DA IRONIA
AO BOM HUMOR
Culpa
“A culpa não é minha, é do destino!”
- É o argumento de entulho
Com que o fraco preserva, fino,
O orgulho.
Gasta
Se a gasta esposa pergunta,
À ceia, que cozinhado
Queres, logo ela lhe junta
Que andarás mesmo enganado.
Saudade
Que saudade, que saudade
Do tempo em que minha filha
Tinha medo de esqueletos
E chorava de verdade
Quando alguém “que maravilha”
- Dizia – “serem discretos!
Tens um igualzinho aí
Inteiro dentro de ti!”
Netinha
A netinha de dois anos,
Olhando a avó na retrete:
“Que linda! Já cumpre os planos
De fazer onde compete!
Fico mesmo, ao vê-la aí,
Muito orgulhosa de si!”
Chega
Arte
De ir por diante:
O medíocre e rastejante
Chega mesmo a toda a parte!
Escarra
Quem faz de vítima
Escarra pelo enrugado bico
A dor fingida ou legítima
E faz de quem o ouvir o seu penico.
Vítima
A vítima profissional
É cega e mouca
A qualquer aprendizagem ou saída real,
Enfia a experiente touca
Na cabeça de quem a ajuda
Para que definitivamente
Não se iluda:
Torna-o de vez impotente.
É que da vítima a sorte
É fazer de vítima até à morte.
Torturarem
Muito casamento finda
Por ser permissão ligeira
De se torturarem, inda
Que seja uma vida inteira.
Bola
Mentira é bola de neve.
Quanto mais ela rebola
Mais aumenta, até que em breve
Nela o mentiroso atola.
Riqueza
Se a riqueza material
Gerara a felicidade,
Todo o mundo ocidental
Era feliz de verdade.
Só que é doente mental:
É suicídio o que o invade.
Mendigo
O mendigo cruza
Com o imperador:
“Depois de se impor
Ao mundo que acusa,
Que é que irá fazer?”
- Quer ele saber.
“Irei repousar!”
- O herói lhe responde.
Nem sabe o pobre onde
Nem o que pensar:
“Mas que enorme absurdo!
Eu devo estar surdo...
É que eu já descanso
Cá neste momento,
Sem ter o tormento
De o mundo que alcanço
Ter de dominar
Para repousar!”
Não é o pobre mouco:
O mundo é que é louco.
Veneno
Viver em ressentimento
Será o veneno ingerir
À espera de outrem sentir
Dele o envenenamento.
Maioria
A maioria das gentes
Sempre do ego dominadas
A postos vão, entrementes,
Noutrem ver áreas falhadas.
É comum aos psicopatas
De compaixão não ter actas.
Soprem-no
O elogio como a fama
Se é com que vos seduzis,
Soprem-no donde se acama,
É se assoar o nariz!
Paixão
A paixão são ilusões
Com um alcance genésico,
A armar-nos em saltitões
Onde farão de analgésico.
Adora
Há muito quem não seja racista
Porque diz que “adora, sob todos os tectos,
A imensa lista
Dos estúpidos destes pretos!”
Pai
Ser pai é ser malabarista
Com todas as bolas a gritar,
Ao escapar
Pela pista.
Ter filhos é uma viagem,
A de quarto para quarto saltar,
Os mesmos brinquedos a arrumar
O dia todo pela paisagem.
Hoje
Hoje em dia alguém se casa?
Para quê comprar a vaca
Se o leite, no jarro de asa,
É gratuito em bilha opaca?
Trabalho
Como diz o carpinteiro,
“Mona Lisa é formosura:
Que trabalho mais certeiro
O que há naquela moldura!”
Saía
Quando o multimilionário
Saía de Porsche novo,
Um camionista do povo,
Desembestado, sumário
Lhe arranca a porta impecável.
“O meu Porsche destruído!”
- Grita o rico, mui sentido.
O polícia ali prestável
Que acorreu ao acidente
Abana a cabeça incrédula:
“Só conta do Porsche a cédula?!
E o braço cortado rente?...”
Repara o ricaço então:
“O meu Ómega, oh, não!”
Revela
Da adolescência a relevância
Revela o mistério:
É o período entre a infância
- E o adultério!
Imitar
A minha filha aprendeu
Com a boca a imitar traques,
De riso após com ataques.
Então aí pensei eu:
“Mas como é que lhe ensinei
Tão bebé tudo o que sei?!”
Reparo
Reparo na idade a escorregar ligeira,
Tempo a escorrer sem eu nem dar por isso,
E a soberba sobranceira
De nem ligar-lhe ao feitiço.
Quanto mais me escarvo
Mais me sinto parvo.
Intimamente
Riqueza e felicidade
Intimamente ligadas...
É verdade que é verdade,
Há uniões disparatadas!
Riqueza amontoar de bens
Não é, não, jamais, porém.
Seja o que for que tu tens,
Riqueza é amontoar do Bem.
Felicidade não é
Viver esbanjadamente.
De que vale pôr de pé
Tão improfícua semente?
Uma vez perdido o horto,
Uma vez perdido o império,
De que vale ser o morto
Mais rico do cemitério?
Idade
Quando a idade não perdoa,
Então olhamos a vida
Como sendo sempre boa.
Falamos com quem se lida,
Parecem gestos à toa,
Com plantas, com animais,
Pouco importa o que julgais.
Caminhamos devagar
Por todos os pensamentos,
Candelabros a brilhar,
Brasas a fulgir aos ventos...
Acesos ou apagados,
Sabem bem como os gelados.
Mesmo quando são dislates,
Sabem mesmo a chocolates!
Actividade
A brasa
Da actividade intelectual
Atrasa
A degeneração cerebral.
O encéfalo não se renova:
Ou corre,
Ou, caso se não mova,
Morre.
Quando não estimulado,
Mais rápido cai para o lado.
Não há sono que nos valha
Nesta batalha:
Quem muito dorme
Morre conforme.
Revolução
A revolução da liberdade
Perdeu os sentidos:
Cuida dos partidos,
Não da comunidade.
Egocêntricos infantis,
Como melhorar o país?
Combater
Combater é sempre mau.
Mas, se te tolhe isto e acanha
E tens de pegar no pau,
Ao menos sê tu quem ganha!
Verdade
Uma verdade verdade
Mais meia dúzia de enganos
São sempre de fundo os panos
Com que o mal bem persuade.
Absolutismo
É contra a criatividade
Todo o absolutismo que haja,
Cristaliza quanto invade,
Fossiliza uma verdade,
Impõe-na a quem contra reaja.
É da mente a prostituta
Toda a verdade absoluta.
Conjuga
De mãe sempre o coração
É mesmo pastilha elástica:
Conjuga em voz perifrástica,
De esticar não pára, não!
Crítico
O crítico, do mais pacato
Ao mais feroz contra entreténs,
Tende sempre a ser o gato
A falar de cães.
Actor
Actor é quem vive a sério
O que outros, na vida real,
Desde o berço ao cemitério,
Representam sempre mal.
Estatele
Há quem olhe para a Lua
E a tal tudo ele resume
Até quando a sorte sua
Logo o estatele no estrume.
Chegar
Nunca nos apressamos,
Açodados,
Quando tratamos
De chegar atrasados.
Tenha o humor
Que tiver o ditador,
Nem suspeita que alguém,
Mesmo quem
Ele atropele,
Possa afinal rir-se dele.
Ora, se ele chegar atrasado,
É mesmo de aplaudi-lo, denodado:
Ditador,
Quanto mais tarde, melhor!
Povos
Os povos do mundo, odres
Pejados de podridão,
Podem embora ser podres
Que cheira bem o torrão.
Guerra
Quando a guerra vitoriosa
Chega ao fim,
Principia a glosa
Da guerra, afinal, perdida assim.
Preguiçoso
Ao preguiçoso é de dizer,
Sem alarde:
“Venha cá quando quiser,
Mas nunca mais tarde!”
Povo
Um povo civilizado
Não come cadáveres, não.
Come do outro lado
Da mão:
- Come, furtivos,
Os homens vivos!
Monstros
O que a guerra tem de mais horrível
É o que ela tem de simpático:
Como é possível
Ficar apático
Ao discernir
Os monstros a sorrir?
Ditadores
Os ditadores são
Assim, em suma:
Têm sempre razão,
Particularmente quando não têm razão
Nenhuma.
Dinheiro
O dinheiro é a farinha do diabo.
Entre dois jovens a paixão,
À epiderme limitada,
Esgota-se na jornada,
Esboroa-se no chão,
Ao fim e ao cabo.
Porém, se a ligação
É pela fortuna,
Nada se lhe coaduna.
O dinheiro é a farinha do diabo:
Dele o pão
Tem o azedume do nabo,
Causa sempre indigestão.
Limites
Os limites da atenção...
Não te ponhas a operar
Com a mão e a contramão,
Cada qual num rumo a par.
Não atendas como tua
Chamada a meio da rua:
É que ainda acabarás
Por morrer, falando, em paz.
Faculdade
Um pai poupa
Para pagar a faculdade aos filhos.
Estes, vestidos com a nova roupa,
Abandonam-no a sós no meio dos sarilhos.
Vento
Os sentidos do sentido!
Diz a jovem ao cavalheiro
Que lhe há referido
Como a memória
A varre o vento da história:
“Que profundo o que há atingido!”
Retorquiu-lhe o parceiro:
“Claro, eu sou mineiro!”
Ondeando
Os sacanas
Vão mandar pobres homens combater
Para depois, como sempre, os esquecer,
Meras canas
Ondeando de fugida
Aos ventos da vida.
Pequena
O mexerico
É o espectáculo da realidade
Que debico
Na pequena localidade.
Pequena, por maior que seja,
De roer-se de inveja.
Trás
A vida, comedida,
Nunca é vida por inteiro:
Por trás do melhor da vida
Há sempre um enfermeiro.
Rodeio-me
Quando quero ficar sozinho,
Rodeio-me de gente, muita gente:
Aí, em frente,
Sigo então meu caminho.
Prender
É mais fácil prender o carteirista
De dedos absortos
Que o assassino duma lista
De milhões de mortos.
A este batem palmas
Aqueles a quem não dói
E, de consciências calmas,
Apelidam-no de herói.
Meio
Se tiveres um honesto
Em meio a nove gatunos,
Põem-lhe logo o cabresto:
Ganha o número, são unos.
Acaba sempre perdido
Todo o honesto com sentido.
Bêbedo
Que o bêbedo comente,
Então:
“Toca a beber, senão
Irei tornar-me inteligente!”
Treinam-se
Os mui bem alimentados
Treinam-se a emendar tendências
Perversas dos esfomeados.
De esfomeados evidências
Não há de julgar saciados.
O saciado à sua laia
Julgará para a punir
Da avidez em que descaia:
“Deixa com que me munir,
Não transponhas minha raia!”
O que comeu muito bem
Não entende o que tem fome?
Entende-o, vê mais além:
Logo, que o freio não tome!
Por isso a aperreá-lo vem...
Canalhas julgando os mais?
- Quão mais canalhas, mais tais!
Única
Com o próximo a única relação
De que ninguém se arrepende
É a que, então,
Mais me aterra
E surpreende:
- É a guerra!
Parecer
Ninguém é um pedro-sem,
Todos querem parecer alguém!
Já sê-lo, não,
Porém,
Que dá muita trabalheira
Ao serão
E ainda acaba dando asneira!
Parecer basta,
Que nossa ambição é pequenina e casta...
Caixão
Há tanto caixão de pedra
Com um cadáver lá dentro
Em que a vida nunca medra,
Sem um coração ao centro!
Contudo, pela avenida,
Passeiam-se em vez da vida.
Aponta
Toda a gente aponta a lama
Que há num fato domingueiro,
Ninguém a aponta na trama
Do imo de alguém com dinheiro.
Qualquer
“Sou capaz de qualquer coisa
Por ti, por ti, porque te amo!
...Até que no ouvido poisa
Um dito com que me tramo.”
Cerimónia
De cerimónia sagrada,
O casamento mudou
Na espectacular parada
De ostentação na jornada,
Do brilho que nos cegou.
Aos votos, à relação
Ninguém dá mais atenção,
Mas às alianças, vestido,
Lugar em festa envolvido,
À ementa, flores, convites,
Bolo de noiva que cites,
Ao conjunto musical,
Fotos, vídeo, carro ideal,
Reuniões em tropel,
À própria lua-de-mel...
O efeito é um dia de sonho,
Semana de fantasia
E a vida inteira o medonho
Real nu e cru que aponho
Àquilo e que ninguém via.
“Caro amor da minha vida,
Não há tempo de falar
Do que sentes, em seguida,
Do que sinto em tal corrida,
Mas há-de o tempo sobrar
Para, com unhas e dentes,
A gente se esgatanhar
Cada dia ante os repentes
Que as horas têm pendentes
Nos anos que isto durar.”
Após
Após o mágico beijo,
Diz a Bela Adormecida
Ao Príncipe, sem mais pejo:
“Obrigada, na medida
Em que acabei a acordar,
- Mas nada está a resultar!”
E diz ele para ela:
“Amava-te adormecida,
Eras ali muito bela.
Acordada, é outra vida
A que contigo transporto,
- Já não te agora suporto!”
Embriaguez
A embriaguez dum amor
Faz que o voto apaixonado
Revista um nobre teor...
- Contudo, é tudo aldrabado.
Dia
A mulher fica infeliz,
Que o marido se esqueceu
Do dia em que lhe ocorreu
O ano do casal que quis.
Só que, durante o ano inteiro,
No lar foi sempre o primeiro.
Porém, não fica infeliz
Se ele lembra o aniversário
Mas durante o ano foi vário,
Ignorando-a de raiz:
Uma vez por ano é a sorte
Que terá de seu consorte...
- Afinal, estar presente
Como é que ao certo se sente?
Amar-te-ei
“Amar-te-ei sempre... enquanto
Teu lindo comportamento
For digno de meu encanto,
De amar-te a qualquer momento.”
Honrar-te-ei
“Honrar-te-ei num pedestal...
Para culpabilizar-
-Te quando, a qualquer sinal,
De cima tudo tombar.”
Estimar-te-ei
“Estimar-te-ei... enquanto
O meu coração bater,
Infrene, de canto a canto,
De cada vez, ao te ver.”
Amo-te
“Amo-te, incondicional...
Até me dares motivo
De não agir tal e qual,
Que então de tudo me esquivo.”
Aceitar-te-ei
“Aceitar-te-ei tal qual és...
Embora tente, em segredo,
Mudar-te o rumo dos pés
Do que não for do meu credo.”
Melhor
“O melhor desejo a ti...
Desde que também, enfim,
Ponderando o que lá vi,
Seja o que é bom para mim.”
Renuncio
“Renuncio a todos mais,
Excepto à minha família,
Que o sangue, se o bem pesais,
Pesa mais que o chá de tília.”
“Também excepto os amigos,
Que amigos continuarão,
Mesmo algum ex: que perigos
Se amigos somente são?”
“E, claro, meus filhos dantes,
Sempre em primeiro lugar,
E os domingos são instantes
De com os meus pais jantar.”
- Será mesmo que quem ama
Ama também cão e gato,
Tudo a saltar para a cama
Com o maior desacato?!
Seremos
“Renuncio a todo o dia,
Seremos inseparáveis.
Basta-nos a companhia
Mútua: somos formidáveis!
Recusaremos convites
Para encontros sociais.
Se alguns há que me debites,
Queixo-me com fundos ais.
Não viajaremos jamais
Um sem o outro também,
Desejaremos iguais
Prendas do que o mundo tem.
Dir-te-ei exactamente
Quais são, não te preocupes.
Se findo obsessivamente
Ciumento, não te ocupes
Desse tão absurdo ramo:
É somente porque te amo!”
- Se da verdade tomara
O soro, o que então diria
Seria uma frase rara:
“Sá a mim amo todo o dia!”
Olham
Quando estão juntos em casa
Olham só no telemóvel
Cada qual o que lhe apraza?
- Não é um lar, é só um imóvel!
Correr
“Na riqueza e na pobreza
Tudo irá correr mui bem,
Desde que eu tenha a certeza
De que o preciso me vem,
Que bem pareça aos vizinhos,
Família, amigos mesquinhos...
Que sejas um bom suporte
Financeiro para todos!
Nossos filhos têm por norte
Colégios com mil engodos,
Tudo do bom e melhor,
Duplo trabalho a te impor.
E não esperes que eu more
Num minúsculo cubículo,
Tem muito o lar que eu decore
Até o último fascículo.
Aliás, se me aborreço,
Vou arejar, que o mereço...”
- Do amor quando o juramento
Assim é, qual o fermento?
Contas
“O que é meu é teu, excepto
O que eu ando a pôr de lado
(Para o caso, sob o tecto,
De correr mal o traçado),
E das contas em meu nome
Que questão faço que tome.
É que nunca ninguém sabe
O que o porvir nos reserva...
Aliás, nunca te cabe
Saber de meu ganho a verba.
Este acordo nupcial
Assina com teu aval!”
- Quem vai por aqui não vai,
Passo a passo apenas cai.
Dificuldade
“Se eu deixar de trabalhar
Algum tempo ou se tiver
Dificuldade em manter
Um emprego, hás-de lembrar
Que amar tu me prometeste,
Pobre embora a gente reste.
De resto, tens um dinheiro
Posto de lado, não tens?
E a tua família bens
Tem à margem do carreiro...”
- Se este for teu pensamento,
Teu lar é um sopro de vento.
Carne
Para uns homens, a mulher
É uma peça de primeira
De carne com que viver
E curtir à soalheira!
Cuidei
“Cuidei que eram temporárias
Estas tuas alergias
E não seis meses de várias
Pieiras, de espirros guias...
Pior: contas de dentista,
Limites perdem de vista...
Porque é que me não contaste
Que tens cancro na família?
Não conto com o contraste
De anos perder em vigília
Em espera de hospitais
De doença em tremedais.
Pode ser de lamentar
Que tua mãe cancro tenha...
Mas eu não mereço, a par,
Ser feliz em tal barganha?
Não vou ser uma enfermeira
Anos de oiro à cabeceira!”
- Quem promessa trai tamanha
Que lar espera que ganha?
Promessa
“Tua promessa de amar
Na saúde e na doença
Meus defeitos na sentença
Inclui sem nenhum largar.
Cuida, pois, bem tu de mim,
Mesmo que eu não cuide assim.
Sabes bem como é que eu sou.
Qual é o problema, portanto,
Se eu precisar, entretanto,
Duns copos, se a alívio vou?
E olha que eu, logo de entrada,
Não largo o fumo por nada...
E terás de me aturar
Se maníaco estiver
Ou deprimido ficar...”
- Quem tal trilho percorrer
Inda espera por saúde?
Quem desperto é que se ilude?
Continues
“Que continues a amar-me,
Embora eu me descuide
Com a aparência e desarme!
O que importa é que eu bem cuide
Do que no íntimo irei sendo.
Preocupar-te bem podias
Da saúde que vou tendo
Sem picar todos os dias
Para me manter em forma...”
- Se julgas que nada a ver
Tens com saúde, por norma,
Não estás a perceber:
Da doença que te ataca
Às vezes é tua a faca.
Fim
“Até que o fim nos separe!
...Ou que me farte de ti.
Enquanto em ti me excitar,
Tenhas-te elegante aí
Ou me sinta derretido,
A promessa faz sentido...
Até que melhor ninguém
Me apareça mais além.”
- Se tal for a jura feita,
A ninguém nada aproveita.
Ficarei
“Ficarei até à morte
Contigo, não acredito
No divórcio feito à sorte,
Entre quem finda incontrito.
Infeliz sou disto atrás
E tu também o serás?
Farei que todos o saibam:
Ao voto sacrifiquei,
Minha dor exibirei.
Que de orgulho em si não caibam
Todos, ao dar-me a medalha
De honra que a nós ambos calha.”
- Até que a morte os separe?!
Mortos já estão, se calhar...
Morrer
Até que o fim nos separe
Quererá dizer, então,
Até por morrer findar,
Do par devido a agressão?!
Abusador
O abusador diz que a raiva
É apenas paixão intensa.
Se é fúria que em si não caiba,
É que só na amada pensa.
Tanto ama que fica louco
E agredir é mesmo pouco!
Tanto
Há tanto onde tropeçar
Que viver é mui furtivo:
Há quem viva morto dentro,
Sem afecto e alma ao centro.
Quando te a morte chegar,
Reza para inda estar vivo.
Custos
Os custos que custa ferem?
Só alcança quem pagará:
Todos ir para o céu querem
Mas ninguém quer morrer já.
Andar
A vida sempre acontece
Quando eu andar ocupado
A olhar para o outro lado,
Fazendo o que já me esquece.
Cerimónia
A cerimónia no altar
Ou só de leiga feição
Como é que pode contar
Ante a lauta refeição?
O que diz de bem casar
É quanto se empanturrar...
Juro
Se juro que te amarei
Para toda a eternidade,
Tu bem sabes e eu bem sei
Como isto é uma falsidade!
Fracasso
Quando diz que irá tentar
Não é justificação
Que já esteja a preparar
Para o fracasso em questão,
Só por querer se esquivar
Ao trabalho que implicar?
Sentidos
Amar, honrar, estimar
Têm sentidos tão diversos
Que divergem em dois terços
E um terço nem é de olhar!
Funcionário
Funcionário despedido,
Jogado ao mundo que luta,
Não encontra mais sentido
Da vida em qualquer disputa.
Fechada a bolsa do Estado
Onde sempre haja mamado,
Não tem mais lábios nem jeito
Para mamar doutro peito.
A saudade que o enguiça
É ali voltar à preguiça.
Negra
A flor negra que ameia
Para uma comunidade civilizada,
Não é uma estrada,
- É uma cadeia!
Veneno
Quanta gente logra um veneno subtil
Do trevo
De folhas mil
Das coisas vulgares sem relevo!
Ordem
Uma comunidade tranquila,
Tudo em ordem, - um tesoiro?!
- Ao invés, é tudo em fila,
Pronto para o matadoiro!
Sangramento
Um bom governo é um governo
Em que não ocorre nada?
- Ocorre, ocorre: é o eterno
Sangramento da manada,
Que tudo tem de matar
Que em vida mexa, em lugar.
Importante
O País na epidemia
E eu que ia dar um passeio!
Se algo importante eu queria,
É sempre isto pelo meio!...
Menos
Quanto menos compreenderem,
Melhor se comportarão
Os carneiros que acorrerem
A se atirar ao cachão.
Os da vida que viverem
E os que vivem na Nação...
Amos
Os amos sempre clamaram
Que nunca acontece nada,
Mas sempre nos enganaram:
Em cada palmo de estrada
Aflora nova pegada.
Sempre os amos vão cair
De o erro nunca assumir.
E correm a História inteira
Sempre com a mesma asneira.
O que trepa, além de cúpido,
É deveras sempre estúpido.
Incómodo
Um homem solitário
Que incómodo que ele é!
Ele grita de alegria,
Ele grita de agonia...
Ao menos, da estatística no sumário,
Não há, de carne e osso, ninguém de pé!
Que importa que isto cheire a morte?
Quem deveras a tem tem muita sorte!...
- Eis como o estatístico
É da morte da Humanidade o dístico.
Manhã
De manhã, o sol sorrindo,
Encho meu peito de vida.
Alguém que vem vindo
Fala-me da dívida pública e das eleições
E toda a fogueira é destruída,
Morrem em cinza os tições.
A maldição
De como a gente logra estragar o chão.
Galinha
Que galinha mais ordinária:
Bate com a cabeça na parede, a crista aos estalos,
Só pela ânsia vária
De ter galos!
Índice
Quadras
regulares
Quadras
irregulares
Quintilhas
Sextilhas
Sonetos
Métrica
regular – o ser
Métrica
regular – o dever
Métrica
regular – a utopia
Métrica
irregular – o ser
Métrica
irregular – o dever
Métrica
irregular – a utopia
Da ironia
ao bom humor