora no espaço,
Cada qual em tudo trai,
Não há mais do amor o abraço.
Papel
O papel desempenhado
Pelo dinheiro na vida
Em cada lar, lado a lado,
Muda do metro a medida.
E as raízes são profundas,
Seja o que for em que abundas.
Se pretendes ignorá-lo,
Vai rasgar-te disto o abalo.
Toda
Toda a religião impõe,
Toda a religião proíbe:
É abuso quanto propõe,
É abuso de quanto inibe...
- Vera espiritualidade
Por que portas é que a invade?
Ainda por cima todas
Tropeçam nas mesmas codas...
Urgências
O amor não maltrata, humilha,
Às urgências do hospital
Ninguém manda onde ele brilha,
Não põe ao canto, afinal,
Ninguém a chorar, à brisa,
De quanto ele aterroriza.
O amor não deseja a morte.
Se é o invés que tem na mira,
Não é de amor um transporte,
Vivendo anda uma mentira.
O amor é suave, é bom,
Nem rancor guarda em seu tom.
Abusador
Num casamento abusivo
O abusador quebra o voto,
Não é casamento vivo
É lar morto o que conoto.
É uma pena de prisão
E já será muita sorte
Se é condicional então
E não a pena de morte.
Adulto
Ser um adulto maduro
É conhecer muito aquilo
Que recriamos, no apuro
De pais, cônjuges, do silo
Dos problemas não saldados
Com nossos progenitores,
A família, os mais amados,
De nosso ambiente os cultores...
- É de alicerces instáveis
Quem ignore estas variáveis.
Marcas
Todos connosco acartamos
Marcas fundas familiares
E as feridas transportamos
Da infância, como avatares.
Conhecer intimamente
É compreender, visceral,
O efeito surpreendente
Desta raiz primordial.
Infância
Na infância os amigos foram,
Para a própria identidade,
Pedra angular com que escoram
Minha vivenda em verdade.
Fomos nós que os escolhemos
E eles a nós: iguais remos
Remam por nós vida adiante
Na esteira de cada instante.
Filiação
Filiação religiosa
Nada tem a ver com fé,
Esta na raiz se entrosa
De cada qual, lá de pé,
E marca-lhe a identidade
Do bem contra o mal que a invade.
Quem isto nunca entendeu
É que vai pegar em armas,
Na terra a impingir um céu
Que são só dum crime Karmas.
Por meras formalidades
Troca as interioridades.
Crê que anda a salvar o mundo
E é só trapaça, no fundo.
Alimentar
Alimentar é nutrir
Mas é muito mais do que isso:
Importa o que preferir,
Quando e onde é o compromisso,
Com quem o irei fruir,
Mais o alcance a atribuir
A todos estes aspectos,
Que assim se entrançam afectos.
Repentino
Repentino furacão
Esmaga o barco em que segues,
Muitos atira ao cachão
E salvá-los não consegues.
Porém, nas águas revoltas,
Alguns logram agarrar-se
A destroços, peças soltas
Do navio a escaqueirar-se.
Flutuam até à costa
Nos pedaços do navio
Destruído, numa aposta
Num pessoal desafio.
O que parece quebrado
Pode ainda conduzir
Ao seguro noutro lado,
Outra vida a produzir.
Podemos acreditar
Que, perdidos no oceano,
Nos estamos a afogar...
- E a ajuda vem doutro plano!
O que parece partido
Poderá ser transformado
Num salva-vidas erguido
Sobre o mar encapelado
Que à terra, com esperança
Nos devolve em segurança.
Pedaços
Há pedaços mui quebrados
Num lar já com muitos anos.
Bem gostávamos que os brados
Não foram por estes danos!
Mas a vida não funciona
Senão trazendo-os à tona.
As grandes dificuldades
Ensinam-nos a viver
Deveras, pelas idades,
Se nos permitirmos ver:
São aquele desafio
De eu a vau transpor o rio.
Cercado
Desde sempre que o poder
É cercado de mistério.
É a lonjura onde ele quer
Simular de ente sidéreo,
Longe a fazer-nos sinais
Para o comum dos mortais.
A criatura vulgar
Sobre que usa autoridade
Deve-se distanciar,
Sem demais curiosidade.
Sempre há resistido quem
Disto não quer ser refém.
Há quem tente vislumbrar
Além do publicitado,
O objectivo a descascar,
O oculto a ser desvendado:
Do real manipulador,
Um poder conspirador.
É sobre falsos mistérios
Que o poder cimenta impérios.
Combinam
Todos os totalitários
Combinam todas as coisas
Para o amor ser impossível:
São governos, doutrinários,
Religiões onde repoisas,
O dogma, por mais credível...
- E queixamo-nos, de horror,
Dum mundo tão sem amor!
Povo
Pode o povo repousar,
Que algumas inteligências
Irão por ele pensar,
Decidir, dele em lugar,
De ser feliz que exigências
Lhe serão de contemplar...
É o que lhe é mais favorável
Num destino irremediável.
- História além a desgraça
Sempre por aqui perpassa.
Enganar
Mas com que facilidade
Um homem inteligente
Se enganar deixa, em verdade,
Pela mulher que ama, premente!
É a música com que dança
No coração a esperança.
Dum desgraçado o horizonte
Sempre é cheio de ilusões,
Cúmplice que lança a ponte
Ao engano e nem supões.
À mulher a mão lhe entrega
O véu com que ela nos cega.