CORO  DOS  AFLITOS

 

BARTOLOMEU  VALENTE

 

 

 

AROEIRA – 2013

 

 

 

                 Fátima – 20 de Maio de 2013

 

                 Ignoro porque é que o Fr. Benedito tanto insiste para que eu escreva este diário. É que ele é que é mestre de Teologia, além de padre e monge. Tem as qualificações todas, agora eu! A começar pelo meu nome, Ambrosino. Não há segundo no mundo inteiro. Até soa bem e tem conotações com a ambrósia, a bebida dos deuses, não é? Mas só por ironia: sou anão, nem monge deveras poderei ser, nem de vez ser ordenado presbítero. Sou irmão por caridade neste convento, trato da biblioteca e de pouco mais para que o meu metro e vinte (bem esticado) vai dando.

                 Claro, concordo com ele que gosto de ler, de me informar, de acompanhar o mundo e de tentar ter ideias. O meu maior entretenimento, fechado nesta clausura, é coleccionar postais ilustrados do Planeta inteiro. A minha cela, afinal, é uma janela aberta ao Infinito. Como eu tento estar. Embora de pouco valha, não é? Quem é que irá ligar às ideias dum anão que nada pode ser do que bem desejaria?

                 O meu Mestre, porém, insiste que há efeitos para além do que notamos. Não ponho em causa o poder misterioso da oração. Todavia, julgo que é tão subtil, tão suave e subliminar, embora porventura duradoiro interminavelmente, que duvido que seja a isto que se refira. Fala como quem está seguro doutra coisa qualquer. Quando lhe pergunto, fecha-se em copas:

                 - Eu cá me entendo, irmão Ambrosino, eu cá me entendo... – e sorri, enigmático.

                 Tem alguma carta na manga? Sei lá bem! Pelo que eu conheço, mas nem ao menos sei se é leitura das preferências dele, algumas das últimas descobertas desconcertantes da física de partículas comprovam que, ao focarmos o pensamento num determinado rumo para a actividade, a vida ou eventualmente o mundo, mesmo antes de agirmos em conformidade, logo uma série inumerável de partículas subatómicas se realinham naquele sentido, adequando a realidade física ao projecto mental. E não apenas no corpo do sujeito, como na atitude de prontidão, tal o atleta à espera do tiro de partida... Isto seria o corriqueiro. Há que milénios o constatamos, já nos ginásios gregos clássicos e decerto muito antes! Não, o estranho é que os físicos o verificam no ambiente em redor, nos outros indivíduos e assim por diante. E não vêem limite no espaço nem no tempo. Mais: mesmo que o sujeito não actue, este efeito ocorre. É o mais desconcertante: age sem agir! Para mim, é uma das descobertas mais inebriantes que a ciência de vanguarda me deu a conhecer. Evidentemente que é no mundo das partículas subatómicas, indiscerníveis no nosso quotidiano macrofísico. Mas mesmo assim... E para um anão, o rebotalho do mundo, teremos de concordar que é muito gratificante. Afinal, alguma marca minha poderei deixar por aqui, quando a morte me chamar de vez, por mais tolhida e marginalizada que entretanto me tenha sido a vida. É muito bom saber disto, pelo menos para mim.

                 Ao Fr. Benedito é que tal não importará nada, pessoalmente, não é? Nem se calhar andará informado destas descobertas, é um teólogo (para meu gosto, fascinante). Daí que tudo o que respeita a este campo lhe deva passar ao lado, calculo eu.

                 Para me incitar também não deve requerer nenhuma destas informações. A mim é que me dão alegria de viver e um sentido para a vida-à-berma-da-estrada que será sempre a minha, deficiente que sou, diferente empurrado para a valeta, mesmo inconscientemente, por qualquer que seja a comunidade. Por isso me acolhi a estes tectos conventuais, é onde menos à margem me sinto colocado: a instituição põe-me aparte, os monges, não. Para eles sou sempre um igual, até privilegiado por ser humilhado de tantas maneiras (mesmo por não poder integrar-me por inteiro na comunidade monástica, com votos e ordens em pé de igualdade e de pleno direito, não é?).

                 Mas dizia eu que o Fr. Benedito não precisa da microfísica para me estimular. É que me estou a recordar de que St.ª Teresa, padroeira das missões, nunca protagonizou missão nenhuma, foi a vida inteira uma freira de clausura, encerrada numa cela de convento. Como é que pode ser padroeira do que nunca fez? Contam-me que há séculos é feita a pergunta e a resposta é sempre a mesma: ela orava permanentemente pelas missões e escrevia regularmente ao Papa aconselhando-o nesta matéria, em conformidade com as visões místicas dela. Ora aqui está. Parece que a Igreja não precisou de laboratórios de física de partículas para intuir que isto operaria assim. É porventura a qualquer coisa deste género que o Fr. Benedito se prende para me levar a escrever este diário.

                 Agora o problema é que St.ª Teresa foi decerto muito eficaz na promoção das missões (até os físicos confirmam que a intensidade do realinhamento das partículas depende da força investida no projecto imaginado). Agora eu, um anónimo anão recolhido da sarjeta, hei-de mesmo ter uma grande força, não haja dúvida! Ainda por cima para o que o meu Mestre quer! Muito mais importante que as missões, mais que tudo, afinal. Aquele homem tem cada uma! Até me custa escrever qual é a espinha dorsal deste diário. Mesmo sendo apenas para meu uso, dá-me algum pudor. Quando reparo nisto, tenho mesmo vergonha de mim. E hoje não tenho coragem de escrever qual é o tema que o Fr. Benedito me propôs. Talvez amanhã...

 

 

 

 

                 Fátima – 21 de Maio de 2013

 

                 Pronto, tem de ser. E antes que me falte a coragem de novo, aqui vai: este diário é para eu alinhar as minhas ideias acerca da remodelação da Igreja, de como refundar a nossa religião. Estão a ver a enormidade?

                 Estou convicto de que, se alguém algum dia fora ler isto, desataria a rir. A mim apetece-me chorar. Sou o mais destituído possível para tal tarefa. Isto amedronta-me, um paralítico diante do Evereste com o Mestre a murmurar-me:

                 - Trepa, trepa, tu consegues!

                 - Mas eu não tenho pernas nem mãos para tal desafio...

                 - Por isso mesmo, por isso mesmo.

                 Estão a ver, não é? O que fora escondido aos sábios, revela-o aos humildes. No meu caso, aos ignorantes. O meu Mestre é assim. Ainda para mais é um sábio e dos autênticos, pelo menos pelo meu íntimo critério. Senão, como falaria deste modo e como viveria em conformidade? Julgo que tenho razão, no mínimo aqui. Lá quanto à freima que me comete, até tenho medo, mesmo sendo tarefa apenas para mim, neste rascunho aferrolhada. Definitivamente, espero.

                 Não me sinto bem com isto. Não é que me faltem algumas ideias. É que tudo é grande demais. Da minha pequenez, nem sequer avisto o tamanho da montanha... Sei lá bem!

                 Estou incomodado. Hoje não me apetece escrever mais nada.

 

 

                 Fátima – 22 de Maio de 2013

 

                 Tudo principiou com o que eu julgava que era uma brincadeira. Em que, aliás, por mal de meus pecados, alinhei. As gentes lá de fora não imaginam, mas nós aqui, com toda esta seriedade conventual, divertimo-nos muito. De certeza bem mais do que o povo mundo além. E das maneiras mais variadas. Também temos anedotário e bem chistoso e há frades humoristas que não ficam nada a dever aos do grande palco. E então improvisadores é um ver se te avias!

                 Contudo, alegrias há doutro teor, às vezes fascinantes, de nos deixarem arrebatados. E nem falo já das vivências místicas que contam serem de arroubamento, mas, como eu nunca as vivi, não me refiro a elas com conhecimento próprio. Não. Todavia, por exemplo, quando vejo o Fr. Benedito, o Fr. Marcos e o Fr. Raimundo, os nossos principais mestres teólogos, a andarem para trás e para diante ali pelo carreiro do quintal, a gesticular de entusiasmo, completamente apanhados por uma descoberta qualquer que os pôs a caminhar nas nuvens, por inteiro alheados do mundo em redor, como interpretar isto? É um momento de êxtase espalhado pelo quotidiano. E, quando partilham depois connosco as revelações que tiveram, são muito mais olhos arregalados de maravilhamento. Onde é que há disto lá fora? O grande império mundanal nem imagina!

                 Foi no dia em que o Papa Francisco nomeou a comissão de cardeais para a reforma da Igreja. Estávamos a terminar o almoço, a leitura acabara há pouco, era o momento que coubera ao Fr. Lourenço. O nosso prior chamou-nos a atenção, ao erguermo-nos para a breve oração pós-prandial, para a notícia da hora: Sua Santidade, afinal, pretendia mexer com a borra do fundo...

                 Durante o convívio posterior não tagarelámos doutra coisa. Eu, como de costume, juntei-me ao grupo do Fr. Benedito, que é sempre aquele cujas teorias me dão mais gozo. Conseguem afirmar verdades enormes a brincar e por aqui é que me apanharam. Eu julgava que era a rir...

                 - Gostava de apostar que os cardeais nomeados são os que se mantiveram anónimos por trás de O Vaticano Contra Cristo. Se o Papa quer mesmo reformar a fundo, apenas teria de se informar com aquele que deu a cara e que já estava retirado – ponderou o Fr. Ramiro.

                 - Creio que ele já morreu. De qualquer modo, não deve ser problema identificar o grupo, ao menos por suspeita, não é? – comentou o Fr. Marcos. – Os julgamentos por desconfiar nunca andaram longe da máquina do Vaticano. E os seis Secretários de Estado que pairavam acima de João XXIII, como humoristicamente ele dizia, devem andar fartos de apontar quem são aquelas ovelhas ronhosas.

                 - Se o Papa Francisco lhes pregou mesmo a partida de nomeá-los, os Secretários ainda irão morrer de úlcera gástrica – rematou Fr. Benedito. – É melhor não alimentar ilusões. São uns veneráveis cardeais, bem velhinhos, completamente ultrapassados pelo mundo contemporâneo, assustadíssimos com a tarefa e cujas propostas de renovação irão ficar por algo como isto: está tudo bem na Igreja, os chaveiros é que ficaram um bocado gastos do uso e então é melhor substituí-los por porta-chaves modernos, cheios de estilo, que a gente poderá ostentar como prova de quanto andamos no último grito da moda.

                 - Goza, goza! Olha que às tantas é o que irás ganhar na rifa. Qualquer dia estás aí, estás com uma mordaça, desbocado sem vergonha! – riu o Fr. Marcos.

                 - Pois é. Se o Papa quiser reformar a sério, não nomearia um grupo de cardeais. Pelo menos, não apenas eles – retomou o Fr. Ramiro.

                 - Ora! Querias outra vez os teólogos a empurrar os bispos como no Vaticano II? Isso é que era bom! Tínhamos para aí os bispos todos a tapar os ouvidos e a rezar terços em cadeia, para Deus lhes dar a graça de morrerem rápido para ainda morrerem dentro da Igreja. Como o bispo português de má memória que o fez durante todo o Concílio – adiantou o Fr. Benedito.

                 - Também, a não nomear aquele grupo, quem é que ele iria nomear? Foram eles que o elegeram Papa... – ponderava o Fr. Ramiro.

                 - Ora quem! É fácil: nomeava aqui o irmão Ambrosino. Aposto que faria melhor trabalho – ironizou o Fr. Marcos.

                 Rimo-nos todos com a piada. O pior é que não era piada nenhuma. Ou era e deixou de o ser. Ainda não consigo entender a reviravolta. O Fr. Benedito, não sei por que carga de água, tomou isto a peito, mesmo continuando a rir-se entusiasmado. Eu também desatara à gargalhada com o despropósito da ideia.

                 E foi assim que tal freima me veio parar aos ombros. O Papa não me nomeou, nomeou-me o meu Mestre. Bom, ponderando no peso do carrego, ainda bem que foi ele. Imaginem que era de verdade! Eu julgo que devia perder os sentidos ou então daria em maluco (para além do que já for sem o saber, não é?).

                 Mas pronto, aceito o encargo e vou dar o meu melhor, embora se me antolhe uma parvoíce: que é que eu vislumbro de tal temática? Felizmente, como ninguém irá ligar nada a isto, sinto-me liberto por este lado e muito à vontade. Diga as asneiras ou inutilidades que calhar, não importa, não virá daí nenhum mal ao mundo, claro. Que lá bem, apenas o da certeza da minha boa intenção. Quanto ao mais, duvido muito. Mas não deixa de me intrigar a firmeza com que acredita em mim o bizarro do Fr. Benedito. Que é que ele vê no anão que eu não vejo? Não é esquisito?!

 

 

                 Fátima – 23 de Maio de 2013

 

                 Isto é tão imprevisto, para não dizer disparatado, que eu nem sei por onde principiar. Durante a concelebração da manhã tomei a decisão de perguntá-lo ao Fr. Benedito, enquanto nos dirigíamos para o refeitório.

                 - Ora, irmão Ambrosino, – retorquiu-me ele – que piada é que teria? Já não era a tua proposta mas a minha. Não, regista como te vier à ideia, certo? Não te importes, deixa correr. Verás que ainda acabas por ter uma surpresa.

                 - Mas dê-me ao menos uma pista. Eu nunca me meti em alhadas destas...

                 - A única coisa que te poderei adiantar é isto: quando vieres connosco celebrar as horas, não ligues aos textos. Põe-te disponível, entendes? Ou melhor até: concentra-te nos sentidos que no ritual te predisponham a qualquer que seja a iluminação, estás a ver? Uma abertura interior completa, venha a luz donde vier, seja qual for o rumo para onde te vire. Deixa-te inspirar, mais nada. Eu irei fazer o mesmo por ti. Ficas mais descansado?

                 - Claro, Mestre, mas eu não vejo nada, nada, nada. A sério.

                 - Faz como te digo e confia. Alguma coisa te há-de ocorrer então, vais ver. E o que vier transcreve-o para o papel, nem que te pareça o maior disparate do mundo. Vá lá, deixa-te surpreender! Não te esqueças de que o Espírito sopra onde muito bem queira. Não te armes em juiz dEle nem Lhe tranques as portas.

                 - E se Ele não me escolher?

                 - Perdes alguma coisa? Não! Então põe-te ao dispor e deixa-te de palavreado vazio. Combinado?

                 - Combinado, Fr. Benedito. Mas olhe que tenho o pêlo dos braços todo arrepiado. E devo ter a pulsação no dobro.

                 - Olha, respira fundo e acalma-te. Não é nada do outro mundo. E lembra-te de que pior do que tu estarão aqueles pobres cardeais, os do grupo da reforma, que nem ideia farão da armadilha em que foram apanhados. Reza também por eles, coitados, que bem precisarão. Estes, sim, podem mesmo andar aflitos. Agora tu...

                 E eis como acabei entregue às feras. Completamente desarmado. Daniel na cova dos leões, sem ser Daniel e, quanto aos leões, só me lembro de quantos já foram mortos, por disputas deste domínio, durante mais de dois milénios.

                 Curiosamente, isto é o que menos me preocupa. A morte deixou de me meter medo. Tão gradualmente que nem dei por isso, nem me lembro desde quando. Na iminência dela ignoro se reagiria doutro modo, agora no dia-a-dia é questão que me não preocupa minimamente. Voltar à Casa Grande, qual é o problema? Pelo contrário, que bom!

                 É outro o sentimento. Perante a imensidão do Universo, nem o Planeta inteiro chega ao tamanho dum microscópico ião, quanto mais eu! Não sou nada ante o espanto da infinidade. Maravilhar-me, sim. Agora abarcá-la? Pior, configurá-la?! Ai, valha-me Deus!

 

 

 

 

                 Fátima - 24 de Maio de 2013

 

                 Cá vou eu, neste meio passo trôpego, a erguer na mão este meu fosforozito de luz que nem tenho bem a certeza se acendi convenientemente ou não. Mas não me recuso, vou! Dê lá por onde der. É o melhor de que sou capaz. Entrego-me sem reservas ao Espírito do Universo, ao Pai Grande, à Infinidade. “Eis aqui a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a Sua vontade” – é o resumo da Anunciação a Maria. Enfim, sou mais lixo do que escravo. Embora lixo vivo, tanto quanto o conseguir ser.

                 Estou pronto, venha o que vier. Nem que se me antolhe um disparate pegado. Quem sou eu para julgar? O Fr. Benedito recomendou-mo. Creio que ele tem razão. Irei ser transparente até ao limite do que for capaz. Poderei falhar, mas duma realidade estou certo: tentarei e tentarei e voltarei a tentar. Quanto ao resto... O Infinito ultrapassa-me de tal modo! Claro que jamais lograrei estar à altura, perder-me-ei fatalmente algures pelo caminho. Mas hei-de estar a caminho, prometo-o diante de Deus! E o anão tem palavra!

 

 

                 Fátima – 25 de Maio de 2013

 

                 Evidentemente, teria de ficar apanhado por uma ideia onde não vejo nenhuma relação com o que me proponho. Mas prometi que registaria fielmente o que me ocorrer e cumpro.

                 Não me sai da cabeça um velho automóvel de culto. Porquê? Nem sequer consigo lembrar-me bem da marca, julgo que é italiano, salvo erro um Lamborghini ou coisa que o valha. Bem, pensar nisto é normal, terminou há pouco o rali de donas elviras Londres-Lisboa que vi referido nos jornais e até numa reportagem da televisão (ontem à noite saímos, eu e o Fr. Benedito, para uma conversa num café com um engenheiro, antigo aluno dele – foi lá que reparei).

                 Agora, porque é que aquilo me vem obcecando? Eu nem sequer ligo nada a automóveis, quanto mais a velharias! Servem os de hoje para me levar e já é muito bom. Ponto final. Nunca me ocorreu andar o dia inteiro com uma imagem na cabeça que me não larga de maneira nenhuma. Até na biblioteca fui ao ficheiro verificar se haveria alguma obra acerca de automóveis. Que parvoíce! E claro que, no meio de tantos milhares de títulos, não há nem sequer um que se lhes refira, como era de prever num acervo conventual. Mas esta foi a minha maluqueira do dia. Se calhar até sonhei com o calhambeque, sei lá, eu nunca me lembro dos meus sonhos, desde há anos. Antes de vir para o convento, sim, depois tudo se esfumou com a vida regular. É desta acalmia, julgo eu.

                 Terá sido o retalho da conversa em que ontem à noite o Eng. Meireles referiu que andava envolvido num projecto que tinha a ver com antiguidades? O Fr. Benedito perguntou-lhe pela vida actual, em que é que a empenhava hoje em dia.

                 - Quer crer que uma das tarefas que me vem dando mais gozo, desde há tempos, é a de manter, conservar ou recuperar uma série de velhas relíquias automobilísticas pertença dum cliente meu? É um daqueles milionários completamente fanático por aquelas máquinas, tudo o que ganha é para ali.

                 - Americano, não? – quis saber o Fr. Benedito.

                 - Não, não! Portuguesíssimo, ligado à hotelaria, turismo, imobiliário e construção. Toca muitos instrumentos e deve ser muito bom naquilo tudo, porque faz dinheiro a rodos. Então, olhe, tem aquela extravagância e eu coube-me a sorte de ser o técnico responsável por manter em condições a colecção.

                 - É colecção mesmo? Quantos carros é que tem?  - tornou o Fr. Benedito.

                 - Neste momento está chegando aos trinta. Claro que não conto os quatro que mantém ao serviço dele, não são ainda para coleccionar.

                 - Um coleccionismo bem caro, não?

                 - Caro? Aquilo vale dezenas de milhões, provavelmente centenas, contando com os modelos mais antigos. Tem duas ou três raridades muito cobiçadas – comentou o Eng. Meireles.

                 - E tu põe-los todos a andar, é?

                 - Ah, não! A maior parte não funciona. É pelo prazer de os ver, é como uma galeria de arte. O mais importante é conservá-los no melhor estado possível. Como os quadros de pintura, as estátuas, os baixos-relevos... E já é uma carga de trabalhos interminável. Claro que nalguns também tratamos da mecânica e conseguimos restauros, mas nem imagina a fortuna que custa fabricar peças únicas à medida.

                 - Bem, vai distribuindo trabalho e rendimentos. Para que é que lhe havia de servir a riqueza? O dinheiro é para atender às pessoas. Tu então, economicamente, estás bem, não é?

                 - Evidentemente, Fr. Benedito. Mas nem me referia a isto. É que o entusiasmo dele por aquilo é contagioso e eu chego a dar por mim tão encantado como ele com aquelas obras-primas. É engraçado.

                 - Mas se eles não andam, se não é para andar... – intrometi-me eu, perplexo.

                 - Aí é que está o curioso – comentou o Eng. Meireles. – Não é pela utilidade, é mesmo apenas pela estética. Depois de repararmos bem, ficamos apanhados. É difícil de entender para quem está de fora. Eu também antes nunca tinha sentido isto. Para o meu patrão tornou-se um vício. Um que é apenas para milionários. Espero não o contrair, senão morro de inanição – concluiu, rindo.

 

 

                 Fátima – 27 de Maio de 2013

 

                 Definitivamente, o Lamborghini ou lá o que é não me sai da cabeça, já lá vão três dias. Grande reforma da Igreja, não haja dúvida! O anão é baixo demais para alcançar alguma lonjura. E o Fr. Benedito é crédulo em demasia, pelo menos no que me diz respeito. Não há Livro de Horas que me valha, por mais disponível que me coloque, ao correr de todos os ofícios. E durante estes dias, ao contrário do que era meu hábito, até nem falhei nenhum. Como irmão leigo, tenho a liberdade de ir ou não, mas não me valeu de nada: o maldito calhambeque persegue-me obsessivamente. Que me importa que valha milhões? Para mim não vale nada e anda-me a tapar a vista da eventual paisagem fermentadora de espírito novo, que é o que doravante mais me atrairia, mais me poderia fascinar. Mesmo que fossem visões de miudezas irrelevantes para os que vislumbrarem aquele universo em grande escala, para mim seriam decerto novidades arrebatadoras. Mas não, há-de me vir sempre a imagem toda reluzente, a faiscar, daquela velharia impertinente que nem sequer me dá gozo nenhum. Nem prático, nem estético. É-me completamente indiferente. Então porquê isto?

                 Era assim que me sentia hoje de manhã, ao desjejum após a missa, no silêncio do refeitório, mal quebrado pelo ligeiro tinido das chávenas nos pires. Resolvi ter um encontro com o meu Mestre, até porque já tinha cumprido o que me propusera: relatar o que me vier à cabeça, por mais estranho que se me antolhe. Ficar perplexo não dá para escrever mais nada, apenas “estou perplexo”. Então, pronto, esgotei o tema. O meu grande plano de reforma da Igreja: nada! Grande ajuda para o Papa Francisco, grande achega para o grupo de cardeais daquilo encarregados! Ai, Fr. Benedito, Fr. Benedito, eu bem lhe dizia que era uma loucura, o anão não logra trepar às alturas, nem à minha janela consigo espreitar a paisagem de além, quanto mais...

                 Depois de vésperas decidi bater-lhe à porta da cela. Felizmente contava com uns minutos livres que me pôde dispensar. E virou-me tudo do avesso.

                 Contei-lhe da ideia fixa que me prende a atenção, como um bloqueio. E ei-lo logo todo entusiasmado:

                 - Boa, boa! Não estás a ver, irmão Ambrosino? É mesmo isso, tiro no alvo logo à primeira.

                 - Cá por mim não estou a ver nada. Quer dizer, está tudo bem? Não há nada a reformar, é?

                 - Pelo contrário, pelo contrário.

                 E, perante a minha impaciência e desnorteamento:

                 - Calma, calma. Eu explico-te já o que estou a ver. Repara apenas na tua única intervenção durante o serão com o Eng. Meireles.

                 - Desculpe-me, Fr. Benedito, aquilo veio-me sem eu pensar, foi automático. Não devia ter aberto a boca, mas quando dei por mim...

                 - Ora, foi o que fizeste de melhor. É a chave que faz luz sobre isto tudo, entendes?

                 - Bem, para mim, um carro ou anda ou não presta: o resto não tem valor nenhum. Que é aquilo de que ele falou? Nem sabia que existia e continuo a não entender porque é que existe nem para quê. Mas ele parecia entusiasmado. Estética... Como é que alguém pode sentir estese com semelhante coisa, ignorando e obliterando o fim para que o automóvel é feito? Não terei razão? É uma vivência tão estranha que eu nem detecto em mim sequer um gérmen daquilo. Daí não conseguir entendê-lo de todo. Se os carros não andam, então é tudo sucata...

                 - Aí é que bate o ponto, irmão Ambrosino. É isso exactamente.

                 - Mas é o quê?! Que é que tem a ver...?

                 - Basta-te imaginar que a Igreja é, no fundo, um carro de culto da humanidade, desde há dois mil anos, com modelos mais ou menos alterados pelo correr dos séculos. É uma alegoria o que te veio à mente.

                 - Quer dizer, espere aí, é tudo material de sucateiro? Que disparate, claro que não! Estamos aqui num convento... Explique-me lá, que estou cada vez mais baralhado. É uma alegoria de quê?

                 - Tu é que deves ver, não é? A pista foi-te dada a ti, não a mim. O que eu vejo pode não convergir nada com os aspectos que te tocarem mais fundo, em teu íntimo. Mas a verdade é que já diz muito à minha sensibilidade. É um grande ponto de partida.

                 - Então conte-me lá o que é que lhe revela, que eu cá continuo cego, parece-me.

                 - Só se me prometeres ser bem vigilante para eu não te influenciar no teu itinerário. Senão pode ficar tudo deturpado, entendes?

                 - Para já não tenho itinerário nenhum. Portanto, é melhor abrir-me algum agora, a ver se consigo saltar do beco sem saída. Depois, está bem, vou tratar de colher atento as ideias que me ocorrerem, se algumas vierem. Que eu cá continuo muito descrente, mas quem sou eu? Bom, pelo menos, isto veio, se julga que é algo de préstimo. Um veículo de sucata... Que raio!

                 - Olha, aquilo que mais me toca é, de repente: a Igreja é uma infinita colecção de preciosas antiguidades, fulgurantes de polimento, lindas da extremosa manutenção, para maravilhamento duns milhões de coleccionadores bem nutridos (de bens e de afectos) que vivem inebriados por elas. Todavia, sendo velharias, no geral não servem doravante em nada para o fim a que eram destinadas: já não andam nem levam a andar ninguém. Como a maioria dos automóveis de culto. Ora, isto é lindo, porque é mesmo tal e qual. É o que eu sinto. Não te parece?

                 - Se o diz, Fr. Benedito. Quem sou eu...?

                 - Não, não! O que eu digo é uma coisa, o que tu vivencias é outra. Tu não és eu para sentires o que eu sinto. E o que tu sentires é que é prioritário, o projecto é teu, não meu. Prometeste que estarias vigilante para não ires pelo meu caminho, apenas pelo teu. Certo?

                 - Entendido. E então, de repente, eu acho a ideia curiosa porque me faz lembrar duas leituras antigas que fiz por curiosidade, lá na biblioteca. Recorda-se do nosso bispo, falecido já lá vai um par de anos?

                 - Claro, e daí?

                 - Daí que, para meu gosto, sempre que ele abria a boca, tudo me sabia a toucinho rançoso. Frases feitas, lugares comuns, banalidades de base, toda uma procissão de cadáveres que já deviam estar enterrados há que séculos...

                 - Pois. Desde que se formou, arrumou os livros na mala, enfiou-a no sótão e, durante decénios, não leu nem mais um autor nem trocou ideias novas com mais ninguém. Não admira no que deu, não é?

                 - Ai, mas ler, leu! Sou eu que lho juro, Fr. Benedito. Sabe porquê? É que há dois autores lá dentro cujas obras foram recomendadas por ele. Não acredita? Já lhe conto. Julgo que nunca ninguém as requisitou, nem ele, claro. Se era assim tão arredio... Mas foi o que me despertou a curiosidade. Em que fonte é que aquele homem bebe? Só lhe escorre água choca da boca, sempre quero ver em que reparou para recomendar tais autores. Não tem uma ideia de quem serão, poderia apostar.

                 - Não, de todo, mas terá de ser alguém muito escolástico, sem vigor nem hálito de vida em parte nenhuma.

                 - Ora, Fr. Benedito, muito longe de tal, muito. São poetas!

                 - Poetas?! Esta agora!

                 - É verdade. Entende porque é que eu fiquei todo picado de curiosidade? Que é que aquele homem terá visto, não é? Julgo que entendo, agora que me falou da alegoria como a está encarando.

                 - Conta lá, conta lá! Até eu acabo curioso. Cada indivíduo é uma caixinha de surpresas. Com que então, poetas! Quem, afinal?

                 - Olhe, o primeiro, naquele tempo do Antigo Regime, com a ditadura, era uma constante em todos os livros únicos: António Correia de Oliveira. Lembra-se dele? Banido pela cortina de silêncio quando a democracia finalmente foi conquistada. É engraçado que foi malquisto pelo fascismo até à velhice, por não se deixar arrebanhar. Já velho, então, não logrou resistir mais à pressão e lá o anterior regime o alistou. Por mor disto, o novo excluiu-o: eliminado, portanto, dos dois lados, a maior parte do tempo.

                 - Mas que é que tem a ver...?

                 - Ah, nada, Fr. Benedito, nada com o que estávamos a falar. É isto: eu na escola gostava do Correia de Oliveira, era miúdo e as quadras cativavam-me. Quando aqui o li, a ver porque é que o nosso bispo o teria recomendado, creio que encontrei o fio da meada. Ele tem muitos poemas acerca da vida religiosa, da fé, das crenças. Todavia, é tudo a exaltar a beleza do folclore, a maravilha da ingenuidade, da inocência popular, do romantismo dos usos e costumes, das tradições... Até quando põe em poema um pai-nosso as metáforas sabem a aldeia, são pegadas ancestrais, venerandas como as ruínas de Conímbriga ou os vestígios recuperados da ardida cidade de Herculano. É encantatório como quando lemos Os Últimos Dias de Pompeia, um passado morto redivivo ou então como quando um geólogo nos põe aqui as pedras da Serra de Aire a revelar-nos os segredos das eras geológicas de grutas e penedias em que os nossos pés caminham hoje apoiados.

                 - Tal e qual, tal e qual. Mas isto é lindo e, quando ele abria a boca, tu achavas tudo feio, não era? Olha, por mim, confesso-te, aqui entre nós, eu desligava quando ele tomava a palavra. No meu entender, lograva matar tudo em que tocava, por mais vivo que fora. Defendia-me não o ouvindo e pronto, ficávamos todos bem. Não lhe podia recusar a única abordagem que para ele fazia sentido, não é verdade? Se para mim era a morte em pé, para ele, não. Como apenas era sensível àquilo, deixá-lo lá no cemitério dele. E, agora que está morto, espero bem que descanse em paz, seja lá qual for a festa do lado de lá, que deve ter os dois pendores, creio bem, para satisfazer todas as almas.

                 - Oh, Fr, Benedito! Julga que sim?! Olhe que aquilo, da boca para fora, não tinha mesmo sumo nenhum, bem espremido, coitado do homem.

                 - Mas não acabas de contar que adoravas o Correia de Oliveira? Então...

                 - Adorava e adoro porque tudo nele é teluricamente poético, ancestralmente pejado de sentido, de valores vividos enterrados no terrunho das aldeolas, no castiço autêntico de gestos, hábitos e atitudes. Agora quando o falecido bispo falava, meu Deus! É que nem um fuminho disto, embora andando a abordar o mesmo. Aquilo era mais árido que os penhascos daqui em redor. Nem uma carrasqueira lá pegava, pobre dele, Deus o tenha em descanso.

                 - Pois, pois. Lá poeta não era. Mas nalgum ponto aquilo lhe tocava para se quedar por ali. Se calhar foi mesmo o toque da poesia, um qualquer vislumbre misterioso de magias de antanho. Isto qualquer um pode sentir. Nunca li tais poemas mas acredito que também não ficaria indiferente. Gosto deveras de boa poesia. Não confundo é os campos, cada ovelha em seu redil. Espiritualidade e religião dum lado, estese e artes, doutro. Tudo podemos e devemos conjugar mas, para evitar confusões, importa distinguir para unificar, como gostavam de propugnar os nossos ancestrais escolásticos, por sinal com toda a razão. Nisto como em muitas matérias mais. Não foram apenas a morte a peregrinar, como afinal, contra vontade, propagam hoje os actuais veneradores acríticos de tais velharias.

                 - Cruzes, Fr. Benedito! Que raio de conversa! Mas creio que o estou entendendo.

                 - E nem me falaste do outro autor que ele indicou para a biblioteca...

                 - Ah, sim! Nunca tinha ouvido falar nela, é uma francesa: Marie Nöel. Só deve haver em português aquele livro que temos lá dentro.

                 - Nunca ouvi tal nome. Quem é?

                 - É da geração do Paul Claudel, mas mais nova. Parece que o brilhantismo dele a ofuscou, enquanto vivo. Depois de morrer, ela tornou-se a maior referência poética do catolicismo francês. Ao menos é o que conta o introdutor da obra. Dum determinado catolicismo, de certeza. Integrista, à Monsenhor Lefebvre, ou coisa que o valha...

                 - Porquê? Ela não te encantou como o outro?

                 - Nem pouco mais ou menos! Também, é poesia traduzida, não é? Perde-se o ritmo, a rima, a sonoridade, sei lá que mais. Aqui é que o tradutor é traidor, queira ou não, por mais que labute.

                 - E então ficou apenas a ganga e aí já não te agradou nada.

                 - Foi mesmo. Não encontrei piada nenhuma em lado algum. Um estendal de vazios. Foi o balanço final que me deixou.

                 - Mas lá na França, pelos vistos, tocava o coração de muitos. E o Paul Claudel não era um osso tão fácil de roer assim pelos tradicionalistas ocos. Houve sempre muita polémica à volta dele. Também por mor do feitio do homem que não era pêra doce, ao que contavam. Quando lhe subiam os azeites, ia tudo raso à frente. Ninguém diria, para o autor de L’Annonce Faite à Marie, um teatro tão suave e tão profundo.

                 - Olhe, eu nem me recordo da poesia dela. Mas ficou-me um pormenor muito significativo, no contexto do que vimos falando. É que a poetisa ficou decepcionada quando a missa deixou de ser em latim. Antes não compreendia nada e para ela aquilo então era mágico. Agora que entendia perdeu a graça toda. Está a ver? É o culto da ignorância com refinamento erudito e uma sensibilidade pretensamente depurada. Para mim, isto é mesmo estranho, sinto-o quase como doentio.

                 - Bem, não é, creio eu. Diria que é a idade da inteligência mágica da criança. Já foi a da humanidade, há uns milénios atrás. E todos a atravessamos hoje pelos patamares da infância além, rumo à adultez. Há quem não cresça, porém, nunca, não é? Pelos vistos foi o caso dela. E a religiosidade popular que mais é senão isto? Um rol de puerilidades que milhões de adultos levam a peito, inteiramente desfasados da idade e do desenvolvimento que no mais lograram atingir. Aqui vivem até à morte como bebés em perene aleitamento, sem crescimento nem desmame observável. É verdade que chega a ser muito incomodativo para quem cresceu e se autonomizou interiormente um pouco. Um adulto a operar como uma criança deixa a impressão dum retardado mental. E neste domínio é-o, de facto. E mais estranho é quando nos restantes campos da vida não for assim. O desequilíbrio configura-se mesmo como uma doença. Mas não, eu nunca o leria deste modo. – O Fr. Benedito fixou-me, atento e curioso. E continuou: - Mas incomodou-te a sério. É engraçado.

                 - Pois foi. E então é isto que é o calhambeque endinheirado, quer dizer. Lido assim faz sentido. A Igreja é uma viatura de culto para as criancinhas brincarem, aí nos jardins do mundo. Não anda nem leva ninguém a andar, mas diverte e entretém. E pode encher de risos e de alegria de viver toda a criançada, mesmo de barbas ou coberta de cãs. É isto, não é?

                 - Bem dito, muito bem! Mas eu poria logo duas reservas: primeiro, todos podemos partilhar da alegria e folguedos das crianças, não é preciso ser imaturo para gostar da festa, mesmo infantil. Certo? Senão, coitadinhos dos pais e ai da educação de qualidade! Não teriam muito onde se firmar. Ocorre é que a gente madura também aprecia e cultiva outros gostos e procura outras iguarias que lhe alimentem a aventura da vida. Repara, portanto, que esta primeira reserva, afinal, valoriza quanto for valorizável no calhambeque, como lhe chamas.

                 - Quer dizer, o êxtase dos coleccionadores e demais apaniguados tem o seu lugar. Mesmo que, por mim, jogasse tudo no sucateiro, não é?

                 - Claro, tem que se lhe diga, a questão é a do recanto próprio e conveniente para tal. Estese é uma realidade, êxtase é outra, por muito que, de parentes próximos, muitas vezes conduzam daqui para acolá e vice-versa. Nada de os confundir, que são dois mundos claramente distintos. E a Igreja, enquanto acervo de tradições, é uma viatura de culto para quem adore antiguidades e velharias. Não tem nada a ver, em si, com a iluminação religiosa, com a revelação que intimamente fulmine qualquer um.

                 - E é apenas este reparo?

                 - A minha outra reserva, irmão Ambrosino, é que isto é o que a tua imagem obsidiante desperta, à primeira, em mim. E tu prometeste não te deixar condicionar pelo que eu entender, lembras-te? Logo, tu é que tens de responder à pergunta que me acabas de colocar. Certo? Porque há muito terreno a desbravar, se eu bem entendo. Se isto é tudo um automóvel de culto que não anda, que carga de trabalhos aqui te adivinho pela frente! Vais precisar de muito alimento.

                 - Ainda bem que sou anão, Fr. Benedito! Senão levava a comunidade à falência.

                 E foi entre risos que nos despedimos.

 

 

                 Fátima – 29 de Maio de 2013

 

                 Ontem tive de ir ao oftalmologista, que isto de ser anão arrasta outras mazelas. Um mal nunca vem só. E nem me bastam apenas umas meras lunetas. O meu olho direito tem outro requinte: a catarata é acompanhada dumas ondulações na lente do olho que não só me fazem ver qualquer imagem como ondulada, mas ainda me impedem uma cirurgia para remover o obstáculo, uma vez que isto a torna definitivamente de resultado incerto. É assim, ser anão é uma qualidade muito especial, nem toda a gente pode partilhar preciosidades destas.

                 Tenho de tentar levar o trabalho a bom termo antes que cegue de vez. Como é apenas num olho, não deve provavelmente ocorrer. Pelo menos a tão breve prazo que não logre dar isto por acabado. Se é que esta loucura em que me deixei envolver leva a algum final que não seja esmorecer gradualmente no vazio. O meu Mestre aposta em mim, como é que eu posso não apostar? Irei em frente, dê no que der.

                 Isto explica porque é que ontem o meu diário ficou fechado.

                 E hoje não tenho muito por onde o abrir.

                 O Fr. Benedito bem me poderia ter respondido à pergunta que lhe pus. Mas claro que tal não seria próprio dele, não é? Tem de me picar, evidentemente. E sabe bem que eu tenho avidez de ler, já devorei quase a biblioteca inteira do convento. E delicio-me quando encontro alguém com quem partilhar das descobertas e dos mundos que revelam, de os analisar em prós e contras, em causas e efeitos, enredando-os no jogo dos rumos de vida ou da falta deles. Foi por mor disto que claramente me pregou a partida de me levar a escrever este caderno. Também me dá gozo, é verdade. E ele não o ignora, igualmente. Não dá ponto sem nó, diria o povo.

                 Bem, de todo, a Igreja não pode reduzir-se a um sucateiro, para onde eu despejaria todos os automóveis que já não andam. Há quem aprecie velharias e antiguidades, vivem uma estese tal que os aproxima do êxtase (como para mim isto soa tão tremendamente esquisito!), logo, têm direito ao coleccionismo mais respeitável. Neste pendor, então, a Igreja configura uma espécie de museu mundial, exibindo peças que remontam até mais de dois mil anos atrás e que não tenho dúvidas que contarão com inúmeras obras-primas. Poderão proporcionar aos fruidores vivências de extremo deleite. Posto nestes termos, quem poderia recusar-lhes tal oportunidade? Ainda mais se com ela a estese arrastar alguém ao êxtase, não é?

                 Mas isto requer maior fermentação. Agora anda-me na ideia um comentário dum leigo, o Prof. David, quando há dias veio aqui a Fátima, às cerimónias do 13 de Maio. Ainda por cima é ateu, diz ele.

                 Vou meditar em tudo. Talvez amanhã logre ter algumas pistas alinhadas.

 

 

                 Fátima – 30 de Maio de 2013

 

                 Para mim é muito problemático não ver jogada na sucata qualquer viatura que não ande. É que olhar a Igreja como mero museu de antiguidades, para fruição de fiéis apaniguados, provoca-me desconforto. Não tanto por manter o depósito das relíquias activo, a dinamizar visitas guiadas por corifeus bem treinados em todos os rituais (chamem-lhes sacerdotes embora), mas mais pelo reducionismo do perfil.

                 Embora concorde que, em concreto, celebrações, liturgias, catequeses, devoções e todas as demais parafernálias acumuladas nem num caso em mil, de certeza, levem alguém a encarar a vida interior com alguma autenticidade. E a fé, sem a reduzir a uma superstição qualquer e a mera magia de crendices estúpidas. É uma tristeza mas é o que constatamos na quase totalidade dos ditos fiéis. Uma miséria confrangedora de qualquer espiritualidade. Não chega a ter nada a ver nem com fé nem com religião.

                 Quase nenhum deles tem interioridade assumida de tipo nenhum, e não é apenas entre leigos, também entre padres, monges e freiras. Quase ninguém acredita em nada de jeito, por escandaloso que tal se nos antolhe. Embora nestes últimos, apesar de tudo, encontremos muito mais indivíduos em busca honesta de autenticidade. Mas nunca ponho as mãos no fogo por todos, nem pouco mais ou menos. Há muito ateu de facto entre os profissionais religiosos. Muito quem se sirva cinicamente da religião para proveito próprio, não acreditando em nada, sem qualquer dimensão interior a caminho, sem qualquer abertura à Infinidade.

                 A instituição da Igreja permite mil e um arranjinhos. E os conventos não escapam a isto. Quantos por aqui não servem a Deus, Servem-se dEle e tentam manipulá-Lo, subjugá-Lo, colocá-Lo a seu mando e serviço! É uma idiotia pegada. O mais interessante da denúncia dos cardeais de O Vaticano Contra Cristo é mesmo o terem demonstrado que há disto até às mais altas esferas eclesiásticas. De modo permanente e não esporádico, em regra e não por excepção, estruturalmente e não por perversão ou abuso institucional.

                 É isto que me provoca o mal-estar. Apetece despejar tudo no caixote do lixo. Mas depois há o reverso da medalha. E o pequeno resto que procura autenticidade, espiritualidade, rumo interior, aprofundamento e esclarecimento da fé? Haverá outro caminho? De certeza que há-de haver, mas qual?

                 Pelo menos a Igreja de massas é a grande massa de ateus anónimos que nem sequer se reconhecem como tais. E vivem permanentemente iludidos de que são crentes sem o serem de forma nenhuma. E o fenómeno é o mesmo em qualquer confissão religiosa. Os fanatismos não passam disto, são a ponta do icebergue duma idolatria qualquer: erigiram um dogma, um conceito arbitrário numa verdade absoluta e toca de o adorar, de em nome dele matar, violentar, aterrorizar – e Deus e o Infinito e a Eternidade e a evolução íntima, o crescimento interior interminável para se lhes irem identificando, acabaram, vai tudo para a lixeira, trocado pelo bezerro de oiro perante o qual todos se prostram, muito convencidos, de boa fé.

                 Como é que não viram que as conversões de massa de antigamente só poderiam dar nisto, num alheamento auto-suficiente, numa alienação e perversão corrupta de tudo? Para ficarem todos muito satisfeitos com isto é porque, afinal, eram, no geral, assim, andariam todos convencidos de que aquela aberração é que é a verdadeira fé. Seria mesmo? É muito estranho! Toda a organização eclesiástica apanhada, dominada por tal corruptela? E as vivências autênticas sem lograrem prevalecer nunca, história além? É arrepiante reparar nisto, o cesto anda cheio de maçãs podres e a gente a servi-lo como a boa fruta... É de ficar com vertigens.

                 Bem, o Fr. Benedito diz que é apenas o nível da infantilidade. Falta crescer até à maturidade visada. É um ângulo mais esperançoso, ele há-de tentar, infatigável, jogar sempre fermento na fornada. É uma razão porque é o meu Mestre. Eu é que o escolho, que ele ri-se disto e não liga. O que lhe importa é a fruta boa que eu e qualquer outro consigamos ir sendo e amadurando.

                 Mas aí é que está: ele nunca chegará a prior, por exemplo. Tudo anda dominado pelo outro lado: a fruta podre é o nosso reino, dentro da instituição eclesiástica dita Igreja.

                 Apetece-me separar ambas as coisas: o corpo místico de Cristo é uma Igreja, a instituição sociológica é outra – e uma nega e anda a destruir sistematicamente a outra. Até agora com a claríssima vitória da podridão, história além. O império da cristandade foram os séculos do reinado-mor da idolatria: a igreja-instituição identificada com o Reino de Deus e, portanto, a substituí-lo. Ainda bem que hoje em dia acabou. Mas acabou mesmo? Há tantas sequelas de pé por todo o lado!... Pelo menos não há mais Cruzadas, não há mais Inquisição... Ou não? À descarada, não, claro, mas encapotadamente andarão por aí a rebentar das raízes? Às vezes cuido que sim. Há uma postura estranha que nos tapa a vista diante da fé autêntica, pelo menos do afloramento dela, de modo que a não logremos identificar nem reconhecer. Não consigo bem agarrar o que é, identificá-lo e apontá-lo a dedo, para qualquer um o poder desmascarar.

                 É a ambiguidade do caso do Prof. David, que se diz ateu e eu não vejo como tal. É, aliás, a ambiguidade do cerimonial inteiro da Cova da Iria e dos milhões de fiéis, curiosos e turistas que anualmente por aqui perpassam. Um dos nossos frades gosta de chamar sempre àquilo um enorme parque de estacionamento, onde executam regularmente espectáculos de folclore, com casa mais ou menos cheia. Outro cantou humoristicamente o Avé de Fátima como a música folclórica mais afamada do País, numa das nossas festas, partilhada por leigos dum curso de teologia... Claro, é para evitar a sacralização indevida do que é profano, por mais que arraste multidões. O P. Mário de Oliveira, da Lixa, então desanca nisto tudo sem dó nem piedade: não tolera que passem como fé autêntica uma enorme mistificação de massas, o vazio de interioridade destas colossais encenações em que toda a gente é, afinal, ludibriada, confundindo fé com espectáculo, espiritualidade com manifestações populares. E tudo com o aval oficial da instituição eclesiástica!

                 É verdade que eu sinto o mesmo. É no segredo, na solidão da intimidade que o Espírito se manifesta. E, sendo duma tremenda força, é igualmente duma infinita vulnerabilidade: um nada e a chama apaga-se. E para tornar a acendê-la, que carga de trabalhos! Então, perante isto, que é que aquilo representa? Um esforço colectivo para torná-lo inviável, para lhe apagar o rasto? Seria o mito da cristandade consumado: a Igreja sociologicamente implantada a substituir o Reino de Deus e a apagá-lo do mapa. Não teria aqui mais nada que fazer. Um triunfalismo muito míope. E bem ateu. No cume da pretensa manifestação de fé!

                 Será mesmo isto, um carro que não anda, a despejar no sucateiro? Parece. Contudo... Há o caso dos Profs. David, se calhar aos milhares, que me deixam perplexo e confuso.

                 Este veio ver o arraial das celebrações, bem descrente e crítico quanto ao sentido que tudo aquilo poderia fazer para tanta gentinha ignara ou ingénua. Queria entender que é que, enfim, atrairia ali tamanha multidão. E depois aconteceu.

                 Apareceu aqui na portaria com o Fr. Marcos. Ainda vinha emocionado. Conheciam-se duma palestra na Universidade em que ambos haviam debatido uma qualquer questão comunitariamente fracturante.

                 - Isto deixa-me mesmo confundido – comentava o Prof. David. – Até à procissão do adeus não vislumbrei nada que me tocasse positivamente. Bem pelo contrário, cheirou-me tudo a pieguice beata, a um simulacro de mau teatro. Mesmo na bênção aos doentes, coitados. Não pude chegar-me lá muito perto, estava atento a algum milagre crendeiro, mais ou menos forjado, não digo de má fé, mas de crendice mágica supersticiosa. Não houve nada, afinal. Mas fiquei com pena daqueles doentes todos, uns poucos tinham mesmo cara de ansiosos, numa expectativa tremenda. Lamentei-os pela frustração que vi nalguns e que acredito que é geral e de boa fé. É tudo muito ingénuo e sem fundamento, no meu entender, mas verifiquei que era franco, era autêntico. Uma enorme esperança que terminou frustrada, coitados!

                 - Perfeitamente de acordo – rematou o Fr. Marcos. – Conhece bem as minhas reservas quanto a isto tudo. É demasiado superficial e fruste. E não tem nada a ver com qualquer vivência da fé, com uma aventura no universo da espiritualidade. Mas o que lhe ocorreu não encaixa nisto, não é verdade? E então os outros que vimos lá a chorar desalmadamente? Não os critico, Prof. David, que aquilo a mim também normalmente dá-me riso e eu tenho de me conter, com grande esforço, por respeito para com os indivíduos. Mas acabo perguntando sempre: qual é a diferença? Tenho dificuldade em encontrar respostas.

                 Eu não estava a entender grande coisa e olhava interrogativo dum e para o outro, sem me querer intrometer, que o diálogo não era comigo. O Fr. Marcos apresentou-me e envolveu-me na partilha de vivências.

                 - Qual é a dúvida, irmão Ambrosino? – perguntou-me.

                 - De que experiência é que vêm falando?

                 - Eu explico – retomou o Prof. David. – Foi agora na procissão do adeus. Até estava para nem assistir a mais aquilo, de tão fatigado e céptico. Era tudo o mesmo. E não me dizia nada, para além do espectáculo deprimente dum inumerável povo de ignorantes, pejado de crendices, superstições, de mentalidade mágica mais bolorenta que a da idade da pedra. Depois apanhou-me de repente, sem aviso prévio. Mal consigo explicar...

                 - Mas o quê?!

                 - Pois, isso é o que bem gostaria de compreender! Gostaríamos ambos, não é, Fr. Marcos? Mas eu relato os factos. E sei que mais uma vez não me vou conseguir dominar, vocês desculpem a minha fraqueza. Nunca passei por uma coisa destas na vida!

                 - Ora, ora! – cortou o monge. - Já me ocorreu várias vezes e é sempre a primeira vez. E sempre, no fundo, um mistério. Não se iniba, por amor de Deus. Ponha aqui o nosso irmão leigo a par, que para ele também não é estranho, vai ver.

 

 

 

                 Fátima – 31 de Maio de 2013

 

                 - Apenas descrevo os factos, já que me baralham, não estou entendendo nada – continuou o Prof. David. – Eu estava no ponto mais alto do recinto, à frente do cruzeiro, mas adiantado, na linha onde o declive principia. Queria abarcar a maior perspectiva da multidão, já que tinha vindo para observar, não é?

                 - Daí vemos praticamente toda a gente. Até eu, que sou anão. Já lá estive também.

                 - Exactamente. E foi decerto por isso. À medida que a imagem da Virgem ia percorrendo a multidão, com aquele coro imenso a cantar o adeus, os lenços brancos elevando-se a acenar a despedida, até que ficaram aos milhares e milhares a adejar, no fim, com toda a gente ao meu redor de lágrimas a cair pela cara abaixo – isto emocionou-me de tal modo que não logrei conter-me e desatei a chorar com todos. Descontrolei-me por... -  e a voz falhou.

                 - Pois é, – ajudou-o o Fr. Marcos, enquanto o Prof. David levava o lenço aos olhos bem vermelhos (reparei eu então). – é uma experiência desconcertante. Creio que muitas vezes é por simpatia que isto ocorre: um indivíduo vê outrem a chorar, desata a chorar também. É como o riso: entramos numa sala à gargalhada e damos connosco a rir sem saber porquê. Quando é genuíno, contudo, não é assim. As cordas da emoção vibram dentro de nós e não fomos nós que as tangemos. Algo nos revolveu funduras que não dominamos e é isto que desconcerta.

                 - Exactamente, Fr.Marcos, exactamente – retomou o Prof. David. – De repente aquele espectáculo imenso tocou-me tão profundamente que o senti como um afloramento de algo colossal, uma realidade infinita, uma maravilha de magia encantatória cósmica. Não tenho palavras para semelhante revelação. É lindo, lindo, lindo! Arrebatador, vi-me elevado num arroubamento como se entrasse noutro mundo, de repente encontrava-me numa nova dimensão. Maravilhoso! – De súbito mudou de tom: - Mas as palavras não contam nada do que é, a linguagem é mesmo traidora. Não consigo explicar.

                 - Quem já o sentiu entende-o, até porque também não tem palavras para descrevê-lo – apoiei-o eu, um bocado timidamente. – Eu vi-me num estado que julgo que era igual, num contexto completamente diferente. Foi no Porto, à passagem do cortejo presidencial, numa visita, há muitos anos, dum Presidente do Brasil. Quando toda a gente desatou às palmas, aos gritos, a acenar com bandeiras, olhe, fiquei nesse estado. Uma revelação de maravilhamento e sem palavras capazes de traduzir a emoção que rompe com a barragem das lágrimas. E o sentimento de algo grande, descomunal, um afloramento do infinito, mesmo na conjuntura mais inesperada. No meu caso era-o de certeza. Que é que um cortejo tem a ver...? Ao menos aqui estamos num contexto de fé, seja embora infantil ou germinal, não é?

 

 

                 Fátima – 3 de Junho de 2013

 

Quase perdi o fio à meada com o atendimento a visitas no fim-de-semana. Desta vez foram principalmente leigos. Parece que a crise económica obriga a repensar os rumos de vida, os valores, os laços humanos, as solidariedades... Que ao menos do que é mau resulte algo de bom! Foi o que eu vislumbrei do corropio destes dias por estas bandas.

                 Mas retomemos a conversa que tive de quebrar.

                 - Para mim o mais desnorteador é mesmo este aspecto de uma tal emoção (que podemos dizer que é iniciática) se revelar nos contextos mais estranhos, diria até contraditórios – contemporizou o Fr. Marcos. – Há muitos convertidos que o fizeram a partir de tal vivência. Espero bem que não tenha sido por equívoco. Digo isto porque não é nada linear a ligação entre esta emoção visceral arrebatadora e a revelação da fé. Que esta provoca o mesmo, parece não haver dúvida: a visão bíblica do Monte Tabor é mais um caso de irrupção do inefável. Só que o mesmo sentiu Newton ao descobrir a resolução matemática da gravitação universal (a euforia foi tal que errou os cálculos um mês inteiro e teve de pedir a um assistente para os completar...). E Einstein punha a religião de lado porque lhe bastava levantar a ponta do véu ao mistério do Universo e maravilhar-se: estava falando, manifestamente, de vivência idêntica. A uns leva-os a ajoelhar em adoração, a outros à recusa de ajoelhar e adorar o que quer que seja.

                 - Ainda não estou em mim – confidenciou o Prof. David. – Não consigo vislumbrar sequer o que é que um arroubamento destes implica.

                 - Os do Monte Tabor não queriam descer mais, tão fantástica era a visão. Propunham-se montar tendas ali e ficar por lá o resto da vida – ironizou o Fr. Marcos.

                 - Como eu os compreendo! – confirmou o Prof. David. – Pudera eu viver indefinidamente naquele estado, que maravilha! Não ia querer outra coisa. Era o ideal. Para mim como para a Humanidade. Agora, é isto a fé? Toda a gente desatou a chorar ao meu redor por sentir o mesmo? Se for, então é deveras uma grande teofania, um vislumbre de Deus. Só que, depois, trocado isto por miúdos, no geral redunda num chorrilho de superstições, infantilismos mágicos, irracionalidades, crendices... Estou mesmo confundido, Fr. Marcos. Depois duma coisa destas nem sei que lhe diga.

                 - Nem eu, Prof. David, nem eu. O que lhe poderei adiantar é que no caminho da vida há muitos marcos da estrada, e uns indivíduos vão mais adiante, outros mais atrás. E outros ainda sairão dela, perdidos, não é? Como todos os peregrinos. Enfim, nada disto é linear, ignoro se ajuda... Claro que não estou falando da idade, mas do itinerário interior. A larguíssima maioria é um bebé de leite nos caminhos da fé, é verdade, não vale a pena escamoteá-lo. Eu até compreendo os cientistas arrebatados que recusam rebaixar-se a tal miséria e degradação mental e humana. Como é que podiam? Ainda bem que o fazem. Mas depois reparo que Newton sempre se declarou crente. Então... Até deste lado isto tem muito de misterioso, não é?

                 - Mas se todos os que estavam à volta ali a chorar era por uma vivência idêntica... – principiou o Prof. David. – Eram os mesmo atrasadinhos mentais que vi num  espectáculo de palermice pegada durante os cerimoniais todos, desde a procissão de velas. Visualmente até foi um cenário lindo de se fruir, pela noite fora. Mas levar aquilo a sério como eu os vi? Poupem-me! Que mentalidade de vistas mais curtas! Como é que isto se compatibiliza com a revelação arrebatadora que me agarrou neste final? Que os agarrou a eles também de certeza? Que é isto?

                 - Sabe que na Páscoa contaram-me um episódio...? – interrompi eu, de repente esquecido de que não passo dum mísero anão, embora com formação universitária (vale-me de muito!). – Fui gozá-la a Vila Meã com os meus pais. A minha família contou-me divertida o que havia ocorrido na igreja paroquial uns dias antes. O pároco resolvera engendrar uma surpresa à comunidade. Como por trás do altar-mor existe uma enorme tela pintada com Jesus em oração no Jardim das Oliveiras, quase ninguém se lembra de que, se ela for enrolada, abre para uma pequena escadaria que vai afunilando até uma espécie de trono, no topo. Em algumas solenidades era ali exposta a píxide, com a hóstia consagrada, para veneração dos fiéis. Ritual raro, decorriam anos sem ele ocorrer.

                 - Olhe, era uma das cerimónias das que eu e o meu primo mais velho aproveitávamos para fugir para a torre sineira, - comentou o Prof. David - para falarmos dos mexericos de miúdos. Enquanto os nossos pais não davam pela fuga...

                 - Eu também em ganapo me escapulia sempre que podia – continuei. – As famílias continuam a não entender a violência que aquilo é para os pequenos. Se calhar também para os outros, não, Fr. Marcos?

                 - Ah, pois, irmão Ambrosino. Mas conte lá o tal episódio da Páscoa.

                 - O pároco enfeitou os degraus, cobrindo-os de flores e culminou tudo com uma imagem dum Cristo ressuscitado. Nada demais, não é?

                 - Claro, uma variação a propósito. Se calhar, como miúdo, também gostaria de ver – sublinhou o Prof. David.

                 - Ora, contou-me a minha mãe, o estranho é que ele preparou a comunidade, durante a homilia, para a obra de arte efémera, retirando a tela no fim para todos poderem apreciar. Agora, reparem. A minha mãe achou que estava bonito, o meu pai olhou e ficou indiferente, mas à volta deles, em toda a nave da igreja, houve uma quantidade enorme de gente que desatou a chorar, muitos a gemerem de emoção, com comentários estrangulados de quem perdeu a fala, de espanto. Creio que é a mesma vivência, mas mostra como toca a todos de modo diferente. A minha mãe relatou-mo justamente por não entender como é que era possível tanta gente findar subjugada por uma coisa tão banal: um arranjo de flores. Era lindo. Mas a ponto de chorarem de maravilhamento?!...

 

 

                 Fátima – 4 de Junho de 2013

 

                 - É curioso que isto revista – anotou Fr. Marcos – quase sempre uma conotação religiosa. Estou a lembrar-me da festa do Natal transacto, ao serão, quando foi deita a leitura de trechos da Anunciação a Maria, de Paul Claudel, com uma encenação definitivamente básica: quatro personagens sentados a uma mesa, com toalha, iluminados cada qual por uma vela, lendo as respectivas falas e apagando o pavio próprio ao acabar a derradeira, até ficar todo o cenário às escuras, no final.

                 - Bem, aí o tema era definitivamente religioso... – hesitei eu, não atingindo onde o Fr. Marcos queria chegar.

                 - Claro, claro. O que me lembrou foi uma fala que tive ao fim com a Irmã Sílvia, a professora de Matemática. “Chorei como uma Madalena” – confidenciou-me ela. “Aquelas palavras, naquele contexto, com as velas a apagarem-se uma atrás doutra... Foi demais para mim. Maravilhou-me de tal modo, uma experiência de religiosidade pura! Conseguiu arrebatar-me.” Estão a ver? Uma coisa de nada e, para a irmã, um arroubamento, uma autêntica revelação divina. Afirmou-mo com toda a segurança, bem firme. Ora, não é uma mulher qualquer, tem formação superior, académica e religiosa. O que me leva a perguntar se ela tem razão e Einstein, Sagan e sei lá quantos mais andam enganados ou então se é ela quem se engana ao ler como leu tal vivência. Se calhar têm todos razão e a questão será outra qualquer que eu, pelo menos, ainda não abarquei.

                 - Do tipo estese para um lado, fé para o outro? – atrevi-me eu, lembrando-me do comentário do meu Mestre.

                 - Esta é boa – interveio o Prof. David. – Fará todo o sentido quando nos lembrarmos de que há quem desate a chorar de maravilhamento ao ouvir, por exemplo, o Hino da Alegria da 9.ª Sinfonia de Beethoven. Bom, mas a juventude chora nos concertos dos ídolos dela, não é? E, pelo menos para mim, aquilo é uma fancaria musical sem pés nem cabeça, praticamente sempre e em todos os números debitados. Então, que é que há de comum? Realmente, se calhar, é apenas o sentimento subjectivo do belo. A nossa sensibilidade à beleza é que nos leva a reagir deslumbrados. Ora, o que deslumbra um, pode deixar outro indiferente ou até em rejeição. As grandes obras de arte, no passado, tiveram sempre este efeito contraditório na assistência. Primeiro, grandes pateadas; depois, elevadas aos píncaros.

                 -E não tem nada a ver com a fé – rematou o Fr. Marcos.

                 - Pois não – confirmou o Prof. David. – Mas então porque é que eu sinto que me está escapando algo? Ainda por cima, com a intuição de que é o fundamental? Que vivência mais estranha!

                 - Não se sentiu pequenino? – saiu-me sem eu reparar. Envergonhei-me, cuidando que ele poderia interpretar mal aquilo, vindo da boca dum anão. Calei-me logo. Felizmente ele não notou este pormenor, embrenhado na ambiguidade e fulgurância das próprias vivências.

                 - Sim, sim. Eu até diria mais, - continuou ele – senti-me uma nulidade, um nada perante a imensidão, a irrupção de qualquer coisa de infinito. É isto que arrebata e esmaga ao mesmo tempo. Mais o sentimento de que sou indigno, não merecia nada semelhante maravilha. Isto é muito rico de aspectos, parece inesgotável...

                 - E assim, de repente, não lhe apeteceu... sei lá...? – interrompi, meio envergonhado. Que é que me deu? Estava-me a lembrar de mim e esqueci-me de com quem falava. Fechei a boca, ia quase pedir desculpa mas contive-me. O Prof. David continuou a não estranhar. O Fr. Marcos tinha cara de divertido, mas contendo-se, disfarçando com um ar prazenteiro e atento.

                 - Ai apeteceu-me, pois, era como reduzir-me a nada, aniquilar-me perante semelhante grandeza, enterrar-me pelo chão abaixo, não sei explicar. E, ao mesmo tempo, viver apenas o maravilhamento, ser do tamanho do infinito. Isto faz algum sentido? É tudo contraditório...

                 - Naquele instante morreria por aquilo, não é? – interveio o Fr. Marcos. – Até lhe daria gozo poder fazê-lo, manifestando a euforia do arrebatamento, o tamanho descomunal da revelação. Assim como que a proclamar: eu não sou nada diante do Infinito. Qualquer coisa deste género...

                 - Creio que sim. Mas as palavras são muito pobres. É uma vivência tão forte! Agora é que eu entendo deveras o que quer dizer inefável. Não é possível transmiti-lo em linguagem. De todo.

                 - Mas esperem – atrevi-me a interromper, com uma evidência inesperada a aflorar-me à ideia. – É que isto é a vivência do acto de fé, no seu conteúdo mais radical. É o que os místicos todos descrevem ou não é? – e virei-me para o Fr. Marcos.

                 - Aí é que bate o ponto. Não tem nada a ver com a fé e, todavia, é o acto de fé na raiz mais genuína dele. É tudo contraditório, não há dúvida, mas que havemos de fazer? É a realidade, são os factos. Apenas nos resta continuar à procura. A ver se alguém vislumbra alguma luz... E partilhar qualquer velinha que quenquer venha a acender.  

                 - Bem, uma coisa lhes garanto - retomou o Prof. David. – Se os místicos lograrem fruir permanentemente daquele estado, como em êxtase, então eu também quero ser místico. Aí é que daria gozo viver. O resto é um lixo, comparado... que piada tem a vida? Sim...

                 - Ninguém vive em euforia permanente, - comentou o Fr. Marcos. – O entusiasmo, o ficar pejado de Deus dos místicos, é em alguns momentos privilegiados. Às vezes sofrem bem mais do que gozam. Mantêm-se é fiéis à lógica de tal revelação-descoberta pela vida fora. E podem, claro, fruir de muitos momentos destes. Por outro lado importa não esquecer o encontro de S. Tomé: “creste porque viste; bem-aventurados os que não virem e crerem”. É do Evangelho da ressurreição.

                 - Mas isto é que é decepcionante – retorquiu o Prof. David. – E então quando olhamos a mediocridade dos pretensos crentes... É caso para afirmar: valha-nos S. Tomé!

                 - Amém! – ironizou, rindo, Fr. Marcos. – O mistério é aquilo de que só podemos ter vislumbres. E quantas vezes nem nisto acertamos!

                 - E qual é o seu? – insistiu o Prof. David. – Como é que interpreta uma vivência destas? Tão arrebatadora e tão esquiva ao mesmo tempo?

                 - Neste momento eu distinguiria os planos de abordagem. Para mim, também uma coisa é a estese, outra coisa, a fé. A beleza, em qualquer domínio, desencadeia em nós o sentimento estético, seja numa paisagem, numa flor, numa música, numa pintura, numa catedral, num poema ou romance, sei lá, até numa pessoa que desperta o amor. Todo o Universo está cheio de realidades, a principiar nele próprio, capazes de nos deslumbrarem. Tudo isto é estese, não é fé. E quem ficar por aqui fica com a euforia do maravilhamento que, aliás, a ela própria se basta. Não precisa de mais nada para colorir a vida. A fé consta doutro conteúdo: envolve a pessoa inteira (não apenas os afectos e muito menos só o da estese) porque empenha a crença na realidade e na aproximação indefinida ao Infinito que denominamos Deus, presente na intimidade do real em todas as dimensões e perspectivas. A caminhada pessoal rumo ao Infindo, ao Eterno, não deixa nada de fora, é o indivíduo todo, toda a vida.

                 - Creio que começo a entender. Como envolve tudo, então envolve também a estese, não é? E aí vem outro plano, é isso? – continuou o Prof.David.

                 - Bem visto, evidentemente. E a recíproca também.

                 Perante o nosso ar perplexo, Fr. Marcos acrescentou, solícito:

                 - Eu explico, pelo menos tanto quanto o logro entender. Não é muito, creio eu, mas julgo que faz algum sentido.

 

 

                 Fátima – 5 de Junho de 2013

 

                 O Fr. Marcos é aqui o perito das análises a bisturi, às vezes discriminando com tal pormenor que nos custa segui-lo. Preparei-me para mais uma delas. De qualquer modo, relendo toda a conversa, como remeter tudo isto para o sucateiro? Mas... e se o carro não anda, ao fim e ao cabo? Eu perco-me mesmo, no meio do cruzamento dos trilhos.

                 Retomemos, porém, o fio da meada.

                 - Então é isto – continuou o Fr. Marcos. – Uma vez distinguidos os campos da beleza e da fé, como o Prof. David logo entendeu, o crente envolve-se inteiro e, portanto, engloba na vivência-projecto da respectiva fé também a experiência própria do belo, como qualquer outra. É uma dimensão da vida dele onde as crenças se reflectem como enformam tudo o mais. É uma componente do sonho a caminho. Seja lá qual for a manifestação que revista em concreto no respectivo quotidiano: tanto podem ser obras de arte, como atitudes nobres, como padrões comportamentais onde a fé acaba reflectida de modo gritante, caso dos místicos, ou anónimos rituais e celebrações, ou um quotidiano apagado mas pejado de conteúdo e de sentido pessoais que de fora mal suspeitamos... Eu sei lá, crer opera como fermento na fornada inteira da vida. Ora, tudo pode ser belo para qualquer um. Foi o que vimos, não é verdade?

                 - Até aqui, tudo bem, intuí logo que argumentaria por aí – comentou o Prof. David. – Mas qual é a recíproca? Que é que quer dizer?

                 - Repare na vivência do arroubamento pela outra ponta. Acabou de me contar que é simultaneamente exaltação e aniquilamento, vislumbramo-nos um zero elevado ao infinito, sentimo-nos puxados tão para além da vida que a sacrificaríamos de bom grado pela eternização daquele momento efémero, se tal fora viável. Ora, isto é o gérmen do acto de fé. Descubro-me um nada perante a infinidade que se me entremostra, num fugaz afloramento. Neste pendor, toda a vivência do belo tem no íntimo uma manifestação do divino, uma réstia de luz que deslumbra com a marca do ilimitado, rompe a fronteira do tempo-espaço, é um instantâneo vislumbre do eterno, do infindo. Ora, como tudo pode conter uma centelha do belo, a natureza inteira manifesta a glória de Deus, como diz o salmista. A questão é que nos toque, nos bula intimamente por este lado. E eis como o que é tão distinto à partida se unifica à chegada. É o que eu por ora consigo entender, não sei se me exprimi de forma suficientemente clara.

                 Ficámos a olhar para ele um grande bocado, em silêncio, remoendo ou assimilando aquilo. Por mim, tudo bem, é disto que eu gosto, quando eles iluminam alguma coisa obscura, nem que seja apenas com uma minúscula velinha. O Prof. David acenava com a cabeça acima e abaixo mas, curiosamente, aquilo não queria dizer sim nenhum, não era uma concordância. Entendi logo que seria mais acolhimento da ideia e gratidão. Sem compromisso. Seriam tópicos para deixar fermentar com tempo.

                 Para mim, porém, tudo isto era uma ratoeira: adianta-me algum degrau no modelo de renovar a Igreja? À primeira vista, fica tudo tal e qual, não é? Pois se tudo liga a tudo... Ou não? O carro, afinal, anda ou fica parado?

                 Quem me manda a mim meter-me em tais alhadas?

 

 

                 Fátima – 6 de Junho de 2013

 

                 O Fr. Benedito riu-me na cara quando lhe narrei a minha paralisia de propostas renovadoras: iríamos mesmo acabar no porta-chaves da moda. Porque, afinal, no grande parque de estacionamento do recinto da Cova da Iria quem não tinha motor de arranque nenhum, no fim de contas, era eu. Aquilo ali é mesmo um enorme parqueamento de multidões que não atam nem desatam ou a linha de partida para os crentes arrancarem em rali acelerado? Se ambas as alternativas são viáveis, então é deixar a cada um a respectiva escolha. Que é que a Igreja tem a ver com isto, enquanto instituição eclesiástica? Encena um ambiente adequado e cada um que use o livre arbítrio. Ou não é isto?

                 O resumo antolhava-se-me equilibrado, mas o Fr. Benedito desatou a rir. A rir de mim, da minha cegueira. É sempre isto e eu nunca logro abrir os olhos, mesmo para o que me estiver acenando perante eles. Acaba por ter piada. Como é que fico tão cego? E como é que há quem agarre tudo logo à primeira? O meu Mestre para mim é o melhor, justamente por mor disto, parece que adivinha. E põe logo o dedo na ferida.

                 Creio que lhe estraguei o passeio na hora da sesta, porque hoje apoderei-me eu dele e não os companheiros que, àquele intervalo, foram espojar-se à sombra da cerejeira que temos no fundo do pomar. A propósito, têm sido as cerejas dela a nossa sobremesa ultimamente: muito doces e bem carnudas, embora este ano, não muito abundantes, por causa da alternância de chuvas, calor e frio que, desde o inverno, tem sido a marca do clima pelos meses fora.

                 - Então, irmão Ambrosino, empanou no grande parque de estacionamento, foi? – gozou ele, brincalhão como sempre. – Pior, pior: após um momento de euforia. Então aí não era de arrancar em vez de ficar parado? Quando alguém acaba entusiasmado desata aos pulos, não é?

                 - Isso foi o Prof. David, não eu. E não foi a pular, foi de lágrimas nos olhos, de tão emocionado com o choque ou o arrebatamento.

                 - Pois claro. Com que então o professor também apanhou uma grande bordoada. Foi óptimo, foi óptimo, ele é um bom tipo, merece-o.

                 - Mas, apesar de confundido, creio que continua tão descrente como antes. Nele parece que o entusiasmo fica por comovê-lo até às lágrimas e é tudo. Noutros redunda em fé. Tem os ingredientes para dar para qualquer dos lados, daí eu não ver nisto nada relevante para qualquer muda na Igreja.

                 - Ai não? Então olhe lá: imagine que era o Fr. Ramiro, a nossa garganta de oiro, que apelava ali às multidões, em lugar dos bispos que se andam revezando naquilo há um ror de anos. Qual era a resposta daqueles milhares? Igual, diferente?... Para melhor ou para pior? Hein?

                 O Fr. Ramiro é o melhor comunicador do convento, improvisa cada alegoria, cada figura de estilo mais a propósito, que é sempre uma alegria ouvi-lo, tem carisma deveras.  É o nosso preferido quando é questão de adequar o fermento à fornada, de nos ajudar a integrar valores, modelos, rumos na vida real. Ele convence mesmo, logra colocar cada aspecto na perspectiva exacta em que nos leva a querer aquilo a sério no nosso dia-a-dia. Alguns comentam que até parece que nos hipnotiza, porque é normal findarmos entusiasmados, após as intervenções dele.

                 - Oh, claro que entraria tudo em delírio – retorqui eu, convicto. – Mas que é que tem a ver? Aliás, já se comovem até às lágrimas aos milhares, mesmo assim...

                 - Mas então, se aquilo é para alimentar a fé, como é que deveria ser? Com aqueles bispos todos a debitar lugares-comuns, banalidades de base, cadáveres teológicos bolorentos há séculos, alguns há milénios? Ou antes alguém a servir a vida a palpitar de carne e sangue em todos os desafios de hoje, com vislumbres de trilhos libertadores, com pistas de mundo novo a entrever-se por todo o lado? Como é que é, como?

                 - Evidentemente, era muito melhor à Fr. Ramiro. E deve haver muitos como ele pelo mundo fora, não é verdade? O universo de escolha deve ser muito largo, calculo.

                 - Pois é. Então porque não vão por aí? E repare, é apenas um exemplo. Se olhar bem, descobrirá que é tal e qual o mesmo praticamente em tudo. Portanto, em que é que ficamos?

                 - Bem, julgo que nada impede o bispo daqui de convidar qualquer Fr. Ramiro para pregar à multidão. Agora não vejo qual seria a reacção de trocar um bispo, mormente estrangeiro (que vêm aí de todo o mundo à testa das peregrinações) por um monge qualquer incógnito. Iria dar muita bronca de certeza, não é? Como é que poderia ser? Leriam logo nisto uma desautorização, um ataque à hierarquia, ou um desprezo pelas comunidades cristãs espalhadas pelo planeta. Chegam aqui de todos os continentes, neste aspecto é mesmo o altar do mundo inteiro. Nem deve haver outro igual em mais lado nenhum.

                 - Vês como desatas a separar o trigo do joio? Afinal, todo este espectáculo não é por mor da fé, pelo menos prioritariamente, do lado da organização. À frente ela visa outra coisa. Ou não é isto?

                 - Manter o statu quo?

                 - Pois. E se o statu quo for o museu de carros antigos que não andam? Como é? É o que mantemos? É o que alimentamos? Só porque nalguns o motor de arranque ainda pega uma vez por outra? É o museu a primeira prioridade, não é que o carro ande e sirva o fim para que foi construído? Medite nisto, medite nisto...

                 - Ah, claro! Se for correcta a prioridade, seriam os Fr. Ramiros que ateariam o fogo às multidões. Era ali o púlpito dos profetas. E poderiam vir de qualquer parte do mundo. Estou a ver. Mas que alteração, que renovamento poderia levar até lá? Tenho de ponderar o caso, tenho mesmo. No fundo é: para que presta um carro que não anda? É a pergunta que permanentemente me vem, porque não sinto de todo o entusiasmo pelo museu do automóvel do Caramulo. Mas pior ainda era desatar a fabricar viaturas apenas para gáudio de coleccionadores. Quantas vezes é o que me parece desta Igreja! Uma fábrica de velharias inúteis, ao jeito duns indivíduos cujos gostos se depravaram. Mas que dominam mais ou menos tudo. Claro que isto é reducionista, mas a realidade aí anda a confirmar tal vector todos os dias. Também faz parte dela e de que maneira!

                 - E a questão é: que fazer para mudar o panorama? Como fabricar os carros todos com motor de arranque afinado, para desatarem a correr vida além e mundo fora?

                 - Tal e qual, é a faísca. A chispa de que depende o arranque de tudo o mais. Onde é que a encontrarei? – perguntei-lhe eu.

                 - O irmão é que tem de ver. Ignoro mesmo se existe tal dado, uma parte que, uma vez mudada, arrastaria o carro inteiro com ela. Se calhar há mesmo. Não tinha abordado o problema nestes termos.

                 - Mas é o mais eficaz, em lugar dos eternos remendinhos aqui e além que mantêm a roupa original, embora cada vez mais remendada, não é? O ponto da imagem na minha mente é em busca da chave do motor de arranque. Aí já não me incomodam as velharias de museu. Desde que andem. Desde que andem, quer dizer, desde que reformulem as vidas interminavelmente, pelas idades além, num movimento imparável. Agora antiguidades arrumadinhas para alegrarem o olho, deixando tudo tal e qual, não, não é comigo.

                 - A mim, repare – rematou o Fr. Benedito – bastar-me-ia que nos deixem falar livremente, que admitam múltiplas teologias concomitantes. Já constatam que as houve no princípio, não apenas nas divergências entre S. Paulo e os outros, mormente S. João, como vem no Novo Testamento e que obrigou ao I Concílio, o de Jerusalém, nos Actos dos Apóstolos, para compatibilizar posições De 313 d. C. para diante tudo veio de mal a pior, até hoje. Séculos e séculos de empedernimento uniformizante. Anátemas e mais anátemas, a alimentar heresias e mais heresias. Tudo em lugar do diálogo, do debate, do amadurecimento gradual dos vislumbres de cada perspectiva, em busca do fundo comum ou do píncaro comum por todos procurado a partir de cada horizonte. A mim bastaria isto – repetiu.

                 Despedimo-nos, que ele tinha obrigações a cumprir com um editor com que anda orientando uma linha de obras ecuménica de grande fôlego. Eu, pelo meu lado, deixara um monte de fichas na biblioteca para actualizar. Corri para lá (trôpego, claro).

                 A ideia não me fugiu mais da memória. Em parte por causa mesmo do ficheiro, à medida que o fui preenchendo e arrumando no arquivo. É que vieram-me à mente casos e casos, uns atrás dos outros. Dos de cá e dos de lá de fora.

                 Para nós, aqui na comunidade, o episódio mais significativo é o do P. Mário de Oliveira, o antigo pároco da Lixa, que no século transacto fez correr rios de tinta no confronto com o ronceirismo da máquina eclesiástica. O mais requisitado dos seus livros (temos a lista completa, que há muito quem no-los queira ofertar, é curioso) foi sempre, evidentemente, o Fátima Nunca Mais. Creio que já todos cá dentro o leram. O mais relevante é que adoram comentá-lo: tem os espaços em branco praticamente cheios de comentários curtos. Quase inteiramente concordantes. Alguns discordam num ponto ou noutro e apontam alternativas de interpretação que preferem. Deve ser por isto que é tão requisitado – o livro vai crescendo de mão em mão e então leitores antigos voltam a pedi-lo para verem as novas ideias. Até já se comentam una aos outros, é divertido. Eu próprio já o retomei em mãos várias vezes, para recobrir as múltiplas pistas.

                 Hoje, porém, é que reparei no pormenor: ninguém aqui o condena, sejam quais forem as discordâncias. Ora, aquele homem foi suspenso a divinis (só faltou excomungá-lo), expulso de toda e qualquer paróquia. Não tem nenhum reconhecimento oficial para função alguma, na Igreja institucional. Não há bispo decerto que o volte a tolerar. Mas aqui no convento todos o toleram, todos reflectem e meditam a partir das interpelações dele. Quer dizer: é mesmo outro mundo, outra atitude, outra Igreja na mesma Igreja. Igreja paralela, Igreja subterrânea, fermento na fornada?...

                 Faz todo o sentido, faz. Não há dúvida, só o Fr. Benedito para abrir fendas no granito da minha cabeça dura.

 

 

                 Fátima – 7 de Junho de 2013

 

                 Hoje é dia da minha ginástica. As diminutas articulações requerem manutenção, não vá ficar tolhido antes de tempo e tornar-me um peso morto  aqui para a comunidade que tão generosamente aceitou acolher-me. Não quero mesmo que tal ocorra, embora adivinhe que ninguém acusaria o incómodo, como quando qualquer dos frades enferma e finda retido no leito. Todos logo nos revezamos a rodeá-lo de cuidados. As recuperações entre nós são rápidas, mais que as do grande mundo, o médico diz que por mor disto. Há estudos de campo que o confirmam. O ar conventual é saudável, pelo menos aqui o nosso. A verdade é que entre nós a sobrevivência média anda além dos noventa anos. Mas creio que é devido à combinação de múltiplos factores, não apenas àquele. Desde logo, à serenidade dos dias, à calma que apenas o ligeiro stresse das obrigações de cada um vai pontuando. Mas tudo conspira, até a dieta alimentar variada, sem demasias, apenas quanto baste. Ainda assim alguns tendem a engordar, mas os irmãos logo os ajudam a manter a linha. Por mim, que não tenho uma esperança de vida tão alta (as deficiências tendem a tolher tudo, até isto), tento, enquanto viver, viver com qualidade, para não ser peso morto antes da morte (aqui, como anão, já não pesarei muito a ninguém nas pegas do caixão, não é?)

                 Vou ao ginásio, lá fora, por tuta e meia, que o director dele achou que, por eu ser tão pequeno, devo pagar uma quantia correspondente ao tamanho. É um bonacheirão, bem-disposto e sem preconceitos. O instrutor da minha turma é o Ricardo. É doutor mas recusa que lho chamem ali. Na escola onde há Desporto é ao contrário: boa educação e disciplina. É adequado, cá não há miúdos.

                 Costuma brincar comigo, creio que nunca compreendeu bem porque me fui encafuar num convento. É religiosamente indiferente, com as ideias mais confusas, erradas, que proliferam entre o vulgo, a respeito da religião. Como não liga nada, embarca no que calha, nem que seja o maior dos disparates. E, claro, vai-me provocando ingenuamente. Desperto-lhe curiosidade, pela estranheza do meu caso. A verdade é que, à custa da brincadeira, desatou a ler algumas obras que nos vêm a talho de foice nas conversas de balneário.

                 - Ó Ambrosino, mas, se Deus morreu, que andam vocês todos a fazer lá dentro? Fechem as portas de vez e transformem o convento num centro cultural. Não era mais lógico?

                 Pronto, foi a forma de me informar enviesadamente ter em mãos o Deus Morreu em Jesus Cristo, de Jean Cardonnel. Referi-lho há tempos, no meio das conversas folgazãs que são continuamente as nossas. Ele fica picado e vai à procura, mas por norma adeja-lhes por cima, sem mergulhar nunca a fundo em nada. Aquele comentário mostra que é o caso, mais uma vez.

                 - O Cardonnel também não fechou a porta, – contrapus eu – fecharam-lha foi na cara. O herói da juventude católica francesa ficou a um degrau de tornar-se um réprobo. Então não é mais divertido desta maneira, ó Ricardo?

                 - Pois, pois, li qualquer coisa... Não entendi muito bem, era acerca da transcendência. Natural e sobrenatural. Não, temporal e sobrenatural. E a dele é a temporal. O que é muito condenável, evidentemente! – continuou, com ar gozão. – Então não se está mesmo a ver que é sobrenatural? Claro! Ah! Ah! Ah! – riu, bem disposto, e comentou: - Vocês ocupam-se com cada treta! Não admira que ninguém ligue nada à Igreja. Condenaram o homem por causa daquilo, não foi?

                 - Não, apenas alertado e admoestado. Mas para mim é verdade que é uma condenação. É logo colocado à margem. E tende a anular toda a mensagem dele que é tão libertadora. Não gostaste do livro? Não tem nada a ver com mentalidades nem atitudes ferrugentas. Era o que eu te dizia.

                 - Pois, mas vês? Caíram-lhe logo em cima. Então quem ganha, hein? O campeão é que conta, ninguém liga aos derrotados. Não é verdade, ó campeão?

                 - Claro. Mas também é verdade que é um derrotado de hoje que é o campeão de amanhã, certo? Sabes disto melhor do que eu, não é?

                 - Boa, boa! E estás à espera de ganhar o campeonato?

                 - Quem não está? Competir é para isso...

                 - És um grande homem de fé – ironizou o Ricardo.

                 - É para compensar a pequenez... – retorqui, divertido.

                 - Quando ocorrer, não deixes de me pôr a par, que eu vivo distraído de tais novidades. Mas aí gostava de ver – declarou, de repente sério. – Claro que ainda irei morrer de velho...

                 - Então eras capaz de te dar ao cuidado – reflecti, espicaçando-o. – Tudo isto, afinal, toca-te mais do que queres dar a entender.

                 - Ora! Se estás à espera de me ouvir cantar o Avè, avè, avè Maria, podes tirar o cavalinho da chuva. Aí és tu que hás-de morrer de velho.

                 - Mas isso é o pau carunchoso que te faz não ligar a nada. Nem eu lhe ligo, homem! Estou a falar do que tem sentido.

                 - Pois, e o que tem sentido é excomungado. Para isso, obrigadinho, já estou servido. Excomungado e bem excomungado, fora e muito longe de qualquer comunhão com tal gente. Foge! Como é que aturas uma coisa daquelas? É por espírito de sacrifício, para atingir a santidade? Contra os manda-chuvas da Igreja?... Qualquer dia também és um réprobo, vais ver. Então sou eu quem te vai ouvir de confissão, um ateu é que te irá salvar – rematou a rir.

                 - Ri-te, ri-te, sabemos lá as voltas que o mundo dá! Se for caso disso, aproveitarei a oferta, não me vou esquecer – brinquei com ele.

                 Íamos a sair das instalações e, como de costume, ele parou o carro na estrada para o convento. Nunca falámos disto, mas dá-me a impressão de que o deixa cada vez mais longe nos dias de eu ter aula. De certeza para podermos falar uns minutos mais, já que faz questão de me acompanhar sempre. Quer-me também parecer que pretende proteger-me dalgum eventual arruaceiro. Noutras terras tive de aguentar isso, há o preconceito ainda de que o anão tem pacto com o diabo, portanto há quem entenda seu dever persegui-lo, escorraçá-lo, fazer-lhe a vida negra, como se já não bastasse esta condição diminuída. Mas o preconceito é assim, que lhe havemos de fazer? Aqui, porém, nunca tive nenhum encontro desagradável destes, mas sei lá! O caso é que o Ricardo vem sempre comigo à conversa e suspeito que não é apenas pelo prazer de tagarelarmos saborosamente, embora isto também pese alguma coisa.

                 - Quanto ao Hans Küng, olha, o calhamaço de O Cristianismo é tão grande que eu mal o folheei e fui ler a conclusão. E se queres que te diga, para chegar a tão pouco, não valia a pena tanta escrita e tanta investigação. Anos, contaste-me tu?

                 - Sim, mas que é que para ti é tão pouco?

                 - Então, creio em Jesus Cristo, o filho de Deus e um nada mais. Isto é o paleio de sempre...

                 - Ai não é, não! É que não viste o que ficou para trás. Ele andava mesmo à procura da raiz, do que é próprio e específico. O resto é secundário e transitório, pode ser posto de lado. É o que permite e facilita o diálogo ecuménico. Senão os desentendimentos eternizam-se por ignorância, por não vermos que pendem de gangas históricas que deverão ser efémeras e postas de lado quando perniciosas. As guerras religiosas resultam permanentemente disto, nunca se podem justificar, são traição àquilo que afirmam pretender servir. Adoram inelutavelmente ídolos, nunca Deus. A investigação dele abre caminhos a novos entendimentos.

                 - Por mim, não entendi nada nem me deu nada. Em que é que aquilo facilita?

                 - Olha, por exemplo, os maometanos aceitam aquela base de fé. Repudiam é a teologia que se elaborou a partir dela e depois foi dogmatizada. A teologia alexandrina é um entendimento entre vários outros viáveis que têm sido calados pela força através dos séculos. Se esta relativização for generalizada, então muçulmanos e cristãos poderão encontrar-se e celebrar em comum também a crença, em vez de se guerrearem como andam há séculos e séculos.

                 - Ai é assim, seu heregezinho? A querer fazer de gente crescida, é? - comentou com humor o Ricardo. – Não perdes pela demora! Vais ser excomungado e queimado na fogueira, vais ver! Não reparaste no que aconteceu ao Hans Küng? Até o trabalho lhe tiraram! – e, mudando de tom, repentinamente sério: - Também, que é que ele queria? Não foi o que se atirou ao dogma da infalibilidade papal? Picar a fera no covil! Não há infalibilidade nenhuma, apenas veracidade? Lindo! Apanhou nas trombas que foi um mimo!

                      - Pois, muito feio, muito. Mas o que seria uma perda para ele talvez tenha sido um ganho para o ecumenismo. As visões tendem a aproximar-se cada vez mais e ele é um grande fermento, tem uma credibilidade como nenhum outro.

                 - Adianta muito! Correram com ele como com todos. Diálogo ecuménico... Até soa bem, é poesia, é lirismo. Que raio de base pode ter semelhante diálogo quando à partida a atitude é totalitária? Quando se tem a verdade absoluta como entrar em diálogo? Todos têm a liberdade de pensar desde que pensem como eu? Conhecemos bem demais este diálogo: já tivemos o Hitler, o Estaline, o Mao-Tsé-Tung... O Papa infalível é a institucionalização dele para a eternidade.

Como eu acenava que não com a cabeça, o Ricardo rematou:

                 - Não é um dogma? Então...

 

 

                 Fátima – 8 de Junho de 2013

 

                 Fiquei meio baralhado com a conversa de ontem. Nunca tinha ligado vários aspectos que, aliás, nem sequer focámos, mas que fizeram ricochete dentro de mim, repentinamente. Por exemplo, mantemos diálogo com as igrejas cristãs mas dentro da nossa perseguimos quenquer que se atreva a mexer. Já não há Cruzadas nem Inquisição nem Índex de livros proibidos, mas quantos crentes continuam proibidos de escrever e publicar? Até de falar em público? Quer dizer, aquelas aberrações acabaram porque a Igreja foi vencida mas não convencida. Onde os seculares não chegam, continua tão criminosa como antes, como se o crime fora virtude. Não houve, afinal, conversão nenhuma?

                 Aliás, há uma Declaração Universal dos Direitos do Homem, mas a Igreja não pode subscrevê-la em verdade, mesmo que a subscreva no papel: como admitir a liberdade de pensamento e de expressão, a liberdade de associação e de reunião se, por sistema, legal e institucionalmente, os proíbe no meio dela? Exige-os para os outros e exclui-os dela própria? Como ratificar semelhante monstruosidade? É, porém, como andamos a viver. É caso para ponderarmos se, em lugar de luz do mundo, de fermento na massa, não é o mundo que a tem de vir iluminar, fermentando a massa bolorenta em que, nestes aspectos, com o tempo, se tornou a instituição eclesiástica.

                 Neste domínio suspeito mesmo que a distância entre a Igreja corpo místico de Cristo e a rede social de hierarquia e organismos que a pretende concretizar é mais ou menos a lonjura que irá do céu ao inferno. Se tudo fora apenas isto, era de acabar rapidamente com semelhante instituição. Ainda bem que é meramente um pendor da vivência comunitária da fé. Em muitos outros vectores eu, pelo menos, não discirno semelhante discrepância, mormente no atendimento a pobres, marginalizados, aos fragilizados em geral. Eu que o diga, como anão nunca fui tão acolhido, tão igualado como no seio desta comunidade religiosa. Ora, isto é viver a fé em autenticidade. Aquilo, ao invés, é uma excrescência monstruosa que, por mim, não logro entender. Ainda por cima quando sabemos que cada qual é salvo, não por palavras, mas por obras. Pelo fruto conhecemos a árvore, não pelo farfalhar da folhagem, a vozear conforme as ventanias do acaso. Como é que isto pode ter andado obliterado há milénios?

                 Claro, é a cabeça do anão a reflectir em miniatura. A verdade é que o que me vale é ser um leigo incógnito, senão teria já uma mordaça, como os mais. Dado que isto é um diário para mim, é um bom escudo de protecção, posso confiar ao papel quanto me ocorrer. Comprometi-me e aqui vou cumprindo. Mas escuto já os gritos surdos: herege, anátema, excomungado...! Há por trás disto um erro crasso qualquer, fonte do crime, do pecado. Pecado colectivo duma Igreja, uma vez que é estrutural, sistemático, multissecular, consagrado nos usos e na lei canónica.

                 Ou estarei a ver mal? Como poderei ter razão contra tantos milhões, milénios além? Ou estes não serrão tantos assim e a maioria é a dos amordaçados, dos auto-amordaçados, dos ingénuos incônscios da mordaça e a escorar o desvio andaram permanentemente meia dúzia de poderosos sem escrúpulos nem nenhuma vida interior autêntica? A mera interrogação provoca-me calafrios: pode o diabo manipular perenemente um pendor da instituição eclesiástica sem os mentores daqui darem por isto? Ou dão e é aquilo mesmo que pretendem, serem fiéis porta-vozes de satanás (ou deles próprios, o que é o mesmo), no meio do que deveria contrapor-se-lhe?

                 Não entendo grande coisa, perdido na ramaria desta floresta. Uma realidade, porém, é certa: a Igreja mística não é a instituição eclesiástica (com todos os respectivos apêndices), antes esta pretende visibilizar e cumprir o fito daquela, sem jamais o lograr em plenitude, mas por aproximações constantes, numa caminhada ao infinito. Até aqui creio que é consensual entre os fiéis esclarecidos. O que leva a outra verificação: a Igreja (nos dois vectores, mística e institucional) não é o Reino de Deus, apenas um instrumento para servi-lo e, portanto, também o pode trair.

                 Ora, eu suspeito acolá duma traição, mas não logro vislumbrá-la ainda com precisão nem identificá-la com rigor. Sem isto, qualquer serventuário do diabo mas que esteja a agir de boa fé, ludibriado pela aparente direitura de tão vetusta tradição, não logrará tomar consciência de tal e, conseguintemente, não poderá dar de vez um pontapé no mafarrico. E mudar de rumo.

                 Isto, porém, seria já renovar a Igreja, era uma boa achega para o grupo de trabalho do Vaticano, creio eu. Se calhar, porém, é pretensiosismo de minha parte, a mente do anão a pretender trepar à altura da gente crescida. Sei lá bem! Dou o meu melhor: se for lixo, o caixote para ele está sempre aqui ao lado, não há problema.

 

 

                 Fátima – 9 de Junho de 2013

 

                 Ignoro se me estou aproximando ou não da chave de ignição da viatura de museu que a Igreja é! Se calhar limito-me a apalpar no escuro da minha cegueira. Para além de anão, um cego contumaz. Bem, ao menos ando por aqui perdido, nos túneis da enorme catedral, em busca dum vislumbre de luz. E vou anotando algumas infiltrações que lhe andam minando os alicerces. Ao fim pode bem haver uma lucarna, quem sabe?

                 Pronto, basta de desvios. Não me sai da mente o caso de Leonardo Boff, um monge brasileiro, padre e teólogo. Pertence à corrente da Teologia da Libertação. No Brasil das dezenas de milhões de miseráveis que com tanto suor vai melhorando a economia e a distribuição das benesses dela, ele, como muitos outros, até alguns bispos, não poderiam ter outra sensibilidade. Está posto à margem, proibido de escrever e de pregar às multidões. São tantos, pelo mundo fora!... Porquê este a picar-me, então? Poderia pôr-me a escrever de centenas doutros, de milhares, milhões de silenciados que com infinita paciência vão caminhando pelo escuro da marginalização interna, à espera de que algum dia desponte a luz. É, porém, o que me ocupa agora a mente. Não descubro a razão.

                 - No caso dele há um pormenor que me diz muito – esclareceu-me o Fr. Marcos, após o frugal pequeno-almoço comunitário no refeitório, quando nos encontrámos no claustro, a caminho das nossas freimas matinais. – É que discordaram entre si o bispo em cuja diocese reside a comunidade religiosa dele e o Papa de quem ele, enquanto frade, directamente depende.

                 - Discordaram em quê? Na penalização ou na doutrina?

                 - Eu diria que nem numa nem noutra ou, então, se calhar em ambas. É melhor explicar.

                 - Se puder, agradecia. É que não me larga a cabeça...

                 - No meu entender, quanto à doutrina, quase de certeza que as reservas de ambos seriam as mesmas: a Teologia da Libertação, então se for da libertação política, é muito sectorial, uma migalha na margem da vida espiritual propugnada pela Igreja, pela Tradição, pela Revelação; toda ela teria de ser recentrada e relativizada, não separada do conjunto da Boa Nova. Lembremos que heresia é uma palavra que significa separação. Até aqui ambos os bispos, o brasileiro e o de Roma, pelo que li, estiveram de acordo.

                 - Então divergiram nos efeitos disto.

                 - Pois foi. O brasileiro insistia para o Papa o excomungar, que ficaria tudo arrumado. Vê a sorte de o Leonardo Boff ser monge e de o bispo não ter sobre ele tal poder. Estaria hoje entregue à bicharada.

                 - Então foi o Papa que o salvou?

                 - Sim, é o que o Fr. Leonardo conta. Durante anos recusou qualquer sanção contra ele, pelo contrário, apoiou-o e à vinculação dele aos pobres e deserdados.

                 - Mas acabou punido e marginalizado...

                 - É verdade. E como é que o irmão Ambrosino resolveria um diferendo entre dois bispos?

                 - Por aquele que tiver razão. É claro. Nisto teria de ir pelo Papa. E não é por estar aqui num convento, numa ordem religiosa que depende directamente dele. É porque tem fundamento. Senão, é um ataque a uma liberdade basilar, em que a Igreja é useira e vezeira há milénios. E também neste caso o voltou a ser.

                 - Eh, o que aí vai, irmão Ambrosino! Não é tão linear! A prudência é o dever da eficácia. Qual é a fórmula de previsível máximo ganho e menor perda?

                 - Então, é a que foi adoptada?

                 - No entender do Papa, sim. Com um bom argumento de fundo: não pode excomungar ninguém que tanto se dedica aos pobres, seria contra o espírito do Evangelho. Então, limita-o naquilo com que mais briga o bispo brasileiro, no resto deixa-o livre de continuar a intervir privadamente entre o povo humilde. Com isto calou o pontífice de lá que não o pode perseguir mais e entregou-o à defesa dos pobres, os protegidos dele. Agora com uma nova aura de herói e mártir, de algum modo. Só que mais nos bastidores, mais de fermento que de massa. Foi, no meu entender, uma deliberação sábia.

                 - Mas iníqua, Fr. Marcos.

                 - É capaz de ter razão, irmão Ambrosino, é capaz. Mas todos temos de carregar a cruz que nos couber e oxalá o consigamos da forma mais eficaz possível. Olhe que o Fr. Leonardo não vive revoltado. Porque será? Julga que ele não entendeu a jogada? Quanto a mim, entendeu e muito bem. É uma grande inteligência. E com uma intuição da profundeza e da autenticidade espiritual que para mim é exemplar. Quem me dera atingir o nível dele!

                 - Fico meio desanimado. O hábito é muito curto das mangas...

                 - Ah, não fique, irmão Ambrosino. Já viu o que é termos dois bispos às turras e o desempate ser do Papa a obrigar o outro a renunciar ao poder de excomungar? Isto pode levar muito longe, muito longe...

 

 

                 Fátima – 10 de Junho de 2013

 

                 Fiquei a matutar naquilo. Levar muito longe, até onde? À partida, apenas vejo a iniquidade final. Para que é que deverei olhar então?

                 Nem me apeteceu escrever o dia inteiro. Foi preciso ir às compras e, como de costume fui ajudar o irmão cozinheiro nesta diligência lá fora. Nunca vamos a uma feira, que nenhum de nós tem jeito para marralhar e aquilo torna-se-nos incómodo. Preferimos um supermercado, com fornecedores habituais que nos vão sendo recomendados por leigos do exterior e têm uma consideração particular por nós. Às vezes, mesmo ali, vejo-nos um bocado como cordeiros no meio de lobos. Olhamos em redor e ficamos um tanto constrangidos. Não sei se é por efeito de sugestão (vemos o jogo económico em que o rico é sempre ganhador como muito suspeito e, no fundo, irremediavelmente condenável), ou se há dados objectivos que o fundamentem. Antigamente, enquanto vivia no mundo, nunca sentia nada disto, nem sequer no meio do regateio das feiras onde em pequeno (e não só) acompanhei a minha mãe muitos anos. De qualquer modo, agora é assim. E este estado de alma é compartilhado por quantos aqui no convento têm de desempenhar tal tarefa.

                 Hoje foi o mesmo. Também isto não me ajudou a concentrar nem a meditar. Poderia ter ido insistir com o Fr. Marcos para ele explicitar os subentendidos com que nos despedimos. Curiosamente, não me senti à vontade, fui como que repelido interiormente. Tinha a impressão de que o meu Mestre não o aprovaria. É para eu pôr aqui o que discernir. E, se não for nada, é o nada que aqui descrevo.

                 E a verdade é que não vislumbro proveito no facto de o Papa ter ido para uma resposta de meio-termo, em lugar de impor a razão. Sacrificou um inocente, dando ouvidos a uma pretensão iníqua. Vejo-me no dever cristão de me colocar ao lado da vítima.

                 Por outro lado, pressinto que não é tudo. O Fr. Marcos estava a entrever outra realidade que para ele (se calhar para o Fr. Leonardo Boff também), afinal teria muito mais relevo. Um alcance qualquer cujo horizonte será tão longínquo e abrangente que eu, pelos vistos, ainda nem sequer suspeito dele.

                 O que hoje, como em pano de fundo, me andou remoendo, um marulho de mar a que nem ligamos, perdidos e atentos às freimas de cotio, foi a derradeira fala dele. Depois de vésperas ribombou como maré viva na primeira linha da mente e quase me surpreendeu: o Papa obrigou o outro a renunciar ao poder de excomungar! Isto, com um pormenor completamente alheio e que inesperadamente ali encaixou: eu tinha anotado no meu vesperal, à margem, numa folhita solta que nem sei como veio encaixar-se nas páginas do rito de hoje, o lembrete para orar pelo bispo Lefebvre, o dissidente conservador do pós-Vaticano II que rompeu com a comunhão com Roma. Foi o hierarca que ordenou presbítero o padre espanhol que tentou esfaquear o Papa aqui no recinto de Fátima, há um par de anos atrás. É uma nota muito antiga que eu registei justamente no contexto do atentado, para me lembrar. Julgava que a tinha deitado fora e, afinal, enfiei-a para lá algures no meio das folhas para hoje se erguer da tumba dos ignorados. E, claro, ficou-me a matraquear a memória e a atenção. Não há dúvida, não há coincidências, elas constituem inelutavelmente um sinal e uma oportunidade. Ora, aqui, neste contexto, qual?

                 Deixei os dados ficarem a amadurecer até ao serão. De certeza se proporcionaria alguma conversa fértil ou então algo inesperado que me poderia ajudar a ver. Eu sou mesmo tapadinho de todo, se não é em diálogo com alguém ou alguma coisa, não vislumbro ideia nenhuma em nada. Se calhar é com todos tal e qual, mas não me recordo de alguém o ter anotado alguma vez em tudo o que li ou estudei até agora. A mediação do outro para escancarar-me a janela à luz do sol: eventualmente, não haverá caminho alternativo. E andaremos todos enganados num individualismo e subjectivismo estéreis. Nada vem de mim, nada vem doutrem, tudo vem da conjunção de ambos. É a fórmula que funciona comigo e, decerto, com todos. Aí, sim, de repente, tudo fica iluminado e ateiam-se fogaréus de entusiasmo. Quando dispara a luz, tudo devém maravilhoso, erguemos uma pontinha do véu do mistério e os olhos arregalam-se-nos. É um subtil afloramento, uma suspeita do Infinito. Também aqui. Evidentemente.

                 Pois, o que ocorreu é esquisito (hoje, porém, haveria alguma coisa que o não fora?). Três dos irmãos quiseram trocar de leituras e fui com eles à biblioteca, a uma hora invulgar, quase ao toque de dormir. Falavam entre eles das revistas que vinham entregar e eu, literalmente, desliguei, envolto cá nos meandros do meu mundo. Tão distraído me encontrava que dou por mim agora sem sequer reconstituir quem foram eles. Depois de dar-lhes o que me pediram e anotar nas fichas os levantamentos, (já iam no corredor, de volta às celas, a murmurar como é de norma por mor da hora tardia), ouvi o que ia a transpor a soleira comentar:

                 - É preciso ser muito grande para ir à prisão confirmar que perdoa ao Ali Agka. É uma inversão de mundos, mas creio que ninguém viu até onde vai uma atitude destas.

                 E não logrei ouvir mais nada. Fiquei repentinamente alerta, a apetecer-me bater com a cabeça na parede por tê-los atendido tão distraidamente. Agora a oportunidade foi-se. Não consigo fazer mais nada. É deitar-me no catre e jurar a mim próprio velar de futuro para não deixar fugir as coincidências. Ali Agka fora condenado na Turquia a pesada pena por tentativa de assassinar o Papa, em Roma, atentado que falhou. E o Papa foi à prisão absolvê-lo. Aliás, o do ataque aqui em Fátima também não mereceu qualquer procedimento persecutório eclesiástico.

                 Perdi o fio à meada. Vou deitar-me e meditar enquanto não adormecer. A tarimba agora é que terá de substituir a fala com os irmãos que falhei de todo, estupidamente. É Deus a acenar-me de frente e eu, parvo, a olhar para trás.

                 Não sou anão apenas de corpo, também o sou de juízo. Ah, Fr. Benedito, bem frustrado se irá sentir por cometer esta freima a quem tanto falta o fôlego!

 

 

                 Fátima – 11 de Junho de 2013

 

                 Foi na cela, enquanto meditava, que dei por mim a imaginar o diálogo falhado com os irmãos. E com eles a responderem-me. Foi tão vívido que o gostaria de tentar reproduzir. Até porque, na ocasião, fez muita luz acerca disto tudo.

                 - O Papa impediu a excomunhão de Leonardo Boff, sabiam? – principiei.

                 - Evidentemente que a teria de impedir. Pois se foi o mesmo que a levantou a Galileu, séculos depois da morte deste... Mas mais vale tarde que nunca, não é? – respondeu-me um.

                 - Então é uma linha de conduta coerente, não foi um evento de ocasião?

                 - Claro que não – retorquiu outro. – Descobriu alguma pena do género aplicada por ele?

                 - Não, mas também não lhe vasculhei a biografia – comentei.

                 - Nem precisa – interveio o terceiro. – Os casos que outrora dariam excomunhão, durante o pontificado dele, acumularam-se e em todos recusou tal abordagem. O bispo Lefebvre não foi excomungado, separou-se de motu próprio e o Papa persistiu até à morte em chamá-lo ao diálogo e à comunhão. E nunca anatematizou nenhum dos seguidores dele, fiéis ou presbíteros. Tentou infatigavelmente refazer a ponte, em busca da unidade.

                 - É um fio condutor invulgar, alheio à tradição de milénios... Foi mera casuística ou por princípio? Pelo feitio conciliador do Pontífice ou porque tal é a exigência ética? Será que inovou aqui e ninguém deu conta? – insisti, mal convencido.

                 - Ora! Julga que ele não teria noção exacta do que implicava tal atitude? Claro que tinha! – afirmou, convicto, o primeiro.

                 - Mas então... Para quem tanto falou e escreveu... E sobre isto, nada! – comentei, perplexo.

                 - Evidentemente! Não era insensato. Quantos mais Lefebvres iriam proliferar pelo mundo fora? Se calhar, a maioria do episcopado, Planeta além. Vivem todos muito agarrados a honrarias e privilégios – reflectiu o segundo, ponderado. – Aquilo foi, pelo exemplo, a demissão do poder que se auto-demite e transforma em serviço, o servo da unidade, que é a verdadeira missão da hierarquia. Também revelou que nunca deveria ter existido hierarquia nenhuma, que é poder, mas diaconia, que é servir. Nunca deveria ter existido o Império Romano e o Imperador a colonizar a Igreja mas a comunidade crente de préstimos mútuos a fermentar multidões no Império a cair de podre.

                 - O quê?! Vai até aí?! – espantei-me, duvidoso.

                 - E ainda não é nada – retomou o derradeiro deles. – Recorda o que significa, na raiz, a palavra pecado?

                 - Na raiz? É falhar alguma coisa, é um buraco, um vazio que deveria ter sido enchido e não o foi, uma meta inatingida, um degrau que ficou por trepar, um passo que não foi dado. Ausência duma presença que era devida.

                 - Ora pois então! – interveio logo outro. – No radical donde deriva não é fazer mal, é um não-fazer, um vácuo. Já viu onde isto leva? Era bem matreiro o nosso Papa, que Deus o tenha!

                 - Por mim não vejo nada. Da minha diminuta altura o horizonte é muito curto – comentei, anão bem-humorado.

                 - Pois vou pô-lo às cavalitas, que logo enxerga – adiantou o que me ficara ao lado. – Repare nisto: alguma vez alguma excomunhão, algum anátema, alguma perseguição (para já não invocar alguma guerra), reconduziu alguém, alguma corrente, alguma igreja, alguma religião à unidade? Um exemplo apenas, tente lá encontrar...

                 - Então, porventura os cristãos-novos, em tempos de D. Manuel I, na era dos Descobrimentos, não?

                 - E eles converteram-se deveras? Acredita nisto? – tornou o grupo todo.

                 - Claro que não. Em privado continuaram tão judeus como antes. E a Inquisição andou permanentemente à caça deles, até findar extinta. Estou a lembrar-me do auto de fé em que queimaram vivo, na Praça das Cebolas, em Lisboa, António José da Silva, o Judeu, o nosso maior dramaturgo do séc. XVIII. E já tinham corrido duzentos anos sobre aquela conversão obrigada. Ou simulada.

                 - Portanto, nem aqui houve unificação nenhuma, não é? Para todos os casos – ponderou outro – é exemplar o que nos chegou, por via oral, da condenação à morte de Galileu: afirmam que ele, após assinar as renúncias e retratações que lhe exigiram para não executarem a pena, terá dito, num desabafo: “E, contudo, a Terra move-se”. Ora, esta teoria é que fundamentara o castigo capital. Por esta via não há nunca conversão exequível, portanto. Andaram todos cegos durante milénios. Mas o Papa, não: ele viu. E tratou de comportar-se à altura, com toda a fidelidade.

                 - E como é que os dados encaixam? Estou meio perdido – adiantei.

                 - Olhe, desta maneira – e revezaram-se os três. – A diaconia dos hierarcas eclesiásticos é servir a unidade da Igreja...

                 - ...Que é a forma de cumprir o que decorre da verificação-mandato evangélico contido no versículo: “Vede como eles se amam!” – acoplou de imediato outro.

                 - O caminho trilhado milénios fora foi permanentemente o de consumar a ruptura, a desunião, através de expedientes do poder para excluir, expulsar... – e foi a vez do terceiro.     

                 - ...O que cristaliza definitivamente o pecado hierárquico eclesiástico: a multimilenar ausência de unidade, a falta do que deveria aqui estar presente no mundo, a fermentar o amor universal, o amor ao infinito: “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei”, de Jesus. Que, aliás, nem sequer a Judas Iscariotes excomungou, resignado, mesmo tendo-o este levado à morte.

                 - Pecado hierárquico?... – balbuciei eu.

                 - Sim, claro: se condenas alguém, pões o selo definitivo na falha da reconversão, findou o caminho para a unidade. Falhou de vez a pegada para unir, é o pecado do pontífice: já não faz mais ponte, deitou a ponte abaixo, ao contrário. E, pior, achou que estava muito bem e lava daí as mãos. É desta maneira quase há dois milénios. Podemos afirmar que é um pecado colectivo, institucionalizado pela pior tradição, pelo uso e costume e pela lei. É, porventura, o mais renitente dos pecados da instituição eclesiástica e que persistentemente a vem alheando da Igreja corpo místico de Cristo, completamente incompatível com tal. Porque é mesmo a contradição daquilo – e todos acenavam com a cabeça em concordância.

                 - Se estou bem a entender, - tartamudeei, ainda desnorteado – então o Papa escapou a um pecado que é tão renitente, tão duradoiro, tão bem camuflado e coberto de autoridade histórica e de tantos grandes nomes que ninguém até agora deu por ele...

                 - Mas o Papa deu e teimou em jamais cair na tentação. E viveu como fermento na massa – insistiu o primeiro – de certeza aguardando que todos iriam abrindo os olhos.

                 - Aliás, – acrescentou logo outro – não foi apenas o primeiro Papa que agiu em conformidade, contamos hoje já com uma pequena cadeia deles que se vêm recusando sistematicamente a quebrar as pontes, a praticar o pecado, a falhar. O movimento ecuménico é apenas a cobertura exterior, interiormente vivem uma intuição espiritual tão autêntica que os impede de trilhar o caminho falido de antanho e persistem infatigavelmente no diálogo e na tentativa de aproximação. O curioso é que isto anda a fazer cair a lei por desuso. Como ocorre sempre no campo jurídico, secular ou eclesiástico.

                 - Que lei? – perguntei, encegueirado.

                 - A que atribui à hierarquia o direito de decretar a excomunhão, o anátema e demais penas menores a toda a comunidade de crentes – comentou o segundo.

                 - Mas têm tal poder, mesmo que o não usem – contrapus eu.

                 - Têm, de facto. Mas tê-lo-ão de direito? Os papas estão, na prática, doravante, a pô-lo em causa. É que, reparando bem, reivindicar este direito, é reivindicar o direito de pecar. Institucional e sistemático. De achar aquilo bem. No contexto duma fé viva, isto faz algum sentido? Não vejo como. Os últimos Papas tudo indica que também não.

 

 

                 Fátima – 12 de Junho de 2013

 

                 Ao reler o texto anterior, dei comigo assarapantado. Eu nunca tinha reparado naquilo. Mesmo antes de escrevê-lo, embora vendo que, ao meditar, tivera laivos de lucidez inesperada (e eu não os queria perder), não me dera conta da enormidade das implicações. Fiquei meio amedrontado.

                 Por outro lado, donde me viera a mensagem? Eu, de facto, não falara com os irmãos, fora uma oportunidade perdida. Então quem eram estes que tão ofuscantemente me abriram os olhos? Fora tudo imaginário? Mas, em tal caso, como me revelaram o que eu ignorava e nem tinha, pelo menos, entrevisto?

                 Não compreendo nada. Andei todo o dia aturdido e ainda agora não caí em mim.

                 Não sou capaz de escrever mais, por enquanto. Tudo aquilo tem de sedimentar.

 

 

                 Fátima – 13 de Junho de 2013

 

                 É capaz de ser um encadeado de baboseiras sem qualquer sentido nem fundamento, por mais que se me antolhe o contrário. Que pode o anão ficar senão encandeado quando inesperadamente o trepam até à luz? Deve ser o que ali me fascinou. Continua, porém, a fazer muito sentido e não vejo porque não. Aliás, o inverso era desautorizar um ror de Papas. Então onde é que pode estar o erro?

                 O melhor, para me desatulhar da dúvida, é encontrar-me com quem sabe. Tirei-me de cuidados e pedi todo o tempo livre que o meu Mestre pôde dispensar-me durante o dia de hoje.

Recusou ouvir o texto que eu escrevera. Tudo de viva voz e velando eu para não me deixar influenciar. Fr. Benedito leva isto tão a peito que chega a amedrontar-me, fico meio inibido. Para ele o que ando escrevendo é um projecto muito sério. Como poderei eu levá-lo à ligeira? Será que ele tem razão?

                 Falámos a meio da tarde, à mesa da biblioteca, deserta a tais horas. Mal acabei de lhe expor a conjuntura e as minhas dúvidas, saltou ele do lugar, eufórico, correndo de lado a lado, batendo os punhos um no outro de entusiasmo:

                 - Eu sabia, irmão Ambrosino! Eu sabia! – e ria, iluminado de alegria da cabeça aos pés.

                 Eu limitava-me a olhá-lo, perplexo e interdito. Apanhou-me tão de chofre que fiquei sem reagir vários minutos, apenas a observá-lo naquele vaivém, para trás e para diante. Irradiava um desmedido alumbramento cuja fundura eu não podia entender. Aguardei até se acalmar, para me contar o que é que o pusera eufórico. Se ele via, eu cá não via nada...

                 De repente sentou-se e ficou a olhar para mim de olhos arregalados. Eu continuava mudo, porventura a olhá-lo de igual modo. Se alguém nos via, de certeza parecíamos os dois apalermados, frente a frente.

                 E disparou-me, sem preâmbulos:

                 - Então não entendes, homem?! – pela primeira vez tratou-me deste modo e até ignorou o tratamento conventual, de transtornado que ficara.

                 Eu encolhi os ombros, ainda mudo, por não perceber a que vinha aquilo tudo.

                 E ele, impaciente, de improviso:

                 - É a chave, agarraste o motor de arranque! – e fixou-me, à espera.

                 - É?! O quê?!

                 - O que acabaste de me contar – sublinhou, convicto.

                 - Mas aquilo faz algum sentido?! Faz mesmo todo o sentido?! – tartamudeei, agora quase a desequilibrar-me eu com tal pancada. – Mas em quê? Em quê?...

                 Não tinha reparado que me tinha posto de pé durante a cena inteira, embora fosse igual para o Fr. Benedito: sentado, eu fico com o cocuruto à mesma altura que quando estou de pé. É uma vantagem do anão que confunde muito boa gente. O meu Mestre, todavia, agora reparou. E então caiu nele.

                 - Sente-se, irmão Ambrosino, sente-se – convidou-me inesperadamente calmo, a tratar-me por você. – Desculpe o meu descontrolo. É claro que tenho de lhe explicar o que estou vendo. Mas terá de joeirá-lo, a ver se para si também fará sentido.

                 - Foi para isto que o chamei, pretendo apenas ver claro, mais nada. Por ora ainda ignoro onde é que anda a chave.

                 - Em rigor, nisto: no facto de toda a hierarquia da Igreja, da base ao topo, repudiar o poder de condenar – resumiu ele, lapidarmente.

                 - Mas não é um direito, aliás entendido quase como um dever, pelos séculos fora, praticamente desde o princípio? – duvidei eu.

                 - Não, não é um direito, é e foi sempre um abuso do direito. E muito menos é um dever, antes, permanentemente, a traição consumada, definitivamente, ao dever de raiz de todo o bispo, o dever de ser pontífice: construtor de pontes a unir o que antes estava dividido.

                 - Pois, condiz com o que eu entendi. E doravante sublinhado exemplarmente, diria mesmo intransigentemente por meia dúzia de Papas, não é?

                 - Exactamente.

                 - E porque é que é a chave?

                 - Porque tal abuso do direito deve ser abolido. Então a porta da Igreja pode finalmente abrir-se ao Espírito: o Grande Inquisidor nunca mais pode prender Jesus na enxovia nem queimá-Lo em nenhum auto de fé.

 

 

                 Fátima – 14 de Junho de 2013

 

                 Fiquei a remoer em silêncio. Fr. Benedito sempre foi arrojado mas nunca o tinha visto ir tão longe, com uma linguagem tão iconoclasta. Tomar a palavra de Os Irmãos Karamasov, de Dostoievsky, deveria soar, noutro meio qualquer, como uma blasfémia, de certeza. Ninguém iria acreditar que era da boca dum monge presbítero, teólogo, no meio duma biblioteca monástica.

                 Pois é, mas aqui buscamos autenticidade cada vez mais funda. Foi, aliás, o que me atraiu para este mosteiro. O anão marginalizado também tem vontade e coração e não se demitiu deles ao bater a esta porta.

                 - Abolir o direito de condenar... – ponderei, a tentar concentrar-me. – Ninguém vai conseguir fazê-lo. Quem demove a Cúria Romana? E a máquina colossal da Igreja, com tentáculos a cobrir o mundo inteiro? – perguntei, mais para mim que para o meu Mestre.

                 - Quem sabe? Repare, isto é um apelo à autenticidade. Alguém poderá recusá-lo? Com que argumento? E condenar a atitude assumida duma cadeia de Papas que já o intuíram há muito e se mantêm fiéis ao apelo do Espírito? Isto igualmente tem um enorme peso, não é?

                 - Até agora os Papas apenas o aboliram na prática deles. Na teoria e na lei canónica ninguém sequer buliu... E quanto ao episcopado universal, não descortinei por enquanto fumos de mudar. Ou há?

                 - Não, não, o fermento demora tempo a fermentar. Mas também não há notícia de excomunhões desde há décadas. Por ora continuam a manter-se ao nível das penas menores.

                 - E estas serão de continuar ou não, igualmente?

                 - Qual continuar?! E a ponte onde fica? Converteram alguém com elas?

                 - A maioria resigna-se, alguns abandonam tudo mas, realmente convertido, não descubro ninguém. Pelo menos aqui em Portugal.

                 - Nem há, irmão Ambrosino. Apenas o diálogo pode levar a converter, tudo o mais bloqueia-o. E não é a converter a qualquer ordem cristalizada, à doutrina pré-fabricada, ao dogma como verdade absoluta que tantos têm na mente. Tudo isto, neste pendor, é erróneo, por muito que o conteúdo tenha validade. A conversão é e apenas pode ser ao Espírito, ao que fala ao coração de cada um e a que todos temos de prestar ouvidos, tanto o convertendo como o conversor, digamos. Aliás, não há deveras conversores, somos todos convertendos perante Deus, pese embora aos dogmáticos.

                 - A mania de que a Igreja é detentora da verdade absoluta. Depois condena Galileu e a seguir tem de levantar-lhe a pena e pedir perdão. E andamos nisto, não é verdade? O pior é que ninguém logra restituir a vida às cinzas de António José da Silva, o Judeu, por muito que anulem os autos que o condenaram à fogueira. Por falar nisto, ninguém entre nós anulou nada nem pediu perdão de nenhum procedimento inquisitorial nem de nenhum outro. É curioso. Os Papas estão a ter poucos imitadores por estas bandas...

                 - É o que lhe apontava. É o fermento na massa. É a semente jogada à terra. Têm um ritmo de espera. Todos o temos por igual dentro de nós. Convém equilibrar paciência e persistência.

                 - Então ficaremos apenas com a reiterada atitude do papado recente, a aguardar. Não dá para muito, enquanto chave para renovar a Igreja. Não lhe parece, Fr. Benedito?

                 - Se ficar por aí... Mas não ignore que a lei consagra o pecado, a falha ao dever pontifício como bom e até como dever. Quando isto devier claro nas consciências dos mentores da Igreja em geral, como já deveio, ao que vemos, na dos últimos Papas, não acredito que tais normas e as práticas derivadas não venham a ser logo abolidas.

                 - Por caírem em desuso, como no Direito secular? – questionei, a confirmar tudo.

                 - Eu creio bem que antes ocorrerá uma abolição explícita. Terá muito mais força. E ninguém que tenha tomado consciência do que está aqui em causa vai tolerar manter-se indefinidamente cúmplice dum pecado institucional colectivo. Todos somos co-responsáveis enquanto este estado de coisas se mantiver, não ignoremos.

                 - Até relativamente às penas menores? – insisti, renitente.

                 - Até quanto a elas. Repare, se falham por sistema... É aplicar o critério “pelo fruto se conhece a árvore”. São um caminho errado. De todo. A via do dever de criar unidade, do “vede como eles se amam”, é a de tentar e tentar e tentar, infatigavelmente, refazer as pontes. Perseguir e condenar, mesmo à pena mais leve, operam o contrário: consumam a destruição delas. Não há desenvolvimento interior nem exterior, de ambos os lados. A conjuntura cristalizou ali e ali ficou de vez bloqueada. Para a eternidade. O Espírito de Deus falhou. Pela mão do homem. E do homem que tinha por mandato, ao invés, realizá-Lo, cumpri-lo, efectuá-lo.

                 - Estou a ver. E que faremos a tantos que andam penando, vitimizados, pelo mundo fora? Até entre nós? Os expulsos, os silenciados, os ameaçados, os preteridos por fugirem à tropeada do rebanho... Tudo junto deve ser uma multidão incontável, pelo que me vou apercebendo.

                 - Deverão abolir-se as penas todas, para retomar o diálogo interminavelmente. A ver onde poderemos ir convergindo. Sempre mais longe, sempre mais alto. Deus é inatingível, logo, o caminho é inesgotável. E pode-deve trazer-nos surpresas a cada curva da jornada. Para todos, dum lado e doutro, que ninguém é detentor da Verdade: Deus é e será sempre inefável, a Verdade estará sempre além, a chamar-nos. E quem se dispuser ao cominho vai ter os vislumbres que o arrebatarão e nos arrebatarão a todos. Será incrivelmente gratificante.

                 - Bem, era cá uma revolução!... – exclamei, meio empolgado. – Gostaria de o viver. Mas não é jogar a Tradição ao caixote do lixo mais os fundamentos dela?

                 Não é tanto uma dúvida minha, é que ainda me custa a crer que me tenham ocorrido estas ideias. Bem, são ideias do Fr. Benedito, mas a verdade é que fazem para mim todo o sentido. É a reserva que opõe à intervenção dele no contexto do meu diário: estou conferindo isto tudo intimamente e a verdade é que me empolga. Mas resta-me também aquela dúvida: atiram-se quase dois milénios duma linha de rumo, sem mais, às urtigas? Não haverá por aqui mais nada? E o fundamento bíblico? Claro que não ignoro que é viável encontrar na Bíblia, em todos os domínios, fundamentos para o sim, para o não e para o talvez. Dois milénios (sem contar com os milénios anteriores) de tentativas para cobrir tudo com o guarda-chuva do Livro não podem hoje deixar muitas dúvidas a ninguém. O critério derradeiro sempre acabará por ser a consciência própria auscultando o íntimo do coração. O derradeiro reduto, porém, não abole os intermédios, ao contrário, há-de requerê-los, senão de que o alimentaria?

                 O Fr. Benedito quase me aturdiu:

                 - A Tradição, cuidado, é a de Jesus e dos Apóstolos, tanto quanto logremos vislumbrá-la. Senão é tradição de quê e de quem? Ora, todos somos pecadores, a Igreja institucional é pecadora tanto quanto se afasta e trai e contradiz e atrasa e destrói a Igreja enquanto Corpo Místico de Cristo. O pecado é uma tradição pessoal, colectiva, comunitária, institucional. Teremos de velar para manter esta tradição? Ora, do que estamos a falar é duma interminável e congruente tradição de pecado. Parece que vivemos séculos incônscios dela. Hoje, que nela reparamos, que temos Papas que inesperadamente se confrontam com este insidioso desvio e o repudiam, o dever de todos e cada um, bem como das organizações e instituições, é o de acabar com este estado de coisas. A todos os níveis: prático, teórico e legal.

                 - E não nos vão atirar com o Novo Testamento à cara? – insisti.

                 - Com o Novo Testamento, não, mas com um versículo: “Tudo o que ligares sobre a terra será ligado nos céus e tudo o que desligares na terra será desligado nos céus”. Estava a evocá-lo, não era?

                 - É verdade. Mas não ignoro a exegese contemporânea de que o Fr. Ramiro nos informou no curso dele: aquilo é um inciso tardio, acrescentado vários séculos depois ao texto original, até noutra linguagem. Perde muito da respectiva autoridade... relativiza-a, pelo menos, por causa do contexto: não pode ser atribuído a Jesus, que nunca deve ter dito tal coisa. Mas não estará dentro do espírito do que Ele pretenderia?

                 - Ah, de certeza que está, evidentemente. Só que o sentido, lido na conjuntura dele, é, em rigor, o contrário do que historicamente lhe foi dado e se implantou no terreno. É inacreditável.

                 - Espere aí, Fr. Benedito, que esta é nova. O contrário?! Nem quero acreditar!

                 - Pois pode crer, o contrário. Felizmente os nossos Papas deram com a mensagem original.

 

 

                 Fátima – 15 de Junho de 2013

 

                 Fiquei um grande minuto a olhar para o meu Mestre, estupefacto. As palavras, à primeira vista, eram para mim tão claras, naquele versículo, que dei comigo a matutar em qual o outro sentido que poderiam ter tido no princípio, ainda por cima ao invés do que história além foi generalizado. Perante o meu mutismo, a olhá-lo, interdito, o Fr. Benedito desatou a rir com gosto.

                 - Mas que cara, irmão Ambrosino! Não é nada de espantar. Em quantos lados isto ocorreu! Recorda-se do daimon socrático, nos textos de Platão? Era o impulso íntimo, o excelente aguilhão que o impelia à busca infatigável da verdade fugidia. Pois transformou-se no demónio, o princípio do mal. Foi de extremo a extremo.

                 - Correcto – confirmei. – Mas no versículo não vislumbro ponta de sentido contrário. Parece tão clarinho!

                 - Eu explico-lhe – prontificou-se o me Mestre. – Nos primeiros três séculos da nossa era, até ao édito do Imperador Constantino, em 313, que consagrou o cristianismo como religião oficial do Império Romano, a conjuntura era muito diferente. O culto dominante era o de Mitra e os cristãos eram pequenos grupúsculos familiares, comunidades minoritárias em lenta expansão, à maneira do que lemos nos Actos dos Apóstolos e nas epístolas de S. Paulo. Ora, com as comunicações limitadas de tais eras, cada terra fazia a própria leitura e interpretação da Boa Nova, o Evangelho. Isto redundava nas maiores divergências, quantas vezes contraditórias, em teologias contrastantes, como não podia deixar de ser. Ocorreu logo entre os próprios Apóstolos, com os que eram judeus da terra-mãe a pretenderem impor a circuncisão e S. Paulo, judeu da diáspora, nascido em Tarso, na actual Turquia, a defender que não, uma vez que para os pagãos convertidos aquilo não fazia sentido nenhum, era uma violência que apenas tenderia a afastá-los duma escolha de fé autêntica.

                 - Até aí, tudo bem – comentei. – Onde principia a divergência de sentidos do versículo? Ainda não vi nada.

                 - Já lá chegamos, seu impaciente! – brincou o meu Mestre. – Agora imagine que vivia numa pequena comunidade, unida por laços muito familiares...

                 - Como esta aqui do convento? – interrompi.

                 - Sim, mas num contexto em que em redor ninguém crê no que vocês creriam, um tipo de segredo exaltante, guardado bem protegido. Depois vêm visitar-vos outros, de longe, que comungam no mesmo mistério. De repente, dão-se conta de que em vários aspectos eles não andam entendendo o que vocês entendem da Boa Nova que vos une. Ora, isto desune-vos uns dos outros. Mais ainda quando chegam notícias de que as divergências se multiplicam à medida que se multiplicam os pequenos núcleos de crentes, de terra para terra. Que fazer? Deixar ir-se desagregando tudo em átomos cada vez mais separados? Numa família, quando as opiniões se dividem e as contendas entre membros ameaçam desagregá-la, como é que lá fariam?

                 - Ora, a família era tradicionalmente patriarcal e era o chefe do clã que arcaria com a responsabilidade de dirimir os conflitos. Era o juiz de paz, com muitos mais poderes até que os togados de agora.

                 - Exactamente. Agora vê quem eram os responsáveis por reunir a comunidade de crentes - de repente passou a tutear-me, como antigamente.

                 - Os presbíteros? É a referência mais comum e mais primitiva, creio.

                 - E lembras-te do significado original da palavra? Não tem nada a ver com padre nem sacerdote.

                 - Pois não, são os anciãos. Os depositários da sabedoria, nas culturas antigas. Tinham fundamentalmente uma autoridade moral, a maior e mais respeitada dentro do grupo, embora, por mor da idade, estivessem retirados por norma da maior parte da vida activa, doravante protagonizada pela geração seguinte, mais nova, com maior energia. Foi o que estudei na Antropologia Cultural.

                 - E aprendeste muito bem – ironizou o Fr, Benedito. – Isso não te diz nada, é?

                 - Por ora, não. Só que são os presbíteros que reúnem e presidem à comunidade. Mas isto é dos textos, a unidade dos fiéis é freima deles, - concluí – são os primeiros responsáveis por congregá-los.

                 - Então repara: são velhos, não têm as resistências de jovens nem adultos. Quando for cada cabeça, cada sentença e desatarem todos a romper uns com os outros em cada comunidade, que atitude julgas que os presbíteros, os anciãos, irão tomar?

                 - Aí é um sarilho, um grande sarilho – ponderei. – Tentarão manter a calma, a ponderação...

                 - Até onde, se a conjuntura se prolongar indefinidamente como de facto ocorreu por sistema, nos três primeiros séculos? Até onde poderão os velhotes ir, aguentar?

                 - Pois, terão limites de limiar baixo, tanto mais quanto mais idosos e desgastados da vida... – reflecti, imaginando o quadro. – No geral não irão decerto conseguir resistir muito.

                 - E então que ocorre? – persistiu o Fr.Benedito.

                 - Não harmonizam os conflitos e as rupturas alastram, dividindo toda a gente – concluí, convicto.

                 - Ora aí tens. Era o triste espectáculo quotidiano, cada vez mais em toda a parte. Durante dez gerações, não foi um período curto.

                 - Mas isto não me leva a lado nenhum na questão em análise. Eles têm a tarefa de congregar os fiéis mas, ao invés, estes vão-se desagregando....

                 - Então não vês? Pelo que conheces do comportamento dos indivíduos, quando os presbíteros vão ficando todos esgotados, stressados, ameaçados no equilíbrio próprio e na vida (até na sobrevivência) pelo rumo dos eventos, qual a atitude dominante que tomarão?

                 - Creio que tentarão, tanto quanto puderem, resolver as querelas e, à medida que se virem a naufragar, a não poder resistir mais, desistirão. É uma questão de sobrevivência, não? – aventei, algo dubitativo.

                 - Sim, concordo, os melhores irão por aí – aderiu o Fr. Benedito. – Mas intervirão todos tão abnegados, tão perfeitos? É um grupo humano como qualquer outro...

                 - Ah, pois! – caí em mim. – Evidentemente que houve presbíteros e presbíteros. Até temos o casal oportunista nos Actos dos Apóstolos que tenta manipular a comunidade em proveito próprio egoísta. Certo. Então, indo por este lado, diria que, no geral, a tentação terá sido a humaníssima tendência de um indivíduo não se meter em alhadas, não é? Se querem andar todos às turras e não me ligam nada, que se desunhem, eu daí lavo as mãos. Pôncio Pilatos, nos autos de Jesus, é a referência típica e a postura é uma tendência universal. Logo, tem de ter havido muito presbítero que se demitiu e deixou o grupo ir por água abaixo, permitindo desagregar-se a comunidade toda.

                 - Perfeito! – quase gritou o me Mestre. – Agora vê-te numa destas aldeolas, um membro de base a verificar que se irá deitar tudo a perder, ainda para mais a reparar que em todas as outras à volta o pendor é o mesmo. Na tua aflição, que dirás ao teu presbítero, quando se auto-demite por comodismo, por preguiça?

                 - Que diria? – interroguei-me, meio distraído com o facto divertido de ver o Fr. Benedito tão concentrado nisto que, desde há bocado, me vem tratando por tu sem dar por ela. – Talvez eu... Muito aflito, porventura, insistiria: não vire as costas, não desista, tem de manter o bom entendimento entre todos, esta foi a tarefa fundamental que lhe entregaram! Já viu? Até onde o conseguir cumprimos o voto de Jesus e dos crentes. Todos o queremos. Se falhar, se desistir, consumamos a destruição do que Ele pretendeu construir. Estamos a condená-Lo à morte outra vez, agora neste fogo lento da desunião e do ódio.

                 - Exactamente – rematou, muito satisfeito, Fr. Benedito.   – Na sua resposta – notei que acalmou porque volta a tratar-me por você, é divertido, - na sua resposta deu-me a razão porque o versículo que estamos a analisar é um inciso tardio num texto mais primitivo, porque é que corresponde ao espírito do Evangelho e, finalmente, diz qual o verdadeiro sentido dele, nos primórdios. Tudo fica doravante claro.

                 - Na minha resposta?! – admirei-me, confuso. – Tem de me explicar melhor porque eu, por ora, não vejo ainda nada, além da atitude que eu tomaria em tal conjuntura.

 

 

                 Fátima – 16 de Junho de 2013

 

                 O meu Mestre recostou-se com um ar muito feliz. Os olhos riam. É engraçado como isto também me põe bem-disposto. Reajo mesmo em empatia com ele. Apurei os ouvidos, pronto para uma lição em que eu é que tinha dado o mote. A biblioteca é uma sala de aula agora e o anão tem o privilégio de ter explicador particular. Quem diria?

                 - Está bem, – retomou o Fr. Benedito – principiemos pelo mais óbvio. Antes daquela conjuntura histórica nunca tinha havido urgência nenhuma de apelar aos presbíteros para aguentarem, persistirem, não se deixarem abater. Eis a razão porque o versículo é um inciso tardio. O irmão reproduziu o que lá diria a real fonte dele: o sentir aflito das comunidades.

                 - Não precisavam era de o pôr na boca de Jesus – contrariei, um pouco arrojado. – No fundo, isto é uma mentira. Uma mentira bíblica. Onde vai parar o texto sagrado, a inspiração divina, hein? Grande falcatrua!

                 - Ah, seu herege danado! – riu o meu Mestre, divertido. – Olhe que, se o não excomungam, ainda lhe aparece aí algum padre espanhol da linha dura e espeta-lhe uma facada. Depois, olhe, não tem seguranças que o protejam...

                 - Mas não é verdade? – insisti, rindo com ele.

                 - Não é tão claro como pretende – continuou. – Primeiro, afirmou-lhes Jesus: “Onde se reunirem dois em meu nome, eu estarei no meio deles”. Logo, Ele vive na expectativa e no voto comunitário, no apelo que faz a todos e cada um. Segundo, muitos deles, ao orarem e meditarem, contactavam e falavam em concreto com Ele. Ressuscitado, Jesus não é um ausente e manifesta-se, aparece, fala e empenha-se na aventura de todos e cada um. Muitos convivem com Ele quotidianamente como com os outros e as demais realidades da vida. Isto não ocorre apenas com S. Paulo. O encontro místico não é uma raridade e onde a fé for mais intensa e autêntica, menos barreiras se lhe opõem e mais indivíduos se lhe permeabilizam. Ora, para todos estes, aquela admoestação que você faria é menos deles que de Jesus a quem obedecem como o grande guia visível que permanentemente lhes dá a mão. O apelo, portanto, mesmo na boca deles, é do mestre e não do discípulo (que se lhe limita a ser fiel). E, em terceiro lugar, diga-me lá, se Jesus vivesse naquelas comunidades, em conjuntura tão aflitiva, que é que diria, hein? O mesmo que o irmão, com aquelas ou com outras palavras. Para o caso é indiferente, o sentido é que conta, não é verdade?

                 Devo ter ficado de boca aberta porque o que me ocorreu foi atirar-lhe:

                 - Tem a certeza de que não foi advogado noutra incarnação qualquer?

                 Respondeu-me com uma gargalhada:

                 - E devo ter sido tão mau que agora me vejo obrigado a advogar apenas as boas causas. E, ainda por cima, as boas causas perdidas. Miséria de sorte!

                 - Pronto, retiro o comentário. Fui estúpido. Reparando bem, que importa o inciso ser mais ou menos tardio? Metendo-nos na pele deles, entendemos logo.

                 - Pois, e o mesmo ocorre com a conformidade com o espírito do Evangelho. Ou não? Há dúvidas, é?

                 - Não é bem... – hesitei eu, sem encontrar as palavras. – Quer dizer, é aquele paralelismo terra-céu, terra-céu. Parece quase um mecanicismo, um automatismo, não sei...

                 - Creio que entendi – concentrou-se o Fr. Benedito. – Imagine-se na pele do místico que todos os dias, na meditação (ou mesmo fora dela, ao deambular nas freimas de cotio) vê fisicamente Jesus a acompanhar tudo o que ocorre em redor, empenhado com todos no melhor rumo a imprimir mundo fora e comunidade além. Consegue?

                 - Julgo que sim. E então?

                 - Quando, de repente, no meio duma disputa angustiada na reunião da comunidade, o presbítero logra sensibilizar cada um dos partidos a aspectos em que pode concordar com o outro e vice-versa, mais, quando cria um ambiente tal de acolhimento mútuo que, inesperadamente, um terceiro vislumbra uma leitura que recupera e supera as duas anteriores numa nova síntese em que tudo e todos finalmente se harmonizam, que é que ocorre?

                 - Reconciliam-se todos – retorqui.

                 - Em que estado de espírito? - insistiu o meu Mestre.

                 - Bem, se a angústia era muita e de há muito prolongada, é bem capaz de redundar em euforia, numa festa de palmas, gritos, cânticos e danças. Eu por mim cuido que reagiria assim.

                 - E agora repare: o irmão é o místico que viu Jesus e a corte celeste inteira permanentemente a tentar inspirar este rumo e esta descoberta final. Como é que os vê agora, como se lhe apresentam, em que estado, ante a vitória consumada?

                 - Infelizmente não sou místico, não tenho visão nenhuma. O anão não trepa a tais alturas. Calculo, porém, que a euforia do lado de lá bem capaz é de ser maior que a daqui. Ah, pois, entendi o paralelo.

                 - Como é que pode não estar consonante com o espírito do Evangelho? Não é outra coisa, é a realização dele.

                 - Correcto, não pode – concordei, percorrendo toda a linha de pensamento.

                 - É a festa do retorno do filho pródigo. Haverá mais alegria no céu por um pecador que se converta que por cem justos – citou de cor Fr. Benedito.

                 De repente, porém, caí em mim. Foi como uma explosão na minha cabeçorra desproporcionada de anão insatisfeito.

                 - Espere aí, a parte final do versículo não condiz. E vem estragar a festa toda. E vai estragar o festim do céu – quase gritei. – “O que desligares...”?!

                 - Rigorosamente, irmão Ambrosino. Rigorosamente.

                 - Então não faz sentido nenhum! – insisti, como se fora um místico traído, tanto tentara imbuir-me da hipótese.

                 - Pois não. Portanto, é que o sentido tem de ser outro. E foi outro e é outro.  – Fr. Benedito continuava muito plácido, como quem goza a conjuntura.

                 - Outro?! Qual? Qual?

                 - O que o irmão Ambrosino lhe deu – replicou, sorrindo, irónico.

                 - O que lhe dei?! Mas que sentido é que lhe dei? – perdi o pé. – Eu nunca falei em desligar...

                 - Pois não, mas se o presbítero não ligar entre si os que se desentendem dentro da comunidade, que é que ocorre? Lembra-se que referiu que se frustra o plano de Jesus e Ele volta ali a ser condenado à morte, lentamente.

                 - É verdade – confirmei. - E então?

                 - Experimente trocar o termo “desligar” por “não ligar”. Qualquer das traduções é correcta, são sinónimos, no sentido fundamental. Agora releia o versículo com a nova tradução. Talvez aí a luz dispare.

                 - “O que não ligares na terra não será ligado nos céus.” Alto! Isto era o meu alerta ao presbítero desistente. Se eu fora o tal místico, veria a festa adiada do lado de cá e do lado do Além, com Jesus e todo o céu a terem de continuar a inspirar, porque a tarefa foi traída e nunca mais lá chegávamos, à meta da comunhão de todos na grande euforia de cá e do céu.

                 - Fez-se luz? – rematou o Fr. Benedito.

                 - Claro! E de que maneira! Como é possível termos pervertido uma mensagem tão óbvia, tão cristalina e tão fértil transmudada naquilo que historicamente tem sido há tantos séculos vivido? Mas que aberração!

                 - É simples. Venceram os comodistas e os preguiçosos. E a leitura deles sempre lhes alimentou uma fingida boa consciência. Podiam trair o céu doravante sem escrúpulos nem culpabilizações. Traíam também os homens e a humanidade, claro, adiando-lhes a festa final de cada etapa da aventura rumo ao Infinito, no tempo e na vida interior. Mas, em contrapartida, alimentavam o próprio bem-estar nas pompas e nas benesses, no gozo dos palácios e dos privilégios... O diabo é mesmo muito traiçoeiro, irmão Ambrosino, é capaz de enganar até os melhores. E gente de boa fé, quantos deles gente de boa fé! Decerto uma larga maioria, séculos fora.

 

 

                 Fátima – 17 de Junho de 2013

 

                 Andei todo o dia a meditar na longa fala transcrita que tive há dias com o meu Mestre. Devo ter parecido mais ou menos embruxado, que os eventos de cotio foram correndo ao lado de mim, quase sem eu dar por ela. Alguns irmãos, os que foram cruzando pela biblioteca, perguntavam se eu andava bem, porque tinha um ar esquisito qualquer. Claro, tinha a cabeça na lua, girava por ali a flutuar. Não me descosi, evidentemente. Como lhes poderia explicar? Nem para mim sei contar direito, quanto mais...

                 O problema é que pressinto que deixei escapar alguma coisa. E que era importante para o que ando a tentar desvelar. O quê? Houve um momento em que eu teria gostado de estar mais com os pés na terra: é que, de corrida rumo ao Algarve, o meu irmão Antonino visitou-me, a meio da tarde, com a minha cunhada e o meu sobrinho, filho deles, um miúdo pequeno, de quatro anos apenas. Gostei de os rever, de descobrir novas de toda a família, dos sonhos e projectos do lar. Foi o melhor momento do dia. Creio que mereciam que eu tivesse estado mais integralmente presente, mas pronto, estive como consegui.

                 Não vislumbro porquê, após a despedida ficou-me um vazio que ainda cuidei que era saudade. Mas não. É o vácuo de algo que, na troca de ideias e novidades, se escapuliu sem deixar rasto e que eu deveria ter agarrado. Se calhar, um pormenor irrelevante que apenas pesaria no contexto deste meu projecto. Tenho andado a rever o diálogo que tivemos no parlatório, a ver se logro repescar o que foi.

                 O meu irmão Antonino e a minha cunhada são ambos professores, ela dos miúdos, ele dos mais velhos. Gostam daquilo, estão onde deveriam andar, dois bons pedagogos, dedicados e com intuição. E o meu sobrinho beneficia disto, claro. Tem um brilhante ambiente de família, em meu entender. Não é por ser meu irmão, creio que sou mesmo imparcial, pelo que me é dado descobrir de muitos outros casos.

                 Falámos do trabalho deles, do fim do ano lectivo e das avaliações terminais. De vitórias e derrotas. Contaram-me casos de pais que são de bradar aos céus, ou de irresponsáveis, ou de descuidados, ou de tapadinhos de todo para qualquer intuição. É do que mais gosto quando falo com eles. É um tipo de mapa ilustrado dos povoados por onde vão andando. E depois também têm progenitores e alunos que são génios ignorados, santos heróicos votados ao anonimato. Há mesmo de tudo na amálgama de vilas e aldeias. Ambos vivem num campo de labor privilegiado para o discernimento disto. Eles gostam dum retrato colorido ao vivo e eu fico maravilhado. Quando nos encontramos, a maior parte do tempo gastamo-lo em relatos fascinantes de casos atrás de casos, que uns chamam os outros e nós nunca nos fatigamos.

                 Estou triando em revista todos os de que me lembro e não, o que me escapou não anda aqui. Foi um dado diferente. Saltou repentinamente uma faísca, vislumbrei uma paisagem qualquer de sentido que de imediato se apagou, na sequela da conversa animada, e agora não logro repescar.

                 Porém, tenho a impressão de que era um pormenor importante para um ângulo qualquer de abordagem do tema que trago em análise.

                 Vou dormir sobre o problema. Nem sequer compreendo que ângulo ficou na sombra na longa reflexão com o meu Mestre. O sono é bom conselheiro, talvez amanhã tudo acabe claro. Ou então, apagado, porque, afinal, não quererá dizer nada...

 

 

                 Fátima – 18 de Junho de 2013

 

                 Durante a missa cada niquice me distraiu. Dei por mim completamente absorto na proa de barco, em betão armado, que a frente da igreja conventual sugere. Nunca fui particularmente vulnerável à arquitectura, as pedras tocam-me relativamente pouco, que é que me deu? Parece que tudo servia para me afastar dali. E foi tal qual durante a eucaristia inteira, menos ao correr da curta homilia de Fr. Ramiro. Ele, de facto, tem um dom qualquer. Como é que me agarrou quando tudo me largava a rédea? Ali há um carisma muito particular.

                 Falou da compaixão, o dever de sermos compassivos, de tomarmos por padrão a dor que sofremos quando alguém de quem gostamos foi atingido, de quanto nos dispomos a fazer por ele. “Não há maior amigo que aquele que dá a vida pelo amigo” – foi o mote e o tema.

                 Mal findou, findou minha concentração, bem contra vontade. Era como se estivera exaurido, eu que nem sequer tenho freimas que me fatiguem. O meu íntimo andava a navegar não sei por onde.

                 Repentinamente, ao entrarmos para o claustro rumo ao refeitório para o pequeno-almoço, a faísca disparou e então fui capaz de rever tudo. Ainda para mais, no âmbito da compaixão. Evidentemente! Não há coincidências...

                 No contexto das festas de fim de ano lectivo, o meu irmão Antonino, reparando no filho, o Nuno, muito entretido a imitar uma corrida de carrinhos debaixo da mesa, cortou a sequência do diálogo, um pouco repeso:

                 - Olha, quem não pôde ir à festa de anos do primo foi ali ele – e apontou com o queixo o pequenito, para lhe não chamar a atenção. – Fiz asneira mas creio que compus tudo a tempo.

                 - Então? Que ocorreu? – interroguei, curioso.

                 - Descobrimos que a comida empastada, tipo açorda, lhe provoca engulhos a ponto de vomitar – comentou a minha cunhada.

                 - Bem. E daí?

                 - Olha, não sabíamos – retomou o meu irmão. – Quando o vi a não comer e a puxar o vómito, ao almoço, quase na hora de ir para a festa do primo, aquilo pareceu-me teatro para despachar e chegar lá mais rápido. Então proibi-lhe a festa e pu-lo de castigo no quarto. Claro que a minha mulher e a avó não gostaram nada do desfecho.

                 - Era demais, mesmo sem ainda termos entendido donde a atitude vinha. Mas ele julgou que não e pronto, não o desautorizámos – explicou a minha cunhada. – Só que, a meio da tarde, falei com o Nuno – é o filho - e dei-me conta de que ele não estava entendendo nada de nada. Então expliquei-o aqui ao meu marido para ele ver que rumo dar ao caso.

                 - Pois. Aí fui eu ao quarto falar com o miúdo, para ele me explicar porque é que fizera aquilo. Pouco a pouco descobri que ele, afinal, bem tentara comer, só que aquela pasta mole lhe provocava engulhos de tal ordem que não conseguia dominar o vómito que lhe induzia. Fiquei para morrer! Tinha feito asneira da grande. Fora castigar um comportamento que ele não poderia de maneira nenhuma dominar

                 - Mandaste-o logo para a festa? – perguntei.

                 - Já não dava, era tarde demais. E depois ele não tinha comido ainda. Estava tão ressentido comigo que, aliás, agora recusava comer. Outra comida, claro! – riu-se. – Senti-me encurralado. Isto não podia ficar assim.

                 - Mas ele acabou por vir lanchar e comeu bem – interrompeu a minha cunhada. – Não houve desgraça nenhuma.

                 - Pois foi – retomou o Antonino. – Tudo terminou bem mas foi preciso um reencontro entre nós, engraçado, muito sugestivo. É que estávamos mesmo desencontrados.

                 - E então? -  questionei, curioso.

                 - Como ele mantinha renitente a recusa, vi que não me deixaria alternativa senão impor-me, obrigando-o. Ora, era o que eu não queria de todo outra vez. Para asneira, já bastava tê-lo obrigado e tão inadequadamente antes. Lembrei-me de pedir- lhe ajuda.

                 - Ajuda, como? – inquiri, deveras interessado.

                 - Olha, - continuou o meu irmão – pedi-lhe mesmo, convictamente: “ Não me obrigues a isto, é muito chato! Não gosto nada desta conjuntura, isto custa-me, magoa... Que tristeza! Não me obrigues a ter de impor-me, por favor!”

                 - E ele? – perguntei.

                 - Mudou radicalmente de atitude. Ficou de olhos arregalados a olhar para mim. Creio que viu deveras como aquilo tudo me estava a magoar, a doer. Limitou-se a concluir: “Está bem”. Levantou-se e foi para a cozinha ter com a mãe para almoçar. Ao fim da tarde, todo o ressentimento se evaporara como por encanto. Foi um momento lindo.

                 - Estavas mesmo em sofrimento, era?

                 - E de que maneira! O que mais me custava era vê-lo ferido, ainda pior, por culpa minha. Não era a minha asneira sem intenção, era a dor, o esmagamento que vi nele. Aquilo feriu-me cá dentro duma forma que nem te digo! Quando lhe pedi foi mesmo do fundo do coração. E ele entendeu e correspondeu com a maior das naturalidades. Tenho ali um grande homem, mano!

                 E o diálogo derivou para outros casos e eventos. Evoquei-o agora porque intuí que a postura do meu irmão era mesmo reveladora. Eles estão a conseguir educar o miúdo (como, aliás, os alunos) sem recorrer a castigos físicos. Aqui, porém, foi um evento-limite e houve uma pena de rejeição (mal aplicada, claro, mas os factos não eram conhecidos – quem poderia adivinhar que uma comida normal dava engulhos e provocava o vómito?).

                 Inesperadamente, a dúvida brotou-me diante. Como é que um pontífice pode manter a unidade sem meio nenhum de se impor? O extremismo é mau conselheiro e dá-me a impressão de que há uma ressalva qualquer que deve, neste contexto, ser feita às abolições a que cheguei. Todavia, manter qualquer pena que consume a desunião entre fiéis e adie a festa é uma traição à terra e ao céu. Então como é que isto há-de ser entendido?

                 Mais uma vez, os meus olhos são míopes, tão anões de lonjura de entendimento como os meus pés de largura de passada. Sou tapado, pronto, que hei-de fazer? Terei de socorrer-me do espelho doutrem para nele projectar a profundidade de alcance que me está faltando.

                 Pus-me à espera dum dos três meus mestres preferidos. Agarrei o primeiro que apareceu, o Fr. Marcos. Por acaso (será?) o de mais finas análises, que é o que porventura aqui me vai ser requerido.

                 Contei-lhe esta conversa e a minha dúvida. Pôs-se imediatamente a alinhar distinções, como é apanágio dele. Vou tentar transcrevê-las sem me perder. É que fazem todo o sentido, ao menos para o minúsculo alcance do anão escrevedor.

                 - Em primeiro lugar, - principiou ele – nada de confundir autoridade na família e na comunidade. Na família há o itinerário do nascimento à adultez que tem de ser acompanhado. Na comunidade, não, todas as faixas etárias coabitam e partilham em simultâneo.

                 - Mas os vínculos afectivos não devem servir de referencial? Bem sei que não é o mesmo e que esfriam à medida que os números devêm avassaladores. Hoje iremos num bilião e meio de cristãos. Como falar de vínculos com semelhante coisa? – questionei, meio perdido.

                 - É outra área a não confundir. Os afectos são dos perfis de proximidade, não das multidões, da mole anónima. Os laços e as normas terão de adequar-se a cada caso e conjuntura. Irão ser obrigatoriamente diferentes. Mas creio que a função de referencial do mais íntimo para o mais distante e frio é aqui adequada. A questão é em que termos. A relação de seu irmão com o filho é uma, a dum bispo com os respectivos diocesanos é outra. Até já não é igual se for numa grande família e, mais, se é de tradição africana em que todos se vêem co-responsáveis até qualquer coisa como o sexto grau de afinidade. Aqui a afectividade conta menos que o sentido de dever e a vontade de lhe corresponder solidariamente.

                 - Mas, então, – contra-argumentei, dubitativo – para onde vai a função de referencial?

                 - É para estabelecer o ponto de partida que alimenta a sequela inteira e tem de realimentá-la, quando se lhe perde o rumo. Por baixo, como as brasas da fogueira, tem de acompanhar toda a construção comunitária com o maior número viável de vivências de base íntimas experimentadas por todos e cada um. A elas se reportarão sempre em cada degrau da elaboração da manta social: é para servi-las, torná-las mais abundantes, mais gratificantes e fecundas que tudo deve ser ordenado.

                 - Mas isto desviou-nos do ponto – alertei eu. - Varremos as penas todas, da excomunhão, a mais violenta, até à admoestação, a mais branda, ou devemos admitir que alguma devemos manter, como o castigo do meu irmão ao filho que levou a um final a reconstruir a comunhão tão bonito?

                 - Varremos tudo. Para podermos manter tudo. Claro.

                 - Está a gozar comigo, Fr. Marcos. Agora é que eu não estou entendendo nada. Nem é exequível...

                 - É exequível, é – retorquiu ele, divertido. – É que a questão está mal colocada.

                 - Como mal colocada?! – admirei-me, recordando todo o diálogo de há dias com o Fr, Benedito.

                 - Repare bem, irmão Ambrosino. Ninguém tem o direito (e muito menos o dever) de impedir o projecto de Deus de consumar a comunhão entre os homens, a principiar nos fiéis. Certo?

                 - Certo.

                 - Então temos de abolir das leis, regulamentos, das práticas e tradições tudo aquilo que pune. Senão, é a derrota de Jesus história além. Nenhum pontífice pode arrogar-se tal direito e o dever dele é o de ter de garantir o contrário, a todo o custo: a união dos corações entre todos, o bom entendimento universal, em todo o tempo e lugar. Também está certo?

                 - Claro – concordei. – Era o que eu dizia. Portanto...

                 - ...Portanto, – interrompeu-me o Fr. Marcos – como é preciso a todo o custo garantir a unidade que redunde no “vede como eles se amam”, dito pelo mundo em redor, então todo o pontífice deve empregar os meios capazes de converter os corações, sejam eles quais forem. E, embora se antolhe absurdo, perante a experiência histórica repetida até à saciedade, pode ocorrer um caso, uma conjuntura em que o que o atinge seja o uso de qualquer daquelas penas abolidas do campo dos direitos-deveres. Faço-me entender?

                 - Tira com uma mão o que dá com a outra? A Igreja tem sido useira e vezeira em tal modelo. É uma prática asquerosa! – retorqui, convicto.

                 - De acordo – reiterou o Fr. Marcos. – Se for isso. Mas não, é outra via que apenas aparentemente repõe o que retirou. Só exteriormente podem ser iguais, interiormente, na vivência que as anima, contradizem-se.

                 - Como, então? – refilei. – Troque-mo por miúdos, que o não vejo.

                 - É simples. A derradeira instância é esta: o dever de gerar permanentemente a unidade dos fiéis na unidade da fé. Urge utilizar os meios requeridos para tal, em cada caso concreto. Se, porventura (hipótese que jamais ocorreu até hoje, em milénios de história), se demonstrar que uma pena qualquer leva alguém, uma tendência, uma corrente doutrinária (é quase inimaginável, mas que sabemos nós dos abismos do coração?), que a pena o leva a reconverter-se interiormente, deveras, a uma unidade perdida, pois bem, é por aí que se deverá ir. O dever de recriar perenemente a comunhão sobrepuja tudo. Os meios são os que garantirem em cada qual a autenticidade do itinerário, sejam lá quais forem. Apenas em concreto se poderá escolher e decidir. Não há leis, é uma escolha ética. E que isto só é sustentável enquanto lograr aquele fito. Se o não logra ou provoca uma qualquer mistificação, um simulacro, está condenado e tem de ser banido in limine. Sem contemplações ou cai no que vemos história além.

                 - Mas como, se apenas a posteriori podemos verificar o efeito? – reniti.

                 - Exactamente: se o efeito for a unidade real, não simulada nem forçada, era o caminho. Se não, tem de ser de imediato banido e trocado por outro rumo, infatigavelmente, até se atingir o fito almejado, a festa da comunhão na terra e nos céus. Creio que está tudo conciliado. Fiz-me entender?

                 - Correcto. Tenho muito em que pensar, Fr. Marcos, muito.

                 Despediu-se com uma gargalhada a ecoar no claustro. As andorinhas fugiram assustadas. E eu escapuli-me, pouco menos confundido do que elas.

 

 

                 Fátima – 19 de Junho de 2013

 

                 Vivi hoje o dia inteiro obumbrado pelos efeitos práticos do diálogo com o Fr. Marcos. É que, se aquilo for acolhido, muita prática tem de mudar. Curiosamente, agora não entendo porque ainda não ocorreu. É que, se o Papa levantou a condenação de Galileu, que é um marco de referência, um protótipo, então como pode o resto manter-se por igual? Não faz sentido, uma vez que é o mesmo. Foram milhares os casos, muito mais em Espanha (e em Itália) que aqui ou noutros países. Todos os condenados pela Inquisição terão de ser reabilitados, todos os mortos pelas Cruzadas merecem o nosso acto de contrição e pedido de perdão. Ou não é?

                 Por mais que analise, chego inevitavelmente à mesma conclusão: o acto do Papa, ao anular o caso-padrão, anulou nele todos os demais, implicitamente. É apenas tirar a conclusão e explicitá-la. O erro não esteve nas vítimas (por mais pecadores que fossem, como todos somos), mas nos perseguidores (que na atitude tomada falharam redondamente, por mais santos que tenham logrado ser nos demais domínios da espiritualidade e da vida).

                 Claro que este arrepiar caminho não lhes adianta nada, às vítimas dos desvios de antanho (desvio, quer dizer, o pecado ou o crime a coberto ou, pior, imposto por lei). Já morreram e não iremos com isto restituir-lhes a vida que por nossa culpa lhes foi roubada ou infernizada. O problema é connosco. Como é que somos Igreja? Continuando a julgar que o caso foi arrumado, não há mais nada a fazer? Como doravante já não há mais Inquisição nem Cruzadas, findaram as vítimas? Talvez, mas continua aqui uma fenda em aberto.

                 Vou ver se me consigo explicar bem. É que a unidade com elas não só foi rompida definitivamente então, como agora ainda não foi refeita. O nosso arrependimento colectivo, institucional, se e quando for autêntico, quando for deveras uma conversão interior colectivamente assumida tem de repor as pontes que foram quebradas, refazer com eles a comunidade, a união de nosso lado com todos. No que desta banda depende, temos de recuperar a festa da comunhão no céu.

                 É que eles continuam vivos no Além, a aguardar que lhes estendamos o arco da ponte. Apenas chegando aqui cumprimos a tarefa pontifícia até ao fim, no âmbito do tempo, da Igreja terrestre. Eles poderão recusar a mão estendida, mas isto é o outro lado da união, não é o nosso. Nunca poderão é cumprir esta metade do encontro. E ele, deste lado, continua indefinidamente recusado, na conjuntura ambígua em que deixamos de perseguir Galileu e lhe pedimos perdão do pecado cometido, mas, quanto aos demais, nem uma palavra. Foram excluídos da comunhão, de nossa parte e por nós assim continuarão para a eternidade. Nem que eles pretendam unir-se e conjugar-se connosco em todas as nossas utopias mais elevadas. Se calhar pretendem-no todos e nós aqui a continuarmos olimpicamente a repudiá-los. Podemos estar a ser mesmo parvos de todo. Ainda para mais, a frustrar todo o desígnio de Jesus, todo o projecto que nos propõe.

                 Se calhar estou a ver isto tudo mal, mas, francamente, não vislumbro nada que me esteja a escapar. Aliás, o comportamento da Igreja-instituição, outrora como hoje, no que a este domínio particular se reporta, é pouco menos que de descrente na vida eterna. Muitos dos protagonistas daquele passado negro deviam ser ateus completos sob uma capa fingida de crentes muito espiritualistas. Isto atingiu todos os patamares, da base ao topo, Muitos Papas foram mesmo criminosos impunes (um deles até mandou assassinar o rival dele na eleição, rival que o tinha vencido e renunciado a ser Papa, cedendo-lhe o lugar: o agradecimento foi o punhal do celerado – é exemplar do nível de degradação a que tudo pode descer se não vigiarmos por preservar o mundo espiritual e o rumo correspondente). E é porque não crêem na vida eterna nem na comunhão de vivos e defuntos (que estão vivos doutra forma e noutra dimensão, a da interioridade) que dão tudo por arrumado com as excomunhões, perseguições e penas capitais. Como não crêem em mais nada, não vêem que o problema se mantém em aberto, longe de resolvido, para a eternidade, até que alguém caia em si e retome o diálogo, estenda a mão, reconstrua a ponte, religue a comunhão com quem estiver do lado de lá, à espera para reatar a fusão do corpo místico de Cristo, a comunhão com tudo o que há de divino em todos e cada um de nós, do lado de cá e do lado de lá da vida.

                 Bem, a verdade é que, aqui chegado, me vejo um pouco atordoado com o que o meu lápis vai discorrendo. É que se me escancaram portais ainda muito mais vastos e eu até tremo a cuidar se não estarei a alucinar. Preciso de parar um pouco, pôr-me a orar e meditar calmamente, a ver se o que vislumbro se me não varre do chão como lixo que me veio agarrado às sandálias de irmão leigo, anão que anda para aqui a voar com não sei quantas asas emprestadas. Amanhã verei melhor.

 

 

                 Fátima – 20 de Junho de 2013

 

                 De certeza que foi um sonho, só pode ter sido. Levantei-me para matinas de tal maneira convicto de que tinha de ir ajudar na cozinha que até o matineiro ignorei. Aliás, dirigia-ma para a copa espontaneamente quando, de repente, reparei que todos iam direitos à igreja. Apenas então caí em mim e me integrei no mudo e calmo cortejo dos irmãos. O mais divertido é que era o matinário indigitado para o ofício de hoje. O Fr. Benedito, de vez em quando, propõe-me surpresas destas. Como ando a participar regularmente em tudo, então ele julga que nenhum dom devemos excluir. Atribuem uma qualidade à minha voz que eu ignoro se tenho, um segundo tenor assim-assim, treinei num coro da capela universitária, em Coimbra, durante o meu curso. Consigo modular mais ou menos o tom, dar-lhe volume e ressonância e, claro, adoro cantar, vem-me cá do fundo e sinto-me liberto. Acho que não tenho nenhum timbre especial nem harmónicos de jeito, não é uma voz rica. Mas pronto, a comunidade gosta (ou faz por isto, creio eu). Por mim não regateio, disponível para todo o préstimo. Querem-me a cantar? Eu canto. E fico-lhes deveras grato porque me dá muito gozo. É estranho, é um momento em que nunca me sinto anão. Parece que cresço, cresço, cresço, à medida que a voz se me ergue e reboa pelo espaço, batendo à porta do Infinito. É uma coisa do género que eu vivo quando canto, não logro explicar melhor.

                 E hoje lá matinei, ao lado do irmão cozinheiro (claro, não ia juntar-me a outro, após o que me ocorreu) e através, evidentemente, do matineiro dele. Podia ter corrido à cela pelo meu mas na confusão daquele baralhamento matinal nem tal me ocorreria. Pronto, estava destinado, eu vejo que estava, para quê ignorar o discreto empurrão que do íntimo nos impele? Deus, Jesus e quantos estão com eles não dormem, não é? Nós é que nos distraímos. Em geral nem reparamos, mas eles não param de segredar-nos ao ouvido, alegres e persistentes. Quando medito nisto, é mesmo divertido. Hoje foi praticamente uma partida que me pregaram. Devem ter-se escangalhado de riso ao ver o anão feito barata tonta, para um lado e para o outro, sem ver onde pousar. Até a mim me dá vontade de rir.

                 Fui para a cozinha, evidentemente, descascar batatas e ripar couves. É o melhor caldo da minha vida, evoca-me a infância inteira, os bocados de couve da horta e batata da jeira a boiar na água azeitada e grossa, o cibo do campo de meu lar aldeão, de gente pobre a fazer denodada pela vida, ombro a ombro com os mais. Hoje calhou de ser aquela receita de reconfortante memória, ao menos para mim. Mais uma coincidência, não é verdade? Não há dúvida, não há coincidências.

                 O irmão cozinheiro é um idoso bonacheirão, sempre pronto para uma laracha a propósito. É a alegria de viver incarnada. Julgava que teria sido algum jovem perdido nas berças, com uma quarta classe mal amanhada, de natural bom, equilibrado, e que topara com esta vocação por mero acaso, como quem tropeça numa pedra nalgum carreiro perdido, matas fora. Afinal, não fora assim. Naqueles tempos também andara por um curso superior que não findou, que isto é que o atraía, a clausura dum convento. Largou tudo e para aqui se mandou, com o dote culinário dele e sabedoria de vida.

                 De repente dei comigo a desabafar dos meus assombros e temores, nem sei bem como. Ele é um homem que sabe ouvir e convida à confidência. Hoje era quem me apetecia, não eram os mestres. Hoje era aquilo que eu via que me estava a atemorizar, não a minha crónica cegueira. Precisava era dum bom cozinhado de tudo isto, que ingredientes já eu tinha de sobra.

                 - Sabe, irmão, eu fico mesmo baralhado – confessei, a meio do diálogo – porque me parece demais. Mas, por outro lado, vejo que não. O encontro ecuménico, pelo menos de nossa parte, não é encontro nenhum. Isto faz algum sentido?

                 - Pois, se calhar, faz. Sabe qual foi o meu primeiro contacto com a nossa Ordem? Quando andei pela Engenharia, inscrevi-me num curso de verão da Universidade da Paz que naquele tempo funcionava em Tihange-les-Huy, nas margens do Mosa, na Bélgica.

                 - Nunca ouvi falar nela. Era uma instituição comunista? Pelo nome...

                 - Não, não, pelo contrário. Nem imagina quem era o fundador e líder daquilo. Já ouviu falar em Dominique Pire?

                 - Pelo nome, que me lembre, nunca. É homem ou mulher?

                 - Homem. A Universidade era dele, uma instituição privada. Continua a não lhe dizer nada? – E, ante a minha negativa: - Olhe, era Prémio Nobel da Paz, o mais novo a quem até então Oslo o tinha atribuído.

                 - Pronto, tudo bem, e daí? Desculpe lá a minha ignorância... – aguilhoei-o.

                 - Imagina o que ele era fora da universidade e das freimas que ela lha dava? – insistiu o irmão cozinheiro, com o olhinho vivo de quem põe uma adivinha.

                 - Eu bem gostaria mas estou inteiramente a zero. Ainda por cima, aquele Prémio Nobel é atribuído a entidades oriundas das mais variadas áreas. Agora até à União Europeia, não é?

                 - É verdade, irmão Ambrosino, nunca lá chegaria. Dominique Pire era um monge dominicano. Um monge da nossa Ordem, veja lá.

                 - Era? Então...

                 - Pois, faleceu poucos anos depois, um homem de meia-idade ainda, andava eu, entretanto, como oficial da Intendência, na guerra de Angola. Foi lá que me informaram.

                 - É muito estranho. Se pertencia à nossa comunidade, como é que eu nunca ouvi falar dele? Ainda para mais, com um prémio daqueles, foi de certeza uma voz que retumbou pelo mundo além. Foi ouvido fora e silenciado dentro? Não acredito!

                 - Nem eu – riu ele gostosamente. – aqui não ligamos ao culto da personalidade, a não ser aos santos canonizados.

                 - Então ele acabou esquecido... E é assim?

                 - Claro, evidentemente, nem ele aceitaria outro tratamento.

                 - Está mesmo a gozar comigo, não é?

                 - Não estou, não! – e ria, saboreando o meu tacteio hesitante.

                 - Vá lá, irmão, descosa-se! Afinal, porque é que o trouxe à baila?

                 - Sabe qual era o tema da Universidade? O diálogo fraterno: características, objectivos e meios. Cursos frequentados por universitários de meio mundo. Só no meu, dezoito países, e foi dos de menor leque. Chegava a haver vinte e cinco e mais.

                 - Mas um empreendimento que tal teve de ter muito impacto. Ficou tudo perdido no passado? Morreu o bicho. acabou a peçonha, salvo seja, como o povo diz? Conte lá! Olhe que o tema era tramado, aquilo é uma bomba.

                 - Nem imagina quanto! E como ele conseguia ser eficaz.

                 - Vá, explique, não se faça rogado!

                 - Olhe, irmão, hoje o mundo tem o Presidente Obama, um mulato, à frente da maior potência mundial. Nem imaginam que, na sombra, durante o meu curso na Universidade da Paz, eu, os meus colegas e todas as iniciativas instituídas por Dominique Pire tivemos de parar uns dias para resolver, ajudar a ultrapassar a iminência duma guerra civil nos Estados Unidos, a desencadear pelos Black Muslisms. Fizeram um ultimato, desesperados com o assassinato do seu líder Malcolm X, de Martin Luther King e muitos outros anónimos, vítimas dum racismo exacerbado. Era por poucos dias. Estavam armados e eram uns milhões de negros e mestiços, mormente nos Estados sulistas.

                 - E foram vocês que os pararam?!

                 - Foi a nós que fizeram o ultimato. Duas semanas para terem eco bastante, na comunicação mundial, os direitos civis pelos quais lutavam, em lugar da cobertura e branqueamento dos crimes, mormente dos assassínios do racismo, que então andavam sistematicamente a fazer.

                 - Nunca ouvi falar em tal episódio. Mas como é que souberam da guerra iminente? Foi um evento duma tremenda gravidade.

                 - Pois foi, E soubemo-lo porque nos chegou da América o escritor de Na Pele dum Negro, John Griffin (era um best-seller mundial naqueles anos), aflito, porque eles o tinham prevenido de que iam desencadear uma guerra civil e ele é que negociara com os dirigentes do movimento aquela dilação temporal, convicto de que Dominique Pire iria atingir resultados que os convenceriam a parar a violência e a não desistir de continuar por meios pacíficos o combate pela justeza da causa negras, dos direitos civis para todos.

                 - E conseguiram-no? Pelos vistos conseguiram-no!

                 - Pois conseguimos. E muito mais do que poderíamos prever ou até os mentores dos Black Muslisms. Todos os canais da Universidade, toda a rede mundial de iniciativas, tudo ficou entupido de mensagens solidárias com a luta pacífica pelos direitos civis na América, toda a comunicação social trouxe para as primeiras páginas este combate e respectiva justeza. A cobertura dos criminosos caiu por terra.

                 - Eh, irmão, mas que vitória!

                 - Pois, mas a maior é que recuou tanto o racismo multissecular, inveterado e acéfalo que hoje temos Obama como Presidente e reconfirmado em segunda eleição. Ninguém o imaginaria há uma geração atrás. Dominique Pire deve andar aos pulos, pelo céu fora, numa festa pegada. O que o diálogo a sério pode fazer! – e rematou com uma gargalhada.

                 - Mas aqui ninguém o sabe, nunca ouvi falar de tal coisa. Não faz sentido a campanha de silêncio – insisti, muito convicto.

                 - Qual campanha de silêncio?! Não lhe acabei de contar tudo? Ora essa, não me diga que não ouviu nada – e ria, galhofeiro.

                 - Não é isso, é que a comunidade, se calhar, também gostaria de ouvi-lo. Assim, fica aqui pela cozinha... Não é uma perda? E, se era tão eficaz, tem de se lhe retomar o rumo. Precisamos é de caminhos.

                 - E quem lhe diz que os não temos ou que os não trilhamos? Oh homem de pouca fé! – ironizou ele, muito divertido.

                 - Mas onde? Como? – de facto eu estava de novo sem enxergar nada.

                 - Diga-me lá, irmão, que é que deveras importa: a mensagem ou o mensageiro, o Evangelho ou o missionário?

                 - Os dois, os dois, ora essa! – afirmei, muito senhor de mim.

                 - Já ouviu um missionário a sério? Jesus a sério? Hein? – e o olhinho brilhava, brincalhão.

                 - Pronto, para eles, não, é verdade. A boa Nova é que importa, eles são instrumentos descartáveis. E, quanto mais autênticos, mais assim se lêem. Ganhou, irmão, ganhou. E então?

                 - Então, repare. Na nossa Ordem algum dos mestres foge ao diálogo, à tentativa de diálogo mais profundo, mais autêntico, mais exigente de que é capaz? Já descobriu alguma perspectiva, alguma abordagem, alguma atitude em que eles não tentem encontrar uma qualquer ponta de sentido, para aí tentarem a conciliação com ela? Eu nunca vi. E não é apenas nesta comunidade. Os grandes nomes da teologia mundial da nossa congregação pautam-se pelo mesmo vector. É ou não é?

                 - De acordo. Isto é Dominique Pire?

                 - Ou isto é Dominique Pire ou Dominique Pire é isto: ignoro quem bebeu em quem, se caminham de mãos dadas, se autonomamente o descobriram... Pouco importa nem a eles lhes importa, importante é o caminho. E é o que mundialmente nos esforçamos por palmilhar. Eu inclusive, seu humilde cozinheiro – rematou, bem-humorado.

                 Parei, com a noção de ter perdido o fio da meada. A que propósito vinha isto tudo? Ele leu-me o pensamento.

                 - Chamei o caso à pedra porque colocou a dúvida acerca do ecumenismo. Duvidou se o da nossa Igreja era algum diálogo de jeito. E se calhar não é, creio eu também. Com o barulho dos tachos e das panelas eu não consigo ouvir bem as intervenções, ainda por cima, com a idade, a surdez aumenta gradualmente – rematou a rir.

                 - Já agora, como é que Dominique Pire, no tal curso, punha a questão? Ou não dá para resumir? – perguntei, curioso por entender que é que requer um diálogo autêntico, na visão dum perito com impacto mundial.

                 - Dá, dá. Olhe, o ponto de partida é lograr colocar-se entre parêntesis para ser capaz de ouvir o outro. Depois, ouvir é tentar entendê-lo do ponto de vista dele, não do meu. Em terceiro lugar, é valorizar e acolher tudo o que nele descobrir que faça igualmente sentido para mim. Finalmente, isto, feito de ambos os lados, deixa os dois no fim mais ricos (com as achegas recolhidas), mais próximos (com os aspectos novos doravante em comum partilhados), mais unidos (com a mútua consideração aumentada pelo que o outro, afinal, descobriu e aceitou partilhar comigo, enriquecendo-me), o que redunda em laços de paz (não se guerreia aqueles por quem temos consideração e que nos servem de bom grado, enriquecendo-nos). Não esqueça que Dominique Pire pretendia dar uma achega à paz mundial, ele vinha das tragédias da Grande Guerra.

                 - Mas isso, na prática...

                 - Na prática ele propunha uma metodologia que, mais ou menos manquejando, a humanidade tenta cumprir. O lema era: dar o pão para colher a paz. Juntarem-se as potências para findar com a fome no mundo que, ao cooperarem nisto, desenvolveriam mútuo respeito e admiração. Aí, quebrar a paz seria impossível. Uma utopia generosa. Mas para lá vai caminhando a humanidade, se calhar tropegamente, mas vai indo. Na ajuda aquando das tragédias humanitárias, na conciliação de conflitos, na acalmia e resolução de guerras...

                 - Talvez, talvez... – hesitei, retomando o meu fio de pensamento. – Por acaso não estaremos de novo numa conjuntura em que de dentro da Igreja se apurou um fermento para o mundo e depois, entre nós, a fornada não levedou? É que é o que me parece, Deus me perdoe. Devo estar mesmo cego de todo.

                 - Irmão Ambrosino, vamos por partes. É o ecumenismo que lhe está causando engulhos? Qual é a falha?

                 - Então, a Igreja excomungou-os a todos, aos outros cristãos, e anatematizou todas as doutrinas. Isto deu cabo de quaisquer pontes, até hoje. Que é que eu ponho entre parêntesis para ouvir os outros? Já ficou tudo condenado de vez, as pessoas e as ideias... Definitivamente. Como é que pode haver um ponto de partida?

                 - Não está mesmo a ver? – e as bochechas tremiam-lhe de riso. – Oh, irmão, então?... É levantar todas as excomunhões e abolir todos os anátemas, claro! E pedir-lhes perdão pelo caminho desviado e por quantas perdas de todo o tipo acarretou. Depois, agora sim, desencadear o diálogo, infatigavelmente, até à comunhão e à paz universal. Até à grande utopia!

 

 

                 Fátima – 21 de Junho de 2013

 

                 - Não é preciso levantar nada, à partida, irmão Ambrosino, para avançar. Temos de ir contra ventos e marés, mesmo se aquilo não ocorrer. Até para lhe abrir caminho, amadurecer o terreno, está a ver?

                 O Fr. Ramiro fixa-me, atento. E continuou, meio a brincar:

                 - Já viu algum de nós deixar-se tolher por tais preconceitos, na teoria ou na prática? Estamo-nos nas tintas para excomunhões e anátemas, quem é que liga a tanta asneira? Foram tudo obscurantismos de antanho. Repare lá se nos cursos, por exemplo, alguém subalternizou o bispo Robinson, de Um Deus Diferente, perante Jean Cardonnel, de Deus Morreu em Jesus Cristo, aquele anglicano, este católico, ou se Hans Küng predomina sobre Moltmann, e assim por diante. Certamente não encontrou nada disto.

                 - Também, Fr. Ramiro, vai-me buscar apenas os perseguidos ou marginalizados...

                 - Mas justamente: uns da casa, outros de fora. Todos vítimas do mesmo caminho torto rumo ao precipício, todos a alertar para o desvio e a apanharem pela cabeça abaixo por o fazerem. E entre nós, todavia, acolhidos em perfeita igualdade. Exactamente como os que não levantam ondas. Nada de discriminações, ouvimos todos e de todos tentamos acolher tudo o que, no íntimo de cada um e na comunhão comunitária, na Igreja, fizer, afinal, sentido. Não é isto que procura?

                 - Claro, pois. Está tudo bem, afinal. Eu é que sou um cabeça-dura...

                 - Ora, irmão Ambrosino, qual bem, qual carapuça! Está mas é tudo mal!

                 - Pronto, tinha que se pôr a fazer pouco do anão! Oh, Fr. Ramiro!...

                 - Pelo contrário, é a fazer muito, mesmo muito, deste grande anão. Não vou tratá-lo com paninhos quentes, tem arcaboiço de gigante, aguenta tudo e mais que fora.

                 - Goze, goze...

                 - Estou a falar muito a sério, acredite.

                 - Então como é que pode estar tudo bem e tudo mal ao mesmo tempo? Isto é uma lógica nova, Fr. Ramiro?

                 - Oh, agora goza comigo, é?

                 Caminhávamos pelo quintal fora (pelo que nos vai restando dele) ao lado da verdura do batatal e do canteiro de alfaces, buscando a sombra fresca das nespereiras, já quase sem frutos, mas cuja copa farfalhuda não há sol que penetre. Quedei-me em silêncio, a aguardar mais explicações. A tarde calmosa era propícia a sedimentar ideias. O Fr. Ramiro era um dos bons para isto.

                 - Mesmo entre nós, cuidado! – retomou, ponderando. - Não há nada pior que o triunfalismo. É o irmão directo do dogmatismo e alimentam-se um ao outro pela ladeira abaixo das perdas até à queda definitiva no abismo. Aqui nós vamos tentando fazer o melhor, todavia a tentação do sectarismo é permanente e a da intolerância também. A vigilância para evitar constantemente os dois pendores não pode nunca afrouxar, sob pena de errarmos para um lado ou para o outro. E, mesmo logrando o equilíbrio, jamais descobriremos definitivamente se é o mais correcto, o mais acertado. Temos de abandonar-nos confiantes à misericórdia do Espírito, indefinidamente atentos aos sinais dele, para logo mudar de rumo, quando e onde o requerer.

                 - Entendi, Fr. Ramiro. Mas com todas estas cautelas e reservas e atitudes interiores, poderia afirmar que vamos indo bem, não é?

                 - Sim, vamos tentando, vamos tentando, sem afrouxar, atentos e humildes...

                 - É correcto, o Infinito está sempre infinitamente distante – resumi.

                 - Mas isto é só, irmão Ambrosino, um dos lados da moeda – continuou.

                 - Qual é o outro?

                 - O que na Igreja repudia tudo isto. Desde logo aqueles para quem o que está está muito bem e o que esteve ainda esteve melhor. Que este mundo, para eles, anda perdido. E, se o Papa não alinha, mata-se o Papa. Pobre João Paulo II, não é? E ele ainda escapou, já quanto ao primeiro do nome, não sei, há muito quem julgue que nele acertaram mesmo e foi para a cova mal deu vislumbres de ir mudar.

                 - Acredita em tal enormidade?

                 - Não, duvido apenas. Mas duvido muito. Com o Banco do Vaticano dominado pela máfia, que era de esperar? Lembre só quantos suicídios ocorreram depois, em cadeia, de altos quadros, quantos autos em tribunal, quantas prisões. Ora, nisto é sempre a ponta do icebergue que apanhamos, o maior desaparece na escuridão das profundezas. Portanto, pobre João Paulo I, que Deus o guarde, já que nós muito provavelmente não o soubemos guardar, não é?

                 - Bem, mas, com tal gente, só cadeia! Claro, com o perdão perenemente disponível para o arrependimento que eventualmente advenha. Para sermos coerentes e fiéis até ao fim na demanda da união. Como fez João Paulo II ao Ali Agka.

                 - Ah, tem os binóculos bem afinados, irmão Ambrosino. Parabéns! – sorriu, bem disposto.

                 - Já quanto aos mais o irmão não diria o mesmo. Como é, Fr. Ramiro?

                 - Aí é que o caso é deveras bicudo. Vai ver que ainda iremos dar com Roma a penitenciar-se do passado, duma história desviada da autêntica espiritualidade repetidamente, séculos e séculos, a repudiar excomunhões e anátemas sobre milhões e milhões de mortos, a orar para o céu nos abrir as portas e todos partilharmos da cósmica festa da comunhão em Deus...  e depois manter-se tal e qual com os vivos de hoje.

                 - Ai não acredito! Se fizer uma coisa...

                 - ...Fará a outra? Era bom, era! Mas não seja ingénuo. Então já não andamos todos no movimento ecuménico? O próprio Papa Francisco é um entusiasta. Logo, repare, aqui as agulhas já foram todas acertadas, o comboio apenas tem de continuar, que vai no bom caminho.

                 - E não vai?!

                 - Lá ir, vai – continuou o Fr. Ramiro. – Mas há montes de pedras nos carris. Não se retiram? Prezamo-las tanto, já que vêm de tão veneráveis avoengos, que nem se lhes pode tocar?

                 - Nós também aqui não as podemos retirar e, contudo, tentamos a abertura completa a todos, não é? Não a conseguimos, é isso?

                 - Nós, com a nossa minúscula vagoneta, apenas logramos contornar os pedregulhos da linha. É alguma coisa já, mas quantas perdas de tempo, quantas hesitações, quanto meio caminho andado quando podia e devia ser caminho inteiro! Isto, para já não falar das suspeitas e reservas que nos caem constantemente em cima. Já não falo das perseguições e castigos, que então teríamos de constatar que os travões mantêm o comboio praticamente parado no apeadeiro de partida. No fundo, como estamos, a máquina arrancou e as carruagens deram um estremeção. Mas ninguém logrou partir do cais de largada. E há tanta viagem a desencadear, tanta paisagem nova a descobrir! Tanta! E nós aqui encegueirados pelo culto dos pedregulhos ancestrais. É uma pena. Quanto desperdício!

                 - Eu cá não entendo nada e da Cúria Romana, muito menos. Mas com um Papa entusiasta do ecumenismo não é de esperar a muda? Julga que ele fica satisfeito com o estremeção das carruagens da igreja para tudo ficar, ao fim, praticamente na mesma? A paralisia também não é tanta...

                 - Olhe, irmão Ambrosino, não duvido de que o Papa Francisco incitará ao ecumenismo. Tem-no feito a vida inteira, não irá parar doravante, pelo contrário. Vai dar mais força. Há, porém, aqui dois problemas. O primeiro é se ele logra discernir que por trás da desunião há um erro de princípio que é o responsável das falhas há séculos e séculos: a reivindicação do direito de desunir que nunca ninguém teve nem poderá ter. O direito de recusar Deus que é amor é uma contradição nos termos e a consumação da derrota, do pecado, na prática. Conseguirá o Papa Francisco vislumbrá-lo, por trás da prática fiel dos que o antecederam e dele próprio? Ou ficará julgando apenas que é uma questão de fidelidade ao dever do amor, de prática ética, sem nunca discernir o pilar que vem sustentando e apoiando milenarmente os desvios? Ignoro a resposta. A barca mete água mas o timoneiro pode crer que apenas se deve às ondas batidas e ao desgaste da calafetagem, sem ligar ao rombo no casco que, por mais que bombeie, perenemente lhe inunda os porões. Esta é a minha dúvida. Que ocorrerá? Creio que nem ele, com toda a franqueza e autenticidade que procura, saberia hoje responder. O Papa continua a caminhar, veremos onde o caminho o leva. Temos muito que orar pelo caminheiro, como ele insistentemente pede.

                 - Pois, é um problema, de facto. Mas há um outro, é?

                 - Há, e se calhar é bem maior. A Igreja vive do culto do passado, a principiar na Bíblia e na Tradição, não é? Já reparou em quantos milhões entendem que a espiritualidade se reduz a defender e reproduzir a herança, seja qual for, que por aqui lhes venha parar à mão? É assim na nossa Igreja, nas demais confissões cristãs, mas é o mesmo nas outras religiões. Então temos nisto um sarilho. São biliões e biliões de indivíduos, dentro e fora do comboio, a venerar tanto a máquina que o impele como o pedregulho que a História despejou nos carris. Que é que o maquinista pode fazer? Atirar o comboio para a frente, atropelando aquela gente toda que ali salmodeia cânticos à veneranda penedia dos ancestrais? Também não pode, não é? Ainda por cima, os veneradores dos cadáveres atados aos pés são violentos, porventura assassinaram um Papa e tentaram reiteradamente assassinar outro. Que é que a prudência, o dever da eficácia, aconselha ao maquinista em apuros destes? Apenas ele pode calcular, no caso e conjuntura como se configurar em concreto, a cada momento, qual o maior ganho com menor perda. Não é viável nem uma qualquer regra nem uma lei: o Papa terá de decidir na angústia da solidão íntima. Ele e Deus, com a comunhão solidária de todos nós, claro, mas cá de fora da decisão. O maquinista limita-se a apitar? A provocar solavancos? A avançar centímetro a centímetro? A parar aguardando que a semente germine, até que permita às multidões discriminar o que é a máquina espiritual e o que é o pedregulho empecilho, na confusão das tradições?... Digo-lhe, irmão Ambrosino, não queria nada estar na pele do Papa, isto deve ser incrivelmente angustiante.

                 - Estou a entender. Até pode ter de ficar tudo parado. O tempo dos homens a aguardar o tempo de Deus. E oxalá que nós estejamos à altura de ajudar na inspiração que o Papa tiver. Se calhar é por isso que os anteriores mudaram a prática sem dizerem uma palavra acerco do fundamento que os inspirava.

                 - Se calhar... – rematou o Fr. Ramiro.

 

 

                 Fátima – 22 de Junho de 2013

 

                 Pois, se calhar. Isto andou-me a moer o juízo todo o dia, como um mote que não se vai da memória. Era bem preferível uma cantilena qualquer, embora profana, poderia andar a trauteá-la. Mas não. Foi o dia inteiro aquilo. Não tinha significado nem alcance nenhum, cuidava eu. Mas no que respeita à escrita deste diário é tudo um bocado estranho. E foi tudo ao contrário.

                 Claro que a vida inteira de qualquer um é assim, mas quem repara? Nem eu antes reparava em nada. Agora é que me vem a talho de foice e, não fora ter de escrever, de certeza andaria tão alheado como outrora, como toda a gente. A vida anda pejada de a-propósitos. Todavia, de habituados, nunca reparamos, é tão natural! Chesterton ria disto alegando que ficaríamos espantados se uma pereira desatasse a frutificar macacos, quando o que é deveras espantoso é que ela nunca os dê e, ao invés, dê peras a vida inteira. E a isto ninguém liga.

                 Adiante. Andava eu naquilo, entregam-me para arquivar uma revista francesa antiga. De repente deparo, na capa, com uma referência a um desaguisado entre o Papa de então e o Patriarca de Constantinopla (Istambul actual), o líder espiritual da Igreja ortodoxa, o primus inter pares de todo o oriente europeu. Por acaso lembrava-me de ter lido a reportagem há anos e fui logo relê-la, à luz da reflexão que venho tentando desenvolver.

                 E aqui está. É uma ilustração concreta da ambiguidade inultrapassável das decisões a tomar no contexto do ecumenismo. Ambos os pontífices se haviam encontrado, o diálogo fora amistoso, acertaram formas de cooperação, a reaproximação de ambas a Igrejas fora atingida em concreto. Mas eis senão quando, posteriormente, alguém no Vaticano se lembra de mandar missionários para a Europa de Leste, para converter aqueles hereges, réprobos danados, todos, ao que parece, condenados ao inferno por causa do filioque que continuam a não aceitar.

                 Alguém descortinará o que isto é? Por acaso ainda me recordo, do meu curso de História, como um episódio anedótico (hoje em dia), mas que é capaz de virar o mundo de pernas para o ar, como o fez no séc. XI. Os bizantinos não aceitaram que no credo constasse que o Espírito Santo procede do pai e do Filho porque, para eles, Filho e Espírito procedem ambos do Pai. É o problema do filioque, que significa e do Filho. Alguém hoje dividiria a Igreja a meio, rasgaria a meio um Império, por uma bizantinice tal?

                 Não há sequer um crente em mil, hoje em dia, para quem isto signifique o que quer que seja. Nem sequer suspeitam da existência de tal coisa, quanto mais... E para uma vivência espiritual deveras que alcance tem uma tal bizarria? É zero, absolutamente zero! É assim entre cristãos e já nem falamos doutras religiões, uma vez que os arroubos espirituais ocorrem por igual em todas. Deus não faz discriminações, sabemo-lo desde o princípio, e Jesus morreu para salvar todos e não apenas os cristãos, muito menos só os católicos. Então que é aquilo? É preciso não ter vivência íntima de espiritualidade nenhuma para protagonizar um evento daqueles. E sabotar todo o trabalho do Papa, evidentemente.

                 O Vaticano tem um lobby gay (confessa publicamente o Sumo pontífice Francisco) que anda a atar a Igreja. Outros cardeais denunciaram a quantidade de ateus cínicos, materialistas, encobertos por batinas e cabeções, porventura solidéus, teatralizando o papel de grandes crentes, muito fiéis, embora todos instrumentalizando os benefícios eclesiásticos em proveito de egoístas, mesquinhos interesses mundanos, bem rasteiros. A Cúria Romana enxameia de simulacros de cristãos, os sepulcros caiados de branco, no dizer de Jesus. É sempre isto e, por igual, nas outras igrejas e religiões. Os parasitas pululam permanentemente nos topos do poder e das benesses, é irremediável. A não ser quando nos desfizermos de tais píncaros. Até lá, é bem verdade que, acima do Papa, haverá fatalmente seis Secretários de Estado, como brincava João XXIII. E o actual Sumo Pontífice bem se queixa...

                 Andava eu com tudo isto a dar-me voltas à cabeça, chamam-me à portaria. Tinha uma visita. Um colega indiano da Faculdade, já o não via há que anos, mas mantém um apreço cordial pelo anão. Já era igual, lá em Letras, naqueles tempos de jovens.

                 O Edgar retornara a Portugal com a família, após uma estadia de alguns anos em Moçambique, entre os canecos onde tinha alguns familiares, após a ocupação do Estado Português da Índia pela União Indiana. Era um bebé, praticamente um recém-nado, quando fugiram. Não lhe restam memórias dali, mas restam nas raízes e nas sagas da parentela que as cultiva, ao que me parece, como um pendor poético da tradição cultural que fazem questão de manter de geração em geração. Creio que é típico da comunidade indiana.

                 Isto explica que já na Universidade o grande herói dele fora o Mahatma Gandhi. Por acaso sempre o admirei também, pela incrível luta não-violenta até à independência do Estado. E devo ao Edgar muita da informação que dele tive.

                 Estávamos a pôr as novidades em dia (não é que aquele homem continua um professor solteiro, parece um monge como eu?), desatei a contar-lhe o projecto disto que aqui tenho entre mãos, por freima cometida por meu Mestre, Fr. Benedito, um frade que, por este motivo, só pode acreditar em milagres.

                 O Edgar confirmou-me, entusiasta, nesta lavoira e então, quando lhe narrei as minhas derradeiras ideias e o impasse em que a Cúria Romana se calhar anda colocando o Papa, contou-me um episódio ocorrido com Gandhi, já ele vivia jejum atrás de jejum contra a colonização inglesa.

                 - Houve um dia – recordou ele – em que, no meio das imensas, das intermináveis manifestações e peregrinações que pululavam por todo o continente indiano colonizado, entre os que procuravam e tentavam contactar o grande líder espiritual que ele acima de tudo foi, apareceu um jovem cristão aqui da Europa.

                 - Era já o movimento em busca de guias espirituais por parte de muita juventude ocidental, como quando fomos universitários?

                 - Sabes, a grande onda foi depois. Mas havia já muitos que se deslocavam até à Índia para de perto lograrem seguir o fenómeno político-espiritual. Creio que foi o fermento para a onda posterior que, aliás, correu menos para lá e mais para o Tibete, por exemplo. Julgo que por mor do Dalai Lama.

                 - Outro grande mentor da espiritualidade mais autêntica. Claro, tinham matado o teu herói. E que ocorreu com o jovem cristão?

                 - O rapaz confessou-lhe que andava à procura dum sentido para a vida e que o que o convencera fora o extraordinário rumo que nele reconheceu. Pedia para lhe indicar o que fazer para atingir um nível tão grande de autenticidade espiritual como ele. Pretendia ser iniciado e dedicar a vida a tamanho ideal. Onde deveria dirigir-se? A que templo, a que religião, a que guru? Que lhe indicasse a via.

                 - Então e Gandhi?

                 - Respondeu-lhe: “Se é isto o que procuras, não precisas de vir para a Índia. Vasculha-o na tua terra, na tua religião. Lá no fundo encontrarás tudo. Vive-o a partir daí, que chegarás onde queres. Tens lá tudo à mão, ao teu dispor”.

                 - Ó Edgar, mas que grande resposta! Gandhi era mesmo um homem do outro mundo.

                 - Isto é que é ecumenismo a sério, de quem atingiu as raízes e vive em coerência com a fundura de seu imo. Que o ouve e lhe obedece, à voz discreta que aí perenemente nos fala, não é? Não é, seu meio frade? – brincou, dando-me uma palmada amistosa que me evocou o mesmo gesto, habitual nele aquando dos tempos académicos.

                 - E cá temos – confirmei – como um homem fundamentalmente espiritual, cuja fé nada tinha de cristã nem, menos ainda, de católica, nos vem dar uma lição de vida interior autêntica, fiel ao Espírito que o impele, a Deus que a ninguém discrimina, ao Jesus ignoto que a todos, incluindo a ele, salvou. Reconheceu a Voz que do imo fala, que todos tropegamente procuramos, que é a mesma em quaisquer pendores da montanha do mistério, em todos os corações que buscam, em todas as culturas e tradições. Não há dúvida, grande Mahatma Gandhi!

                 - Pois, Ambrosino, é muito diferente do que vivem os que rasteiraram o Papa no episódio que contaste. Parece que ainda não entenderam nada. Olha se algum deles era capaz de dizer o recíproco daquilo a um hindu que o procurasse!

                 Quando nos despedimos, dei comigo macambúzio. Como é que conseguimos ser tão infiéis? Tão medíocres? Tão contraditórios?

                 A Igreja institucional é tão pecadora (e eu com ela, pois até agora nunca sequer me tinha dado conta disto, quanto mais lograr inflecti-lo!) que nem vislumbro onde pára a Igreja espiritual, a comunhão real de corações e vidas, de corpo e espírito entre vivos e mortos. Que bocado de mim me resta para partilhar da grande comunhão? Ai valha-me Deus! Muito bom e paciente tem mesmo o Céu de ser connosco!

 

 

                 Fátima – 23 de Junho de 2013

 

                 Hoje entupi de todo. Quando reli o que escrevi fiquei cheio de escrúpulos. Por muito menos quantos, história além, acabaram postergados, excomungados, condenados à fogueira, guerreados até à morte? E afirmo eu teses que tais! É verdade que o papel é inerte e, enquanto isto apenas daqui constar, é seguro como selado num túmulo. Em épocas de antanho, porém, até o pensamento, igualmente pecaminoso, era perseguido. Deus meu, que tempos aqueles! Como é que pudemos ter sido capazes de tal? E ainda não estamos arrependidos, nem pedimos perdão. Ainda não nos convertemos. Isto é de arrepiar qualquer um. Muito mais um anão apalermado, perdido em bolandas que tais. Ou será que ando vendo tudo mal?

                 Ainda estive quase a ir-me confessar, para acalmar a consciência, mas reconsiderei. Isto não é temática de confissão, quando muito seria a minha quota-parte de ignorância, conformismo, de inconsciência colectivamente partilhada. E como é que eu poderia ter a pretensão de acusar um erro de todos, de toda a instituição, de quase todos os tempos? O anão é pequeno demais, rebentaria logo como um balão de tanto orgulho, de tanta mania de andar a ver o que porventura mais ninguém vislumbra. Em vez de confissão seria sei lá o quê! Pior a emenda que o soneto...

                 O grave é que eu não vejo onde é que possa ter errado. Ao que creio, os meus mestres também não. Fico reconfortado, mas a tremelicar como canavieira ao vento. No fundo, o que mais me intriga é isto: como é que a Igreja pode andar a receber lições do século? São os ateus e os indiferentes que nos dão aulas de democracia, tolerância e pluralismo que não há maneira de lograrmos assimilar e integrar, enquanto comunidade e instituição eclesiástica. São os mesmos com crentes de todas as religiões (incluindo a nossa e a nossa Igreja, valha-nos isso ao menos) que nos propõem direitos humanos universais, mas que nós varremos da soleira da nossa porta institucional. São mentores espirituais sem religião explícita ou doutras religiões, doutras igrejas, que nos dão testemunhos de fé coerente e tão profunda, duma espiritualidade tão vívida, com tanto Deus incarnado (gostaria de dizer), que ficamos de cara à banda: como é que nós pretendemos seguir Deus, seguir Jesus, se perdemos o tempo (mais outrora que hoje, é verdade) a repudiar e desconfiar de tudo isto? Que ocorre, afinal, connosco?

                 Deus só é Deus quando age em nós? E quando age nos outros, como é que é? Deixa de ser Deus?! E se os outros lhe são fiéis, lhe tornam a vida transparente, devêm gurus a iluminar meio mundo, que lhes faremos? Serão todos uns hereges que quase, quase condenamos ao inferno (como se Deus andasse a nosso mando)? Como é que invertemos tudo isto? E como é que não fazemos nada para o endireitar? Têm apenas uns pozitos de verdade, uns germezitos de santidade aqueles pobres pagãos? Os benditos de Deus? Nós atrevemo-nos a discernir mais do que Deus, a julgar e apoucar Deus? Mas atrevemo-nos mesmo, há séculos que o praticamos! E muito convictos de que nós é que temos razão. Mesmo contra Deus e as obras dEle que são gritantes perante qualquer coração aberto. Como é que a Igreja sociológica Lhe fechou as portas e ninguém vê? Ou, aliás, muitos viram, muitos profetas o apontaram a dedo séculos fora e a todos lhes foi cortada a cabeça. Cortámos sistematicamente a cabeça às vozes que Deus nos tem vindo a enviar história além. E não houve um rebate de consciência comunitário colectivo? A verdade é que não houve, tudo foi sempre esmagado na violência e no sangue, pelos tempos, pelos milénios.

                 É isto que os últimos Papas vêem e recusam continuar, firmes, intransigentemente. É isto que o Papa Francisco intui, ao pretender renovar a Igreja, creio eu. Não sabe como, evidentemente, senão não teria nomeado um grupo de trabalho. Algo quer, porém, e não é um remendo, senão não precisaria de grupo nenhum. Para pôr um penso rápido qualquer um serve, ninguém pede uma junta médica.

                 Ora, neste pendor, ou muito me engano ou tudo tem de ser refundado. O desvio é colossal. A Igreja-corpo-de-Cristo foi traída sistemática e multissecularmente pela Igreja-instituição. Nesta vertente é tudo menos aquela. Aqui espatifou triunfalistamente o vede-como-eles-se-amam e trocou-o persistente e estruturalmente por um diabólico vede-como-eles-se-odeiam. E odeiam tanto que se andaram a matar mutuamente há séculos e séculos. E continuam, doravante com os fundamentalistas islâmicos a matarem mui religiosamente em nome de Alá como os integristas cristãos a tentar liquidar o Papa em nome de Cristo. Pequenas minorias, cá e lá, felizmente. Mas será que a maioria já deixou de estar com o espírito (ou melhor, a falta de espírito) deles?

                 - Muitos séculos, é verdade – comentou-me, de repente, o irmão porteiro, quando a meio da tarde desabafei com ele acerca disto tudo (tinha-lhe levado uma revista para ele entreter, actualizando-se, os momentos mortos que hoje foram muitos, como em todos os domingos após a missa) – mas repare que foi por pervertermos o que ocorreu ao princípio.

                 - A que é que se está a referir?

                 - Ora, ao Concílio de Jerusalém, claro. Os Actos dos Apóstolos são nesta vertente muito clarificadores. Ninguém fala nisto mas eu já reparei há muito. Todos olham para o confronto doutrinário, para o arranjo de mútuo entendimento, para as repercussões vindoiras, para as implicações teológicas, sei lá. E tudo bem, não é? São perspectivas importantes, nalguns casos de ecos descomunais. Mas sempre me fez confusão que não liguem às pessoas envolvidas, às atitudes, ao trato. Está lá tudo mas não importa a ninguém.

                 - Ó irmão porteiro, – brinquei logo eu – abra-me lá a porta, que cá fora morremos de calor nas fogueiras de queimar hereges. Troque-me lá isto por miúdos, que o meu alforge está vazio, temo que meramente cheio de moeda falsa. Vá, fale, fale!

                 - Ora, que é que eu entendo? – retorquiu, meio à defesa. – É teoria para os mestres. Agora eu!

                 - Não é para os mestres, não, que eles andam entretidos com aquelas questões maiores e, pelos vistos, não têm tempo para ninharias destas – insisti, convicto. – Isto é para os pequenos como nós. Ah! Desculpe, irmão, não se ofenda, eu, como anão, sou um pequeno minúsculo, o irmão porteiro é um pequeno pequeno. Está certo? Pronto, e é connosco. Ponha-me lá as cartas na mesa, que isto anda a afligir-me e, se calhar, o que viu ajuda a acalmar-me, nem que seja desdizendo-me. Faz-me esta caridade?

                 - Por amor de Deus! Tudo o que eu puder, irmão Ambrosino. Mas é da minha humilde cela, que há-de ser bem míope. Contudo, não reservo nada, certo?

                 - Conte lá então, que abrir a porta leva a mais do que parece – incitei-o.

                 - Olhe, repare, é simples. Saulo de Tarso (que tomou o nome de Paulo, o Apóstolo missionário) nunca foi discípulo nem conviveu com Jesus, mas após a conversão foi de extremo a extremo e, em vez de perseguir cristãos (ele, testemunha que guardou as roupas dos que lapidaram St.º Estêvão, o proto-mártir), doravante põe-se a expandir o cristianismo por sua iniciativa, sem prestar contas a ninguém. Pior, sem respeitar os rituais judaicos como os outros, presos ainda às próprias raízes que iam impondo aos demais.

                 - Até aqui, tudo bem, é o que sabemos dos factos. E então? – questionei.

                 - Então, quando o chamaram a Jerusalém, repare como o tratam. Ninguém o excomungou, ninguém declarou anátema sobre nenhuma doutrina (logo ele cheio de tantas que nenhum dos outros podia entender, de tão ignorantes), ninguém o condenou como herege, ninguém formulou nenhum dogma. Nem ele próprio que era o mais capacitado, pela formação superior que detinha. Todos os procedimentos seguidos mais tardiamente, pelos séculos fora, estão dali ausentes. Mais: não há qualquer sinal de que sequer lhes tenham passado pela cabeça. Não acha curioso?

                 - Perfeito, perfeito! – interrompi, como se um balde de água me tivesse inesperadamente lavado de montes de lama. – Clarinho como a luz do sol!

                 - E depois há o outro lado – continuou, divertido. – Há muito mais sol do que cuida. Chamam-no. Para o julgarem? Não. Para ele lhes explicar o rumo dele e os fundamentos. Para o rebaterem? Não. Para o entenderem a ele em primeira mão (não pela boataria, repare) e às razões, para as compreenderem, a fim de as poderem acolher, desde que tivessem sentido também para eles, como de facto ocorreu. Não para lhe atirarem à cara os motivos deles próprios e pronto: ou aceitas ou vais para as profundas dos infernos. Como foi o lema multissecular posterior. Agiram rigorosamente ao contrário.

                 - Lindo, lindo! – exclamei, pouco menos que extasiado.

                 Não é um teólogo, é um frade simples que pondera com o coração e repara no pormenor crucial. Eu nunca poderia ter escolhido para viver outra comunidade!

                 - E o remate? – perguntou ele, tocado pelo meu entusiasmo. – Foi exemplar. Acertaram qual seria o modus vivendi, atentos às duas comunidades culturais com que estavam envolvidos. Para quem fizer sentido, o ritual da tradição, para quem não fizer, outro qualquer que forem inventando e lhes toque o coração. Acordam numa pluralidade de caminhos, de rotas, de tradições. Está a ver? Nem um dogma, nem um itinerário único, nem uniformização de ritos. Mútuo acolhimento e caminho livre para a festa da comunhão que mais sentido fizer em cada contexto. Quando a gente olha para o que veio a ocorrer séculos depois, é uma dor de alma. Perseguições? Expulsões? Desterros? Guerras? Penas capitais? Donde é que veio tudo isto? Que horror!

                 Fiquei sem palavras. Quase pulava de exultação. O irmão porteiro, quem diria?! Desmontou-me aquilo tudo com uma facilidade! Quase parecia o Fr. Marcos com as distinções dele. As de agora, todavia, eram mais clarinhas, eram mesmo terra a terra sem grandes (ou nenhumas, em verdade) teorizações. Factos, apenas factos a falarem. E que mundos em contrate, o do princípio e o das sequelas posteriores, tão negras!

                 Tirou-me tanto peso de cima que me apetecia cantar. Se eu tivera asas, teria voado.

                 Andei na cela para trás e para diante, horas esquecidas. Até se me varreu a biblioteca. Felizmente todos sabem onde estou, mas ninguém precisou de mim. Tinha uma certeza na cabeça: isto daria uma força tremenda ao Papa Francisco na hora de agir, se tal vier a ser alguma vez a decisão que o imo lhe inspire.

 

 

                 Fátima – 24 de Junho de 2013

 

                 Hoje desatei a rir, ao reler as derradeiras linhas de ontem. O anão a dar-se ares! E nem reparou. Não me estava eu já a ver a dar a mão ao Papa? Grande palerma! Como se ele não tivera mais que fazer do que perder tempo com um parvalhão como eu! É engraçado como a gente embandeira, com o entusiasmo, e logo perdemos a noção das proporções. Até já me esquecia de que isto é um diário que, embora não tenha de ser íntimo, decerto ninguém terá sequer pachorra de folhear. É para mim e para a gaveta. E por alegre obediência a meu Mestre que sabe melhor do que eu o que, afinal, me dá mesmo gozo. O que é, de facto, o caso. Por meu alvedrio jamais o teria descoberto e, no fim de contas, acaba a entusiasmar-me deveras. É curioso como nem para mim próprio consigo ser bom. Até nisto preciso dum mediador para me descobrir ao espelho. Grande Fr. Benedito, nunca saberei agradecer-lhe bastante. Por isto e por tudo o mais.

                 De manhã, ainda cedo, tivemos uma prenda inesperada.

                 - É S. João, dia de festa. De celebrar com sardinhas e broa, como o povo de socos e aguilhada, na minha terra – alardeou alegremente o irmão Marista Dimas, meu companheiro no Curso de Teologia de verão, anos atrás.

                 Fez questão de me entregar pessoalmente a caixa do peixe e o pão de milho para a celebração da comunidade. De vez em quando passa cá pelo convento e trocamos dois dedos de conversa. Ficou-nos o gosto dos anos de aulas em comum, nas férias grandes, em que ele andava sempre tão fatigado do encerramento do ano lectivo, no colégio da comunidade dele, que não raro adormecia exausto ao meu lado. Quando acordava, ríamo-nos ambos e eu perguntava-lhe se não era melhor uma cura de repouso para recuperar à altura. Recusava sempre:

                 - Não, não. O que apanhar das aulas já é muito bom. Ficam uns buracos mas eu vou tentando tapar as lacunas. Se agora perder isto, nunca mais terei oportunidade. A vida cada vez mais me vai ser assoberbada. Assim, o que aprender, muito ou pouco, aqui me há-de ficar.

                 E apurava novamente o ouvido. O irmão Dimas era um colega bem-disposto, sempre a brincar com as próprias limitações e que não tomaria ordens, era apenas professor, como a generalidade dos salesianos, congregação dedicada ao ensino e educação de jovens. Era mesmo a escolha dele, confidenciara-me outrora. Sentíamo-nos de algum modo emparelhados, talvez por isto conversámos tanto: eu também era assim como que um meio frade.

                 - Encerramento do ano lectivo já sabes... – comentou-me ele quando lhe perguntei como ia, bem como a respectiva comunidade (havia mais quatro membros que frequentaram o curso connosco, mas com nenhum deles me liguei tanto). – Temos lá uma pedra no sapato curiosa. É um bom aluno, em plena adolescência, mais um anito e salta para a Faculdade.

                 - E qual é o escrúpulo? – brinquei eu, alardeando o radical da palavra que na origem queria significar exactamente aquilo, a pedrinha no sapato que nos põe a manquejar, apesar de tão minúscula e, aparentemente, inócua.

                 - Virou para o Partido Comunista, mas à moda antiga. Quero dizer, o miúdo é que tem uma postura anacrónica. Não que o de cá não o seja igualmente. Pelo menos eu julgo que sim. Mas refiro-me ao rapaz. Afivelou umas palas e não há maneira...

                 - Que queres dizer com isso? – adiantei. – Não é de certeza o nosso preconceito carunchoso contra o comunismo. O Papa a receber Gorbachev, o primeiro-ministro soviético, antigamente, e o resto da igreja de costas viradas, numa condenação sectária, completamente surda e suspeitosa. De candeias às avessas.

                 - Ah, não, não! – acudiu logo ele. – Quer dizer, – repensou – atitudes preconceituosas daquelas continuam aos montes. Mas não é ao que me estou referindo. Aliás, é praticamente o mesmo, mas do outro lado. Acaba por ser engraçado, podes crer.

                 - Ai é? Pronto, picaste-me. Agora tens de arranjar tempo para me explicar, desculpa lá...

                 - Ora, com todo o gosto, irmão Ambrosino – retomou, disponível. – Lembras-te de termos lido, durante o curso, uns artigos de análise ao comunismo que, em lugar da doutrina, desmontavam a atitude, o comportamento?

                 - Claro, os que revelavam a contradição entre a utopia sedutora e a prática de horrores, entre o ideal e o Gulag, de Soljenitsine, entre O Zero e o Infinito, de Arthur Koestler... – principiei eu, pronto para um rosário de referências, dado que são quase inesgotáveis, em torno da “maior burla do século”, no dizer de Mário Soares, o nosso ex-Presidente, pai da pátria democrática.

                 - Pois, também, também, - cortou o irmão Dimas – mas não era este pendor, era outro a ele ligado dum modo subtil e algo escandaloso, em ambas as frentes: refiro-me aos que criticavam o movimento devido à postura de próceres, mentores e militantes convictos – ela era uma atitude religiosa, no entender deles. Não te lembras disto?

                 - Recordo-me de o ler em artigos de revista, ao tempo. Ah, de certeza que há uma referência ao tema n’O drama do Humanismo Ateu, de Henri de Lubac. Ena, onde isso já vai!... Há quantos anos! Quando é que este teólogo morreu?

                 - Sei lá bem! O curioso é que, se cuidas que já lá vai, não vai nada. Vive ali inteirinho, bem presente naquele rapaz. Acreditas? Um ilustrador digno de estudo. Acaba por ser um caso estimulante. É um anacronismo vivo, a emparceirar dia a dia connosco.

                 - E como é que o perfil se traduz? – questionei, interessado. – Deve ser muito curioso. E também elucidativo: nós a julgarmos que é um momento do passado e, de repente, ei-lo aqui, pujante, à mão de semear. Um jovem...

                 - E bem novo! – continuou o irmão Dimas. – No conselho de Turma resumimo-lo, no fundo, a isto: desde que provenha do partido Comunista, o que for dito é uma verdade absoluta e, portanto, sagrada – não se lhe pode tocar, ninguém pode discordar, não pode ser revista, não pode ser limitada nem relativizada. Apenas venerada, acolhida e seguida cegamente. Estás a ver como é que podíamos enfrentar isto na Filosofia, não estás? É militar pela acefalia, pela carneirada mais seguidista. Onde fica o juízo crítico? Em lugar nenhum. Abolido: hospital psiquiátrico ou Sibéria com ele. Foi onde chegaram lá, não é?

                 - Cruzes! O rapaz diz isto?! – duvidei eu.

                 - Não, eu é que o digo – retorquiu o irmão Dimas – para retraçar claramente o perfil. Mas a lógica está lá toda. Claro que podem ser verduras da juventude onde ele está entrando, com as inseguranças próprias. Aquela postura é também uma bengala de apoio. Com tempo e mais firmeza nas pernas tudo pode ser ultrapassado, não é? O itinerário da maioria vai por aí, felizmente.

                 - Mesmo no Partido Comunista?

                 - Mesmo no Partido Comunista, embora para serem expulsos a seguir – riu ele, descontraído. – Pelo menos no de cá, eles, lá dentro, continuam a ser donos da verdade absoluta, não sei como, devem ter o monopólio do Espírito Santo. E exigem veneração ao sacrário do deus Secretário-Geral. Quem discorda, anátema, seu herege! Expulso para as trevas exteriores! Claro que todos têm liberdade de opinião... desde que seja para concordar com eles. Diálogo? Claro que dialogam com todos... desde que seja para todos, ao fim, andarem a seu mando. Coligações? Evidentemente que sim... desde que seja nos termos e sob o férreo controlo dos inspirados, os que têm o dom da infalibilidade e que são eles apenas. 

                 - É engraçado, – comentei – não aprenderam até agora nada com os comunistas italianos e franceses, para já nem falar dos chineses e até dos cubanos... Os de cá enquistaram no vazio mais esquisito...

                 - Ah, não – retorquiu o irmão Dimas – é tudo menos vazio: eles estudam a sério, investigam o terreno, comparam soluções e caminhos, fazem um labor deveras em profundidade. Têm propostas com cabeça, tronco e membros.

                 - Mas então... – hesitei eu.

                 - Até aí estaria tudo bem. O que está mal é o estatuto atribuído ao termo a que chegam, a cada etapa. Uma vez tomada uma decisão, torna-se um dogma, tão ou mais divino que uma divina revelação. Daí para diante apenas admitem a adoração ao santíssimo sacramento definido e são réprobos todos os que se desviem, distanciem, critiquem, optem por outro rumo. Quando dizem: ”Não nos peçam para nos descaracterizarmos”, o que continuam a pretender é manter a sacralização. Redundou no passado no culto da personalidade, numa série de líderes feitos deuses. Com pés de barro como todos, não é? Mal morrem...

                 - É muito estranho, - ponderei eu – principalmente quando se afirmam ateus, até de ateísmo militante. Hoje não se atrevem mas, se pudessem, duvido se não iriam de novo até aí, como foram até aos endeusamentos que após calcaram aos pés. A cegueira perante a contradição confunde-me sempre. Como é possível?

                 - É verdade – concordou o irmão Dimas. – E a pior contradição é de fundo: é que eliminam, a partir dali, qualquer dialéctica. Pára tudo perante o Absoluto, a Verdade final revelada. É o anti-marxismo mais radical e definitivo. Marx, se o pudesse fazer, repudiá-los-ia sem contemplações. Um absoluto que cai, de relativo, trocado por outro que volta a cair, numa cadeia interminável, e eles não abrem os olhos nem corrigem a atitude. É degradante.

                 - E é o que temos no tal miúdo?

                 - E é o que temos no tal miúdo – concordou. – Esperemos que abra os olhos a tempo, senão é mais um fanático, um extremista a caminho, mesmo nos termos contidos em que, entre nós, o Partido Comunista opera. Só que a semente fanatizada do dogma, entendido como verdade final definitiva, está lá, como está na prática partidária deles.

                 - E não estás a ser vítima dos preconceitos de antanho? – ironizei.

                 - Olha, - retorquiu-me, bem-humorado – eles expulsaram do partido o seu antigo candidato à Presidência, membro do Comité Central. Bastou duvidar da eficácia do rumo e propor uns acertos. Está tudo dito: herege! Excomungado para as trevas exteriores, seu lúcifer disfarçado de anjo! Maldito! Quem se atreve a duvidar do deus?! – E, mudando de tom: - Já nem a Igreja faz isto, não é verdade?

                 - É verdade, é – concordei. – Mas olha que fizemo-lo outrora e o intuito, então, era per omnia saecula saeculorum. E mesmo agora... quantos não lamentarão que tenhamos perdido a força? Não são apenas os integristas, fanáticos de exterioridades, que cada vez menos peso terão, desde que queiram ir abrindo os olhos para a espiritualidade íntima, vivida a iluminar o quotidiano. Não, há muitos mais, honestos e desonestos, mundanos ou na busca insegura de caminho, que se agarram a um esteio qualquer e se tentam firmar nele como num rochedo. É uma inevitável mistificação mas, quanto mais o for, mais se lhe agarram, em desespero. E dá naquilo.

                 - Isto de o Partido Comunista ser um antro de religiosidade dogmática, inconfessa, logo obscurantista, tem muito que se nos diga. Pergunta aos mestres se a asneira não é a mesma neles e entre nós. Suspeito bem que o seja, para nosso mal, não é?

 

 

                 Fátima – 25 de Junho de 2013

 

                 A minha ideia, hoje de manhã, era seguir o conselho do irmão Dimas e procurar os mestres. Quando reli o texto, porém, vieram-me dúvidas tão em catadupa, para além da da sacralização, que acabei tolhido, de caderno na mão murcha.

                 Que é que aquilo tem a ver com o tema do meu diário? Directamente, nada. Não ando a converter o Partido Comunista nem ninguém, aliás, nem de dentro nem de fora, até porque não vislumbram nem entendem, por conseguinte, nada daquilo. Depois, que tem a Igreja a ver com isto, senão por reflexo indirecto da conversão espiritual dos homens, se e quando o conseguir com real conteúdo interior (e não num simulacro, numa exterioridade qualquer, como tantas vezes outrora)? Por outro lado, alguma renovação eclesiástica pode alguma vez melhorar tais sintomas, primeiro na Igreja, depois nas comunidades e na colectividade em geral? Ou o inovamento que vislumbro, a chave do motor de arranque, a destruição do poder de perseguir, julgar, condenar e executar acaba repercutindo nalgum pendor deste jaez?

                 Não enxergo nada e tenho de pôr ordem nisto, antes de ir tagarelar com alguém que decerto terá bem mais que fazer que aturar um anão perdido, com curto-circuito nos miolos. Não sei porquê, mas, como de hábito, tenho a impressão de que algo de mais relevante anda por trás do saboroso cavaquear de ontem e eu não descubro. De certeza que venho a colocar mal as questões, o ângulo é outro qualquer que me continua a escapar. É que pressinto intimamente que tudo aquilo fará muito sentido, numa vertente particular. Ora, eu olho para lá e não encontro sentido nenhum para o que tenho aqui entre mãos. Este anão nasceu tapadinho de todo, deve ser da falta de altura, o tampo caiu-lhe muito de cima, tapou-lhe o cérebro com tanta força que doravante não há ideia que o obrigue a destapar.

                 Levei a manhã nestas bolandas interrogadoras, até o caderno onde rascunho me acompanhou à biblioteca e fui-lhe regularmente deitando um olho enviesado.

                 Fiz questão de orar e cantar a terça, a sexta e a nona mas o olhar não se me desanuviou. Depois de vésperas enchi-me de coragem. Eu sei que o meu Mestre, se tiver tempo, nunca se me nega, não é verdade? E depois, ele é que me meteu nisto...

                 - Ora esta! É muito boa! – exclamou Fr. Benedito, mal acabou de ler as páginas em que encravei. – Pois, irmão Ambrosino, parece que não tem nada a ver, mas tem bem mais do que parece.

                 Continuou meditabundo por um grande intervalo. Eu quase via as rodinhas do relógio a encaixarem umas nas outras dentro da cabeça dele. Aguardei em silêncio. Iria ser revelador, evidentemente. Preparei-me para o “faça-se luz!”.

                 - Acabais de pôr o dedo, pelos vistos sem reparardes sequer, na forja da maldita chave que, afinal, nos dá hoje o motor de arranque para a actual renovação da Igreja, para usar a sua metáfora. Foi daí que se desencadearam os erros, elo a elo, cada vez mais desviados e devastadores, história além.

                 - Não compreendo a ligação... – hesitei.

                 - Olhe que até foi muito feliz analisarem-no numa instituição que não a eclesiástica. Aqui dentro, entre nós, na Igreja, dói muito mais, são espinhos que temos de arrancar da própria carne. Findamos sempre com feridas. E mantemos cicatrizes e sequelas, como entes diminuídos multissecularmente. É bom o bisturi em carne alheia, é o que a medicina faz com as cobaias, salvo seja. Descobrimos mais objectivamente, sem interferências afectivas nem riscos de parcialidade.

                 - Então concorda que a dogmatização é um erro ainda agora também nosso? Mais outrora que doravante, mas enfim... – duvidei, como já ocorrera com o irmão Dimas.

                 - Mas evidentemente, quando alimenta um itinerário como o descrito durante o vosso diálogo. Há muita ambiguidade no conceito de dogma, compreende?

                 - Aí é que me confundo – intervim. – Estamos a lidar com a fé. Ora, um acto de fé num programa partidário, até numa filosofia política, é uma abstrusidade. É ser completamente ignorante, ou, pior, recusar os factos, sabendo-o. Neste domínio tudo é transitório, inseguro, a verdade de hoje é o erro de amanhã, a opinião dum vale o que vale a opinião doutro, tudo é relativo e, a prazo, inelutavelmente condenado pelo tempo, substituído por outras realidades, de igual natureza efémera, no mesmo âmbito. Qualquer elevação ao absoluto é um erro crasso. Mas, em contrapartida, ter fé no campo da fé? Isto é um erro?

                 - Não, não é. Mas aquilo é um erro, o que acaba de referir.

                 - Claro, está inteiramente deslocado no campo aplicação.

                 - Não, não! É pior – cortou o Fr. Benedito. – é um erro em si. Na fé, no mundo secular, na vida quotidiana, em família...Onde quer que germine tal atitude é uma erva daninha que temos de arrancar de raiz o mais possível.

                 - Mas a fé não é em Deus, em Jesus, no Céu?... Não é fé no Absoluto, não é o Caminho, a Verdade e a Vida? Não estamos no âmbito do transitório, o efémero é apenas da História, do tempo, não da eternidade... – objectei.

                 - Perfeitamente de acordo – asseverou o meu Mestre com o olhinho irónico a provocar-me.

                 - Pronto, já sei que me quer pôr a rabear – comentei, rindo. – Mas não é este o fundamento histórico, pelos séculos fora, das múltiplas formas de sacralização no domínio da fé? E não tem de haver algo de sagrado, de intocável, aqui?

                 - Novamente de acordo – e fez-me uma vénia, gozão. – Não é aí que está o busílis, claro.

                 - Então onde? – piquei-o, a ficar já meio danado comigo porque nunca consigo enxergar, de tão cegueta que sou.

                 - Não vê mesmo, irmão Ambrosino? – agora não ria, olhava-me muito atento, quase desconcertado perante o calhau duro que deveras me sinto.

                 - Vá lá, desembuche. Olhe que acabo mesmo às escuras! – ameacei.

                 - Repare que tem as peças todas na mão. É apenas jogar direito. Como é que responderia a uma série de questões deste tipo: Deus e a nossa compreensão dEle são a mesma coisa? A Igreja-corpo-de-Cristo e a Igreja-institucional são a mesma realidade? O universo espiritual, em particular o Céu, é o que dele discorremos e o que no cotio incarnamos ao viver? O aspecto da fé que identificamos num dogma definido esgota-se no conceito utilizado para referi-lo, a palavra é a realidade?

                 - Oh! Pare, pare! – cortei de repente. – É a distância então? A lonjura a que ficamos inelutavelmente, inultrapassavelmente sempre? O Infinito aproximável indefinidamente e jamais atingido em plenitude, em tempo histórico? É isto? A parusia que ainda não chegou?

                 - Ora bem! Agora quase lhe podia pedir que tire as conclusões.

                 - Espere, Fr. Benedito, não vá tão ligeiro. Que é que isto tem a ver com a sacralização? Adoramos a Deus sobre todas as coisas...

                 - Repare que diz adoramos. E não é, é amamos. Adoramos é da ordem da sacralização, amamos é da ordem da vivência da fé, incarnando no tempo.

                 - Quer dizer, a sacralização não tem lugar? Há pouco afirmou o contrário...

                 - Evidentemente. Veja lá, como é que concilia tudo isto?

                 - É carga demais para as minhas costas. Eu sou um anão... – ri-me.

                 - Ah, pois, mas um anão de grande costado. Não está a ver?

                 - Acha que lho perguntaria? Quer dizer... agora, de repente... espere aí! – quase gritei quando se acendeu em mim uma pequena lamparina. – Sagrado, sagrado... pois claro, só pode ser o primeiro termo das suas perguntas: apenas Deus e os respectivos domínios. Nunca o lado de cá, enquanto tal, não é? Somente os lampejos do além que lograrmos apontar, referir. Mas então... – parei, inesperadamente interdito.

                 - Vá lá, tire a conclusão, não tenha medo – incitou-me o meu Mestre.

                 - As sacralizações acabam todas indevidas, não é? São sempre dum dado qualquer, material, conceptual, cultural, tradicional, sei lá... – duvidei, meio perdido.

                 - Claro, a menos que... – continuou Fr. Benedito, a pescar nas minhas águas túrbidas.

                 - Ah, sim, pois, a menos que aqueles dados sejam meros referenciais de algo do outro mundo. Então os objectos não têm nunca nada de sagrado, nenhum deles, na dimensão terrena que obrigatoriamente revestem.

                 - Afirmou muito bem: “Do outro mundo”. E não do mundo espiritual. É que este tem uma dimensão do lado de cá, a da nossa interioridade. E é tão histórica e tão pouco sagrada como tudo o mais neste plano de vida. Mas já agora, nesta lógica, sacralizar é um verbo com sentido justificado?

                 - Então, se passamos o tempo, nós e os mais, a sacralizar as coisas mais variadas... E digo coisas de propósito, porque ou são realidades do tempo que nunca deveriam ser sacralizadas ou então não são elas que o são mas a realidade divina a que se reportam e não temos outra forma de a referir senão através daquelas modalidades que, obviamente, não são nada divinas.

                 - Em conclusão, Deus é inatingível, é inefável, é, portanto, intocável, quer dizer, é sagrado. Nestes termos, alguém consegue violá-lo, o sacrilégio é, em concreto, exequível de algum modo? Como se viola uma fronteira inviolável, que o é por natureza e não por determinação de alguém?

                 - Ah, compreendo. Deus é sagrado por si e em si. Não há como não o ser nem ninguém logra lesá-Lo. Fica sempre para além do alcance. Sacralizar, portanto, neste pendor, é um verbo sem sentido. Nós é que tornamos intocável uma coisa qualquer, ela em si jamais será sagrada, mesmo que seja o dedo apontado ao grande mistério: ele é o dedo, jamais o mistério que aponta (e que apenas por isto participa no Além, o incarna, com ele comunga). Mais nada. Confundir ambos é uma asneira. Pior ainda, se for trocá-los.

                 - Grande irmão Ambrosino! Está a ver? E a trejurar que era cegueta, hein? – brincou o meu Mestre.

                 - Falar com outrem inspira-me sempre. E então consigo...

                 - Pois pôs o toque, creio eu, bem no meio da ferida: tomar o dedo que aponta pelo horizonte apontado ou trocar o horizonte pela seta no terreno, quando esta vira e, em vez da lonjura, desata a apontar para os próprios pés. É aqui que as sacralizações acabam todas por dar, seculares ou religiosas, na nossa ou noutra fé qualquer. E todos findamos idólatras, mais ou menos, mesmo sem o querermos.

                 - Idólatras, Fr. Benedito?!

                 - Então, acabamos a adorar o dedo ou ajoelhados aos pés da seta. E o horizonte, isto é, Deus, o Espírito, vai ficando cada vez mais ignorado. Até acabar por já não ser mais preciso, uma palavra oca. Foi sempre assim história além, em todos os séculos, em todo o lado, em todas as religiões. E os profetas foram sempre chacinados por clamarem por Deus, postergados em nome dos ídolos entretanto instalados. Isto veio de trás, culminou em Jesus Cristo e continuou sempre, sempre, até hoje. E, se calhar, continuará, quem sabe?...

                 - Confirmo, mas um aspecto não entendo: donde vem tal deriva? É diabólica! – havia aqui uma dúvida que eu não lograva explicitar.

                 - Ora, irmão Ambrosino, é muito mais fácil descansar que continuar no caminho de pedras, é mais gratificante iludir-se que desesperar num roteiro indefinidamente prolongado, de metas adiadas ao infinito, embora sempre mais e mais participáveis (por cada qual e pelo tempo além).

                 - Sim, compreendo, mas há muito quem de boa fé tropece. Onde está, rigorosamente, o erro? Não é mera estupidez e menos ainda má intenção generalizada. Não acredito.

                 - Nem eu! Quer ver o raciocínio a cru? É assim: Deus incarnou (não é verdade?) em Jesus Cristo, o Filho de Deus; logo, temos Deus incarnado, ainda por cima ressuscitado depois de morto; ora, se deus incarnou no mundo, o mundo tem tanto Deus como Deus tem mundo; por conseguinte, seja o que for que tomemos do mundo contém Deus, portanto já temos tudo, não precisamos de mais nada. Deus em si pode ir passear. Nós, por cá, faremos é a festa. Está tudo já consumado.

                 - É um tanto grosseiro, ó Fr. Benedito. Nunca ninguém...

                 - Pois não – interrompeu-me. – Mas revela claro onde está o erro em que aquilo assenta. Até Israel, no Antigo Testamento, se fartou de cometer esta falha. É, talvez, o pecado mais constante. O bezerro de oiro, no tempo de Moisés, foi apenas o protótipo do que sempre andou a ocorrer. Ou a tender a ocorrer, melhor dito.

                 - Bom, então diga lá o que é, que eu voltei a perder os meus binóculos, não enxergo nada.

                 - Os filósofos chamam-lhe o erro da hipóstase.

                 - Mas a hipóstase é o mistério da incarnação, o Homem-Deus na teologia daquele tempo, da cultura grega, que os concílios de antanho ratificaram. É o erro?

                 - Disse que era nome de filósofos, não de teólogos. Para eles a hipóstase é o erro que consiste em confundir um conceito com o dado que ele refere; uma teoria com a verdade; uma descoberta qualquer com a realidade acabada daquela matéria; um saber, mesmo o matemático, com o absoluto; o tempo, por mais intenso que o vivamos, com a eternidade... e assim por diante. Está a ver o paralelo nalgum lado?

                 - Foi o que falámos há pouco, entre Deus e o conceito que dEle temos, e os mais exemplos todos.

                 - Pronto, está explicado. Quando dogmatizamos um modelo de Deus, tendemos a adorar o modelo e não a Deus. E em todos os demais domínios, o mesmo. Definimos um dogma qualquer e logo anatematizamos, excomungamos, perseguimos... Ora, se Deus é definitivamente indizível, absolutamente inatingível, em nome de que é que fizemos aquilo? Da teoria, claro, não do Deus a que ela se reporta como dedo apontado, e ao qual jamais logra capturar em nosso escasso e falho entendimento. Está a entender bem? Foram tudo inúmeros bezerros de oiro séculos fora a que passámos o tempo a prestar culto, confundindo-os com o Deus a que se deveriam reportar e de que, afinal, se desligaram, porque os homens entenderam que cada ídolo já continha Deus que chegasse, não precisavam de mais. Se Deus é aquilo, então aquilo é Deus. Ficamos descansados, já podemos avançar para o juízo final, matando, perseguindo, desterrando... Até porque, bem vistas as coisas neste prisma, cada executor é arma de Deus incarnada, nem precisa de ter mais dúvidas. Deus, incarnado em Jesus, agora incarna em todos e a todos transforma em braço da justiça dEle. Nem têm problemas de consciência. Os terroristas islâmicos actuais cometem o mesmo erro. E querem hipostasiar o islamismo na terra, o mesmo erro que a Igreja de antanho cometeu ao tentar a cristandade. É não ter noção nenhuma da distância infinita e, portanto, intransponível, por natureza, entre o tempo e a eternidade. Em qualquer que seja a dimensão e domínio, porque se verifica em todos, sem reserva alguma. É a nossa frágil condição de humanos. Nem sequer um mero conceito chega a ser a realidade que aponta, mesmo no mundo secular. Imaginemos então no resto...

                 - Agora entendo, finalmente, donde veio a chave para o arranque da renovação...

 

 

                 Fátima – 26 de Junho de 2013

 

                 - Pois é. Há um erro estrutural – reflectiu Fr. Benedito – no assumir da espiritualidade, uma deturpação fisicalista de toda a vivência íntima naquele itinerário. E leva directamente, de fisicalismo em fisicalismo, a consagrar direitos e deveres fundados na mesma base. Desviam-se os comportamentos, a seguir, as comunidades, finalmente, a instituição eclesiástica inteira. E temos o pecado instalado na Igreja sociológica, a rir-se da Igreja de Cristo. Doravante o pecado é de direito. O pior é que é um pendor que inquina tudo, todas as áreas da vivência comunitária da fé. Coitado do Papa, ele bem se desunha...

                 - Mas é actual?! – estranhei, de repente.

                 - Então, irmão Ambrosino? Onde encaixa a papolatria? Ou julga que é um palavrão sem conteúdo real? – ironizou Fr. Benedito.

                 - Sim, há casos... – concordei.

                 - Se apenas fora isso, muito bem estaríamos. Repare: há sempre hipóstase (mas eu prefiro empregar fisicalismo) quando se confunde uma realidade actual com a plenitude consumada, o zero com o infinito, seja em que domínio for. É fatalmente confundir o relativo com o absoluto e trocar este por aquele. Olhe agora o que fizeram do Papa pelos tempos além: primeiro Sumo Pontífice, depois vigário de Cristo, a seguir representante de Cristo na Terra, finalmente Cristo na Terra. Sem mais. Aqui ele já é Deus incarnado. É a designação vulgar na comunicação, mormente religiosa. Lembra-se do que era o Imperador Romano, no tempo das perseguições que tantos cristãos mataram, no circo dos leões e fora dele, justamente por não reconhecerem a pretensão dele ao título divino? É que ele era deus e os cristãos recusavam-se a adorá-lo. Pois olhe, os cristãos, a grande massa anónima, amorfa, iletrada, acéfala, deu nisto: restaurou o antigo imperador na personagem do Papa e idolatra-o - é o termo, metaforicamente e no real conteúdo. Não só a Igreja não converteu o Império Romano como ele é que converteu a Igreja de Cristo, no pendor deste simulacro.

                 - Está a gozar comigo, Fr. Benedito, não está? Quer que eu me estenda ao comprido no meio do chão... – brinquei, perante semelhante cenário. – O Papa não é nada assim, sabe-o muito bem.

                 - Pois claro que sei e é por isso que é rigorosamente assim. Mas já lá vamos ao pobre do Papa Francisco. Quero só apontar-lhe mais isto: não há modo fácil de explicar o erro fisicalista aqui quando o dogma diz que o Papa é infalível e tal dogma se encontra sacralizado a ponto de se lhe não poder tocar.

                 - Mas pode-se, como em qualquer outro – protestei. - Então a reinterpretação o que é? Nenhum fica de fora, senão é matéria morta e não serve para nada.

                 - Devia ser, devia ser... Mas o Hans Küng, teólogo de carreira, teve a coragem de tocar nele e olhe o que lhe ocorreu: expulso de tudo e de tudo suspenso. Se não fora o Conselho Ecuménico das Igrejas acolhê-lo, ainda teria morrido na miséria. E mesmo assim teve sorte, que, há séculos atrás, tê-lo-iam matado. Ora, aqui já se não pode atribuir isto ao populacho, não é? É já com gente do poder, com a respectiva máquina institucional. A papolatria vai muito mais longe, mais fundo e mais alto do que à primeira vista se antolha. É mais um parâmetro do desvio colossal, do pecado colectivo e institucional instalado, do eterno bezerro de oiro.

                 - Ó Fr. Benedito, eu gosto tanto deste Papa... Não me diga que eu também...

                 - É porque gosto dele deveras que estou a desmontar-lhe isto. Não vê como ele anda aflito e avesso a semelhante vertente? Desde o primeiro momento que se comporta sempre ao contrário. Logo, antes de qualquer saudação, pediu: “Rezem por mim!” E que quer dizer esta que correu mundo pela comunicação internacional: “Somos todos pecadores, a principiar por mim que tenho muitos pecados. Mas Deus perdoa-nos sempre.”? Que é que ele andará a fazer com semelhantes atitudes senão a derruir o pedestal? É uma luta inglória, coitado do homem! É um contra todos, pobre dele! E ainda por cima, por mor daquilo, aqueles palermas ainda o endeusam mais. Não há maneira de entenderem o recado, invertem sempre o sentido dos sinais: “Agora é que ele é mesmo Deus na Terra, vejam só com que autenticidade!” – dirão, estou mesmo a ouvi-los. Enfim, o Papa Francisco deve viver mesmo angustiado com tão estapafúrdios desvarios. Mormente por serem, em geral, bem-intencionados. Não são, por isso, menos mal vividos, mas farão doer muito mais, não é?

                 Ficámos um bom bocado a olhar um para o outro, apreensivos. Bem gostaríamos de dar a mão. Claro que todos os dias oramos por ele. Doravante, agora que entendi este pecado muito mais em profundidade, no incomensurável alcance e projecção histórica até que reveste, toda a oração há-de ter outro horizonte. Custa muito, porém, ficarmos por aí. Mas que mais, que mais?

                 Como de hábito, leu-me o pensamento.

                 - Tem o diário. Não acredita? Ajuda para além do que cuida. Vou-lhe confiar um segredo. Enquanto esperávamos pelo Papa Francisco, a olhar para a janela vazio do Vaticano, de repente vi a imagem de Moisés, a descer da montanha do Consistório dos cardeais, com as tábuas da lei na mão, e a aparecer ali. Olha a multidão, vê o enorme bezerro de oiro da papolatria em que ela entretanto caiu e, desconcertado, dobra-se, quebra as tábuas da lei todas (não há mais mensagem divina nenhuma) e afirma: “Tenham juízo, rezem por mim!” Foi isto, tal e qual. Quase juraria que é o que ele sentiu mesmo. E, como Moisés, tem de reformar tudo. Senão a idolatria continua cada vez mais funda, cada vez mais longe, cada vez mais duradoira.

                 - É o que o Papa anda a ver?

                 - De certeza, irmão Ambrosino. E ele já sabe que os anteriores que também o viram, ao assumirem-se como profetas, como os profetas de sempre foram vítimas de assassinato ou tentativa de assassínio. É o que ele igualmente enfrenta, ao ir por aqui. Só que ele continua. Nisto é deveras admirável. E não tem nada de papolatria este sentimento, é por mor duma atitude grande dum homem que tenta estar à altura do desafio. Aqui, sim, é que adivinho a marca de quem quer guiar-se por Deus. Num homem tal logro discernir o impulso do Espírito. É, em rigor, o contrário da papolatria generalizada.

                 - Mas a reforma não é para isto – opus, de repente.

                 - Pois não, é para a Igreja. Esta pequena peça é um derivado. Serve para ilustrar como o fisicalismo, a convicção de que o tempo consumou em plenitude qualquer dimensão da Infinidade, de que há uma incarnação acabada do Espírito na matéria em qualquer domínio, - serve para ilustrar como isto anda a inquinar tudo, como tudo perverte, a ponto de dominar a organização da Igreja, em instituições, no direito, nas práticas comunitariamente incentivadas... A questão que o Papa e todos enfrentamos é como se dá a volta a isto, como é que se torna a colocar o descomunal comboio da Igreja institucional e sociológica nos carris de Jesus Cristo.

                 - Mas haverá sempre desvios, somos todos pecadores, é inevitável...

                 - Justamente, isto é que é o problema. Se não fora a liberdade de falhar, tudo seria muito simples. Vejo aqui duas questões: primeiro teremos de limpar tudo o que for cristalização legal, estrutural de qualquer falha dentro da Igreja; depois, encontrar, em alternativa, um modo e uma fórmula que estimule maximamente a virtude e limite ao máximo a probabilidade do desvio, sabendo, entretanto, que qualquer modalidade de vida, pessoal ou colectiva, é sempre, entre nós como no século, pervertível.

                 - E o que eu tenho para aí é muito pouco. Ou não?... – duvidei.

                 - Não importa, é o que tiver. Pode bem ser uma chave que abre a porta ao arejamento do mosteiro completo. Um dado de nada pode muito bem ter repercussões encadeadas até ao infinito. Quem sabe? É o que der, certo? De coração aberto e de braços abertos.

 

 

                 Fátima – 27 de Junho de 2013

 

A Dr.ª Silvana, de Línguas e Literaturas Clássicas... Quando eu fui caloiro lá na Faculdade de Letras, em Coimbra, já ela ia a meio do curso e era uma dirigente da Juventude Universitária Católica Feminina. Vi-a regularmente na capela joanina (de D. João V), nas celebrações que a Schola Cantorum (de que eu fazia parte) musicava. Há quantos anos já!...

                 Mais velha que eu um bom bocado, entrou tarde na Universidade. Era, todavia, brilhante: os colegas espantavam-se com a facilidade com que lograva falar em latim, por exemplo. Ao que constava, mais ninguém o conseguia, mesmo nos derradeiros anos da licenciatura.

                 A mim surpreendeu-me, na Queima das Fitas dela, quando me informaram de que era, afinal, uma freira sem hábito. Viera formar-se para ser professora algures no Instituto religioso a que pertencia. Eu nem sequer tinha desconfiado. Quebrara todos os clichés e ademanes que sociológica e culturalmente se costumam ligar a clérigos, frades e freiras. Era tão desenvolta, despachada e integrada na vida académica e extra-escolar como qualquer outra colega. Apenas não namorava nem ligava nada a isto. Havia, porém, tantos e tantas mais... Nem sequer tal traço dava nas vistas como diferença. De resto, madura, um equilíbrio adulto, muito responsável no trabalho e no trato, muito exigente de franqueza, autenticidade e solidariedade com os outros.

                 Enfim, soube dela anos mais tarde: tinha-se fixado em Roma. E tentava persistentemente rumos novos para a Igreja, sempre em redor dum pequeno núcleo, mais ou menos flutuante, doutras mulheres (freiras ou não, sei lá!) que eram sensíveis a idênticos anseios. E mais anos correram sem me recordar sequer dela, até hoje.

                 Veio-me a notícia do falecimento da Silvana: um cancro, um maldito cancro. Estaria a entrar na velhice, creio eu. Já não a viveu connosco, portanto. O colega que disto me informou é um médico idealista, a trabalhar em estreita colaboração com o bispo da Beira, em Moçambique, cuja irmã era uma das do séquito daquela freira sem hábito. O Dr. Macário Luís, como sabe que vim aportar a este convento, quase anualmente passa por aqui de fugida, quando vem de férias, sempre muito atarefado, lá do extremo das Áfricas. Traz e colhe novidades, habitualmente, da frágil rede de dispensários onde labuta e quer que lhe abra uma janela para o mundo, porque lá, ao que relata, não há tempo nem fôlego para tanto.

                 Soube, porém, da notícia e eu não. Fora uma carta da irmã dele, datada de Roma, há já uns tempos atrás.

                 - Carteiam-se habitualmente, é? Nunca me tinhas contado... Eu quase já nem me lembro dela. Em Coimbra era tão discreta que, se não fora por ser tua irmã, nem sequer nela teria reparado, julgo eu. Por isto é que deve ter ficado solteira. Ou foi por escolha?

                 - Não, não, foi por acaso. Como comigo, não é? Onde é que arranjamos tempo, quando nos metemos em vidas como as nossas?

                 - É interessante terem mantido o contacto estes anos todos, apesar da lonjura.

                 - Deve ser mesmo por isso. Dois irmãos desenraizados, um para cada lado do mundo. Vemo-nos ao espelho nas cartas que regularmente trocamos. É uma revisão de vida periódica.

                 E, de repente, como eu lhe tinha referido este meu diário e as bolandas divertidas em que me tem jogado, lembrou-se de algo.

                 - Olha que nem de propósito! Sabes o que a Rosário me tem vindo a pormenorizar nas derradeiras cartas, há um bom par de meses? Aquilo são quase ensaios e não missivas, ela estende-se por folhas e folhas, pormenores e mais pormenores. Agora que te ouvi reparo que sou capaz de não ter entendido bem em que é que andavam, afinal, envolvidas tão empenhadamente.

                 - Tem a ver comigo, é?

                 - É bem capaz. A Silvana e as outras do grupo, incluindo a minha irmã, andam há meses a promover reuniões e encontros e audiências, sei lá, para libertar os teólogos, se eu bem entendi. Vou ter de prestar mais atenção àquilo. Pois se até tu andas a tratar de arrumar a casa! Pelos vistos tenho vivido um pouco a leste, enredado lá com os meus doentes e as higienes e os saneamentos e as prevenções... Enfim parece que alguma coisa me vai a correr ao lado e eu sem dar por ela, não é?

                 - Oh, é só um dos empenhamentos do Papa Francisco. Nós é que aqui o tomámos a peito, quer dizer, eu, a pedido do Fr. Benedito. Se calhar mais ninguém por cá ligará nada ou grande coisa... Pelo menos (e de certeza) ao que eu tenho vindo a escrever. Não percebo nem uma ponta disto, como deves calcular. É mais um trabalho edificante para mim do que outra coisa. Obriga-me a meditar num tema sério demais para o alcance das minhas curtas pernas. E nisto apenas tenho de ficar agradecido, mais nada. Vivo a questão por dentro, senão era mais uma vertente da vida e da Igreja em que eu ficaria à margem.

                 - Ó Ambrosino, não te faças parvo! Ganhaste em esperteza o que perdeste em tamanho, homem. Sempre vimos isso em ti, sabe-lo bem. Não foste tu que desenrascaste os teus colegas de curso que esbarraram em Kant? Olha que eu lembro-me e mais não tinha nada a ver convosco, lá nas Letras, era da vizinha do lado. E em Medicina ninguém sabe que existem semelhantes avantesmas.

                 - Pronto, não percamos tempo com ninharias. Contavas que a Silvana andava com o grupo numa roda viva. A propósito dos teólogos? Porquê?

                 - Na da Rosário, era porque era a chave. Elas julgam que seria a chave de tudo, isto compreendi bem. Numa renovação da igreja, claro. É do que andavam a tratar, como tu com a tua tarefa.

                 - Bem, não compares. Elas, em Roma, a tocar directamente com os instrumentos todos, nos lugares adequados, com as personalidades precisas. E eu a rascunhar para a gaveta. Tem mesmo piada a comparação – e desatei a rir, porque achei mesmo graça.

                 O Macário, porém, não achou nenhuma. Olhou-me quase severo:

                 - Não desconverses, homem! Isto, afinal, deve ser mesmo importante.

                 - Ai, lá que o é, é. Pronto, desculpa, sou todo ouvidos.

                 - Se eu bem entendi a minha irmã, a Silvana argumentaria assim: se temos uma Igreja moribunda, a papaguear velhas receitas dum cardápio bolorento que já não satisfazem o apetite de ninguém, ali abandonada no leito da senilidade, então o que há a fazer é renovar-lhe a saúde com novas abordagens, receituário criativo, conceitos inesperados, teorias arrebatadoras que levem a enferma a saltar do catre, cantando e dançando de entusiasmo. Com a alegria dos primeiros tempos, como quem nasceu de novo.

                 - E quem o faria? Os teólogos?

                 - Justamente. Eles é que são os teorizadores, os peritos em rasgar a bisturi a carne do mistério, revelando-lhe os segredos abscônditos, capazes de nos arregalarem os olhos de espanto. Peritos em pegarem no morto e lhe reanimarem o coração, aos pulos, ressuscitando-o. Eles são os médicos das almas, aptos a desencadearem milagres por dentro de cada um, como nós, os médicos, tentamos por fora.

                 - E então, elas abriram caminho?

                 - Não, ao que a Rosário conta, não. Quer dizer, encontraram alguns entusiastas, da base ao topo. Até umas novas companheiras para o núcleo de animação lá do grupo, que são sempre poucas (mas a Silvana foi uma mulher persistente a vida inteira, não é?)

                 - Alguém do topo? Quem?

                 - Alguns cardeais. É verdade. De contar pelos dedos, claro. Mas alguns. E, pelo meio, monges, padres, monsenhores, bispos... Contudo, sempre excepções. A maioria não arrisca. Ela diz que são uns medrosos. E que, pior, é que a grande massa é inabordável.

                 - Porquê?! – espantei-me.

                 - Nesta derradeira carta conta-me que tiveram muito que sacudir a poeira dos sapatos, como diz o Evangelho. E faz uma reflexão curiosa, pedindo perdão a Deus, se for um mau pensamento: suspeita que a grande maioria é, no mínimo, agnóstica; porventura, se calhar, encobertamente ateia e, decerto, no sigilo da vida privada, inteiramente pagã. E que vive com isto sem qualquer escrúpulo, em perfeita paz de consciência.

                 - Não acredito! Como é que é possível?!

                 - Olha, possível, é, embora deveras incrível. E, quanto a mim, definitivamente intolerável. Sabes como? Ela desabafa que nunca lhes passaria pela cabeça, mas que encontrou alguns casos e desconfia que os há-de haver aos montes. São indivíduos que aderiram ao cientismo, não são ignorantes nem trapaceiros: para eles não há deus nenhum nem qualquer realidade espiritual. Lembras-te da tese do pensamento como secreção glandular do encéfalo? Pois. A única realidade que existe é a do mundo sensível, susceptível de abordagem científica. E ponto final.

                 - Mas aquilo são leigos ateus...

                 - Não, não. Homens da Igreja.

                 - Ora, é uma aberração! Como é que é possível?! E sem rebate de consciência?! Como é que o conseguem?!

                 - Muito simples, ao que ela descreve pormenorizadamente. A Igreja é um aparelho descomunal de enquadramento das multidões, que as domestica e molda para o bem comum, através dum rico encadeado de mitos poéticos, como os contos de fadas para encantar as crianças. É a isto que reduzem a vida e a realidade espiritual. Aliás, toda a Revelação. Ora, sendo isto, portanto, um serviço comunitário de vastíssimo alcance, eles são os funcionários e gestores deste bem colectivo que, garantindo qualidade de vida à humanidade em geral, com a paz dos bons costumes, lhes garante simultaneamente uma vida regalada a eles, como, aliás, é de inteira justiça, para quem pense nestes termos. Estás a ver? Onde é que há lugar para rebates de consciência? É tudo lógico e com todo o sentido. Ainda para mais, cheio de bondade para a humanidade inteira – sorriu, irónico.

                 Fiquei sem palavras um grande momento. Foi como um tijolo em cima da cabeça. Ele olhava-me com um sorriso triste e resignado. Voltei a mim, meio a tremer.

                 - No Vaticano?! Na Cúria?! – perguntei, assombrado, a medo.

                 - No Vaticano, na Cúria. Pior: vai do leigo ao bispo. Creio que ela não fala em cardeais aqui, neste contexto. Mas sei lá...

                 - Bispos?! Oh, meu Deus! Não pode ser!

                 - Já te expliquei como pode. Sem problema nenhum. E porque não? É uma carreira de apoio social como outra qualquer, com as respectivas promoções. Para quem estiver nesta postura...

                 - É cínico demais, ó Macário. Até me provoca cólicas... – o estômago estava-me a doer mesmo. Cada vez ficava mais sem palavras.

                 - Porque te espantas, Ambrosino? – continuou ele. – Julgas que o Papa Alexandre VI acreditava nalguma coisa além do explosivo Renascimento pagão do tempo dele, cheio dos mitos poéticos do politeísmo greco-latino e da ciência experimental a derrubar tudo em redor? Claro que não. Era um ateu chapado a fazer a fita e, portanto, não teve escrúpulos nenhuns em transformar o Vaticano num bordel e as freiras que mais lhe importavam em prostitutas, com orgias constantes, ao fim de cada dia de trabalho. Dá-te por muito satisfeito por hoje ainda não termos recaído nisto.

                 - Eu não estou em mim... Mas tens razão. E esta gente, ao menos, não tem dúvidas?

                 - Pelos vistos, não devem ter muitas. Evidentemente, contudo, que os há-de haver com elas, cada indivíduo trilha o respectivo itinerário e, em cada momento, a atitude encontra-se num ponto diferente, não é? A Rosário conta-me um caso que uma delas testemunhou, que o ouviu da boca dum participante. Na circunstância, um leigo. É secretário dum monsenhor qualquer que vive apaixonado por um padre jovem, um carreirista sem escrúpulos, diz o leigo, que utiliza aquele grilhão homossexual para trepar pela hierarquia acima. As relações amorosas entre eles são predominantemente em fim-de-semana. Então, de manhã, levantam-se, confessam o pecado um ao outro e absolvem-se mutuamente, até à próxima vez. Assim, comenta humoristicamente o secretário, têm a festa garantida do lado de cá e do lado de lá. Por causa das dúvidas... É como ele remata a facécia, comenta a Rosário, quase com as tuas palavras.

                 - É a degradação de tudo, Macário. Não há arrependimento, não há emenda, não há confissão de reconhecer a falha... Aquilo não é nada. Que significa semelhante simulacro de sacramento? Esvaziou-se de tudo, é uma casca oca, não tem conteúdo...

                 - Pois não. E como poderia ter se eles não acreditam em coisa nenhuma? É um mero mecanismo, à cautela. Até nem este precisar de ser evocado. Até ao ateísmo completo.

                 - Mas que quadro tu me pintas! É muito mais macabro do que poderia julgar. E agora principio a compreender o que estava por detrás da denúncia do Papa Francisco de que há um lóbi homossexual no Vaticano que emperra a renovação da Igreja. E tanta gente aqui a suspeitá-lo de reaccionário, de conservador, obscurantista, por referir a homossexualidade. Ai valha-nos Deus, que isto é muito mais complicado do que parece. Como é que ele pode dar a volta a aberrações tão abismais? Oh, coitado do Papa...

                 - Para a Silvana e o grupo dela seria tirando os arreios que tolhem a teologia e convidando os teólogos a entrarem pelo mistério dentro. Um grande acto de fé no Espírito Santo, Deixando-O conduzi-los por e para onde Ele quiser. Em vez de andarmos nós aqui a pretender salvar Deus. É mais ou menos isto que comenta a minha irmã.

                 - É boa! Uma paulada na Congregação da Fé?

                 - Não me parece que a Silvana se incomodaria muito com ela. Aliás, quantos ateus andarão lá dentro, até à frente daquilo?

                 - Garantem o depósito da Fé, como lhe chamam. Em si, não é tão mau assim... Fé em palavras cadavéricas, com o verdete de antanho. Ora, até os escolásticos precisavam de comentar. E discutiam. Agora...

                 - Bem, teólogos não faltam, há-os por todo o mundo. Claro que já sabemos o que tende a ocorrer aos que pretendem inovar, injectar vida nalgum pendor. Mas, se calhar, é preciso um bocado de tudo. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra, como o povo diz.

                 - Provavelmente. Agora a Silvana entendia que o que andava a alimentar a grande multidão dos inabordáveis era justamente a teologia de frases feitas, de lugares comuns, de palavras mortas. Este é que é o mito para as multidões, servido pelo apoio social eclesiástico ateu, dos funcionários carreiristas da Igreja. E andam muito bem apoiados em Roma. Com teologia-cadáver, as velharias de antanho, a alimentar o temor supersticioso das multidões. E os serventuários a repetir, como agulha de gramofone, o som vazio, enquanto incensam os quatro pontos cardeais. Aliás, se a teologia não for repetitiva, isto não pode funcionar: nem os operadores incréus saberiam o que dizer nem fazer, nem a multidão teria o mito poético com que sonhar acordada, a se deixar arrebanhar e conduzir.

                 - Ah, pois, por isso os integristas queriam a missa em latim, justamente para ninguém poder entender nada. O mito deles opera pelo imaginário, pela fantasia, não tem a ver com realidade nenhuma, nem racionalidade, muito menos com um itinerário de conversão, de aprofundamento inesgotável da vida interior. Aliás, se esta foi abolida...

                 - Quanto menos sentido as palavras fizerem, mais sentido para eles farão, neste estranho rumo. Que absurdo! A Silvana escolheu um campo de intervenção muito singular.

                 - Pelos vistos, uma causa perdida. Ou a tua irmã não a interpreta assim?

                 - Só é perdida a que for abandonada, afirmam elas. De resto, tudo fermenta e Deus faz como entender. Entregam-se à vontade dEle e continuam (não sei doravante, sem a Silvana), enquanto este “bom combate” as tocar no íntimo. O nosso tempo não é igual ao tempo do Espírito, ponderam, e, portanto, ficam descansadas, ocorra o que ocorrer. Seja feita a vossa vontade – é o lema. Seja o que Deus quiser – é a postura interior, bem no dizer e no sentir fundo do povo crente. Tudo muito simples, como tudo o que é muito autêntico, ao fim e ao cabo.

                 - Olha que é lindo, ó Macário. E tem piada. Foste logo buscar frases feitas, lugares comuns, palavras mortas, como dizias, e, de repente, vê lá que força de vida! Repara bem como isto é mesmo tramado, não é?

                 - Evidentemente. Aliás, em todo o cadáver houve vida. A questão é encontrar o pendor em que se manifesta e, de repente, ele ressuscita dos mortos. Servir cadáveres é que não faz sentido. A não ser que se queira matar a vida. Agora surpreender-lhes o segredo vital e recuperá-los, que maravilha! É o sonho de qualquer médico. Não procuramos outra coisa o tempo inteiro. Os teólogos bem podiam aprender connosco. Em vez de serem apenas cangalheiros, não é?

                 - É verdade. E então, se forem forçados pela perseguição, é bem mais triste, como continua a ocorrer, bem contra a escolha e a prática dos Papas. Eu não sabia se a Silvana teria razão em depositar tanta esperança na mensagem dos teólogos. Agora, de repente, começo a vislumbrar-lhe um sentido bem mais profundo e vem noutra intervenção do Papa Francisco: ele criticou muitos padres por não serem mais que vendedores de velharias, de antiguidades. Já viste para onde ele apontava?

                 - Por mim, julgo que ninguém o entendeu, no fundo. Se calhar, por trás, andam estas e outras lutas de muitas Silvanas e de muitos grupos incógnitos que estão a fermentar gradualmente o pão de amanhã. O Papa, porventura, sentiu-lhe o cheirinho, a abrir o apetite, e não resistiu a franquear-lhe a porta. Mas vê só o tamanho da reconversão a operar! Ah, Papa Francisco, tens de ter umas costas muito largas!

                 - Isto é uma reviravolta que só te digo!

                 - Suspeito que a própria Congregação da Fé tem de ser extinta. Não perderá nunca o tique inquisitorial, por muito que eventualmente o não queira. E, de facto, andam, quê, a salvar Deus? Que é aquilo? Que falta de Fé será esta? Pretendem trazer o Espírito Santo à trela? Cuidam que são donos dEle? O que ruma sempre por caminhos imprevistos? Que sopra onde quer? Julgam que O têm prisioneiro? É uma instituição demasiado ateia para poder subsistir.

                 - És capaz de ter razão. A conciliação é outra coisa. E é tarefa interminável dos pontífices, rumo indefinidamente à plenitude. Não é para se descartar. Não é delegável. Então, de facto, que é aquilo?

 

 

                 Fátima – 28 de Junho de 2013

 

                 Depois de nos despedirmos ficou-me a dúvida: como garantir o “depósito da Fé”, como lhe chamam? Evidentemente que os processos anteriores institucionalizados falharam todos: guerra (seja de reconquista aos moiros, seja de religião), Cruzadas, Inquisição ou Congregação para a Doutrina da Fé (seja lá qual for o nome que lhe seja dado). Seguiram a via da violência, da imposição. Daí o erro. Nem a instituição actual escapa a isto, que mais não seja porque a grande multidão interpreta-lhe a intervenção permanentemente nesta linha, mesmo distorcendo-lhe o intuito e pervertendo tudo. Fica-nos, pois, apenas o exemplo do I Concílio de Jerusalém. Bastará?

                 - Claro que sim! – retorquiu-me o hortelão, um irmão que veio do povo já muito entrado na idade e que se delicia levando a terra a produzir. – Não vê como é com judeus e maometanos? Não têm hierarquia nenhuma nem institutos que tais, nem tribunais da fé e olhe, perderam alguma coisa? Não. Estão aí bem pujantes, um alfobre de crentes. Então?

                 Fiquei de queixo caído ao ouvir isto. O nosso hortelão é mesmo um camponês. Com votos, é verdade. Mas onde foi buscar aquela resposta? Quando me viu admirado a olhar para ele, desatou a rir, mesmo à gargalhada. Tinha acabado de me colher um braçado de alfaces do talhão onde estávamos, para eu ir entregar à cozinha.

                 - Ó irmão Ambrosino, não fique com essa cara! Pois é, sou um campónio, nunca tive estudos de monta, mas cismei em compreender aqueles calhamaços de O Cristianismo, O Judaísmo e O islamismo, sabe? Não tive coragem de lhos ir pedir, era muita presunção minha, mas emprestaram-mos e explicaram-mos os que os foram lendo. E tiveram paciência comigo, que burro velho já não aprende linguagem, como soi dizer-se. E ao menos aquilo julgo que entendi bem. Ou não?

                 - Ora, se entendeu! Mais que bem. Mas apanhou-me de surpresa, nunca imaginei que lhe importasse tanto. Ler aquilo, esmoer aquilo e assimilá-lo, olhe que é obra! Que trabalheira! Como é que das hortaliças saltou para uma coisa daquelas? Algum motivo particular?

                 - Pois claro, como podia não ser? Mas, se ficarmos aqui à conversa, não há refeição para ninguém...

                 - Eu já volto, que o tema importa-me. Fica por cá e pode aturar-me um bocado?

                 - O tempo que quiser, irmão Ambrosino. A terra nunca tem pressa e o que se não fizer em St.ª Luzia faz-se no outro dia. Portanto, já que lhe caí no goto, não deixe para amanhã o que pode fazer hoje. Eu cá não largo o sacho tão cedo, senão para as horas.

                 Corri entusiasmado para a cozinha com o meu braçado de verduras e disparei sem mais intervalo novamente para a horta. Intuí que qualquer coisa de estranho se me iria revelar donde menos esperaria. Talvez com peso nesta minha aventura. Um hortelão também pode ter com que renovar a Igreja. Todos temos, a questão é desvendá-lo e pô-lo a render. Que é que me poderá vir daqui? Um campónio a abalançar-se a desbravar Hans Küng (ajudado, claro), na tentativa das pontes ecuménicas entre as três religiões do Livro. Que é que o terá levado para ali? E tudo indica que entendeu mesmo! Este convento traz-me as surpresas mais fascinantes!

                 E foi mais surpreendente do que eu imaginava. Vou ter de deixar assentar a poeira para as ideias se arrumarem. Farei um dia de pausa, que isto é demais.

 

 

                 Fátima – 29 de Junho de 2013

 

                 - Sabe porquê? – atirou-me, mal me aproximei, como se o diálogo nem houvera sido interrompido.  – É que eu não entendia como é que podia ter salvação, sendo tão ignorante que nem compreendo metade do que os nossos mestres falam, está a ver? Por um lado, todos afirmam que temos de alcançar a sabedoria, por outro, lemos que Deus se esconde dos sábios e se revela aos ignorantes. Para um labrego como eu é de ficar às aranhas. E como o saber não ocupa lugar, olhe... Mas foi um bocado de atrevimento para um casca grossa, até eu entendo. Não me espanta o seu ar admirado.

                 - Ora, não acho nada – pus-me a ajudá-lo a limpar as ervas ruins, enquanto lhe puxava pela língua. – É aprender até morrer, diz o povo e com razão. E não foi tempo perdido, não é? Conseguiu dominar aqueles quilos de literatura. Olhe que até a mim me custou, tive de encher-me de paciência e de persistir.

                 - Ah, também teve curiosidade. Sabe, a mim não foi aquela do ecumenismo, ultrapassa-me demais e já não é para a minha idade, cheia de cãs. Era mais cá comigo e para poder acompanhar a comunidade, andavam todos enredados naquilo, um homem sente-se de fora ao não tentar ir mais ou menos na peugada dos restantes, como quem diz.

                 - E julgo que fez muito bem e acompanhou certamente muito melhor. Mas deixa-me um bocado perdido. Se a sua dúvida era aquela, como é que o Hans Küng ajudou?

                 - Ai ajudou e muito. Olhe só: afinal, os judeus e os islamitas também se salvam, não é?

                 - Evidentemente, como a restante Humanidade. Somos todos filhos de Deus e Jesus veio salvar-nos a todos. Não pode haver discriminações a partir duma base destas, claro.

                 - Pois aí é que bate o ponto. Lá na minha aldeia das berças o povo todo acreditava no contrário. Se não for católico, com a missa dominical, a confissão e a comunhão pascal, nada feito. Ah, e todos têm de ser baptizados e casados pela Igreja. Afinal, isto não é mesmo verdade. Nada mesmo.

                 - Correcto. E andámos séculos e séculos com tais antolhos. E o povoléu ainda anda por aí. É a tal ignorância que não tem sabedoria, não é?

                 - Como lhe digo. Custou-me a destrinçar, que a gente é de poucas letras. Mas olhe, foi um descanso quando o entendi. E sabe o mais cómico? Não devo ensinar isto lá na aldeia. Dizem que sou um herege. Até na minha família. Ficam muito assustados e põem-se a rezar pela minha conversão, porque devo ser “um frade comunista, cruzes canhoto!” Já desisti, não tenho mesmo jeito para lhes explicar, entendem tudo torto. Então, olhe, é melhor ficar calado, engendra menos destroço.

                 - Não é nada de admirar, se foram séculos e séculos a incutir-lhes aquilo na cabeça. Então, durante os Descobrimentos, não tivemos S. Francisco Xavier a baptizar multidões, na Índia, que ignoravam praticamente tudo acerca da fé cristã, convicto de que ao menos garantia assim que as portas do Reino lhes ficavam abertas? Uma mão cheia de água na cabeça, uma frase ritual e eis o céu escancarado como por magia. A liturgia transformada em superstição. E não viam que isto era quase o mesmo que ir à bruxa, salvo seja. É o fisicalismo mais oco, mais dessorado, sem nenhum conteúdo vital a transmudar vidas, povos, a história. Ora isto, naqueles tempos, era até com os melhores. Imaginemos como seria com o povo ignaro, não é? Cumpre-se um rito, está tudo salvo, nem que a seguir sejamos todos criminosos da pior espécie, livre-nos Deus.

                 - Já tinha ouvido qualquer coisa. Mas então, antigamente, era mesmo assim?

                 - Foi, foi durante séculos e séculos. Como se o Reino de Deus já se tivesse consumado e a Igreja andasse aí a servi-lo ao quilo a quem o quisesse. Era como ir ao balcão da mercearia e comprar uns gramas de sacramentos, uns arráteis (como diz o povo) de terços mais um quilómetro de missas e estava o caso arrumado. Até compram Deus ainda hoje com as promessas, não é? Ainda hoje. E ai de quem desdiga desta superficialidade e mercantilismo, crendice vazia!

                 - Mas então a liturgia...

                 - É para viver-se com conteúdo de sentido, a tocar nas vidas e a transformá-las. Senão, para que é que serve? Alimentar atitudes supersticiosas? Bruxarias?...

                 - Ah, pois, entendi! É como a minha dúvida, só que é do lado contrário.
                 - Explique-me lá, que agora eu é que não entendi nada.

                 - Ó irmão Ambrosino, eu sou meio ruim a explicar, não sei se me compreende...

                 - E eu sou meio mau entendedor. Mas tente, que eu vou-me esforçar.

                 - Então, eu era como o resto do povo. Que é que eu compreendia? Nada. Aqui é que tudo foi mudando, com o mestre de noviços, com os retiros, as palestras, o director espiritual, os cursos... Um indivíduo, por muito calhau que tenha na cachimónia, sempre há-de ir esmoendo. E, quando dá por ela, pronto, olhe, já o não entendem os da igualha de antigamente. Como comigo.

                 - E que é que não entendem? O que me contou?

                 - Olhe, que isto da salvação não tem nada a ver com o beatério, andar sempre na igreja, a bater com a mão no peito, a desfiar terços e novenas e vias-sacras, eu sei lá... Tem a ver com a maneira de viver a vida com os mais (no meio do mundo ou retirado). Ou fazemos pelo melhor ou não. O resto, ou redunda nisto ou então é um engano. E acreditar que aquilo é que salva, mesmo sem tratar disto, ou maltratando os outros e o povo, o que é pior, é um erro e de vez. Aqui é que não há mesmo salvação. E não vale a pena acreditar no contrário, porque acreditar, sem ir dando sempre a volta de dentro para fora, que é que adianta? A gente ou vive abraçado a Deus ou não. E não é a liturgia que nos abraça, obrigatoriamente, é como O abraçamos na lavoira do dia-a-dia. Se a liturgia ajudar, tanto melhor, senão, não presta para nada. E se nos afastar de lá e pretender bastar-se, sem tocar a vida para a frente, para a união consigo, com todos e com tudo, então é que é mesmo uma bruxaria. Faz o contrário do que devia fazer. É um muro que me impede de chegar aos talhões de cultivo. Aí morro à fome nem que acredite que vou ser miraculosamente alimentado.

                 - Boa, irmão, boa! O fisicalismo (é falar como o meu Mestre), para si, não faz mesmo sentido nenhum. Ou alimentamos o conteúdo de sentidos para a vida ou desperdiçamos o dom de Deus nos rituais, mesmo os mais veneráveis. Andaremos a matá-los e a pervertê-los. E a corrupção do óptimo dá o péssimo, aqui como em todo o lado. A melhor liturgia, o mais elevado sacramento redundará no mais elevado obstáculo e contrafacção do Espírito. Aliás, andamos nisto há que séculos, de olhos tapados!

                 - Pois, a mania de que algum efeito hão-de fazer e, como são coisas sagradas, não há-de ser mau. E eu a ver a maior beata lá da minha parvónia, uma língua de palmo, a cortar em toda a gente, Deus lhe perdoe, toda segura de si porque ela, sim, era mulher de religião, não era como a restante gentalha. E cuspia para o lado! O resto não foge muito disto. Como é que há quem não veja? Ou não querem ver?

                 - Bem, lá que os ritos têm efeito, têm: ou alimentam a espiritualidade, afinando permanentemente a vida interior para dar frutos na exterior, ou não alimentam e, no limite, substituem-na, sem lhe tocarem, num rosário de magias e crendices que impedem os indivíduos de chegar a ela, uma vez que crêem que o gesto externo é que é o caminho. É o vício maior do ritualismo que os respectivos próceres não há maneira de verem e, portanto, não arrepiam no roteiro. Continuam a empanturrar-nos de ritos mágicos, sem olharem aos efeitos que andam desmultiplicando mundo fora.

                 - Olhe, eu vou-lhe contar um caso, irmão Ambrosino. Foi com um colega meu da escola, andava dois ou três anos à minha frente. Passou em miúdo pelo seminário e depois tornou à parvónia. Éramos ainda moços e encontrámo-nos, como outras vezes, na missa de domingo. Ele pôs-se a um canto, muito calado, de olho atento no celebrante de então que ia lá a rogo, por impedimento do pároco, ausente da terra. No fim, com ar um tanto nervoso, e declaradamente enfadado, arrastou-me para o adro, longe de ouvidos alheios, e regougou: “Nunca mais cá ponho os pés! Nem aqui, nem em mais lugar nenhum!” Estava meio a tremer, mas muito determinado. “Que é que há?” – perguntei, espantado com a mudança de humor dele, dado que era um brincalhão, permanentemente, não conseguia resistir a andar constantemente a contar larachas.

                 - Alguma coisa o revoltou, foi? – questionei, a ver onde aquilo iria parar.

                 - Pois. Mas era pior. E, para mim, um plantio exemplar que me fez cuidar muito e dar muita volta.

                 - Conte, conte, sou todo ouvidos.

                 - Desabafou o Quintino (era o nome dele): “Ó pá, eu discordo do homem do princípio ao fim, tudo o que ele contou, desde que abriu a boca, é um chorrilho de asneiras. Para mim, são erros atrás de erros, no dizer deles seriam heresias atrás de heresias”. E quase bufava de exasperado. Eu fiquei confundido e nem consegui dar-lhe troco, limitei-me a ouvi-lo e a tentar compreendê-lo. Quando me viu na expectativa a olhar para ele, desabafou, de repente: “Vê lá, é isto. Só me apetece rogar pragas a cada afirmação que ele fez. Tenho de estar aqui a conter-me para não desatar a disparatar contra o gajo, entendes? Dá-me cá uns nervos e uma revolta que nem imaginas! E o pior é que não é só com este, é com todos. Tudo isto está errado e eu não devo aguentar mais. Não é nada assim como eles dizem, não devia ser nada assim! Aquele paleio não tem nada a ver com a vida, nada... Como é que não vêem? Eu não aguento mais, não aguento!” E bufava, enraivecido. Eu limitei-me a um tímido e ambíguo: “É mesmo?..” Depois de respirar fundo várias vezes a se acalmar, olhou-me de frente e rematou: “Para vir aqui acabar revoltado a rogar pragas contra as ideias deles, ficar ao fim numa pilha de nervos, completamente ao contrário, virado do avesso, estás a ver... é melhor não vir. Isto é tudo ao invés do que deveria ser. Para mim não há aqui celebração nenhuma, festa nenhuma, revelação nenhuma. Então, para não ficar pior, desisto de vez, nunca mais ponho os pés em missas, seja lá onde for, nem em nada mais. Acabou!”

                 - E cumpriu?

                 - E cumpriu.

                 - Foi para si um plantio exemplar por ser um a mais no abandono de milhões, pelo menos no mundo ocidental, de qualquer religiosidade, da Igreja?...

                 - Não, não! Isso era o que eu julgava na altura, meio tolhido pela novidade e sem entender. Depois, então aqui com o noviciado, abri os olhos. O Quintino foi mesmo exemplar do que deve ser feito em casos tais.

                 - Abandonar tudo?! – admirei-me.

                 - Aí é que está o engano. Aquilo não foi abandonar nada. Bem ao invés, aquilo foi agarrar tudo, com ambas as mãos, antes de lhe escapar, aquilo foi o acto de fé mais autêntico que, se calhar, até hoje testemunhei. Aquilo foi segurar o ovo, deitando fora as cascas vazias com que o andavam a enganar, como se fora o ovo inteiro. Abandonar os rituais todos em nome da interioridade que lhes roubaram, para preservar esta a alimentar a própria vida, como é que isto poder ser um abandono?

                 - Estou a entender, julgo que estou a entender. Mas como norma...

                 - Pois, como norma! Está a ver porque é que eu vim aqui parar e professei? Ignoro o caminho do Quintino. Saiu da terra e não deu mais novas. Às tantas encontrou uma trilha igual. Ou até que não tenha nada a ver aqui com a nossa comunidade mas lhe dê o mesmo, de algum modo. De fora, se calhar pode parecer um ateu completo e, afinal, ser duma espiritualidade intensa que apenas daquele modo logra protestar e gerar ao menos uma mezinha minúscula às deturpações que se generalizaram e lograram legitimar-se na Igreja, com as teorias mais retorcidas, não é? Por mim, no meu fraco entender, cuido assim. E julgo que presto justiça ao meu amigo de infância, perdido por esse mundão de Deus.

                 - Abandonar a Igreja em nome da fé? Julgo que entendo, mas lá que é muito estranho, é...

                 - Não vou contra, porque se me antolha o mesmo, claro. E faz-me alguma confusão... Mas já reparou em quanta fome de espiritualidade autêntica hoje vemos mundo além, nos mais variados movimentos, fora de qualquer igreja ou religião? Quer dizer muito. Eu vejo milhões, centenas de milhões de Quintinos aí. E sinto-os muito irmanados comigo. Ao contrário dos matarroanos das berças que perdem o tempo em ritualismos que não passam de magia oca e não revelam qualquer fome de interioridade, de reordenarem e aprofundarem, a partir do imo, a vida inteira. Vão à igreja mas eu sinto que não têm nada a ver comigo. Os outros não vão, mas eu sinto-os como meus irmãos na fé, mesmo que não se identifiquem com nenhuma. E Deus me perdoe se me engano, que eu não sou de grandes luzes. Isto é falar com o coração. Mas é a linguagem que Deus fala e que Deus entende, não é?

 

 

                 Fátima – 30 de Junho de 2013

 

                 - A segunda dúvida é que era o meu problema: como é que eu me salvo, se eu não entendo nada de religião? Eu nem sabia o que era um teólogo, quanto mais... – retomou o frei hortelão, quando lhe virei a atenção para este lado.

                 - Bem, não é requerido nada disso, era o que faltava! O céu andaria bem vazio. E quantos teólogos estarão no inferno, irrepesos! É o bom coração... – ia a continuar, retomando a fala dele, quando me interrompeu, inopinado.

                 - Julga mesmo? Eu também andei por aí, mas depois de muito marralhar, olhe, creio que o juízo de Deus não corre por tal carreiro.

                 Fiquei, de repente, perdido. A que é que se está reportando? Aguardei, interdito. Ele entendeu o meu aturdimento e apressou-se a explicar.

                 - É isto: Deus salva pelas ideias ou pelos actos? Quer dizer: amar a Deus é pensar nEle ou é unir-me em sentimentos, afectos, intuições, vontade, sonhos, pensamentos, projectos, actividades, tudo?... Eu inteiro ou as minhas teorias?

                 - Ah, isso, pois. E então?

                 - Ora, descobri que nenhuma religião julga que Deus salva ou condena por mor das teorias que quenquer tenha na memória. Os místicos também não. É sempre, mesmo nos grandes Doutores, pela “vida exemplar” que levam. São, afinal, os actos que contam, os actos em que tudo, num indivíduo, se junta numa mancheia, unida bem apertada. É onde a gente mora inteiro. Isto é que conta. Ou aí vamos andando com Deus ou não.

                 - Evidentemente. E daí?

                 - Não está mesmo a ver, irmão Ambrosino? Olhe, o que me deixou baralhado foi isto: alguma vez a Igreja condenou alguém pelos actos? Não. Nunca, nem sequer quando teve de suportar Papas publicamente imorais ou criminosos, não é? Que, graças a Deus, em dois mil anos houve de tudo, para todos os gostos. É verdade ou não?

                 - É, mas condenar como? Quando muito, a Igreja absolve dos pecados em nome de Deus. Deus que perdoa sempre como acentua peculiarmente o Papa Francisco. Não estou entendendo.

                 - Ai está, está. Veja, alguma vez a Igreja deixou de condenar, até hoje em dia, qualquer ideia, qualquer maneira de ver, qualquer teologia que julgue desviada? Nunca. E não apenas as ideias mas quem as teve e tem, os movimentos, as comunidades. Ora, se Deus o não faz e se está nas tintas para o que pensem ou deixem de pensar, em nome de quê o faz a Igreja há milénios? Claro que eu não ignoro: sempre afirmou que era em nome de Deus. Mas se Ele não actua deste modo, como é? Está-me a entender? Na Revelação, nem Deus nem Jesus nunca elaboraram uma teoria qualquer, uma teologia, uma concepção do que quer que seja. Indicaram por todos os meios o Caminho. Esta é que é a Verdade que redundará em Vida. Ora, são atitudes para arrotear as leivas, para incarnar em actos. Não conceitos, ideologias ou teorias. Então como é?

                 - Anda tudo desviado? Sente-o como tal?

                 - Repare: até Israel descobriu que Deus não é atingível por palavras nossas. Não pode ter nome, daí os vários nomes, Eloim, Javé, Jeová, Emanuel, Deus, para sublinhar que não há nenhum capaz, não vale a pena. Então que é isto na história da Igreja? Eles sabem o que Ele é? Não sabem. Então como se atrevem?...

                 - Até aqui entendo. E daí? O fisicalismo empestou tudo, convenceram-se de que o céu já estava na terra, o Infinito estaria consumado e eles eram os porta-vozes oficiais encartados. Quando a interioridade se esvazia, o orgulho ocupa o espaço deixado vago. É permanentemente assim, da base ao topo, em toda a comunidade religiosa, nossa ou outra qualquer. Por aqui julgo que entendo o fenómeno, o que o não torna menos pecaminoso nem repulsivo. Foi uma história milenar de horrores. E continua, embora mais branda, em fogo lento.

                 - Pois, mas não foi por aí que mais me tocou, sabe?

                 - Então?

                 - É que entendi como podia salvar-me, apesar da minha ignorância toda. A teologia, sozinha, não perde nem salva ninguém. É uma ferramenta, o que conta é a lavoira que lavrar com ela ou sem ela ou até contra ela. É o que eu puser na vida, é como me puser no rio dos dias. Posso navegar ou encalhar. Normalmente, a teoria mais tocante desencalha-me melhor e navego mais solto, a que o for menos tende a encalhar-me mais e a tolher-me a esteira da navegação. Só que isto é para onde tende, pode em concreto lavrar tudo ao contrário. Então, a mais errónea, se der bons frutos, tudo bem, a mais acertada, se estimula ao mal fazer, tudo mal. Este, calculo eu, se bem entendi, é o juízo de Deus. Ora, eu não compreendo como justificar aquilo de obrar à margem dEle ou, pior, contra Ele. Como actuámos desde sempre, não é? Cheios de certezas que têm de ser, ainda por cima, sempre falhas: Deus é e será irremediavelmente inatingível. Como é que estamos constantemente prontos a ignorar isto tão rápido? É muito estranho!

                 - É, de facto, muito estranho – repeti, pausado. – Parece que a teologia, afinal, então não será tão relevante... Pela sua experiência.

                 - Bem, não o querendo desdizer, eu quase diria que é o contrário.

                 E, perante o meu ar de perplexidade:

                 - Repare, foi ela que me abriu os olhos e aqui estou. Sem ela onde estaria? A praticar superstição ou bruxaria dita religiosa num canto qualquer? Pois. Por outro lado, é uma teologia morta, de frases feitas e lugares comuns, tecida de banalidades de base que semeia Quintinos aos milhões pelo mundo fora, desde há séculos. Então como é que é irrelevante?      

                  - Pronto, retrato-me. Como, perante isto, equilibra os pratos da balança?

                 - Para mim é simples. Se Deus salva o católico, o protestante, o judeu, o muçulmano, o hindu, o budista, o animista, o ateu... e hoje vemos que salva, os nossos santos vêem-no, os místicos confirmam-no nas visões deles, a graça de Deus toca-os a todos, os milagres dão-se com todos... bem, cuido que é de concluir que o Céu é mesmo radical: pouco se lhe dá a forma como a gente O vê, todos os caminhos podem ir dar à mesma cumeeira. Poderão uns ser mais fáceis e directos, outros mais enredados. O que conta é caminhar para lá, mais e mais, até onde cada pé adregar de atingir.

     - Vale tudo o mesmo? Se os caminhos não são todos iguais...

                 - O que temos é de pôr o melhor de nós ao dispor dos mais e acolher o melhor que nos puderem indicar. Cada um vá por onde as pegadas mais firmes lhe assentarem, então não é? Deus pouco se importa com isto, questão é que resulte em vida santa, em amor por Deus, pelos outros e por si próprio, tudo formando um amor único. Quem for por aqui salva-se, quem não for, perde-se. Tudo o mais são ferramentas, umas manuais, outras automáticas. Mas quem escolhe o que lhe convém é o coração de cada um. Não é um tribunal, uma igreja, um exército. Nem um dogma qualquer. Deus me perdoe se estou errado, mas é o que vejo e o que sinto. E foi o que me libertou por dentro. Posso não entender nada de teologia, mas se levar a vida como Deus ma quer, então estarei com Deus, do lado de cá e depois do lado de lá. E os que entenderem tudo, se o não fizerem, não lhes vale de nada o entendimento, estarão fora da união com Deus. Perdidos.

                 - Então, a teologia...

                 - A teologia ajuda ou desajuda, conforme ela for. E conforme o coração onde a semente cair. É tal e qual como aqui na minha horta, salvo seja, que Deus se amerceie de nós.

 

 

                 Fátima – 1 de Julho de 2013

 

                 - O depósito da Fé está furado! – comenta o Fr. Nardo, divertido, a propósito dos meus últimos escritos. Ele adora afirmar aquilo e aqui não podia vir mais a calhar.

                 Íamos a pé rumo ao Santuário, cujo recinto cruzaríamos para atingirmos um lar de freiras. A Casa de Betânia, em cujo auditório vai decorrer uma palestra para um movimento de leigos. E eu acompanho o palestrante, embora também me apeteça meter o bedelho, já que é temática ligada ao ecumenismo, o que toca em particular as minhas dúvidas. O Fr. Nardo é que adora gozar com tudo e tem mesmo graça. Vai pôr a assistência à gargalhada. Põe sempre. É o grande dom dele, a alegria em pessoa.

                 - Furado ou não, é algo que não me preocupa – comentei eu. – Onde me não encontro à vontade é naquilo de que qualquer religião, até a falta dela, no ateísmo, agnosticismo ou indiferença, afinal, tudo pode levar a Deus. Já entendi que uns caminhos facilitam, outros, não, o trilho é directo ou desviado mas, mesmo assim... Cristo morre na cruz e depois vale pouco mais ou menos o mesmo que se não tivera morrido? Sinto uma conclusão destas meio desconfortável, há por aqui um desperdício qualquer que não foi tido em conta...

                 - E Jesus Cristo há-de se preocupar muito com isto, não há dúvida! Olha lá, não queres ser instrumento de Deus?

                 - Claro.

                 - E a teologia não é um instrumento nas tuas mãos?

                 - Pois.

                 - Então, apenas o instrumento dum instrumento é assim tão importante que te tire o sono? Não deixes que to faça. Dorme em paz e que o Senhor te acompanhe! – rematou, risonho

                 - É que é um prejuízo enorme e uma inutilidade. Para que é que serviu levar às costas o peso do mundo inteiro? “Cordeiro de Deus que tiras o pecado do mundo”, não é? Se antes e depois tudo caminhava no mesmo rumo...

                 - Lá caminhar, caminharia. Mas chegava a bom termo? – E, com uma risada bem-humorada: - Olha os que andam de joelhos, às voltas à capela das Aparições. Esfolam as rótulas até sangrar e não chegam a lado nenhum. É sempre à volta!

                 - E era tal e qual? Também não creio que o teria de ser. Basta reparar no Antigo Testamento, pejado de santos Patriarcas e Profetas e sei lá que mais. Com o resto da humanidade era o mesmo, não é? Deus não se deixa circunscrever, atar de mãos, nem é monopólio de ninguém. Então fico meio perdido.

                 - Ai que eu tenho de rezar o responso de St.º António, a ver se te encontras! – brincou ele. – Eu não sou grande teólogo, sabes bem, dá-me muito mais gozo a palhaçada, que esta vida é uma alegria. Agora repara: se Jesus não o tivesse feito, se não virasse o rumo dos dias, afectando tantos em redor que o levaram à cruz, se outros mais o não tivessem feito, antes e depois dele, onde é que estaríamos, hein? Como é que cuidas que não valeu de nada?

                 - Ah, pois, aí valeu! Valeram todos. E não estaríamos aqui, de certeza que não. Os lutadores da liberdade é que libertam, pagando o custo em sangue e lágrimas. Em todos os povos, evidentemente. E em todos os tempos.

                 - E os que cantaram o cântico do amor? Em melodias, palavras, gestos, actos e projectos de vida que transmudaram o mundo inteiro numa alegre romaria? E olha que o pagaram e de que maneira, que morrer por amor foi o lema universal, pela humanidade fora, tempos além.

                 - Bem visto, Fr. Nardo, bem visto. Plenamente de acordo. Mas fica-me a morder aqui uma peça desencaixada. É que são todos iguais, Jesus é igual aos restantes. Faz parte dum movimento anónimo em que muitos convergem, embora se ignorem mutuamente. Não sente isto? É como retomar a disputa dos primitivos em que houve filósofos que compararam Sócrates e Jesus, pelo paralelo da vida e da morte deles, e acabavam por preferir aquele como o grande modelo, não este. Podíamos repeti-lo com muitos outros. Somos todos filhos de Deus. Que grande confusão!

                 - Ai, ai, que temos de te arranjar uma bússola. E um mapa bem ilustrado, cheio de paisagens de todo o mundo – gozou ele, por mor da minha colecção de postais ilustrados. – Ora, Jesus também é um homem como todos os mais. Ou não? Não me digas que o endeusas igual a tantos que assim se descartam de responsabilidades: Ele era Deus, podia bem dar conta do recado; agora eu, não, sou meramente humano, não me peçam nada daquilo. Ainda vais aqui? Valha-te Deus!

                 - Não, não! O alheamento, o passa-culpas não é coisa de anão. Sabemos alombar com o que calha e muito mais do que o nosso porte permitiria. Aliás, ninguém nos perdoa a falta de estatura, é pormenor que nunca podemos ignorar. Ai de nós, os anões!

                 - Então que bicho te mordeu? De certeza que acordaste de pernas para o ar ou os anões não conseguem fazer isso? A propósito, nunca te vi fazer o pino – pronto, há-de andar sempre a gozar.

                 Claro que desatei a rir. Tem um sentido de humor imparável, tudo lhe serve de pretexto. E todos o adoram, evidentemente, por isto. Torna qualquer dia leve, por mais pesado que se nos apresente. Com ele é sempre festa.

                 Quase perdi o fio da meada. Mas tornei, renitente, que o espinho magoava e eu não estava a localizá-lo, a identificá-lo com rigor.

                 - Olhe, Fr. Nardo, se não há qualquer diferença em Jesus... Como é que tudo isto se justifica? A Igreja, todas as igrejas, todo o movimento cristão, o cristianismo enquanto vector de cultura mundial... Assente no vazio? Não há nada que o justifique, nada especial, melhor, específico? Declarou há bocado que Jesus também é homem. E ser Deus não representa nada? Os que não crêem... não têm a que agarrar-se!

                 - Ah, agora bateste no ponto. Não tocas bombo, que é maior que tu, mas tocas pandeireta. Não se ouve tanto, mas um ouvido atento distingue-a. – E, de repente, mudando de tom: - Ó Tomé desgraçado, tens mesmo de pôr o dedo na ferida? Como vais converter um mundo cheio de Tomés? Que exemplo é o teu, homem de fé mais curta que o teu tamanho? – e continuava a ironizar alegremente.

                 - Vá lá, Fr. Nardo, que isto anda-me a picar o peito e olhe que ainda acabo mais pequeno com estas angústias todas. Qualquer dia sumo-me - brinquei, por minha vez.

                 - Ó Paulo, Paulo, vem em minha ajuda! – simulou ele, divertido, uma grande imprecação. – Pois, irmão, tens toda a razão: tudo assenta num enorme vazio, andamos aqui a flutuar nas nuvens do nada, há milhares de anos, e, ao mais, não temos asas – agora imitava um grande pregador, com gestos largos, uma voz grossa contida, para não alarmar os viandantes com quem nos cruzávamos. – E tudo isto não valeria a ponta dum chavelho, - continuava ele a pantomima – não fora o facto de Jesus ter ressuscitado. Uf! – fez ele, como um pregador fatigadíssimo. – Acabei! Obrigado, S. Paulo, por me dares a dica, que isto de converter estes pagãos de cabeça mais dura que os fraguedos da Serra de Aire, cansa que se farta.

                 - A ressurreição? – perguntei, subitamente aparvalhado. Como é que me tinha esquecido?

                 - A ressurreição, qual é a dúvida? Tem-la em algum outro? Que é que virou S. Paulo que nem sequer o conhecia, senão que Ele o derrubou no caminho de Damasco, depois de morto, o imprecou a sério e o convidou a operar ao invés? O que ele fez, claro, quem me dera o mesmo! Mas não é visita para um frade bobalhão que apenas sabe rir e divertir os mais. – E, como eu estava com um ar meio aturdido: - Ó irmão, então Abraão ressuscitou? Moisés ressuscitou? O Rei David ressuscitou? Não, nem acreditavam que tal coisa era viável, nem lhes ocorreu. Era tudo cá na terra, na terrinha. E mais. Buda ressuscitou? Confúcio ressuscitou? Aliás, Maomé ressuscitou? Não, nem nenhum teve pretensões a tanto. Contudo, creio bem que estão todos salvos. Todos foram homens de Deus, o melhor que souberam e conseguiram, cada qual a seu modo. Tal como eu sou meio bufão e espero que Deus se divirta e agrade comigo.

                 - Pronto, pronto, não fique afobado. Eu só estava espantado com a minha estupidez. Pois claro, onde é que eu já ia! A minha fé, deveras, é frágil, até tenho vergonha de mim...

                 - Ei, onde isso vai! É igual com toda a gente, que julgas? Uma fé sem dúvidas não é fé nenhuma, é uma crendice qualquer. Não acreditas que eu faço milagres? Olha que te farei para aí um que até ficas de olhos vesgos, vais ver! Não acreditas? Ah, seu maldito! – gozou, no seu jeito inveterado.

                 Inesperadamente caí em mim.

                 - Mas então temos de os converter! Como S. Paulo. Senão, senão... Não é?

                 - Como S. Paulo, disseste muito bem, como S. Paulo. Não é convertê-los, é informá-los. Levar-lhes a Boa Nova – Evangelho: é o que significa. Percebeste?

                 - Não, nada. Não é o mesmo?

                 - Pois, devia ser. Mas em geral tornou-se no contrário. A alegria, a libertação tornou-se no horror, na matança. Ou te convertes ou estás tramado. Pior, matamos-te o corpo para te salvar a alma. Se não tivesse sido trágico, era mesmo divertido. A perversão da alegria genuína que viria de descobrir que a morte não existia mais, que a ressurreição nos ficava ao alcance, não foi derivar numa comédia, foi uma tragédia pelo mundo fora.

                 - Mas como é que isto podia ser feito?

                 - Então, levar uma espantosa novidade é dá-la às gentes, mais nada. Elas acolhem-na como entenderem. Querem saber pormenores? Querem trocar por miúdos as implicações? Querem festejar? Querem reorganizar a vida em função disto? É o mesmo como com qualquer grande novidade que nos avassala a vida. Reagimos e tomamos as iniciativas que melhor se adequarem ao caso. Não é assim na realidade quotidiana? Eu, por exemplo, adoro fazer festa e gozar com tudo, é o meu carisma. Deixem os indivíduos livres. Pois se isto era para os libertar!

                 - Certo, mas então como faríamos?

                 - Muito simples Chegas ao budista e contas-lhe: sabes que a tua via permite a ressurreição? É verdade, Jesus conseguiu-o, seguindo o caminho estrito da espiritualidade a vida inteira. Chego ao hindu e informo-o: o teu rumo de vida interior, vivido com toda a autenticidade de que a gente for capaz, vence a morte e culmina na ressurreição, em corpo e espírito – Jesus atingiu-o. Converso com o islamita informando-o de que a vida piedosa dele o salvará inclusive da morte, permitindo-lhe a ressurreição da carne, porque o grande profeta Jesus em que ele crê o conseguiu, abrindo o caminho desde então para todos. E do mesmo modo com os mais, estás a ver? Levamos-lhes a informação crucial. Deus, Jesus está movendo por dentro o coração de todos e a nossa novidade pode remover a derradeira barreira para o salto no Infinito, tanto na interioridade como no século.

                 - Quer dizer, não os converto, acrescento-lhes uma nova dimensão, abro-lhes a porta do céu. Deles depende depois o aproveitamento que entenderem, que caminho seguir.

                 - Nem mais, grande pequeno teólogo – voltou o brincalhão.

                 - E se não ligarem nada...

                 - Sacodes o pó dos sapatos e vais-te embora. É a ordem que temos da boca de Jesus. Quer dizer, respeita-los integralmente até ao fim. Se Deus os respeita, com que direito os queremos converter à força, os perseguimos, aprisionamos, chacinamos? Que é isto? Que é que tem a ver com a Grande Novidade e as implicações dela? Trai-a e perverte as trilhas todas.

 

 

                 Fátima – 2 de Julho de 2013

                

                 Foi logo às matinas, enquanto cantava a plenos pulmões, que de repente entendi: é mesmo como S. Paulo! Quer dizer, eu já tinha entendido, não é? Mas veio-me ainda outra luz, mais obumbrante, inesperadamente. Mais ou menos como se me dividisse em dois, um que já via meio cego, outro a deslumbrar-se com a paisagem inteira. Inteira por ora. Sei lá bem quantas revelações mais me virão a caminho! Sou um privilegiado, muitas graças tenho eu a dar. Primeiro a Deus, a Jesus, a todos os santos que me andarão a abrir os olhos. Depois ao meu Mestre que me pôs esta freima entre mãos. Quem adivinharia que tanta luz se me faria? Eu, por mim, nunca. Sou mesmo um tolhido, de corpo anão e de alma anã. E agora reparo que o somos todos, cada qual a seu modo. Vamos trepando por degraus da noite para o dia. E são pequenas coisas que nos levam ao patamar posterior. Ora, S. Paulo erguia nas mãos uma enorme escadaria que punha ao dispor de quenquer, pelo mundo antigo fora, até queria vir aqui, à Península Ibérica...

                 Pergunta o anão antigo, meio cego:

                 - Para abolir o politeísmo, o culto dominante de Mitra e quaisquer outros pré-existentes?

                 - Não, não – responde o anão novo, de olhar deslumbrado. – Não para os abolir, mas para os consumar, no que tinham de apelo espiritual (e todos tinham) e, assim, ultrapassá-los.

                 - Não vai dar ao mesmo? – insiste o anão vesgo.

                 - Ora! Tenta levá-los a partir de dentro até à plenitude, tornando inúteis os rituais e as crenças preparatórias – contrapõe o anão iluminado. – Isto é que os leva a caducar, muitas vezes instantaneamente. Daí a aparência de abolição. Mas é mentira, em dois sentidos. Primeiro porque ir até à plenitude não abole nada, apenas torna imprestável a vestimenta antiga que então se pode despir e abandonar. É o que quer dizer que nem um jota nem um til serão abolidos da lei, como Jesus afirma no Evangelho. Em segundo lugar, a abolição, porque não cumpriu o fito prévio em plenitude, afinal não abole nada nunca: continua a crença antiga pelos séculos dos séculos, no coração e na privacidade dos crentes dela, enquanto o ideal íntimo que visa não for definitivamente consumado e, então, sim, de vez ultrapassado.

                 - Não vejo nada disto em S. Paulo – persiste o anão meio cegueta.

                 - Ai vês, vês – retruca o outro, de olhos arregalados. – Olha-o no altar ao Deus Desconhecido. Não prega contra os mais, não os ataca nem derruba. Ao contrário, traz a novidade dum Deus que eles ignoram. E mais, dum que resolve o problema de todos porque arrumou com a morte, venceu-a e ressuscitou. Um Deus que logrou levar até ao fim o que todos os deuses visam: dar um sentido à vida, cada qual em seu campo, a fim de a realizar em vez de a frustrar, trazendo a felicidade a cada um. Felicidade que a morte derrota mas que o novo Deus resolveu, consumando definitivamente a meta que todos propugnavam mas não conseguiam atingir e ultrapassar.

                 - Ora essa! – instava a miopia renitente do velho anão. – Então continuaria tudo igual, nas religiões, pelo mundo fora. Mas o cristianismo expandiu-se e é predominante...

                 - Pois é, de nome – e o novo quase se diverte. – Mitra predominou com o politeísmo durante três séculos. Depois começou a abolição. Então continuaram a predominar, às escondidas, como todos os outros cultos e crenças, pelo mundo fora. Ou julgas que os quase duzentos milhões de brasileiros, por exemplo, ditos cristãos, o são de facto? Não, nem um por cento entendeu nada do que isto significa (e já seriam milhões, apesar de tudo). É por isso que atrai tanto, por ali, o candomblé, as mães de santo, Iemanjá, sei lá que mais. E é o mesmo pelo mundo fora. A abolição torna clandestino o que antes era patenteado e que então perdura indefinidamente, tornando doravante mais difícil levar a Boa Nova da ressurreição a quenquer que seja. Até porque os próprios cristãos a perdem de vista e andam para aí a estrebuchar em ritualismos ocos, pejados de superstições mágicas.

                 - Então é praticamente preciso abolir tudo – insiste o anão da escuridade, na suspeita duma aurora vindoira.

                 - Pois é – confirma o outro, vidente, alumbrado. – Se o que importa é a espiritualidade de fundo, a fermentar tudo... Que interessa o mais? Por si, nada. Só para alimentar aquela.

                 - Mas há pormenores que me deixam entalado – retoma o de vistas curtas. – Por exemplo: como abandonar a eucaristia? E os mais sacramentos? Não é?...

                 - Aflige, de facto – confirma o anão do alumbramento. – Mas repara nisto: chegas junto dum guru hinduísta ou dum mestre zen e vais-lhe dizer: podes salvar-te, mas apenas se fores baptizado ou se frequentares a missa... É isto a Boa Nova? Não. Implica isto? Também não. Jesus faria assim? Não, nem sequer admitiu repetir o baptismo de João, nem baptizou Apóstolos nem discípulos. Tudo agora é pelo Espírito, diz Ele. Nada daquilo é importante, já que não é a questão de fundo. Tudo tem o valor de quanto valer por reconduzir a ela. Fora disto ou é indiferente ou devém anti-valor, se se lhe substitui e nos impede de abrirmos os olhos e de lá chegarmos, à espiritualidade íntima e ao dinamismo dela.

                 - Mesmo a eucaristia? – escrupulizou o anão nocturno. – Que ele pediu?

                 - Mesmo a eucaristia – confirmou o de olhar de aurora. – Deus salva em todo o lado, nunca precisou dela para salvar ninguém. Jesus pede-a em memória dEle. Julgas que a iria pedir a quem não tem tal memória, não lhe é íntimo, não entende nada disto, vive alheio a tal história, embora com profunda espiritualidade? Em casos tais é-Lhe inteiramente indiferente. O que Ele quer é que todos atinjam Deus, com eucaristia ou sem ela, com sacramentos ou sem eles, até porque, para a intuição íntima, toda a realidade é sacramental: “Os céus e a terra proclamam e glória de Deus” – diz o salmista.

                 - Mas para quem entender...

                 - ...E para que entenda mais e mais e para que viva mais e mais, a iluminar o mundo em redor, aí, sim: eucaristia, sacramentos, liturgia devoções, as nossas horas, a oração a permear tudo, a fusão do aquém e do Além – rematou o anão iluminado. – Enquanto der luz e a luz por ali continuar a desmultiplicar-se. É a função de tudo aquilo. Por este pendor o guru pode querer partilhá-lo, o mestre zen, ser aqui também iniciado, até o ateu, de repente, pode suspeitar de que andará por este lado um mundo qualquer a escapar-lhe. Aí, tudo poderá voltar a fazer todo o sentido. Aí tudo deverá entrar com toda a força. E a graça produzirá frutos a cem por um, não é? Aqui já não é nada daquilo um obstáculo à vida interior nem substituto dela. Correcto?

                 - Agora perdi-me – torna o anão trôpego, a apalpar no escuro. – Como é que viemos aqui parar a partir de S. Paulo? Isto já não tem nada a ver com ele, pois não? Andamos por ali fora a especular...

                 - Nem penses! – cortou-lhe a palavra o anão de olhar de luz. – É tudo estritamente paulino.  – E, ante a dúvida hesitante do outro: - Vejo bem que ainda estás como os que, afinal, não entenderam nada das deliberações do I Concílio de Jerusalém, nem do que Paulo explicou e levou a acatar pelos demais Apóstolos que também o não haviam entendido, antes de ele lhes ter aberto os olhos.

                 - E que foi...? – perguntou o meio cego, uma vez mais a não vislumbrar nada.

                 - Simples: se a fé na ressurreição é que conta, o itinerário para ela é que é crucial. Logo, tudo o restante é apenas um meio para a caminhada e nada mais. Portanto, os ritos só importam para quem fizerem sentido neste rumo. Fora disto é a roupa velha a jogar fora, de gasta definitivamente. Ninguém, pois, irá doravante circuncidar-se se para ele tal rito for tradição alheia ou de que se alheou. E o mesmo quanto a quaisquer outros rituais e liturgias. Não se impõe nada a ninguém. Informa-se da Boa Nova e deixa-se produzir os frutos que cada um e cada comunidade entenda cultivar em coerência com ela. Implantando-a em qualquer que seja a tradição ou cultura que deste modo se eleva potencialmente ao apogeu. É o que a ressurreição permite a todas e cada uma e a cada indivíduo nelas inserido. Deixando-o a ele como a elas livres para operarem como melhor lhes aprouver e mais significativo e fecundo espiritualmente for para todos.

                 - Então, e daí? – a perplexidade do anão míope continua.

                 - Daí que todos, a partir dalgum momento, ignorámos a lição paulina e apostólica que dalém nos vinha e desatámos a erradicar as culturas e tradições, as crenças e religiões, por todo o lado, implantando o modelo único que durante séculos se foi urdindo, enriquecendo, complexificando na cultura ocidental. Em lugar de deixarmos que tal fermentação múltipla acontecesse igualmente em todas as outras regiões, pelo mundo fora. Quer dizer, acabámos fazendo o que os Apóstolos, judeus de origem palestiniana, entendiam dever ali fazer e provavelmente levar S. Paulo a praticar. Só que ele explicou-lhes e eles compreenderam e deram-lhe carta branca para a inventividade duma espiritualidade viva que inovaria permanentemente durante séculos. Voltámos, portanto, para trás. Não impomos agora o judaísmo ritual, impomos o catolicismo (e cristianismo em geral) com o rosto ritualizado adquirido à roda do Mediterrâneo. A asneira é a mesma, a violação conciliar e da Tradição apostólica é evidente. Embora multissecular, o que a não desagrava, bem pelo contrário.

                 - Mas foi assim um itinerário tão longo? E as criações foram mesmo ao gosto das comunidades? – o anão cegueta não desiste, dentro de mim.

                 - Claro que foram. Recorda. Em pleno séc. XIII, mil e duzentos e tal anos já decorridos depois de Cristo, ainda ninguém tinha certeza nenhuma de quantos eram, por exemplo, os sacramentos. S. Tomás de Aquino opina que sete era um número conveniente, já que era arquetípico, remetia ao primeiro capítulo do Génesis, aos sete dias da criação. Sete, pois, seriam como sete portas abertas à criação do homem novo. Daí que se arranjaram então os sete actuais, aproveitando a simbologia, o que está de acordo com o contexto sacramental, o de símbolos evocadores duma realidade outra, a da dimensão espiritual e, nesta, a da suprema realidade divina. Tudo isto, porém, foi uma construção cultural multissecular, embora com profunda inspiração espiritual de múltiplos protagonistas. E foi disto que fomos dando cabo gradualmente com o maldito fisicalismo, com a dogmatização de tudo e mais alguma coisa, como verdade sagrada, como um intocável absoluto de vez consumado já na terra. Um erro fatal em todos os domínios. O nosso pecado colectivo mais estrutural, porventura. Que Deus nos ajude! Muito nos custa ser humildes, ser a caminho!

                 - E julgas que o Papa Francisco irá nisto?!... – ai meu anão das dúvidas!

                 - Se não, então como é que anda há decénios a cultivar amizade como de irmão com o rabi de Buenos Aires? São amigos e dialogam e a paz é possível, por aqui, mesmo para a Palestina ensanguentada há milénios – comunicam ambos. – Se não é aquele caminho, então qual é? O das destruições de antanho? Ora! É o que repudiam...

                 - Quer dizer, por trás dum gesto tão simples anda uma reconversão descomunal daquelas? Ah, grande Papa! Não deixa de me surpreender todos os dias. Quem diria?!

                 - Não é por acaso que escolheu ser Francisco: o gesto mais simples arrasta um mundo atrás. O de Assis foi o mesmo, não é?

                 - Continuo com um medo desgraçado – treme o meu anão do escuro. – Por aqui não irá tudo dar num caos?

                 - Tem juízo! – admoesta-o o da luz. – Caos maior que o que gerámos nos caminhos transviados da História? Centenas de Igrejas separadas, milhares de seitas, perseguições e genocídio de judeus, guerra e Cruzadas a matar muçulmanos... Ao invés, agora, reencontramo-nos. É uma questão de fé em Deus: entregamos tudo nas mãos dEle e depois fazemos o melhor que pudermos e soubermos, deixando o Espírito agir e acolhendo-O no íntimo e na vida. Não temos da andar a salvar Deus, o depósito da Fé, os dogmas... Ele é que nos salvará a todos, se O deixarmos agir e O acolhermos bem humildes, dispostos a crescer e a aprender indefinidamente. Se nos pusermos todos, de novo, a caminho do Infinito. A caminho de Deus.

 

 

                 Fátima – 3 de Julho de 2013

 

                 Andava muito entretido, a predispor-me para a hora de sexta, actualizando as fichas de leitura da biblioteca, quando dei por mim completamente distraído. Reparei pela primeira vez com outros olhos para as festividades cristãs herdeiras do paganismo prévio. O Natal, o Ano Novo, até a Páscoa fazem agora todo o sentido no itinerário que percorreram. Não vieram abolir mas consumar, realizar em plenitude uma expectativa anterior. Não agrediram nada nem ninguém, acrescentaram mais uma prenda ao que dantes havia já. Ao levarem a caducar, por superarem, a ordem anterior e respectivos privilegiados, estes desencadearam múltiplas perseguições: eles tornavam-se inúteis, dispensáveis, perdiam poder e estatuto com o fim gradual das rotinas. Então é que se entende bem como sangue de mártires é semente de cristãos: como é que o povo, libertado para uma perspectiva de plenitude atingível, podia ver com bons olhos a chacina dos respectivos libertadores? Teria de fazer corpo com eles contra os sicários. Pior: estes apareciam-lhes como quem pretendia impedi-los de consumar a festa da vida em pleno, num salto para o Infinito, tentando acorrentá-los aqui, num frustrante quotidiano histórico a desembocar na morte. Nestes termos, os próceres da cultura pré-cristã estavam à partida condenados, tanto mais quanto mais enquistados ficaram no respectivo feudo, doravante caduco.

                 Aquelas festas não foram um baptismo apressado com umas tintas de cristianismo, sem qualquer reconversão, aprofundamento interno do apelo espiritual pré-existente, foram antes o respectivo desenvolvimento orgânico, doravante aberto à irrupção do Absoluto. Isto é que não fere, não magoa, não viola ninguém. Foi o primitivo caminho de autenticidade, gradualmente abandonado depois, a ponto de não termos agora, por exemplo, nenhuma festividade do Dragão Chinês, nem nada correspondente do Japão, da Índia, das Américas... Para aqui já nos encaminhámos sempre a abolir e a condenar, a bem ou a mal. Nem os pobres e alegres ameríndios que tão bem nos acolheram, a nós, portugueses, como enviados dos deuses, escaparam à triste sina.

                 Perambulava eu por este encadeado de ideias, entra-me porta dentro o Fr. Benedito.

                 - Irmão Ambrosino, quer aproveitar uma boleia e vir connosco a um colóquio nos Maristas? Só podemos ir quatro professores e o carro leva cinco. Vem? Aquilo é giro, sobre a disciplina na escola. Como há pelo País fora inúmeras transgressões...

                 - E não fico deslocado? Não sou professor...

                 - Eu cá julgo que irá gostar. O tema promete. E convém-nos entender melhor os Irmãos Maristas, eles é que andam com a mão na massa, como Congregação de educadores, não é? Então, quer vir?

                 E lá fomos os cinco, uma viagem longa, até ao colégio na grande cidade.

                 A iniciativa durou o dia inteiro e não me senti nada de fora. Claro que eu estudei durante muitos anos, não me foi difícil meter-me na pele do aluno nem na do professor.

                 Registei duas ideias. A primeira é que a autoridade, para ser pedagógica, deve seguir um itinerário que os melhores educadores trilham, dum ponto de partida a um ponto de chegada ideal: principia por ser autoridade imposta, transita para consentida, depois para participada, culminando no poder partilhado, idealmente em perfeito pé de igualdade entre educador e educandos. A segunda é que, quão mais imaturo, inexperiente, o educador, mais tende a proteger-se com os primeiros patamares, quão mais experto, mais atinge o píncaro; simetricamente, os alunos, quão mais turbulentos, mais requerem os degraus do princípio, quão mais socializados, mais aptos ficam para o acúmen derradeiro. Donde resulta, em concreto, que o equilíbrio ideal, em cada caso e momento, é o da conjugação destes dois vectores que permita a optimização possível, agora e aqui, tendendo sempre a uma melhoria de ambos os lados que vá caminhando indefinidamente para a meta final, a do poder partilhado entre iguais.

                 - Não tenho nada a ver com alunos, mas espanta-me – comentei, enquanto retornávamos calmamente, no veículo, ao cair da tarde – que a autoridade, o poder na Igreja não tenha uma pedagogia paralela. Nem sequer vi nunca uma formação em tal domínio.

                 - Pois não, nem há – reflectiu Fr. Marcos. – Em contrapartida há exemplos de grandes lideranças que empiricamente palmilharam aquele trilho, por exigência interior de coerência com elas próprias. É que uma pedagogia destas é também um itinerário de profunda espiritualidade. Uma via de servir os outros com cada vez mais autenticidade e empenho.

                 - Oh, claro, querias isto com todos?! Apenas há um ceptro, apenas um báculo. Partilhá-lo, como? Esmigalhando-o aos bocados e repartindo migalhas de poder? Quem vai nisso? E deixava de ter vénias e rapapés, mais as benesses e prebendas? Está bom, está! Canta-me essa cantiga, a ver se eu acredito... Lá um santo de vez em quando, por engano, pronto. Mas a regra?!... – era o feitio meio gozão do Fr. Nardo.

                 - Contudo, olha que ter um modelo daqueles, como referência, dentro da Igreja, era capaz de dar jeito. Há já tanto quem argumente que a orgânica eclesiástica não é uma democracia, como se a monarquia ou o Império fosse um regime sagrado (que entretanto dogmatizaram)... – fez o Fr. Benedito. – Aquilo seria a demolição sistemática do Imperador-deus, do Papa-Jesus... E não apenas por virem a terreiro, até ao povo, mas por partilharem os poderes reais que detêm, em concreto, tendendo a colocar cada vez mais tudo e todos em pé de igualdade. Era muito giro!

                 - E destruías a Hierarquia?! – abespinhou-se, meio a brincar, Fr. Ramiro. – Saíste-me cá um anarquista! – E, mudando de tom: - Mas era o que poderia dar algum sentido ao hierarca. Ele em si é uma contradição nos termos. E não é por imitar pantomineiramente o Império Romano. A dinâmica da espiritualidade é que não vai nunca em tal sentido. É rigorosamente ao contrário, como o modelo pedagógico analisado hoje. Por mim, nem vejo porque não pode adaptar-se, pode perfeitamente e era uma grande melhoria, dos grupos e organizações de base, pelo mundo fora, aos escalões intermédios, de bispados e provinciais das ordens, até ao topo, ao Vaticano inteiro, até ao Papa.

                 - Já repararam o que era seguir toda a gente o continuum do poder imposto ao consentido, ao participado, até ao partilhado, com igualação tendencial de tudo e todos?  - retomei eu, quase para mim. – Mas que reviravolta! Até numa comunidade como o nosso convento, não é?

                 - Conferimo-lo, aliás, com cada prior que elegemos, – comentou Fr. Ramiro – pela forma como assume e desempenha o cargo. Não há dois iguais e não é apenas no estilo, maneira de ser. É prioritariamente neste ponto. Às vezes alguém julga-se enaltecido e fica com o rei na barriga, outras entende que é um serviço a bem de todos e nem daquilo se lembra. E há quem partilhe mesmo, tanto quanto as circunstâncias o vão permitindo. O modelo existe empiricamente, embora inexpresso. E é decerto isto em todo o lado. Exprimi-lo, o que lhe empresta é mais força, torna-o consistente e um ideal generalizado.

                 - Mas contradição nos termos porquê? O hierarca anda à chapada a ele próprio? – claro que era o Fr. Nardo. Rimo-nos todos, ele é mesmo assim.

                 - Porque todo o poder é para servir e, portanto, não pode ser sagrado que quer dizer intocável – retomou o Fr. Ramiro. – O poder serve para realizar as minhas potencialidades, primeiro, na relação comigo, com os outros e com o mundo. Depois o poder serve para ajudar os outros a realizarem as potencialidades deles, em todos os campos em que lhes puder dar a mão. Em terceiro lugar, o poder serve para me disponibilizar para ser por outrem ajudado, onde isto desmultiplique o meu potencial de realização e o de todos. Não há realidade menos sagrada que o poder, estamos todos sempre a mexer nele, a qualquer nível, seja no nosso seja no dos outros.

                 - Ah, mas isso é um poder muito bom, um poder muito querido. Eu dele gosto, importa-me lá bem que seja sagrado ou não! – riu o incorrigível Fr. Nardo.

                 - Se não for isto, então é um poder de usurpação, anda a violentar, a diminuir, a castrar sempre, de algum modo, o poder doutrem. Então devemos atacá-lo e derrubá-lo. Logo, é tudo menos sagrado, intocável – retomou o Fr. Ramiro. – Este é para ser tocado, abalado e derrubado. Ora, este é que pretende sempre ser o sagrado, a ver se o temem e lhe não tocam. Era o que faltava! Portanto, hierarquia, na Igreja, que é isto? A reivindicação do direito à perversão? Só se for... Quem tem a lata de terçar armas pela intocabilidade do Imperador Romano? Nem os romanos acataram tal bizarria. Fartaram-se de apunhalar e derruir o pretenso intocável, o sagrado, o hierarca. Que é que vem uma coisa destas fazer para dentro da Igreja?

                 - Ora esta! – retomou, irónico, o Fr. Nardo. – Para dar uma oportunidade aos ateus e descrentes, aos que não têm vida espiritual nenhuma, de poderem implantar aqui o reino deles. Também são filhos de Deus, não é verdade? Embora filhos de pai incógnito... pelo menos para eles.

                 Rimo-nos todos, mais uma vez. O carro ronronava no sereno do crepúsculo.

                 - O pior – Fr. Benedito saiu dum mutismo meditativo – é que o poder é propriedade e propriedade é poder. O Vaticano é um Estado, tem um aparelho governativo, tem palácios e mais palácios com tesoiros de arte e mais tesoiros, de todo o tipo. As dioceses reproduzem-no em menor escala, as ordens religiosas, também. E assim por diante. A igreja institucional tornou-se um descomunal potentado económico, porventura o maior do mundo, já que os outros Estados soberanos são, na maior parte do Planeta, falidos cronicamente ou pouco menos. O aparelho eclesiástico é um desmedido mostrengo secular. Que é que isto tem a ver com o Reino de Deus? “O meu Reino não é deste mundo” – afirmou Jesus. Então que é semelhante monstruosidade?

                 - Ai não sabes?! – satirizou o imparável Fr. Nardo. – É a nação do Cristo-Rei! Ele não se queixou de que não tinha aqui reino nenhum? Pronto, deram-lhe um reino e encheram-no de coisas e loisas. Agora não tem mais de que se queixar, não é? E nós até já lhe inaugurámos duas estátuas, uma ali, em Almada, e outra na Madeira. E o Brasil inaugurou-lhe uma terceira, no Corcovado, no Rio de Janeiro. É rei. Que mais é que Ele pode querer? Só pode estar satisfeito. Ou nada O contenta?

                 - A gente ri-se – comentou Fr. Marcos – mas isto que dizemos a rir afirmam-no convictamente a generalidade dos crentes e, pior, a tal dita hierarquia. Entre nós e pelo mundo fora, o que agrava tudo. Como é que não entendem que “o meu reino não é deste mundo” quer dizer que não é agora e não será nunca? É o reino do espírito, da vida interior a fermentar a fornada da vida exterior inteira em cada um e todos, a todos os níveis da rede comunitária e colectiva, sempre e para sempre. Não é um reino aparte, mas o íntimo de qualquer reino, individual ou colectivo, a alma dele a mover tudo em sintonia com o Espírito que do imo tudo inspirar e atrair e a todos nos conjugar num comum sentido de vida. Como é que isto é tão difícil de entender e tanto se deturpa, a ponto de ter derivado num reino secular? E com tentáculos pelo mundo inteiro! É não entender nada de nada.

                 - Quando a vida espiritual, a vivência e orientação a partir do imo, com o que mais fundo tocar o coração de cada qual, se confunde com uma materialização qualquer, pronto, eis as portas escancaradas para chegarmos a um Estado, a uma basílica, catedral, palácio, seja lá o que for... O Reino de Deus já está realizado, já acabou tudo. Consumou-se a História. Embora a História continue, mas eles não reparam. Pararam num Monte Tabor qualquer: “Que bom, Senhor, estar aqui! Vamos montar as tendas e nunca mais iremos para baixo.” Apesar de Jesus os mandar logo descer, a estes. Os daqui, há séculos que se recusam e não vão.

                 - Ena! Espere! – caí de repente em mim. – Então, quer dizer, é de acabar com o Estado do Vaticano, com o banco, entregar palácios, tesoiros, basílicas, catedrais, igrejas, sei lá que mais... às comunidades, aos países, desfazermo-nos das propriedades acumuladas... e ficar como? Com o imprescindível à vida que levarmos, ao projecto espiritual que quisermos fermentar no mundo? Estou a deduzir bem, não estou?

                 - Evidentemente – confirmou o meu Mestre, muito divertido.

                 - Isto é o que o Papa Francisco teria de fazer? Vai cair o Carmo e a Trindade!

                 - É o que ele anda fazendo. Abandonou o palácio e foi viver para a residência de St.ª Marta. E porquê? “Porque aquilo é grande demais para mim e muito solitário” – comentou ele. Para bom entendedor... – rematou Fr. Benedito.

                 - Mas é demais, é escaqueirar tudo! Quem é que consegue? Mesmo que tenha a coragem requerida, não irá ter força bastante – duvidei.

                 - Pois, se calhar, não. Mas é no que ele anda metido, poria as mãos no fogo em como é. E o poder do Espírito sabemos lá até onde irá. - E o Fr. Ramiro concluiu, mesmo ao jeito dele: - Um grande castelo de cartas pode cair ao chão com um sopro. E que é tudo aquilo senão um descomunal castelo de cartas, inteiramente vazio de qualquer vida interior? Como no caso de Jesus no Templo, não passa dum antro de ladrões. É só ver o banco, por exemplo, o do Vaticano. Uma ventania e tudo aquilo é varrido de vez.

 

 

                 Fátima – 4 de Julho de 2013

 

                 - Engraçado, é do que eu estava a falar – admirou-se o irmão porteiro. – Quando pedi alguma obra, alguma revista acerca da “igreja subterrânea” foi porque me falaram duma qualquer que santificou Judas Iscariotes, o enforcado que entregou Jesus por trinta dinheiros.

                 Falávamos na portaria onde lhe acabara de entregar alguma literatura relativa ao tema. Informara-o da nossa saída de ontem e da conversa, ao retornarmos.

                 - Mas que relação...? – comentei eu, perplexo.

                 - Então, Cristo-Rei... Os zelotas ganharam. Judas Iscariotes, o da seita armada que pela força pretendia expulsar os romanos, pode voltar, está perdoado e vitorioso, finalmente. Conseguiu. Naquele tempo, a estratégia de entregar Cristo ao Sinédrio não resultou no levantamento militar que ele pretenderia e, desgostoso, frustrado e arrependido, enforcou-se. Olha, agora finalmente entronizaram Jesus, foi cumprido o plano dele e dos zelotas de então. Que, ainda por cima, acabaram posteriormente exterminados. É muito curioso! As voltas que a História dá!

                 - Ah! Nunca tinha reparado. Mas é mesmo. Ele recusou a espada de Pedro no Jardim das Oliveiras, recusou Judas, o zelota, que o vendeu aos esbirros, foi rei dos judeus, na tabuleta da cruz, por escárnio e escarmentação dos povos sujeitos a Roma. E depois, por mais que Ele recuse, entronizam-no como Cristo-Rei! E são (continuam a ser) os discípulos dEle! Acolá foi apenas um (que se matou), agora são, pelos vistos, todos (ou alguns, com o beneplácito dos mais). E nenhum se mata, não é? – ironizei, divertido.

                 - Ao menos os da “igreja subterrânea” beatificam o Iscariotes por ele, embora involuntariamente, ter aberto a porta à sequência paixão-morte-ressurreição, a culminar nesta vitória final fantástica. E, como ele se arrependeu, só pode ser um santo que, mesmo ignorando-o, nos entregou o Ressuscitado e, com Ele, o caminho, finalmente, para todos o sermos. Foi o instrumento, às escuras, de Deus e de Jesus para consumar a descomunal Boa Nova, a gloriosa realidade do Além para a Humanidade inteira, doravante disponível.

                 - Mais uma vez, tudo ao invés daquilo. Pelos vistos, estes entenderam o que é que é o Reino, o teor de vida interior que leva à ressurreição, vai adubando a sementeira de cotio que culmina nela. Os zelotas, lá e cá, não compreenderam mesmo nada.

                 - E acabaram no extermínio. Não sei quando os daqui acabarão.

                 - No extermínio?! Oh, irmão! – fiz eu, fingindo grande escândalo. Ele deu uma gargalhada, ante a ambiguidade em que não reparara.

                 - Espero bem que não! – continuou,  bem disposto. – Mas o extermínio daquela postura era bom, trocada por uma espiritualidade que reordene, que espiritualize a vida secular inteira.

                 De repente reparei num pormenor muito significativo que me andara a escapar.

                 - Exacto. Ele fez o mesmo – murmurei para mim. – Isto é o máximo!

                 O irmão porteiro olhava-me, perplexo, à espera. Vi-lhe a cara de quem ficou às aranhas e desatei a rir.

                 - É uma niquice em que ninguém repara mas que, afinal, é duma importância extrema. Vê só: os zelotas não atingiram o fito deles e acabaram em nada, no cemitério do tempo. Mas Jesus não os combateu, nem condenou, nem rejeitou. Acolheu um como Apóstolo, até. Depois, olha bem, quando eles, por meio de Judas Iscariotes, tentam obrigá-Lo, ele acolhe a traição dele e oferta-lhes em troca, não o irrelevante Reino de Israel que eles pretendiam, mas a vitória da Humanidade sobre a morte. Aliás, mais que a imortalidade do espírito, a ressurreição, o poder de qualquer alma retomar a carne, manifestando-se num corpo glorioso que os limites da matéria, o espaço-tempo, já não dominam mais. Ele não os destrói, aos zelotas, recupera o ideal deles e eleva-o a proporções nunca vistas, perante as quais o que pretendiam perde o interesse por inteiro, de tão insignificante. Não entenderem isto é que levou aquele partido ao aniquilamento, uns anos depois.

                 - Tudo bem, e daí? – ele não compreendia o alcance.

                 - Daí que foi o mesmo que a Igreja dos mártires fez no princípio. A vitória, a autenticidade proveio-lhes deste pormenor que, afinal, muda o sentido de tudo: assumir o ideal doutrem. Só depois é que desatámos a matar os infiéis e então estragámos a Mensagem, degradando-a. E acabámos, de conquista em conquista, no Cristo-Rei: o reino, afinal, deste mundo. Desgraçado do Cristo que nem depois de morto, nem depois de ressuscitado deixa de aguentar tratos de polé.

                 - Ah, pois! Um rei bem alto, bem distante, bem entronizado. Numas alturas a que ninguém chega, com que nenhum outro rei pode rivalizar.

                 - É quase como quem diria: agora, que estás morto, quem manda somos nós. És rei e acabou! Queiras ou não queiras. Já não tens voto na matéria.

                 - O triunfalismo é tramado! – meditou, como para ele, o irmão porteiro. – Não fica nada de vida interior autêntica. No auto-elogio fecham-se os ouvidos ao aguilhão íntimo que tão frágil impele. Um nada e ficam surdos, já mais segredo nenhum é dali acolhido. Aliás, se triunfámos, que mais é requerido, já temos tudo, não é? Ouvir o quê, então?

                 - Lógico. Até porque, com o rei no trono, quem é que se atreve a ouvir-lhe os murmúrios? É uma falta de respeito. Imperdoável!

                 - E eis-nos reduzidos aos aparatos e aparências. Tudo oco por dentro.

                 - Aparatos e aparências, notas bem – confirmei eu.

                 Ficámos um instante parados, a olhar um para o outro. E eu arregalei os olhos, lembrando-me da frase do Papa ao escolher St.ª Marta, a vulgar residencial.

                 - Já viste a solidão dum tal rei? A que andam condenando Jesus? – perguntei-lhe.

                 - A que O condenariam, se pudessem. Felizmente não têm poder nenhum sobre Ele, não é? O Ressuscitado tem é uma infinita paciência, senão, que varridela!

                 - Pois, mas têm sobre o Papa. E é aquilo a que o condenam. Ele é a imagem de Jesus, para eles e para os fiéis. Conheces a desculpa que ele deu para recusar o palácio e optar pela pousada, com os outros todos que trabalham por lá? É que o palácio era grande demais e muito solitário.

                 - Ah, estou a apanhar o paralelo. O pedestal do Cristo-Rei é grande demais e a imagem, lá nas alturas, é muito solitária. Quer dizer...? – suspendeu, a olhar para mim.

                 - ...Quer dizer que o Papa Francisco recusa toda aquela alienação, não é rei nenhum, não tem trono nem pedestal. Vive no meio do povo a aventura dos desafios e angústias de cada jornada – parei, contido, meio encandeado. – Cada vez me surpreende mais. A gente escava um gesto, uma palavra dele e é como em Lourdes: brotam águas, torrentes de águas comuns mas com poder de cura. É mesmo muito curioso. É cada coincidência!

                 Foi a meditar nisto, meio aparvalhado, que voltei à biblioteca: este homem vai mesmo refundar a Igreja? Quanto mais mergulho nisto, mais o descubro em sintonia com o apelo último do Espírito. Que nem eu entendo bem mas parece vir-me a saltar da ponta do lápis. Quando ele pede “rezem por mim”, alguém entendeu para onde isto aponta, por quem e para quê estamos a rezar? Sinto-me esmagado, o horizonte é descomunal, ainda mais para o porte dum anão.

                 Grande Papa! Que é que andas a tramar com tanto retiro e discrição? Com tanta humildade e alegria, com a paz de quem entregou tudo e então “seja feita a tua vontade”, “eis aqui o escravo do Senhor”? A estratégia do minúsculo grão de mostarda: ninguém repara, ninguém vê e depois... Por mim, quando levanto a ponta do véu, não deixo de ficar quase sem palavras: há cada mundo mais inebriante por trás de cada fresta!

                 Quando trepei ao escadote para arrumar na prateleira adequada o derradeiro livro, dei comigo a interrogar-me: quem é que impôs, apesar de tudo, um Cristo-Rei sem ceptro nem coroa, até, aliás, sem trono (já que o pedestal o não é) e de braços abertos para o povo? Um rei de braços abertos à multidão?! Alguém deve ter tido um rebate de consciência qualquer e logrou encontrar eco para a estátua resultar aquela. Quero crer que no coração dos novos zelotas restou sempre um recanto algures, pelo menos, com um restinho de luz a bruxulear e que porventura ninguém lhe quis fechar os olhos. Daí aquele rei esquisito, só de túnica e de braços de acolhimento.

                 Talvez, Papa Francisco, tenhas, por mor disto, maior margem de acolhimento do que o meu ignaro cepticismo me permite adivinhar. Sei lá bem! As minhas vistas são curtas, que olho muito de baixo. Quem me dera, porém, que também aqui os factos me venham a espantar! Abri ao acaso a Bíblia que tenho sempre na mesa e, claro, (vejam só a coincidência!) caiu-me sob a vista: “O filho do homem não tem sequer uma pedra onde repousar a cabeça.” Obviamente que me evocou logo o outro versículo: “Quem quiser entrar no Reino de Deus largue tudo o que tem e siga-me.”

                 Pronto, estou num convento, é verdade, e nós gostamos particularmente disto, é correcto. E não ignoramos os malabarismos exegéticos que milenarmente vêm sendo feitos para não tomar aquilo à letra, como qualquer fundamentalismo extremado, mas que têm, em contrapartida, legitimado o extremo oposto do aparato, do luxo, da riqueza desbragada... para maior glória de Deus! Já que a Deus tudo é devido – é o enorme cinismo da tradição pervertida, sempre e sempre retomado, por mais que o denunciemos. E lá vêm os príncipes da Igreja a fruir de faustos principescos... mas é tudo por Deus, não haja confusão! É, no mínimo, burlesco.

                 Ora, isto é tão cómico que não resisto ao comentário do meu amigo Marista, uma vez, durante o nosso curso de Teologia: “Sabes, os espanhóis são tão religiosos, tão religiosos que até têm a pedra que Jesus não tinha onde repousar a cabeça!”

                 Isto apenas para denunciar uma interpretação bizarra que se infiltrou subrepticiamente, vem dominando subliminarmente tudo e tudo empurrando, conseguintemente, para um registo inteiramente inaceitável. É a que tende a olhar para a denúncia de Jesus de nem duma pedra dispor como se isto fora uma queixa. Não é, bem pelo contrário, é um programa: quem queira ser filho do homem, então nem uma pedra pode ter. Naquele tempo, como agora, como sempre. Não pode prender nem uma pedra a si nem prender-se a si a nenhuma pedra: livre, tem de estar livre, disponível para cumprir as impulsões do Espírito, usando como os passarinhos do que a natureza lhe providenciar, sem se adonar de nada nem se deixar adonar por nada nem por ninguém.

                 É viável viver isto no acúmulo de bens em que a Igreja institucional se tornou, ao correr dos milénios? Pois, parece que é o que o Papa Francisco anda a tentar, no meio da sumptuosidade vaticana, arredio e arredado para um canto minúsculo que apenas vale pelo calor humano que lá logram partilhar. O resto fica abandonado. É, no fim de contas, inútil. Foi um equívoco multissecular.

                 Adivinho que de facto nos teremos de livrar de tanta quinquilharia que nos pesa às costas. Não nos deve prender nem a devemos prender a nós. O Reino é feito doutra realidade cuja luz nos encandeia por dentro. Não são os brilhantes de fora, estes acorrentam.

                 O Papa Francisco anda a murmurá-lo, afinal. Alguém o entende?

 

 

                 Fátima – 5 de Julho de 2013

 

                 As nossas heranças. Há cada uma! Defender a tradição... É, afinal, o maior dos equívocos. Que tradição, no fim de contas? Basta reparar que, por tradição, também somos pecadores, e de que maneira! Os teólogos tendem a reivindicar que seja apenas a Tradição Apostólica. Que fazer, então, à Patrística, os grandes Padres da Igreja até ao séc. VIII? Apenas intérpretes daquela, os executores porventura mais fiéis, mas também pejados de inovamentos teóricos e práticos (basta pensar em St.º Agostinho)? Como discriminar?

                 Enfim, é tudo por demais complicado para a cabeça dum anão. Perguntas intermináveis, respostas meramente germinais. Quem me mandou a mim meter nisto?

                 Cogitava eu nestas querelas quando íamos da igreja, à hora de sexta, perambulando pelo claustro, num remanso mais ou menos orientado para o refeitório cuja cozinha já rescendia ao prândio. Nem reparei atrás de quem caminhava. Como nos mantemos ou calados ou falando em surdina, nunca ligaria a tal, não fora o tema murmurado me atingir em palavras soltas os ouvidos. Afinal ia seguindo, sem notar, o Fr. Marcos e o Fr. Benedito, entretidos no murmúrio, com o Fr. Ramiro ao lado, meio alheado. Trocavam ideias à roda do que me vinha a preocupar. Apurei as orelhas.

                 - ...E depois esta mania de dogmatizar tudo. Coisa mais disparatada! - perorava o Fr. Benedito, esbracejando, como de hábito. – Eu fiquei com a mesma perplexidade que a Alexandra Solnado em Um Voo Sensitivo quando, em Masada, posta a meditar, acolhe a ordem de encaminhar para a Luz os suicidas do combate heróico de há séculos.

                 - Vou querer lê-lo também – murmurou o Fr. Marcos. – Quando acabares, avisa. Temos de rever muita coisa. Agarrou-se-nos aos pés muita lama dos caminhos.

                 - Há que tempo andamos nós a meter no inferno os suicidas? A recusar-lhes um enterro cristão? E agora, inesperadamente, Jesus dá-lhe a ordem ao contrário. Mais importante ainda: ela vê-os voar para a Luz. Que é que os impedia, afinal? O maldito preconceito. Em vez de salvar andámos a condenar.

                 - Grande mandato, não há dúvida! Bendito cristianismo que é pau para toda a colher! – gracejou Fr. Marcos.

                 - É um pormenor muito curioso – interveio Fr. Ramiro. – A Alexandra não se enganou nem nada? As visões são quase sempre tão ambíguas!...

                 - Não – retomou o Fr. Benedito. – Até duvidou daquilo e, antes de encaminhar as almas, perguntou, para confirmar, já que os suicidas não tinham perdão.

                 - E daí? – interessou-se o Fr. Ramiro.

                 - A resposta foi curiosa e inesperada: os suicidas não têm problema em salvar-se, os mais renitentes são os egípcios mumificados, ficam há milénios presos aos cadáveres e recusam largá-los, dê por onde der. Dá para acreditar? E nós que nunca ligámos nada às múmias, nem porventura os cristãos coptas lá do Egipto! O problema do suicídio está muito mal colocado mas virou doutrina comum e, logo, a gerar regulamento cogente para o mundo inteiro. Como uma verdade de Fé. E pronto, sem mais rodeios, é uma asneira. É uma asneira!

                 - Curioso! – repetiu, meditabundo, Fr. Ramiro. – Até onde remontará?

                 - Foi, em rigor, o que me perguntei – retomou o Fr. Benedito. – Não me recordo de alguma vez ter encontrado qualquer referência a isto em lado nenhum. Mas andei a vasculhar pelos índices da História, eu podia não ter ligado e aquilo ter-me corrido à margem. E nada, nada. Evidentemente que é uma questão marginal, quem se vai agora preocupar com isto, não é? Mas para as almas dos suicidas, não, nem que fora apenas uma. Nós recusámos orar por eles, mais, impedimos as próprias famílias de o fazerem. “Dai-lhes, Senhor, o eterno descanso entre o resplendor da luz perpétua “ – é para todos menos para o suicida. Postura oficial. Certo?

                 - Certo – confirmaram os outros dois. Todos conhecíamos isto, até eu.

                 - Em nome de quem? Claro que operámos sempre em nome de Jesus Cristo. Mas se ele agora, afinal, rejeita isto, como é que é? Evidentemente que o rejeitou permanentemente. Então em nome de quem o andamos há milénios a fazer? Nem vos passa pela cabeça!

                 - Ah, chegaste lá! Conseguiste, afinal! – exclamaram em uníssono ambos os interlocutores. Tinham parado à esquina do claustro e formaram um pequeno círculo em que eu me integrei, de orelhas bem arrebitadas.

                 - Quem, finalmente? – atrevi-me a insistir. Cada vez descubro revelações mais espantosas.

                 - O grande santo, o grande orago, o grande doutor da Igreja... – e o Fr. Benedito suspendeu teatralmente a palavra, por momentos, largando depois a bomba - ...é nem mais nem menos que Platão!

                 E, perante o nosso espanto embasbacado:

                 - Sim, sim. Um pagão politeísta, morto quinhentos anos antes de Cristo.

                 - Tens a certeza?! Onde? – questionaram, incrédulos, os outros dois.

                 - Ora, - ironizou Fr. Benedito – foi inspirado pelo Espírito Santo de modo mais infalível que o Papa. De certeza, senão a Igreja não teria feito tal coisa, não é verdade?

                 - Deixa-te de gozo, em que texto desencantaste isso em Platão? – urgia Fr. Marcos, deveras empolgado.

                 - No Ménon. E mais: é uma página apenas no diálogo todo. Transcrita pelos séculos e milénios, quase sem lhe mudarem uma palavra. Apenas os deuses se tornaram no Deus. Uma profecia dogmática, como a de qualquer outro profeta. Intocável. Palavra de Deus, ámen. Aquilo é que foi mesmo inspiração, por pouco não parava no cânone da Bíblia... – rematou, com sibilina ironia.

                 - Tenho de ir lê-lo - afirmou Fr. Marcos.

                 - E com todo o idealismo platónico, andamos a abandonar os suicidas no inferno. Muito coerente, não há dúvida – comentou o Fr. Ramiro, sarcástico.

                 - Ora, ora! – brincou Fr. Benedito. – Por respeitinho aos deuses, perdão, ao Deus. Não estão a ver? Se um pagão tem tanto respeito, como é que a Igreja pode ter menos? Não pode! Logo, toca de enfiar tudo nas profundas do inferno, que a gente cá respeita muito a sério, nem que seja contra a vontade do Deus respeitado. Ele é bonzinho, não se quer impor, mas a gente compreende-O muito bem e não Lhe quer ficar atrás. Portanto, ofertamos-Lhe um inferno cheio de suicidas, aqueles malditos desrespeitadores da vontade divina!

                 - Haja paciência! – desabafou o Fr. Marcos.

                 - O nosso poder de asnear, enquanto Igreja, é mesmo infinito, valha-nos Deus! – comentou o Fr. Ramiro. – Maldito triunfalismo! Deita-nos as defesas abaixo, deixamos de estar vigilantes e é logo cada asneira!

                 - Pergunto-me como é que ninguém se questionou. Eu também o não fiz, valha a verdade, sou tão falho como os mais. – E Fr. Marcos tinha um ar meditativo. – Será que Jesus faria aquilo, abandonaria o suicida? Como é isto imaginável, se nunca abandona ninguém? No meu íntimo, é o procedimento que sinto, que julgo como correcto? Os membros da comunidade sentem o mesmo ou não? Como é possível que ninguém tenha feito estas perguntas durante séculos e séculos? Tudo por mor das vénias a Platão! Como é que toda a gente se aboliu perante ele? Isto é cristão? Não. Isto é seguidismo, isto é a carneirada...

                 - Pois é, meu irmão na desgraça, pois é. E andamos todos na mesma carruagem – sublinhou Fr. Ramiro. – Mil anos com Platão a puxar, baptizado por St.º Agostinho no séc.V, e depois, com S. Tomás de Aquino a baptizar Aristóteles no séc. XIII, a hegemonia gradual deste até hoje. Que é feito de Cristo, no meio de tudo? Não é filósofo nem teólogo, foi ficando mais ou menos na gaveta. Quem se lembra de perguntar como é que Ele agiria? Quem se mete na peugada dEle? Ainda para mais, Ele não definiu nenhum compêndio moral nem código de conduta.

                 - Pois isto é que é o pior: é que é em tudo – rematou Fr. Marcos. – Ultimamente é o que mais me vem afligindo. Como é que ninguém perguntou porque é que Jesus não deixou nenhum código moral? Pelos vistos devem ter julgado que Ele o terá esquecido ou não teve tempo.

                 - Bem, cortaram-lhe as asas muito cedo. Três anitos não podiam dar para muito... – atrevi-me eu a comentar.

                 - Não podiam dar?! Deram a ressurreição! – exclamou ele, excitado. – Que mais, então que mais? Há um erro crónico cometido neste domínio!

                 - Sou todo ouvidos – interveio o Fr. Benedito.

                 - É isto: Jesus não deixou código moral nenhum porque não deve existir nenhum nunca, definitivamente – Fr. Marcos quase perdia o controlo da voz na surdina.

                 E, perante o nosso ar espantado:

                 - Calma, eu explico. Entendendo por moral as regras de comportamento, os usos e costumes, melhor, os bons costumes, por um lado, e, por outro, entendendo por ética a escolha ponderada, caso a caso, de qual o comportamento mais adequado aos envolvidos, no caminho da plenitude, reparem, o que importa é isto, não aquilo. É assim ou não é? – e olhou para nós.

                 - Ah, estou a compreender – concluiu o Fr. Ramiro. – Jesus quer o óptimo ético, pela escolha lúcida que optimize cada conjuntura, não o enfileiramento do rebanho, tudo na mesma tropeada, seja o melhor ou não a extrair dos eventos. Quanto a mim, perfeitamente de acordo.

                 - Correcto. E, obviamente, isto implica que não há código moral – reflectiu Fr. Benedito. – A Igreja, todavia, não faz outra coisa, não é? E nunca fez.

                 - Aí é que bate o ponto – retomou o Fr. Marcos. – Jesus também conhecia o código dos bons costumes, da moral, e ora lhe obedeceu, ora rompeu com ele, segundo o alcance a optimizar em cada caso. Não fora isto, nunca teria sido morto. A moral é conformista, por norma.

                 - Mas alguma função há-de ter... – atrevi-me a argumentar.

                 - Exactamente. É propedêutica: enquanto se não tiver melhor caminho, enquanto a sensibilidade não for tão apurada que logre ponderar as variáveis de cada caso, então o mais prudente é ir pela norma. Tem perdas, mas as menores. O maior ganho é quando por aqui já não é de seguir porque logramos escolher o óptimo naquela conjuntura. Parece-me óbvio que tem de ser deste modo... – e o Fr. Marcos olhou-nos, hesitante, como se apenas então reparava que estávamos ali.

                 - A prática da Igreja anda muito longe disto. Aliás, historicamente sempre desconfiou da escolha ética, nos termos em que a defines – meditou o Fr. Ramiro. – Seguro, seguro, apenas o guia do Magistério, o director espiritual, o hierarca no pelouro. Assim, como generalizar a escolha individual esclarecida? Nem sequer há nunca dois casos iguais, quando atingimos um tal nível de exigência...

                 - Mas este é o funcionamento de Jesus... – objecta Fr. Marcos.

                 - Julgo que tens razão. Quando é que a Igreja aí chegará? Nunca mais se enredaria nos dilemas em que perde o tempo a quebrar a cabeça. – E o Fr. Benedito desatou a listar: – Aborto ou não? Pílula ou não? Casamento homossexual ou não? Prostituição legal ou não? Droga ou não? Sacerdotizas ou não? Divórcio ou não? Para já não falar em casamento dos padres ou não – dado que aqui até viola a Tradição Apostólica, uma vez que o próprio S. Pedro era casado. Se o próprio Papa o era, como é que se deixou ir isto a ponto de constituir um problema? O Espírito tem de andar muito arredado de tanta, tanta Igreja institucional!

                 - Mas então não diria nada, não tomaria posição?... – perguntei, perplexo.

                 - Dizer, diria, mas não, não tomaria posição – era outra vez o Fr. Marcos, com as distinções infinitesimais dele. – Explicaria o que, por norma, se lhe antolha a melhor resposta, o melhor comportamento, tendencialmente, qual lhe parece o perfil mais equilibrado dum bom costume. A seguir apelaria à mais funda consciência de cada um para optar pelo que, em concreto, se lhe imponha como o óptimo atingível para tudo e todos os envolvidos, nem que seja a violação por ultrapassamento de quanto anteriormente tiver sido referido. Quando a Igreja fizer isto, então, sim, estará a fazer germinar cristãos adultos, não os leigos teleguiados que hoje temos, rebanho a marcar passo.

                 - Pois, Jesus Cristo não faria assim... – ponderou Fr. Ramiro.

                 - Pois não, Jesus Cristo não era assim – rematou Fr. Benedito.

 

 

                 Fátima – 6 de Julho de 2013

 

                 Andei o dia inteiro à coca de Fr. Marcos, o nosso mestre de Teologia Moral. A conversa de ontem deixou-me curioso, à espera de mais. A distinção que ele introduziu é duma extrema pertinência e finalmente entendi porque a Bíblia não contém nenhum código moral, apenas as indicações genéricas dos Dez Mandamentos, por um lado, e das Bem-Aventuranças, por outro, com o resumo, ainda mais abstracto, da lei do amor: ama a Deus sobre tudo e aos outros como a ti próprio. Aquela ausência é tanto mais gritante quanto é gritante a presença desconcertante destas. Agora isto faz todo o sentido: Deus, Jesus quer ética, não quer moral. Quer o coração de cada um a escolher, com toda a luz que do íntimo lhe brotar e dos mais o atinja, não a marcha ritmada dos mercenários, meros números regidos pela batuta do general.

                 Porquê procurá-lo? Por mor daquela frase perdida no meio das reflexões: a moral é conformista. Isto há-de ter muito que se lhe diga. Será mesmo? Então porque e como muda? Por outro lado, ser conformista é mau? Sempre, por vezes, como distinguir?

                 As perguntas moem-me o juízo e a verdade é que esta minha cachimónia nunca chega às respostas. Também nasceu anã como eu, porventura, para nunca atingir aquele lado. Quando alguém abre a fresta, fico maravilhado com a paisagem, mas a verdade é que eu nunca sei abri-la por minhas mãos. Sou de discernimento tolhido como se me tolheu o corpo. Não tenho, portanto, outra alternativa: andei o dia inteiro à coca do Fr. Marcos.

                 Já passava muito da hora de nona, estava a ver que chegávamos a vésperas e ele sem vir. Eu sabia que tinha hoje o dia ocupado com trabalho fora, ligado ali aos cursos e aos alunos. Anda tudo em exames finais e avaliações, trabalhos e debates e o mais que a tudo isto se liga. Andei vigilante como sentinela, hora a hora. Ainda não era crepúsculo mas já o sol declinara muito quando chegou. Vinha esbaforido de calor (andamos a estorricar acima dos 40º) e com ar muito fatigado. Temi que não estivesse para me aturar, de tanta exaustão. Foi ao contrário.

                 - Ora ainda bem, irmão Ambrosino. Era mesmo o que me vinha a apetecer, para me distrair das freimas e descontrair um bocado. Deixe-me apenas arrefecer e mudar-me, que vou ter consigo à biblioteca, é o lugar mais fresco. Isto hoje está uma caloraça que mal conseguimos respirar. Que suão!

                 Aguardei-o no recanto mais abrigado. O calor, por estes dias, é inevitável, seja lá onde for. Então aqui, na Serra de Aire, a Cova da Iria faz um recôncavo, parece aquecer como um caldeirão. O convento é um pouco afastado, mas é quase um fogo de campo, o bafo chega aqui. Nas invernias é bom, mas hoje...

                 Quando se repoltreou na cadeira, pu-lo a par das minhas perguntas.

                 - É inevitável, irmão, a moral é sempre conformista e tem de o ser. Repare, o termo deriva de mos que em latim quer dizer costume, o que é de uso comum. Moral, portanto, significa o sistema dos usos e costumes. Qualquer comportamento não conformista é o que entrou em ruptura com o sistema, não é de uso, não é costume. Logo, fica de fora da teia da moral.

                 - Então será ético – comentei.

                 - Não, não. Tanto pode sê-lo como ser imoral. Até pode ser indiferente, o que referimos como amoral. Para ser ético tem de ser escolha do íntimo, lúcida, ponderada responsavelmente e conferida com a comunidade envolvente e com a Igreja. É muito exigente o caminho alternativo. Tão exigente que levou Cristo à cruz, está a ver?

                 - Mas então é praticamente inexequível. Levaria qualquer um ao esgotamento. Que stresse! Jesus não empurrou ninguém até um estado destes. Nem o quererá.

                 - Pois não, pois não. É justamente por causa disto que existe a moral: a rede de usos e costumes é que nos sustenta. Mal de nós se tivéssemos de partir do zero, todos os dias a reinventar tudo. Já estaríamos mortos de exauridos.

                 - Está a entender a minha dificuldade? Jesus não quer a moral, quer a ética mas a ética é inexequível. Então em que é que ficamos? Afinal, Jesus quer a moral e mantém-na, para a nossa sobrevivência. É deveras confuso, tem de concordar.

                 - Nem por isso, creio eu. Não vejo nunca Cristo stressado nem consta que sofresse qualquer depressão por ficar esgotado, não é? Todavia, de certeza que viveu a vida inteira com ética e da mais exigente. Sublevou de tal maneira a moral que não lhe sobreviveu mais que três anos, na vida pública. Foi uma bomba de rupturas que acabou por o matar.

                 - Mas como é que se actua, como operamos tal coisa? Damos uma no cravo, outra na ferradura? Hoje sou moral, amanhã sou ético?

                 - Ah, ah, ah! – gargalhou Fr. Marcos, muito alegre. – Havia de ser mesmo cómico. Repare, sabemos pouco da infância de Jesus. Em contrapartida, verificamos que não foi pelo que ocorreu durante ela que foi morto, certo?

                 - Claro. E daí?

                 - Lembra-se do episódio dEle com os doutores do Templo? Como é que Ele conjugou os dois modos de abordagem, o moral e o ético?

                 - Bem, se estou a compreender, pôs o moral de lado e optou pelo ético, ficando na conversa com os doutores em vez de ir ter com os pais que andaram aflitos três dias à procura dEle, julgando-O perdido. É isto?

                 - Certo. E qual foi a reacção dos pais?

                 - Maria criticou-O duramente por Ele lhes ter pregado tal partida.

                 - E a resposta?

                 - Qualquer coisa como: porque vos afligis, não sabeis que tenho de tratar das coisas de meu Pai?

                 - E depois?

                 - Depois?! Depois mais nada. Há mais?

                 - Não, justamente. Não há mais nada. Ficou tudo esclarecido e resolvido. O modelo é clarinho como água.

                 - Pode ser, mas eu devo precisar de óculos porque não vejo nada. Qual modelo?

                 - O da conjunção da moral com a ética.

                 - Ora, pôs de lado a moral e escolheu a ética. Mas já vimos que não...

                 - Qual pôs de lado, qual carapuça! Não pôs, não senhor! – interrompeu-me, abrupto.

                 - Então...?

                 - Antes de a pôr de lado estava a agir em conformidade com quê, hein?

                 - Ah! Pois, era costume irem ao Templo com familiares e vizinhos. E foi o que fizeram. De acordo. Obedeceram à moral até àquele momento.

                 - Ora bem! E porque é que não continuou com o comportamento moral?

                 - Porque teve de tratar das coisas do Pai. O. K., já compreendi. Vamos com a moral até ao momento em que nos surge uma exigência do Espírito que a torna incompatível e então, em consciência, optamos pela atitude ética que responde ao que Deus, na circunstância, requer. É isto?

                 - Perfeito. Mas como evitar a arbitrariedade, a decisão aleatória?

                 - Ausculto-me no íntimo, verifico para onde me empurra o coração e a consciência...

                 - E podes cair no maior disparate, numa alucinação pegada, com a cabeça na lua.

                 - Está bem, tenho sempre de conferir-me com o meu ambiente, a comunidade mais íntima, até à mais alargada, os valores da cultura, a firmar-me no meu salto.

                 - E onde se encontra isso no episódio do Templo?

                 - Não estou a ver. Ele fica com os doutores... Aliás, como criança, não é pedir demais que tenha em conta tanta ponderação?

                 - Ah, mas é que ela está lá, não directamente mas claramente sugerida. Aliás, implicada, o que é definitivamente mais seguro.

                 - Porque é que me faz isto? Sabe que eu sou cegueta...

                 - Ai não é, não. Como é que Ele responde a Maria e resolve tudo? Ainda agora o repetiu.

                 - Espere. Pois claro. “Não sabeis...?” Exactamente, eles sabiam. Certamente o haviam esquecido com a aflição da perda e da procura. Logo, isto era tema concertado e pacífico entre eles. Por isso termina tudo: quando eles abrem os olhos, caem em si. A escolha ética está conforme, apesar do burburinho. Fugiu à norma em nome dum bem maior, a vontade do Pai. E depois tudo retorna ao mesmo. Regressam, em conformidade com o costume, conforme a moral. Resumi bem?

                 - Evidentemente. Mas falta um pormenor. A moral, quando vivida daquela maneira, é mesmo à margem da ética? É mesmo por uso e costume, é por rotina? Maria vai com as outras? Ou, desde que intervém a escolha ética, tudo isto muda de estatuto?

                 - Ai, Fr. Marcos, põe-me a cabeça em água. Não chega aquilo?

                 - Não, não chega. Mas eu facilito-lhe a vida. Como é que dá por um apelo do Espírito no meio da rede de comportamentos morais? Seguindo no meio da tropeada do rebanho para onde quer que ele vá? Sem pensar sequer?

                 - Ah, não, tem de se estar atento, senão a rotina leva tudo de cambulhada. Aqui é mesmo “vigiai e orai, que não sabeis nem o dia nem a hora”.

                 - Pronto. E com isto julgo que resolveu o problema da lenta mudança da moral tempos fora e região a região. Se jamais houvera transgressões, seria fixa para a eternidade. A escolha ética é que renova e revitaliza tudo, inaugura o porvir e mergulha no imo até à Infinidade. Ela é o porta-voz de Deus, Jesus só por ela pode ir passando, secularizando mais e mais o Espírito mundo além.

                 De repente fixei-o, altamente preocupado:

                 - Mas então a Igreja... passa o tempo a referir rumos morais, até contra tudo e contra todos... Aprisiona toda a gente ali!

                 - Pois é. Desviámo-nos e muito. Aquele era um primeiro passo que até pode nem ser dado: Jesus e a Bíblia inteira nunca o fizeram, deixaram os usos e costumes irem evoluindo por si. Já vimos como, não é? Os profetas foram-se batendo, um atrás doutro, por escolhas éticas que melhorassem a rotina da moral instalada. Embora perseguidos e mortos, a verdade é que a rede costumeira foi sempre mudando. E continua, claro, em todo o mundo, mais lenta ou mais acelerada.

                 - Até aí, diria que tudo bem. O erro vem a seguir, não é? Mas como evitá-lo? O Igreja não pode definir a escolha ética, por definição é pessoal, porventura irrepetível. Como é que se pode fazer isto? Ou não tem saída?

                 - Tem, tem, mas é outra. A fronteira é esta: a Igreja deve estimular, desejar e aprovar toda a escolha ética que quenquer entenda em consciência fazer, tenha ela o conteúdo que tiver, transgrida o que transgredir; quanto a este, ao conteúdo, é matéria estritamente remetida a Deus, intocável em absoluto de nosso lado. Aqui é que se aplica com rigorosa propriedade a ordem: “Não julgueis para não serdes julgados”. Ninguém tem o direito de pronunciar-se sobre o juízo de consciência doutrem: tem de ser entregue em absoluto a Deus, é da intimidade entre o Espírito e uma qualquer alma, onde ninguém de fora logra deveras entrar. Logo, se o fizer, violará sempre outrem e, nele, o projecto de Deus, seja ele qual for. Ora, este é o pecado sistemático da Igreja neste domínio.

                 - E viola mesmo, como nos suicidas?

                 - Ora, se fossem apenas estes! Ainda hoje um pároco de Lisboa recusou celebrar missa fúnebre mais o ritual do enterro por um homossexual que havia casado com outro, agora viúvo. Ambos cristãos católicos que decidiram ir por ali. Em vez de acolher a escolha deles, como deveria (no caso optar entre duas morais contraditórias, a da Igreja e a do País legal), não, puniu-os porque deveriam ter obedecido à moral eclesiástica. É não entender nada do que está em causa. Deus é que pode julgar, nós não, nem individual nem institucionalmente. Nós devemos é querer indivíduos maduros, responsáveis, ponderados, capazes de decidir e escolher. Termina aqui a nossa intervenção e o nosso aplauso. O mais transcende-nos. Doutro modo andaremos sempre a matar os profetas, dum modo ou doutro. E a matar Jesus, o ressuscitado, pela mesma via. É uma tristeza!

                 - Estou agora a lembrar-me: recusamos os sacramentos aos divorciados recasados, aos que vivem em mancebia...

                 - E poderia continuar a lista. Quantos recusam absolver a mulher que tome a pílula? Ou o que vê o espírito dos mortos? A punição da mancebia chega a ser hilariante: é que os amancebados não cumpriram o ritual e não assinaram os papéis. Quer dizer, se os chineses não houveram inventado o papel, todos os casais estariam no inferno. Logo, os chineses são os verdadeiros salvadores da Humanidade, uma vez que todos nascemos de casais, doutro modo condenados, e o verdadeiro grande sacramento é o papel, afinal de contas! Às tantas o Papa ainda mora em Pequim e nós temos é para aqui um sucedâneo qualquer e nunca reparámos...

                 Evidentemente, desatámos à gargalhada com semelhante disparate.

                 - Mas como é que é possível um desvio destes, Fr. Marcos? Tudo parece tão claro, tão simples... E depois...

                 - E depois, olhe, é o triunfalismo, dirão uns, à maneira de o povo entender. É o fisicalismo, dirão outros, a falar mais caro para teólogo entender. É a hipóstase, ditarão caríssimo da teologia para a filosofia, para ninguém entender, senão algum raro iniciado. Trocado por miúdos, convencemo-nos de que já temos o Ressuscitado e, portanto, a verdade absoluta. Logo, tudo já foi consumado, não é preciso fazer mais nada. Enquanto aguardamos neste Tabor, o que importa é o regabofe, que depois, no Além já previamente garantido, a farra ainda vai ser melhor.

                 - Que estranha convicção, inquina tudo!

                 - A ressurreição deixou de ser um projecto, um itinerário de vida, dum ser em construção rumo à plenitude, passou a ser tomada como propriedade ao dispor, gratuita, ainda por cima inamovível (ninguém tem poder de acabar com ela, não é?). E é uma propriedade da Igreja, vejam só! Isto é que é poder a sério! E doravante a Igreja distribui-a como muito bem lhe der na veneta, já que é a fiel depositária dela. E eis como o depósito da fé redundou nesta aberração. Tudo ficou coisificado. Não há interioridade nenhuma, nem a lógica de semente que tem de crescer ao infinito, em todos os tempos, em todos os lugares, até à consumação final em plenitude, a Parusia. Só que esta, para aqueles, parece que já ocorreu. É a realidade física: o cientismo ganhou. Não existe mais nada.

                 - Mas então, mas então... – gaguejei, pela inesperada reviravolta.

                 - Mas então, não tenha medo, estes pendores da Igreja são absoluta e totalmente ateus. É verdade. Se calhar, os verdadeiros e definitivos ateus que existem. Os outros, ao menos, ainda andam à procura. Estes, não, já têm tudo. Procurar o quê? Não é? Só quem sente falta... estes, não, estão mais que cheios.

                 - E a Igreja é isto?! – espantei-me.

                 - Ah, não! A Igreja também é isto. E não é só porque o Corpo místico de Cristo (que ela é sempre) não tem nada a ver com tais maleitas, é que ela igualmente incarna a autenticidade do Espírito numa infinidade de pessoas, obras, instituições, organismos, sacerdotes e pontífices que nunca perderam o norte e permanentemente procuram reconduzir a barca desviada ao rumo correcto. O diabo e o bom Deus andam sempre de braço dado no tombadilho, acredite.

                 - E o Papa alinhará nestas reconversões?

                 - Lá que o quer, quer. Até onde entende? Sei lá bem! Mas, por outro lado, que quer entender, tudo indica que sim. Até onde estará disposto a ir? Veremos. Como ele não vai muito em teorias mas bem mais em atitudes, qualquer dia um gesto aparentemente aleatório e muito inocente acaba por ter por trás tudo isto a fermentar. Vai ver!

 

 

                 Fátima – 7 de Julho de 2013

 

                 Hoje participou na nossa missa um grupo de leigos extremamente curioso. Raramente cá vêm, já são de idade, mas fizeram Teologia há meio século atrás, nos ardores dos anos 60, em pleno deslumbramento do Concílio Vaticano II. Agora são reformados, uns, antigos professores, outros, juristas, até um economista... Nunca aparecem exactamente os mesmos, mas mantiveram laços entre si do tempo de universitários e acabam, de vez em quando, nesta como que romaria de saudade. Têm sempre temas de diálogo muito interessantes, para não dizer importantes.

                 Reservam lugar num hotel, cativam um espaço de convívio apenas para eles e vêm-nos aqui buscar, aos que dentre nós estiverem disponíveis e empenhados, para vivermos o dia com o grupo, trocando ideias sobre as temáticas mais variadas. Não há nada de rígido, têm permanentemente uns lemas geradores a despoletar a partilha de modelos, sensibilidades e valores e depois é ao sabor do imaginário e ao gosto de cada um. O divertido é que há constantemente matéria para horas e horas e ninguém se fatiga nem repete. São encontros muito saborosos, partilham amizades e sonhos, solidariedades e utopias, festas e revoluções. Com eles é que eu vejo ali ao vivo o fermento a levedar a fornada, qualquer que seja o campo, da Fé à teologia e filosofia, da economia às doenças, da entreajuda à política, enfim, corre por ali a vida em todos os domínios, na busca de autenticidade, espontaneamente. Eu diria, isto é que é uma pequena igreja, inter-familiar (já que são quase todos avós, em vários núcleos), partilhando o pão e o vinho do Espírito que germina pelo mundo além. Lembram-me aquelas que lemos nas Epístolas de S. Paulo e nos Actos dos Apóstolos. Um retorno muito espontâneo às raízes, não programado por ninguém.

                 Hoje principiaram por uma diatribe dum grupo fanático de Fátima que fez correr na Internet uma petição para que o fenómeno seja propriedade exclusiva dos católicos, dado que constatam estar a haver indícios de vários aproveitamentos alheios, que nada têm a ver connosco.

                 - Ora cá está, em plena era do ecumenismo, uma atitude deveras exemplar. Após reunidas as tropas, devemos ter depois a proclamação duma nova cruzada contra os infiéis – ironizou o Dr. Luís, um antigo Delegado do Ministério Público reformado que nunca quis ser juiz.

                 - Mas teve algum eco? Subscreveu muita gente a petição, foi? – era o Dr. Costa, o filósofo que permanentemente recusou tal designação, retrucando logo: “Não, sou professor de Filosofia” (mas haviam de ouvi-lo nalgumas tiradas espectaculares, que logo entenderiam qual o apodo que melhor lhe conviria!).

                 - Ora, meia dúzia de cavaleiros medievais – ironizou a Prof. Jovita, investigadora universitária em fim de carreira – que bem queriam fundar um movimento a partir dali, não sei para quê, se calhar para terçar armas. Não deu em nada, felizmente. Ou ainda iríamos ver o recinto diante da basílica transformado em arena de torneios.

                 - Olha, se calhar era capaz de atrair outras multidões de turistas, nos intervalos, um novo folclore – satirizou o Dr. Correia, um economista ainda no activo, numa multinacional. – Gorou-se uma oportunidade de novos negócios. Se calhar era o que o grupo pretendia, ao convocar às armas para manter o monopólio.

                 - O que me espanta – interveio o Fr. Benedito, sempre pronto para acolher este tipo de grupos – é que se tenha gorado tão rapidamente. Depois de tantos séculos de Cruzadas e de Inquisição, culminando com o exclusivo da Igreja Católica, por proibição da entrada doutras religiões em Portugal, aquilo é uma melhoria de vulto.

                 - Ainda conseguiram chegar ao noticiário da televisão, não eram tão inermes como isso – anotou o Dr. Luís. – Mas morreu por aí. Pelo menos, não deram mais sinal de vida, que tenhamos conhecimento.

                 - Ora, puseram-nos na ordem – comentou o Fr. Nardo que hoje nos acompanhou. – É curiosa a reviravolta disto. Queriam avaramente apropriar-se dum evento que, ainda por cima, é duma infantilidade atroz e duma religiosidade de miséria. Ali não há nada de espiritualidade íntima, profundidade nenhuma. Aquelas mensagens até eu era capaz de as ditar. São confrangedoramente básicas. Queriam ficar com aquilo para quê? Para transformar o recinto num enorme parque de estacionamento? – Muito gosta ele de repetir isto! - Se calhar dava-lhes lucro, com a dificuldade que há de arrumar as viaturas.

                 Sorriram todos ao comentário jocoso dele.

                 - A inversão da atitude evangélica é que para mim é chocante: em vez de partilhar, aferrolhar. E, depois de aferrolhar, defender. – O Fr. Benedito fez uma pausa, meditabundo. – Não é que não tenham, infelizmente, História além, uma infinidade de conjunturas paralelas de que se alimentarem. As piores já referiram. Mas dá que pensar. Ainda hoje há quem opere, de boa fé, deste modo. Que vida interior terão?

                 - Ora, as de mata-moiros, então! – exclamou, humoristicamente, Fr. Nardo. – E já tens muita sorte em não teres, ali à entrada da basílica, dois guardas suíços, como na do Vaticano.

                 - Quanto a mim, é a lógica do depósito da Fé – tomou a palavra o filósofo. – Se fazes um depósito, a seguir tens de o defender. Ninguém pergunta sequer o que é que o depósito requer, no conteúdo dele. Podem perfeitamente ignorá-lo. Aliás, qualquer tesoiro finda mais bem defendido se os guardas ignorarem o que contém, que então não sofrem a tentação de o assaltar, por sua vez.

                 - Mas que interessante! - interveio a Prof. Jovita. – É uma curiosa interpretação do culto da ignorância, diria do obscurantismo até, que durante séculos a Igreja acarinhou para toda a comunidade crente. O Índex de livros proibidos e o latim garantiram que os fiéis desconheceriam de facto, séculos e séculos, de que é que constaria em concreto o tal dito tesoiro da fé. Então defendê-lo-iam, cuidavam eles, inteiramente ignaros do que andariam a defender.

                 - Bem, papagueavam o catecismo, ao menos do Concílio de Trento para cá, desde o séc. XVII – fez o economista. – De facto, antes, nem este negócio havia. E os ignorantes davam muito jeito para manter o clero de barriga cheia, sem suspeitarem que aquilo nada tinha a ver com Evangelho nenhum. Os protestantes tramaram a boa vida.

                 - Nem agora os crentes suspeitam e continuam tão ignorantes como antigamente - retomou o Fr. Nardo. – Papagueiam, como referiu, e é verdade. Que é que adianta decorar um catecismo? É um rosário de fórmulas mágicas que nenhuma criança entende deveras (nem pode entender, tão pequenitos são), mas que tem o condão de escancarar as portas do céu. Ora, se a gente tem aqui em Fátima uma cancela privativa que nos facilita a entrada no Reino, vamos deixá-la roubar? Não. Toca a cerrar fileiras, a defender tão maravilhoso privilégio. De espantar é, de facto, não haver mais nesta milícia. Que lá bem ignaros, duma espiritualidade (se é que se lhe pode chamar isto) de miséria, é o que confirmamos todos os dias na multidão de papalvos que aqui vêm comprar milagres a quilómetros de sofrimento ou por angústias a quilo. Evidentemente que estão de boa fé e Deus não pode deixar de ouvi-los. São crianças bem adultas e até velhas que perderam a vida enganadas por uma Igreja de fórmulas e ritos dessorados. Têm as vozes bem de cana rachada, por mais que exteriormente os cânticos lhes corram afinados.

                 - Quem lucra com isto? – tornou o economista.

                 - A estrutura eclesiástica que continua praticamente tão parasitária como sempre – respondeu-lhe o Fr. Benedito. – Até S. Paulo, que legitimou que viva do altar quem para o altar vive, trabalhou, afinal, nas artes de tecelão, para se manter sem depender de ninguém. Mas eu sou suspeito, que as ordens religiosas sempre historicamente alertaram para isto, embora tenham caído na tentação muitas vezes.

                 Calámo-nos todos por momentos, a meditar naquilo. Os mercenários do monopólio de Fátima... Uma aberração, na perspectiva duma espiritualidade minimamente autêntica, alimentada nas inspirações do íntimo. Mas, por outro lado, toda uma lógica de alienação bem coerente.

                 - Há nisto uma outra vertente que me aflige muito mais – retomou o Dr. Luís. – Não é apenas entesoirar e depois defender. É também constituir tudo e todos os mais como inimigos de que urge defender-nos ou, porventura, que teremos de atacar.

                 - E aí temos o fim de qualquer ecumenismo – rematou o Dr. Costa, na lógica do filósofo. – Mesmo sem ser preciso chegar à guerra. Quando rotulamos o adversário, acabou o diálogo, morto e enterrado. Aliás, não entendo porque aqui se caminha tão lentamente. O Exército Azul, dos Cristãos Ortodoxos, tem cá instalações e comunidade, por exemplo, e é como se não existira. Há quantos decénios! Transitam por cá crentes de todos os horizontes e religiões e são olimpicamente ignorados.

                 - Não, não – cortou o Fr. Nardo, muito irónico. – São todos muito bem acolhidos. Em instalações católicas, nos rituais católicos, nas cerimónias católicas, até nas casas de acolhimento de congregações católicas. Somos todos hospitaleiros, desde que na marca católica. É o ecumenismo do “filho, queiras ou não queiras, tens de ser bombeiro voluntário!” Alguém viu outrem maltratado? Não... Os bombeiros sempre trataram bem toda a gente.

                 - Isto faz-me lembrar dum pormenor que nunca mais me esqueceu, - acrescentou a Prof. Jovita – dum encontro da JUC, nos velhos tempos. Uma colega referiu (e reparem que isto foi já nos anos 60, não é?) que tinha ficado empolgada porque na Universidade da Paz, na Bélgica, o Prémio Nobel Dominique Pire, monge dominicano, resolvera a afluência de alunos de múltiplas religiões da forma mais simples: criou uma capela única onde se podiam suceder os cultos das confissões que o pretendiam. Bastava pedi-lo, para ordenar as horas da utilização, mais nada. Tudo na mesma capela, cada qual da própria vez, aberta a todos, sem restrições de tipo nenhum. Já lá vão mais de cinquenta anos, não é? E aqui continuamos mais ou menos a marcar passo, à espera do dia de amanhã que já foi ontem.

                 - Não há dúvida, – aditou o filósofo – mantemo-nos donos da verdade absoluta. Que não existe nem jamais alguém poderá deter em campo algum: Deus não se deixa apanhar nunca em nenhuma vertente. Os israelitas já o tinham descoberto milhares de anos antes de Cristo, registaram-no bastante claramente no Pentateuco bíblico, mil e quinhentos anos antes (eu sei que o I Capítulo, o da Criação, foi apenas meio milénio) e nós, os católicos, não há maneira de o descobrirmos, dois mil anos depois dEle. Olhem que é um grande mistério! Reparem que até os filósofos ateus concordam que a verdade é inatingível, qualquer que seja o domínio. Até eles! E nós, que temos a obrigação de ter mais juízo, não, andamos para aqui com um espantalho no ar convencidos de que é uma grande coisa. Haja paciência! Quando é que isto muda?

                 - Olha! Quando o espantalho cair! – tinha de ser o Fr. Nardo e desatámos todos a rir, claro.

                 - Quer dizer, nunca, se calhar, – atalhou o economista – até porque o negócio pode ir para o charco e são milhões, anualmente. Podemos ter muito bons argumentos, de espírito elevadíssimo, a encobrir fitos bem mais rasteirinhos. Se a cultura da verdade absoluta cair, é bem capaz de erguer-se outra qualquer em lugar dela, que os privilegiados da fortuna nunca a largam de bom grado, eclesiásticos ou não. O barro é frágil e, quanto mais protegido, mais frágil finda. Ora, a Igreja protege muito, é um escudo tremendo. Não podemos ignorar isto, por muito reles que seja.

                 Ficámos como que meio envergonhados, a olhar para as mãos. Aquilo foi pior que um murro no estômago. E não havia resposta nem desculpa: é verdade... A Igreja comunidade de crentes é tão humana, tão humana! Como é que depois embarca em alucinações tão incongruentes, em manias de grandeza tão inadequadas como aquela do depósito da Fé, tornado um dogma arbitrário (um somatório de dogmas), uma verdade absoluta, Deus agarrado pelos cabelos à má fila? Somos tão contraditórios!

                 - Não devemos deixar-nos abater – encorajou o Fr. Benedito. – Eu tenho esperança noutra coisa. Creio que os novos zelotas que pretendiam privatizar as aparições de Fátima mexeram-se, não por verem outras igrejas ou outros credos a rondarem por aqui, mas por um novo motivo. É que ocorrem por cá pequenos cursos de meditação, monitorados por quem não tem qualquer ligação individual à Igreja. E a verdade é que eles resultam e muito bem. Por exemplo, a Alexandra Solnado lidera alguns, confessa que vê e fala com Jesus quando medita. Ele, segundo ela, é que lhe vai dando as indicações do que fazer e como. A maioria dos participantes tem visões, normalmente de familiares falecidos com que ali contactam (são os alunos, não ela), mas também de Jesus, igualmente. Os casos são aos milhares. Tenho acompanhado isto de perto. Não há falcatruas, é mesmo verdade, estou inteiramente convicto. Ora, os monopolistas dos dogmas como é que poderiam engolir uma coisa destas? Ficou-lhes entalado na garganta. E de lá não irá sair nunca mais. Jesus não lhes obedece nem respeita a fronteira da Igreja. Quem diria? Vejam só!

                 Isto despertou o interesse desmesurado de todos.

                 - Crê que pode vir a mudar tudo? Como? – perguntou o Dr. Luís.

                 - O movimento Nova Era é transversal a todas as religiões e corresponde a uma enorme ânsia de espiritualidade que não é respondida pelas vias tradicionais, pelos nossos ritos, orações nem sacramentos, nem pelos de ninguém. Como movimento informal, tem lá de tudo, desde a charlatanice à crendice milagreira, até à mística, à santidade, ao martírio mais genuínos. Ora, estes é que nos importam. Acompanho muitos leigos que se tornaram meditadores. Mudaram e continuam mudando de vida, com uma vivência interior cada dia mais autêntica e fecunda. Ora, isto vem ocorrendo no mundo inteiro, com gente de todas as origens, credos ou sem credo nenhum. Após quinhentos anos de secularização agnóstica ou ateísta, isto anda a reespiritualizar a cultura mundial toda, a partir de novos referenciais que não anulam nem chocam nem destroem os anteriores. Permite, se bem assumido e aproveitado, revitalizar tudo. É o Espírito a caminho. E sem ligar nada aos religiosos encartados. Quer nossos quer dos outros. A requerer de nós uma enorme atitude de humildade: temos de largar tudo e pôr-nos a caminho. Teologias, dogmas, depósitos, tradições, ritos – todas as vestimentas culturais que se nos pegaram à pele nestes dois milénios. “Largue tudo e siga-me”, não é? Mais uma vez, como sempre.

                 - Integra os autores todos de auto-ajuda e de orientação da vida interior, certo? - perguntou a Prof. Jovita (já estou a vê-la a investigar tudo). – É uma área fascinante, também para mim.

                 - Pois, é verdade. Há-os de todos os horizontes – confirmou o filósofo. – De repente lembrei-me da católica irlandesa Lorna Byrne. Mas, por exemplo, Neale Walsh era um agnóstico marginal quando se colocou diante da folha em branco e desencadeou toda a série das Conversas com Deus. Sei lá, Deepak Chopra é um médico hinduísta cristão, a formação mais díspar de todas as que conheço e que ele logrou sintetizar no imo dele, brilhantemente. Brian Weiss era um psiquiatra todo drogado de cientismo ateísta e agora até profecias faz, com base nos tratamentos hipnóticos em que é especialista. Bem, isto é um nunca mais acabar, uma avalanche no mundo inteiro... Se calhar, de facto, pode vir a virar tudo. Nunca tinha pensado nestes termos, confesso.

                 - Mas que é que pode virar? Uns milhares de indivíduos, tudo bem. Milhões, vá lá, no mundo inteiro. Mas a máquina colossalmente ferrugenta da Igreja, hum, não me cheira... – era o cepticismo do economista.

                 - Também, que é que era preciso? – a Prof. Jovita meditava. – Neste campo bastaria abrir os braços, acolher, não é? Em vez de se pôr a julgar: quem são os fiéis, quem é o infiel, quem é o diabo em figura de ateu, de cientista agnóstico, sei lá! Onde houver sinais de boa espiritualidade, abrir a porta e convidar a entrar. Simples, cristalino como água.

                 - Pois, para os converter a todos – riu o Fr. Nardo. – E amanhã acabou a auto-ajuda de vez, a empresa faliu. Mas salvam-se, salvam-se todinhos.

                 - Exacto, falta saber quem converte quem. A Igreja foi sempre perita em assimilar quanto topou no caminho – ponderou o filósofo. – Agora o risco é o mesmo. Se calhar é melhor que tudo engrosse no rumo em que vai. Nós temos de salvar as gentes, ninguém tem de salvar a Igreja, não é?

                 - Ou, ao invés, - reflectiu Fr. Benedito – a Igreja apenas se salva se e quando salvar os indivíduos. O que não é o mesmo que convertê-los. Por confundir ambas as coisas é que chegámos aqui, com a hemorragia de milhões e milhões de baptizados que abandonam tudo, tornados indiferentes, agnósticos ou ateus declarados, porventura militantes. Não podem confundir o Espírito que sopra onde quer com as materializações estereotipadas em que nós pretensamente O aprisionámos.

                 - Pois, é o Espírito engarrafado – riu o Fr. Nardo, impenitente. – E nós andamos a impingi-lo às garrafinhas. Não quer uma garrafinha de missa? – perguntou, bem-humorado, ao Dr. Luís.

                 - Muito obrigado, já estou servido – retorquiu este, alinhando na rábula. – Só fiquei à espera para pagar. Quanto é? Ah, e com recibo, que, se a garrafinha missseira não estiver em condições, reservo-me o direito de a trocar por uma nova, certo? Aqui não dão garantia? Olhem que é ilegal!

                 A brincadeira foi subitamente cortada:

                 - Bem, é uma senhora abertura o acolhimento que estamos a propor! – ponderou o filósofo. – A única reserva era o nosso juízo de consciência acerca da espiritualidade visada, se é séria ou se é uma falcatrua. Sendo séria, portas abertas. Os padres, os seminaristas, os bispos... estarão disponíveis para frequentarem cursos de meditação? E dar-lhes-ão continuidade? Quanto a esta, julgo que sim. Agora, entrar e interiorizar a técnica... não sei. Mas lá que seria muito bom, seria.

                 - Aliás, é o padrão que deveria ter sido permanentemente seguido: onde sintamos o Espírito mexer, acolhemo-lo – é outra vez a Prof. Jovita. – Ao contrário do que multissecularmente temos vindo a fazer, que é comparar o que Ele faz com que nós fazemos e, se é diferente, rejeitamo-Lo. Logo, Deus não encontra outro modo de operar hoje senão longe de nós, à nossa revelia, entre quem nos chega a ser inteiramente alheio. E já temos muita sorte em não ser entre quem é contra nós, tão estranhos ao sopro do Espírito andamos há séculos e séculos. Oxalá venha aí a reconversão!

 

 

                 Fátima – 8 de Julho de 2013

 

                 Como é que eu podia ficar calmo depois duma conversa daquelas? Vim de lá com um monte de problemas. É verdade que falar com gente de formação universitária nos põe a cabeça em água. Não admira que cronicamente a Igreja tenha preferido e cultivado os ignorantes: dão muito menos canseira. Se não foram os desvios, a violação de direitos de base, a subversão do Espírito em seus intuitos... Enfim, não há bela sem senão.

                 O que me toca de imediato é isto: como pode o Papa abrir os braços da Igreja com aquela latitude? Mesmo que abra os dele, como desaferrolhar o resto? É uma questão de cultura, não se veste e despe como um casaco, requer gerações, mexe fundo por dentro de cada um. Como lograr mudar isto aqui e agora? Ou não é exequível? Ou nem é desejável? E há mesmo tudo o que referem no movimento actual de procura do Espírito, de orientação interior? Ou é um epifenómeno como foram os hippies, ou o Maio de 68 em França, fogo de ervagens que encandeia um instante e logo se apaga, cinzas inócuas que o vento do tempo varre lépido para o esquecimento? Enfim, dúvidas demais, mesmo para a cabeça tonta dum anão.

                 E há santos e mártires por ali? E a Igreja caminha ao lado sem reparar sequer? Continuamos com um sectarismo cego, os do clube são os bons, os de fora são os maus? Todo o ecumenismo de nosso lado é uma farsa? Nós somos a Luz do Mundo, os mais têm por lá uns morrõezinhos quase apagados e frios? O triunfalismo continua assim, mesmo quando Jesus Cristo nos desautoriza de todos os modos, por todo o lado? Revela-se aos de fora, como a Alexandra Solnado, aos de dentro marginalizados, como a Lorna Byrne, e os internos comuns, leigos e hierarquia, olham despeitados e invejosos e ignoram-nO olimpicamente? Não nos ligas, também não te ligamos, ora toma! Somos o irmão desdenhoso do filho pródigo? Por onde anda enveredando esta Igreja institucional? Ou serei eu que ando perdendo o juízo? Tenho mesmo a bússola enguiçada! Quanto mais me adentro, mais me desnorteio. Sou mesmo um pobre grumete desajeitado nesta descomunal barca de Jesus. Seja o que Deus quiser!

                 - O Papa alheio a tudo isto?! – admirou-se o meu Mestre, quando o apanhei antes de vésperas. – Creio bem que é o contrário. Já o viu cumprir algum protocolo? Varre-os a todos, que é uma limpeza! Desde o primeiro dia, logo no primeiro acto. Agora, claro, podemos julgar que é só isto. Aliás, quem viver de estereótipos terá de reduzir isto a um estereótipo igualmente. Só que o esqueleto implica sempre mais do que os ossos, queiram-no ou não os traficantes de cadáveres. Ou não é assim?

                 - Ai, troque-me tudo por miúdos, que eu fiquei com a cabeça em água e ainda não me livrei do afogamento. Estou que mal consigo respirar.

                 - Ah! Ah! Ah! – riu-se ele com vontade. – Afoga-se em pouco fundo, é? Não se desculpe com o tamanho, que não tem nada a ver. Às tantas, por compensação, é num anão qualquer que desponta o génio. Ainda vai ver!

                 - Eu até entendo a quebra permanente do protocolo. As atitudes humanizam-se, aquilo deixa de ser a seca de gestos ritualizados em cujo sentido já ninguém repara e, ao invés, transmite a mensagem com as palavras invulgares e as atitudes inesperadas. Que mais há? Mesmo isto já é muito, julgo eu, no meu fraco entender.

                 - E julga muito bem, irmão Ambrosino – retorquiu Fr. Benedito, meio gozão. Esperei por mais e nada.

                 - Não vislumbro mesmo além, pode crer. Que é que vê, então?

                 - Eu?! Exactamente o que aponta. Já referiu tudo. Não reparou?

                 - Ai, há-de estar sempre a gozar comigo! Estou a falar a sério.

                 - Eu também!

                 - Pronto, explique-me lá o que eu comentei e nem ao menos compreendi. Melhor, o que é que há para além do que compreendi.

                 - Irmão Ambrosino, é que nem sequer é para além. O Papa Francisco anda a dar cabo do protocolo inteiro, em nome do relacionamento concreto entre os indivíduos  e do sentido, do conteúdo de partilha mútua que contiver cada momento. Até agora fá-lo com tudo e com todos. Reparou no que ele fez ao discurso que ele tinha, com umas quatro páginas, na mão, no encontro com aqueles jovens, há dias?

                 - Pois, não leu discurso nenhum. Sentou-se à frente e pôs-se a dialogar. “Perguntem, que eu respondo.” E dobrou os papéis no bolso. Está a ser desta maneira com tudo. Vira do avesso o modelo protocolar. O estereótipo, não é?

                 - Agora responda: que é o nosso ritual, em qualquer campo, até na missa, que é o nosso Livro de Horas, que é que são as devoções, as orações estandardizadas? A que é que apelidamos de católico cumpridor? Já reparou?

                 - Ah, compreendo, modelos prefixados, únicos e universais.

                 - Protocolos estereotipados, portanto, não é? E agora veja o que designamos de crente praticante...

                 - O que os cumpre. Ah! É cómico: o Papa, que passa o tempo a romper com todos, então, não é um católico praticante! Boa, muito boa! Ele vai mesmo dar cabo do juízo a esta multidão amorfa e rotineira toda. Mas que gozo!

                 - E se continuar a ser desta maneira com tudo, até onde irá, hein?

                 - Por esta via tudo, deveras, pode vir a ser reformado, não é? Conforme cada um e cada comunidade for capaz de vitalizar o encontro mútuo, seja lá qual for a celebração. Dos sacramentos à oração, a um mero diálogo a dois ou em grupo... Tudo, de facto.

                 - De acordo. Acabou de referir o que faltava. E respondeu aos desafios de ontem.

                 E, perante o meu ar perplexo, confundido de todo:

                 - Sim, irmão Ambrosino! Também o acolhimento sem reservas dos que procuram a espiritualidade, num contexto religioso ou fora dele, na nossa Igreja ou noutra qualquer, na nossa religião ou noutra qualquer... Basta o itinerário da vida interior, por aí perpassa Deus, por aí caminha Jesus, a incitar o povo dos homens a caminho da plenitude. As barreiras irão cair todas porque apenas isto é importante. E o que pensamos pouco importa, porque é mero instrumento para a meta, não pode ser barreira nunca, como até agora.

                 - Quer dizer, quando ultrapassamos os formalismos em nome do encontro, lentamente cairão todos eles, porque a única realidade que conta é a da mútua comunhão sempre a caminho, sejam quais forem as diferenças, as vertentes e ladeiras por onde cruzámos para aqui chegarmos. Estou a ver.

                 - O Papa anda a trepar a alpendurada todos os dias. Pode ser apenas germinal, mas são os gérmenes disto que ele anda por ali a semear.

                 - Eu duvido é que ele o esteja vendo. Eu, por exemplo, não estava a ver nada. Bem sei que sou tapadinho de todo, não me posso comparar...

                 - Veja o que vir, a verdade é que anda operando nesta lógica permanentemente. Queira ou não queira, o fermento está levedando a fornada e é o fermento disto. Espreita um mundo novo por trás daquelas atitudes de nada. Aparentemente irrelevantes. Até acaba por ser uma estratégia inteligente para ter eficácia. Levanta poucas ondas, os embalsamadores de cadáveres ritualistas nem se apercebem do tsumani que aí virá...

                 - A propósito, Fr. Benedito, que é aquilo dos santos e mártires do novo movimento espiritual que hoje cruza o mundo? Não os reconhecemos na Igreja?

                 - Nunca o fizemos e continuamos a não fazê-lo.

                 - Mas então, nesta lógica, também isso...

                 - Evidentemente, também isso cairá, depende tudo de quão longe acabe por ir a caminhada. A fornada anda levedando e não é apenas o Papa. Ouviu aqueles leigos de ontem, já estão do outro lado, bem longe da peugada do rebanho. E nós aqui? Não em público, mas em particular, quem tem reservas fundadas? De facto, ninguém. Quando muito, alguns manterão preconceitos de antanho que ainda não foram extirpados. Vão a caminho, como a grande multidão do povo de Deus.

                 - Mas há exemplos tão claros assim?...

                 - Há e conhece alguns. Alguém na Igreja trata, por exemplo, Gandhi ou Luther King como santos? Mas como poderão não sê-lo, não é? Não digo o reconhecimento com os protocolos oficiais, evidentemente, são mais estereótipos, mas como acolhimento consensual de facto entre as comunidades para quem forem significativos, exemplos de profunda espiritualidade a transformar o mundo.

                 - Estou a lembrar-me de que Hans Küng pergunta como é possível não acolhermos Maomé como o santo profeta que é para o islamismo.

                 - Ora bem. Aí tem outro caso. Mas há muitos mais, mormente de gente simples a viver com os íntimos uma autenticidade de vida interior tão grande que, de facto, serão santos, mesmo que nada tenham a ver connosco. É o caso de Paula, a filha de Isabel Allende, morta de cancro aqui na vizinha Espanha, ou o de Estrella, a biografada em Graça e Coragem na Vida e Morte de Treya, escrito pelo viúvo, Ken Wilber, dez anos depois do passamento dela, também vítima de carcinoma. É um itinerário espiritual de tamanha autenticidade que muitas vezes dou por mim a rezar-lhe para que ela me ajude e me inspire, como oro a qualquer santo cristão. Quem me dera atingir a grandeza e a heroicidade dela durante o quinquénio da tribulação que acabou matando-a. É uma espantosa mártir contemporânea, cujo itinerário trilhou e aprofundou na rota apenas dos meditadores, fora de qualquer confissão religiosa explícita organizada. O Espírito de Deus é que manda e conduz, a nós resta-nos ter o coração aberto e estarmos atentos para Lhe discernirmos a marca, onde quer e em quenquer que Ele a imprima. Não somos nós que mandamos, é Deus. Jesus não é nossa propriedade, nós é que temos de ser servidores fiéis dEle. Em vez de embandeirarmos em arco porque Ele nos escolheu: aí já O abandonámos e apenas fazemos asneiras. Individuais, colectivas e institucionais.

                 - Ando mesmo a leste disto tudo. Também é o ramo mais distante do ecumenismo, não é? Aliás, eles nem fazem parte do movimento, pois não? Ainda por cima cruzam transversalmente através de todas as fés, certo? Mas na lógica de até agora, isto principiaria com os cristãos, depois iria até aos judeus, em terceiro lugar, aos muçulmanos, as três religiões do Livro. A partir deste patamar, era o diálogo com o budismo e o hinduísmo. Finalmente, viriam os que se mostrarem abertos ao apelo à vida interior, num conjunto amalgamado de indiferentes, agnósticos, ateus, animistas e outros quaisquer. Foi o quadro que eu concluí das minhas leituras. Agora o movimento de espiritualização da cultura mundial que anda a varrer tudo em todo o lado, como é, no meio disto?

                 - Bem caracterizado, irmão Ambrosino. Pois, como diz, estava aquilo muito bem organizado, num protocolo previsto, mais um estereótipo. Ergue-se a ventania deste movimento e abala de repente tudo. Já nada corresponde de igual maneira. É o mesmo de que temos vindo a falar. O Espírito, quando impele, é assim. Não presta contas a ninguém, não respeita protocolos e rompe com os estereótipos todos. Nós, muito humildemente, temos é de andar atentos e segui-Lo, vá Ele por onde for, corra para onde muito bem lhe aprouver. Digamos obrigado e sigamo-Lo.

 

 

                 Fátima – 9 de Julho de 2013

 

                 O Papa Francisco, na primeira viagem fora do Vaticano, foi à ilha de Lampedusa, quase na costa de África (100Kms), para onde tendem a ir permanentemente emigrantes africanos clandestinos, em busca do eldorado europeu. Umas horas antes de o Papa ali chegar, mais um barco cheio deles foi interceptado. É o programa da rotina quotidiana, de há anos a esta parte.

                 Sua Santidade continua com a prioridade aos pobres: pede solidariedade com estes que ali chegam, os mais graves deserdados. E alerta para o facto de que, à medida que vamos enricando, vamos cada vez mais ignorando que aqueles existem, mesmo que nos morem ao lado ou durmam, sem abrigo, à soleira da porta da nossa urbe.

                 Hoje, à hora de vésperas, tivemos um inovamento. E cai mesmo bem quebrar ocasionalmente a rotina: já não nos deixamos embalar pelo papaguear meramente automático. Fr, Ramiro quis fazer uma rápida leitura a propósito do que acabáramos de ouvir do Papa.

                 - Primeiro, os pobres. Como Francisco de Assis, tornar-se um deles, despindo definitivamente a roupagem de filho-família rico. O Sumo Pontífice já abandonou os palácios e hoje foi até ao recanto dos mais deserdados. Ignoramos até onde quererá ou poderá ir. Mostra, porém, cada vez mais, que não se identifica com a família da mãe-Igreja rica, tão mais pobre quão mais rica. Não lhe importa a riqueza para nada, só não vê ainda, creio, é o que é que há-de fazer com ela. Jogar aquilo tudo ao Rio Tibre?... A todos os Rios Tibres do mundo?...

                 Respirou uma breve pausa e logo continuou, esquemático, o que não lhe é nada habitual.

                 - Depois: quão mais temos, mais ignoramos quem não tem. Primeiro, a palaciana Igreja toda apalaçada. A princípio, Igreja dos escravos; uns séculos depois, Igreja dos senhores dos escravos; a seguir, quase Igreja dona dos senhores dos escravos. A cada patamar, mais distante destes, portanto, e mais os ignorando, logicamente. A ponto de não ser, aquando do fim da escravidão, porta-voz dos escravos mas dos aflitinhos donos deles (na generalidade dos casos). Coitadinhos dos donos, não é?

                 Parou de novo, a deixar repousar as águas.

                 - Finalmente nós, claro. As ordens religiosas, com voto de pobreza, pelos séculos fora perenemente com manigâncias para enricar. E com enormes fortunas acumuladas. Não apenas os Templários, mero expoente extremo. Mas de facto todos, todos... Pouco adianta que os bens sejam comuns: na hora de os defender, formamos logo barricadas atrás de cada um, mercenários das coisas e já não militantes do espírito, da vida interior atenta aos murmúrios de Deus e a dar-lhes cumprimento mundo fora. Os bens são traidores: colam-se-nos como grude, queiramo-lo ou não, e não há forma de os despegar, quando nos agarram. São ventosas de sanguessuga a chupar-nos o sangue das almas. Terminamos com corpos desalmados, mal nos precatamos.

                 Íamos calmamente a caminho das celas para a pernoita, ainda com os ouvidos cheios dos avisos do Fr. Ramiro, e eis-me abordado pelo irmão cozinheiro que me vinha entregar algum material levantado há dias na biblioteca.

                 - Toma lá, seu desalmado – brincou ele – seu dono de toneladas de livros que ainda te irão sugar num instante qualquer alma que tenhas nessa teu corpo enfezado! Mal te precates, vais ver!

                 Recolhi as obras, rindo, e retorqui, alinhando nos motejos:

                 - Deita para cá, seu ratoneiro, que o que tu tramas vejo eu bem: mil manigâncias para enricar. Pelo tamanho da pança, vejo enormes as sanguessugas. Onde isto já vai! Nem o purgatório te chega! Não te precates, não!

                 Desatou a rir, por sua vez.

                 - Aquilo recordou-me um caso exemplar, quando eu era jovem, em Darque, uma vilazinha nos arredores de Viana do Castelo – retomou ele, agora sério.

                 - O quê? – arrebitei a orelha.

                 - Era a inaugurar uma quintazinha restaurada por uns novos-ricos de fora. Um género de casa de campo para um casal de meia-idade, vendedores de mobílias de estilo. Clientela da alta, estás a ver? Corria ali muito dinheiro. O próprio restauro era uma fortuna. Mas tudo resultara muito bonito, a casa, os anexos, o próprio terreno cultivado. Espampanante, claro, muitos doirados, talhas em madeira, os quartos a rivalizarem com os de príncipes e princesas, como nos contos de fadas. Mas gostei, para um ignorante completo de cabedais daqueles, até achei bonito e de arregalar o olho, entendes?

                 - Porque é que te lembrou disto o comentário do Fr. Ramiro?

                 - É que eu entrei, levado por um cliente dos lados da minha família. Um tipo de acompanhante letrado, para o caso de ter de botar faladura e o meu apadrinhante não ficar à vontade. Ignoro como é que cuidou que eu me veria. Enfim, adiante! Estavam lá, comendo e bebendo, todas as sumidades da terra e arredores. Pelo que me levou, já vês de que sumo eram feitas: as carteiras tinham muito recheio, o resto...

                 - Costuma ser. Quanto mais pejadas as carteiras, mais vazias as cabeças e estéreis os corações. Poucos escapam ao fado. Que, aliás, eles julgam alegre, enquanto desdenham dos mais. Foi o que apanhaste, não foi?

                 - Bem, é capaz. Eu era verde demais e depois, o barulho das luzes, como quem diz, com todas aquelas fulgurações, deixou-me meio zonzo. Estás a ver o boi a olhar para o palácio? Ali era eu, mais ou menos...

                 - Claro, como não? Então que é que foi que to lembrou?

                 - Olha, juntaram lá o supra-sumo. Logo, quem é que havia de estar?

                 - Quem? Oh, mas não há bispo nenhum por ali. Não me digas...

                 - Pois, bispo não, mas o pároco, todo feliz e aperaltado. A abrilhantar a festa barriguda. Na ocasião, como jovem cheio de verduras, pareceu-me um evento bem natural.

                 - Eu diria que é praticamente da praxe. E todos tendem a prestar-se a tal, desde que soe a dinheiro, não é? A inversão do mandato da Igreja é assim, que lhe havemos de fazer? É quase requerido um herói para resistir a estes hábitos que os séculos implantaram. É por isto que a atitude do Papa tem que se lhe diga. E, a propósito, continuo a não entender que é que te evocou o episódio.

                 - Já lá chegamos. Pois o pároco fora convidado mas com uma tarefa. Uma que, aliás, muito o honraria: ele teria de botar discurso num evento tão importante. Era o orador principal na hora dos brindes.

                 - Claro que isto é um reconhecimento da Igreja mas pelo pior dos aspectos: é materialismo completo. Para onde foi a espiritualidade, a vida interior? Nem rastos! Pompas, aparatos, faustos e, na cúpula do zimbório, a fechar a arquitectura com chave de oiro, a Igreja, no representante institucional dela. Que espectáculo mais alienado!

                 - E ainda não viste nada.

                 - Ai há pior?

                 - Como não, se foi um dos empurrões que me trouxeram até aqui? Não ignores que eu também trato das barrigas, não é? Então, estômago por estômago, antes de qualquer indigestão letal, julguei mais avisado vir parar ao convento. Sempre é mais firme, no meio de tanta incongruência e toleima, para não dizer pior.

                 - Conta, conta lá!

                 - Olha, o brinde foi um encómio aos donos da moradia que se derretiam de vaidade e fingida modéstia. Um encadeado mais ou menos deste teor: bem-vindos a esta terra que engrandecem com tal presença; bem-vindos a uma Igreja que o que requer é filhos destes, dispostos a obras grandiloquentes como esta que aqui vemos e hoje inauguramos; cidadãos exemplares que trabalham e não destroem a paz nem armam arruaça... Sabes, eu era novato e tudo isto era o Antigo Regime falando, ele parecia porta-voz de Salazar, não de Cristo. Na ocasião eu nem dava por nada, apenas mais tarde, na Faculdade. E depois da Universidade da Paz, então... fui abrindo os olhos, como o País.

                 - E vieste parar aqui?! Quando os outros se foram indo embora do País, da Igreja, de tudo?! Às centenas de milhares?

                 - Olha, tem lógica. É que ainda não ouviste o resto.

                 - Qual resto?! Ainda tens mais? Desembucha, que está curioso.

                 - No retorno, o meu apadrinhante abriu-se, a rir muito, cinicamente. Queres ver? Eu fiquei de cara à banda. Ele repetia: “O dinheiro compra tudo, não há dúvida, o dinheiro compra tudo, rapaz. Se queres alguma coisa da vida, trata de ganhar muito bago, quanto mais, melhor.”

                 - De que é que ele estava falando?

                 - Dos “cristãos exemplares”, claro. Da faladura do padre.

                 - Então porquê?

                 - Porque, afinal, aqueles ricalhaços, eram dois divorciados, viviam amancebados (queriam lá casamento!), nem relações tinham praticamente com a família, nem sequer com os filhos, andavam numa rixa permanente porque ele era um mulherengo inveterado e a todo o tempo punha os cornos a ela... e assim por diante, a lista nunca mais acabava. Ora, para aquele padre era isto que a Igreja requeria. Desde que pingue dinheiro – afirmava, cínico, o meu apadrinhante. - “O dinheiro compra tudo” - estás a ver?

                 - Mas... mas... Ora! O padre sabia lá! Eram gente de fora...

                 - Mesmo que o não soubera... Que é que leva a afirmar tudo aquilo? A bolsa recheada. Mais nada, irmão. Para mim ficou clarinho como água. E, é óbvio, fez-me nojo. Eu era um crente de boa-fé. Uma tal atitude era completamente inadmissível. E aquele padre ficou-me como a imagem dum charlatão. Eu findaria mais bem-disposto com um actor a fazer uma rábula, entendes? Este, ao menos, poderia julgar que era tal e qual mas eu lograria distanciar-me e desculpá-lo do engano. Mas não era um actor, nem convicto nem pantomineiro, era um graduado do ofício. Deu-me volta ao estômago. Eu não era daquela Igreja, eu não sou daquela Igreja. Então, olha, aquilo foi mexendo comigo, durou anos, mas a pouco e pouco a revolta foi dando frutos.

                 - E vieste aqui parar. Com que intuito, em semelhante contexto, irmão?

                 - E vim aqui parar. Olha, não é por orgulho que o digo, até porque já para cá vim há alguns anos e o Papa há pouco apenas foi eleito. Mas julgo que é com o intuito dele. A Igreja institucional alimenta cada aberração no terreno que é uma tristeza! Então, olha, por muito irrelevante fermento que eu seja (e, claro, nem sequer penso em qualquer paralelo com o nosso Papa Francisco), eu ponho o meu pequeno punhado na fornada, pronto.

                 - Entendo-te muito bem. Mas quem se confrontou com casos idênticos deitou a fugir. Quer lá ter a ver com semelhante Igreja! Ainda para mais, aliada do fascismo, no Antigo regime, oficialmente... Valha-nos Deus! Tu deves ser um caso, quê, em cem, em mil? Tinhas de ser mesmo uma raridade!

                 - Sei lá bem! Nem me importa. Repara, o cristianismo, com a ressurreição à mão de cada um, com a vida interior auscultada no íntimo, ancorada na comunidade e na Igreja, em tudo o que nela vai devindo corpo de Cristo em permanente desenvolvimento rumo à plenitude – isto é de tal maneira fascinante que reduzi-lo àquele nada, àquele vazio a contabilizar dinheiro, não sei, é tão estúpido, tão revoltante, nem tenho palavras... Eu lido com panelas, sou fraco nos discursos...

                 - Não és nada, não. Tal estado de espírito atirou-te para aqui, mais um entre nós. Que maravilha!

                 - Pois foi. Lá fora é difícil descobrir o que há de espantoso nesta mensagem tão simples: podemos ressuscitar, é apenas pormo-nos a caminho de lá. O céu, afinal, anda ao alcance da mão. É abrir caminho a partir de dentro e pronto. Alçamo-nos à plenitude. À felicidade que andamos por aqui permanentemente a falhar.

 

 

                 Fátima – 10 de Julho de 2013

 

                 - Ah! Ah! Ah! Não sei quantas vezes o mundo acabou já desde que eu nasci. Perdi-lhe a conta. E o pior é que não tenho maneira de descobrir em qual é que vivo, hoje em dia. Isto é mesmo muito confuso, para um pobre campónio quase analfabeto.

                 - Ora, eu daqueles também me rio. Então dos quiliastas que andam, de milénio em milénio, à espera do fim e não se reconvertem de vez ante a negativa dos factos, nem sei se rir-me, se apiedar-me. São uns tristes mas ao menos lêem o Apocalipse. Agora dos mais que continuam regularmente a anunciá-lo e sempre a falhá-lo... Na melhor das hipóteses, uns alucinados, com os pés na Lua; na pior, aldrabões sem escrúpulos de explorar a crendice dos ignorantes, dos simplórios sem defesas.

                 - Então que conversa é aquela, irmão, hein? Fim do mundo?! O ano transacto?! Estamos aqui à luz das estrelas ou somos fantasmas sem o saber?

                 Não, não me fiz entender, não é deste teor. É outra coisa. Uma profecia de muitos, entre eles vários místicos e santos reconhecidos pela Igreja. A convergir com cientistas de múltiplos ramos. Deve querer dizer algo e eu não adivinho o que é. Mas bem gostaria. Anda aqui a escapar-nos uma realidade qualquer e o que me consta é que ninguém liga.

                 Depois de arrumada a cozinha da ceia onde eu e o irmão porteiro demos apoio, caminhávamos pomar fora os dois com o hortelão, o céu constelado a cobrir-nos de arroubamento. O diálogo era entre ambos eles. Despoletara-o um estudo sobre as profecias relativas a 2012 que o porteiro acabara de ler e o entusiasmara, apesar de, aparentemente, desmentido pelos factos.

                 - Uma coisa é correcta, – intrometi-me, a picá-los – as visões apocalípticas não se verificaram. Ou então reportam-se a quê? Os místicos, porventura, também se enganam, ao interpretarem as visões que têm – eu lera em diagonal o livro e reparara que era o tema predominante de alguns santos da Igreja, desde há uns trezentos anos, apontando para esta época, senão para aquela data.

                 - Sei lá bem! – retorquiu logo o porteiro. – Mas duvido. Julgo que encontrei um fio de meada em que porventura ninguém ainda reparou. É decerto pretensão minha, não é? Quem sou eu, para descobrir mistérios? Mas pronto, foi o que me veio à mente. O mais provável é ser uma doidice como a dos mais.

                 - Ora! Doidice ou não, aqui estou eu pronto para ouvi-la. É que, na minha parvónia, todos auguram que é o mal de que sofro. Portanto, venha de lá isto, para eu me sentir menos desacompanhado.

                 - Apoiado! – confirmei. – Seja lá o que for, estamos aqui para acompanhar e dar a mão, se for o caso. Portanto, irmão porteiro, abra lá a porta e deixe entrar.

                 Calámo-nos, aguardando que se encorajasse. Ouvíamos um coro de grilos a sublinhar o silêncio, na amplidão do infinito. Não havia réstia de luar mas, ao invés, milhões de estrelas, cheias de arrepios, na noite calma, com uma brisa refrescante. Foi um minuto a meditar, concentrado num abraço ao Universo.

                 - Tentando ir por ordem – retomou o porteiro, num murmúrio como para ele. – Há quem veja a aura dos indivíduos. Vários, no mundo. É uma faculdade rara, mas já a confirmaram ter algumas individualidades.

                 - Aura?! Mas que é aura?! Troca-me isto por miúdos, que eu cá entendo de horta e pomar e aqui não há nada chamado aura. E também não é uma mulher ou é? – o hortelão, homem do campo, perdeu-se logo.

                 - Olha, é algo assim... Nunca tocaste numa antena de rádio quando ele está a tocar? Pois, não. Mas já te chegaste à beira dum ou cruzaste por ele ou viste alguém fazê-lo... Sim? E reparaste no que ocorreu?

                 - Aquilo aumentou o volume. Quase sempre costuma estragar, não é?

                 - Não importa. Provoca um efeito, mesmo sem a gente lhe tocar, basta ir aproximando. A aura é assim, é um halo que nos rodeia até mais ou menos meio metro do corpo. É como um campo magnético que altera os aparelhos eléctricos.

                 - Está bem. É como um tronco a arder, quando a gente chega perto apanha o bafo quente, mal comparando. Também não o vemos.

                 - Nem mais. A verdade é que os que vêem a aura dos outros constataram uma muda acelerada nelas nos últimos decénios. A investigadora Nancy Tappe que primeiro pesquisou isto (e, por acaso, é um membro ordenado numa igreja protestante) verificou que, num período de dez anos, as crianças que nasciam com aura de cor índigo saltaram de trinta a setenta e cinco por cento. Imaginem quantos serão agora! Curiosamente, o fenómeno é mundial. Muito rapidamente desenvolveram uma rede planetária de estudo e apoio a estes miúdos e respectivas famílias. Também opera em Portugal.

                 - E daí? Foi o fim do mundo?! – admirei-me eu.

                 - Elas precisam de ajuda? Nasceram deficientes, é? – questionou o hortelão.

                 - Não, não. É o contrário. Esperem. É isto: quem requer auxílio somos nós que não temos a cor índigo, mormente os pais, os educadores, professores e outros que tais.

                 - Nós, é?! – o hortelão suspeitava, muito duvidoso.

                 - É que os índigos nascem tendencialmente hiperactivos, em geral vêm superdotados, como que programados para quanto é electrónica na comunicação e quase todos têm faculdades novas que os psicólogos denominam capacidades psi ou fenómenos paranormais. Estão a ver? Como é que lidamos com isto? Ninguém foi preparado para uma bomba destas a explodir-nos na comunidade, ainda para mais em todos os continentes ao mesmo tempo.

                 - E tu julgas que isto é o fim do mundo – concluí eu, meio irónico.

                 - Não, não é isto. Repara nos números. A sequência foi esta: o primeiro estudo foi feito quando Nancy Tappe achou estranho que os bebés de aura índigo, que eram à roda de três por cento, desataram a aumentar rapidamente e chegaram aos trinta por cento. Aí ela estudou novecentos deles para tentar captar que características diferenciadoras da personalidade arrastaria a mudança de cor da aura. Resultou naquilo que referi. Dez anos depois já são esmagadoramente dominantes no mundo inteiro e a transformação continua. Há um ponto em que, à escala mundial, a humanidade deixa de ter a aura dominante anterior (que era acastanhada) e passa a ter a índigo. Ora, foi isto que acabou de ocorrer nestes últimos anos.

                 - Não reparei em nada. Tudo corre como dantes – comentou o hortelão.

                 - Ninguém reparou, creio eu. Como na horta, muda a cultura, mas, dado que a lavoira continua, diremos que está igual. Mas, se calhar, deixou de ter feijão catarino e passou a ter feijão-frade. E, se a humanidade era constituída daquele, ao ser trocado o cultivo, aquela humanidade extinguiu-se, o mundo que era ela acabou.

                 - O quê?! Estás a falar da extinção duma estirpe humana, como o homem de Cro-Magnon ou de Neanderthal, ou o homem gigante e o anão de Java? Debaixo de nossos olhos, sem nós vermos?! – espantei-me eu.

                 - Não, não! Estou suspeitando duma evolução, dum pequeno salto qualitativo, tão discreto que mal damos conta. Mas, apesar de tudo, muito perturbador, a ponto de os profetas mais sensitivos o verem como capaz de derrubar toda a ordem anteriormente implantada, capaz dum apocalipse.

                 - Ora, ora! Não ocorreu nada. As pereiras continuam ali com aquelas belas peras e as figueiras, com os figos. Então não? - o hortelão fincou os pés na terra.

                 - Não é o que eu vejo e os estudos apontam. Adivinham quantos miúdos estão anualmente a ser sedados com Ritalina, nos Estados Unidos, por ninguém descobrir como lidar com tanta hiperactividade e tanto superdotado? Mais de três milhões. É o massacre dos inocentes, a uma escala nunca vista. E são apenas os números dacolá. Ora, o fenómeno é mundial. Todos os países operam o mesmo, incluindo aqui. Que é que andamos a fazer à nova geração? E em que é que isto os irá tornando?

                 - Ou ando muito distraído ou, para já, não vejo nenhuma desgraça particular – comentei eu, à retranca, mas com a curiosidade alerta.

                 - Nem eu, confesso – concordou o porteiro. – Os índigos estão atingindo a adultez e ocupando todos os lugares da colectividade, substituindo espontânea e gradualmente a geração anterior, como permanentemente ocorreu antes, não é? Os filhos sucedem aos pais. Até agora, ao que tudo indica, sem sobressaltos diferentes dos de qualquer outra troca de gerações. Ainda bem, se deveras assim for.

                 - E podia lá não ser! Claro que tudo corre pelo melhor, não te aflijas. Não inventes para aí desgraças que nem existem – o nosso hortelão é o bom senso terra a terra.

                 - Mas porque é que te veio isto à ideia? Foi apenas aquele livro? – perguntei.

                 - É que há outro pendor da personalidade em que ponho muita fé: os índigos manifestam uma fome particular de espiritualidade, viraram em geral para a vida interior e a orientação dela. Nunca, em nenhuma geração anterior, isto foi traço característico de qualquer tipologia de personalidade. Mas aqui é. Dá-me muita esperança e, ao mesmo tempo, põe-me deveras apreensivo.

                 - Porquê?! – admirei-me eu.

                 - Explica-te, que eu sou muito lento – fez o hortelão.

                 - Quando os índigos predominarem à frente do mundo inteiro (e é para breve), irá ocorrer uma inversão da cultura mundial neste domínio. Até agora, desde o Renascimento (corrige-me, irmão Ambrosino, se estou vendo mal, que tu é que és formado nestas áreas, está bem?), desde ali tem sido um movimento global de ateização, de cientismo e positivismo, de materialismo, alheios a qualquer apelo à hegemonia do espírito, da interioridade, na orientação da vida de cada um e do mundo. A espiritualidade, bem como a crença religiosa de qualquer tipo, ou foram banidas, ou secundarizadas, esvaziadas de qualquer conteúdo vital a sério. Estou certo?

                 - Claro – confirmei. – E então os índigos irão inverter isto?

                 - É o que espero. Têm quase todos aquele traço de personalidade.

                 - Creio que temos de nos congratular. Porquê o receio? – insisti.

                 - Porque andamos todos alheados disto. Nem sei se a igreja cristã a que pertence a primeira investigadora do fenómeno, Nancy Tappe, lhe liga alguma importância. Ora, o resultado é, por exemplo, sedarem estes miúdos aos milhões e milhões pelo mundo fora, em lugar de acolherem os novos desafios e os encaminharem no melhor sentido, tanto para bem dos pequenos, como das famílias, como das comunidades e países, como da humanidade inteira. Aquilo é um desvio pela via da facilidade, não uma medida de optimização. O nosso alheamento, como o dos pais e famílias em geral relativamente às novas gerações, deu permanentemente mau resultado. Crianças marginais, traumatizadas, diminuídas mental, afectiva e fisicamente, revoltadas, que alimentam um número infindo de adultos criminosos ou excluídos. Como evitar este efeito numa geração com mais potencial ainda? Drogá-los não creio ser a alternativa ideal. Tenho receio. Andamos traindo o mandato de amar a Deus e aos outros como a nós. Ninguém se sedaria se for um hiperactivo ou um superdotado, para andar por aí como um drogado ou um morto-vivo.

                 - Mas é mais uma questão de pais, de educadores, de médicos. Nós... – hesitei.

                 - Sim, mas a Igreja-atenta-ao-mundo em cada um de nós, em cada pai, educador, médico, em cada comunidade, acolhe como normal, sadio, espiritual, o alheamento? Nem que isto corte as asas ou desvie tendencialmente uma geração inteira da humanidade? Uma geração que seria um passo em frente? Mete-me medo.

 

 

                 Fátima – 11 de Julho de 2013

 

                 Hoje fui logo ter com o meu Mestre, por mor das dúvidas, e pu-lo a par da nossa conversa sob o manto de estrelas, logo após matinas. Ele iria ter aulas no Curso de Verão, mais tarde, e eu não queria perder o momento. Nem aguardei pelo pequeno- almoço, não fora ele ficar aperreado com outros compromissos.

                 O que me levou a tanta impaciência é que, ao contrário do irmão porteiro, eu fiquei meio entusiasmado com o tema. Não me preocupou particularmente o alheamento, mais ou menos universal, perante os portadores de aura índigo, como ele. Não. O que me arregalou a curiosidade foi ser provável andar a ocorrer um minúsculo salto evolutivo na fileira humana, diante de nossos olhos, e nós sem darmos por nada. Vi-me logo como um australopithecus distraído ante a primeira pegada do filho rumo à humanidade vindoira que hoje somos nós. É uma hipótese fascinante. Embora desmascare a nossa curta inteligência...

                 - Tanto pode ser como não, a evolução não parou, continua através de nós – o Fr. Benedito era indiferente ao fenómeno. – O que me importa é a tarefa que nos impõe. Conviria desempenhá-la bem e a Ritalina não é, manifestamente, o caminho ideal. E, se estiver em curso mais um degrau a trepar pela humanidade (e é, porventura, o caso), não deveríamos andar de costas voltadas, como de costume, antes acompanhar, descobrir os melhores caminhos, divulgá-los, incentivá-los. Agora, com o receituário de antanho, apenas fechamos portas, metemos travões, atrasamos tudo. E já é uma sorte não desatarmos a matar os índigos, a pretexto de que são bruxaria, como antigamente. Sempre fizemos e demos cobertura a cada asneira! Isto de a gente se convencer de que tem a verdade na algibeira... Valha-nos Deus!

                 - A mim a questão toca-me fundo, vou olhar com outro cuidado os miúdos com que topar. Sinto isto como uma pequena maravilha, caso se confirme, como já vem sendo em múltiplos horizontes, mormente de cientistas mundo fora.

                 - E também tem muita sorte, irmão, que há cem anos tanto entusiasmo com o evolucionismo ainda lhe acarretaria uma excomunhão. E mesmo hoje existem igrejas que o não acatam, toda uma corrente ideológica, os criacionistas, que até o chegaram a proibir de ensinar nas escolas. Tudo em nome duma religiosidade mágica estática e duma teologia caduca que já deveria estar morta e enterrada há séculos. Mas não, ainda estrebucha marginalmente. Vivemos tão longe do núcleo de sentido do cristianismo, a mensagem espiritual da ressurreição e respectivas implicações de reordenamento da vida e do mundo a partir da interioridade, do imo de cada qual! Já nem o vislumbramos sequer, em igrejas inteiras. É um desperdício...

                 - A nova geração, pelos vistos, tende a dar conta disto, são famintos de espiritualidade. Claro que tudo pode ser corrompido, o nosso livre arbítrio é um doce e uma chaga, não há nada a fazer, senão um acto de fé no bom senso do homem.

                 - Pois é. E a ambiguidade já é mais que manifesta. Não é apenas com a Ritalina para drogar os hiperactivos, é bem mais grave, quanto a mim.

                 - Está a falar de quê, Fr. Benedito? O irmão porteiro só nos contou daquele sedativo...

                 - Não, não tem nada a ver com isto. Vocês falaram dos dons novos, das faculdades paranormais que tendem eventualmente a desmultiplicar-se nas novéis gerações, lembra-se?

                 - Claro, mas o irmão porteiro apenas o referiu, não explorámos nada aí. Há novidades, é?

                 - Muitas. Se são mais ou menos do que outrora, ignoro, é para os investigadores, não me envolvo em tal polémica. Mas que, por todo o mundo, há quem mostre poder de telepatia, de telecinese, de clarividência, de levitação natural, de cura, sei lá que mais, é indubitável. Porque perderam o medo e agora falam, quando antes não? Porque doravante são mesmo uma avalanche mundial? Descubram-no os cientistas. Nós temos outro papel, o de emprestar sentido e rumo a tudo e bem pouco o andamos operando. Mas o que mais me preocupa é um dom em particular que, este sim, estou mesmo convicto de que se está generalizando a grande velocidade.

                 - Qual? Qual?

                 - O de comunicar com os mortos. Que não estão mortos, evidentemente, sabíamo-lo pela fé. Só que doravante tornam-se percepcionáveis a cada vez mais indivíduos. Que falam com os espíritos, com os fantasmas...

                 - Conte lá! Conte lá! Eu fico fascinado com isto.

                 - Olhe, anda rodeado deles.

                 - Eu sei, mas não vejo nenhum.

                 - Não, anda rodeado de indivíduos que os vêem e contactam permanentemente. Está sendo avassalador pelo mundo, são centenas de milhões com tal faculdade.

                 - Então e como é?

                 - Olhe, por exemplo, uma jovem universitária, a Mafalda, tem o espírito duma criança de sete, oito anos com que brinca desde que nasceu, é a Maria Teresa. Vê-a perfeitamente, embora inconfundível com os outros indivíduos, desde que acorda. Às vezes a pequenita nem a deixa adormecer bem, quando quer brincar: vai à cama e faz “buh!” para acordá-la. Lá em casa ninguém mais da família a vê. Em contrapartida, a Mafalda vê e fala com o avô que lhe morreu há anos, com uma prima criança ainda, que lhe faleceu de doença há meses, com desconhecidos que lhe pedem coisas que ela às vezes nem entende o que aquilo é, e assim por diante...

                 - Mas que estranho! E é igual com todos os que vêem?

                 - Não, não. Os meditadores, em geral, atingem graus de visão muito diferentes uns dos outros. A própria faculdade pode desenvolver-se mais ou menos. Conheço uma família que é aproximadamente deste modo: à partida, nenhum membro via. Fizeram cursos de meditação com a Alexandra Solnado e, logo durante eles, a filha passou a ver, ficando fascinada. Daí para diante continuou sempre a ter contacto com o Além, embora apenas em meditação, onde vê ocasionalmente os avós falecidos (inclusive antes de ela ter nascido), um tio morto há poucos anos que, após a morte, veio cumprimentá-la rejuvenescido e muito alegre, até, o que é mais curioso, duas crianças desconhecidas que vêm brincar com ela e que, quando perguntou quem eram, lhe responderam ser os filhos que ela há-de vir a ter. É perturbador, para as ideias preconcebidas que a gente tem, não é?

                 - E de que maneira, Fr. Benedito! A filha foi a única da família?

                 - Não, a mãe, quando em meditação, via luzes que se moviam e, às vezes, vultos. Ocorreu, porém, que lhe morreu a cadela de estimação, ao fim de dezassete anos de convívio. Sentindo a dor da perda, o vazio, chamou-a durante a meditação, o animal destacou-se da luz e ela principiou a vê-la e a interagir com ela, a ponto de a cadelita ir deitar-se entre o casal e, gradualmente, a senhora lograr vê-la mesmo de olhos abertos, em vigília. Também isto é perturbador, não é?

                 - Pois, um indivíduo fica desconfortável. Temos de rever muita coisa...

                 - E não é tudo. O filho do casal nunca viu nada, mas o marido, em contrapartida, que nunca vê coisa nenhuma em meditação, recebe ordens em sonho. É deste modo: está sonhando e, inesperadamente, o sonho é interrompido por uma ordem ou sinal em que uma ideia lhe é transmitida sem palavras mas com uma força extrema e com um conteúdo inequívoco. Por exemplo, sonhou com a mãe dele há muito falecida, bruscamente o sonho é interrompido pela ordem sem palavras:”Manda-a para a Luz!” Ele cumpre a ordem. Dias depois, a filha, em meditação, é contactada pelo avô, marido da senhora remetida para a Luz, que, muito expansivo e falador, lhe conta da alegria de finalmente a ter com ele.

                 - Mas é tudo diferente! Vamos ter de mudar... – parei, de boca aberta.

                 - Quer ver mais? O mesmo cavalheiro, quando a cadelita lhes morreu, sentiu o mesmo vazio, também lhe era muito ligado. Estava a sonhar na sesta, de repente a cadela irrompe no sonho, interrompe tudo postando-se-lhe à frente, a olhar para ele, metendo-lhe na cabeça a ideia sem palavras: “Eu estou aqui!” Ele acordou, caiu em si, entendeu finalmente que o animal continua vivo noutra forma de vida e sentiu-se instantaneamente calmo, o vazio desapareceu. Até hoje. No além, mesmo os animais confabulam para nos ajudar. Nunca ouviu uma coisa destas, pois não?

                 - Nunca, Fr. Benedito! Mas que estranho! O que isto implica, não é?

                 - É aí que está a minha preocupação, viu?

                 - Então porquê?

                 - Anda alguém, na Igreja, a ligar a isto? Não. Os meditadores vão encaminhando cada caso o melhor que sabem e podem. E quem fica de fora? E a Igreja que tende a pôr tudo isto à lonjura da suspeita? Como gerir a contento esta nova faculdade? As gentes andam aflitas, a escondê-la, no geral, não vão os mais achá-las malucas ou anormais. E com isto atrofiam um poder com potencialidades nunca vistas. Caiu a barreira da incomunicabilidade entre a vida e a morte. Depois da ressurreição, é o facto mais extraordinário de que tenho notícia. Aliás, complementa-a: Jesus apareceu a muitos e testemunhou-a, agora alargamos a ponte muito para além do que creríamos viável. Os dois mundos fundem-se, interpenetram-se, podemos ir infinitamente mais longe na economia da salvação e no plano de Deus para o mundo e para o Reino, cá e lá. É um potencial nunca visto. E nós deixamo-lo abandonado para aí, inteiramente ao acaso.

                 - Mas é mesmo desta dimensão, Fr. Benedito? Eu cá não vejo nada, não é?

                 - Pois, nem eu. Mas quem me dera! E, quanto à dimensão, olhe, a católica irlandesa Lorna Byrne, que desde criança vê os espíritos, em vigília (e não é um ou dois, são aos milhares) perguntou-lhes porque é que ela os vê e nós não. A resposta foi que em breve praticamente todos os verão, o que confirma a hipótese de que estamos mesmo a assistir a uma transformação evolutiva da Humanidade. É o que anda de facto a ocorrer à nossa volta no mundo inteiro, pelo menos nesta dimensão, na faculdade de fazer cair a barreira entre os dois universos, o perceptível e o espiritual, o dos corpos e o das almas.

                 - É fabuloso! Muito gostaria eu!... – confessei, como em transe.

                 - E quem lhe diz que não? Olhe, eu conto-lhe um pormenor que ocorreu uma vez, justamente com Lorna Byrne. Ia ela rua fora, quando o espírito que mais lhe aparece e a acompanha, o arcanjo Miguel (como se lhe identifica) se põe a caminhar-lhe ao lado, conversando. Ela vai respondendo, discreta, não vão os transeuntes julgar que lá vai outra vez a falar sozinha. Cumprimenta os conhecidos e, curiosamente, repara que o arcanjo os cumprimenta igualmente, o que ela estranha, tanto por não ser vulgar como porque os outros o não vêem. Qual não é o espanto dela quando, no dia seguinte, uma conhecida lhe vem perguntar quem era aquele cavalheiro tão bem posto com quem ia rua fora na conversa. Afinal, ele mostrara-se a toda a gente! E ninguém suspeitou sequer de que era um arcanjo! Quem lhe diz a si, irmão Ambrosino, quem me diz a mim que não andamos cruzando com eles na rua e nem ao menos suspeitamos?

                 - Ai valha-me Deus! Eu devo estar a ficar maluco! – exclamei. – Acha mesmo?

                 - Sei lá bem! Se ocorre uma vez, pode ocorrer permanentemente, não é? Que sabemos nós?

                 - Mas que maravilha! Eu cá por mim nem me preocupava mais. É lindo!

                 - Olhe que faz mal. Nem tudo são rosas. E há bem pior do que esconder, atrofiar ou recusar a nova faculdade. Há um rol de ajudas a prestar neste domínio mas anda tudo com a vista noutro lado, distraído por inteiro dos sinais.

                 - Bem, como de costume, não vejo nada, não é? Explique-me lá, Fr. Benedito.

                 - Repare, não há apenas espíritos bons, em harmonia com a Luz, a brancura iridescente que é Deus. Há também os maus que recusam fundir-se com ela. Há anjos e demónios, há céu e inferno. Uma vidente que tenta encaminhar estes últimos distingue-os na linguagem: espíritos são os da Luz; fantasmas são os das trevas. Se aqueles nos podem e querem ajudar, estes, ao invés, tentam dominar-nos e precisam de ser ajudados para optarem pela Luz.

                 - É a doutrina antiga, vem no catecismo – apontei eu, arrefentando.

                 - Exacto. Como é que julga que os dotados da nova faculdade lhes reagem? Sejam crentes, agnósticos, indiferentes ou ateus?

                 - Cada qual ao modo dele. Não imagino, Fr. Benedito.

                 - Veja bem, a faculdade aflora independentemente da atitude religiosa de cada um. Por estranho que pareça, as posturas são muito iguais, entre crentes ou ateus: quase todos ficam aterrados, qualquer que seja a visão, dum espírito luminoso ou dum fantasma sombrio. Isto é o cúmulo da confusão. E é o mesmo, quer em visões esporádicas, quer permanentes. Quem se entusiasma, como nós, ao descobrirmos isto? Praticamente ninguém. O outro mundo é vivido como aterrador pela generalidade dos indivíduos, crentes ou descrentes. Não adianta.

                 - E daí? Que se aterrem, olha que parvos! – desabafei, meio desconcertado.

                 - Não faz sentido, irmão Ambrosino. Ainda se foram apenas os descrentes e restrito aos fantasmas que recusam a Luz! Mas não, é a resposta ao diferente, o que estraga tudo. Apenas porque é diferente é aterrador, quer um espírito bom, quer um fantasma mau? É completamente desajustado!

                 - E então? Que é que poderíamos fazer? Que é que ficaria na nossa mão?

                 - Desmontar isto, como os meditadores tentam. Os espíritos luminosos são bem acolhidos, estamos-lhes gratos e pedimos-lhes todo o apoio que nos puderem dar, na rota que Deus nos propuser. Os fantasmas são encaminhados para a Luz, estimulados a escolherem-na, em lugar de se enquistarem por aqui, a encostarem-se e influírem nos que se lhes depararem como influenciáveis.

                 - Esconjurados, não? É o rito tradicional do esconjuro – lembrei-me de repente.

                 - Não é bem o mesmo. O esconjuro faz apenas metade do caminho: tenta afastar o fantasma daquele que ele influencia, a quem causa mal. Não tenta convencê-lo a salvar-se, a integrar-se na Luz. Aqui era isto o fundamental, até porque a maior parte dos entes que se vêem por cá não anda aqui por mal, pelo contrário. Pretende continuar um projecto terreno qualquer, sem ver que o melhor apoio é o dado em harmonia com a Luz, e energia divina, íntima do Universo. Há apenas uma miopia onde o fantasma não discerne. Com o nosso apoio pode lograr trepar à plenitude espiritual e com isto ganharemos todos, ele e nós.

                 - É uma forma de oração pelos mortos – considerei.

                 - Exactamente. Mas vendo-os ao vivo, falando com eles ao vivo. É muito mais deslumbrante, não é?

                 - Claro. Então é isto que o preocupa?

                 - Não, há muito mais e mais grave. Ninguém anda a explicar o que é a nova faculdade nem como lidar com ela. Logo, os charlatães, os bruxos, os curandeiros, todos aproveitam das fragilidades e andam para aí a enganar meio mundo, roubando descaradamente toda esta multidão de gente indefesa e aflita. Fazem rezas, receitam mezinhas, dão as leituras mais estapafúrdias do fenómeno (mau olhado, bruxedo...). Quando era apenas de acalmar os progenitores e as famílias, explicando-lhes o que isto é, que potencialidades tem. E ajudar os miúdos e jovens a lidar com a faculdade nova, acolhendo os espíritos bons, arredando os fantasmas maus e impelindo estes para a Luz, onde encontrarão a plenitude, se o quiserem e logo que o queiram. No fundo, ensinando todos a gerir da melhor maneira o novo poder: em vez de o temer, tomar o domínio dele; em vez de aterrar-se com as entidades das aparições, impor o discernimento entre as boas e as más, sem terrores inoportunos, acolhendo aquelas e ordenando a estas qual o caminho a trilhar, sem deixar-se intimidar nem dominar por elas, nem influir negativamente em nenhum pendor.

                 - E os que fazem as leituras dos mortos? – lembrei-me de repente.

                 - É um bom serviço a todos a quem o prestam. Com duas reservas. A primeira é que se esquecem de prevenir que escolhem as entidades boas e preterem as que poderão fazer mal. Dão deste modo a ideia de que todos vivem no Céu. É mentira. Não o afirmam mas o silêncio deles induz em erro. A segunda reserva é que isto é temporário, até todos lograrem comunicar com o Além, e constitui apenas uma pequena amostra do enorme benefício que pode resultar do uso adequado de tão espectacular faculdade. Aquilo é apenas uma pacificação. Já imaginou o que é construir o Reino de Deus, de mãos dadas com os dois lados da vida? O Céu na terra e a terra já implantada no Céu? Incrível!

 

 

                 Fátima – 12 de Julho de 2013

 

                 Apetecia-me pôr-me à frente do espelho, à chapada à minha cara de anão bobo sem a véstia de berloques. Não há maneira de aprender a controlar o meu entusiasmo perante ouvidos débeis que podem ficar feridos sem razão. E foi o que ocorreu a meio da manhã, depois da hora de terça, quando me ofereci ao irmão cozinheiro para ir à horta trazer-lhe o braçado de alfaces e pepinos de que ele precisava para uma salada de almoço. Eu estava ao lado quando ele os pediu ao hortelão, não me custava nada dar aquele giro quintal fora, com o dia nevoento que hoje se apresentou. Até preciso de ir mexendo regularmente os artelhos, senão nem o instrutor do ginásio me vale.

                 Qual o disparate? É que fiquei nas nuvens com a conversa de ontem com o meu Mestre e, quase sem dar por ela, abri a boca diante do hortelão, que me esqueço constantemente de que é homem direito, de poucas letras mas exemplar bom senso, o melhor dum camponês matarroano das berças. E, como não podia deixar de ser, pus-lhe os cabelos em pé. Literalmente, que bem lhe reparei nos dos braços todos arrepiados.

                 - Mas então... Mas então... Ver os mortos... falar...? – ele nem atinava no que dizer.

                 - Pois, já viu que maravilha? Há montes de gente que anda a consegui-lo, dentro de algumas gerações vão ser praticamente todos. Caiu o muro de silêncio da morte.

                 - Mas é mesmo a sério?! A mim mete-me medo. Deus nos livre! E não é coisa de bruxaria, por artes do diabo?

                 - Ai, não, não! Somos nós que estamos a evoluir, atingimos a fronteira.

                 - Pois eu cá não quero. Comigo, não!

                 - Então e se for a visão de Jesus, dum santo, dum avô, sei lá?...

                 - Não, não, é melhor não, que é mais seguro.

                 - E uma aparição que Deus lhe manda, também acha que não? Como a dos pastorinhos, por exemplo? Muitos santos as têm...

                 - Ah, eu cá não sou santo nenhum, olha lá!... Não me entendo com milagres destes, é para outra gente, mais assisada, que lá eu é daqui da terra que vou tirando alguma coisa de jeito para o sustento da comunidade e pronto. Aquilo tem tamanho demais para mim, é melhor nem cuidar de altas cavalarias, não é comigo. Está bem para quem estude, que lá um casca grossa como eu, não, até se perdia a vontade de Deus, se fora coisa que viera dEle, que eu cá desconfio muito. Desconfio muito de novidades que tais, desculpa a minha ignorância, irmão Ambrosino.

                 Então caí em mim. Que estou eu a fazer, valha-me Deus? Lembrei-me de repente do diálogo com o Fr. Benedito: ele prevenira que havia muito quem sentia terror perante as novas experiências, porventura a resposta espontânea mais comum. Ora, aqui estava ela. E urgia invertê-la com o nosso empenhamento esclarecido e clarificador, em vez do alheamento generalizado actual. Ora, logo à primeira, dei um grande exemplo! Ainda para mais, foi apenas com a novidade, que faria se fora com um facto, com um avistamento! Teria dado cabo do pobre do hortelão. Se ficou de pêlo arrepiado só com uma nova destas, para mim e para o meu Mestre tão esperançosa e prenhe de promessas, ficaria em estado de choque? Teria perdido os sentidos? Ficaria louco? Sou tão desprevenido como tapado. Não tomei precaução nenhuma, esfusiante com as potencialidades da nova perspectiva. Nem entendo aquela reacção, inteiramente fora dos meus parâmetros. Como é que uma coisa tão prometedora pode desencadear o terror e a fuga? Uma resposta destas arrisca perder tudo, fica a marcar passo no ponto de partida, quando a porta aberta se alarga à infinidade do horizonte. Que atitude mais castradora!

                 Claro que inverti logo o rumo do diálogo, apressei o irmão hortelão a apanhar os legumes requeridos, reafirmei-lhe que aquilo não era nada connosco, fique descansado, que o que nos faria falta deveras era mesmo a horta e o pomar bem virentes, o mais é teoria lá para os mestres. E bem me custou isto, que por dentro ando vibrando mesmo ao contrário: é tão prometedor o mundo novo que ali adivinhamos!

                 Duma coisa estou convicto: não tenho deveras jeito nenhum para ajudar as gentes a não reagirem mal a estas realidades. Logo à primeira, mesmo sem ocorrer ainda nada, deitei logo tudo a perder. Sou mesmo um desastrado! Nem vejo como é que poderia ser doutro modo, como faria a abordagem para pôr um indivíduo entusiasmado como eu. Aliás, isto deixa-me tão confuso que até me vejo a esfriar perante aquela nova faculdade em desenvolvimento entre nós: se ela aterrar assim tanto e tantos, então cuidado, que em lugar de bons frutos pode dá-los maus, até muito maus mesmo. Estou a lembrar-me da caça às bruxas, durante séculos: se calhar andámos a matar estas novidades que nos traziam o mais formidável fermento de porvir, depois do da fé.

                 Corri para a cozinha mal fiquei com o braçado cheio do que era requerido, a pôr-me rapidamente longe do pobre hortelão que afinal, sem querer, vim desinquietar. Espero que oblitere a minha fala tonta rapidamente e que os pêlos dos braços se lhe acamem pacificamente no lugar.

                 Entrei de rompante na cozinha criticando-me da minha estupidez e falta de sensibilidade (eu deveria ter conseguido prever e prevenir aquela atitude aterrorizada), quando dei de caras com o irmão cozinheiro. Ele reparou logo. Pronto, temos o caldo entornado!

                 - Que cara é esta, irmão Ambrosino?! Viste um fantasma! – ironizou, mas preocupado.

                 Como poderia eu evitar? Tive de lhe contar tudo.

                 - Anda mesmo a ocorrer? Fantástico! Não ligue ao nosso irmão hortelão, é uma alma simples, uma coisa destas é demais para ele. A barreira da morte a ser ultrapassada, o silêncio quebrado, os laços reatados... é o Mundo Novo! Principiou o Mundo Novo! É a promessa apocalíptica a cumprir-se, irmão Ambrosino!

                 Eu olhava-o, aparvalhado com a resposta. Não encontrava palavras para preveni-lo de que, cuidado, isto até poderia vir a dar muito mau resultado, em vez de bom. Sentia-me perdido, o outro aterrou-se, este fica esfusiante, fora dele com o entusiasmo. Que é suposto eu fazer ou dizer? Tenho de pôr água na fervura, que a perversão do óptimo dá o péssimo. O provérbio repentinamente acalmou-me.

                 - Ó irmão, eu também reagi tal e qual, mas repare que, mal usado, um poder destes pode danificar para além de tudo o que até agora conhecemos.

                 - Qual o quê! Atingimos o Todo, temos o Absoluto ao alcance. É a grande festa final, quem duvida? Uma coisa destas!

                 De repente lembrei-me dum episódio narrado em Um Voo Sensitivo da Alexandra Solnado, mesmo a talho de foice.

                 - Parece mas não é o salto no Infinito, ainda não. Olha que nem Jesus o atinge. Pediu para ser encaminhada para a Luz uma amiga de infância que, revoltada com a morte dEle, ficou por aqui e recusou-se a subir. Se nem Ele o logrou, como vamos nós ter a pretensão...? É o primeiro ressuscitado e vê só! Nunca iremos entender o lado de lá, Deus nunca é deveras alcançável. É e será sempre inominável, não é?

                 - Ora! Pronto, digamos que é um sinal do Outro Mundo que nos abre a porta. Mas olha que é mesmo uma novidade do Outro Mundo, não minimizes.

                 - Calma, viste o que fez ao hortelão? Que é que faria às multidões, aí no meio da rua? O terror e os autos-de-fé, por um lado, o espanto e o fim do mundo, do outro. São dois exageros paralelos. São dois erros e poderão dar cabo de nós. Os desajustamentos pagamo-los sempre em perdas.

                 - Ora! Ficaste tão empolgado como eu. Não vale a pena fingires.

                 - Não estou a fingir nada. Isto entusiasma-me, se calhar para além do razoável. Estou preocupado é com outra coisa. A confusão disto com o Absoluto, com o Céu, com Deus. É quase dizer que é a segunda vinda de Cristo, a parusia. Ora, não se trata de consumação final nenhuma nem de nenhuma verdade absoluta qualquer que finalmente se atinge. Cometemos sempre a mesma asneira.

                 - Ah! Entendo. Outra vez a hipóstase, o triunfalismo, o fisicalismo. É isto? Claro, é muito tentador e, se calhar, estou mesmo a cometer o erro.

                 - Pois. Caímos nele sem dar por nada, mal nos precatamos. E tem sido sempre o mesmo, história além. Convencemo-nos de que agarrámos Deus ao descobrir a viabilidade da ressurreição: temos um ressuscitado, temos a porta aberta para o Além, agarrámos o Céu, atingimos Deus... Com qualquer dogma definido, o mesmo. A esperança é tanta, a fé tão expectante que confundimos constantemente o prenúncio com a consumação, a parte com o todo, o sacramento com a consumação do mistério que aponta e assim por diante. A Bíblia é a palavra de Deus e esquecemo-nos dos homens que a foram laboriosamente escrevendo. É permanentemente isto. Depois dogmatizamos tudo e mais alguma coisa. E quanto mais ignorantes, mais dogmáticos. E quanta ignorância corre pelas fileiras dos crentes, até dos oficiais do ofício!

                 - Tens razão! Até nós que estamos aqui, que é que tratamos de aprofundar? É mais fácil deixar correr. E o que está bem não se muda, não é? Com o tempo é encarado naturalmente como uma verdade final, quando pode ser a escolha mais banal e transitória que ocorreu. É verdade que qualquer asneira de antanho, ao vir nimbada de história, ganha foros de venerável e, não tarda, é sagrada. O tempo tornou-a intocável. Agora, repara, estamos a falar, não do passado, mas do futuro. Andamos a inaugurar uma nova etapa e que é espantosa. Portanto...

                 - Portanto, irmão cozinheiro, estás a ver como a dogmatização principia? Quase de certeza que é deste jeito, com um entusiasmo desmedido, que não mede as proporções. Então não relativiza a vivência, projecta-a ao infinito. Não teria mal nenhum se a não confundir com ele. Nesta confusão é que está o erro. O Infinito nunca se hipostasia, o Absoluto nunca se fisicaliza, Deus em nenhum aspecto se deixa capturar por um dogma, seja qual for. O nosso triunfalismo é o pior dos equívocos, daí a derrota gradual através dos séculos, tanto maior quanto mais operámos em conformidade com ele. E tudo principia com um juízo desajustado no momento da revelação. Ficamos tão eufóricos que nunca queremos abandonar de boa vontade o Monte Tabor onde se nos revelou a transfiguração.

                 - De acordo. Irei conter-me. Ou melhor, conter-me, não, que a maravilha é para a sentirmos e partilharmos como maravilhosa. Mas estarei vigilante para não precipitar os meus juízos com a confusão dos dois mundos. Tens toda a razão, irmão pequenino, que tens alertas bem maiores que o teu tamanho, acredita em mim. Certo, portanto, a aventura continua, nada está consumado. Mas lá que há um passo em frente, irmão, há mesmo.

                 - Pois há e eu bem gostaria de dá-lo com os que o dão. Mas sou mesmo tapado. Basta-me a alegria de lhes dar uma palmada nas costas de parabéns.

 

 

                 Fátima – 13 de Julho de 2013

 

                 De repente lembrei-me. Foi numa aula de Psicologia do antigo Curso Complementar. O Veiga trouxe, a propósito de fenómenos paranormais, alguns textos da Sociedade Espanhola de Ovnilogia, onde davam conta dum encontro com extra-terrestres e das conversas havidas com eles. Como éramos todos jovens, aquilo tornou aquela aula num momento entusiasmante, com o confronto de todas as atitudes viáveis, desde o céptico mais renitente que acusava tudo de fraude, até ao que acreditava na boa fé do autor mas o cria com alucinações, até quem julgava que eram percepções extra-sensoriais de quem era superdotado, até à postura do Veiga que era diferente de tudo.

                 - Eles já lá chegaram. Nós ainda por aqui andamos às apalpadelas, - afirmava ele, inteiramente convicto – quando eles alcançaram o que todos nós visamos, já lá estão.

                 - Aonde? – questionava o professor. - Estão onde? Explique lá o que está vendo.

                 - Conseguiram realizar tudo o que o homem sonha. São o homem total, os sonhos estão todos realizados, ali não há mais falhas, atingiram a perfeição. Nós é que andamos ainda aqui, muito atrasados.

                 - Alcançaram a plenitude? – insistia o mestre. – Aquilo é o paraíso?

                 - É o homem integral, poderia afirmar que é o paraíso. É o que nós ainda buscamos. Estamos por ora demasiado longe, mas eles, não. Já lá vivem. É o céu em que muitos creditam por cá e de que falam. Eles chegaram lá, é aquilo, o estado perfeito. Têm tudo, quem me dera!

                 - A religião dos OVNIs?! Ó pá, não me lixes! – ironizava o Freitas. – Vamos de mal a pior. Ao menos a outra era do outro mundo. Que é isto agora? Adorar um OVNI?! Estás parvo!

                 - Ó pá, não é adorar, mas é ver que aquilo é tudo o que a gente mais quer. E eles conseguiram-no, nós ainda não. – defendia-se o Veiga. – Diz lá que não gostavas, hein?

                 - Pois, gostar, gostava. Mas daí até... – retrucou o Freitas, meio abespinhado. – Ó pá, só falta pores-te aí de joelhos a rezar ao OVNI! Nem tanto ao mar nem tanto à terra.

                 - Então e depois?

                 - Eu não digo?! Estás passado, Veiga!

                 - E tu já viste alguma coisa melhor? Diz! Já viste? – contrapunha o outro.

                 O professor trouxe à colação outro dado. Alguns de nós tínhamos ido a um filme polémico, o Mundo Cão, onde ressaltava uma cena filmada algures no centro do continente africano, ao sul do Sara, em plena floresta. Havia aí uma tribo muito isolada de caçadores-recolectores que integrara na respectiva religião animista um culto inesperado, a que peregrinavam regularmente, com procissões e cantorias, numa grande festa onde elevavam ramos verdes ao ar. Tinham o santuário no planalto duma colina coberta de ervagem mas ali não cresciam árvores, só capim. Ora, o que constava de tal recanto sagrado era nem mais nem menos do que a réplica... dum avião! Eis o deus deles! Feito de troncos, tábuas grosseiras e paus. Mais: oravam para o deus pousar na colina e os vir salvar!

                 - Que é que vocês diriam a esta tribo acerca do que julgavam do avião? – questionou o professor.

                 - Ora! Que era uma parvoíce – retrucou logo o Freitas. – Grande deus, não haja dúvida!

                 - Mas tem muito a ver com a leitura do Veiga, ou não? – insistiu.

                 - É muito diferente – argumentou o visado. – Um avião! É o que mais há, não tem nada que se compare.

                 - Olha, não?! – retomou o outro. – Para nós é vulgar, mas para eles uma aeronave é uma visita do outro mundo, é deus a viajar pelos ares. É exactamente a figura que tu estás fazendo com os OVNIs, só te falta o santuário e a peregrinação. Aliás, há quem o faça, na América há uma seita com aquela religião. Vá lá, tu ainda não chegaste a tanto.

                 - Há, há, que eu vi, no filme Contacto, do Carl Sagan. É uma seita fanática, terroristas que quase matam os cientistas e abortam o projecto – confirmou uma colega, creio que era a Anabela.

                 Eu só mais tarde viria a ler o romance que dera origem ao filme, em grande parte movido pela curiosidade desperta nesta aula.

                 - Mas que há de errado na atitude da tribo? – insistiu o mestre.

                 - Ora! Porem-se a adorar um objecto banal como se fora Deus, – reflectiu o Veiga. – embora implique para eles uma enorme evolução para ali chegarem.

                 - E porque é que não é Deus nenhum? Como lhes explicariam vocês?

                 - Então... nós estamos aqui, temos aviões e ninguém é deus de jeito nenhum, não é? – respondeu o Freitas. – Se nos tomarem por deuses, bem, então, é ver a asneira nos Descobrimentos com os índios da América. Nós ainda os deixámos sobreviver mais ou menos, mas aqui os vizinhos espanhóis foi cada massacre! Grandes deuses, não haja dúvida! Só se fossem demónios: levaram-lhes o inferno, não é?

                 - Contudo, eles julgam que nós nos deveríamos sentir deuses. Não nos sentimos? – o professor não desarmava.

                 - Quem, nós?! – a Manuela era das alunas mais brilhantes, mas raramente intervinha nos debates. – Ora! Passamos o tempo em guerras, conflitos, somos uns fracassados, queremos sempre mais e melhor, cheios de invejas uns dos outros, de ódios, de traições... E a miséria e os miúdos abandonados e a fome e a injustiça dos podres de ricos ao lado dos bairros de lata em que nem reparam... Grandes deuses, nós! Ficava aqui a noite toda a alinhar a lista dos podres... Eles apenas precisariam dum dia connosco, abriam logo os olhos. Não era pedir muito, o estendal é tão grande que lhes entraria pala vista dentro, nem que o não quisessem...

                 - Em conclusão, isto aqui não é o céu? – ironizou o mestre.

                 - Nem pouco mais ou menos! Mais depressa é um inferno – comentou outro qualquer, atrás de mim.

                 - Imaginando que os OVNIs são reais, que é que daqui concluímos para a atitude mais correcta a ter? Que lhe parece, Veiga? – o professor não desistia de obter uma postura lúcida, equilibrada.

                 - Estou-me a lembrar de Os Deuses Devem Estar Loucos, viu o filme, não viu? Fartei-me de rir. E acho que é um bocado aquilo. Está bem, são deuses, mas loucos. Portanto, não são deuses nenhuns, mas lá que nos desafiam, desafiam. E bem gostaríamos de chegar além, onde eles já andam. Como os bosquímanos, não é? Mas depois íamos dar com as guerras deles, com os criminosos, com a escravidão, os raptos... Sei lá, os problemas que eles tiverem. Não são os daqui, de certeza, são os do mundo deles. Podem é já ter resolvido aqueles com que nos debatemos, creio eu. Estão mais à frente...

                 - Snr. Dr., tenho uma dúvida – interrompeu o Mota, o mosca-morta, creio mesmo que foi a única vez, que me lembre, que interveio numa aula. – Li um livro em que defendem que os deuses antigos eram, afinal, astronautas, extra-terrestres que nos visitaram. Até a televisão tem programas disto. A religião, então, vem daqui, é apenas isto, não é? É como a do avião, é tudo o mesmo. Ou a dos OVNIs, igualzinha. Que grande aldrabice! Que é que o Snr. Dr. acha?

                 - Boa questão! Que é que julgam? Vamos respeitar as escolhas de fé de cada um, para podermos reflectir e ver claro até onde for viável. Correcto?

                 A Manuela, católica convicta, fez logo questão de pôr os pontos nos is à partida.

                 - Eu gosto pouco de falar, gosto mais de ouvir, mas agora farei alto. Para mim que sou católica isto é muito claro. O Deus em que acredito não tem nada a ver nem com astronautas extra-terrestres, nem com OVNIs e então com aviões divinizados, só para rir... São realidades de tipo diferente, mundos diferentes. Apenas para que me entendam, o mundo divino é o reino do espírito. Nós partilhamos dele pela nossa interioridade. A vida interior, em nós, tem muitas dimensões, mas aponto apenas duas que todos compreendem: o pensamento que nele próprio não é uma realidade percepcionável (o povo diz que o saber não ocupa lugar) e o amor que não tem conta nem medida. Não me refiro às expressões deles, mas ao que forem em si mesmos. Deus é desta natureza, é o absoluto, o infinito dela, o Espírito em pleno.

                 - Explique melhor a distinção entre o que são e as expressões deles – insistiu o professor.

                 - O que me ocorre é este exemplo: todos vemos por aí textos em chinês. Têm um pensamento qualquer incluído neles. Para mim, como para quem, como eu, não souber chinês, vejo a expressão mas não capto o pensamento. São realidades distintas, de natureza diferente, irredutíveis uma à outra. Quando refiro a dimensão espiritual do pensamento é a da mensagem que não descubro no texto chinês que a tenta exprimir. A expressão é percepcionável, o pensamento é apenas vivido dentro de nós, por quem o pensa, não tem qualquer dimensão no espaço que os sentidos doutrem logrem captar. São dois mundos diferentes: tradicionalmente dizemos que o homem é constituído de corpo e alma. Esta é a dimensão da alma e o meu Deus é desta natureza, espírito puro. Não tem nada a ver com aquela conversa.

                 - Mas se as religiões vierem dali... – argumentou o Freitas.

                 - Calma aí, pá! – interrompeu o Veiga. – Todas?! Como descobriste?

                 - E tudo nelas? – insistiu a Manuela, apontando implicitamente a mesma tecla da espiritualidade.

                 - Eu explico – retomou o Freitas. – Se vem uma (e vimos que vem uma, por muito animista, primitiva que seja e muito limitada em crentes), então, por hipótese, podem vir todas. Não afirmo, ponho a hipótese apenas, certo? Sei lá bem! Por outro lado, não proponho nada sobre o conteúdo delas, se tudo deriva ou não daquela fonte. Coloco-a na origem porque me parece ter alguma probabilidade e razoabilidade, tendo em conta os factos e as atitudes perante eles que viemos anotando.

                 - Reparando bem, para mim, até podem vir todas dali. Qual é o problema? – o Veiga, de repente, parecia não lograr encaixar bem as várias partes da pergunta. – Vejo uma realidade mais ou menos deste modo, como nos OVNIs: está correcto, eles não são deuses, mas revelam uma dimensão nova do Universo, um género doutro mundo que nem adivinhávamos que podia existir e que, afinal, pode estar ao alcance. Mais: que é tremendamente atraente, é um íman de nos fazer perder a cabeça. Aquilo é mais que O Feiticeiro de Oz ou Alice no País das Maravilhas. Quem é que não vai correr atrás, não é?

                 - Ora! A religião do avião... e nós aqui com os aviões a sabermos o que vale... – murmurou de lado o Mota, mais para ele que para a turma, mas o Veiga ouviu o argumento.

                 - O ponto é esse mesmo, aí é que está! – exclamou, virado para o colega, como quem agradece uma pista luminosa. – Julgo que apanhei. É o outro mundo: começa por ser uma realização mais avançada neste mundo que nos abre os olhos. Nós podemos transformar este mundo noutro, como atingir outros a partir deste. Isto permite-nos descobrir que tudo provém do potencial que temos cá dentro, na vida interior. A viragem está aqui. Tudo pode principiar no mundo exterior, no Universo, com uma experiência qualquer que nos deixe fora de nós, que nos extasie. Logo damos conta de que temos o poder de trepar até ao nível dela, até ao que nos arrebata. A nossa interioridade anda armada com recursos para treparmos ao infinito e o Universo ei-lo disponível e aberto a que trepemos por aí fora, sem limite. Isto culmina num horizonte de Infinidade realizado também interiormente, com todo o nosso potencial em acto, desde as raízes mais profundas, até inatingíveis, e também exteriormente, com o Cosmos inteiro aberto à nossa demanda. Isto é uma perspectiva de Deus e de plenitude do arco da velha, só vos digo! – terminou, pasmado, como quem acabou de acolher uma revelação do Além.

                 A turma quedou num silêncio tão grande, tão profundo, que recordo que o professor o rotulou de religioso, num comentário ocasional, no dia seguinte.

                 Vem toda esta memória a propósito de que Fina d’Armada defende que as aparições de Fátima foram um evento OVNI ocorrido em 1917, quando ainda ninguém o tinha estudado como tal nem desvendado, o que irá decorrer apenas a partir de 1946, com o primeiro avistamento relatado por um piloto aviador que na Grande Guerra combatera em caças americanos.

                 A resposta a uma tese tão contraditória da atitude de milhões de peregrinos foi praticamente nula. É uma proposta tão exclusivamente secular, tão a-religiosa (para não dizer ateia), sem qualquer pendor de interioridade, nem lugar a partir donde esta se poderia implantar, que foi ignorada por inteiro por todo este vector de crentes, como se nunca tivera sequer existido. Contudo, os dados históricos dão que pensar, as correspondências e sobreposições com uma infinidade de eventos OVNI posteriores são demasiadas. Principalmente a primeira aparição, cujo avistamento é feito prioritariamente por uma quarta vidente de que ninguém fala, mas que em tal dia acompanhara Lúcia, num terreno um pouco afastado da Cova da Iria, por onde hoje se estende a Via-Sacra e se encontra a imagem do chamado Anjo de Portugal. A nuvem que se vai lentamente aproximando delas e que pouco a pouco toma a configuração dum jovem muito formoso, segundo o critério das crianças, configura o que hoje designaríamos por holograma que gradualmente vai sendo afinado para ser apreensível pela vista delas. Sabemos também que nas aparições posteriores nunca fica ajustado à visão do Francisco que lhe chega a atirar uma pedra porque não vê nada.

                 Isto e tudo o mais que a investigação histórica permitiu reconstituir poderia ser o cavalo de batalha dos descrentes de Fátima. Não o foi, porém. Os incréus ignoram tanto tal tese como os crentes. E por uma boa razão. É que Fina d’Armada propõe substituir uma crença por outra, nada mais verosímil, pelo menos por ora. Quem é que acredita em OVNIs, com a cortina de silêncio oficial do mundo inteiro? Com os cientistas desacreditando-se mutuamente, com as mais variadas atitudes e especulações relativas ao fenómeno? Com as suspeitas a perseguir as carreiras de quantos se atrevem a dar a cara para testemunhar o que experienciaram (e nem sempre é convergente ou do mesmo teor ou tipologia)? Qualquer descrente de Fátima descrê igualmente disto. É mais uma especulação (para não dizer alucinação) entre muitas outras.

                 Contudo, mesmo que fora um evento OVNI, nada retiraria à dimensão e projecção espiritual que teve e tem. Tudo por causa do itinerário interior trilhado pelos intervenientes. Primeiro, as crianças. Da perplexidade e do sigilo primitivos, rapidamente evoluíram para uma leitura religiosa do ocorrido. Esta deveio a plataforma de comunicação que ofertaram a quenquer que lhes aparecia, findou a estabelecer o contacto em tal base. Até se compreende melhor a religiosidade infantil, superficial, da mensagem, dum ritualismo exterior corriqueiro, inteligível para crianças de aldeia, imersas numa crendice popular sem espiritualidade autêntica nenhuma. Isto foi desmultiplicado logo pela família e comunidade, bem como pelas autoridades religiosas e civis, uma vez transpostas as primeiras suspeitas e dúvidas. A partir daqui, com o avolumar das multidões, o desafio torna-se exclusivamente religioso. Os pastorinhos mais novos, Francisco e Jacinta, não têm tempo de aprofundar a vivência espiritual, morrem pouco depois, crianças ainda. Lúcia sobrevive decénios, professa como freira contemplativa e vai aprofundando a vivência interior. O conteúdo doravante já não tem de ser o duma religiosidade superficial, popular e infantil. Progride no normal itinerário duma irmã com votos que se dedica à busca duma autenticidade espiritual de vida. E vai cobrindo o respectivo caminho pelos decénios além. Com uma particularidade: as resistências interiores que qualquer outra criança-jovem-adulta encontraria, tombaram durante as experiências das aparições. Ela então consegue ser interiormente mais maleável, disponível e transparente que outra qualquer que não tenha cruzado pelo tremendo abalo das aparições e todas as respectivas sequelas, boas e más. Caíram-lhe todas as defesas ali, duma vez para sempre, para o resto da vida.

                 É isto que permite entender o que, por exemplo, o P. Mário de Oliveira, em Fátima Nunca Mais, não entende: que para o fim da velhice ela confirme que, depois do termo das aparições na Cova da Iria, agora comunica com Nossa Senhora permanentemente, praticamente todos os dias. Por muito estranho que pareça a quem não tem contacto normal com o Além de forma sensível, qualquer meditador que o tenha ou qualquer indivíduo nascido com tal dom não acha nada de invulgar naquilo, é também da própria experiência quotidiana dele. Porque não na de Lúcia, ainda para mais após uma vivência tão avassaladora como aquele terramoto por que passou em criança? É mesmo desta maneira que as coisas ocorrem. Apenas o não seria se ela mantivesse escudos interiores, barreiras preconceituosas que o impediriam. Ora, o caminho que fez não foi este, foi o de ir explorando a espiritualidade até ao limite do que podia e ia entendendo. O resultado apenas poderia ser mesmo aquele. De estranhar não era isto, mas ocorrer o contrário.

                 Com OVNI ou sem OVNI, com Nossa Senhora ou sem ela, o facto é que os pastorinhos abriram a porta à vivência da espiritualidade mais profunda de que quenquer for capaz. Isto é que conta, isto é que, afinal, nos pode salvar em Fátima e a torna altar do mundo. O mais é folclore: bom para entreter, mais nada. E não deve distrair daquilo, o fundamento.

 

 

                 Fátima – 14 de Julho de 2013

 

                 Hoje, domingo, após mais um dia 13 de Fátima em fim-de-semana foi momento de muita agitação por estes lados. Temos sempre várias visitas de leigos que de algum modo se ligaram ao convento, mormente os que frequentaram ou frequentam Teologia e que arrastam com eles familiares, amigos e conhecidos. Quebra-nos a rotina e realimenta-nos de novidades e de preocupações de que, doutro modo, nem teríamos nota.

                 Só para ficar com uma ideia da fecundidade destes encontros transitórios, vou tentar listar quantas aporias vieram hoje a talho de foice e contando apenas com os meus visitantes (os docentes daqui têm, por norma, tantos ou mais do que eu e calculo que bem mais problematizadores).

                 A pergunta mais grave tem a ver com a ressurreição de Jesus. Há dois romances de grande sucesso mundial, um de Daniel Silva, outro de José Rodrigues dos Santos, que levantam um problema decisivo: foi encontrado por arqueólogos, há uns anos atrás, o túmulo da família de Jesus, em território de Israel. As autoridades israelitas tomaram medidas imediatas para o vedarem ao público, bem como retiraram, guardaram e tornaram secreto tudo quanto ali foi encontrado. Ora, entre as várias ossadas identificadas, de José, de Maria, de Tiago, estão também as de Jesus. A questão é: ressurreição como? Corpo glorioso como?

                 Depois outro berbicacho: que sentido faz o apelo ao respeito do que é natural para fundamentar normas morais? O caso mais grave é o da contracepção, mormente do uso da pílula, em que a generalidade dos cristãos não acredita na doutrina oficial da Igreja. Mas ao lado deste há outros: a homossexualidade, por exemplo.

                 Mais grave ainda, quando a pergunta é que sentido pode ter um fundamento moral que meramente se ancore nos usos e costumes ancestrais. Que renovação, que mundo novo pode vir daqui? E não era este que o cristianismo teria de trazer à terra? Que implica a Boa Nova, o Evangelho senão isto? A verdade, porém é que, por exemplo, toda a moral do amor-paixão e da sexualidade apenas tem aquele fundamento. Que andaremos, afinal, a fazer no mundo?

                 Finalmente, um desafio que é mesmo individual: que dizer a uma família que resolveu radicalizar as escolhas, seguir até ao limite as exigências da ressurreição e derivada espiritualidade, e que isto redundou em atitudes tão para além das fronteiras convencionais como não se casar pela Igreja, eliminar os ritos e os sacramentos, não baptizar os filhos, para educá-los (e educarem-se mutuamente todos no lar) numa espiritualidade a partir da vivência íntima familiarmente compartilhada, visando a humanização integral em comunhão com quanto na comunidade e no mundo a aprofunde, estimule, reforce e confirme? Um esforço de secularização completa, levado ao limite.

                 Isto põe-me a cabeça zonza. Onde é que um anão minúsculo de corpo e de entendimento pode algum dia fazer luz em semelhantes coisas? É fácil condenar tudo e varrer o pátio dos crentes. É assim a Igreja tradicional, mas isto é a Igreja traidora. Jesus e o Espírito encontram tão pouco lugar nela que andam falando e agindo lá por fora, entre quem não tem nada a ver connosco. Que é que o parvo dum anão pode fazer senão conter-se e perguntar então que lugar lhes pode abrir? As respostas tradicionais estão infectadas, não são muito cristãs nem são deveras espirituais, por mais bem-intencionadas que tenham sido, por mais virtuosos que os mentores delas hajam em concreto vivido. Desviaram-se muito, não se lhes consegue reconhecer, praticamente, autenticidade nenhuma quando as conferimos com a inspiração proveniente de nosso imo mais profundo e o eco de nosso coração. E quando as conferimos com isto mesmo nos demais crentes, nos demais humanos.

                 Ora, nestes termos, que fazer? Ouvir, ouço. Não julgo, acolho. Mais, porém, não consigo e todas estas almas andam esfomeadas de alimento veraz de que não disponho.

 

 

                 Fátima – 15 de Julho de 2013

 

                 Nem o Papa dispõe. Nem, aliás, tem de dispor. Ele deve antes implantar pontes entre as pontes de todos os mais. É o Sumo Pontífice, o criador de pontes dos criadores de pontes, os pontífices, que terão de ser os bispos, os padres, os diáconos... Mas pontes entre quem? Em meu entender de míope crónico, só vejo dois territórios: o dos teólogos e o dos leigos a quem apelidaria de místicos - os que inaugurarem roteiros espirituais inéditos na perene busca do Infinito. Por ora não há nada disto ainda, que os ocupantes destes dois domínios foram desde há muitos séculos atados de pés e mãos por uma hierarquia totalitária, à maneira do Império Romano (que copia, em vez de o ter reconvertido, cristianizado). Esta conversão ao Império não é das menores chagas da Igreja institucional. Aliás, tende a chagar o resto em cadeia, em todo o corpo social eclesiástico.

                 Andava eu meditando nestes termos, a palmilhar a biblioteca como um autómato, um livro aqui, uma revista além, quando Fr. Benedito entra porta dentro à minha procura. Nem vinha em busca de obra nenhuma, era por mim a demanda, que suspeitou que o reboliço das vésperas me teria deixado alterado, cheio de questões e de novidades a terem de ser equacionadas. Conhece-me melhor que eu a mim próprio. Evidentemente que me não fiz rogado em pô-lo a par dos meus sobressaltos.

                 Concentrei-me no problema da ressurreição: com o esqueleto de Cristo encontrado, como é? Ressuscitou em corpo e alma? Que é que isto, doravante, quer dizer?

                 - Ah, sim, não me admira o desnorteamento – comentou logo o meu Mestre. – Mas é sempre o mesmo: toma-se uma teologia qualquer como a verdade e pronto, mal um facto a contradiz, derrubando-a, jogamos fora com ela a mensagem que lhe subjaz. O que temos é de refazer, aqui como em tudo, em qualquer que seja o campo, a teologia que interpreta os dados. E sempre bem convictos de que ninguém nunca é dono da verdade, qualquer que seja o grau de aproximação atingido ao que ela será, por fim, na plenitude derradeira.

                 - De qualquer maneira, em corpo e alma?! O esqueleto estava, afinal, no túmulo...

                 - Pois parece que sim.

                 - Parece?! Afinal, é ou não é? É da maior importância...  – ia eu a argumentar.

                 - Não é, não - cortou cerce Fr. Benedito. – Não tem mesmo qualquer tipo de importância, absolutamente nenhuma.

                 - Essa agora! Madalena encontra o túmulo vazio e vem-lhe ele falar em porte de jardineiro. É o que lá está...

                 - Pois é, e daí?

                 - Então como é que as ossadas estão na tumba da família?

                 - Se forem as dEle (e nunca saberemos, podem ser doutro qualquer), é porque trasladaram o cadáver para lá, certamente de noite e clandestinamente, como as circunstâncias obrigariam. É a atitude mais natural do mundo. Qual é o problema?

                 - Então quem é que apareceu a Madalena, aos Apóstolos, aos discípulos, a S. Paulo...?

                 - Jesus ressuscitado, evidentemente. Esta é que é a novidade espantosa.

                 - Mas como, se o cadáver estava no túmulo, afinal?

                 - A pergunta apenas faz sentido se o irmão Ambrosino estiver prisioneiro da teologia fisicalista tradicional em que embarcámos infantilmente desde o princípio.

                 - Contudo, é o que está no texto do encontro com Maria Madalena. Por isso ela vem a correr informar os outros, o túmulo está vazio.

                 - Ela até pode ter confundido os dados. Mas repare: em lado algum ela (ou qualquer outro) diz que o corpo de Jesus ressuscitado é o do cadáver deposto na tumba. Em lado algum. Correcto?

                 - Correcto. Mas de certeza que ela julgou que era: não está na tumba e vem-lhe falar disfarçado de jardineiro. Que é que alguém cuidaria? Era juntar dois e dois, não é?

                 - Pois, eu de certeza concluiria o mesmo, em tal contexto. E daí?

                 - Jesus não corrige a confusão. Deixa o erro grassar? É um bocado estranho.

                 - Julga? Onde é que Jesus (ou Deus, já agora) alguma vez se incomodou com a teologia que fazemos? Com os conceitos que elaboramos, as teorias que inventamos? É nisto que Ele interfere ou nos actos que praticamos? Seja no Antigo, seja no Novo Testamento. Seja nos textos canónicos, seja nos apócrifos. Há algum dogma ou algum anátema pronunciado por Deus ou Jesus? Encontra algum? Já quanto às práticas é outra coisa, aqui corta a direito. Mas no pensamento, encontra?

                 - Que eu saiba, não. Mas aquilo é uma confusão grosseira, ainda para mais duma discípula predilecta. Seria de esperar alguma consideração por ela...

                 - Se calhar Ele tem mais do que julgamos. Primeiro, ignoramos se confundiu as duas realidades, cadáver e corpo glorioso, como ocorreria connosco ali, como ocorreu com a teologia tradicional durante dois milénios. Depois, Jesus ia perder tempo com tal ninharia quando lhe estava mostrando que vencera a morte e domara a matéria para além de tudo o que era concebível? Que é que aquilo importava? Que é que nos importa semelhante ninharia? Que é que importaria à própria Maria Madalena? Nada, ela corre a dar a novidade da ressurreição, não a propor qualquer teologia acerca dela, esteja ou não confundida neste particular. Perante o espantoso dum ressuscitado, tudo o mais perde o valor por inteiro, não gastamos sequer tempo com isso.

                 - Concordo. Mas repare como hoje importa. Os que me contaram andam deveras baralhados. Pode deitar por terra toda a Boa Nova no coração de muita gente, aniquilar a especificidade do cristianismo. A fé perderia um referencial-chave, para nós e para todo o mundo, na era do ecumenismo. Perderíamos a nossa achega mais relevante a partilhar com os demais.

                 - Ah, sim, perdemos, se não enterrarmos de vez o fisicalismo, esta multissecular mania de encaixotar tudo em realidades físicas, selar e guardar no depósito, onde mais ninguém se atreva tocar-lhe. Como se o espírito pudera ser acorrentado numa qualquer dimensão física, como se Deus se deixara escravizar numa qualquer materialização ou concepção, alguma vez, em qualquer que fora a vertente. É um erro crónico que depois leva (e levou sempre, pelos séculos fora) ao triunfalismo do vazio, da ausência de espiritualidade, da falta de vida interior a caminho, a secularizar-se laboriosa no mundo. E a chacinar os infiéis à espadeirada, claro.

                 - Mais um caso, é? Mas lá, com Maria Madalena e os outros, não teve problema...

                 - Eu julgo que teve. Repare em S. Tomé. É um episódio que não tem sido lido à luz destes dados.

                 - Ele não acreditou. Depois viu, palpou as chagas. Como é que tem a ver com isto?

                 - Imagine que houve uma trasladação nocturna clandestina. Quem a faria? Decerto Tiago, o irmão de Jesus, Maria, a mãe, José, o pai, se fora vivo ainda. Precisariam da ajuda de mais alguém, que os pais de Jesus não teriam força bastante para ajudar Tiago a remover a pedra de entrada. Teria de ir alguém da roda íntima. Terá sido, por hipótese, Tomé. Sabendo todos o risco que corriam de ser mortos depois, caso fossem descobertos, ficaram num silêncio de morte. Quando entre eles corre a nova da ressurreição de que nenhum sequer suspeitaria antes, Tiago e os pais mantêm o silêncio, que serão as primeiras vítimas se houver represálias. Mas Tomé, que ninguém ligaria àquela manobra secreta? Imaginemo-nos da pele dele. Sabe bem onde depositou o cadáver, ouve as conversas e a euforia, a ligação entre o túmulo vazio, se calhar, e o ressuscitado. Só que ele não pode confiar a ninguém porque é que o sepulcro não tem nada. Se fôramos nós, que é que faríamos?

                 - Pois, em tal hipótese não é provável deixar os eventos correrem, como se nada fora. A dúvida dele aí faz muito mais sentido. Ele sabia o que os mais ignoravam. Teria de tirar a limpo uma coisa daquelas. O cadáver conhecia onde o depositara. Então que era isto que contavam? Tinha de ver as chagas, de tocar-lhes. Os outros poderiam embarcar na lógica: sepulcro vazio, logo, ressurreição. Ele, não, mas não podia abrir a boca quanto a isto. Restava tirar tudo a limpo. Estou a entender.

                 - Mas ainda não entendeu que, nesta hipótese, fica liquidada definitivamente a teologia fisicalista da ressurreição.

                 - Porquê? Não vejo de todo.

                 - Porque, para S. Tomé dizer “meu Senhor e meu Deus!”, é que separou de vez o cadáver do corpo glorioso. Não é o sepulcro vazio que lhe serve de ponto de partida, é a realidade que se lhe apresenta diante. “Põe o dedo nas feridas e não sejas descrente mas fiel.” Mais uma vez, nenhuma referência ao túmulo, fizesse ele o que fizesse nas cabeças dos mais, porventura de sinal contrário na dele relativamente aos outros. Não tem definitivamente relevo nenhum em qualquer dos sentidos, perante a espantosa novidade que as aparições lhes estão comunicando, só por elas. Basta o facto, nem é preciso dizer nada, como com os discípulos a caminho de Emaús.

                 - Então como iremos olhar para isto? Que leitura dos dados?

                 - Ora! Exactamente como S. Tomé, eventualmente sem vermos nada como Jesus pede. Por um lado, a confirmação da imortalidade, em vida de Jesus ainda em disputa (os judeus da diáspora criam nela, os da Palestina eram mais renitentes). Por outro, o fenómeno inesperado, inteiramente inédito, do domínio da matéria pelo espírito numa dimensão e com um poder jamais vistos, nem sequer adivinhados: corporifica-se numa sala fechada como desaparece dela sem cruzar através de nada, aparece ao caminho e desaparece instantaneamente quando identificado, levita e sobe pelos ares como bem entender, tem feridas para mostrar ao incréu e não as tem mais noutras eventualidades, surge e derruba S. Paulo a caminho de Damasco, a ponto de encegueirá-lo...

                 - E o cadáver continua no sepulcro – cortei eu.

                 - Pois claro. Jesus não precisa do cadáver para nada. Faz da matéria o que entende, do corpo do Universo constrói o que chamamos de corpo glorioso à medida do que o próprio projecto dEle requer.

                 - Outrora como hoje, estou a ver.

                 - Exactamente. E quando, por exemplo, aparece à Alexandra Solnado, tomando a configuração humana, na meditação, insiste com ela para não estar permanentemente à espera disto, antes se disponibilizando a relacionar-se com Ele pela energia espiritual, sem mais. É um tipo de prolongamento do diálogo com S. Tomé: não é requerido ver para crer. E é melhor crer sem ver. Faremos então a caminhada de dentro para fora, sem precisarmos de nenhuma corporificação captável pelos sentidos. Aqui não há desvios: Deus cruza através de nós para o mundo, a matéria vai-se gradualmente espiritualizando sem perdas.

                 - De repente lembro-me do profeta Ieshua do Iraque. O nome é o de Jesus e é contemporâneo dEle. Contou a história de Cristo que conhecemos, no traçado geral. Pode ser um discípulo fugido até lá. Há quem diga que Jesus não morreu nem ressuscitou, que é este, foi raptado, curado e fugiu para ali. Interpretar a ressurreição como estamos a fazer abre outra possibilidade: se Jesus ressuscitado quis fazer outra missão no Iraque, podia, afinal, perfeitamente fazê-lo, retomando um corpo normal e sendo ali um profeta pregador como o foi em Israael. Os iraquianos apenas lhe não impuseram a tragédia que os judeus lhe provocaram com a morte na cruz. Morreu em paz. Nós só teríamos de os informar do ressuscitado, tenha sido Ele ou não.

                 - Evidentemente que poderia ser. Que sabemos nós? Andamos por aqui às apalpadelas com os olhos arregalados. E já é muito bom se lograrmos ir tendo os olhos bem abertos. Lembremo-nos do arcanjo Miguel da irlandesa católica Lorna Byrne, quando ele toma um corpo e caminha falando com ela estrada fora, a cumprimentar quem ela cumprimenta, levando todos a julgá-lo um indivíduo como outro qualquer e, afinal, identifica-se-lhe como um arcanjo durante a vida inteira dela. Se ele pode fazer uma coisa destas, porque é que Jesus não poderia? Claro que pode e, se calhar, fê-lo mesmo e nós só temos é de abraçar aqueles irmãos na fé. Não tem, mais uma vez, problema nenhum.

                 - Pois, o que conta é a vida espiritual e o rumo de autenticidade que lhe damos, tocando o mundo para diante. O mais é permanentemente instrumental, uma alavanca para potenciar isto. Fora daqui não importa nada, no domínio da fé, não é verdade?

 

 

                 Fátima – 16 de Julho de 2013

 

                 Hoje, terça-feira, tive de voltar ao ginásio. Se as cruzes, com a idade, dão de si em toda a gente, então nos anões é um problema. Nós balançamos permanentemente e, se não andarmos, as articulações atrofiam a grande velocidade. Pelo menos é o meu caso. Não poderei dar-me ao luxo, por exemplo, de ler uma tarde inteira, como às vezes me ocorre, preso de entusiasmo a um livro qualquer. Quando me pretendo mexer depois, estou emperrado por inteiro, dói a sério. Isto, porém, é o menos. Pior, bem pior, é quando um estrangulamento dum músculo algures, por um movimento insignificante, me esfaqueia. Fico que me não logro mexer. É uma punhalada em carne viva. Por isto hoje a aula inteira foi de marcha e de degraus. É curioso como o trepar escadas me ajuda a recompor tudo o que me vai ficando por aqui avariado.

                 O meu instrutor farta-se de brincar comigo quando me vê assim pior.

                 - Mas então?! Isto não é natural?! Claro que é. E aqui não temos de respeitar a natureza? É só na pílula? Não acredito! Também tem de ser neste domínio. Aliás, como iremos acumular sacrifícios se acabarmos com a dor? Este de certeza é o motivo porque não tenho aqui, nas minhas aulas, mais frade nenhum lá do convento. Eles são religiosos deveras, com penitência o dia inteiro, e depois jogam-me para aqui o rebotalho infiel que, para além de pequenino, nem sequer tem nome de gente. Não o querem lá, de certeza, certezinha!

                 - Goze, goze. Para penitência já basta o que basta, que a vida não se inibe nem comove. E, quanto ao natural, então não o é tratar da saúde e bem-estar? Seu herege, sempre a dar ouvidos ao diabo!

                 - Olha quem fala! Não ouve o Vaticano e quer ser frade. Como é viável? – e fez esgares de escandalizado divertido. – Temos de respeitar o método natural, venham lá quantos filhos, perdão, quantas dores vierem, até para humana edificação. Egoístas libertinos, apenas a pensarem no prazer! Depois refugiam-se num convento para esconderem os complexos de culpa. Pois, como se a gente não topasse! Olha o St.º Agostinho com o filho ilegítimo que ele nunca adoptou. Depois toca a pregar contra a devassidão, a ver se Deus lhe perdoa. Mas só após gozá-la e bem. Grande exemplo!

                 Era tudo a brincar mas fiquei meio encalacrado por mor dos diálogos do fim-de-semana. Ele, claro, não podia adivinhar. Mesmo assim, estiquei um pouco a corda.

                 - Pois, não respeite a natureza, não ligue ao efeito de estufa, ao degelo, aos picos da alteração climática e depois queixe-se do aumento disparatado do vulcanismo, dos terramotos, das inundações, das ondas de calor, dos maremotos cada vez mais mortíferos... Não ligue ao esgotamento do Planeta e depois queixe-se do colapso mundial, do custo da energia, da falta de recursos...

                 - Ora aí está! Ai ligo, ligo! Portanto, embora me arrisque a perder o cliente, era melhor respeitar a natureza em si próprio. Ela deve querer torná-lo um santo, para aí um padroeiro dos anões (ainda não há nenhum, pois não?). Logo, sofra a bem sofrer e, se não tem pecados (que os seus, a ajuizar pelo tamanho, devem ser só pecadilhos, nem vale a pena perder tempo com tais niquices), então é pelos meus, está bem? É que então eu terei a sorte de St.º Agostinho, gozo a vida bem gozada e, no fim, vou para o céu à sua conta. Que tal? Até lhe farei o favor de lhe permitir cumprir o voto de salvar almas. Se não salvar outra, salva a minha. Ainda me irá ter de agradecer depois, do lado de lá, vai ver!

                 Claro que desatávamos a rir e a aula dele corria num instante, nem dava por ela. E, curiosamente, não notava o esforço. Apenas mais tarde, quando os músculos arrefeciam, é que dava por mim todo dorido, da cabeça aos pés, de me ter ginasticado por inteiro. Mas já cirandava então pelo convento. Era sempre deste modo. Tive sorte com o instrutor.

                 O diálogo, porém, ecoava-me a outro nível. A verdade é que reconhecia nele os argumentos da generalidade dos leigos casados, a propósito justamente das indicações morais relativas ao controlo da natalidade. A famosa proibição do uso da pílula contraceptiva como doutro qualquer meio artificial de intervenção que interrompa o curso normal da relação sexual, com a eventual fecundação no fim. E sentia-me um pouco desconfortável. Não por vir dele o tema e a perspectiva de abordagem, nem sequer por reconhecer que a generalidade dos cristãos vive interiormente dividida, querendo-se crente coerentemente fiel, por um lado, e não achando que deva aderir, por outro, àquela indicação doutrinária. Nem sequer provém o meu desconforto do facto de a maioria, deste modo em contradição, não lograr assumir esta atitude de ruptura como uma escolha ética consciente e madura, como um dever a cumprir, sem culpabilização. Com efeito, quase todos os leigos com que falo e de que tenho notícia, optam por não cumprir a indicação com a consciência pesada, convictos de que ficam em pecado mas não vêem melhor alternativa. Findam e vivem rasgados por dentro, desequilibrando a harmonia familiar, quando não destruindo-a sem recurso, com complexos de culpa e agressividades insuperáveis, definitivos. É o normal entre os crentes mais convictos. Escapam-lhe os meramente formalistas e os indiferentes.

                 Não, o meu desconforto provém do facto de que eu intuo que isto tem de estar tudo errado mas não lobrigo onde, nem como, nem porquê. Como de hábito, a minha baixa estatura permite-me alcançar a pegada posterior mas, mais longe, nem trepado na cadeira, nem de pé em riba da mesa. Não enxergo nada, ponto final. E é uma tristeza. Nem para os amigos logro estender um dedo fidedigno de apoio.

                 Andava eu nestas elucubrações, dando conta de minhas freimas conventuais, quando me lembrei duma conversa, há meses, com a irmã Fátima, que é enfermeira e me veio dar umas injecções para a artrite que então me tolhera de todo. É do convento feminino gémeo do nosso e é quem nos ajuda nestas emergências, já que não temos médico nem enfermeiro entre os professos. A vocação dela é mesmo de doentes e enfermos, não tem mãos a medir aquando das peregrinações e vive-o com um entusiasmo fascinante. Quis mesmo o convento porque pode dedicar-se mais, uma vida inteira ofertada, com uma esfusiante dedicação.

                 - Sabe, irmão Ambrosino, o que me faz mais confusão? A escolha das Testemunhas de Jeová. Já me ocorreu ter de ajudar uma, foi ali num desastre. Estanquei-lhe as hemorragias mas aquilo requeria transfusões e, quando lhe perguntei pelo tipo de sangue, recusou terminantemente. Nem que morra! Não ia ofender a Deus – afirmava ele, convicto - num transe tão perigoso como aquele. Claro que o respeitámos, não é? Mas como se pode ter convencido de que salvá-lo ofenderia Deus, se for daquela maneira, com uma transfusão? A gente mete cada coisa na cabeça!

                 - É um versículo da Bíblia... – comentei.

                 - Pois é. Mas quantos há que caducaram? Os tempos mudam, mudam as conjunturas e as sensibilidades. Quem lê hoje o Levítico, por exemplo? É a mostra viva de que tudo, por fim, será ultrapassado. Porquê ficar agarrado fanaticamente àquela frase, morra quem morrer? Porque é a vontade de Deus?! Deus quer acabar connosco quando nos põe à mão meios de nos salvarmos uns aos outros? Está bem que é apenas o corpo, mas se Ele não nos queria com corpos não nos teria criado com eles, não é? É uma atitude tão singular!...

                 - A mim também me faz confusão. Mas qualquer postura fanática faz, claro. Como é fácil ir por uma norma externa em vez de auscultar-se por dentro! A vida interior é muito exigente. Qual espiritualidade, qual quê! Uma leizinha e pronto. Fico salvo, está o caso arrumado. Valha-nos Deus!

                 - A natureza é sagrada, não lhe podemos tocar. Contudo, é apenas nisto, porque, por azar, vem no Livro. De resto podemos operar, transplantar, tirar, recoser, endireitar ossos, sei lá, tudo. Agora a natureza já não é sagrada, está a ver? Nisto como no resto.

                 - A história da natureza tem muito que se lhe diga. É que nos temos de perguntar se a cultura é pecado, em derradeira instância. Toda ela é criação artificial do homem, sotoposta à natureza e, pior, inflectindo-a permanentemente em todos os rumos. Mais: hoje em dia a cultura humana está esgotando e destruindo a natureza. Como é que é então? Acabamos com a cultura, voltamos a ser caçadores-colectores, como nos primeiros milhões de anos? E mesmo isto de caçadores não interfere na natureza? Então, colectores apenas, mais, quando muito, necrófagos, como os corvos e os abutres? A idiotia destes preconceitos sacralizados brada aos céus.

                 - Pois, sacralizar a natureza, a que propósito? Porque deu na veneta a um ilustre desconhecido qualquer? Que arbitrariedade mais estúpida! Porque é que não me há-de dar a mim na veneta de fazer exactamente o contrário? Que é ele, seja lá quem for, mais do que eu ou do que qualquer outro indivíduo? Nada, rigorosamente nada. Entretanto, incógnito embora, erigiu ali mais um ídolo, o da natureza, e lá andam aqueles milhões de alienados a queimar-lhe incenso e a sacrificar-lhe gente. Os ídolos matam inelutavelmente os povos. Vislumbrar o Deus vivo é mesmo difícil, mas consiste em ver apenas aquilo que nos liberta. Só O vemos no fruto concreto. Se o fruto é fatal, em qualquer sentido, então é mais um ídolo. Teremos de ir mais longe e mais fundo. Ainda não é Ele. Aliás, não será nunca, em definitivo, caminhamos numa aproximação ao infinito do que for o Infinito.

                 Na ocasião não liguei uma matéria a outra. Hoje é que a ponte se me fez cá dentro. A Igreja oficial é idólatra naquela orientação moral do controlo da natalidade? Não vejo alternativa. Devo, porém, estar cego, como comigo é de hábito. Andei horas com isto a moer-me o juízo, à espera de que o Fr. Marcos aparecesse com um momento livre para eu poder tirar dúvidas. Ele sempre é um perito, mas nunca lhe ouvi tal tese. Em contrapartida, não se fatiga de afirmar que aquela não é matéria de dogma, não faz parte da fé, quando é de acalmar consciências perturbadas com as contradições a enfrentar na vida real. Se calhar pensa mesmo deste modo e não o diz, para não introduzir mais confusão em espíritos ainda incapazes de assimilar tal alternativa, ou ignorantes, ou dados ao escândalo, sei lá...

                 - Bem, irmão, - retorquiu-me ele, um pouco hesitante, quando lhe pus o problema – nós somos e seremos sempre, inelutavelmente, um pouco idólatras em nosso culto a Deus, qualquer que seja o campo. Nunca O entenderemos na plenitude do que é e do que implica. Vamo-nos achegando a vida inteira e durante a História toda, quando temos humildade bastante para, ao menos, entendermos isto. A lonjura entre nós e Ele é infinita, como é próprio da finitude perante o Infinito. Mais: isto é na melhor das hipóteses, porque, habitualmente, deixamo-nos convencer, individual e colectivamente, de que já O alcançámos e aí morreu a caminhada e principia a matança em nome de Deus que, neste caso, é sempre, inelutavelmente, um ídolo qualquer a que damos o estatuto de verdade absoluta. Como diria a irmã Fátima e muito bem: desatámos a matar gente, logo andamos a adorar um ídolo. Não é apenas para fundamentalistas islâmicos, Testemunhas de Jeová e quejandos, é para todos, para nós igualmente. Mesmo quando a morte não é tão gritante, mas mata, por exemplo, a fogo lento.

                 - Então é mesmo um ídolo o respeito pelo método natural no controlo da natalidade. Com os problemas de consciência e os deslaçamentos que desencadeia em tantos milhões de pessoas pelo mundo fora...

                 - Evidentemente. O curso da natureza foi aí sacralizado, posto no altar, e todos lhe devem adoração, sacrificando-lhe a felicidade, o equilíbrio, o lar, o bem dos filhos, a vida, se for preciso. Idolatria completa. Em lugar de ver o óbvio: a natureza inteira foi entregue ao homem, para nomeá-la, ser dono dela, sujeitá-la ao projecto dele. Primeiro capítulo do Génesis, clarinho como água. Toda a natureza, incluindo a do próprio homem. Certo?

                 - Mas que cegueira! Como é possível isto?!

                 - Muito simplesmente: incensamos vários ídolos encadeados, que dão a mão uns aos outros. Quer ver, no caso? O pior de todos: a tradição histórica, tanto mais idolatrada quão maiores os nomes que a sustentam. É um tal queimar incenso, por muito que se desvie e nada tenha a ver com um são desenvolvimento espiritual. Lembra-se do magister dixit medieval? Na vida secular lutam contra ele desde o Renascimento, nós cá temo-lo no altar e liquidamos quenquer que tenha a pretensão de não o adorar. Matamos gente, logo é um ídolo. Mas há mais: o respeito pela vida é outro, tornou-se absoluto, doa a quem doer, mate quem matar. Já viu? Mata-se para não matar! E não abrem os olhos! A força dos ídolos!

 

 

                 Fátima – 17 de Julho de 2013

 

                 Matamos para não matar – ficou-me isto no ouvido, a evocar-me a disputa na Irlanda relativa à Lei do Aborto que finalmente o permite em determinadas conjunturas. A querela mais violenta foi à volta do risco de a mãe se matar.

                 Entendiam os inconscientes adoradores do ídolo da vida que admitir isto seria a porta aberta para cada um escolher em consciência o que fazer no caso concreto que se lhe deparar, o que redundaria na arbitrariedade mais incontrolável. Venceu a outra postura, como era sensato.

                 Não cuidaram os contraditores de ponderar se a escolha de consciência não é justamente o que é requerido ao homem quando se lhe coloca a natureza nas mãos, ao dispor, para dela fazer o que melhor lhe convier. Incluindo a natureza dele próprio, de cada um e da Humanidade inteira. É o conveniente a cada um, a cada lar, a cada comunidade, à espécie humana como um todo que em todas as deliberações é de ponderar, tentando harmonizar tudo, nível a nível. Isto nunca tem receitas nem certezas de escolha, importa arriscar e verificar, reajustar, conferir, ir avançando por tentativa e erro quando faltam referenciais e assim por diante. Em todos os campos da vida é deste modo, também no do aborto. Há incompetências, há ignorâncias, há má fé, há crimes, mas igualmente há sabedorias, há heroísmos, há aprendizagens, há abnegações e amores dedicados. Em tudo deve haver lugar para o itinerário das consciências, para as escolhas do livre arbítrio, para o amadurecimento de cada um e de todos. Porque é que, quanto ao aborto, deveria ser diferente?

                 Os que aqui julgam que lutam pela vida são do mesmo vector que não tem pudor em empunhar armas gritando: “Morte aos infiéis!” É igual a asneira do fundamento: endeusaram um qualquer pretenso depósito de fé e, uma vez tornado absoluto, operam na lógica letal da adoração do ídolo. Nem reparam na morte encadeada, cruenta num caso, incruenta no outro, que tal atitude desencadeia. E não vêem como traem o primeiro mandato da criação: que o homem se adone da natureza inteira, fora e dentro dele próprio. Nem sequer é porque vem na Bíblia, é porque é deste talhe que o homem é feito, como os ateus compreendem e assumem muito bem, derrubando felizmente os ídolos. Como dizia Henri de Lubac, eles não nos deixam fazer batota, no que lhes deveríamos ficar muito gratos.

                 Ainda bem que já ultrapassámos a atitude tibetana de respeitar tão idolatricamente a vida que nem uma enxada podem meter à terra, dado que eventualmente matarão alguma minhoca. É preferível morrer à fome ou numa miséria subalimentada e desequilibrada do que atentar contra o dogma sagrado, este, sim, absolutamente intocável, do ídolo que é a vida. E depois morrem por lá aos pontapés ou sobrevivem como verdadeiros mortos-vivos. Que deus quer isto? Que Deus nos valha!

                 Andava eu tão embrenhado neste cogitar que nem nos ofícios atentei. Fui a matinas distraído por inteiro. Cantei automaticamente, sem reparar em quê, dando-me apenas ao gozo de jogar a voz pela amplidão. Fiquei com a ideia de que ia a voar nem sei por onde.

                 - Eh, irmão, hoje está nas nuvens, hein? - abordou-me inopinadamente Fr. Nardo, quando nos retirávamos pelo claustro.

                 - Cruzes, até me assustou! – retorqui, ao vir a mim lá do mundo por onde adejava sem reparar sequer.

                 - Exactamente, não anda por aqui, vai apenas aqui a caminhar o seu bamboleio, mas o irmão vagueia por longe. É lindo esse outro mundo por onde escolheu vadiar?

                 - Olhe, Fr. Nardo, nem por isso – e resumi-lhe aquelas meditações.

                 - É cómico como converge com as minhas pesquisas actuais. Ando à volta de Orígenes e de Tertuliano por um motivo idêntico: que é que levou estes homens, de resto brilhantes, a atitudes tão disparatadas no domínio da sexualidade?

                 - Quais atitudes?

                 - Olhe, fundamentalmente, por parte de Orígenes, ter-se feito castrar para dominar o impulso sexual; por parte de Tertuliano, considerar um pecado mortal a masturbação ou o coito incompleto, o onanismo, porque, segundo ele, era matar uma infinidade de indivíduos potenciais em miniatura. Creio, aliás, que nunca foram beatificados por causa disto, uma vez que eram, como teólogos, muito lúcidos, bem profundos, no meio de todas as querelas dos dois primeiros séculos da nossa era em que viveram. Luminares que acabaram por atear o fogo a eles próprios. Se calhar tornaram-se tochas de tanto querer iluminar o mundo. E arderam, pelos vistos arderam, queimaram-se bem! – riu, animado, bem ao jeito dele.

                 - Há por aí uma idolatria também, é? Pelo menos o culto de Príapo não foi.

                 - Ah, pois não! Mas é o do anti-Príapo, tão absolutizado ou mais do que aquele e de que ainda hoje somos vítimas. Veja, é o culto do altar donde ele foi derrubado, o culto da ausência, do vazio. Isto evoca tanto ou mais a presença do que está ausente que devém obcecante, domina o pensamento e o afecto a toda a hora, não há forma de evitá-lo mais. Então, em desespero de causa, Orígenes castra-se, Tertuliano enfia tudo no inferno. Caso arrumado! É a lógica do princípio: se o gentio não se converte, mata-se; se o herege não se retrata, enforca-se; se o incréu é renitente, queima-se em auto de fé. 

                 - E não vêem que, se o deus mata em vez de dar vida, não é deus nenhum, tem de ser um ídolo qualquer? Em vez de desmascararem o erro e mudarem, reconvertendo-se, impõem o erro a ferro e fogo, doa a quem doer. O preconceito é diabólico.

                 - Exacto, é o diabo em figura de gente. Aliás, mascarado de Deus. É o maior carnaval da História. Pena é que deu em tantos mata-moiros entre nós e pelo mundo além, abandonando atrás deles uma esteira de mortos. A gente gosta muito de matar. E então em nome de Deus, que grande gozo! Não deixa escrúpulos nem remorsos, é uma festa, maior que num matadoiro qualquer de gado para consumo – rematou, sarcástico, com um grande sorriso de divertimento.

                 - E com o céu garantido, não? Como os extremistas islâmicos? – lembrei.

                 - Evidentemente. Andam a repetir os nossos erros. Devíamos estar muito orgulhosos de seguidores tão fiéis, não é? Ou deviam estar os que continuam propugnando tais idolatrias – continuou a ironia, bem-disposto.

                 - Ora, Fr. Nardo, agora não há mais seguidores de Orígenes nem Tertuliano. Até os castrados dos coros italianos do período barroco foram há muito banidos. E criminalizados os perpetradores deles que lhes exploravam as vozes angelicais à custa do banimento da possibilidade de se realizarem neste domínio, o afectivo-sexual e familiar. Acabou de vez. Ou não?

                 - Era bom, era! – retomou ele, meditabundo. – Há formas germinais por todo o lado, sementes que, se não dão árvores, dão arbustos, dão ervas. Não há nunca erradicação definitiva. É ilusório. E os mentores disto bem nos querem convencer de que sim, para deixarmos de estar vigilantes e poderem ir proliferando à socapa livremente. É o que lhe digo, eles adoram matar, são todos açougueiros de profissão – riu de novo.

                 - Não vejo nada. Onde é que continua? – a minha cegueira chega a irritar-me.

                 - Olhe, um bom exemplo da pertinácia disto é St.º Agostinho. Morreu há milénio e meio e continua aí bem fresco, pronto para as aventuras, em qualquer teólogo e nas práticas e juízos de qualquer leigo que nem sequer dele tenha ouvido falar.

                 - Mas não é por motivos destes, é a teologia dele, a cristianização de Platão.

                 - Claro, claro. Mas é um caso de não só, mas também, entende?

                 - Ora! Eu cá não entendo nada. Nasci burro e burro hei-de morrer.

                 - Falsa humildade, irmão, falsa humildade. Mas eu lhe explico. Ele chega a propugnar, em A Cidade de Deus, que todos deveriam tornar-se monges e monjas, de modo que, com o voto de castidade cumprido, findariam os nascimentos, acabaria de velha a Humanidade e, portanto, ocorreria a consumação final com a segunda vinda de Cristo, a Parusia. E pronto, como vê, ficava tudo resolvido. Deus não quer acabar, acabamos nós com isto – riu-se ele, bem-humorado.

                 - Olha, mais um fisicalismo! – exclamei eu, repentinamente lúcido. – O fim não é deste modo, é uma visão que hipostasia uma realidade espiritual num enclausuramento físico, como se este tivesse o poder de a aprisionar e esgotar. Mesmo que ocorra o colapso da humanidade, nada adviria naqueles termos. Aliás, já muitas fileiras humanas se extinguiram e a aventura planetária, o roteiro cósmico continua. Desapareceu o homem de Cro-Magnon e o de Neanderthal e daí? Qualquer filão evolutivo pode terminar num impasse, o Cosmos continua eternamente com a respiração de Big-Bang – Big Crash. A realidade espiritual, a da vida interior em nós, remetem para outro plano, não é o material, é o da nossa interioridade e da do Universo.

                 - Pois claro. Mas porque é que St.º Agostinho faz tal proposta utópica? Não é por nada disto, é para purificar a Humanidade da abjecção do sexo. Está a entender? Ele tem um complexo de culpa inamovível, por mor do desbragamento da juventude, antes de ter conhecido St.º Ambrósio e se ter convertido, em Florença. Então vai de extremo a extremo: das orgias e libertinagens salta para a castração simbólica – tudo no convento! E a única regra que lhe importa e refere: castidade. Se estivera atento ao que Deus de nós pretende e o Espírito nos inculca intimamente, acolheria o homem como Deus o criou, sexuado, capaz de amar e corporificar o amor sensual e sexualmente. Perguntaria como gerir isto a contento, como em todos os demais campos da vida. Assumiria, então, eventualmente, as respectivas responsabilidades perante o filho ilegítimo dele e a abandonada mãe. E assim por diante. Mas não. Nem se fala mais nisto: aniquila-se. Se não é pela castração, é pelo convento. Caso arrumado. É o mesmo padrão do ídolo que vimos, o anti-Príapo. Agora veja bem, irmão Ambrosino, porque por aqui anda: a penitenciar-se das libertinagens agostinianas ou a disponibilizar-se para o bem da comunidade? Repare atento, que pode ser um castrado fora de tempo sem o saber! – ironizou, no pendor brincalhão dele.

                 - Quer dizer, todas as repressões medievais, abstinência total durante a Quaresma, sexo apenas para procriar, depois, abstenção e sempre esforçando-se por não sentir prazer – tudo isto é o complexo de culpa de St.º Agostinho? Todos foram vítimas daquilo? E ainda hoje?! Não posso acreditar!

                 - Ai pode, pode, porque é verdade. A pura das verdades. St.º Agostinho tem cópias recentes a reforçá-lo, aliás. A Rainha Vitória teve uma juventude desbragada e, quando ascendeu ao trono de Inglaterra e respectivo Império, virou ao contrário. Impôs na corte e pelas colónias além a atitude vitoriana de corte cerce com quanto cheire a espavento, a festa, a celebração explosiva. E nas relações humanas, o mesmo: tudo contido, reprimido, reduzido a um esqueleto frio e distante. Com idêntico ideal para as relações íntimas. É típico dos extremos: quando arrependidos caem no extremo oposto que é tão erróneo como o de partida, em lugar de buscarem o equilíbrio justo, o meio-termo onde radica quanto é construtivo. São mais gingões do que um anão, ora tombam para a direita, ora para a esquerda, sem haver modo de os pôr em sentido – brincou.

                 - Quer dizer, trocam um absoluto por outro tão absolutizado como ele, um ídolo por outro igual, de sinal contrário, sem repararem que é na idolatria que está a asneira, não no conteúdo, qualquer que seja.

                 - Ora nem mais, pequenino sábio! E eis porque andamos há dois milénios a falhar por inteiro a estrita função de espiritualizar tudo, de dar o rumo que mais nos liberte e realize neste campo tão fundamental da vida. Por mor, aliás, doutro ídolo que ai de quem se atreva a derrubar: a tradição histórica. Todos a incensam e lhe vergam a cerviz, ninguém jamais se preocupou em saber se corresponde ou não aos ditames da espiritualidade. E aqui não corresponde, manifestamente.

 

 

                 Fátima – 18 de Julho de 2013

 

                 E aqui não corresponde manifestamente aos ditames da espiritualidade – foi o remate que me ficou a remoer. Toda a moral do amor-paixão e da sexualidade anda viciada por complexos de culpa há milénios, ninguém logra enxergar sem este nevoeiro espesso que a todos nos encegueira. Então como corresponder ao apelo da interioridade? Ainda para mais é tudo tabu, ou melhor, cinquenta por cento: do amor podemos falar; do sexo, não. Apesar dos derrubes todos, a sexualidade abordável é meramente a biológica e, depois, o cruzamento dos afectos com ela e dela com os afectos. Além disto é o atoleiro em que todos ficamos presos e com risco de nos afogarmos. Tudo coerente com o princípio de que o sexo é mau e, conseguintemente, é para se extinguir. Quanto menos falarmos, melhor. Quanto menos, melhor.

                 Como é que eu, enfiado num convento, poderei vislumbrar alguma aberta? Estou no pior lugar possível para tal objectivo.

                 Há um erro óbvio em toda a postura milenar: o repúdio da estrutura sexuada da humanidade, um repúdio do plano de Deus. É como se andáramos há séculos a berrar ao criador que ele errou ao criar-nos deste modo. A atitude correcta aqui é fácil: tudo o que foi criado é bom, primeiro capítulo do Génesis. Ora, se é bom, é para ser acolhido, aceite como tal, sem reservas nem suspeitas: como todo o Universo, o sexo também proclama a glória de Deus. Não é o rosto do diabo, não tem nada a ver com ele, nem se afastou nem recusou o mundo divino, pelo contrário, espelha-o.

                 Até aqui, tudo bem, não adivinho dificuldade. A teoria é fácil. As vivências disto é que implicam já uma revolução, de há tantas gerações andarmos a implementar o contrário. Primeiro que isto assente e tudo se desculpabilize à partida, quanto tempo levará? Se calhar precisaríamos todos duma terapia psicológica para erradicar o complexo colectivo de culpa, de pecado.

                 Também não levanta dúvidas a desculpabilização do sexo no matrimónio, hoje em dia já com o prazer legitimado. Mas aqui principiam as restrições, herdeiras da suspeita crónica, ancestral. De qualquer modo, desde que a cópula seja vaginal, creio que ninguém objectará contra a multiplicidade de posições em que pode ocorrer, conforme o apetite do casal.

                 Para diante, porém, é a floresta negra em que todo o mundo se perde. No fundo, a prevenção moral resume-se a isto: os perigos são tantos que tudo é proibido. E tudo é pecado mortal (eis a rejeição a imperar). É a gestão mais adequada desta área da vida? Não é, claramente. Que é que será o mais conveniente, neste âmbito, ao desenvolvimento pleno do potencial humano, em prol de cada um e de todos? Se acolhermos como bom o sexo, então não é para ser restringido, muito menos eliminado, é para ser usado como qualquer outra faculdade humana, de modo que nos beneficie, dê alegria de viver, traga prazer e satisfação em todos os domínios onde chegue, na geração de filhos, na relação humana, na partilha de afectos e laços, na estimulação da fantasia e assim por diante. Ou o acolhemos e não podemos eliminar campos à partida ou eliminamos e então estamos a rejeitá-lo preconceituosamente. Até aqui também se me antolha claro.

                 Há, todavia, um pormenor de peso a que temos de estar muito atentos: qualquer ferida neste domínio rasga por dentro o indivíduo com uma violência extrema. É uma espécie doutro lado da moeda do prazer extremado que promete, ou dá o anverso ou o reverso. Isto, porém, nunca pode justificar o aniquilamento da capacidade, justifica que se detectem e evitem os comportamentos que a levam a lesionar, como nos demais domínios da vida. Não há nada diferente. Também a frustração da afectividade no amor fere tanto que muitos sempre se mataram por não suportarem a conjuntura. O amor frustrado é letal. Nunca ninguém, todavia, se lembrou de eliminar ou restringir o apaixonamento, a pretexto da perigosidade da respectiva frustração. E se há restrições no amor carnal é (e foi) sempre por mor da componente sexual, não pela afectiva. Creio que também até aqui todo o mundo estará de acordo.

                 Daqui para diante é um pântano de tropeços. E eu, ainda por cima, não entendo nada por mim, nem sequer tive nenhuma experiência minha, nem enquanto estudante ainda, antes da vida conventual. Aqui dentro também não terei recursos vividos, não temos cá nenhum viúvo nem, que eu saiba, alguma vocação tardia, como a do Papa Francisco, onde recolher alguma vivência e reflexão despreconceituosa relativa ao tema. Irei buscar factos e testemunhos e confidências que vida fora me têm vindo a ser feitos por colegas e amigos, nalguns casos justamente confundidos com as contradições entre moral e realidade, o que os levou a reequilibrar os eventos noutros parâmetros.

                 Quando andava na Faculdade, fomos em grupo acampar, com algumas tendas, para além da Fonte da Telha, na Costa da Caparica. A Míriam, uma colega de Ciências que tinha sido noviça e desistira, comprara um iglô e, à noite, dormiu nele com o Anselmo que andava em Letras. Não eram namorados nem nada, mas amigos já de longo convívio, de alguns anos. E meus amigos também de há muito tempo.

                 - Olha, todas as noites nos masturbámos um ao outro – confidenciou-me ele mais tarde, no bar de Letras. - Foi a coisa mais natural: apeteceu-nos, éramos amigos, assumimo-lo espontaneamente como uma prenda que trocámos entre nós. Sem mais expectativas de parte a parte, nem precisámos de falar disto nem nada.

                 - Quer dizer, não perturbou os laços nem os afectos? Tudo completamente pacífico?

                 - Exactamente. Aliás, se algo tivesse mudado, todos vós daríeis conta, não é? Passámos os dias inteiros juntos. Olha, se alguma coisa mudou, é que ainda ficámos mais amigos, temos mais uma boa memória em comum.

                 - É curioso como ficou por aí. Normalmente os envolvidos quererão ir até ao fim, creio.

                 - Claro. Mas é que eu sabia que ela não toma a pílula nem tinha qualquer preservativo. Nem eu. Nas conversas do grupo já tinha aflorado a questão, ocasionalmente. Isto, por um lado. Por outro, ela tinha mostrado que pretendia preservar a virgindade para o casamento. Pronto, respeitei as escolhas dela.

                 - Nada de negativo, então?

                 - Eu não vejo em quê. Pelo contrário, tudo positivo.

                 Mais tarde foi ela que abordou o tema, informando-me dum contexto de vida diferente.

                 - Sabes? Eu fui violada sistematicamente em miúda por um tio. Fiquei com repulsa pela vida sexual, embora ele nunca tivesse sido violento fisicamente. Mas a clandestinidade, a culpabilização com a ideia de que era pecado, o facto de, mesmo pequena, aquilo saber bem, deixaram-me completamente dividida, convicta de que estaria condenada ao inferno. Sabes como somos em miúdos, não é? Mesmo o convento, para mim, era uma forma de expiar, de tentar escapar à pena eterna.

                 - Bem, foi mesmo muito mau.

                 - Pois foi. Uma coisa tão simples, tão inocente... quem é que prejudicava? Ninguém.

                 - Mas pelos vistos prejudicou-te bem fundo anos seguidos.

                 - Claro, pela forma como foi mal assumida: com a convicção de que é pecado, de não poder deixar ninguém suspeitar, sequer; um crime, no que toca a ele, de acordo com a lei, tudo. Se não me tivesse culpabilizado, tudo não passaria duma experiência de prazer partilhado de que nem me lembraria mais, senão como um momento bom da infância. Assim, tornou-se uma angústia violenta durante anos.

                 - Como te safaste de tal fado?

                 - Com terapia psicológica. Por acaso com um frade terapeuta. Conseguiu, mas demorou anos, que eu acabasse por encarar tudo, afinal, com naturalidade. Embora às vezes ainda a vista do pénis me provoque um arrepio. Aquilo deixa perenes cicatrizes, é uma luta permanente para a gente não voltar para trás e estragar tudo.

                 - Então, com o Anselmo...

                 - Foi a coisa mais natural do mundo. Estávamos deitados, apeteceu-lhe, eu não tinha nada contra, também me agradava, pronto, partilhámos o prazer. Foram uns dias de férias óptimos, pelo convívio do grupo, pelas peripécias das refeições e da praia, pelas conversas ao serão e também pelo prazer sexual que partilhámos. Tudo normal, tudo construtivo, tudo em conformidade.

                 - Com exclusão da fecundação e da cópula propriamente dita.

                 - Evidentemente. A sexualidade tem múltiplas valências, esta é apenas uma delas que é de viver quando for o momento para tal. Ali, não, nem com ele, somos meros amigos. Mas, por mim, não acho mal nenhum em consumar a relação, mesmo com um conhecido, até de ocasião, que me atraia, desde que seja do acordo de ambos. Forçado é que não e violento muito menos. Tem de prevenir-se o efeito duma gravidez indesejada, mas hoje em dia, com os preservativos, mormente a pílula, só quem é irresponsável ou muito inconsciente é que não toma em conta todos os efeitos para decidir como for mais conveniente em cada caso.

                 - O acto, para ser moralmente defensável, não tem de englobar todas as componentes?

                 - Em campo nenhum é assim, porquê aqui? Olha, usamos cá no curso a inteligência para aprender os conhecimentos já de trás acumulados. Ninguém se culpa por não usá-la a descobrir novos desenvolvimentos para que ela também serve, nem para aplicá-los correcta e eficazmente, que é outra possibilidade, nem para seleccionar os que prestam ou não para um fim qualquer, e assim por diante. Com todas as nossas faculdades e capacidades é deste modo. Porque é que aqui havia de ser diferente? Não vejo razão nenhuma. São tudo preconceitos culpabilizadores e repressões arbitrárias. Só temos que pesar prós e contras, de modo a eliminar estes e a aproveitar aqueles. Nisto como em todo o lado. Com a contracepção ao alcance (que devemos usar livremente, conforme o projecto afectivo de cada um, e não com teias de aranha na cabeça) e o mútuo respeito dos intervenientes entre si, é tudo muito simples. Não há perdas, só há ganhos, a vida torna-se muito mais interessante e divertida. Que é que pode justificar que façamos ao contrário? Isto era sado-masoquismo: é doentio, não é moral nem ético. Andarmos a punir-nos porquê, não é?

                 - Apenas isto e é tudo? Nem sequer o risco de fugir às responsabilidades da paternidade ou maternidade?

                 - Mais depressa tal ocorre quando há repressão: a obsessão do prazer proibido acaba por dominar tudo e excluir o resto. Vivido com naturalidade, como uma experiência boa, não, é tal e qual como os mais momentos gratificantes da vida, disponibiliza-nos para os desdobrarmos. Aliás, vou-te confidenciar um pormenor de que ninguém fala, por pudor. Eu, ao contrário da generalidade das raparigas, masturbo-me regularmente, se calhar por mor do trauma infantil que me exacerbou. Mas agora é por prazer. Não faz mal nem a mim, nem a ninguém. Porque haveria de ser culpabilizado? Pecado?! A que propósito? Por Deus ser um palerma que não sabe o que anda a fazer? É completamente estúpido e estes preconceitos retorcidos e indefensáveis dão cabo do juízo a muito rapaz, principalmente, que têm uma apetência sexual quase insaciável e acabam carregados de complexos de culpa, convencidos de pecarem, como eu andei durante anos. É uma desgraça e uma pena. Tudo por completa arbitrariedade sem qualquer fundamento, um sado-masoquismo em que tantos embarcam de boa fé, sem capacidade crítica nenhuma. Ou, então, tendo-a, mas sem se atreverem a usá-la. E chamam a isto espiritualidade, vida interior?! Onde é que no íntimo deles o ouvem, no coração o auscultam? Em lado algum, é apenas porque vem tal e qual de geração em geração e ninguém se atreve a apontar o dedo e gritar: “O rei vai nu!” Neste domínio vai de todo, seguramente. Quanto mais me liberto mais o verifico e com mais firmeza. Todo o mundo anda, neste âmbito, errado e bem errado. Pelo menos o ocidental.

 

 

                 Fátima – 19 de Julho de 2013

 

                 Nem de propósito, acabam de visitar-me a Isabel e o Luís, ambos juristas, também do meu tempo da Universidade. Ela chegou a ser dirigente da Juventude Universitária Católica, ele sempre se manteve um pouco de lado no que respeitava à religião. Já naquele tempo se questionavam muito acerca do que falhava na moral sexual reinante e porque é que falharia. Recordámo-lo esta tarde, a propósito da morte da actriz Silvia Kristel, a protagonista da série de filmes Emanuelle, cuja proposta erótica deu muito que falar em nossa época universitária, principalmente porque falhava na prática, como relatou a supervisora dos guiões, a socióloga Emanuelle Arsan, no livro-relatório Uma Grande Família. Ainda agora o que mais os motiva, aos meus antigos colegas, é descobrir o que é que leva as atitudes a falharem neste campo, a terem efeitos negativos imprevisíveis.

                 - Lembras-te de te ter contado – perguntou-me a Isabel – que havia um grupo de colegas nossos que casaram na parte final do curso e que, ao fim-de-semana, iam para uma casa alugada e faziam troca de casais? Achámos aquilo tão excitante que resolvemos experimentar. Olha, um falhanço em toda a linha.

                 - E descobriram porquê?

                 - Neste caso, sim – respondeu o Luís. – Repara bem. Uma coisinha insignificante pode, em tal campo, deitar tudo a perder. Aqui foi uma frase de brincadeira da Isabel. Riu ela, enquanto vestia uma langeri provocante; “Querias, não? Isto não é para qualquer um. Aqui não tocas.” Pronto, foi o bastante. Senti-me rejeitado, ainda por cima o outro casal avisou que não tinham preservativo, nós também não, que a Isabel sempre tomou a pílula. Foi como se eu tivesse sido atirado porta fora. Nunca me senti tão mal, é impressionante.

                 - E foi mesmo aquilo em que eu – comentou a Isabel – nem sequer tinha reparado. O outro casal é o da minha secretária. Como eles não sentiram connosco nada negativo, decidiram ir a um bar de swing, para ver. Meteram conversa com um casal com que engraçaram e fizeram a troca. Correu bem com todos, tiveram relações agradáveis os quatro, ninguém se sentiu em baixo nem excluído. Parecia tudo bem...

                 - Então não foi, é? Mais confusão? – questionei.

                 - Vê só: o marido dela ficou literalmente obcecado com a mulher do outro casal, todos os dias falou nela, só queria chegar ao fim-de-semana para voltar ao bar e tornar a possuí-la – descreveu a Isabel.

                 - Interessante é como superaram o mal-estar que aquilo introduziu entre ambos – sublinhou o Luís.

                 - Foi – retomou ela. – Falaram porque tal atitude ameaçava a estabilidade da união dos dois e a minha amiga não o queria de modo nenhum. Então foram de acordo em parar a experiência e não voltar ao bar.

                 - Mas era apenas por um tempo, - retomou ele – até se sentirem bem e desejarem retomar a aventura, sem cometer erros. Escolheram então outro local. Contaram as dificuldades que tinham a alguns casais, ao acaso, que também lhes foram confidenciando as deles. Nas várias trocas de impressões acabaram por encontrar um par que sentiram bastante afim. Perguntaram se não queriam tentar, foram para o quarto e, mais uma vez, a troca a contento de todos correu bem para os quatro.

                 - E, na sequência, - continuou a Isabel – não houve mais obcecação por parte de ninguém. Gostaram tanto que, até hoje, vão regularmente ao bar e fazem amor os dois casais, trocando de par. É muito giro terem-no atingido. Compartilham muito mais prazer.

                 - E agora não há perdas nenhumas? – questionei eu. – Como é que vocês leriam o princípio que garante isto?

                 - Olha, quanto a mim – retorquiu o Luís – é o consentimento mútuo, sem ninguém se sentir mal. E o cuidado que cada um toma com os outros para este ser o estado de espírito partilhado por todos. Basta um sentir-se marginalizado ou secundarizado e pronto, afunda-se tudo imediatamente. Como ocorreu connosco.

                 - E com eles, – acrescentou a Isabel – quando o marido ficou grudado à outra parceira. A minha amiga sentiu-se ignorada e o casal em risco. Souberam corrigir a situação, dar tempo ao tempo, e agora, olha.

                 - Pois, também há uma caminhada interior, - completou ele – um amadurecimento que requer tempo. Cada qual tem de estar atento a si próprio e aos outros, mormente ao seu cônjuge, não é?

                 - É muito curioso! – meditei eu. – Não conheço ninguém que equacione estas questões e encontre alguma conclusão que tenha sentido.

                 - Claro, é por isso que mexe connosco. Ao examinar com minúcia como correram de princípio as coisas com a minha amiga, reparei numa série de pormenores que confirmam o que o Luís refere. Queres ver? Por exemplo, quando se dirigiram para o quarto, a parceira do outro casal pegou na mão da minha amiga e foi deste modo que foram. Vê só a diferença: se ela tivesse pegado na do marido da minha colega, o dela ia sentir-se de fora, a minha secretária suspeitaria que ela lhe estaria roubando o parceiro e assim por diante, de certeza tudo acabaria correndo muito mal. Mas não. O cuidado com os outros levou a uma atitude que os integrou a todos.

                 - É mais que mútuo consentimento, – reflecti eu – é acolhimento atencioso, é trato cordato, atento a aspectos de nada que dispõem bem.

                 - E há mais – acrescentou o Luís. – Queres que conte? – perguntou à Isabel. – Quando chegaram ao quarto, em vez de se porem os quatro a acariciar-se mutuamente, não. Acariciaram-se ambas as mulheres uma à outra, com a do outro casal a tomar a iniciativa, até descontrair a colega da minha mulher. Quando ficaram calmas, foram-se despindo gradual e mutuamente, um género de strip-tease improvisado, até ficarem nuas. E apenas então a outra estendeu a mão ao par da parceira, convidando-o a participar. E mesmo aqui foi para se porem ambas a excitá-lo, depois a despi-lo e só quando ele ficou nu é que a outra se deitou, segurando a mão dele, num convite a possuí-la. Ele penetrou-a enquanto continuava a beijar a mulher. Aliás, acabou passando duma para a outra. Quando sentiu o orgasmo da nova parceira, tratou de dominar-se, para poder tê-lo ele com a esposa. Ora, foi esta que, sentindo o que ele estava tentando, o empurrou para dentro da outra para ele ter com ela o prazer todo. Vê só a quantidade de pormenores.

                 - Mas o marido desse outro casal ficou de fora?

                 - Não, não – interveio a Isabel. – assistiu a tudo muito atento, de lado. Só no fim, despido, é que subiu à cama, beijou a esposa, fez um carinho à minha amiga e ficou a olhar tanto a parceira como o marido da minha colega. A esposa empurrou-o brandamente para esta mas ele não avançou mais, apesar de extremamente excitado, com uma enorme erecção, enquanto o outro também o não empurrou para a mulher. Apenas então se possuíram. E, com todas estas delicadezas, estavam ambos tão excitados que atingiram o clímax em segundos. Estiveram sempre a ser acariciados pelos outros dois, durante o acto. Nem sinal de qualquer sentimento negativo. Tudo bom. Por isso ainda dura, não é?

                 - Mas que coisa mais a leste de tudo! – espantei-me.  – Afinal, apenas questão de mútuo consentimento, cuidado comum com os sentimentos e susceptibilidades dos intervenientes. E um do outro, no casal. Ninguém força ninguém, ninguém se força a si próprio. Cada um respeita em absoluto o parceiro, todos os outros. Atento e muito atencioso. E bate certo, hein? Tudo simples assim?!

                 - É, de facto, - retomou a Isabel. – Os sentimentos sofrem uma revolução completa. A minha amiga confidencia-me, por exemplo, que a excita deliciosamente ver o marido a ter prazer com a outra. Nunca imaginou tal em dias de vida, com a ciumeira generalizada com que convivemos todos os dias, até entre namorados. E que, aliás, antes ela sentia. Basta ter sentido e compartilhado, e pronto, é uma revolução em curso, dentro e fora de nós.

                 - E mudam mesmo?! – espantei-me.

                 - Ora, se mudam! – retomou o Luís. – eles têm-nos contado cada caso!

                 - Sou todo ouvidos – incitei eu. – É que isto é inteiramente novo, cuido, pelo menos para mim. Muito desviados devemos andar duma correcta gestão das potencialidades humanas neste domínio, como vocês já desconfiavam quando éramos estudantes.

                 - Olha, - retomou ele com gosto – que me lembre (e ainda neste âmbito dos ciúmes) há o caso duma jovem que, a princípio, eles acreditaram até que era solteira. Muito convivente, sem ser acompanhada do par, não se fazia rogada em ir para a cama com quem a atraía, rapaz ou casal. Afinal é casada, vão os dois ao bar mas separam-se à entrada, cada um para seu lado, porque o marido gosta tanto dela que ele é que a incita a encontrar outros parceiros. Curiosamente porque teme que, se não for desta maneira, algum dia ela ainda o deixe, o que para ele seria intolerável. “Não tem ciúmes?” – perguntaram-lhe. “Não. Pelo contrário, fico aflito é se ela não encontra nenhum par com quem ir”. Ele, aliás, abandona-se muitas vezes pelo convívio do bar, sem se preocupar em encontrar qualquer parceira. Vê lá bem!

                 - Essa agora! – admirei-me ainda mais. – Com a quantidade de crimes passionais que todos os dias ocorrem no País e mundo além! Fico parvo.

                 - Há outros ainda mais significativos – lembrou a Isabel. – Um dia falaram com um casal que nunca tinham encontrado. Segredaram os outros que tinham lá ido porque sentiam saudades da companheira. Não entendendo, os nossos amigos pediram que lhes explicassem. E é outro mundo. A esposa tinha como melhor amiga uma professora da margem sul do Tejo, muito linda, segundo eles, que, por qualquer motivo, nunca casara. Um dia, ambas combinadas, decidiram preparar uma prenda ao marido: fecharam-se no quarto do casal, deitaram-se nuas na cama e, quando ele chegou do emprego, a mulher mandou-o tomar banho e depois ir ter ali, que tinha lá uma surpresa. Quando ele voltou, deu com ambas nuas debaixo do lençol, a esposa referiu-lhe que agora tinha duas à espera dele, para se deitar a meio. Ele fê-lo, ela desatou a acariciá-lo, ele correspondeu-lhe, ainda confuso, momentos depois sentiu a amiga a masturbá-lo e, poucos segundos após, a chupar-lhe o pénis. Foi tão inesperado e sensual que muito rapidamente estava quase a tingir o orgasmo. A mulher apercebeu-se, parou e disse-lhe: ”Vá, domina-te, que agora é a minha vez.” Trepou para cima dele, encaixou-lhe o falo dentro e desatou a mover-se até atingir o clímax. Afastou-se para o lado, elogiando-o: “Muito bem, conseguiste dominar-te.” E, logo após. “Vá, agora é a vez dela” – e empurrou-o para a amiga. – “Trata de a satisfazer, está bem?” – acrescentou. Ele fez por cumprir, dominou-se, apesar de mover-se dentro da rapariga, para conseguir provocar-lhe o orgasmo antes dele. Ela atingiu-o e só então ele se soltou para fruir todo o prazer de a possuir. Repara só nos pormenores do cuidado mútuo, no respeito da posição de cada um no trio, com a esposa a comandar e a compartilhar. Numa palavra, foi tão bom que daí para a frente passaram a ter sexo a três regularmente. E sentiam a falta quando não podiam, como naquela noite.

                 - Olha! – exclamei eu. – É a família tradicional chinesa mais comum, com a esposa e a concubina que a própria mulher oferta ao marido. Entre eles, no oriente, é imemorial. Entre nós é a primeira que ouço. Curioso é que é pacífica lá e pacífica aqui, pelos vistos.

                 - Se tudo for feito correctamente, no respeito dos laços mútuos, das expectativas que uns têm sobre os outros, dos afectos que em cada evento forem vivendo, com muito escrúpulo para não lesarem os papéis que têm na relação, olha, todas as modalidades batem certo, podem viver-se pacificamente e de modo gratificante. Todas. Mas tu é que as estudaste, não é?...

                 - Pois, é da Antropologia Cultural. Existiram ou existem nalgum lugar. Mas é capaz de ser uma grande confusão – duvidei, um pouco céptico. – Já viste? Monogamia aqui, poligamia em Marrocos, bigamia entre os Macondes moçambicanos, poliandria no Alasca, família matriarcal, com relações íntimas livres para a mulher, no interior chinês, família de grupo na Índia, sem limite de parceiros, todos mutuamente cônjuges... Que salgalhada!

                 - Contudo, minimamente estáveis todas elas – argumentou a Isabel. – O que quer dizer que todas as modalidades podem ser vividas construtivamente e de modo gratificante para os intervenientes. Doutro modo, a humanidade nunca teria enveredado por tantas alternativas tão contrastantes, nem elas se aguentariam imemorialmente. Mas aguentam e continuam. É um etnocentrismo flagrante julgar que nós é que somos os bons, o resto é lixo!

                 - Mas tudo à mistura?! – contrariei, confuso. – Acolá é cada qual no próprio mundo, pelo menos. Doutro modo chocariam, não?

                 - Não, não – retorquiu o Luís. – Nos Estados Unidos convive praticamente tudo, sem problema que vejamos. A dominante é a monogamia, mas os mórmones são poligínicos (cada um pode ter várias esposas), os esquimós tradicionais são poliândricos (cada rapariga casa com os irmãos todos dum lar) e nas zonas urbanas, mais anónimas, cruzam-se experiências de todo o género. – E, parando um instante: - Ora, sabes isto melhor do que eu!

                 - Ah, tens razão, naquela salada há de tudo, já me tinha esquecido. E também os desequilíbrios todos. Há cada violência! Estou a lembrar-me dos davídicos que se suicidaram em bloco. E doutros. Então nas seitas fanáticas parece que há permanentemente um chefe que é polígamo. É uma constante por aquelas bandas. Credes que não há relação, é? É que, lá como cá, não respeitam os requisitos para os relacionamentos baterem certo. Então há lesões, há rupturas, há crimes, violências de todos os matizes. Não tem a ver com as modalidades da relação, mas com a dificuldade de viver qualquer delas a contento. O problema é o mesmo onde há um modelo uniforme, por exemplo, o monogâmico que é o nosso. No fundo, é porque não há educação afectiva nem sexual à altura. É que, quando as há, pelo menos entre nós, no mundo ocidental, é educar para o preconceito e para a castração. Ora, neste caso, então é melhor não haver nada, que deste modo os indivíduos terão de aprender por eles próprios. Só que, depois, dá nisto: infinitas perdas, desvios letais, preconceitos empedernidos, enfim...

                 - Era bom – cortou a Isabel - entender porque bate mal tanto caso. É que o julgamento vulgar podemos resumi-lo nestes termos: não deu bem porque eles não acataram os bons costumes, quer dizer, não aplicaram a lei da auto-castração, a reprimir, o juízo de que tudo aqui é mau e, portanto, pecado. Este é o padrão. Ora, enquanto assim for, não há resposta, uma vez que a base para o julgamento e o apelo à reconversão é por inteiro errónea. Fugirem dum erro para caírem noutro? Ainda para mais sendo este propugnado pela cultura dominante inteira? Não admira que haja tanta gente a bater com a cara nas paredes. E que o casamento se deslace em cada vez maior número de casos. Os casais pressentem que isto está mal mas depois como encontrar alternativa? Solitariamente é quase um milagre.

                 - Isto vemo-lo melhor – avançou o Luís – num caso concreto. Por exemplo, de que consta a fidelidade? Versão dominante: relações sexuais exclusivas dentro do casal. Mas alguém é infiel nos casos que referi? Rir-se-iam todos de tal coisa. Não, ninguém. Contudo, sem excepção, têm relações extra-conjugais. Aquele conteúdo do conceito deriva directamente dos valdevinos que, após se arrependerem de violar tudo e todos, com o complexo de culpa, se mutilam, se castram. Ora, o conceito ganha logo outro conteúdo quando se vive a sexualidade equilibradamente integrada na vida real dos protagonistas. Infidelidade é ludibriar o companheiro, é trair-lhe os afectos, as expectativas, atropelar-lhe o estatuto e os papéis que desempenha no relacionamento, é ser dúplice, viver uma realidade e simular outra, é mentir com uma vida às escondidas... numa palavra, infidelidade é trair a regra do respeito e acolhimento mútuos, em qualquer que seja o pendor. Não tem, pois, nada a ver com relações extra-conjugais: estas tanto podem ser uma coisa como outra, depende de como forem vividas pelo casal.

                 - Isto altera tudo – meditei eu. – Como é que ninguém vê? Grande caminhada vocês têm feito!

                 - Foi desde jovens – comentou a Isabel – o nosso entretenimento mais apaixonante.

                 - Até me vejo com a cabeça à roda! É que, ponderando bem, então, realidades tidas por marginais, suspeitas, porventura criminosas, podem ser, deste ponto de vista, se calhar, perfeitamente normais, eventualmente gratificantes e sadias. A prostituição, a pornografia, a literatura erótica, sei lá...

                 - Exactamente – afirmou, convicta, a Isabel. – Nelas nada têm de mal. O mal não está aí, que até poderão fazer muito bem a muita gente. Olha, animam a vida íntima de qualquer casal cuja sexualidade caiu na rotina, por exemplo, ou anda inibida por qualquer preconceito ou restrição de origem exterior. Nós que o digamos, não é, Luís?

                 - Afirmativo. Eu, por exemplo, não era capaz de ter uma cópula oral com a Isabel antes de vermos um filme centrado nela. Olha, para mim, foi uma libertação: não apenas o consegui como vivemos um dos períodos mais gratificantes eroticamente do nosso casamento. E não foi caso único. Um diferente foi que nenhum de nós lidava à vontade com a masturbação do outro, sentíamo-nos de fora, como enjeitados, quando, ao lado, se acariciava. Pois tivemos a sorte de ver um filme em que os pares se possuíam enquanto se masturbavam. Excitou-nos tanto que, durante semanas, não tivemos relações doutra maneira e foi mais um dos grandes períodos de prazer que partilhámos em nossa vida em comum.

                 - Mas então onde é que anda o mal em toda aquela área?

                 - Na violação dos intervenientes, quando a houver – continuou o Luís. – Prostituição à força, não. A enganarem ou aliciarem com falsas promessas, não. A escravizarem, não. A reduzirem à miséria e à fome para abaterem resistências, não. E assim por diante.

                 - Mas sexo por dinheiro... – resisti eu.

                 - Se ele o permite, qual é o problema? - perguntou a Isabel. – É uma das valências dele, mais nada. A ser utilizada ou não, conforme os indivíduos o entenderem, no projecto de vida deles. Tão simples como isto. O sexo nele próprio não tem mal nenhum. Se um indivíduo quiser viver dele, é uma escolha de vida, temporária ou definitiva. Seja homem ou mulher. Se for uma opção livre integrada num rumo de vida qualquer, tudo bem, é assim mesmo que deve ser, como qualquer outra faculdade e potencialidade humana. Só o não vemos desta maneira porque andamos cheios de teias de aranha nos olhos, dos preconceitos ancestrais.

                 - Então também não vedes mal na pornografia, menos ainda na literatura erótica, não é?

                 - Mal, há sempre, só que não é nelas. Por exemplo, se num filme sado-masoquista a vítima foi forçada, pior, raptada, escravizada e se a torturam até à morte, isto é criminoso, do mais grave. E o filme, nele, pode nem sequer deixar transparecê-lo. Até ser pedagógico, a mostrar como lidar com tendências daquelas para evitar-lhes a perigosidade e retirar todo o benefício de tais experiências-limite. Também é mau se o filme propugnar uma teoria de perversão da sexualidade, de utilização dela de modo criminoso, (por exemplo, a aliciar vítimas para o crime). Não é a pornografia que tiver que é má mas a teoria que expõe, a tese que propõe.

                 - Na literatura, então, é que não haverá nada de mal, certo?

                 - Claro que pode haver, não nela mesmo mas no intuito que houver aí e no uso que lhe for dado. Um exemplo: um livro para conquistar crianças para integrarem, à falsa fé, uma rede pedófila ou a prostituição infantil. Tudo pode perverter-se mas tudo é bom à partida.

 

 

                 Fátima – 20 de Julho de 2013

 

                 Não logro digerir aquilo. É demais. Será que têm mesmo razão? É uma maneira de ver tão nos antípodas do que tradicionalmente a Igreja e a cultura ocidental ajuízam em tal matéria que, de certeza, os fariseus rasgarão as vestes gritando: “Blasfémia!” e os bem pensantes vestirão de luto. E, se do lado destes não houver mesmo fundamento, ou melhor, se o fundamento for deveras um enorme complexo de culpa milenarmente a punir-se, num intérmino sado-masoquismo, de anos de libertinagem abusiva, violadora, criminosa, por parte de gigantes da igreja (noutros domínios), como Orígenes, Tertuliano, St.º Agostinho (e certamente muitos mais), quantas gerações ainda irão ser requeridas para mudar de cultura? Ninguém muda dela como troca de camisa. Não são apenas os juízos que faremos, mas fundamentalmente os afectos que eles alimentam e os enraízam, os automatismos comportamentais que se instalaram e se reproduzem como naturais, sem darmos sequer por eles, as estruturas colectivas que ali se alicerçam e que mutuamente se legitimam... Se nada disto tiver justificação, quantas perdas mais hão-de ser suportadas, quantas lesões ferirão ainda milhões e milhões pelo mundo fora?

                 Se não tiverem fundamento os argumentos dos meus amigos, então onde radicam as feridas e o mal-estar da ordem implantada? Porque é que ela é uma desordem que aprisiona, fere, castra, amputa estrutural e sistematicamente a vida inteira nestes domínios? Isto não pode ser remetido à conta de Deus: tem costas largas mas não para nos dar cabo da qualidade da existência em campo nenhum. A que propósito? Isto seria um anti-deus e é o que andamos milenarmente a adorar nestes domínios sacrilegamente. Idolatricamente. Deus não poderá jamais identificar-se com semelhante arbitrariedade, com tanta negatividade, com tais correntes e algemas que nem o sado-masoquismo extremado alguma vez impôs tão generalizadamente e de modo tão persistente. É estranho que os que pretendem escravizar-nos ao natural na contracepção, aqui sejam o mais anti-naturais possível, sem escrúpulo nenhum!

                 Enfim, sinto-me perdido. Vou parar por aqui. Contradições demais para o crânio empedernido dum anão de palmo e meio.

                 Temos trabalho para todo o dia. É bom, a ver se logro acalmar o pó que me tolhe a vista e as emoções. Que volta dar a uma proposta destas?

                

                 Agora é noite e torno ao texto apenas para anotar a ideia que todo o dia me andou a martelar cá dentro: felizmente o Papa não tem de falar acerca de nada disto. Nem é tema para reconverter qualquer estrutura da Igreja institucional, creio eu. Isto é tudo mentalidade, doutrina, cultura ambiente, clima respirado individual e comunitariamente. É neste âmbito, portanto, que deverá ser encarado, fermentado, abordado, evoluído. Ora, quem mexe predominantemente por aqui? Teólogos, profetas, leigos, todos os agentes que vão revolvendo a amálgama do mundo. A hierarquia tem apenas de implantar pontes. Não irão ser ágeis neste domínio, se o itinerário espiritual de quem com ele mexer e viver for convergindo em teses como as dos meus amigos. Deixemos, porém, que o Espírito fermente a fornada que nos alimente os amanhãs. Deixemos.

                 Ora, é aqui que bate o ponto. Até agora não foi deixado, não há margem de manobra. Os meus amigos seriam irremediavelmente excomungados, caso fora público (ou tivera público impacto) tal teoria. Isto, apenas isto, é o que está mal e tem de ser mudado. Todos têm de ter direito de reflectir, de conferir com os factos a leitura que deles fizerem, seja correcta ou errada, verificando todos nós que a verdade final é inatingível, apenas aproximável ao infinito. Como estamos, é-nos proibido aproximá-la. Urge mudar isto na Igreja para ser Igreja – comunidade a caminho. Não parada, agrilhoada a qualquer cadáver de antanho.

 

 

                 Fátima – 21 de Julho de 2013

 

                 Hoje é domingo. Durante a eucaristia matinal na nossa igreja-navio, então aberta à comunidade, lembrei-me de que, sendo o dia de Jesus, o Senhor, deveria partilhar as minhas expectativas e dúvidas acerca do Veiga e da Mariana.

                 Há dias visitaram-me e puseram-me a par do estranhíssimo ponto onde os levou, até agora, o itinerário da vida interior deles. Vistos de fora, parecem dois ateus, agnósticos ou, no mínimo, indiferentes. Não têm qualquer prática religiosa, como se diz. De dentro, porém, são dois crentes profundíssimos empenhados inteiramente numa Igreja espiritualizada, a revolver até ao limite as entranhas da vida real em cada dia, em todos os papéis que desempenham, com todos os indivíduos com que lidam e cruzam

                 Como é viável uma síntese destas? Pacífica, numa perene paz de consciência, numa alegria do fundo, diria, quase, em plenitude, totalmente operante mas sem sinais externos, praticamente, à margem da vida familiar, laboral e social: tudo aqui dentro em todos os planos. Que espiritualidade é esta? Fará mesmo sentido? Para eles, faz. Mas para outrem, para a comunidade crente, para a Igreja institucional, para a Igreja corpo de Cristo?...

                 Nunca na vida me vi tão perdido, no meio desta floresta virgem de caminhos, como desde que me dei a este labor. E também nunca me encontrei tão desafiado e tão arrebatado. As duas vertentes são uma vivência apenas, os extremos tocam-se e fundem-se cá dentro numa realidade única. Como os extremos se fundem no Veiga e na Mariana. Em campos diferentes, claro, mas é igual o produto íntimo.

                 Eram dois colegas que não davam nas vistas, de Filosofia, namoraram desde o meio do curso. Nas reuniões da Juventude Universitária Católica ficavam nas últimas cadeiras. Nunca os vi tomar a palavra, discretos e tímidos. Atentos, porém, e muito cordatos nos convívios. E levavam tudo muito a sério. Pelos vistos, muito mais a sério do que algum dia me passou pela cabeça.

                 - É uma secularização radical – resumiu, duma penada, o Fr. Benedito. – Cristo não pretendia outra coisa, a Igreja não deve pretender outra coisa, nós não devemos pretender outra coisa. O que andámos a instituir História além foi sempre em nome disto, foi este fundamento que o justificou, embora na prática a encobrir com manto de santidade intuitos mesquinhos inteiramente alheios, às vezes bem mais rasteiros, egoístas, materialistas. Quando não criminosos.

                 - Por exemplo? – interrompi-o. – É que não estou a ver nada, para variar.

                 - Como julga que despontou o clero como classe privilegiada? Como é possível ter-se legitimado isto que está nos antípodas do que Cristo pretendeu? Como é que se copiou toda a estrutura hierárquica do Império Romano, com o Imperador-deus no topo, sem nenhum rebate de consciência? É o mais alheio que podemos imaginar ao espírito cristão. Uma estrutura de poder, de domínio, de coerção, com direito de vida e morte sobre os indivíduos, com direito de salvar e perder os súbditos para a eternidade? Que é que Jesus tem a ver com tal monstro? A pretender dominar o mundo pelo poder soberano, não a converter os corações? Cristo onde morará no meio disto? Poderíamos continuar a lista o dia inteiro. Mas foi a pretexto de secularizar a mensagem, a fermentar o Reino de Deus. É por isto que é tão difícil de desmascarar. O Veiga e a Mariana atacam-no melhor: incarnam ao vivo o caminho alternativo, até ao extremo onde logram atingir. Pelos vistos, que os não conheço, creio eu. Ou conheço?

                 - Mas não é muito arriscado o trilho por onde se meteram? Sem sacramentos, sem rituais, sem comunidade...O apoio é o que a vida lhes traz.

                 - Justamente, irmão Ambrosino. Os sacramentos, os ritos, os textos bíblicos, a comunidade dos crentes e tudo o mais são mero apoio. Apoio apenas. O que importa é a vida ir incarnando o Espírito, a partir da interioridade, cada vez mais profundamente, dia a dia mais autêntico, com o quotidiano a ficar gradualmente transparente a Ele, flexível e moldável pela sua inspiração, de modo que a lida inteira O irradie como uma aura que rodeia o indivíduo. Isto é que é o objectivo de tudo. Se estiver ausente, então aquela manta de rituais fica sem alicerce, é uma alienação institucionalizada, uma cortina que nos veda a porta para Deus, em vez de nos pôr a caminho dEle. A eucaristia, por exemplo, substituiu, na grande multidão, a descoberta de Jesus: “Já fui à missa, já cumpri a minha obrigação, estou santificado, já não preciso de fazer mais nada.” Ponto final. Em lugar de levar ao itinerário interior e transformação da vida, cristaliza definitivamente o ponto onde alguém estiver. Com a agravante de o tomar por santo, por mais pecador ou até criminoso que em concreto seja.

                 - Mas eliminar tudo? Não é desligar-se da fonte? – insisti, preocupado.

                 - Eles repudiam-no, julgam-no ilegítimo? Ou não?

                 - Ah, não, pelo contrário. Até participam ocasionalmente. Olhe, na morte dum irmão dela integraram-se com a família, amigos e vizinhos na missa e no enterro. Uma forma significativa de “estar em comunhão solidária com todos no mais relevante” – foi como mo referiram. E são meditadores, com a técnica muito apurada e com a oração integrada nela. Não cumprem é nenhum ritual preciso, regular e estabelecido nem neste âmbito em particular. É ao sabor das conjunturas, conforme a vida vai requerendo, se bem entendi. Eu por mim julgo que ficaria perdido, acabaria esquecendo-me e, quando fora dar por ela, já teria abandonado tudo. Quer dizer, não me refiro aos rituais, devoções, sacramentos e quejandos, mas à própria vida espiritual. É isto que eu temo que lhes venha a ocorrer.

                 - O risco é real, evidentemente. Por isto é que temos a panóplia inteira da liturgia, não é? No caso deles, porém, com a caminhada tendo ido já tão longe e com tanta autenticidade, não creio que venha a haver algum problema. Pelo contrário, tudo indica que irão é mesmo cada vez mais longe e mais fundo, sem paragens nem desvios. São dois santos leigos, inteiramente incógnitos, traçando um rasto de luz pela vida além, iluminando tudo e todos em redor, pegando o fogo do Espírito em toda a lenha do mundo por onde caminham. É uma pequena maravilha. Até a mim me encanta.

                 - Sabe, o meu desconforto é que sinto que, de alguma maneira, isto torna tudo o mais inútil. Que fica da Igreja, não é? Não somos precisos para nada... Para quê o Magistério, a pastoral, por exemplo?

                 - Pois, não fica nada porque fica tudo. E não somos precisos porque somos muito, muito precisos. Nunca fomos, aliás, mais, não é verdade?

                 - Pronto, lá está a fazer pouco do pobre anão! Sabe muito bem que é um disparate pegado e que eu não entendo nada. Vá lá, ponha as cartas na mesa, tudo bem explicadinho, que senão eu fico inteiramente em branco e a culpa é sua, Fr. Benedito. Estraga-me o domingo inteiro.

                 - Ora, é clarinho como água! Se todos conseguirem recobrir as pegadas do Veiga e da Mariana (e, quando digo todos, digo a Humanidade inteira) então para que é que precisaríamos da igreja institucional, com tantas estruturas, organismos, instituições, movimentos, congregações, iniciativas, grupos, comunidades e assim por diante? Para nada. Teríamos atingido a secularização completa, estaria a consumar-se o projecto de Cristo, de Deus (e da Igreja, enquanto lhes é fiel). Tudo aquilo murcharia por inútil, acabada a tarefa de vez, a contento do Espírito que a anima. O projecto de divinização da vida real, de construção do Reino de Deus na terra, estaria a ocorrer, finalmente, onde deve: na amálgama inteira da realidade secular, em todos os planos e com toda a gente e ali a desenvolveríamos. A Igreja ter-se-ia tornado no Corpo Místico de Cristo incarnado, aliás, incarnando mais e mais pelo mundo além, rumo ao Infinito.

                 - Então não é preciso de todo nada daquilo, isto é que era de promover. Ou não é?

                 - Não, não é. Toda a Igreja institucional foi nascendo e crescendo para promover a secularização do Espírito, através da vida interior de cada um, rumo a uma autonomização adulta, madura e completa do respectivo rumo de vida, impelido pela espiritualidade em todos os domínios em que em concreto intervenha. No limite, todos caminhariam como o Veiga e a Mariana, com pé firme e seguro, auscultando bem o íntimo e seguindo-lhe os apelos furtivos e discretos, num perene diálogo do exterior com a interioridade, a realimentar-se um à outra permanentemente, numa caminhada ao infinito. Sem jamais parar, sem nunca tergiversar. Como lograr isto sem toda a Igreja institucional? O Veiga e a Mariana também os conheceste enquanto participavam nela, não é verdade? Então... É justamente para isto que ela serve. E quem nos dera que se tornasse inútil por haver consumado a tarefa algum dia! É uma utopia inexequível de todo. Mas é bom tê-la diante dos olhos, quanto mais dela nos aproximarmos, mais fiéis estaremos a ser ao nosso mandato de cristãos e ao projecto de Cristo.

                 - Estou meio perdido. Então porque não fazemos nada disto? Nos mandamentos da Igreja é pecado não ir à missa ao domingo, não se confessar ao menos uma vez por ano, não comungar pela Páscoa... Isto anda tudo ao contrário.

                 - Pois anda. Sabe? Era uma tentativa de prevenir as fragilidades dos povos. Mas foi muito canhestra e não logrou furtar-se à vontade de poder, de domínio sobre todos, por parte da hierarquia, do clero. Duas realidades que nada têm a ver com cristianismo nenhum, foram e são, institucionalmente, a perversão do dever de servir, a diaconia de mediar, de criar pontes, permanentemente, a ligar todos com todos. Infelizmente, a História inteira tem promovido o contrário. Agora andamos a tentar arrepiar caminho, com o exemplo convicto e sem vergar dos últimos Papas. Já não era, aliás, sem tempo! Mas ainda falta generalizá-lo na rede completa, não é? E destruir o clero como classe social.

                 - Oh! Isto é no campo do ecumenismo. Agora no encaminhamento dos fiéis não vejo por ora nada. Eu, por mim, fiquei baralhado com o Veiga e a Mariana. Que faria o resto da Igreja! Ninguém vê ponta de tal nem o promove, creio eu.

                 - Claro que não. Séculos e séculos a instituir o contrário, como é que doravante virariam do pé para a mão? Aliás, o clero, como classe, para se manter, tem de propugnar o inverso: quanto mais infantis e dependentes os crentes, mais subservientes e disponíveis para a tosquia regulamentar. O clero e a nobreza de antanho, é ver quem esfola mais o desgraçado do campónio ancestral, acorrentado a crendices. Séculos e séculos. Sem ou com muito poucos rebates de consciência. Porque é que somos duma ordem menor? Porque S. Bento, S. Domingos e S. Francisco não lograram tolerar mais aquele estado de coisas no tempo deles. Tudo renasce, porém, permanentemente, é de todos os tempos. E, aqui como no mundo civil, quanto mais o poder se torna totalitário, mais desconfia da cultura e mantém quem for culto debaixo de olho. Apenas os ignaros o garantem descontraído. Logo, importa-lhe promover e preservar a ignorância o mais possível, ao menos no domínio da religião e da Igreja, para lhe não roubarem os pergaminhos. É humano e compreensível, embora nada cristão. Porque é que julga que a eucaristia foi em latim até ao Concílio Vaticano II? E houve o Índex dos livros proibidos? Ninguém entendia nada, pura magia secreta. Era exactamente o que convinha.

                 - Mas é horrível uma coisa destas! O ideal da Igreja transformado na promoção da carneirada acrítica, acéfala, num seguidismo às cegas, para benefício duma classe de parasitas, a viver no ócio pela manipulação sem escrúpulos das multidões. Que horror! Também não é tanto assim...

                 - Pois não. É deste modo e ao contrário também. Sempre, em todas as épocas. Os dois pendores coexistem e coexistirão até ao fim dos tempos. Nós, aqui no convento, e toda a nossa Ordem, temos o dever de fomentar o sinal contrário, para isto somos frades mendicantes. E as demais ordens, cada qual no ramo dela, igualmente, embora nem todas convirjam neste pendor.

                 - Mas também acumulámos riquezas, tesoiros incontáveis. Foi tudo por trairmos?

                 - Olhe, em primeiro lugar, não é por termos brotado da rebelião contra aquela perversão milenar que ficamos isentos dela. Todos pecamos e a Ordem, a nossa e todas as mais, cai na tentação muitas vezes, tanto individual como colectivamente. As refundações periódicas não têm outra origem. Depois, os teres e haveres apenas são maus quando forem mal geridos. Como tudo na vida. Finalmente, é de não esquecer nunca que, quanto mais temos maior é a tentação de escorregar na perversão de manipular para o conservar ou aumentar ainda mais, não é? Isto sem contar com os oportunistas que vêem na Igreja uma grande carreira, firme e sem freimas, e que muito cinicamente se infiltram sem escrúpulos nem crenças de qualquer jaez, senão um egoísmo ilimitado. Antigamente tivemos alguns Papas que não foram mais do que isto. Ateus materialistas agarrados ao poder, às riquezas e às benesses a fruir dali pela vida adiante. Onde acumularmos tesoiros, os ladrões arranjam logo maneira de roubá-los. Da base ao topo, como já experimentámos pela História fora. “Vigiai e orai para não cairdes em tentação” nunca foi mais oportuno do que neste domínio. As quedas aqui, para além de sistemáticas e estruturais, chegam a ser institucionais. E permanentemente repetíveis pelos séculos adiante. E hoje como ontem.

                 - Quer dizer, o Veiga e a Mariana não proliferam porque não convém a esta mole de privilegiados, à hierarquia, numa palavra? A Igreja é dominada por uma rede perversa, como se uma quadrilha a tivesse conquistado e ocupado o poder? Que visão, Fr. Benedito!

                 - Exactamente, é mesmo isto, com a reserva apenas de que em geral os respectivos sustentáculos estão de boa fé. Têm é uma vida interior muito pobre, não alimentam espiritualidade viva nenhuma, apenas formalismos. Portanto, ainda não entenderam nada, embora julguem que estão perfeitamente certos e que o que há para operar é o que eles operam. Padecem de mui grave miopia espiritual, não enxergam um palmo diante do nariz. Mas ai de quem lhes desdenhe dos galões! Atiram-lhos logo à cara. Por isto há tantos expulsos, suspensos, destituídos, transferidos... Enfim, é a guerra permanente entre as duas ladeiras, melhor, entre os que teimam em trepar e os que pretendem manter ou jogar abaixo quem persiste em voar. E não haverá jamais vitória definitiva de nenhum dos lados.

                 Aqui parei, hesitante e meio amedrontado. É que não vislumbro ganhos no campo da autonomia de raiz dos crentes. Nós andamos é a ser batidos em todas as frentes. Qual não há vitória de vez de nenhum dos lados? A Igreja institucional anda a infantilizar o mundo inteiro há gerações e gerações. E a mantê-lo acorrentado a preconceitos, regras e imposições infundados e injustificáveis. Então o praticante é o que cumpre ritualmente liturgias?! E o que cumpre espiritualmente uma vida interior permanentemente a caminho, cada vez mais profunda e irradiante, a ponto de ultrapassar ritualismos e liturgismos de mera casca sem conteúdo, sem mais sentido? Este não é um praticante? Porque não presta preito à classe dominante do clero? Não paga vassalagem ao suserano? Arrepiei-me todo. Ainda não largámos a Idade Média...

                 - Nós temos é a guerra perdida! - desabafei de repente, num gesto de desânimo.

                 - Ora, porquê?! Conheceu-os, ao tal Veiga e à Mariana. São fruto de quê? Alguém lhes logrou transmitir a mensagem no meio do vespeiro e eles entenderam-na. Estão a ser-lhe fiéis dum modo tão brilhante que até a si o desnorteou. O fermento anda a correr por aí de mão em mão. Onde encontra a boa fornada leveda-a e dá frutos. Quantos mais não haverá? Eu, se os vir, nem sequer imaginaria. De fora parecem ateus indiferentes, não vão em rituais e liturgias, não é? Têm as deles, muito privadas e inteiramente integradas na vida, de fora ninguém dará por elas. Só de constatar isto apetece-me cantar, palavra! Um caso destes faz-me ganhar o dia, o mês, o ano! Obrigado, irmão Ambrosino, isto é a alegria de viver inteira! Alegre-se! Que o mundo às tantas anda por aí cheio deles e ninguém sequer o adivinha.

                 - Ai! Que é que me está a esconder? Para tanta euforia...

                 - Esconder?! Nada, não! Já falámos disto há uns tempos atrás: é o atalho para o Além. Lembrei-me, de repente, de que eles, os seus amigos, são meditadores e que oram daquela maneira por dentro da vida quotidiana. Foi o que acabou de me relatar. É o trilho que todos seguem no movimento que anda a espiritualizar a cultura mundial, cruzando as igrejas, as religiões, os ateísmos, os agnosticismos... É um itinerário planetariamente trilhado, à espera de que as confissões lhe escancarem as portas sem reservas: é a busca da espiritualidade íntima mais autêntica atingível por cada um, o que é comum a todo o homem nascido e visado simultaneamente por todas as crenças. Ora, esta gente está no carreiro do Veiga e da Mariana e são muitos milhões pelos continentes além.

                 - É mesmo?

                 - É mesmo. Apenas não entendo porque não somos todos também meditadores, porque é que os seminaristas não aprendem a meditar deveras, com toda a técnica e rigor. Porque é que os padres e os bispos não frequentam cursos, retiros destes. Porque é que não fomentam isto em todas as comunidades e paróquias, em todos os organismos e serviços. Para termos “grupos de oração” em todo o lado deste molde (como Lorna Byrne lhes chama).

                 - Não seria um bocado demais? É uma moda. Daqui a uns anos quem irá falar nos meditadores? Vê neles outras pernas para andar? Com tanto entusiasmo...

                 - Têm, têm outras pernas. E que pernas! De duas ordens, ainda para mais.

                 - Explique-me.

                 - Primeiro, sabe que já suspeitávamos e os textos apócrifos confirmam que S. João Baptista integrava uma comunidade (de género monástico) que era perita, entre outras vertentes, em meditar? Com técnicas idênticas às praticadas hoje em dia? Mais: os apócrifos dão vários indícios de Jesus os frequentar no período anterior à vida pública. Isto permite entender melhor o contexto do baptismo no Rio Jordão. Ambos estavam ligados, para além do parentesco de primos, por vivências idênticas em idênticas comunidades. Que esperamos nós para lhes seguir o exemplo? Não é verdade?

                 - São as duas ordens de razões?

                 - Não, não. Isto é apenas a primeira. A segunda, que venho conferindo e confirmando todos os dias, numa infinidade de casos, tantos que já lhes perdi a conta, é que esta técnica de meditação-oração deita abaixo as barreiras que impedem a comunicação com o mundo espiritual. Todas as potencialidades de cada um se desbloqueiam, manifestam e desatam a desenvolver-se, às vezes de modo espantoso.

                 - Esta das barreiras... não entendo. Que barreiras? O crente crê, o descrente não crê. Barreiras?!

                 - É outra coisa. Olhe, para tornar a falar apenas da que para mim é mais surpreendente, grande parte dos praticantes da meditação comunicam ali com entes queridos que faleceram, vêem-nos, falam com eles, inter-comunicam, recebem indicações, às vezes orientações decisivas para a vida. De repente caiu a barreira opaca da morte, daquém e dalém tudo se torna mutuamente transparente. E são aos milhares, só entre nós. Agora imagine pelo mundo inteiro. Milhões? Centenas de milhões? Ignoro, mas que isto é lindo, é. Que maravilha! E é-nos dado hoje em dia assistir e partilhar de tudo. Há revoluções individuais de extremo a extremo. Evidentemente, com vivências destas...

                 - Então deveríamos entrar todos. Uma coisa assim!...

                 - Pois, pois. Mas sem expectativas. Cada qual tem os próprios dons. E não há dois iguais. É ir predisposto a acolher o que o Espírito nos queira dar, seja lá o que for. Se não houver novidades, é a lição de Tomé: “Crês porque viste. Bendito o que não vir e crer.” Em muitos casos é Jesus que aparece e há quem não pretenda outra coisa senão vê-Lo. Então finda fechado ao que é próprio dele. Não mandamos no Além, também aqui. É acolhê-lo sem reservas e segui-lo no que entenda remeter-nos ou propor-nos. A pedra de toque, nisto como em toda a vida espiritual autêntica, é a humildade perante o Infinito que se nos desvele em qualquer que seja o pendor.

                 - Vamos então arranjar maneira de entrarmos na onda? Também queria, Fr. Benedito. Não se esqueça do anão, está bem?

                 - Certo, acho que vou tentar. Vou tentar. Prometido.

 

                 Também aqui o Papa Francisco nada mais tem a fazer do que deixar que tudo corra, que o Espírito encontre porta franca, que ninguém O tente aprisionar ou substituir-se-lhe, feito deus às três pancadas. Quanto ao mais, por parte dele, é participar e partilhar, emprestar a força do exemplo para que tudo se desmultiplique, entusiástico, pelo mundo inteiro. Mais nada. E é quanto bastará. E será muito, muito deveras. Deus queira!

 

 

                 Frei Anão, meu amigo:

                

                 Quando ouvi que o Papa Francisco nomeara uma comissão de cardeais para estudarem a reforma da Igreja, nem sequer me tinha ocorrido algum dia escrever à volta do tema. Nem aquilo me motivou.

                 Tinha lido há tempos O Vaticano Contra Cristo e por aqui ficara informado da mediocridade e perversão instaladas, do vespeiro insano que tende a submergir o topo da hierarquia eclesiástica e todas as instituições que por ali enxameiam. Mas verificara simultaneamente que a denúncia provinha dum grupo de cardeais dos quais apenas um, já reformado, dava a cara. Os outros protegiam-se com o anonimato da fúria das represálias. Não era, portanto, mera teoria, era perversidade ao vivo e a fazer sangue, pretendendo cobrir-se com o manto insuspeito da fé, da inocência e da moralidade. E, pelos vistos, ai de quem lhe levante a máscara e lhe exponha a podridão a público! Ora, a denúncia vem de dentro. É bom e cria alguma esperança...

                 Conhecia da comunicação social os escândalos do Banco do Vaticano, os suicídios, as mortes suspeitas, as prisões. E as interrogações. Perguntara-me que é que isto tem a ver com cristianismo. Onde é que o cristianismo chegara para se identificar com baixezas destas. Pior, para alimentá-las e se alimentar delas. Hoje vivo na expectativa de ver o que irá resultar da nova comissão nomeada pelo Papa especificamente para extirpar este cancro.

                  Lera em Um Voo Sensitivo de Alexandra Solnado que muitos (a maioria?) no Vaticano querem remodelar, recuperar a espiritualidade genuína, mas não vêem o que fazer, como efectivá-lo. De que maneira dar a volta a tudo aquilo? De facto, a Igreja institucional é uma máquina de proporções tão gigantescas, tão monstruosa, que ninguém a logra abarcar nunca na totalidade. Tentá-lo deixa qualquer um mal disposto. Vira, em Este Jesus Cristo Que Vos Fala, da mesma autora, como ela se vira canhestra ao escrever cartas aos mentores do Santuário de Fátima e ao Papa. Que é que alguém entende disto, por muito boa vontade que tenha?

                 Quanto a mim, por aqui me ficaria. Tinha apenas algumas vagas ideias acerca do que poderia ser feito. Daquelas que toda a gente tem, basta parar nisto alguns minutos, não é verdade? Nada que justificaria um livro. Nem, menos ainda, qualquer pretensão de pertinência. Que voz tem um leigo à margem? Nem que fora perito, quanto mais...

                 Contudo, o homem põe e Deus dispõe.

                 Estávamos a assar umas douradas para o almoço aqui na esplanada de casa, já depois da uma da tarde, aproveitando o sol de Maio, o mês das aparições de Fátima. Eu punha a mesa enquanto a minha mulher vigiava o lume e o peixe. A brisa era fresquinha, a contrastar com o calor que apanháramos um pouco antes, nas espreguiçadeiras, a bronzear a pele para curar as articulações e conter as alergias. Estava a acabar de alinhar os talheres e servia os copos de vinho quando tudo principiou.

                 De repente entrou-me pela mente dentro o senhor, Frei Anão, meu amigo, com o corpo e ademanes daquele que a memória logo me evocou, de há decénios, e com que convivi no convento em Fátima, durante o meu curso de Teologia. Irrompeu com o modelo inteiro do romance, numa estrutura pronta e ser escrita. Apanhou-me tão desprevenido que parei o que estava ordenando, olhei para a minha mulher que não dera por nada e apagava prestes o lume que estrugia do carvão, ameaçando queimar as douradas.

                 Fiquei um pouco perplexo e deixei uns dias a ideia a amadurar cá dentro. Não era porventura pelas minhas propostas vagas que aquilo me vinha. Por outro lado, não sentia qualquer pulsão de procurá-las mais a fundo, de pesquisar, ler ou reler o que quer que fora: era um empurrão para me sentar e escrever, mais nada. E um enorme atractivo para executar isto mesmo, com uma expectativa de profundo gozo, de vir a ser muito gratificante. Foi um íman afectivo poderoso, o que me deixava perplexo porque não me vinha mais nenhuma ideia, mais nenhuma precisão, nem sequer um encadeado de temas, de vertentes, nem de perspectivas relativas a qualquer pendor.

                 A pulsão e o atractivo mantinham-se, entretanto, se é que não aumentavam. Convenci-me de que deveria obedecer. E aprestei-me para me colocar diante do papel, sem nenhum vislumbre do conteúdo rigoroso que poderia ocorrer, da mensagem a transmitir, afinal. Não seria, definitivamente, minha. Tinha, porém, uma ideia genérica, com a impressão de que poderia ser a chave: era a da plena liberdade de pensamento e de expressão que a Igreja propugnava para fora e nunca admitia para dentro. Esta contradição secular é um escândalo gritante e tão flagrante que não dá para entender, como não dá para entender o sepulcral silêncio à volta dela dentro de portas. Anda tudo cego? Estão todos mudos? Era o fio condutor de que dispunha à partida. O meu.

                 Porque me convenci de que era a chave que abriria em cadeia as portas todas, não faço ideia. Meteu-se-me na mente e pronto. Donde me veio, quem ma plantou no meio do alfobre, também ignoro. Foi, porém, o aguilhão a picar-me para andar, apesar do meu mastigado passo de boi, relutante e renitente em fincar-se no chão firme, nada de aventuras por mundos ignotos.

                 Finalmente, convicto, abri o caderno e anotei a data. Fiquei parado, um pouco interdito, sem vislumbrar bem o que escrever. Então encontrei o comportamento condutor que me poria a ponta da meada na mão. Da primeira e, depois, de todas as vezes, mormente quando repentinamente ficava com a mente em branco, sem uma palavra a adiantar, sem um sentido a abrir caminho. E quantas vezes foram!

                 Qual foi ele, o tal comportamento? Invoquei-o, amigo anão, e a todo o universo espiritual, a todos os que, do reino de Além, quisessem e me pudessem ajudar nesta aventura à descoberta. E o resultado aqui está: meu, que dele sou o autor; não meu, que me veio donde nem sequer logro imaginar. Sei lá bem o que é o outro mundo!

                 Verdade é que antes nunca pensei em nada disto, muito menos o vislumbrei sequer em qualquer nesga. As precisões rigorosas que a cada degrau pontuam, dobra a dobra, o terreno nunca as encontrara anteriormente. Não as conhecia, nem sabia que eram viáveis, nem sequer que existiriam. Isto deixa-me desconcertado, mas é assim. Anão amigo, caixinha de surpresas, hein?

                 Nunca tinha sentido na pele o que Neale Walsh, das Conversas com Deus, conta da maneira como elas lhe ocorreram: sentava-se diante do papel cheio de perguntas e dúvidas e sem nenhuma resposta. De repente estas desatavam a jorrar-lhe da ponta da esferográfica, à medida que as ia escrevendo e voltando a questionar, surpreendendo-o permanentemente, até porque muitas vezes desdiziam as ideias feitas e os preconceitos instalados de que ele partia ingenuamente convencido. Isto não vinha manifestamente dele.

                 Apenas agora verifiquei o que tal era (aliás, estou-o verificando aqui mesmo, enquanto escrevo este remate). Frei Anão, meu amigo, é mesmo divertido! Seja feita a vontade de Deus, definitivamente. E deixo-me conduzir, abandonado, tornado o mais possível mero instrumento fiel e laborioso. E o gozo que dá!

                 Primeiro, não é minha a cadeia de temas abordados que nem sei qual nem quais são, uma vez que ainda não revi o rascunho e não pude decorá-lo ao correr do lápis. Tudo se entrosa, creio eu, mas o encadeado também me surpreendeu, embora à partida suspeitasse que havia de resultar deste modo. Retive apenas o quadro geral de referência temática.

                 Nos primeiros aspectos, a reforma, afinal, antolha-se tão simples que espanta como ainda se não viu de que pende preso o desvio instalado. Basta uma medida de nada, uma abolição duma lei abusiva, por exemplo, e todo o castelo de cartas desatará a desmoronar-se. Era naquela presilha que se pendurava a perversão, a corrupção, o pecado institucionalizado. Descosida ela, cai por terra todo o mal que suportava. O que importa é detectar onde estão estes apagados pontos críticos, escondidos e camuflados em norma, para os extirpar de vez. Custa a crer, porventura, que provoquem tanto impacto encadeado. Contudo, os pontos nevrálgicos têm isto de característico: suportam na insignificância deles uma estrutura inteira – desfeito o nó, deslaça o tecido, seja qual for o tamanho do rolo.

                 Quando desatei a escrever, julgava que, Frei Anão, meu amigo, apenas pretendia abordar aquelas vertentes e que, terminadas elas, o aguilhão deixaria de me picar o costado a dar-lhe voz. Enganei-me redondamente.

                 Uma vez findas, dei comigo de repente à frente do papel em branco sem tema. Mas sentia que não terminara. Era para continuar, mas com quê? Parei, concentrei-me e invoquei-o, amigo anão, com quantos do reino espiritual me quiseram laborando nesta floresta virgem. E tão repentino como o apagão, eis uma nova listagem de temáticas que me deixaram perplexo. É que, quando, ao escrever ou meditar, me ocorrera qualquer delas, sempre as arredara, que não eram para aqui chamadas, não teriam nada a ver com reforma e menos ainda com refundação da Igreja.

                 Afluíram-me, porém, múltiplas à mente então. É porque eram, portanto, para ser abordadas. Eu não via nada a fazer sentido mas, obedientemente, pus mãos à obra. E, claro, logo à primeira, vi quanto andava enganado. Eram conteúdos espirituais da vivência, práticas individuais e comunitárias, vectores de cultura religiosa alienada e alienante que terão de ser reconvertidos, à escala de continentes inteiros, à escala planetária. Não depende de leis, regulamentos, instituições, organismos... Apenas dos intervenientes e participantes. O Papa, a Cúria, o Tribunal Eclesiástico...? Afinal é simples: requer-se-lhes que se não constituam em obstáculos, que não ergam barreiras à caminhada do Espírito através do mundo. E que não legitimem a obstrução, não deixem mais que outros o façam como, afinal, tantas vezes tem ocorrido nestes dois milénios de Igreja institucional, sempre tão distante da Igreja corpo de Cristo, sempre a pecar, sempre a arrepender-se, sempre a ter de reconverter-se, até à consumação final. Tudo por uma Igreja humilde, sem triunfalismos de tipo nenhum. Sem hipóstases, fisicalismos, verdades acabadas em campo algum, antes, ao invés, com tudo e todos em peregrinação rumo ao Infinito, inatingível em absoluto mas indefinidamente aproximável. Uma Igreja a caminho da ressurreição de cada um e da Humanidade e, connosco, do Universo inteiro. Deste Universo que sofre as dores do parto à espera da revelação dos filhos de Deus que somos nós, todos os homens, por qualquer que seja a via, religiosa, indiferente ou ateia. Que o Espírito mexe com cada qual, não discrimina ninguém e é urgente reconhecê-Lo, onde quer que ande revolvendo os fundamentos.

                 E de novo se esgotaram os temas. E de novo senti que era para continuar. E de novo me encontrei em branco perante a folha de papel. E de novo orei a quenquer que me pretendia na tarefa. E de novo me atingiram os vectores derradeiros. Desta feita fiquei mesmo amedrontado: eram de virar a cultura ocidental de pernas para o ar, eram de virar a cultura religiosa milenar literalmente do avesso. Se é para fazer, porém, fá-lo-ei.

                 De Roma depende apenas não deixar-se embarcar em condenações, perseguições, excomunhões, explícitas ou veladas. E, mais uma vez, não permitir que outrem o faça, tanto quanto lhe estiver ao alcance. Velar pelo respeito dos Direitos Humanos, sempre entre nós violados impunemente, em nome da ignorância a manter ou cultivar nas multidões crentes e submissas.

                 Agora aflorava um homem novo a semear, por ora quase inexistente. Meta longínqua a visar em vários campos tremendamente sensíveis, moral e espiritualmente. Áreas que são tabu dentro e fora da Igreja. E que, embora tais, me constatei impelido a denunciar como erróneas de raiz, traidoras da construção e libertação humanas. Dou-as como me vieram, como se me impuseram, provoquem o escândalo que provocarem, arrastem as rejeições que arrastarem. Eu próprio me descubro hesitante. Mas se o Céu o entende e quer deste modo, quem sou eu, quem somos nós para termos o topete de O rejeitar, a pretensão de mandar nEle? Situe-se embora nos antípodas donde estamos, temos é de O acolher, agradecer e seguir em frente, pelos inesperados caminhos abertos diante a que nos convida. É que mais libertações de escravos aí virão, como sempre, não é verdade?

                 Ao fim e ao cabo, porém, isto é um romance, portanto, uma ficção. Todo o entrecho, todos os personagens, todas as reviravoltas são imaginárias. Contudo, os conteúdos doutrinários, as conjunturas eclesiais, as vivências, todos são escrupulosamente reais. Como os autores apontados, as obras, as referências bíblicas e literárias. Os problemas, os desafios, as distorções e perversões - o pecado está aí a apodrecer o coração das multidões. Inteiramente real, para desgraça nossa. Mas igualmente os fermentos, muitas vezes tão minúsculos que nem por eles damos. Só que andam a transformar o húmus inteiro do território humano. São, portanto, realidade. E carregada de futuro.

                 Caro amigo, Frei Anão, a alegria que esta viagem me deu! Tão absorvente desde o princípio que minha esposa se viu muitas vezes preterida, quando não ignorada, ao correr da aventura. Tive de explicar-lhe a violência com que me sentia impelido, para ela poder compreender e acatar, embora ocasionalmente relutante. Não estaria a tornar-me obcecado, não era mesmo demais? Quem é que alguma vez escreveria desta maneira, tão enclausuradamente, horas seguidas, dias seguidos, semanas?...

                 Ao ouvir-lhe os ocasionais remoques compreendi na carne o que repetidamente ouvimos de Alexandra Solnado nos cursos e encontros que promove pelo País: “Tenho a impressão de que Jesus está com muita pressa, ele pressiona muito, é tudo para ser feito já!”

                 Exactamente. Foi o que vivi durante estes meses. Sem stresse nenhum, antes com inefável deleitamento. A ponto de perder a noção das horas, até das refeições. “Senhor, é bom estar aqui. Queres que montemos tendas para por cá ficarmos?” Como eu compreendo os discípulos que treparam com Ele ao Monte Tabor! Se isto que é tão pouco me fez aquilo, imaginem o que não era o arroubamento daquela visão real!

                 Frei Anão, meu amigo, muito obrigado.

 

                 Aroeira, 22 de Julho de 2013

                 Bartolomeu Valente