SONETOS
Estatuto
O estatuto social
É como árvore trepar.
No ramo baixo agarrar,
Forte, o seguro é total.
Já o do meio, de mais fino,
Requer que tenha cuidado
Ou esgalha para o lado
Se acaso eu perder o tino.
O do topo, quebradiço
E sem qualquer consistência,
Se parte, a minha existência
Arrisco com tal enguiço.
Bom é ficar pelo meio:
Tem da virtude o recheio.
Humildade
Tem a humildade abertura
Com outrem para aprender,
Que superior não se apura
A nada nem a quenquer.
Tem auto-estima, a derrota
Aceita sem se ofender,
A outrem sem cobrar quota
A vitória a oferecer.
Recusa retaliar
E tem a capacidade
De tolerar, suportar
Do caminho a adversidade
Com coragem e esperança:
Por isso é quem sempre alcança.
Canto
Dor ao canto encurralada
Não vai deixar de existir,
Qualquer dia vai sair
E de forma inesperada.
Ou encaro o muro em frente
Como uma oportunidade
De treinar ser paciente
E aceitar a realidade,
Ou meu pensar positivo
É, no fundo, negativo,
Que a circunstância não foi
Nunca aceite ou perdoada:
Cada pegada na estrada,
No fundo, então, sempre dói.
Relógios
Se eu relógios de euros mil
Propuser que ninguém compre,
Para aos pobres, neste ardil,
Algo dar que os não ensombre,
Ignoro os desempregados
De tais fábricas falidas,
À fome pelos valados,
Se as propostas são seguidas.
E mais ignoro as crianças
Que relógios muito em conta
Fabricam, escravas franças
Cuja conta logo monta.
- O idealismo angelical
Na terra é sempre infernal.
Desapego
Desapego o masoquista
Nunca decerto o terá,
Tem sofrimento na lista,
Desapego nunca o dá.
Este lança-me à alegria
De fruir de quanto houver,
Sem me prender na enxovia
De depender de qualquer.
Como um gelado na praia?
Porém, se eles me faltarem,
Igual alegria raia
De a crescer me estimularem.
O desapego na lista
Tem-me no que em mim invista.
Dia
No dia dos namorados,
Tudo chuva, tudo sol
Desde o apontar do arrebol
Ao jantar de teus cuidados,
És o meu campo de flores,
Minha verdura relvada,
Em cada gesta inventada
Do cultivo dos amores.
Em cada prato em que pões
O invento de cada dia
É um pouco mais de magia
Por todo o lar aos serões.
Aí, ao atar dos laços,
Todo o ano são abraços.
Sonha
Quem não sonha ou sonha pouco
Não tem da paixão a chama,
Nunca a utopia o reclama,
Já que ao chamamento é mouco.
É de confiar no sonho,
Que nele se oculta a porta
Da eternidade a que exorta.
E um filho que nele ponho
É a parte que lhe inauguro,
Que um filho vem do futuro
E é sempre um futuro meu
Que nele nasce e cresceu.
E não tem medida a idade
Do eterno que ali me invade.
Torna
É o amor que nos torna diferentes,
Mais sensíveis, brilhantes e mais puros,
Mais solidários, úteis e seguros
Nas mãos compartilhadas com as gentes,
Mais ligados até da natureza
Ao apelo de apoios mais urgentes.
Se iguais somos de amor tão dependentes,
Tão de entender capazes tal beleza,
Porquê tantos porfiam em não ser
Dignos dos mais perdidos no deserto,
Distantes os mantendo se estão perto?
Para quê tal lonjura se acrescer
Se, bem olhada em nós toda a fundura,
Que somos todos um é o que se apura?
Cancro
Quando o cancro nos ataca,
Temos mesmo de o lidar,
Toiro em praça, nada o aplaca,
Nem fé nos logra acalmar.
Ficamos mesmo sozinhos
A olhar breve, a meditar:
Não é amigo de ir aos ninhos,
Tréguas nunca me irá dar...
Ando a germinar a morte
Dentro de mim sem saber.
Não vou deixá-lo, indo à sorte,
Meu espírito roer.
É só corpo o que ele ataca:
- Sou mais que do voo a placa!
Caos
O caos em nossas vidas
Porque o requeremos tanto?
Catástrofes desmedidas,
Destruições canto a canto...
Para ter pena de nós,
Dos outros para ter pena,
A catalisar a atroz
Violência que vive plena
Amordaçada no peito,
Para a lonjura a afastá-la,
Escondendo, deste jeito,
O que sou na íntima sala
E, enquanto forças tiver,
O que não quererei ser.
Como
A vida é sempre uma encosta.
Enquanto nós a subimos,
Olhamos no cimo a aposta:
- Que felizes nos sentimos!
Quando atingimos o cume,
De repente descobrimos:
Tudo agora se resume
A descer da morte aos limos.
Quando subimos, é lento;
Depressa, quando descemos.
Novos, somos um portento,
Que nunca chega é o que vemos.
O curioso é que Além
Mora sempre o que convém.
Mútua
A mútua compreensão
Não será todo o amor,
Mas importa tal pendão
Tanto mais quão maior for.
Sempre a aumentar com os anos,
Sentimento onde não entre
Não é amor, serão enganos,
Por mais que em mim se ele adentre.
Toda a alegria e tristeza
Em comum compartilhadas
Desvendam a quem se preza
Quais são delas as estradas.
Não é mágico condão,
É a luz do sol sempre à mão.
Feliz
Quando alguém vive uma feliz paixão,
Ficar sozinhos num qualquer deserto,
Que atraente parecer então
Vai para os dois tão ideal acerto!
Mas realidade se em tal sonho esperto,
Que aborrecidos nos os dias vão!
Comunidade é o meu contexto aberto
Onde os meus laços mais maduros são.
Em conjugal mesa é que tudo ocorre,
Grande banquete onde partilham todos,
Pais, irmãos, tios, avós... Quem acorre
É quem influi ali de mil e um modos.
Mesa demais ou então mesa a menos,
Qual a que pões do afecto em teus terrenos?
Armadilha
Quem no lar só deposita,
De repente é um sofredor.
A armadilha debilita
E é fatal para o amor.
Quem do lar somente extrai,
Num clima de uso e abuso,
Toda a equidade esvai,
Finda o lar, de vez contuso.
Um casamento feliz
É um casal em equidade,
Confiantes de raiz,
Presentes em igualdade.
E se isto te andar ausente?
- Dá-o de presente ao presente!
Pedras
Sempre que ambos se esquivarem
Dos pontos quentes da vida,
É a conjuntura agravarem:
Logo há pedras na subida.
Dos problemas intratados
Vem logo ressentimento
E os fogos inapagados
Vão no irreparável vento.
As fugas à relação,
No calor insuportável,
Não trazem a salvação,
São mentira insuperável.
A ferida original
Se afunda em cancro fatal.
Dois
Nunca dois pensam e sentem
De igual forma sobre tudo.
São fantasias que mentem
E a que iludido me grudo.
Quando isto, porém, ameaça
O que juntos construíram,
Parem, não haja trapaça,
O comum leiam que miram!
Rola a vida pedregulhos
De discórdia no caminho.
Que isto nos não cause engulhos,
São alicerces do ninho:
Que é que este bloco de pedra
Ensina à vida que medra?