DA  IRONIA  AO  BOM  HUMOR

 

 

Culpa

 

“A culpa não é minha, é do destino!”

- É o argumento de entulho

Com que o fraco preserva, fino,

O orgulho.

 

 

Gasta

 

Se a gasta esposa pergunta,

À ceia, que cozinhado

Queres, logo ela lhe junta

Que andarás mesmo enganado.

 

 

Saudade

 

Que saudade, que saudade

Do tempo em que minha filha

Tinha medo de esqueletos

E chorava de verdade

Quando alguém “que maravilha”

- Dizia – “serem discretos!

Tens um igualzinho aí

Inteiro dentro de ti!”

 

 

Netinha

 

A netinha de dois anos,

Olhando a avó na retrete:

“Que linda! Já cumpre os planos

De fazer onde compete!

Fico mesmo, ao vê-la aí,

Muito orgulhosa de si!”

 

 

Chega

 

Arte

De ir por diante:

O medíocre e rastejante

Chega mesmo a toda a parte!

 

 

Escarra

 

Quem faz de vítima

Escarra pelo enrugado bico

A dor fingida ou legítima

E faz de quem o ouvir o seu penico.

 

 

Vítima

 

A vítima profissional

É cega e mouca

A qualquer aprendizagem ou saída real,

Enfia a experiente touca

Na cabeça de quem a ajuda

Para que definitivamente

Não se iluda:

Torna-o de vez impotente.

É que da vítima a sorte

É fazer de vítima até à morte.

 

 

Torturarem

 

Muito casamento finda

Por ser permissão ligeira

De se torturarem, inda

Que seja uma vida inteira.

 

 

Bola

 

Mentira é bola de neve.

Quanto mais ela rebola

Mais aumenta, até que em breve

Nela o mentiroso atola.

 

 

Riqueza

 

Se a riqueza material

Gerara a felicidade,

Todo o mundo ocidental

Era feliz de verdade.

Só que é doente mental:

É suicídio o que o invade.

 

 

Mendigo

 

O mendigo cruza

Com o imperador:

“Depois de se impor

Ao mundo que acusa,

Que é que irá fazer?”

- Quer ele saber.

 

“Irei repousar!”

- O herói lhe responde.

Nem sabe o pobre onde

Nem o que pensar:

“Mas que enorme absurdo!

Eu devo estar surdo...

 

É que eu já descanso

Cá neste momento,

Sem ter o tormento

De o mundo que alcanço

Ter de dominar

Para repousar!”

 

Não é o pobre mouco:

O mundo é que é louco.

 

 

Veneno

 

Viver em ressentimento

Será o veneno ingerir

À espera de outrem sentir

Dele o envenenamento.

 

 

Maioria

 

A maioria das gentes

Sempre do ego dominadas

A postos vão, entrementes,

Noutrem ver áreas falhadas.

É comum aos psicopatas

De compaixão não ter actas.

 

 

Soprem-no

 

O elogio como a fama

Se é com que vos seduzis,

Soprem-no donde se acama,

É se assoar o nariz!

 

 

Paixão

 

A paixão são ilusões

Com um alcance genésico,

A armar-nos em saltitões

Onde farão de analgésico.

 

 

Adora

 

Há muito quem não seja racista

Porque diz que “adora, sob todos os tectos,

A imensa lista

Dos estúpidos destes pretos!”

 

 

Pai

 

Ser pai é ser malabarista

Com todas as bolas a gritar,

Ao escapar

Pela pista.

 

Ter filhos é uma viagem,

A de quarto para quarto saltar,

Os mesmos brinquedos a arrumar

O dia todo pela paisagem.

 

 

Hoje

 

Hoje em dia alguém se casa?

Para quê comprar a vaca

Se o leite, no jarro de asa,

É gratuito em bilha opaca?

 

 

Trabalho

 

Como diz o carpinteiro,

“Mona Lisa é formosura:

Que trabalho mais certeiro

O que há naquela moldura!”

 

 

Saía

 

Quando o multimilionário

Saía de Porsche novo,

Um camionista do povo,

Desembestado, sumário

 

Lhe arranca a porta impecável.

“O meu Porsche destruído!”

- Grita o rico, mui sentido.

O polícia ali prestável

 

Que acorreu ao acidente

Abana a cabeça incrédula:

“Só conta do Porsche a cédula?!

 

E o braço cortado rente?...

Repara o ricaço então:

“O meu Ómega, oh, não!”

 

 

Revela

 

Da adolescência a relevância

Revela o mistério:

É o período entre a infância

- E o adultério!

 

 

Imitar

 

A minha filha aprendeu

Com a boca a imitar traques,

De riso após com ataques.

Então aí pensei eu:

“Mas como é que lhe ensinei

Tão bebé tudo o que sei?!”

 

 

Reparo

 

Reparo na idade a escorregar ligeira,

Tempo a escorrer sem eu nem dar por isso,

E a soberba sobranceira

De nem ligar-lhe ao feitiço.

Quanto mais me escarvo

Mais me sinto parvo.

 

 

Intimamente

 

Riqueza e felicidade

Intimamente ligadas...

É verdade que é verdade,

Há uniões disparatadas!

 

Riqueza amontoar de bens

Não é, não, jamais, porém.

Seja o que for que tu tens,

Riqueza é amontoar do Bem.

 

Felicidade não é

Viver esbanjadamente.

De que vale pôr de pé

Tão improfícua semente?

 

Uma vez perdido o horto,

Uma vez perdido o império,

De que vale ser o morto

Mais rico do cemitério?

 

 

Idade

 

Quando a idade não perdoa,

Então olhamos a vida

Como sendo sempre boa.

Falamos com quem se lida,

Parecem gestos à toa,

 

Com plantas, com animais,

Pouco importa o que julgais.

 

Caminhamos devagar

Por todos os pensamentos,

Candelabros a brilhar,

Brasas a fulgir aos ventos...

 

Acesos ou apagados,

Sabem bem como os gelados.

 

Mesmo quando são dislates,

Sabem mesmo a chocolates!

 

 

Actividade

 

A brasa

Da actividade intelectual

Atrasa

A degeneração cerebral.

 

O encéfalo não se renova:

Ou corre,

Ou, caso se não mova,

Morre.

 

Quando não estimulado,

Mais rápido cai para o lado.

 

Não há sono que nos valha

Nesta batalha:

 

Quem muito dorme

Morre conforme.

 

 

Revolução

 

A revolução da liberdade

Perdeu os sentidos:

Cuida dos partidos,

Não da comunidade.

Egocêntricos infantis,

Como melhorar o país?

 

 

Combater

 

Combater é sempre mau.

Mas, se te tolhe isto e acanha

E tens de pegar no pau,

Ao menos sê tu quem ganha!

 

 

Verdade

 

Uma verdade verdade

Mais meia dúzia de enganos

São sempre de fundo os panos

Com que o mal bem persuade.

 

 

Absolutismo

 

É contra a criatividade

Todo o absolutismo que haja,

Cristaliza quanto invade,

Fossiliza uma verdade,

Impõe-na a quem contra reaja.

É da mente a prostituta

Toda a verdade absoluta.

 

 

Conjuga

 

De mãe sempre o coração

É mesmo pastilha elástica:

Conjuga em voz perifrástica,

De esticar não pára, não!

 

 

Crítico

 

O crítico, do mais pacato

Ao mais feroz contra entreténs,

Tende sempre a ser o gato

A falar de cães.

 

 

Actor

 

Actor é quem vive a sério

O que outros, na vida real,

Desde o berço ao cemitério,

Representam sempre mal.

 

 

Estatele

 

Há quem olhe para a Lua

E a tal tudo ele resume

Até quando a sorte sua

Logo o estatele no estrume.

 

 

Chegar

 

Nunca nos apressamos,

Açodados,

Quando tratamos

De chegar atrasados.

 

Tenha o humor

Que tiver o ditador,

 

Nem suspeita que alguém,

Mesmo quem

 

Ele atropele,

Possa afinal rir-se dele.

 

Ora, se ele chegar atrasado,

É mesmo de aplaudi-lo, denodado:

 

Ditador,

Quanto mais tarde, melhor!

 

 

Povos

 

Os povos do mundo, odres

Pejados de podridão,

Podem embora ser podres

Que cheira bem o torrão.

 

 

Guerra

 

Quando a guerra vitoriosa

Chega ao fim,

Principia a glosa

Da guerra, afinal, perdida assim.

 

 

Preguiçoso

 

Ao preguiçoso é de dizer,

Sem alarde:

“Venha cá quando quiser,

Mas nunca mais tarde!”

 

 

Povo

 

Um povo civilizado

Não come cadáveres, não.

Come do outro lado

Da mão:

- Come, furtivos,

Os homens vivos!

 

 

Monstros

 

O que a guerra tem de mais horrível

É o que ela tem de simpático:

Como é possível

Ficar apático

Ao discernir

Os monstros a sorrir?

 

 

Ditadores

 

Os ditadores são

Assim, em suma:

Têm sempre razão,

Particularmente quando não têm razão

Nenhuma.

 

 

Dinheiro

 

O dinheiro é a farinha do diabo.

Entre dois jovens a paixão,

À epiderme limitada,

Esgota-se na jornada,

Esboroa-se no chão,

Ao fim e ao cabo.

 

Porém, se a ligação

É pela fortuna,

Nada se lhe coaduna.

O dinheiro é a farinha do diabo:

Dele o pão

Tem o azedume do nabo,

Causa sempre indigestão.

 

 

Limites

 

Os limites da atenção...

Não te ponhas a operar

Com a mão e a contramão,

Cada qual num rumo a par.

 

Não atendas como tua

Chamada a meio da rua:

 

É que ainda acabarás

Por morrer, falando, em paz.

 

 

Faculdade

 

Um pai poupa

Para pagar a faculdade aos filhos.

Estes, vestidos com a nova roupa,

Abandonam-no a sós no meio dos sarilhos.

 

 

Vento

 

Os sentidos do sentido!

Diz a jovem ao cavalheiro

Que lhe há referido

Como a memória

A varre o vento da história:

“Que profundo o que há atingido!”

Retorquiu-lhe o parceiro:

“Claro, eu sou mineiro!”

 

 

Ondeando

 

Os sacanas

Vão mandar pobres homens combater

Para depois, como sempre, os esquecer,

Meras canas

Ondeando de fugida

Aos ventos da vida.

 

 

Pequena

 

O mexerico

É o espectáculo da realidade

Que debico

Na pequena localidade.

Pequena, por maior que seja,

De roer-se de inveja.

 

 

Trás

 

A vida, comedida,

Nunca é vida por inteiro:

Por trás do melhor da vida

Há sempre um enfermeiro.

 

 

Rodeio-me

 

Quando quero ficar sozinho,

Rodeio-me de gente, muita gente:

Aí, em frente,

Sigo então meu caminho.

 

 

Prender

 

É mais fácil prender o carteirista

De dedos absortos

Que o assassino duma lista

De milhões de mortos.

 

A este batem palmas

Aqueles a quem não dói

E, de consciências calmas,

Apelidam-no de herói.

 

 

Meio

 

Se tiveres um honesto

Em meio a nove gatunos,

Põem-lhe logo o cabresto:

Ganha o número, são unos.

Acaba sempre perdido

Todo o honesto com sentido.

 

 

Bêbedo

 

Que o bêbedo comente,

Então:

“Toca a beber, senão

Irei tornar-me inteligente!”

 

 

Treinam-se

 

Os mui bem alimentados

Treinam-se a emendar tendências

Perversas dos esfomeados.

De esfomeados evidências

Não há de julgar saciados.

 

O saciado à sua laia

Julgará para a punir

Da avidez em que descaia:

“Deixa com que me munir,

Não transponhas minha raia!”

 

O que comeu muito bem

Não entende o que tem fome?

Entende-o, vê mais além:

Logo, que o freio não tome!

Por isso a aperreá-lo vem...

 

 Canalhas julgando os mais?

- Quão mais canalhas, mais tais!

 

 

Única

 

Com o próximo a única relação

De que ninguém se arrepende

É a que, então,

Mais me aterra

E surpreende:

- É a guerra!

 

 

Parecer

 

Ninguém é um pedro-sem,

Todos querem parecer alguém!

 

Já sê-lo, não,

Porém,

Que dá muita trabalheira

Ao serão

E ainda acaba dando asneira!

 

Parecer basta,

Que nossa ambição é pequenina e casta...

 

 

Caixão

 

Há tanto caixão de pedra

Com um cadáver lá dentro

Em que a vida nunca medra,

Sem um coração ao centro!

Contudo, pela avenida,

Passeiam-se em vez da vida.

 

 

Aponta

 

Toda a gente aponta a lama

Que há num fato domingueiro,

Ninguém a aponta na trama

Do imo de alguém com dinheiro.

 

 

Qualquer

 

“Sou capaz de qualquer coisa

Por ti, por ti, porque te amo!

...Até que no ouvido poisa

Um dito com que me tramo.”

 

 

Cerimónia

 

De cerimónia sagrada,

O casamento mudou

Na espectacular parada

De ostentação na jornada,

Do brilho que nos cegou.

Aos votos, à relação

Ninguém dá mais atenção,

 

Mas às alianças, vestido,

Lugar em festa envolvido,

 

À ementa, flores, convites,

Bolo de noiva que cites,

 

Ao conjunto musical,

Fotos, vídeo, carro ideal,

 

Reuniões em tropel,

À própria lua-de-mel...

 

O efeito é um dia de sonho,

Semana de fantasia

E a vida inteira o medonho

Real nu e cru que aponho

Àquilo e que ninguém via.

 

“Caro amor da minha vida,

Não há tempo de falar

Do que sentes, em seguida,

Do que sinto em tal corrida,

Mas há-de o tempo sobrar

 

Para, com unhas e dentes,

A gente se esgatanhar

Cada dia ante os repentes

Que as horas têm pendentes

Nos anos que isto durar.”

 

 

Após

 

Após o mágico beijo,

Diz a Bela Adormecida

Ao Príncipe, sem mais pejo:

“Obrigada, na medida

Em que acabei a acordar,

- Mas nada está a resultar!”

 

E diz ele para ela:

“Amava-te adormecida,

Eras ali muito bela.

Acordada, é outra vida

A que contigo transporto,

- Já não te agora suporto!”

 

 

Embriaguez

 

A embriaguez dum amor

Faz que o voto apaixonado

Revista um nobre teor...

- Contudo, é tudo aldrabado.

 

 

Dia

 

A mulher fica infeliz,

Que o marido se esqueceu

Do dia em que lhe ocorreu

O ano do casal que quis.

Só que, durante o ano inteiro,

No lar foi sempre o primeiro.

 

Porém, não fica infeliz

Se ele lembra o aniversário

Mas durante o ano foi vário,

Ignorando-a de raiz:
Uma vez por ano é a sorte

Que terá de seu consorte...

 

- Afinal, estar presente

Como é que ao certo se sente?

 

 

Amar-te-ei

 

“Amar-te-ei sempre... enquanto

Teu lindo comportamento

For digno de meu encanto,

De amar-te a qualquer momento.”

 

 

Honrar-te-ei

 

“Honrar-te-ei num pedestal...

Para culpabilizar-

-Te quando, a qualquer sinal,

De cima tudo tombar.”

 

 

Estimar-te-ei

 

“Estimar-te-ei... enquanto

O meu coração bater,

Infrene, de canto a canto,

De cada vez, ao te ver.”

 

 

Amo-te

 

“Amo-te, incondicional...

Até me dares motivo

De não agir tal e qual,

Que então de tudo me esquivo.”

 

 

Aceitar-te-ei

 

“Aceitar-te-ei tal qual és...

Embora tente, em segredo,

Mudar-te o rumo dos pés

Do que não for do meu credo.”

 

 

Melhor

 

“O melhor desejo a ti...

Desde que também, enfim,

Ponderando o que lá vi,

Seja o que é bom para mim.”

 

 

Renuncio

 

“Renuncio a todos mais,

Excepto à minha família,

Que o sangue, se o bem pesais,

Pesa mais que o chá de tília.”

 

“Também excepto os amigos,

Que amigos continuarão,

Mesmo algum ex: que perigos

Se amigos somente são?”

 

“E, claro, meus filhos dantes,

Sempre em primeiro lugar,

E os domingos são instantes

De com os meus pais jantar.”

 

- Será mesmo que quem ama

Ama também cão e gato,

Tudo a saltar para a cama

Com o maior desacato?!

 

 

Seremos

 

“Renuncio a todo o dia,

Seremos inseparáveis.

Basta-nos a companhia

Mútua: somos formidáveis!

 

Recusaremos convites

Para encontros sociais.

Se alguns há que me debites,

Queixo-me com fundos ais.

 

Não viajaremos jamais

Um sem o outro também,

Desejaremos iguais

Prendas do que o mundo tem.

 

Dir-te-ei exactamente

Quais são, não te preocupes.

Se findo obsessivamente

Ciumento, não te ocupes

 

Desse tão absurdo ramo:

É somente porque te amo!”

 

- Se da verdade tomara

O soro, o que então diria

Seria uma frase rara:

“Sá a mim amo todo o dia!”

 

 

Olham

 

Quando estão juntos em casa

Olham só no telemóvel

Cada qual o que lhe apraza?

- Não é um lar, é só um imóvel!

 

 

Correr

 

“Na riqueza e na pobreza

Tudo irá correr mui bem,

Desde que eu tenha a certeza

De que o preciso me vem,

Que bem pareça aos vizinhos,

Família, amigos mesquinhos...

 

Que sejas um bom suporte

Financeiro para todos!

Nossos filhos têm por norte

Colégios com mil engodos,

Tudo do bom e melhor,

Duplo trabalho a te impor.

 

E não esperes que eu more

Num minúsculo cubículo,

Tem muito o lar que eu decore

Até o último fascículo.

Aliás, se me aborreço,

Vou arejar, que o mereço...”

 

- Do amor quando o juramento

Assim é, qual o fermento?

 

 

Contas

 

“O que é meu é teu, excepto

O que eu ando a pôr de lado

(Para o caso, sob o tecto,

De correr mal o traçado),

E das contas em meu nome

Que questão faço que tome.

 

É que nunca ninguém sabe

O que o porvir nos reserva...

Aliás, nunca te cabe

Saber de meu ganho a verba.

Este acordo nupcial

Assina com teu aval!”

 

- Quem vai por aqui não vai,

Passo a passo apenas cai.

 

 

Dificuldade

 

“Se eu deixar de trabalhar

Algum tempo ou se tiver

Dificuldade em manter

Um emprego, hás-de lembrar

Que amar tu me prometeste,

Pobre embora a gente reste.

 

De resto, tens um dinheiro

Posto de lado, não tens?

E a tua família bens

Tem à margem do carreiro...”

 

- Se este for teu pensamento,

Teu lar é um sopro de vento.

 

 

Carne

 

Para uns homens, a mulher

É uma peça de primeira

De carne com que viver

E curtir à soalheira!

 

 

Cuidei

 

“Cuidei que eram temporárias

Estas tuas alergias

E não seis meses de várias

Pieiras, de espirros guias...

Pior: contas de dentista,

Limites perdem de vista...

 

Porque é que me não contaste

Que tens cancro na família?

Não conto com o contraste

De anos perder em vigília

Em espera de hospitais

De doença em tremedais.

 

Pode ser de lamentar

Que tua mãe cancro tenha...

Mas eu não mereço, a par,

Ser feliz em tal barganha?

Não vou ser uma enfermeira

Anos de oiro à cabeceira!”

 

- Quem promessa trai tamanha

Que lar espera que ganha?

 

 

Promessa

 

“Tua promessa de amar

Na saúde e na doença

Meus defeitos na sentença

Inclui sem nenhum largar.

Cuida, pois, bem tu de mim,

Mesmo que eu não cuide assim.

 

Sabes bem como é que eu sou.

Qual é o problema, portanto,

Se eu precisar, entretanto,

Duns copos, se a alívio vou?

E olha que eu, logo de entrada,

Não largo o fumo por nada...

 

E terás de me aturar

Se maníaco estiver

Ou deprimido ficar...”

- Quem tal trilho percorrer

Inda espera por saúde?

Quem desperto é que se ilude?

 

 

Continues

 

“Que continues a amar-me,

Embora eu me descuide

Com a aparência e desarme!

O que importa é que eu bem cuide

 

Do que no íntimo irei sendo.

Preocupar-te bem podias

Da saúde que vou tendo

Sem picar todos os dias

 

Para me manter em forma...”

- Se julgas que nada a ver

Tens com saúde, por norma,

Não estás a perceber:

Da doença que te ataca

Às vezes é tua a faca.

 

 

Fim

 

“Até que o fim nos separe!

...Ou que me farte de ti.

Enquanto em ti me excitar,

Tenhas-te elegante aí

Ou me sinta derretido,

A promessa faz sentido...

 

Até que melhor ninguém

Me apareça mais além.”

 

- Se tal for a jura feita,

A ninguém nada aproveita.

 

 

Ficarei

 

“Ficarei até à morte

Contigo, não acredito

No divórcio feito à sorte,

Entre quem finda incontrito.

Infeliz sou disto atrás

E tu também o serás?

 

Farei que todos o saibam:

Ao voto sacrifiquei,

Minha dor exibirei.

Que de orgulho em si não caibam

Todos, ao dar-me a medalha

De honra que a nós ambos calha.”

 

- Até que a morte os separe?!

Mortos já estão, se calhar...

 

 

Morrer

 

Até que o fim nos separe

Quererá dizer, então,

Até por morrer findar,

Do par devido a agressão?!

 

 

Abusador

 

O abusador diz que a raiva

É apenas paixão intensa.

Se é fúria que em si não caiba,

É que só na amada pensa.

Tanto ama que fica louco

E agredir é mesmo pouco!

 

 

Tanto

 

Há tanto onde tropeçar

Que viver é mui furtivo:

Há quem viva morto dentro,

Sem afecto e alma ao centro.

Quando te a morte chegar,

Reza para inda estar vivo.

 

 

Custos

 

Os custos que custa ferem?

Só alcança quem pagará:

Todos ir para o céu querem

Mas ninguém quer morrer já.

 

 

Andar

 

A vida sempre acontece

Quando eu andar ocupado

A olhar para o outro lado,

Fazendo o que já me esquece.

 

 

Cerimónia

 

A cerimónia no altar

Ou só de leiga feição

Como é que pode contar

Ante a lauta refeição?

O que diz de bem casar

É quanto se empanturrar...

 

 

Juro

 

Se juro que te amarei

Para toda a eternidade,

Tu bem sabes e eu bem sei

Como isto é uma falsidade!

 

 

Fracasso

 

Quando diz que irá tentar

Não é justificação

Que já esteja a preparar

Para o fracasso em questão,

Só por querer se esquivar

Ao trabalho que implicar?

 

 

Sentidos

 

Amar, honrar, estimar

Têm sentidos tão diversos

Que divergem em dois terços

E um terço nem é de olhar!

 

 

Funcionário

 

Funcionário despedido,

Jogado ao mundo que luta,

Não encontra mais sentido

Da vida em qualquer disputa.

 

Fechada a bolsa do Estado

Onde sempre haja mamado,

 

Não tem mais lábios nem jeito

Para mamar doutro peito.

 

A saudade que o enguiça

É ali voltar à preguiça.

 

 

Negra

 

A flor negra que ameia

Para uma comunidade civilizada,

Não é uma estrada,

- É uma cadeia!

 

 

Veneno

 

Quanta gente logra um veneno subtil

Do trevo

De folhas mil

Das coisas vulgares sem relevo!

 

 

Ordem

 

Uma comunidade tranquila,

Tudo em ordem, - um tesoiro?!

- Ao invés, é tudo em fila,

Pronto para o matadoiro!

 

 

Sangramento

 

Um bom governo é um governo

Em que não ocorre nada?

- Ocorre, ocorre: é o eterno

Sangramento da manada,

Que tudo tem de matar

Que em vida mexa, em lugar.

 

 

Importante

 

O País na epidemia

E eu que ia dar um passeio!

Se algo importante eu queria,

É sempre isto pelo meio!...

 

 

Menos

 

Quanto menos compreenderem,

Melhor se comportarão

Os carneiros que acorrerem

A se atirar ao cachão.

Os da vida que viverem

E os que vivem na Nação...

 

 

Amos

 

Os amos sempre clamaram

Que nunca acontece nada,

Mas sempre nos enganaram:

Em cada palmo de estrada

Aflora nova pegada.

 

Sempre os amos vão cair

De o erro nunca assumir.

 

E correm a História inteira

Sempre com a mesma asneira.

 

O que trepa, além de cúpido,

É deveras sempre estúpido.

 

 

Incómodo

 

Um homem solitário

Que incómodo que ele é!

Ele grita de alegria,

Ele grita de agonia...

Ao menos, da estatística no sumário,

Não há, de carne e osso, ninguém de pé!

 

Que importa que isto cheire a morte?

Quem deveras a tem tem muita sorte!...

 

- Eis como o estatístico

É da morte da Humanidade o dístico.

 

 

Manhã

 

De manhã, o sol sorrindo,

Encho meu peito de vida.

Alguém que vem vindo

Fala-me da dívida pública e das eleições

E toda a fogueira é destruída,

Morrem em cinza os tições.

A maldição

De como a gente logra estragar o chão.

 

 

Galinha

 

Que galinha mais ordinária:

Bate com a cabeça na parede, a crista aos estalos,

Só pela ânsia vária

De ter galos!

 

 

 

 

 

 

 

Índice

 

 

Quadras regulares

 

Quadras irregulares

 

Quintilhas

 

Sextilhas

 

Sonetos

 

Métrica regular – o ser

 

Métrica regular – o dever

 

Métrica regular – a utopia

 

Métrica irregular – o ser

 

Métrica irregular – o dever

 

Métrica irregular – a utopia

 

Da ironia ao bom humor