CORO DOS
AFLITOS
BARTOLOMEU VALENTE
AROEIRA – 2013
Fátima
– 20 de Maio de 2013
Ignoro porque é que o Fr.
Benedito tanto insiste para que eu escreva este diário. É que ele é que é mestre
de Teologia, além de padre e monge. Tem as qualificações todas, agora eu! A
começar pelo meu nome, Ambrosino. Não há segundo no mundo inteiro. Até soa bem
e tem conotações com a ambrósia, a bebida dos deuses, não é? Mas só por ironia:
sou anão, nem monge deveras poderei ser, nem de vez ser ordenado presbítero.
Sou irmão por caridade neste convento, trato da biblioteca e de pouco mais para
que o meu metro e vinte (bem esticado) vai dando.
Claro, concordo com ele que
gosto de ler, de me informar, de acompanhar o mundo e de tentar ter ideias. O
meu maior entretenimento, fechado nesta clausura, é coleccionar postais
ilustrados do Planeta inteiro. A minha cela, afinal, é uma janela aberta ao
Infinito. Como eu tento estar. Embora de pouco valha, não é? Quem é que irá
ligar às ideias dum anão que nada pode ser do que bem desejaria?
O meu Mestre, porém, insiste
que há efeitos para além do que notamos. Não ponho em causa o poder misterioso
da oração. Todavia, julgo que é tão subtil, tão suave e subliminar, embora
porventura duradoiro interminavelmente, que duvido que seja a isto que se
refira. Fala como quem está seguro doutra coisa qualquer. Quando lhe pergunto,
fecha-se em copas:
- Eu cá me entendo, irmão
Ambrosino, eu cá me entendo... – e sorri, enigmático.
Tem alguma carta na manga? Sei
lá bem! Pelo que eu conheço, mas nem ao menos sei se é leitura das preferências
dele, algumas das últimas descobertas desconcertantes da física de partículas
comprovam que, ao focarmos o pensamento num determinado rumo para a actividade,
a vida ou eventualmente o mundo, mesmo antes de agirmos em conformidade, logo
uma série inumerável de partículas subatómicas se realinham naquele sentido,
adequando a realidade física ao projecto mental. E não apenas no corpo do
sujeito, como na atitude de prontidão, tal o atleta à espera do tiro de
partida... Isto seria o corriqueiro. Há que milénios o constatamos, já nos
ginásios gregos clássicos e decerto muito antes! Não, o estranho é que os
físicos o verificam no ambiente em redor, nos outros indivíduos e assim por
diante. E não vêem limite no espaço nem no tempo. Mais: mesmo que o sujeito não
actue, este efeito ocorre. É o mais desconcertante: age sem agir! Para mim, é
uma das descobertas mais inebriantes que a ciência de vanguarda me deu a
conhecer. Evidentemente que é no mundo das partículas subatómicas,
indiscerníveis no nosso quotidiano macrofísico. Mas mesmo assim... E para um
anão, o rebotalho do mundo, teremos de concordar que é muito gratificante.
Afinal, alguma marca minha poderei deixar por aqui, quando a morte me chamar de
vez, por mais tolhida e marginalizada que entretanto me tenha sido a vida. É
muito bom saber disto, pelo menos para mim.
Ao Fr. Benedito é que tal não
importará nada, pessoalmente, não é? Nem se calhar andará informado destas
descobertas, é um teólogo (para meu gosto, fascinante). Daí que tudo o que
respeita a este campo lhe deva passar ao lado, calculo eu.
Para me incitar também não deve
requerer nenhuma destas informações. A mim é que me dão alegria de viver e um
sentido para a vida-à-berma-da-estrada que será sempre a minha, deficiente que
sou, diferente empurrado para a valeta, mesmo inconscientemente, por qualquer
que seja a comunidade. Por isso me acolhi a estes tectos conventuais, é onde
menos à margem me sinto colocado: a instituição põe-me aparte, os monges, não.
Para eles sou sempre um igual, até privilegiado por ser humilhado de tantas
maneiras (mesmo por não poder integrar-me por inteiro na comunidade monástica,
com votos e ordens em pé de igualdade e de pleno direito, não é?).
Mas dizia eu que o Fr. Benedito
não precisa da microfísica para me estimular. É que me estou a recordar de que
St.ª Teresa, padroeira das missões, nunca protagonizou missão nenhuma, foi a
vida inteira uma freira de clausura, encerrada numa cela de convento. Como é
que pode ser padroeira do que nunca fez? Contam-me que há séculos é feita a
pergunta e a resposta é sempre a mesma: ela orava permanentemente pelas missões
e escrevia regularmente ao Papa aconselhando-o nesta matéria, em conformidade
com as visões místicas dela. Ora aqui está. Parece que a Igreja não precisou de
laboratórios de física de partículas para intuir que isto operaria assim. É
porventura a qualquer coisa deste género que o Fr. Benedito se prende para me
levar a escrever este diário.
Agora o problema é que St.ª
Teresa foi decerto muito eficaz na promoção das missões (até os físicos confirmam
que a intensidade do realinhamento das partículas depende da força investida no
projecto imaginado). Agora eu, um anónimo anão recolhido da sarjeta, hei-de
mesmo ter uma grande força, não haja dúvida! Ainda por cima para o que o meu
Mestre quer! Muito mais importante que as missões, mais que tudo, afinal.
Aquele homem tem cada uma! Até me custa escrever qual é a espinha dorsal deste
diário. Mesmo sendo apenas para meu uso, dá-me algum pudor. Quando reparo
nisto, tenho mesmo vergonha de mim. E hoje não tenho coragem de escrever qual é
o tema que o Fr. Benedito me propôs. Talvez amanhã...
Fátima
– 21 de Maio de 2013
Pronto, tem de ser. E antes que
me falte a coragem de novo, aqui vai: este diário é para eu alinhar as minhas
ideias acerca da remodelação da Igreja, de como refundar a nossa religião.
Estão a ver a enormidade?
Estou convicto de que, se
alguém algum dia fora ler isto, desataria a rir. A mim apetece-me chorar. Sou o
mais destituído possível para tal tarefa. Isto amedronta-me, um paralítico
diante do Evereste com o Mestre a murmurar-me:
- Trepa, trepa, tu consegues!
- Mas eu não tenho pernas nem
mãos para tal desafio...
- Por isso mesmo, por isso
mesmo.
Estão a ver, não é? O que fora
escondido aos sábios, revela-o aos humildes. No meu caso, aos ignorantes. O meu
Mestre é assim. Ainda para mais é um sábio e dos autênticos, pelo menos pelo
meu íntimo critério. Senão, como falaria deste modo e como viveria em conformidade? Julgo que tenho razão, no mínimo aqui. Lá
quanto à freima que me comete, até tenho medo, mesmo sendo tarefa apenas para
mim, neste rascunho aferrolhada. Definitivamente, espero.
Não me sinto bem com isto. Não
é que me faltem algumas ideias. É que tudo é grande demais. Da minha pequenez,
nem sequer avisto o tamanho da montanha... Sei lá bem!
Estou incomodado. Hoje não me
apetece escrever mais nada.
Fátima – 22 de Maio de 2013
Tudo principiou com o que eu
julgava que era uma brincadeira. Em que, aliás, por mal de meus pecados,
alinhei. As gentes lá de fora não imaginam, mas nós aqui, com toda esta
seriedade conventual, divertimo-nos muito. De certeza bem mais do que o povo
mundo além. E das maneiras mais variadas. Também temos anedotário e bem
chistoso e há frades humoristas que não ficam nada a dever aos do grande palco.
E então improvisadores é um ver se te avias!
Contudo, alegrias há doutro
teor, às vezes fascinantes, de nos deixarem arrebatados. E nem falo já das
vivências místicas que contam serem de arroubamento, mas, como eu nunca as
vivi, não me refiro a elas com conhecimento próprio. Não. Todavia, por exemplo,
quando vejo o Fr. Benedito, o Fr. Marcos e o Fr. Raimundo, os nossos principais
mestres teólogos, a andarem para trás e para diante ali pelo carreiro do
quintal, a gesticular de entusiasmo, completamente apanhados por uma descoberta
qualquer que os pôs a caminhar nas nuvens, por inteiro alheados do mundo em
redor, como interpretar isto? É um momento de êxtase espalhado pelo quotidiano.
E, quando partilham depois connosco as revelações que tiveram, são muito mais
olhos arregalados de maravilhamento. Onde é que há disto lá fora? O grande
império mundanal nem imagina!
Foi no dia em que o Papa
Francisco nomeou a comissão de cardeais para a reforma da Igreja. Estávamos a
terminar o almoço, a leitura acabara há pouco, era o momento que coubera ao Fr.
Lourenço. O nosso prior chamou-nos a atenção, ao erguermo-nos para a breve
oração pós-prandial, para a notícia da hora: Sua Santidade, afinal, pretendia
mexer com a borra do fundo...
Durante o convívio posterior
não tagarelámos doutra coisa. Eu, como de costume, juntei-me ao grupo do Fr.
Benedito, que é sempre aquele cujas teorias me dão mais gozo. Conseguem afirmar
verdades enormes a brincar e por aqui é que me apanharam. Eu julgava que era a
rir...
- Gostava de apostar que os
cardeais nomeados são os que se mantiveram anónimos por trás de O Vaticano Contra Cristo. Se o Papa quer
mesmo reformar a fundo, apenas teria de se informar com aquele que deu a cara e
que já estava retirado – ponderou o Fr. Ramiro.
- Creio que ele já morreu. De
qualquer modo, não deve ser problema identificar o grupo, ao menos por
suspeita, não é? – comentou o Fr. Marcos. – Os julgamentos por desconfiar nunca
andaram longe da máquina do Vaticano. E os seis Secretários de Estado que
pairavam acima de João XXIII, como humoristicamente ele dizia, devem andar
fartos de apontar quem são aquelas ovelhas ronhosas.
- Se o Papa Francisco lhes
pregou mesmo a partida de nomeá-los, os Secretários ainda irão morrer de úlcera
gástrica – rematou Fr. Benedito. – É melhor não alimentar ilusões. São uns
veneráveis cardeais, bem velhinhos, completamente ultrapassados pelo mundo
contemporâneo, assustadíssimos com a tarefa e cujas propostas de renovação irão
ficar por algo como isto: está tudo bem na Igreja, os chaveiros é que ficaram
um bocado gastos do uso e então é melhor substituí-los por porta-chaves
modernos, cheios de estilo, que a gente poderá ostentar como prova de quanto
andamos no último grito da moda.
- Goza, goza! Olha que às
tantas é o que irás ganhar na rifa. Qualquer dia estás aí, estás com uma
mordaça, desbocado sem vergonha! – riu o Fr. Marcos.
- Pois é. Se o Papa quiser
reformar a sério, não nomearia um grupo de cardeais. Pelo menos, não apenas
eles – retomou o Fr. Ramiro.
- Ora! Querias outra vez os
teólogos a empurrar os bispos como no Vaticano II? Isso é que era bom! Tínhamos
para aí os bispos todos a tapar os ouvidos e a rezar terços em cadeia, para
Deus lhes dar a graça de morrerem rápido para ainda morrerem dentro da Igreja.
Como o bispo português de má memória que o fez durante todo o Concílio – adiantou
o Fr. Benedito.
- Também, a não nomear aquele
grupo, quem é que ele iria nomear? Foram eles que o elegeram Papa... –
ponderava o Fr. Ramiro.
- Ora quem! É fácil: nomeava
aqui o irmão Ambrosino. Aposto que faria melhor trabalho – ironizou o Fr. Marcos.
Rimo-nos todos com a piada. O
pior é que não era piada nenhuma. Ou era e deixou de o ser. Ainda não consigo
entender a reviravolta. O Fr. Benedito, não sei por que carga de água, tomou
isto a peito, mesmo continuando a rir-se entusiasmado. Eu também desatara à
gargalhada com o despropósito da ideia.
E foi assim que tal freima me
veio parar aos ombros. O Papa não me nomeou, nomeou-me o meu Mestre. Bom,
ponderando no peso do carrego, ainda bem que foi ele. Imaginem que era de
verdade! Eu julgo que devia perder os sentidos ou então daria em maluco (para
além do que já for sem o saber, não é?).
Mas pronto, aceito o encargo e
vou dar o meu melhor, embora se me antolhe uma parvoíce: que é que eu vislumbro
de tal temática? Felizmente, como ninguém irá ligar nada a isto, sinto-me
liberto por este lado e muito à vontade. Diga as asneiras ou inutilidades que
calhar, não importa, não virá daí nenhum mal ao mundo, claro. Que lá bem,
apenas o da certeza da minha boa intenção. Quanto ao mais, duvido muito. Mas
não deixa de me intrigar a firmeza com que acredita em mim o bizarro do Fr.
Benedito. Que é que ele vê no anão que eu não vejo? Não é esquisito?!
Fátima
– 23 de Maio de 2013
Isto
é tão imprevisto, para não dizer disparatado, que eu nem sei por onde
principiar. Durante a concelebração da manhã tomei a decisão de perguntá-lo ao
Fr. Benedito, enquanto nos dirigíamos para o refeitório.
- Ora, irmão Ambrosino, –
retorquiu-me ele – que piada é que teria? Já não era a tua proposta mas a
minha. Não, regista como te vier à ideia, certo? Não te importes, deixa correr.
Verás que ainda acabas por ter uma surpresa.
- Mas dê-me ao menos uma pista.
Eu nunca me meti em alhadas destas...
- A única coisa que te poderei
adiantar é isto: quando vieres connosco celebrar as horas, não ligues aos
textos. Põe-te disponível, entendes? Ou melhor até: concentra-te nos sentidos
que no ritual te predisponham a qualquer que seja a iluminação, estás a ver?
Uma abertura interior completa, venha a luz donde vier, seja qual for o rumo
para onde te vire. Deixa-te inspirar, mais nada. Eu irei fazer o mesmo por ti.
Ficas mais descansado?
- Claro, Mestre, mas eu não
vejo nada, nada, nada. A sério.
- Faz como te digo e confia.
Alguma coisa te há-de ocorrer então, vais ver. E o que vier transcreve-o para o
papel, nem que te pareça o maior disparate do mundo. Vá lá, deixa-te
surpreender! Não te esqueças de que o Espírito sopra onde muito bem queira. Não
te armes em juiz dEle nem Lhe tranques as portas.
- E se Ele não me escolher?
- Perdes alguma coisa? Não!
Então põe-te ao dispor e deixa-te de palavreado vazio. Combinado?
- Combinado, Fr. Benedito. Mas
olhe que tenho o pêlo dos braços todo arrepiado. E devo ter a pulsação no dobro.
- Olha, respira fundo e
acalma-te. Não é nada do outro mundo. E lembra-te de que pior do que tu estarão
aqueles pobres cardeais, os do grupo da reforma, que nem ideia farão da
armadilha em que foram apanhados. Reza também por eles, coitados, que bem
precisarão. Estes, sim, podem mesmo andar aflitos. Agora tu...
E eis como acabei entregue às
feras. Completamente desarmado. Daniel na cova dos leões, sem ser Daniel e,
quanto aos leões, só me lembro de quantos já foram mortos, por disputas deste
domínio, durante mais de dois milénios.
Curiosamente, isto é o que
menos me preocupa. A morte deixou de me meter medo. Tão gradualmente que nem
dei por isso, nem me lembro desde quando. Na iminência dela ignoro se reagiria
doutro modo, agora no dia-a-dia é questão que me não preocupa minimamente.
Voltar à Casa Grande, qual é o problema? Pelo contrário, que bom!
É outro o sentimento. Perante a
imensidão do Universo, nem o Planeta inteiro chega ao tamanho dum microscópico
ião, quanto mais eu! Não sou nada ante o espanto da infinidade. Maravilhar-me,
sim. Agora abarcá-la? Pior, configurá-la?! Ai, valha-me Deus!
Fátima
- 24 de Maio de 2013
Cá vou eu, neste meio passo
trôpego, a erguer na mão este meu fosforozito de luz que nem tenho bem a
certeza se acendi convenientemente ou não. Mas não me recuso, vou! Dê lá por
onde der. É o melhor de que sou capaz. Entrego-me sem reservas ao Espírito do
Universo, ao Pai Grande, à Infinidade. “Eis aqui a escrava do Senhor, faça-se
em mim segundo a Sua vontade” – é o resumo da Anunciação a Maria. Enfim, sou
mais lixo do que escravo. Embora lixo vivo, tanto quanto o conseguir ser.
Estou pronto, venha o que vier.
Nem que se me antolhe um disparate pegado. Quem sou eu para julgar? O Fr.
Benedito recomendou-mo. Creio que ele tem razão. Irei ser transparente até ao
limite do que for capaz. Poderei falhar, mas duma realidade estou certo:
tentarei e tentarei e voltarei a tentar. Quanto ao resto... O Infinito
ultrapassa-me de tal modo! Claro que jamais lograrei estar à altura, perder-me-ei
fatalmente algures pelo caminho. Mas hei-de estar a caminho, prometo-o diante de Deus! E o anão tem palavra!
Fátima
– 25 de Maio de 2013
Evidentemente, teria de ficar
apanhado por uma ideia onde não vejo nenhuma relação com o que me proponho. Mas
prometi que registaria fielmente o que me ocorrer e cumpro.
Não me sai da cabeça um velho
automóvel de culto. Porquê? Nem sequer consigo lembrar-me bem da marca, julgo
que é italiano, salvo erro um Lamborghini ou coisa que o valha. Bem, pensar
nisto é normal, terminou há pouco o rali de donas elviras Londres-Lisboa que vi
referido nos jornais e até numa reportagem da televisão (ontem à noite saímos,
eu e o Fr. Benedito, para uma conversa num café com um engenheiro, antigo aluno
dele – foi lá que reparei).
Agora, porque é que aquilo me
vem obcecando? Eu nem sequer ligo nada a automóveis, quanto mais a velharias!
Servem os de hoje para me levar e já é muito bom. Ponto final. Nunca me ocorreu
andar o dia inteiro com uma imagem na cabeça que me não larga de maneira
nenhuma. Até na biblioteca fui ao ficheiro verificar se haveria alguma obra
acerca de automóveis. Que parvoíce! E claro que, no meio de tantos milhares de
títulos, não há nem sequer um que se lhes refira, como era de prever num acervo
conventual. Mas esta foi a minha maluqueira do dia. Se calhar até sonhei com o
calhambeque, sei lá, eu nunca me lembro dos meus sonhos, desde há anos. Antes
de vir para o convento, sim, depois tudo se esfumou com a vida regular. É desta
acalmia, julgo eu.
Terá sido o retalho da conversa
em que ontem à noite o Eng. Meireles referiu que andava envolvido num projecto
que tinha a ver com antiguidades? O Fr. Benedito perguntou-lhe pela vida
actual, em que é que a empenhava hoje em dia.
- Quer crer que uma das tarefas
que me vem dando mais gozo, desde há tempos, é a de manter, conservar ou
recuperar uma série de velhas relíquias automobilísticas pertença dum cliente
meu? É um daqueles milionários completamente fanático por aquelas máquinas,
tudo o que ganha é para ali.
- Americano, não? – quis saber
o Fr. Benedito.
- Não, não! Portuguesíssimo,
ligado à hotelaria, turismo, imobiliário e construção. Toca muitos instrumentos
e deve ser muito bom naquilo tudo, porque faz dinheiro a rodos. Então, olhe,
tem aquela extravagância e eu coube-me a sorte de ser o técnico responsável por
manter em condições a colecção.
- É colecção mesmo? Quantos
carros é que tem? - tornou o Fr.
Benedito.
- Neste momento está chegando
aos trinta. Claro que não conto os quatro que mantém ao serviço dele, não são
ainda para coleccionar.
- Um coleccionismo bem caro,
não?
- Caro? Aquilo vale dezenas de
milhões, provavelmente centenas, contando com os modelos mais antigos. Tem duas
ou três raridades muito cobiçadas – comentou o Eng. Meireles.
- E tu põe-los todos a andar,
é?
- Ah, não! A maior parte não
funciona. É pelo prazer de os ver, é como uma galeria de arte. O mais
importante é conservá-los no melhor estado possível. Como os quadros de
pintura, as estátuas, os baixos-relevos... E já é uma carga de trabalhos
interminável. Claro que nalguns também tratamos da mecânica e conseguimos
restauros, mas nem imagina a fortuna que custa fabricar peças únicas à medida.
- Bem, vai distribuindo
trabalho e rendimentos. Para que é que lhe havia de servir a riqueza? O
dinheiro é para atender às pessoas. Tu então, economicamente, estás bem, não é?
- Evidentemente, Fr. Benedito.
Mas nem me referia a isto. É que o entusiasmo dele por aquilo é contagioso e eu
chego a dar por mim tão encantado como ele com aquelas obras-primas. É
engraçado.
- Mas se eles não andam, se não
é para andar... – intrometi-me eu, perplexo.
- Aí é que está o curioso –
comentou o Eng. Meireles. – Não é pela utilidade, é mesmo apenas pela estética.
Depois de repararmos bem, ficamos apanhados. É difícil de entender para quem
está de fora. Eu também antes nunca tinha sentido isto. Para o meu patrão
tornou-se um vício. Um que é apenas para milionários. Espero não o contrair,
senão morro de inanição – concluiu, rindo.
Fátima – 27 de Maio de 2013
Definitivamente, o Lamborghini
ou lá o que é não me sai da cabeça, já lá vão três dias. Grande reforma da
Igreja, não haja dúvida! O anão é baixo demais para alcançar alguma lonjura. E
o Fr. Benedito é crédulo em demasia, pelo menos no que me diz respeito. Não há
Livro de Horas que me valha, por mais disponível que me coloque, ao correr de
todos os ofícios. E durante estes dias, ao contrário do que era meu hábito, até
nem falhei nenhum. Como irmão leigo, tenho a liberdade de ir ou não, mas não me
valeu de nada: o maldito calhambeque persegue-me obsessivamente. Que me importa
que valha milhões? Para mim não vale nada e anda-me a tapar a vista da eventual
paisagem fermentadora de espírito novo, que é o que doravante mais me atrairia,
mais me poderia fascinar. Mesmo que fossem visões de miudezas irrelevantes para
os que vislumbrarem aquele universo em grande escala, para mim seriam decerto
novidades arrebatadoras. Mas não, há-de me vir sempre a imagem toda reluzente,
a faiscar, daquela velharia impertinente que nem sequer me dá gozo nenhum. Nem
prático, nem estético. É-me completamente indiferente. Então porquê isto?
Era assim que me sentia hoje de
manhã, ao desjejum após a missa, no silêncio do refeitório, mal quebrado pelo
ligeiro tinido das chávenas nos pires. Resolvi ter um encontro com o meu
Mestre, até porque já tinha cumprido o que me propusera: relatar o que me vier
à cabeça, por mais estranho que se me antolhe. Ficar perplexo não dá para
escrever mais nada, apenas “estou perplexo”. Então, pronto, esgotei o tema. O
meu grande plano de reforma da Igreja: nada! Grande ajuda para o Papa
Francisco, grande achega para o grupo de cardeais daquilo encarregados! Ai, Fr.
Benedito, Fr. Benedito, eu bem lhe dizia que era uma loucura, o anão não logra
trepar às alturas, nem à minha janela consigo espreitar a paisagem de além,
quanto mais...
Depois de vésperas decidi
bater-lhe à porta da cela. Felizmente contava com uns minutos livres que me
pôde dispensar. E virou-me tudo do avesso.
Contei-lhe da ideia fixa que me
prende a atenção, como um bloqueio. E ei-lo logo todo entusiasmado:
- Boa, boa! Não estás a ver,
irmão Ambrosino? É mesmo isso, tiro no alvo logo à primeira.
- Cá por mim não estou a ver
nada. Quer dizer, está tudo bem? Não há nada a reformar, é?
- Pelo contrário, pelo
contrário.
E, perante a minha impaciência
e desnorteamento:
- Calma, calma. Eu explico-te
já o que estou a ver. Repara apenas na tua única intervenção durante o serão
com o Eng. Meireles.
- Desculpe-me, Fr. Benedito,
aquilo veio-me sem eu pensar, foi automático. Não devia ter aberto a boca, mas
quando dei por mim...
- Ora, foi o que fizeste de
melhor. É a chave que faz luz sobre isto tudo, entendes?
- Bem, para mim, um carro ou
anda ou não presta: o resto não tem valor nenhum. Que é aquilo de que ele
falou? Nem sabia que existia e continuo a não entender porque é que existe nem
para quê. Mas ele parecia entusiasmado. Estética... Como é que alguém pode
sentir estese com semelhante coisa, ignorando e obliterando o fim para que o
automóvel é feito? Não terei razão? É uma vivência tão estranha que eu nem
detecto em mim sequer um gérmen daquilo. Daí não conseguir entendê-lo de todo.
Se os carros não andam, então é tudo sucata...
- Aí é que bate o ponto, irmão
Ambrosino. É isso exactamente.
- Mas é o quê?! Que é que tem a
ver...?
- Basta-te imaginar que a
Igreja é, no fundo, um carro de culto da humanidade, desde há dois mil anos,
com modelos mais ou menos alterados pelo correr dos séculos. É uma alegoria o
que te veio à mente.
- Quer dizer, espere aí, é tudo
material de sucateiro? Que disparate, claro que não! Estamos aqui num
convento... Explique-me lá, que estou cada vez mais baralhado. É uma alegoria
de quê?
- Tu é que deves ver, não é? A
pista foi-te dada a ti, não a mim. O que eu vejo pode não convergir nada com os
aspectos que te tocarem mais fundo, em teu íntimo. Mas a verdade é que já diz
muito à minha sensibilidade. É um grande ponto de partida.
- Então conte-me lá o que é que
lhe revela, que eu cá continuo cego, parece-me.
- Só se me prometeres ser bem
vigilante para eu não te influenciar no teu itinerário. Senão pode ficar tudo
deturpado, entendes?
- Para já não tenho itinerário
nenhum. Portanto, é melhor abrir-me algum agora, a ver se consigo saltar do
beco sem saída. Depois, está bem, vou tratar de colher atento as ideias que me
ocorrerem, se algumas vierem. Que eu cá continuo muito descrente, mas quem sou
eu? Bom, pelo menos, isto veio, se julga que é algo de préstimo. Um veículo de
sucata... Que raio!
- Olha, aquilo que mais me toca
é, de repente: a Igreja é uma infinita colecção de preciosas antiguidades,
fulgurantes de polimento, lindas da extremosa manutenção, para maravilhamento
duns milhões de coleccionadores bem nutridos (de bens e de afectos) que vivem
inebriados por elas. Todavia, sendo velharias, no geral não servem doravante em
nada para o fim a que eram destinadas: já não andam nem levam a andar ninguém.
Como a maioria dos automóveis de culto. Ora, isto é lindo, porque é mesmo tal e
qual. É o que eu sinto. Não te parece?
- Se o diz, Fr. Benedito. Quem
sou eu...?
- Não, não! O que eu digo é uma
coisa, o que tu vivencias é outra. Tu não és eu para sentires o que eu sinto. E
o que tu sentires é que é prioritário, o projecto é teu, não meu. Prometeste
que estarias vigilante para não ires pelo meu caminho, apenas pelo teu. Certo?
- Entendido. E então, de
repente, eu acho a ideia curiosa porque me faz lembrar duas leituras antigas
que fiz por curiosidade, lá na biblioteca. Recorda-se do nosso bispo, falecido
já lá vai um par de anos?
- Claro, e daí?
- Daí que, para meu gosto,
sempre que ele abria a boca, tudo me sabia a toucinho rançoso. Frases feitas,
lugares comuns, banalidades de base, toda uma procissão de cadáveres que já
deviam estar enterrados há que séculos...
- Pois. Desde que se formou,
arrumou os livros na mala, enfiou-a no sótão e, durante decénios, não leu nem
mais um autor nem trocou ideias novas com mais ninguém. Não admira no que deu,
não é?
- Ai, mas ler, leu! Sou eu que
lho juro, Fr. Benedito. Sabe porquê? É que há dois autores lá dentro cujas
obras foram recomendadas por ele. Não acredita? Já lhe conto. Julgo que nunca
ninguém as requisitou, nem ele, claro. Se era assim tão arredio... Mas foi o
que me despertou a curiosidade. Em que fonte é que aquele homem bebe? Só lhe
escorre água choca da boca, sempre quero ver em que reparou para recomendar
tais autores. Não tem uma ideia de quem serão, poderia apostar.
- Não, de todo, mas terá de ser
alguém muito escolástico, sem vigor nem hálito de vida em parte nenhuma.
- Ora, Fr. Benedito, muito
longe de tal, muito. São poetas!
- Poetas?! Esta agora!
- É verdade. Entende porque é
que eu fiquei todo picado de curiosidade? Que é que aquele homem terá visto,
não é? Julgo que entendo, agora que me falou da alegoria como a está encarando.
- Conta lá, conta lá! Até eu
acabo curioso. Cada indivíduo é uma caixinha de surpresas. Com que então,
poetas! Quem, afinal?
- Olhe, o primeiro, naquele
tempo do Antigo Regime, com a ditadura, era uma constante em todos os livros
únicos: António Correia de Oliveira. Lembra-se dele? Banido pela cortina de
silêncio quando a democracia finalmente foi conquistada. É engraçado que foi
malquisto pelo fascismo até à velhice, por não se deixar arrebanhar. Já velho,
então, não logrou resistir mais à pressão e lá o anterior regime o alistou. Por
mor disto, o novo excluiu-o: eliminado, portanto, dos dois lados, a maior parte
do tempo.
- Mas que é que tem a ver...?
- Ah, nada, Fr. Benedito, nada
com o que estávamos a falar. É isto: eu na escola gostava do Correia de
Oliveira, era miúdo e as quadras cativavam-me. Quando aqui o li, a ver porque é
que o nosso bispo o teria recomendado, creio que encontrei o fio da meada. Ele
tem muitos poemas acerca da vida religiosa, da fé, das crenças. Todavia, é tudo
a exaltar a beleza do folclore, a maravilha da ingenuidade, da inocência
popular, do romantismo dos usos e costumes, das tradições... Até quando põe em
poema um pai-nosso as metáforas sabem a aldeia, são pegadas ancestrais, venerandas
como as ruínas de Conímbriga ou os vestígios recuperados da ardida cidade de
Herculano. É encantatório como quando lemos Os
Últimos Dias de Pompeia, um passado morto redivivo ou então como quando um
geólogo nos põe aqui as pedras da Serra de Aire a revelar-nos os segredos das
eras geológicas de grutas e penedias em que os nossos pés caminham hoje
apoiados.
- Tal e qual, tal e qual. Mas
isto é lindo e, quando ele abria a boca, tu achavas tudo feio, não era? Olha,
por mim, confesso-te, aqui entre nós, eu desligava quando ele tomava a palavra.
No meu entender, lograva matar tudo em que tocava, por mais vivo que fora.
Defendia-me não o ouvindo e pronto, ficávamos todos bem. Não lhe podia recusar
a única abordagem que para ele fazia sentido, não é verdade? Se para mim era a
morte em pé, para ele, não. Como apenas era sensível àquilo, deixá-lo lá no
cemitério dele. E, agora que está morto, espero bem que descanse em paz, seja
lá qual for a festa do lado de lá, que deve ter os dois pendores, creio bem,
para satisfazer todas as almas.
- Oh, Fr, Benedito! Julga que
sim?! Olhe que aquilo, da boca para fora, não tinha mesmo sumo nenhum, bem
espremido, coitado do homem.
- Mas não acabas de contar que
adoravas o Correia de Oliveira? Então...
- Adorava e adoro porque tudo
nele é teluricamente poético, ancestralmente pejado de sentido, de valores
vividos enterrados no terrunho das aldeolas, no castiço autêntico de gestos,
hábitos e atitudes. Agora quando o falecido bispo falava, meu Deus! É que nem
um fuminho disto, embora andando a abordar o mesmo. Aquilo era mais árido que
os penhascos daqui em redor. Nem uma carrasqueira lá pegava, pobre dele, Deus o
tenha em descanso.
- Pois, pois. Lá poeta não era.
Mas nalgum ponto aquilo lhe tocava para se quedar por ali. Se calhar foi mesmo
o toque da poesia, um qualquer vislumbre misterioso de magias de antanho. Isto
qualquer um pode sentir. Nunca li tais poemas mas acredito que também não
ficaria indiferente. Gosto deveras de boa poesia. Não confundo é os campos,
cada ovelha em seu redil. Espiritualidade e religião dum lado, estese e artes,
doutro. Tudo podemos e devemos conjugar mas, para evitar confusões, importa
distinguir para unificar, como gostavam de propugnar os nossos ancestrais
escolásticos, por sinal com toda a razão. Nisto como em muitas matérias mais.
Não foram apenas a morte a peregrinar, como afinal, contra vontade, propagam
hoje os actuais veneradores acríticos de tais velharias.
- Cruzes, Fr. Benedito! Que
raio de conversa! Mas creio que o estou entendendo.
- E nem me falaste do outro
autor que ele indicou para a biblioteca...
- Ah, sim! Nunca tinha ouvido
falar nela, é uma francesa: Marie Nöel. Só deve haver em português aquele livro
que temos lá dentro.
- Nunca ouvi tal nome. Quem é?
- É da geração do Paul Claudel,
mas mais nova. Parece que o brilhantismo dele a ofuscou, enquanto vivo. Depois
de morrer, ela tornou-se a maior referência poética do catolicismo francês. Ao
menos é o que conta o introdutor da obra. Dum determinado catolicismo, de
certeza. Integrista, à Monsenhor Lefebvre, ou coisa que o valha...
- Porquê? Ela não te encantou
como o outro?
- Nem pouco mais ou menos!
Também, é poesia traduzida, não é? Perde-se o ritmo, a rima, a sonoridade, sei
lá que mais. Aqui é que o tradutor é traidor, queira ou não, por mais que
labute.
- E então ficou apenas a ganga
e aí já não te agradou nada.
- Foi mesmo. Não encontrei
piada nenhuma em lado algum. Um estendal de vazios. Foi o balanço final que me
deixou.
- Mas lá na França, pelos
vistos, tocava o coração de muitos. E o Paul Claudel não era um osso tão fácil
de roer assim pelos tradicionalistas ocos. Houve sempre muita polémica à volta
dele. Também por mor do feitio do homem que não era pêra doce, ao que contavam.
Quando lhe subiam os azeites, ia tudo raso à frente. Ninguém diria, para o
autor de L’Annonce Faite à Marie, um
teatro tão suave e tão profundo.
- Olhe, eu nem me recordo da
poesia dela. Mas ficou-me um pormenor muito significativo, no contexto do que
vimos falando. É que a poetisa ficou decepcionada quando a missa deixou de ser
em latim. Antes não compreendia nada e para ela aquilo então era mágico. Agora
que entendia perdeu a graça toda. Está a ver? É o culto da ignorância com
refinamento erudito e uma sensibilidade pretensamente depurada. Para mim, isto
é mesmo estranho, sinto-o quase como doentio.
- Bem, não é, creio eu. Diria
que é a idade da inteligência mágica da criança. Já foi a da humanidade, há uns
milénios atrás. E todos a atravessamos hoje pelos patamares da infância além,
rumo à adultez. Há quem não cresça, porém, nunca, não é? Pelos vistos foi o
caso dela. E a religiosidade popular que mais é senão isto? Um rol de
puerilidades que milhões de adultos levam a peito, inteiramente desfasados da
idade e do desenvolvimento que no mais lograram atingir. Aqui vivem até à morte
como bebés em perene aleitamento, sem crescimento nem desmame observável. É
verdade que chega a ser muito incomodativo para quem cresceu e se autonomizou
interiormente um pouco. Um adulto a operar como uma criança deixa a impressão
dum retardado mental. E neste domínio é-o, de facto. E mais estranho é quando
nos restantes campos da vida não for assim. O desequilíbrio configura-se mesmo
como uma doença. Mas não, eu nunca o leria deste modo. – O Fr. Benedito fixou-me,
atento e curioso. E continuou: - Mas incomodou-te a sério. É engraçado.
- Pois foi. E então é isto que
é o calhambeque endinheirado, quer dizer. Lido assim faz sentido. A Igreja é
uma viatura de culto para as criancinhas brincarem, aí nos jardins do mundo.
Não anda nem leva ninguém a andar, mas diverte e entretém. E pode encher de
risos e de alegria de viver toda a criançada, mesmo de barbas ou coberta de
cãs. É isto, não é?
- Bem dito, muito bem! Mas eu
poria logo duas reservas: primeiro, todos podemos partilhar da alegria e
folguedos das crianças, não é preciso ser imaturo para gostar da festa, mesmo
infantil. Certo? Senão, coitadinhos dos pais e ai da educação de qualidade! Não
teriam muito onde se firmar. Ocorre é que a gente madura também aprecia e
cultiva outros gostos e procura outras iguarias que lhe alimentem a aventura da
vida. Repara, portanto, que esta primeira reserva, afinal, valoriza quanto for
valorizável no calhambeque, como lhe chamas.
- Quer dizer, o êxtase dos
coleccionadores e demais apaniguados tem o seu lugar. Mesmo que, por mim,
jogasse tudo no sucateiro, não é?
- Claro, tem que se lhe diga, a
questão é a do recanto próprio e conveniente para tal. Estese é uma realidade,
êxtase é outra, por muito que, de parentes próximos, muitas vezes conduzam
daqui para acolá e vice-versa. Nada de os confundir, que são dois mundos
claramente distintos. E a Igreja, enquanto acervo de tradições, é uma viatura
de culto para quem adore antiguidades e velharias. Não tem nada a ver, em si,
com a iluminação religiosa, com a revelação que intimamente fulmine qualquer
um.
- E é apenas este reparo?
- A minha outra reserva, irmão
Ambrosino, é que isto é o que a tua imagem obsidiante desperta, à primeira, em
mim. E tu prometeste não te deixar condicionar pelo que eu entender,
lembras-te? Logo, tu é que tens de responder à pergunta que me acabas de
colocar. Certo? Porque há muito terreno a desbravar, se eu bem entendo. Se isto
é tudo um automóvel de culto que não anda, que carga de trabalhos aqui te adivinho
pela frente! Vais precisar de muito alimento.
- Ainda bem que sou anão, Fr.
Benedito! Senão levava a comunidade à falência.
E foi entre risos que nos
despedimos.
Fátima
– 29 de Maio de 2013
Ontem tive de ir ao
oftalmologista, que isto de ser anão arrasta outras mazelas. Um mal nunca vem
só. E nem me bastam apenas umas meras lunetas. O meu olho direito tem outro
requinte: a catarata é acompanhada dumas ondulações na lente do olho que não só
me fazem ver qualquer imagem como ondulada, mas ainda me impedem uma cirurgia
para remover o obstáculo, uma vez que isto a torna definitivamente de resultado
incerto. É assim, ser anão é uma qualidade muito especial, nem toda a gente
pode partilhar preciosidades destas.
Tenho de tentar levar o
trabalho a bom termo antes que cegue de vez. Como é apenas num olho, não deve
provavelmente ocorrer. Pelo menos a tão breve prazo que não logre dar isto por acabado.
Se é que esta loucura em que me deixei envolver leva a algum final que não seja
esmorecer gradualmente no vazio. O meu Mestre aposta em mim, como é que eu
posso não apostar? Irei em frente, dê no que der.
Isto explica porque é que ontem
o meu diário ficou fechado.
E hoje não tenho muito por onde
o abrir.
O Fr. Benedito bem me poderia
ter respondido à pergunta que lhe pus. Mas claro que tal não seria próprio
dele, não é? Tem de me picar, evidentemente. E sabe bem que eu tenho avidez de
ler, já devorei quase a biblioteca inteira do convento. E delicio-me quando
encontro alguém com quem partilhar das descobertas e dos mundos que revelam, de
os analisar em prós e contras, em causas e efeitos, enredando-os no jogo dos
rumos de vida ou da falta deles. Foi por mor disto que claramente me pregou a
partida de me levar a escrever este caderno. Também me dá gozo, é verdade. E
ele não o ignora, igualmente. Não dá ponto sem nó, diria o povo.
Bem, de todo, a Igreja não pode
reduzir-se a um sucateiro, para onde eu despejaria todos os automóveis que já
não andam. Há quem aprecie velharias e antiguidades, vivem uma estese tal que
os aproxima do êxtase (como para mim isto soa tão tremendamente esquisito!),
logo, têm direito ao coleccionismo mais respeitável. Neste pendor, então, a
Igreja configura uma espécie de museu mundial, exibindo peças que remontam até
mais de dois mil anos atrás e que não tenho dúvidas que contarão com inúmeras
obras-primas. Poderão proporcionar aos fruidores vivências de extremo deleite. Posto
nestes termos, quem poderia recusar-lhes tal oportunidade? Ainda mais se com
ela a estese arrastar alguém ao êxtase, não é?
Mas isto requer maior
fermentação. Agora anda-me na ideia um comentário dum leigo, o Prof. David,
quando há dias veio aqui a Fátima, às cerimónias do 13 de Maio. Ainda por cima
é ateu, diz ele.
Vou meditar em tudo. Talvez
amanhã logre ter algumas pistas alinhadas.
Fátima
– 30 de Maio de 2013
Para mim é muito problemático
não ver jogada na sucata qualquer viatura que não ande. É que olhar a Igreja
como mero museu de antiguidades, para fruição de fiéis apaniguados, provoca-me
desconforto. Não tanto por manter o depósito das relíquias activo, a dinamizar
visitas guiadas por corifeus bem treinados em todos os rituais (chamem-lhes
sacerdotes embora), mas mais pelo reducionismo do perfil.
Embora concorde que, em
concreto, celebrações, liturgias, catequeses, devoções e todas as demais
parafernálias acumuladas nem num caso em mil, de certeza, levem alguém a
encarar a vida interior com alguma autenticidade. E a fé, sem a reduzir a uma
superstição qualquer e a mera magia de crendices estúpidas. É uma tristeza mas
é o que constatamos na quase totalidade dos ditos fiéis. Uma miséria
confrangedora de qualquer espiritualidade. Não chega a ter nada a ver nem com
fé nem com religião.
Quase nenhum deles tem interioridade
assumida de tipo nenhum, e não é apenas entre leigos, também entre padres,
monges e freiras. Quase ninguém acredita em nada de jeito, por escandaloso que
tal se nos antolhe. Embora nestes últimos, apesar de tudo, encontremos muito
mais indivíduos em busca honesta de autenticidade. Mas nunca ponho as mãos no
fogo por todos, nem pouco mais ou menos. Há muito ateu de facto entre os
profissionais religiosos. Muito quem se sirva cinicamente da religião para
proveito próprio, não acreditando em nada, sem qualquer dimensão interior a
caminho, sem qualquer abertura à Infinidade.
A instituição da Igreja permite
mil e um arranjinhos. E os conventos não escapam a isto. Quantos por aqui não
servem a Deus, Servem-se dEle e tentam manipulá-Lo, subjugá-Lo, colocá-Lo a seu
mando e serviço! É uma idiotia pegada. O mais interessante da denúncia dos
cardeais de O Vaticano Contra Cristo
é mesmo o terem demonstrado que há disto até às mais altas esferas
eclesiásticas. De modo permanente e não esporádico, em regra e não por
excepção, estruturalmente e não por perversão ou abuso institucional.
É isto que me provoca o
mal-estar. Apetece despejar tudo no caixote do lixo. Mas depois há o reverso da
medalha. E o pequeno resto que procura autenticidade, espiritualidade, rumo
interior, aprofundamento e esclarecimento da fé? Haverá outro caminho? De
certeza que há-de haver, mas qual?
Pelo menos a Igreja de massas é
a grande massa de ateus anónimos que nem sequer se reconhecem como tais. E
vivem permanentemente iludidos de que são crentes sem o serem de forma nenhuma.
E o fenómeno é o mesmo em qualquer confissão religiosa. Os fanatismos não
passam disto, são a ponta do icebergue duma idolatria qualquer: erigiram um
dogma, um conceito arbitrário numa verdade absoluta e toca de o adorar, de em
nome dele matar, violentar, aterrorizar – e Deus e o Infinito e a Eternidade e
a evolução íntima, o crescimento interior interminável para se lhes irem
identificando, acabaram, vai tudo para a lixeira, trocado pelo bezerro de oiro
perante o qual todos se prostram, muito convencidos, de boa fé.
Como é que não viram que as
conversões de massa de antigamente só poderiam dar nisto, num alheamento
auto-suficiente, numa alienação e perversão corrupta de tudo? Para ficarem
todos muito satisfeitos com isto é porque, afinal, eram, no geral, assim,
andariam todos convencidos de que aquela aberração é que é a verdadeira fé.
Seria mesmo? É muito estranho! Toda a organização eclesiástica apanhada,
dominada por tal corruptela? E as vivências autênticas sem lograrem prevalecer
nunca, história além? É arrepiante reparar nisto, o cesto anda cheio de maçãs
podres e a gente a servi-lo como a boa fruta... É de ficar com vertigens.
Bem, o Fr. Benedito diz que é
apenas o nível da infantilidade. Falta crescer até à maturidade visada. É um
ângulo mais esperançoso, ele há-de tentar, infatigável, jogar sempre fermento
na fornada. É uma razão porque é o meu Mestre. Eu é que o escolho, que ele
ri-se disto e não liga. O que lhe importa é a fruta boa que eu e qualquer outro
consigamos ir sendo e amadurando.
Mas aí é que está: ele nunca
chegará a prior, por exemplo. Tudo anda dominado pelo outro lado: a fruta podre
é o nosso reino, dentro da instituição eclesiástica dita Igreja.
Apetece-me separar ambas as
coisas: o corpo místico de Cristo é uma Igreja, a instituição sociológica é
outra – e uma nega e anda a destruir sistematicamente a outra. Até agora com a
claríssima vitória da podridão, história além. O império da cristandade foram
os séculos do reinado-mor da idolatria: a igreja-instituição identificada com o
Reino de Deus e, portanto, a substituí-lo. Ainda bem que hoje em dia acabou.
Mas acabou mesmo? Há tantas sequelas de pé por todo o lado!... Pelo menos não
há mais Cruzadas, não há mais Inquisição... Ou não? À descarada, não, claro,
mas encapotadamente andarão por aí a rebentar das raízes? Às vezes cuido que
sim. Há uma postura estranha que nos tapa a vista diante da fé autêntica, pelo
menos do afloramento dela, de modo que a não logremos identificar nem
reconhecer. Não consigo bem agarrar o que é, identificá-lo e apontá-lo a dedo,
para qualquer um o poder desmascarar.
É a ambiguidade do caso do
Prof. David, que se diz ateu e eu não vejo como tal. É, aliás, a ambiguidade do
cerimonial inteiro da Cova da Iria e dos milhões de fiéis, curiosos e turistas
que anualmente por aqui perpassam. Um dos nossos frades gosta de chamar sempre
àquilo um enorme parque de estacionamento, onde executam regularmente
espectáculos de folclore, com casa mais ou menos cheia. Outro cantou
humoristicamente o Avé de Fátima como
a música folclórica mais afamada do País, numa das nossas festas, partilhada
por leigos dum curso de teologia... Claro, é para evitar a sacralização
indevida do que é profano, por mais que arraste multidões. O P. Mário de
Oliveira, da Lixa, então desanca nisto tudo sem dó nem piedade: não tolera que
passem como fé autêntica uma enorme mistificação de massas, o vazio de
interioridade destas colossais encenações em que toda a gente é, afinal,
ludibriada, confundindo fé com espectáculo, espiritualidade com manifestações
populares. E tudo com o aval oficial da instituição eclesiástica!
É verdade que eu sinto o mesmo.
É no segredo, na solidão da intimidade que o Espírito se manifesta. E, sendo
duma tremenda força, é igualmente duma infinita vulnerabilidade: um nada e a
chama apaga-se. E para tornar a acendê-la, que carga de trabalhos! Então,
perante isto, que é que aquilo representa? Um esforço colectivo para torná-lo inviável,
para lhe apagar o rasto? Seria o mito da cristandade consumado: a Igreja
sociologicamente implantada a substituir o Reino de Deus e a apagá-lo do mapa.
Não teria aqui mais nada que fazer. Um triunfalismo muito míope. E bem ateu. No
cume da pretensa manifestação de fé!
Será mesmo isto, um carro que
não anda, a despejar no sucateiro? Parece. Contudo... Há o caso dos Profs.
David, se calhar aos milhares, que me deixam perplexo e confuso.
Este veio ver o arraial das
celebrações, bem descrente e crítico quanto ao sentido que tudo aquilo poderia
fazer para tanta gentinha ignara ou ingénua. Queria entender que é que, enfim,
atrairia ali tamanha multidão. E depois aconteceu.
Apareceu aqui na portaria com o
Fr. Marcos. Ainda vinha emocionado. Conheciam-se duma palestra na Universidade
em que ambos haviam debatido uma qualquer questão comunitariamente fracturante.
- Isto deixa-me mesmo
confundido – comentava o Prof. David. – Até à procissão do adeus não vislumbrei
nada que me tocasse positivamente. Bem pelo contrário, cheirou-me tudo a
pieguice beata, a um simulacro de mau teatro. Mesmo na bênção aos doentes,
coitados. Não pude chegar-me lá muito perto, estava atento a algum milagre
crendeiro, mais ou menos forjado, não digo de má fé, mas de crendice mágica
supersticiosa. Não houve nada, afinal. Mas fiquei com pena daqueles doentes
todos, uns poucos tinham mesmo cara de ansiosos, numa expectativa tremenda.
Lamentei-os pela frustração que vi nalguns e que acredito que é geral e de boa
fé. É tudo muito ingénuo e sem fundamento, no meu entender, mas verifiquei que
era franco, era autêntico. Uma enorme esperança que terminou frustrada,
coitados!
- Perfeitamente de acordo –
rematou o Fr. Marcos. – Conhece bem as minhas reservas quanto a isto tudo. É
demasiado superficial e fruste. E não tem nada a ver com qualquer vivência da
fé, com uma aventura no universo da espiritualidade. Mas o que lhe ocorreu não
encaixa nisto, não é verdade? E então os outros que vimos lá a chorar
desalmadamente? Não os critico, Prof. David, que aquilo a mim também
normalmente dá-me riso e eu tenho de me conter, com grande esforço, por
respeito para com os indivíduos. Mas acabo perguntando sempre: qual é a
diferença? Tenho dificuldade em encontrar respostas.
Eu não estava a entender grande
coisa e olhava interrogativo dum e para o outro, sem me querer intrometer, que
o diálogo não era comigo. O Fr. Marcos apresentou-me e envolveu-me na partilha
de vivências.
- Qual é a dúvida, irmão
Ambrosino? – perguntou-me.
- De que experiência é que vêm
falando?
- Eu explico – retomou o Prof.
David. – Foi agora na procissão do adeus. Até estava para nem assistir a mais
aquilo, de tão fatigado e céptico. Era tudo o mesmo. E não me dizia nada, para
além do espectáculo deprimente dum inumerável povo de ignorantes, pejado de
crendices, superstições, de mentalidade mágica mais bolorenta que a da idade da
pedra. Depois apanhou-me de repente, sem aviso prévio. Mal consigo explicar...
- Mas o quê?!
- Pois, isso é o que bem
gostaria de compreender! Gostaríamos ambos, não é, Fr. Marcos? Mas eu relato os
factos. E sei que mais uma vez não me vou conseguir dominar, vocês desculpem a
minha fraqueza. Nunca passei por uma coisa destas na vida!
- Ora, ora! – cortou o monge. -
Já me ocorreu várias vezes e é sempre a primeira vez. E sempre, no fundo, um
mistério. Não se iniba, por amor de Deus. Ponha aqui o nosso irmão leigo a par,
que para ele também não é estranho, vai ver.
Fátima – 31 de Maio de 2013
- Apenas descrevo os factos, já
que me baralham, não estou entendendo nada – continuou o Prof. David. – Eu
estava no ponto mais alto do recinto, à frente do cruzeiro, mas adiantado, na
linha onde o declive principia. Queria abarcar a maior perspectiva da multidão,
já que tinha vindo para observar, não é?
- Daí vemos praticamente toda a
gente. Até eu, que sou anão. Já lá estive também.
- Exactamente. E foi decerto
por isso. À medida que a imagem da Virgem ia percorrendo a multidão, com aquele
coro imenso a cantar o adeus, os lenços brancos elevando-se a acenar a
despedida, até que ficaram aos milhares e milhares a adejar, no fim, com toda a
gente ao meu redor de lágrimas a cair pela cara abaixo – isto emocionou-me de
tal modo que não logrei conter-me e desatei a chorar com todos. Descontrolei-me
por... - e a voz falhou.
- Pois é, – ajudou-o o Fr.
Marcos, enquanto o Prof. David levava o lenço aos olhos bem vermelhos (reparei
eu então). – é uma experiência desconcertante. Creio que muitas vezes é por
simpatia que isto ocorre: um indivíduo vê outrem a chorar, desata a chorar
também. É como o riso: entramos numa sala à gargalhada e damos connosco a rir
sem saber porquê. Quando é genuíno, contudo, não é assim. As cordas da emoção
vibram dentro de nós e não fomos nós que as tangemos. Algo nos revolveu
funduras que não dominamos e é isto que desconcerta.
- Exactamente, Fr.Marcos,
exactamente – retomou o Prof. David. – De repente aquele espectáculo imenso
tocou-me tão profundamente que o senti como um afloramento de algo colossal,
uma realidade infinita, uma maravilha de magia encantatória cósmica. Não tenho
palavras para semelhante revelação. É lindo, lindo, lindo! Arrebatador, vi-me
elevado num arroubamento como se entrasse noutro mundo, de repente encontrava-me
numa nova dimensão. Maravilhoso! – De súbito mudou de tom: - Mas as palavras
não contam nada do que é, a linguagem é mesmo traidora. Não consigo explicar.
- Quem já o sentiu entende-o,
até porque também não tem palavras para descrevê-lo – apoiei-o eu, um bocado
timidamente. – Eu vi-me num estado que julgo que era igual, num contexto
completamente diferente. Foi no Porto, à passagem do cortejo presidencial, numa
visita, há muitos anos, dum Presidente do Brasil. Quando toda a gente desatou
às palmas, aos gritos, a acenar com bandeiras, olhe, fiquei nesse estado. Uma
revelação de maravilhamento e sem palavras capazes de traduzir a emoção que
rompe com a barragem das lágrimas. E o sentimento de algo grande, descomunal,
um afloramento do infinito, mesmo na conjuntura mais inesperada. No meu caso
era-o de certeza. Que é que um cortejo tem a ver...? Ao menos aqui estamos num
contexto de fé, seja embora infantil ou germinal, não é?
Fátima
– 3 de Junho de 2013
Quase
perdi o fio à meada com o atendimento a visitas no fim-de-semana. Desta vez
foram principalmente leigos. Parece que a crise económica obriga a repensar os
rumos de vida, os valores, os laços humanos, as solidariedades... Que ao menos
do que é mau resulte algo de bom! Foi o que eu vislumbrei do corropio destes
dias por estas bandas.
Mas retomemos a conversa que
tive de quebrar.
- Para mim o mais desnorteador
é mesmo este aspecto de uma tal emoção (que podemos dizer que é iniciática) se
revelar nos contextos mais estranhos, diria até contraditórios – contemporizou
o Fr. Marcos. – Há muitos convertidos que o fizeram a partir de tal vivência.
Espero bem que não tenha sido por equívoco. Digo isto porque não é nada linear
a ligação entre esta emoção visceral arrebatadora e a revelação da fé. Que esta
provoca o mesmo, parece não haver dúvida: a visão bíblica do Monte Tabor é mais
um caso de irrupção do inefável. Só que o mesmo sentiu Newton ao descobrir a
resolução matemática da gravitação universal (a euforia foi tal que errou os
cálculos um mês inteiro e teve de pedir a um assistente para os completar...). E
Einstein punha a religião de lado porque lhe bastava levantar a ponta do véu ao
mistério do Universo e maravilhar-se: estava falando, manifestamente, de
vivência idêntica. A uns leva-os a ajoelhar em adoração, a outros à recusa de
ajoelhar e adorar o que quer que seja.
- Ainda não estou em mim –
confidenciou o Prof. David. – Não consigo vislumbrar sequer o que é que um
arroubamento destes implica.
- Os do Monte Tabor não queriam
descer mais, tão fantástica era a visão. Propunham-se montar tendas ali e ficar
por lá o resto da vida – ironizou o Fr. Marcos.
- Como eu os compreendo! –
confirmou o Prof. David. – Pudera eu viver indefinidamente naquele estado, que
maravilha! Não ia querer outra coisa. Era o ideal. Para mim como para a
Humanidade. Agora, é isto a fé? Toda a gente desatou a chorar ao meu redor por
sentir o mesmo? Se for, então é deveras uma grande teofania, um vislumbre de
Deus. Só que, depois, trocado isto por miúdos, no geral redunda num chorrilho
de superstições, infantilismos mágicos, irracionalidades, crendices... Estou
mesmo confundido, Fr. Marcos. Depois duma coisa destas nem sei que lhe diga.
- Nem eu, Prof. David, nem eu.
O que lhe poderei adiantar é que no caminho da vida há muitos marcos da
estrada, e uns indivíduos vão mais adiante, outros mais atrás. E outros ainda
sairão dela, perdidos, não é? Como todos os peregrinos. Enfim, nada disto é
linear, ignoro se ajuda... Claro que não estou falando da idade, mas do
itinerário interior. A larguíssima maioria é um bebé de leite nos caminhos da
fé, é verdade, não vale a pena escamoteá-lo. Eu até compreendo os cientistas
arrebatados que recusam rebaixar-se a tal miséria e degradação mental e humana.
Como é que podiam? Ainda bem que o fazem. Mas depois reparo que Newton sempre
se declarou crente. Então... Até deste lado isto tem muito de misterioso, não
é?
- Mas se todos os que estavam à
volta ali a chorar era por uma vivência idêntica... – principiou o Prof. David.
– Eram os mesmo atrasadinhos mentais que vi num
espectáculo de palermice pegada durante os cerimoniais todos, desde a
procissão de velas. Visualmente até foi um cenário lindo de se fruir, pela
noite fora. Mas levar aquilo a sério como eu os vi? Poupem-me! Que mentalidade
de vistas mais curtas! Como é que isto se compatibiliza com a revelação
arrebatadora que me agarrou neste final? Que os agarrou a eles também de
certeza? Que é isto?
- Sabe que na Páscoa
contaram-me um episódio...? – interrompi eu, de repente esquecido de que não
passo dum mísero anão, embora com formação universitária (vale-me de muito!). –
Fui gozá-la a Vila Meã com os meus pais. A minha família contou-me divertida o
que havia ocorrido na igreja paroquial uns dias antes. O pároco resolvera
engendrar uma surpresa à comunidade. Como por trás do altar-mor existe uma
enorme tela pintada com Jesus em oração no Jardim das Oliveiras, quase ninguém
se lembra de que, se ela for enrolada, abre para uma pequena escadaria que vai
afunilando até uma espécie de trono, no topo. Em algumas solenidades era ali
exposta a píxide, com a hóstia consagrada, para veneração dos fiéis. Ritual
raro, decorriam anos sem ele ocorrer.
- Olhe, era uma das cerimónias
das que eu e o meu primo mais velho aproveitávamos para fugir para a torre
sineira, - comentou o Prof. David - para falarmos dos mexericos de miúdos.
Enquanto os nossos pais não davam pela fuga...
- Eu também em ganapo me
escapulia sempre que podia – continuei. – As famílias continuam a não entender
a violência que aquilo é para os pequenos. Se calhar também para os outros,
não, Fr. Marcos?
- Ah, pois, irmão Ambrosino.
Mas conte lá o tal episódio da Páscoa.
- O pároco enfeitou os degraus,
cobrindo-os de flores e culminou tudo com uma imagem dum Cristo ressuscitado.
Nada demais, não é?
- Claro, uma variação a
propósito. Se calhar, como miúdo, também gostaria de ver – sublinhou o Prof.
David.
- Ora, contou-me a minha mãe, o
estranho é que ele preparou a comunidade, durante a homilia, para a obra de
arte efémera, retirando a tela no fim para todos poderem apreciar. Agora,
reparem. A minha mãe achou que estava bonito, o meu pai olhou e ficou
indiferente, mas à volta deles, em toda a nave da igreja, houve uma quantidade
enorme de gente que desatou a chorar, muitos a gemerem de emoção, com
comentários estrangulados de quem perdeu a fala, de espanto. Creio que é a
mesma vivência, mas mostra como toca a todos de modo diferente. A minha mãe relatou-mo
justamente por não entender como é que era possível tanta gente findar
subjugada por uma coisa tão banal: um arranjo de flores. Era lindo. Mas a ponto
de chorarem de maravilhamento?!...
Fátima – 4 de Junho de 2013
- É curioso que isto revista – anotou
Fr. Marcos – quase sempre uma conotação religiosa. Estou a lembrar-me da festa
do Natal transacto, ao serão, quando foi deita a leitura de trechos da Anunciação a Maria, de Paul Claudel, com
uma encenação definitivamente básica: quatro personagens sentados a uma mesa,
com toalha, iluminados cada qual por uma vela, lendo as respectivas falas e
apagando o pavio próprio ao acabar a derradeira, até ficar todo o cenário às
escuras, no final.
- Bem, aí o tema era
definitivamente religioso... – hesitei eu, não atingindo onde o Fr. Marcos
queria chegar.
- Claro, claro. O que me
lembrou foi uma fala que tive ao fim com a Irmã Sílvia, a professora de Matemática.
“Chorei como uma Madalena” – confidenciou-me ela. “Aquelas palavras, naquele
contexto, com as velas a apagarem-se uma atrás doutra... Foi demais para mim.
Maravilhou-me de tal modo, uma experiência de religiosidade pura! Conseguiu
arrebatar-me.” Estão a ver? Uma coisa de nada e, para a irmã, um arroubamento,
uma autêntica revelação divina. Afirmou-mo com toda a segurança, bem firme.
Ora, não é uma mulher qualquer, tem formação superior, académica e religiosa. O
que me leva a perguntar se ela tem razão e Einstein, Sagan e sei lá quantos
mais andam enganados ou então se é ela quem se engana ao ler como leu tal
vivência. Se calhar têm todos razão e a questão será outra qualquer que eu,
pelo menos, ainda não abarquei.
- Do tipo estese para um lado,
fé para o outro? – atrevi-me eu, lembrando-me do comentário do meu Mestre.
- Esta é boa – interveio o Prof.
David. – Fará todo o sentido quando nos lembrarmos de que há quem desate a
chorar de maravilhamento ao ouvir, por exemplo, o Hino da Alegria da 9.ª Sinfonia de Beethoven. Bom, mas a juventude
chora nos concertos dos ídolos dela, não é? E, pelo menos para mim, aquilo é
uma fancaria musical sem pés nem cabeça, praticamente sempre e em todos os
números debitados. Então, que é que há de comum? Realmente, se calhar, é apenas
o sentimento subjectivo do belo. A nossa sensibilidade à beleza é que nos leva
a reagir deslumbrados. Ora, o que deslumbra um, pode deixar outro indiferente
ou até em rejeição. As grandes obras de arte, no passado, tiveram sempre este
efeito contraditório na assistência. Primeiro, grandes pateadas; depois,
elevadas aos píncaros.
-E não tem nada a ver com a fé
– rematou o Fr. Marcos.
- Pois não – confirmou o Prof.
David. – Mas então porque é que eu sinto que me está escapando algo? Ainda por
cima, com a intuição de que é o fundamental? Que vivência mais estranha!
- Não se sentiu pequenino? –
saiu-me sem eu reparar. Envergonhei-me, cuidando que ele poderia interpretar
mal aquilo, vindo da boca dum anão. Calei-me logo. Felizmente ele não notou
este pormenor, embrenhado na ambiguidade e fulgurância das próprias vivências.
- Sim, sim. Eu até diria mais,
- continuou ele – senti-me uma nulidade, um nada perante a imensidão, a
irrupção de qualquer coisa de infinito. É isto que arrebata e esmaga ao mesmo
tempo. Mais o sentimento de que sou indigno, não merecia nada semelhante
maravilha. Isto é muito rico de aspectos, parece inesgotável...
- E assim, de repente, não lhe
apeteceu... sei lá...? – interrompi, meio envergonhado. Que é que me deu?
Estava-me a lembrar de mim e esqueci-me de com quem falava. Fechei a boca, ia
quase pedir desculpa mas contive-me. O Prof. David continuou a não estranhar. O
Fr. Marcos tinha cara de divertido, mas contendo-se, disfarçando com um ar
prazenteiro e atento.
- Ai apeteceu-me, pois, era
como reduzir-me a nada, aniquilar-me perante semelhante grandeza, enterrar-me
pelo chão abaixo, não sei explicar. E, ao mesmo tempo, viver apenas o
maravilhamento, ser do tamanho do infinito. Isto faz algum sentido? É tudo
contraditório...
- Naquele instante morreria por
aquilo, não é? – interveio o Fr. Marcos. – Até lhe daria gozo poder fazê-lo, manifestando
a euforia do arrebatamento, o tamanho descomunal da revelação. Assim como que a
proclamar: eu não sou nada diante do Infinito. Qualquer coisa deste género...
- Creio que sim. Mas as
palavras são muito pobres. É uma vivência tão forte! Agora é que eu entendo
deveras o que quer dizer inefável. Não é possível transmiti-lo em linguagem. De
todo.
- Mas esperem – atrevi-me a
interromper, com uma evidência inesperada a aflorar-me à ideia. – É que isto é
a vivência do acto de fé, no seu conteúdo mais radical. É o que os místicos
todos descrevem ou não é? – e virei-me para o Fr. Marcos.
- Aí é que bate o ponto. Não
tem nada a ver com a fé e, todavia, é o acto de fé na raiz mais genuína dele. É
tudo contraditório, não há dúvida, mas que havemos de fazer? É a realidade, são
os factos. Apenas nos resta continuar à procura. A ver se alguém vislumbra
alguma luz... E partilhar qualquer velinha que quenquer venha a acender.
- Bem, uma coisa lhes garanto -
retomou o Prof. David. – Se os místicos lograrem fruir permanentemente daquele
estado, como em êxtase, então eu também quero ser místico. Aí é que daria gozo
viver. O resto é um lixo, comparado... que piada tem a vida? Sim...
- Ninguém vive em euforia
permanente, - comentou o Fr. Marcos. – O entusiasmo, o ficar pejado de Deus dos
místicos, é em alguns momentos privilegiados. Às vezes sofrem bem mais do que
gozam. Mantêm-se é fiéis à lógica de tal revelação-descoberta pela vida fora. E
podem, claro, fruir de muitos momentos destes. Por outro lado importa não
esquecer o encontro de S. Tomé: “creste porque viste; bem-aventurados os que
não virem e crerem”. É do Evangelho da ressurreição.
- Mas isto é que é
decepcionante – retorquiu o Prof. David. – E então quando olhamos a
mediocridade dos pretensos crentes... É caso para afirmar: valha-nos S. Tomé!
- Amém! – ironizou, rindo, Fr.
Marcos. – O mistério é aquilo de que só podemos ter vislumbres. E quantas vezes
nem nisto acertamos!
- E qual é o seu? – insistiu o
Prof. David. – Como é que interpreta uma vivência destas? Tão arrebatadora e
tão esquiva ao mesmo tempo?
- Neste momento eu distinguiria
os planos de abordagem. Para mim, também uma coisa é a estese, outra coisa, a
fé. A beleza, em qualquer domínio, desencadeia em nós o sentimento estético,
seja numa paisagem, numa flor, numa música, numa pintura, numa catedral, num
poema ou romance, sei lá, até numa pessoa que desperta o amor. Todo o Universo
está cheio de realidades, a principiar nele próprio, capazes de nos
deslumbrarem. Tudo isto é estese, não é fé. E quem ficar por aqui fica com a
euforia do maravilhamento que, aliás, a ela própria se basta. Não precisa de
mais nada para colorir a vida. A fé consta doutro conteúdo: envolve a pessoa
inteira (não apenas os afectos e muito menos só o da estese) porque empenha a
crença na realidade e na aproximação indefinida ao Infinito que denominamos
Deus, presente na intimidade do real em todas as dimensões e perspectivas. A
caminhada pessoal rumo ao Infindo, ao Eterno, não deixa nada de fora, é o indivíduo
todo, toda a vida.
- Creio que começo a entender.
Como envolve tudo, então envolve também a estese, não é? E aí vem outro plano,
é isso? – continuou o Prof.David.
- Bem visto, evidentemente. E a
recíproca também.
Perante o nosso ar perplexo,
Fr. Marcos acrescentou, solícito:
- Eu explico, pelo menos tanto
quanto o logro entender. Não é muito, creio eu, mas julgo que faz algum
sentido.
Fátima
– 5 de Junho de 2013
O
Fr. Marcos é aqui o perito das análises a bisturi, às vezes discriminando com
tal pormenor que nos custa segui-lo. Preparei-me para mais uma delas. De
qualquer modo, relendo toda a conversa, como remeter tudo isto para o
sucateiro? Mas... e se o carro não anda, ao fim e ao cabo? Eu perco-me mesmo,
no meio do cruzamento dos trilhos.
Retomemos, porém, o fio da
meada.
- Então é isto – continuou o
Fr. Marcos. – Uma vez distinguidos os campos da beleza e da fé, como o Prof.
David logo entendeu, o crente envolve-se inteiro e, portanto, engloba na
vivência-projecto da respectiva fé também a experiência própria do belo, como
qualquer outra. É uma dimensão da vida dele onde as crenças se reflectem como
enformam tudo o mais. É uma componente do sonho a caminho. Seja lá qual for a
manifestação que revista em concreto no respectivo quotidiano: tanto podem ser
obras de arte, como atitudes nobres, como padrões comportamentais onde a fé
acaba reflectida de modo gritante, caso dos místicos, ou anónimos rituais e
celebrações, ou um quotidiano apagado mas pejado de conteúdo e de sentido
pessoais que de fora mal suspeitamos... Eu sei lá, crer opera como fermento na
fornada inteira da vida. Ora, tudo pode ser belo para qualquer um. Foi o que
vimos, não é verdade?
- Até aqui, tudo bem, intuí
logo que argumentaria por aí – comentou o Prof. David. – Mas qual é a
recíproca? Que é que quer dizer?
- Repare na vivência do
arroubamento pela outra ponta. Acabou de me contar que é simultaneamente
exaltação e aniquilamento, vislumbramo-nos um zero elevado ao infinito,
sentimo-nos puxados tão para além da vida que a sacrificaríamos de bom grado
pela eternização daquele momento efémero, se tal fora viável. Ora, isto é o
gérmen do acto de fé. Descubro-me um nada perante a infinidade que se me
entremostra, num fugaz afloramento. Neste pendor, toda a vivência do belo tem
no íntimo uma manifestação do divino, uma réstia de luz que deslumbra com a
marca do ilimitado, rompe a fronteira do tempo-espaço, é um instantâneo
vislumbre do eterno, do infindo. Ora, como tudo pode conter uma centelha do
belo, a natureza inteira manifesta a glória de Deus, como diz o salmista. A
questão é que nos toque, nos bula intimamente por este lado. E eis como o que é
tão distinto à partida se unifica à chegada. É o que eu por ora consigo
entender, não sei se me exprimi de forma suficientemente clara.
Ficámos a olhar para ele um
grande bocado, em silêncio, remoendo ou assimilando aquilo. Por mim, tudo bem,
é disto que eu gosto, quando eles iluminam alguma coisa obscura, nem que seja
apenas com uma minúscula velinha. O Prof. David acenava com a cabeça acima e
abaixo mas, curiosamente, aquilo não queria dizer sim nenhum, não era uma
concordância. Entendi logo que seria mais acolhimento da ideia e gratidão. Sem
compromisso. Seriam tópicos para deixar fermentar com tempo.
Para mim, porém, tudo isto era
uma ratoeira: adianta-me algum degrau no modelo de renovar a Igreja? À primeira
vista, fica tudo tal e qual, não é? Pois se tudo liga a tudo... Ou não? O
carro, afinal, anda ou fica parado?
Quem me manda a mim meter-me em
tais alhadas?
Fátima
– 6 de Junho de 2013
O
Fr. Benedito riu-me na cara quando lhe narrei a minha paralisia de propostas
renovadoras: iríamos mesmo acabar no porta-chaves da moda. Porque, afinal, no
grande parque de estacionamento do recinto da Cova da Iria quem não tinha motor
de arranque nenhum, no fim de contas, era eu. Aquilo ali é mesmo um enorme
parqueamento de multidões que não atam nem desatam ou a linha de partida para
os crentes arrancarem em rali acelerado? Se ambas as alternativas são viáveis,
então é deixar a cada um a respectiva escolha. Que é que a Igreja tem a ver com
isto, enquanto instituição eclesiástica? Encena um ambiente adequado e cada um
que use o livre arbítrio. Ou não é isto?
O resumo antolhava-se-me
equilibrado, mas o Fr. Benedito desatou a rir. A rir de mim, da minha cegueira.
É sempre isto e eu nunca logro abrir os olhos, mesmo para o que me estiver
acenando perante eles. Acaba por ter piada. Como é que fico tão cego? E como é
que há quem agarre tudo logo à primeira? O meu Mestre para mim é o melhor,
justamente por mor disto, parece que adivinha. E põe logo o dedo na ferida.
Creio que lhe estraguei o
passeio na hora da sesta, porque hoje apoderei-me eu dele e não os companheiros
que, àquele intervalo, foram espojar-se à sombra da cerejeira que temos no
fundo do pomar. A propósito, têm sido as cerejas dela a nossa sobremesa
ultimamente: muito doces e bem carnudas, embora este ano, não muito abundantes,
por causa da alternância de chuvas, calor e frio que, desde o inverno, tem sido
a marca do clima pelos meses fora.
- Então, irmão Ambrosino,
empanou no grande parque de estacionamento, foi? – gozou ele, brincalhão como
sempre. – Pior, pior: após um momento de euforia. Então aí não era de arrancar
em vez de ficar parado? Quando alguém acaba entusiasmado desata aos pulos, não
é?
- Isso foi o Prof. David, não
eu. E não foi a pular, foi de lágrimas nos olhos, de tão emocionado com o
choque ou o arrebatamento.
- Pois claro. Com que então o
professor também apanhou uma grande bordoada. Foi óptimo, foi óptimo, ele é um
bom tipo, merece-o.
- Mas, apesar de confundido,
creio que continua tão descrente como antes. Nele parece que o entusiasmo fica
por comovê-lo até às lágrimas e é tudo. Noutros redunda em fé. Tem os
ingredientes para dar para qualquer dos lados, daí eu não ver nisto nada
relevante para qualquer muda na Igreja.
- Ai não? Então olhe lá:
imagine que era o Fr. Ramiro, a nossa garganta de oiro, que apelava ali às
multidões, em lugar dos bispos que se andam revezando naquilo há um ror de
anos. Qual era a resposta daqueles milhares? Igual, diferente?... Para melhor
ou para pior? Hein?
O Fr. Ramiro é o melhor
comunicador do convento, improvisa cada alegoria, cada figura de estilo mais a
propósito, que é sempre uma alegria ouvi-lo, tem carisma deveras. É o nosso preferido quando é questão de
adequar o fermento à fornada, de nos ajudar a integrar valores, modelos, rumos
na vida real. Ele convence mesmo, logra colocar cada aspecto na perspectiva
exacta em que nos leva a querer aquilo a sério no nosso dia-a-dia. Alguns
comentam que até parece que nos hipnotiza, porque é normal findarmos
entusiasmados, após as intervenções dele.
- Oh, claro que entraria tudo
em delírio – retorqui eu, convicto. – Mas que é que tem a ver? Aliás, já se
comovem até às lágrimas aos milhares, mesmo assim...
- Mas então, se aquilo é para
alimentar a fé, como é que deveria ser? Com aqueles bispos todos a debitar
lugares-comuns, banalidades de base, cadáveres teológicos bolorentos há
séculos, alguns há milénios? Ou antes alguém a servir a vida a palpitar de
carne e sangue em todos os desafios de hoje, com vislumbres de trilhos
libertadores, com pistas de mundo novo a entrever-se por todo o lado? Como é
que é, como?
- Evidentemente, era muito
melhor à Fr. Ramiro. E deve haver muitos como ele pelo mundo fora, não é
verdade? O universo de escolha deve ser muito largo, calculo.
- Pois é. Então porque não vão
por aí? E repare, é apenas um exemplo. Se olhar bem, descobrirá que é tal e
qual o mesmo praticamente em tudo. Portanto, em que é que ficamos?
- Bem, julgo que nada impede o
bispo daqui de convidar qualquer Fr. Ramiro para pregar à multidão. Agora não
vejo qual seria a reacção de trocar um bispo, mormente estrangeiro (que vêm aí
de todo o mundo à testa das peregrinações) por um monge qualquer incógnito.
Iria dar muita bronca de certeza, não é? Como é que poderia ser? Leriam logo
nisto uma desautorização, um ataque à hierarquia, ou um desprezo pelas
comunidades cristãs espalhadas pelo planeta. Chegam aqui de todos os
continentes, neste aspecto é mesmo o altar do mundo inteiro. Nem deve haver
outro igual em mais lado nenhum.
- Vês como desatas a separar o
trigo do joio? Afinal, todo este espectáculo não é por mor da fé, pelo menos
prioritariamente, do lado da organização. À frente ela visa outra coisa. Ou não
é isto?
- Manter o statu quo?
- Pois. E se o statu quo for o
museu de carros antigos que não andam? Como é? É o que mantemos? É o que
alimentamos? Só porque nalguns o motor de arranque ainda pega uma vez por
outra? É o museu a primeira prioridade, não é que o carro ande e sirva o fim
para que foi construído? Medite nisto, medite nisto...
- Ah, claro! Se for correcta a
prioridade, seriam os Fr. Ramiros que ateariam o fogo às multidões. Era ali o
púlpito dos profetas. E poderiam vir de qualquer parte do mundo. Estou a ver.
Mas que alteração, que renovamento poderia levar até lá? Tenho de ponderar o
caso, tenho mesmo. No fundo é: para que presta um carro que não anda? É a
pergunta que permanentemente me vem, porque não sinto de todo o entusiasmo pelo
museu do automóvel do Caramulo. Mas pior ainda era desatar a fabricar viaturas
apenas para gáudio de coleccionadores. Quantas vezes é o que me parece desta
Igreja! Uma fábrica de velharias inúteis, ao jeito duns indivíduos cujos gostos
se depravaram. Mas que dominam mais ou menos tudo. Claro que isto é
reducionista, mas a realidade aí anda a confirmar tal vector todos os dias.
Também faz parte dela e de que maneira!
- E a questão é: que fazer para
mudar o panorama? Como fabricar os carros todos com motor de arranque afinado,
para desatarem a correr vida além e mundo fora?
- Tal e qual, é a faísca. A
chispa de que depende o arranque de tudo o mais. Onde é que a encontrarei? –
perguntei-lhe eu.
- O irmão é que tem de ver.
Ignoro mesmo se existe tal dado, uma parte que, uma vez mudada, arrastaria o
carro inteiro com ela. Se calhar há mesmo. Não tinha abordado o problema nestes
termos.
- Mas é o mais eficaz, em lugar
dos eternos remendinhos aqui e além que mantêm a roupa original, embora cada
vez mais remendada, não é? O ponto da imagem na minha mente é em busca da chave
do motor de arranque. Aí já não me incomodam as velharias de museu. Desde que
andem. Desde que andem, quer dizer, desde que reformulem as vidas
interminavelmente, pelas idades além, num movimento imparável. Agora
antiguidades arrumadinhas para alegrarem o olho, deixando tudo tal e qual, não,
não é comigo.
- A mim, repare – rematou o Fr.
Benedito – bastar-me-ia que nos deixem falar livremente, que admitam múltiplas
teologias concomitantes. Já constatam que as houve no princípio, não apenas nas
divergências entre S. Paulo e os outros, mormente S. João, como vem no Novo
Testamento e que obrigou ao I Concílio, o de Jerusalém, nos Actos dos
Apóstolos, para compatibilizar posições De 313 d. C. para diante tudo veio de
mal a pior, até hoje. Séculos e séculos de empedernimento uniformizante.
Anátemas e mais anátemas, a alimentar heresias e mais heresias. Tudo em lugar
do diálogo, do debate, do amadurecimento gradual dos vislumbres de cada
perspectiva, em busca do fundo comum ou do píncaro comum por todos procurado a
partir de cada horizonte. A mim bastaria isto – repetiu.
Despedimo-nos, que ele tinha
obrigações a cumprir com um editor com que anda orientando uma linha de obras
ecuménica de grande fôlego. Eu, pelo meu lado, deixara um monte de fichas na
biblioteca para actualizar. Corri para lá (trôpego, claro).
A ideia não me fugiu mais da
memória. Em parte por causa mesmo do ficheiro, à medida que o fui preenchendo e
arrumando no arquivo. É que vieram-me à mente casos e casos, uns atrás dos
outros. Dos de cá e dos de lá de fora.
Para nós, aqui na comunidade, o
episódio mais significativo é o do P. Mário de Oliveira, o antigo pároco da
Lixa, que no século transacto fez correr rios de tinta no confronto com o
ronceirismo da máquina eclesiástica. O mais requisitado dos seus livros (temos
a lista completa, que há muito quem no-los queira ofertar, é curioso) foi
sempre, evidentemente, o Fátima Nunca
Mais. Creio que já todos cá dentro o leram. O mais relevante é que adoram
comentá-lo: tem os espaços em branco praticamente cheios de comentários curtos.
Quase inteiramente concordantes. Alguns discordam num ponto ou noutro e apontam
alternativas de interpretação que preferem. Deve ser por isto que é tão
requisitado – o livro vai crescendo de mão em mão e então leitores antigos
voltam a pedi-lo para verem as novas ideias. Até já se comentam una aos outros,
é divertido. Eu próprio já o retomei em mãos várias vezes, para recobrir as
múltiplas pistas.
Hoje, porém, é que reparei no
pormenor: ninguém aqui o condena, sejam quais forem as discordâncias. Ora,
aquele homem foi suspenso a divinis
(só faltou excomungá-lo), expulso de toda e qualquer paróquia. Não tem nenhum
reconhecimento oficial para função alguma, na Igreja institucional. Não há
bispo decerto que o volte a tolerar. Mas aqui no convento todos o toleram,
todos reflectem e meditam a partir das interpelações dele. Quer dizer: é mesmo
outro mundo, outra atitude, outra Igreja na mesma Igreja. Igreja paralela,
Igreja subterrânea, fermento na fornada?...
Faz todo o sentido, faz. Não há
dúvida, só o Fr. Benedito para abrir fendas no granito da minha cabeça dura.
Fátima
– 7 de Junho de 2013
Hoje é dia da minha ginástica.
As diminutas articulações requerem manutenção, não vá ficar tolhido antes de
tempo e tornar-me um peso morto aqui
para a comunidade que tão generosamente aceitou acolher-me. Não quero mesmo que
tal ocorra, embora adivinhe que ninguém acusaria o incómodo, como quando qualquer
dos frades enferma e finda retido no leito. Todos logo nos revezamos a rodeá-lo
de cuidados. As recuperações entre nós são rápidas, mais que as do grande
mundo, o médico diz que por mor disto. Há estudos de campo que o confirmam. O
ar conventual é saudável, pelo menos aqui o nosso. A verdade é que entre nós a
sobrevivência média anda além dos noventa anos. Mas creio que é devido à
combinação de múltiplos factores, não apenas àquele. Desde logo, à serenidade
dos dias, à calma que apenas o ligeiro stresse das obrigações de cada um vai
pontuando. Mas tudo conspira, até a dieta alimentar variada, sem demasias,
apenas quanto baste. Ainda assim alguns tendem a engordar, mas os irmãos logo
os ajudam a manter a linha. Por mim, que não tenho uma esperança de vida tão
alta (as deficiências tendem a tolher tudo, até isto), tento, enquanto viver,
viver com qualidade, para não ser peso morto antes da morte (aqui, como anão,
já não pesarei muito a ninguém nas pegas do caixão, não é?)
Vou ao ginásio, lá fora, por
tuta e meia, que o director dele achou que, por eu ser tão pequeno, devo pagar
uma quantia correspondente ao tamanho. É um bonacheirão, bem-disposto e sem
preconceitos. O instrutor da minha turma é o Ricardo. É doutor mas recusa que
lho chamem ali. Na escola onde há Desporto é ao contrário: boa educação e
disciplina. É adequado, cá não há miúdos.
Costuma brincar comigo, creio
que nunca compreendeu bem porque me fui encafuar num convento. É religiosamente
indiferente, com as ideias mais confusas, erradas, que proliferam entre o
vulgo, a respeito da religião. Como não liga nada, embarca no que calha, nem
que seja o maior dos disparates. E, claro, vai-me provocando ingenuamente.
Desperto-lhe curiosidade, pela estranheza do meu caso. A verdade é que, à custa
da brincadeira, desatou a ler algumas obras que nos vêm a talho de foice nas
conversas de balneário.
- Ó Ambrosino, mas, se Deus
morreu, que andam vocês todos a fazer lá dentro? Fechem as portas de vez e
transformem o convento num centro cultural. Não era mais lógico?
Pronto, foi a forma de me
informar enviesadamente ter em mãos o Deus
Morreu em Jesus Cristo, de Jean Cardonnel. Referi-lho há tempos, no meio
das conversas folgazãs que são continuamente as nossas. Ele fica picado e vai à
procura, mas por norma adeja-lhes por cima, sem mergulhar nunca a fundo em
nada. Aquele comentário mostra que é o caso, mais uma vez.
- O Cardonnel também não fechou
a porta, – contrapus eu – fecharam-lha foi na cara. O herói da juventude
católica francesa ficou a um degrau de tornar-se um réprobo. Então não é mais
divertido desta maneira, ó Ricardo?
- Pois, pois, li qualquer
coisa... Não entendi muito bem, era acerca da transcendência. Natural e
sobrenatural. Não, temporal e sobrenatural. E a dele é a temporal. O que é
muito condenável, evidentemente! – continuou, com ar gozão. – Então não se está
mesmo a ver que é sobrenatural? Claro! Ah! Ah! Ah! – riu, bem disposto, e
comentou: - Vocês ocupam-se com cada treta! Não admira que ninguém ligue nada à
Igreja. Condenaram o homem por causa daquilo, não foi?
- Não, apenas alertado e
admoestado. Mas para mim é verdade que é uma condenação. É logo colocado à
margem. E tende a anular toda a mensagem dele que é tão libertadora. Não
gostaste do livro? Não tem nada a ver com mentalidades nem atitudes
ferrugentas. Era o que eu te dizia.
- Pois, mas vês? Caíram-lhe
logo em cima. Então quem ganha, hein? O campeão é que conta, ninguém liga aos
derrotados. Não é verdade, ó campeão?
- Claro. Mas também é verdade
que é um derrotado de hoje que é o campeão de amanhã, certo? Sabes disto melhor
do que eu, não é?
- Boa, boa! E estás à espera de
ganhar o campeonato?
- Quem não está? Competir é
para isso...
- És um grande homem de fé –
ironizou o Ricardo.
- É para compensar a
pequenez... – retorqui, divertido.
- Quando ocorrer, não deixes de
me pôr a par, que eu vivo distraído de tais novidades. Mas aí gostava de ver –
declarou, de repente sério. – Claro que ainda irei morrer de velho...
- Então eras capaz de te dar ao
cuidado – reflecti, espicaçando-o. – Tudo isto, afinal, toca-te mais do que
queres dar a entender.
- Ora! Se estás à espera de me
ouvir cantar o Avè, avè, avè Maria,
podes tirar o cavalinho da chuva. Aí és tu que hás-de morrer de velho.
- Mas isso é o pau carunchoso
que te faz não ligar a nada. Nem eu lhe ligo, homem! Estou a falar do que tem
sentido.
- Pois, e o que tem sentido é
excomungado. Para isso, obrigadinho, já estou servido. Excomungado e bem
excomungado, fora e muito longe de qualquer comunhão com tal gente. Foge! Como
é que aturas uma coisa daquelas? É por espírito de sacrifício, para atingir a
santidade? Contra os manda-chuvas da Igreja?... Qualquer dia também és um
réprobo, vais ver. Então sou eu quem te vai ouvir de confissão, um ateu é que
te irá salvar – rematou a rir.
- Ri-te, ri-te, sabemos lá as
voltas que o mundo dá! Se for caso disso, aproveitarei a oferta, não me vou
esquecer – brinquei com ele.
Íamos a sair das instalações e,
como de costume, ele parou o carro na estrada para o convento. Nunca falámos
disto, mas dá-me a impressão de que o deixa cada vez mais longe nos dias de eu
ter aula. De certeza para podermos falar uns minutos mais, já que faz questão
de me acompanhar sempre. Quer-me também parecer que pretende proteger-me dalgum
eventual arruaceiro. Noutras terras tive de aguentar isso, há o preconceito
ainda de que o anão tem pacto com o diabo, portanto há quem entenda seu dever
persegui-lo, escorraçá-lo, fazer-lhe a vida negra, como se já não bastasse esta
condição diminuída. Mas o preconceito é assim, que lhe havemos de fazer? Aqui,
porém, nunca tive nenhum encontro desagradável destes, mas sei lá! O caso é que
o Ricardo vem sempre comigo à conversa e suspeito que não é apenas pelo prazer
de tagarelarmos saborosamente, embora isto também pese alguma coisa.
- Quanto ao Hans Küng, olha, o
calhamaço de O Cristianismo é tão
grande que eu mal o folheei e fui ler a conclusão. E se queres que te diga,
para chegar a tão pouco, não valia a pena tanta escrita e tanta investigação.
Anos, contaste-me tu?
- Sim, mas que é que para ti é
tão pouco?
- Então, creio em Jesus Cristo,
o filho de Deus e um nada mais. Isto é o paleio de sempre...
- Ai não é, não! É que não
viste o que ficou para trás. Ele andava mesmo à procura da raiz, do que é
próprio e específico. O resto é secundário e transitório, pode ser posto de
lado. É o que permite e facilita o diálogo ecuménico. Senão os desentendimentos
eternizam-se por ignorância, por não vermos que pendem de gangas históricas que
deverão ser efémeras e postas de lado quando perniciosas. As guerras religiosas
resultam permanentemente disto, nunca se podem justificar, são traição àquilo
que afirmam pretender servir. Adoram inelutavelmente ídolos, nunca Deus. A
investigação dele abre caminhos a novos entendimentos.
- Por mim, não entendi nada nem
me deu nada. Em que é que aquilo facilita?
- Olha, por exemplo, os
maometanos aceitam aquela base de fé. Repudiam é a teologia que se elaborou a
partir dela e depois foi dogmatizada. A teologia alexandrina é um entendimento
entre vários outros viáveis que têm sido calados pela força através dos
séculos. Se esta relativização for generalizada, então muçulmanos e cristãos
poderão encontrar-se e celebrar em comum também a crença, em vez de se
guerrearem como andam há séculos e séculos.
- Ai é assim, seu heregezinho?
A querer fazer de gente crescida, é? - comentou com humor o Ricardo. – Não
perdes pela demora! Vais ser excomungado e queimado na fogueira, vais ver! Não
reparaste no que aconteceu ao Hans Küng? Até o trabalho lhe tiraram! – e,
mudando de tom, repentinamente sério: - Também, que é que ele queria? Não foi o
que se atirou ao dogma da infalibilidade papal? Picar a fera no covil! Não há
infalibilidade nenhuma, apenas veracidade? Lindo! Apanhou nas trombas que foi
um mimo!
-
Pois, muito feio, muito. Mas o que seria uma perda para ele talvez tenha sido
um ganho para o ecumenismo. As visões tendem a aproximar-se cada vez mais e ele
é um grande fermento, tem uma credibilidade como nenhum outro.
- Adianta muito! Correram com
ele como com todos. Diálogo ecuménico... Até soa bem, é poesia, é lirismo. Que
raio de base pode ter semelhante diálogo quando à partida a atitude é
totalitária? Quando se tem a verdade absoluta como entrar em diálogo? Todos têm
a liberdade de pensar desde que pensem como eu? Conhecemos bem demais este
diálogo: já tivemos o Hitler, o Estaline, o Mao-Tsé-Tung... O Papa infalível é
a institucionalização dele para a eternidade.
Como
eu acenava que não com a cabeça, o Ricardo rematou:
- Não é um dogma? Então...
Fátima
– 8 de Junho de 2013
Fiquei meio baralhado com a
conversa de ontem. Nunca tinha ligado vários aspectos que, aliás, nem sequer
focámos, mas que fizeram ricochete dentro de mim, repentinamente. Por exemplo,
mantemos diálogo com as igrejas cristãs mas dentro da nossa perseguimos
quenquer que se atreva a mexer. Já não há Cruzadas nem Inquisição nem Índex de
livros proibidos, mas quantos crentes continuam proibidos de escrever e
publicar? Até de falar em público? Quer dizer, aquelas aberrações acabaram porque
a Igreja foi vencida mas não convencida. Onde os seculares não chegam, continua
tão criminosa como antes, como se o crime fora virtude. Não houve, afinal,
conversão nenhuma?
Aliás, há uma Declaração Universal dos Direitos do Homem,
mas a Igreja não pode subscrevê-la em verdade, mesmo que a subscreva no papel:
como admitir a liberdade de pensamento e de expressão, a liberdade de
associação e de reunião se, por sistema, legal e institucionalmente, os proíbe
no meio dela? Exige-os para os outros e exclui-os dela própria? Como ratificar
semelhante monstruosidade? É, porém, como andamos a viver. É caso para
ponderarmos se, em lugar de luz do mundo, de fermento na massa, não é o mundo
que a tem de vir iluminar, fermentando a massa bolorenta em que, nestes aspectos,
com o tempo, se tornou a instituição eclesiástica.
Neste domínio suspeito mesmo
que a distância entre a Igreja corpo místico de Cristo e a rede social de
hierarquia e organismos que a pretende concretizar é mais ou menos a lonjura
que irá do céu ao inferno. Se tudo fora apenas isto, era de acabar rapidamente
com semelhante instituição. Ainda bem que é meramente um pendor da vivência
comunitária da fé. Em muitos outros vectores eu, pelo menos, não discirno
semelhante discrepância, mormente no atendimento a pobres, marginalizados, aos
fragilizados em geral. Eu que o diga, como anão nunca fui tão acolhido, tão
igualado como no seio desta comunidade religiosa. Ora, isto é viver a fé em
autenticidade. Aquilo, ao invés, é uma excrescência monstruosa que, por mim,
não logro entender. Ainda por cima quando sabemos que cada qual é salvo, não
por palavras, mas por obras. Pelo fruto conhecemos a árvore, não pelo farfalhar
da folhagem, a vozear conforme as ventanias do acaso. Como é que isto pode ter
andado obliterado há milénios?
Claro, é a cabeça do anão a
reflectir em miniatura. A verdade é que o que me vale é ser um leigo incógnito,
senão teria já uma mordaça, como os mais. Dado que isto é um diário para mim, é
um bom escudo de protecção, posso confiar ao papel quanto me ocorrer.
Comprometi-me e aqui vou cumprindo. Mas escuto já os gritos surdos: herege,
anátema, excomungado...! Há por trás disto um erro crasso qualquer, fonte do
crime, do pecado. Pecado colectivo duma Igreja, uma vez que é estrutural, sistemático,
multissecular, consagrado nos usos e na lei canónica.
Ou estarei a ver mal? Como
poderei ter razão contra tantos milhões, milénios além? Ou estes não serrão
tantos assim e a maioria é a dos amordaçados, dos auto-amordaçados, dos
ingénuos incônscios da mordaça e a escorar o desvio andaram permanentemente
meia dúzia de poderosos sem escrúpulos nem nenhuma vida interior autêntica? A
mera interrogação provoca-me calafrios: pode o diabo manipular perenemente um
pendor da instituição eclesiástica sem os mentores daqui darem por isto? Ou dão
e é aquilo mesmo que pretendem, serem fiéis porta-vozes de satanás (ou deles
próprios, o que é o mesmo), no meio do que deveria contrapor-se-lhe?
Não entendo grande coisa,
perdido na ramaria desta floresta. Uma realidade, porém, é certa: a Igreja
mística não é a instituição eclesiástica (com todos os respectivos apêndices),
antes esta pretende visibilizar e cumprir o fito daquela, sem jamais o lograr
em plenitude, mas por aproximações constantes, numa caminhada ao infinito. Até
aqui creio que é consensual entre os fiéis esclarecidos. O que leva a outra
verificação: a Igreja (nos dois vectores, mística e institucional) não é o
Reino de Deus, apenas um instrumento para servi-lo e, portanto, também o pode
trair.
Ora, eu suspeito acolá duma
traição, mas não logro vislumbrá-la ainda com precisão nem identificá-la com
rigor. Sem isto, qualquer serventuário do diabo mas que esteja a agir de boa
fé, ludibriado pela aparente direitura de tão vetusta tradição, não logrará
tomar consciência de tal e, conseguintemente, não poderá dar de vez um pontapé
no mafarrico. E mudar de rumo.
Isto, porém, seria já renovar a
Igreja, era uma boa achega para o grupo de trabalho do Vaticano, creio eu. Se
calhar, porém, é pretensiosismo de minha parte, a mente do anão a pretender
trepar à altura da gente crescida. Sei lá bem! Dou o meu melhor: se for lixo, o
caixote para ele está sempre aqui ao lado, não há problema.
Fátima
– 9 de Junho de 2013
Ignoro se me estou aproximando
ou não da chave de ignição da viatura de museu que a Igreja é! Se calhar
limito-me a apalpar no escuro da minha cegueira. Para além de anão, um cego
contumaz. Bem, ao menos ando por aqui perdido, nos túneis da enorme catedral,
em busca dum vislumbre de luz. E vou anotando algumas infiltrações que lhe
andam minando os alicerces. Ao fim pode bem haver uma lucarna, quem sabe?
Pronto, basta de desvios. Não
me sai da mente o caso de Leonardo Boff, um monge brasileiro, padre e teólogo.
Pertence à corrente da Teologia da Libertação. No Brasil das dezenas de milhões
de miseráveis que com tanto suor vai melhorando a economia e a distribuição das
benesses dela, ele, como muitos outros, até alguns bispos, não poderiam ter
outra sensibilidade. Está posto à margem, proibido de escrever e de pregar às
multidões. São tantos, pelo mundo fora!... Porquê este a picar-me, então?
Poderia pôr-me a escrever de centenas doutros, de milhares, milhões de
silenciados que com infinita paciência vão caminhando pelo escuro da
marginalização interna, à espera de que algum dia desponte a luz. É, porém, o
que me ocupa agora a mente. Não descubro a razão.
- No caso dele há um pormenor
que me diz muito – esclareceu-me o Fr. Marcos, após o frugal pequeno-almoço
comunitário no refeitório, quando nos encontrámos no claustro, a caminho das
nossas freimas matinais. – É que discordaram entre si o bispo em cuja diocese
reside a comunidade religiosa dele e o Papa de quem ele, enquanto frade,
directamente depende.
- Discordaram em quê? Na
penalização ou na doutrina?
- Eu diria que nem numa nem
noutra ou, então, se calhar em ambas. É melhor explicar.
- Se puder, agradecia. É que
não me larga a cabeça...
- No meu entender, quanto à
doutrina, quase de certeza que as reservas de ambos seriam as mesmas: a Teologia
da Libertação, então se for da libertação política, é muito sectorial, uma
migalha na margem da vida espiritual propugnada pela Igreja, pela Tradição,
pela Revelação; toda ela teria de ser recentrada e relativizada, não separada
do conjunto da Boa Nova. Lembremos que heresia é uma palavra que significa
separação. Até aqui ambos os bispos, o brasileiro e o de Roma, pelo que li,
estiveram de acordo.
- Então divergiram nos efeitos
disto.
- Pois foi. O brasileiro
insistia para o Papa o excomungar, que ficaria tudo arrumado. Vê a sorte de o
Leonardo Boff ser monge e de o bispo não ter sobre ele tal poder. Estaria hoje
entregue à bicharada.
- Então foi o Papa que o
salvou?
- Sim, é o que o Fr. Leonardo
conta. Durante anos recusou qualquer sanção contra ele, pelo contrário,
apoiou-o e à vinculação dele aos pobres e deserdados.
- Mas acabou punido e
marginalizado...
- É verdade. E como é que o
irmão Ambrosino resolveria um diferendo entre dois bispos?
- Por aquele que tiver razão. É
claro. Nisto teria de ir pelo Papa. E não é por estar aqui num convento, numa
ordem religiosa que depende directamente dele. É porque tem fundamento. Senão,
é um ataque a uma liberdade basilar, em que a Igreja é useira e vezeira há
milénios. E também neste caso o voltou a ser.
- Eh, o que aí vai, irmão
Ambrosino! Não é tão linear! A prudência é o dever da eficácia. Qual é a
fórmula de previsível máximo ganho e menor perda?
- Então, é a que foi adoptada?
- No entender do Papa, sim. Com
um bom argumento de fundo: não pode excomungar ninguém que tanto se dedica aos
pobres, seria contra o espírito do Evangelho. Então, limita-o naquilo com que
mais briga o bispo brasileiro, no resto deixa-o livre de continuar a intervir
privadamente entre o povo humilde. Com isto calou o pontífice de lá que não o
pode perseguir mais e entregou-o à defesa dos pobres, os protegidos dele. Agora
com uma nova aura de herói e mártir, de algum modo. Só que mais nos bastidores,
mais de fermento que de massa. Foi, no meu entender, uma deliberação sábia.
- Mas iníqua, Fr. Marcos.
- É capaz de ter razão, irmão
Ambrosino, é capaz. Mas todos temos de carregar a cruz que nos couber e oxalá o
consigamos da forma mais eficaz possível. Olhe que o Fr. Leonardo não vive
revoltado. Porque será? Julga que ele não entendeu a jogada? Quanto a mim,
entendeu e muito bem. É uma grande inteligência. E com uma intuição da
profundeza e da autenticidade espiritual que para mim é exemplar. Quem me dera
atingir o nível dele!
- Fico meio desanimado. O
hábito é muito curto das mangas...
- Ah, não fique, irmão
Ambrosino. Já viu o que é termos dois bispos às turras e o desempate ser do
Papa a obrigar o outro a renunciar ao poder de excomungar? Isto pode levar
muito longe, muito longe...
Fátima
– 10 de Junho de 2013
Fiquei a matutar naquilo. Levar
muito longe, até onde? À partida, apenas vejo a iniquidade final. Para que é
que deverei olhar então?
Nem me apeteceu escrever o dia
inteiro. Foi preciso ir às compras e, como de costume fui ajudar o irmão
cozinheiro nesta diligência lá fora. Nunca vamos a uma feira, que nenhum de nós
tem jeito para marralhar e aquilo torna-se-nos incómodo. Preferimos um
supermercado, com fornecedores habituais que nos vão sendo recomendados por
leigos do exterior e têm uma consideração particular por nós. Às vezes, mesmo
ali, vejo-nos um bocado como cordeiros no meio de lobos. Olhamos em redor e
ficamos um tanto constrangidos. Não sei se é por efeito de sugestão (vemos o
jogo económico em que o rico é sempre ganhador como muito suspeito e, no fundo,
irremediavelmente condenável), ou se há dados objectivos que o fundamentem.
Antigamente, enquanto vivia no mundo, nunca sentia nada disto, nem sequer no
meio do regateio das feiras onde em pequeno (e não só) acompanhei a minha mãe
muitos anos. De qualquer modo, agora é assim. E este estado de alma é
compartilhado por quantos aqui no convento têm de desempenhar tal tarefa.
Hoje foi o mesmo. Também isto
não me ajudou a concentrar nem a meditar. Poderia ter ido insistir com o Fr.
Marcos para ele explicitar os subentendidos com que nos despedimos. Curiosamente,
não me senti à vontade, fui como que repelido interiormente. Tinha a impressão
de que o meu Mestre não o aprovaria. É para eu pôr aqui o que discernir. E, se
não for nada, é o nada que aqui descrevo.
E a verdade é que não vislumbro
proveito no facto de o Papa ter ido para uma resposta de meio-termo, em lugar
de impor a razão. Sacrificou um inocente, dando ouvidos a uma pretensão iníqua.
Vejo-me no dever cristão de me colocar ao lado da vítima.
Por outro lado, pressinto que
não é tudo. O Fr. Marcos estava a entrever outra realidade que para ele (se
calhar para o Fr. Leonardo Boff também), afinal teria muito mais relevo. Um
alcance qualquer cujo horizonte será tão longínquo e abrangente que eu, pelos
vistos, ainda nem sequer suspeito dele.
O que hoje, como em pano de
fundo, me andou remoendo, um marulho de mar a que nem ligamos, perdidos e
atentos às freimas de cotio, foi a derradeira fala dele. Depois de vésperas
ribombou como maré viva na primeira linha da mente e quase me surpreendeu: o
Papa obrigou o outro a renunciar ao poder de excomungar! Isto, com um pormenor
completamente alheio e que inesperadamente ali encaixou: eu tinha anotado no
meu vesperal, à margem, numa folhita solta que nem sei como veio encaixar-se
nas páginas do rito de hoje, o lembrete para orar pelo bispo Lefebvre, o
dissidente conservador do pós-Vaticano II que rompeu com a comunhão com Roma.
Foi o hierarca que ordenou presbítero o padre espanhol que tentou esfaquear o
Papa aqui no recinto de Fátima, há um par de anos atrás. É uma nota muito
antiga que eu registei justamente no contexto do atentado, para me lembrar.
Julgava que a tinha deitado fora e, afinal, enfiei-a para lá algures no meio
das folhas para hoje se erguer da tumba dos ignorados. E, claro, ficou-me a
matraquear a memória e a atenção. Não há dúvida, não há coincidências, elas
constituem inelutavelmente um sinal e uma oportunidade. Ora, aqui, neste
contexto, qual?
Deixei os dados ficarem a
amadurecer até ao serão. De certeza se proporcionaria alguma conversa fértil ou
então algo inesperado que me poderia ajudar a ver. Eu sou mesmo tapadinho de
todo, se não é em diálogo com alguém ou alguma coisa, não vislumbro ideia
nenhuma em nada. Se calhar é com todos tal e qual, mas não me recordo de alguém
o ter anotado alguma vez em tudo o que li ou estudei até agora. A mediação do
outro para escancarar-me a janela à luz do sol: eventualmente, não haverá
caminho alternativo. E andaremos todos enganados num individualismo e subjectivismo
estéreis. Nada vem de mim, nada vem doutrem, tudo vem da conjunção de ambos. É
a fórmula que funciona comigo e, decerto, com todos. Aí, sim, de repente, tudo
fica iluminado e ateiam-se fogaréus de entusiasmo. Quando dispara a luz, tudo
devém maravilhoso, erguemos uma pontinha do véu do mistério e os olhos
arregalam-se-nos. É um subtil afloramento, uma suspeita do Infinito. Também
aqui. Evidentemente.
Pois, o que ocorreu é esquisito
(hoje, porém, haveria alguma coisa que o não fora?). Três dos irmãos quiseram
trocar de leituras e fui com eles à biblioteca, a uma hora invulgar, quase ao
toque de dormir. Falavam entre eles das revistas que vinham entregar e eu,
literalmente, desliguei, envolto cá nos meandros do meu mundo. Tão distraído me
encontrava que dou por mim agora sem sequer reconstituir quem foram eles.
Depois de dar-lhes o que me pediram e anotar nas fichas os levantamentos, (já
iam no corredor, de volta às celas, a murmurar como é de norma por mor da hora
tardia), ouvi o que ia a transpor a soleira comentar:
- É preciso ser muito grande
para ir à prisão confirmar que perdoa ao Ali Agka. É uma inversão de mundos,
mas creio que ninguém viu até onde vai uma atitude destas.
E não logrei ouvir mais nada.
Fiquei repentinamente alerta, a apetecer-me bater com a cabeça na parede por
tê-los atendido tão distraidamente. Agora a oportunidade foi-se. Não consigo
fazer mais nada. É deitar-me no catre e jurar a mim próprio velar de futuro
para não deixar fugir as coincidências. Ali Agka fora condenado na Turquia a
pesada pena por tentativa de assassinar o Papa, em Roma, atentado que falhou. E
o Papa foi à prisão absolvê-lo. Aliás, o do ataque aqui em Fátima também não
mereceu qualquer procedimento persecutório eclesiástico.
Perdi o fio à meada. Vou
deitar-me e meditar enquanto não adormecer. A tarimba agora é que terá de
substituir a fala com os irmãos que falhei de todo, estupidamente. É Deus a
acenar-me de frente e eu, parvo, a olhar para trás.
Não sou anão apenas de corpo,
também o sou de juízo. Ah, Fr. Benedito, bem frustrado se irá sentir por
cometer esta freima a quem tanto falta o fôlego!
Fátima
– 11 de Junho de 2013
Foi na cela, enquanto meditava,
que dei por mim a imaginar o diálogo falhado com os irmãos. E com eles a
responderem-me. Foi tão vívido que o gostaria de tentar reproduzir. Até porque,
na ocasião, fez muita luz acerca disto tudo.
- O Papa impediu a excomunhão
de Leonardo Boff, sabiam? – principiei.
- Evidentemente que a teria de
impedir. Pois se foi o mesmo que a levantou a Galileu, séculos depois da morte
deste... Mas mais vale tarde que nunca, não é? – respondeu-me um.
- Então é uma linha de conduta
coerente, não foi um evento de ocasião?
- Claro que não – retorquiu
outro. – Descobriu alguma pena do género aplicada por ele?
- Não, mas também não lhe
vasculhei a biografia – comentei.
- Nem precisa – interveio o
terceiro. – Os casos que outrora dariam excomunhão, durante o pontificado dele,
acumularam-se e em todos recusou tal abordagem. O bispo Lefebvre não foi
excomungado, separou-se de motu próprio e o Papa persistiu até à morte em
chamá-lo ao diálogo e à comunhão. E nunca anatematizou nenhum dos seguidores
dele, fiéis ou presbíteros. Tentou infatigavelmente refazer a ponte, em busca
da unidade.
- É um fio condutor invulgar,
alheio à tradição de milénios... Foi mera casuística ou por princípio? Pelo
feitio conciliador do Pontífice ou porque tal é a exigência ética? Será que
inovou aqui e ninguém deu conta? – insisti, mal convencido.
- Ora! Julga que ele não teria
noção exacta do que implicava tal atitude? Claro que tinha! – afirmou,
convicto, o primeiro.
- Mas então... Para quem tanto
falou e escreveu... E sobre isto, nada! – comentei, perplexo.
- Evidentemente! Não era
insensato. Quantos mais Lefebvres iriam proliferar pelo mundo fora? Se calhar,
a maioria do episcopado, Planeta além. Vivem todos muito agarrados a honrarias
e privilégios – reflectiu o segundo, ponderado. – Aquilo foi, pelo exemplo, a
demissão do poder que se auto-demite e transforma em serviço, o servo da unidade,
que é a verdadeira missão da hierarquia. Também revelou que nunca deveria ter
existido hierarquia nenhuma, que é poder, mas diaconia, que é servir. Nunca
deveria ter existido o Império Romano e o Imperador a colonizar a Igreja mas a
comunidade crente de préstimos mútuos a fermentar multidões no Império a cair
de podre.
- O quê?! Vai até aí?! –
espantei-me, duvidoso.
- E ainda não é nada – retomou
o derradeiro deles. – Recorda o que significa, na raiz, a palavra pecado?
- Na raiz? É falhar alguma coisa,
é um buraco, um vazio que deveria ter sido enchido e não o foi, uma meta
inatingida, um degrau que ficou por trepar, um passo que não foi dado. Ausência
duma presença que era devida.
- Ora pois então! – interveio
logo outro. – No radical donde deriva não é fazer mal, é um não-fazer, um
vácuo. Já viu onde isto leva? Era bem matreiro o nosso Papa, que Deus o tenha!
- Por mim não vejo nada. Da
minha diminuta altura o horizonte é muito curto – comentei, anão bem-humorado.
- Pois vou pô-lo às cavalitas, que
logo enxerga – adiantou o que me ficara ao lado. – Repare nisto: alguma vez
alguma excomunhão, algum anátema, alguma perseguição (para já não invocar
alguma guerra), reconduziu alguém, alguma corrente, alguma igreja, alguma
religião à unidade? Um exemplo apenas, tente lá encontrar...
- Então, porventura os
cristãos-novos, em tempos de D. Manuel I, na era dos Descobrimentos, não?
- E eles converteram-se
deveras? Acredita nisto? – tornou o grupo todo.
- Claro que não. Em privado
continuaram tão judeus como antes. E a Inquisição andou permanentemente à caça
deles, até findar extinta. Estou a lembrar-me do auto de fé em que queimaram
vivo, na Praça das Cebolas, em Lisboa, António José da Silva, o Judeu, o nosso
maior dramaturgo do séc. XVIII. E já tinham corrido duzentos anos sobre aquela
conversão obrigada. Ou simulada.
- Portanto, nem aqui houve
unificação nenhuma, não é? Para todos os casos – ponderou outro – é exemplar o
que nos chegou, por via oral, da condenação à morte de Galileu: afirmam que
ele, após assinar as renúncias e retratações que lhe exigiram para não
executarem a pena, terá dito, num desabafo: “E, contudo, a Terra move-se”. Ora,
esta teoria é que fundamentara o castigo capital. Por esta via não há nunca
conversão exequível, portanto. Andaram todos cegos durante milénios. Mas o
Papa, não: ele viu. E tratou de comportar-se à altura, com toda a fidelidade.
- E como é que os dados
encaixam? Estou meio perdido – adiantei.
- Olhe, desta maneira – e
revezaram-se os três. – A diaconia dos hierarcas eclesiásticos é servir a
unidade da Igreja...
- ...Que é a forma de cumprir o
que decorre da verificação-mandato evangélico contido no versículo: “Vede como
eles se amam!” – acoplou de imediato outro.
- O caminho trilhado milénios
fora foi permanentemente o de consumar a ruptura, a desunião, através de
expedientes do poder para excluir, expulsar... – e foi a vez do terceiro.
- ...O que cristaliza
definitivamente o pecado hierárquico eclesiástico: a multimilenar ausência de
unidade, a falta do que deveria aqui estar presente no mundo, a fermentar o
amor universal, o amor ao infinito: “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei”,
de Jesus. Que, aliás, nem sequer a Judas Iscariotes excomungou, resignado,
mesmo tendo-o este levado à morte.
- Pecado hierárquico?... –
balbuciei eu.
- Sim, claro: se condenas
alguém, pões o selo definitivo na falha da reconversão, findou o caminho para a
unidade. Falhou de vez a pegada para unir, é o pecado do pontífice: já não faz
mais ponte, deitou a ponte abaixo, ao contrário. E, pior, achou que estava
muito bem e lava daí as mãos. É desta maneira quase há dois milénios. Podemos
afirmar que é um pecado colectivo, institucionalizado pela pior tradição, pelo
uso e costume e pela lei. É, porventura, o mais renitente dos pecados da
instituição eclesiástica e que persistentemente a vem alheando da Igreja corpo
místico de Cristo, completamente incompatível com tal. Porque é mesmo a
contradição daquilo – e todos acenavam com a cabeça em concordância.
- Se estou bem a entender, -
tartamudeei, ainda desnorteado – então o Papa escapou a um pecado que é tão
renitente, tão duradoiro, tão bem camuflado e coberto de autoridade histórica e
de tantos grandes nomes que ninguém até agora deu por ele...
- Mas o Papa deu e teimou em
jamais cair na tentação. E viveu como fermento na massa – insistiu o primeiro –
de certeza aguardando que todos iriam abrindo os olhos.
- Aliás, – acrescentou logo
outro – não foi apenas o primeiro Papa que agiu em conformidade, contamos hoje
já com uma pequena cadeia deles que se vêm recusando sistematicamente a quebrar
as pontes, a praticar o pecado, a falhar. O movimento ecuménico é apenas a
cobertura exterior, interiormente vivem uma intuição espiritual tão autêntica
que os impede de trilhar o caminho falido de antanho e persistem
infatigavelmente no diálogo e na tentativa de aproximação. O curioso é que isto
anda a fazer cair a lei por desuso. Como ocorre sempre no campo jurídico,
secular ou eclesiástico.
- Que lei? – perguntei,
encegueirado.
- A que atribui à hierarquia o
direito de decretar a excomunhão, o anátema e demais penas menores a toda a
comunidade de crentes – comentou o segundo.
- Mas têm tal poder, mesmo que
o não usem – contrapus eu.
- Têm, de facto. Mas tê-lo-ão
de direito? Os papas estão, na prática, doravante, a pô-lo em causa. É que,
reparando bem, reivindicar este direito, é reivindicar o direito de pecar.
Institucional e sistemático. De achar aquilo bem. No contexto duma fé viva,
isto faz algum sentido? Não vejo como. Os últimos Papas tudo indica que também
não.
Fátima – 12 de Junho de 2013
Ao reler o texto anterior, dei
comigo assarapantado. Eu nunca tinha reparado naquilo. Mesmo antes de
escrevê-lo, embora vendo que, ao meditar, tivera laivos de lucidez inesperada
(e eu não os queria perder), não me dera conta da enormidade das implicações.
Fiquei meio amedrontado.
Por outro lado, donde me viera
a mensagem? Eu, de facto, não falara com os irmãos, fora uma oportunidade
perdida. Então quem eram estes que tão ofuscantemente me abriram os olhos? Fora
tudo imaginário? Mas, em tal caso, como me revelaram o que eu ignorava e nem
tinha, pelo menos, entrevisto?
Não compreendo nada. Andei todo
o dia aturdido e ainda agora não caí em mim.
Não sou capaz de escrever mais,
por enquanto. Tudo aquilo tem de sedimentar.
Fátima – 13 de Junho de 2013
É
capaz de ser um encadeado de baboseiras sem qualquer sentido nem fundamento,
por mais que se me antolhe o contrário. Que pode o anão ficar senão encandeado
quando inesperadamente o trepam até à luz? Deve ser o que ali me fascinou.
Continua, porém, a fazer muito sentido e não vejo porque não. Aliás, o inverso
era desautorizar um ror de Papas. Então onde é que pode estar o erro?
O melhor, para me desatulhar da
dúvida, é encontrar-me com quem sabe. Tirei-me de cuidados e pedi todo o tempo
livre que o meu Mestre pôde dispensar-me durante o dia de hoje.
Recusou
ouvir o texto que eu escrevera. Tudo de viva voz e velando eu para não me
deixar influenciar. Fr. Benedito leva isto tão a peito que chega a
amedrontar-me, fico meio inibido. Para ele o que ando escrevendo é um projecto
muito sério. Como poderei eu levá-lo à ligeira? Será que ele tem razão?
Falámos a meio da tarde, à mesa
da biblioteca, deserta a tais horas. Mal acabei de lhe expor a conjuntura e as
minhas dúvidas, saltou ele do lugar, eufórico, correndo de lado a lado, batendo
os punhos um no outro de entusiasmo:
- Eu sabia, irmão Ambrosino! Eu
sabia! – e ria, iluminado de alegria da cabeça aos pés.
Eu limitava-me a olhá-lo,
perplexo e interdito. Apanhou-me tão de chofre que fiquei sem reagir vários
minutos, apenas a observá-lo naquele vaivém, para trás e para diante. Irradiava
um desmedido alumbramento cuja fundura eu não podia entender. Aguardei até se
acalmar, para me contar o que é que o pusera eufórico. Se ele via, eu cá não
via nada...
De repente sentou-se e ficou a
olhar para mim de olhos arregalados. Eu continuava mudo, porventura a olhá-lo
de igual modo. Se alguém nos via, de certeza parecíamos os dois apalermados,
frente a frente.
E disparou-me, sem preâmbulos:
- Então não entendes, homem?! –
pela primeira vez tratou-me deste modo e até ignorou o tratamento conventual,
de transtornado que ficara.
Eu encolhi os ombros, ainda
mudo, por não perceber a que vinha aquilo tudo.
E ele, impaciente, de
improviso:
- É a chave, agarraste o motor
de arranque! – e fixou-me, à espera.
- É?! O quê?!
- O que acabaste de me contar –
sublinhou, convicto.
- Mas aquilo faz algum
sentido?! Faz mesmo todo o sentido?!
– tartamudeei, agora quase a desequilibrar-me eu com tal pancada. – Mas em quê?
Em quê?...
Não tinha reparado que me tinha
posto de pé durante a cena inteira, embora fosse igual para o Fr. Benedito: sentado,
eu fico com o cocuruto à mesma altura que quando estou de pé. É uma vantagem do
anão que confunde muito boa gente. O meu Mestre, todavia, agora reparou. E
então caiu nele.
- Sente-se, irmão Ambrosino,
sente-se – convidou-me inesperadamente calmo, a tratar-me por você. – Desculpe
o meu descontrolo. É claro que tenho de lhe explicar o que estou vendo. Mas
terá de joeirá-lo, a ver se para si também fará sentido.
- Foi para isto que o chamei,
pretendo apenas ver claro, mais nada. Por ora ainda ignoro onde é que anda a
chave.
- Em rigor, nisto: no facto de
toda a hierarquia da Igreja, da base ao topo, repudiar o poder de condenar –
resumiu ele, lapidarmente.
- Mas não é um direito, aliás
entendido quase como um dever, pelos séculos fora, praticamente desde o
princípio? – duvidei eu.
- Não, não é um direito, é e
foi sempre um abuso do direito. E muito menos é um dever, antes,
permanentemente, a traição consumada, definitivamente, ao dever de raiz de todo
o bispo, o dever de ser pontífice: construtor de pontes a unir o que antes
estava dividido.
- Pois, condiz com o que eu
entendi. E doravante sublinhado exemplarmente, diria mesmo intransigentemente
por meia dúzia de Papas, não é?
- Exactamente.
- E porque é que é a chave?
- Porque tal abuso do direito
deve ser abolido. Então a porta da Igreja pode finalmente abrir-se ao Espírito:
o Grande Inquisidor nunca mais pode prender Jesus na enxovia nem queimá-Lo em
nenhum auto de fé.
Fátima
– 14 de Junho de 2013
Fiquei a remoer em silêncio.
Fr. Benedito sempre foi arrojado mas nunca o tinha visto ir tão longe, com uma
linguagem tão iconoclasta. Tomar a palavra de Os Irmãos Karamasov, de Dostoievsky, deveria soar, noutro meio
qualquer, como uma blasfémia, de certeza. Ninguém iria acreditar que era da
boca dum monge presbítero, teólogo, no meio duma biblioteca monástica.
Pois é, mas aqui buscamos
autenticidade cada vez mais funda. Foi, aliás, o que me atraiu para este
mosteiro. O anão marginalizado também tem vontade e coração e não se demitiu
deles ao bater a esta porta.
- Abolir o direito de
condenar... – ponderei, a tentar concentrar-me. – Ninguém vai conseguir
fazê-lo. Quem demove a Cúria Romana? E a máquina colossal da Igreja, com
tentáculos a cobrir o mundo inteiro? – perguntei, mais para mim que para o meu
Mestre.
- Quem sabe? Repare, isto é um
apelo à autenticidade. Alguém poderá recusá-lo? Com que argumento? E condenar a
atitude assumida duma cadeia de Papas que já o intuíram há muito e se mantêm
fiéis ao apelo do Espírito? Isto igualmente tem um enorme peso, não é?
- Até agora os Papas apenas o
aboliram na prática deles. Na teoria e na lei canónica ninguém sequer buliu...
E quanto ao episcopado universal, não descortinei por enquanto fumos de mudar.
Ou há?
- Não, não, o fermento demora
tempo a fermentar. Mas também não há notícia de excomunhões desde há décadas.
Por ora continuam a manter-se ao nível das penas menores.
- E estas serão de continuar ou
não, igualmente?
- Qual continuar?! E a ponte
onde fica? Converteram alguém com elas?
- A maioria resigna-se, alguns
abandonam tudo mas, realmente convertido, não descubro ninguém. Pelo menos aqui
em Portugal.
- Nem há, irmão Ambrosino.
Apenas o diálogo pode levar a converter, tudo o mais bloqueia-o. E não é a
converter a qualquer ordem cristalizada, à doutrina pré-fabricada, ao dogma
como verdade absoluta que tantos têm na mente. Tudo isto, neste pendor, é
erróneo, por muito que o conteúdo tenha validade. A conversão é e apenas pode
ser ao Espírito, ao que fala ao coração de cada um e a que todos temos de
prestar ouvidos, tanto o convertendo como o conversor, digamos. Aliás, não há
deveras conversores, somos todos convertendos perante Deus, pese embora aos
dogmáticos.
- A mania de que a Igreja é
detentora da verdade absoluta. Depois condena Galileu e a seguir tem de
levantar-lhe a pena e pedir perdão. E andamos nisto, não é verdade? O pior é
que ninguém logra restituir a vida às cinzas de António José da Silva, o Judeu,
por muito que anulem os autos que o condenaram à fogueira. Por falar nisto,
ninguém entre nós anulou nada nem pediu perdão de nenhum procedimento inquisitorial
nem de nenhum outro. É curioso. Os Papas estão a ter poucos imitadores por
estas bandas...
- É o que lhe apontava. É o
fermento na massa. É a semente jogada à terra. Têm um ritmo de espera. Todos o
temos por igual dentro de nós. Convém equilibrar paciência e persistência.
- Então ficaremos apenas com a
reiterada atitude do papado recente, a aguardar. Não dá para muito, enquanto
chave para renovar a Igreja. Não lhe parece, Fr. Benedito?
- Se ficar por aí... Mas não
ignore que a lei consagra o pecado, a falha ao dever pontifício como bom e até
como dever. Quando isto devier claro nas consciências dos mentores da Igreja em
geral, como já deveio, ao que vemos, na dos últimos Papas, não acredito que
tais normas e as práticas derivadas não venham a ser logo abolidas.
- Por caírem em desuso, como no
Direito secular? – questionei, a confirmar tudo.
- Eu creio bem que antes
ocorrerá uma abolição explícita. Terá muito mais força. E ninguém que tenha
tomado consciência do que está aqui em causa vai tolerar manter-se
indefinidamente cúmplice dum pecado institucional colectivo. Todos somos co-responsáveis
enquanto este estado de coisas se mantiver, não ignoremos.
- Até relativamente às penas
menores? – insisti, renitente.
- Até quanto a elas. Repare, se
falham por sistema... É aplicar o critério “pelo fruto se conhece a árvore”.
São um caminho errado. De todo. A via do dever de criar unidade, do “vede como
eles se amam”, é a de tentar e tentar e tentar, infatigavelmente, refazer as
pontes. Perseguir e condenar, mesmo à pena mais leve, operam o contrário:
consumam a destruição delas. Não há desenvolvimento interior nem exterior, de
ambos os lados. A conjuntura cristalizou ali e ali ficou de vez bloqueada. Para
a eternidade. O Espírito de Deus falhou. Pela mão do homem. E do homem que
tinha por mandato, ao invés, realizá-Lo, cumpri-lo, efectuá-lo.
- Estou a ver. E que faremos a
tantos que andam penando, vitimizados, pelo mundo fora? Até entre nós? Os
expulsos, os silenciados, os ameaçados, os preteridos por fugirem à tropeada do
rebanho... Tudo junto deve ser uma multidão incontável, pelo que me vou
apercebendo.
- Deverão abolir-se as penas
todas, para retomar o diálogo interminavelmente. A ver onde poderemos ir
convergindo. Sempre mais longe, sempre mais alto. Deus é inatingível, logo, o
caminho é inesgotável. E pode-deve trazer-nos surpresas a cada curva da
jornada. Para todos, dum lado e doutro, que ninguém é detentor da Verdade: Deus
é e será sempre inefável, a Verdade estará sempre além, a chamar-nos. E quem se
dispuser ao cominho vai ter os vislumbres que o arrebatarão e nos arrebatarão a
todos. Será incrivelmente gratificante.
- Bem, era cá uma revolução!...
– exclamei, meio empolgado. – Gostaria de o viver. Mas não é jogar a Tradição
ao caixote do lixo mais os fundamentos dela?
Não é tanto uma dúvida minha, é
que ainda me custa a crer que me tenham ocorrido estas ideias. Bem, são ideias
do Fr. Benedito, mas a verdade é que fazem para mim todo o sentido. É a reserva
que opõe à intervenção dele no contexto do meu diário: estou conferindo isto
tudo intimamente e a verdade é que me empolga. Mas resta-me também aquela
dúvida: atiram-se quase dois milénios duma linha de rumo, sem mais, às urtigas?
Não haverá por aqui mais nada? E o fundamento bíblico? Claro que não ignoro que
é viável encontrar na Bíblia, em todos os domínios, fundamentos para o sim,
para o não e para o talvez. Dois milénios (sem contar com os milénios
anteriores) de tentativas para cobrir tudo com o guarda-chuva do Livro não
podem hoje deixar muitas dúvidas a ninguém. O critério derradeiro sempre
acabará por ser a consciência própria auscultando o íntimo do coração. O
derradeiro reduto, porém, não abole os intermédios, ao contrário, há-de
requerê-los, senão de que o alimentaria?
O Fr. Benedito quase me
aturdiu:
- A Tradição, cuidado, é a de
Jesus e dos Apóstolos, tanto quanto logremos vislumbrá-la. Senão é tradição de
quê e de quem? Ora, todos somos pecadores, a Igreja institucional é pecadora
tanto quanto se afasta e trai e contradiz e atrasa e destrói a Igreja enquanto
Corpo Místico de Cristo. O pecado é uma tradição pessoal, colectiva,
comunitária, institucional. Teremos de velar para manter esta tradição? Ora, do
que estamos a falar é duma interminável e congruente tradição de pecado. Parece
que vivemos séculos incônscios dela. Hoje, que nela reparamos, que temos Papas
que inesperadamente se confrontam com este insidioso desvio e o repudiam, o
dever de todos e cada um, bem como das organizações e instituições, é o de
acabar com este estado de coisas. A todos os níveis: prático, teórico e legal.
- E não nos vão atirar com o
Novo Testamento à cara? – insisti.
- Com o Novo Testamento, não,
mas com um versículo: “Tudo o que ligares sobre a terra será ligado nos céus e
tudo o que desligares na terra será desligado nos céus”. Estava a evocá-lo, não
era?
- É verdade. Mas não ignoro a
exegese contemporânea de que o Fr. Ramiro nos informou no curso dele: aquilo é
um inciso tardio, acrescentado vários séculos depois ao texto original, até
noutra linguagem. Perde muito da respectiva autoridade... relativiza-a, pelo
menos, por causa do contexto: não pode ser atribuído a Jesus, que nunca deve
ter dito tal coisa. Mas não estará dentro do espírito do que Ele pretenderia?
- Ah, de certeza que está,
evidentemente. Só que o sentido, lido na conjuntura dele, é, em rigor, o
contrário do que historicamente lhe foi dado e se implantou no terreno. É
inacreditável.
- Espere aí, Fr. Benedito, que
esta é nova. O contrário?! Nem quero acreditar!
- Pois pode crer, o contrário.
Felizmente os nossos Papas deram com a mensagem original.
Fátima
– 15 de Junho de 2013
Fiquei um grande minuto a olhar
para o meu Mestre, estupefacto. As palavras, à primeira vista, eram para mim
tão claras, naquele versículo, que dei comigo a matutar em qual o outro sentido
que poderiam ter tido no princípio, ainda por cima ao invés do que história
além foi generalizado. Perante o meu mutismo, a olhá-lo, interdito, o Fr.
Benedito desatou a rir com gosto.
- Mas que cara, irmão
Ambrosino! Não é nada de espantar. Em quantos lados isto ocorreu! Recorda-se do
daimon socrático, nos textos de
Platão? Era o impulso íntimo, o excelente aguilhão que o impelia à busca
infatigável da verdade fugidia. Pois transformou-se no demónio, o princípio do
mal. Foi de extremo a extremo.
- Correcto – confirmei. – Mas
no versículo não vislumbro ponta de sentido contrário. Parece tão clarinho!
- Eu explico-lhe –
prontificou-se o me Mestre. – Nos primeiros três séculos da nossa era, até ao
édito do Imperador Constantino, em 313, que consagrou o cristianismo como religião
oficial do Império Romano, a conjuntura era muito diferente. O culto dominante
era o de Mitra e os cristãos eram pequenos grupúsculos familiares, comunidades
minoritárias em lenta expansão, à maneira do que lemos nos Actos dos Apóstolos
e nas epístolas de S. Paulo. Ora, com as comunicações limitadas de tais eras,
cada terra fazia a própria leitura e interpretação da Boa Nova, o Evangelho.
Isto redundava nas maiores divergências, quantas vezes contraditórias, em
teologias contrastantes, como não podia deixar de ser. Ocorreu logo entre os
próprios Apóstolos, com os que eram judeus da terra-mãe a pretenderem impor a
circuncisão e S. Paulo, judeu da diáspora, nascido em Tarso, na actual Turquia,
a defender que não, uma vez que para os pagãos convertidos aquilo não fazia
sentido nenhum, era uma violência que apenas tenderia a afastá-los duma escolha
de fé autêntica.
- Até aí, tudo bem – comentei.
– Onde principia a divergência de sentidos do versículo? Ainda não vi nada.
- Já lá chegamos, seu
impaciente! – brincou o meu Mestre. – Agora imagine que vivia numa pequena
comunidade, unida por laços muito familiares...
- Como esta aqui do convento? –
interrompi.
- Sim, mas num contexto em que
em redor ninguém crê no que vocês creriam, um tipo de segredo exaltante,
guardado bem protegido. Depois vêm visitar-vos outros, de longe, que comungam
no mesmo mistério. De repente, dão-se conta de que em vários aspectos eles não
andam entendendo o que vocês entendem da Boa Nova que vos une. Ora, isto
desune-vos uns dos outros. Mais ainda quando chegam notícias de que as
divergências se multiplicam à medida que se multiplicam os pequenos núcleos de
crentes, de terra para terra. Que fazer? Deixar ir-se desagregando tudo em
átomos cada vez mais separados? Numa família, quando as opiniões se dividem e
as contendas entre membros ameaçam desagregá-la, como é que lá fariam?
- Ora, a família era
tradicionalmente patriarcal e era o chefe do clã que arcaria com a
responsabilidade de dirimir os conflitos. Era o juiz de paz, com muitos mais
poderes até que os togados de agora.
- Exactamente. Agora vê quem
eram os responsáveis por reunir a comunidade de crentes - de repente passou a
tutear-me, como antigamente.
- Os presbíteros? É a
referência mais comum e mais primitiva, creio.
- E lembras-te do significado
original da palavra? Não tem nada a ver com padre nem sacerdote.
- Pois não, são os anciãos. Os
depositários da sabedoria, nas culturas antigas. Tinham fundamentalmente uma
autoridade moral, a maior e mais respeitada dentro do grupo, embora, por mor da
idade, estivessem retirados por norma da maior parte da vida activa, doravante
protagonizada pela geração seguinte, mais nova, com maior energia. Foi o que
estudei na Antropologia Cultural.
- E aprendeste muito bem –
ironizou o Fr, Benedito. – Isso não te diz nada, é?
- Por ora, não. Só que são os
presbíteros que reúnem e presidem à comunidade. Mas isto é dos textos, a
unidade dos fiéis é freima deles, - concluí – são os primeiros responsáveis por
congregá-los.
- Então repara: são velhos, não
têm as resistências de jovens nem adultos. Quando for cada cabeça, cada
sentença e desatarem todos a romper uns com os outros em cada comunidade, que
atitude julgas que os presbíteros, os anciãos, irão tomar?
- Aí é um sarilho, um grande
sarilho – ponderei. – Tentarão manter a calma, a ponderação...
- Até onde, se a conjuntura se
prolongar indefinidamente como de facto ocorreu por sistema, nos três primeiros
séculos? Até onde poderão os velhotes ir, aguentar?
- Pois, terão limites de limiar
baixo, tanto mais quanto mais idosos e desgastados da vida... – reflecti,
imaginando o quadro. – No geral não irão decerto conseguir resistir muito.
- E então que ocorre? –
persistiu o Fr.Benedito.
- Não harmonizam os conflitos e
as rupturas alastram, dividindo toda a gente – concluí, convicto.
- Ora aí tens. Era o triste
espectáculo quotidiano, cada vez mais em toda a parte. Durante dez gerações,
não foi um período curto.
- Mas isto não me leva a lado
nenhum na questão em análise. Eles têm a tarefa de congregar os fiéis mas, ao
invés, estes vão-se desagregando....
- Então não vês? Pelo que
conheces do comportamento dos indivíduos, quando os presbíteros vão ficando
todos esgotados, stressados, ameaçados no equilíbrio próprio e na vida (até na
sobrevivência) pelo rumo dos eventos, qual a atitude dominante que tomarão?
- Creio que tentarão, tanto
quanto puderem, resolver as querelas e, à medida que se virem a naufragar, a
não poder resistir mais, desistirão. É uma questão de sobrevivência, não? –
aventei, algo dubitativo.
- Sim, concordo, os melhores
irão por aí – aderiu o Fr. Benedito. – Mas intervirão todos tão abnegados, tão
perfeitos? É um grupo humano como qualquer outro...
- Ah, pois! – caí em mim. –
Evidentemente que houve presbíteros e presbíteros. Até temos o casal
oportunista nos Actos dos Apóstolos que tenta manipular a comunidade em
proveito próprio egoísta. Certo. Então, indo por este lado, diria que, no
geral, a tentação terá sido a humaníssima tendência de um indivíduo não se
meter em alhadas, não é? Se querem andar todos às turras e não me ligam nada,
que se desunhem, eu daí lavo as mãos. Pôncio Pilatos, nos autos de Jesus, é a
referência típica e a postura é uma tendência universal. Logo, tem de ter
havido muito presbítero que se demitiu e deixou o grupo ir por água abaixo,
permitindo desagregar-se a comunidade toda.
- Perfeito! – quase gritou o me
Mestre. – Agora vê-te numa destas aldeolas, um membro de base a verificar que
se irá deitar tudo a perder, ainda para mais a reparar que em todas as outras à
volta o pendor é o mesmo. Na tua aflição, que dirás ao teu presbítero, quando
se auto-demite por comodismo, por preguiça?
- Que diria? – interroguei-me,
meio distraído com o facto divertido de ver o Fr. Benedito tão concentrado
nisto que, desde há bocado, me vem tratando por tu sem dar por ela. – Talvez
eu... Muito aflito, porventura, insistiria: não vire as costas, não desista,
tem de manter o bom entendimento entre todos, esta foi a tarefa fundamental que
lhe entregaram! Já viu? Até onde o conseguir cumprimos o voto de Jesus e dos
crentes. Todos o queremos. Se falhar, se desistir, consumamos a destruição do
que Ele pretendeu construir. Estamos a condená-Lo à morte outra vez, agora
neste fogo lento da desunião e do ódio.
- Exactamente – rematou, muito
satisfeito, Fr. Benedito. – Na sua
resposta – notei que acalmou porque volta a tratar-me por você, é divertido, -
na sua resposta deu-me a razão porque o versículo que estamos a analisar é um
inciso tardio num texto mais primitivo, porque é que corresponde ao espírito do
Evangelho e, finalmente, diz qual o verdadeiro sentido dele, nos primórdios.
Tudo fica doravante claro.
- Na minha resposta?! –
admirei-me, confuso. – Tem de me explicar melhor porque eu, por ora, não vejo
ainda nada, além da atitude que eu tomaria em tal conjuntura.
Fátima – 16 de Junho de 2013
O meu Mestre recostou-se com um
ar muito feliz. Os olhos riam. É engraçado como isto também me põe bem-disposto.
Reajo mesmo em empatia com ele. Apurei os ouvidos, pronto para uma lição em que
eu é que tinha dado o mote. A biblioteca é uma sala de aula agora e o anão tem
o privilégio de ter explicador particular. Quem diria?
- Está bem, – retomou o Fr.
Benedito – principiemos pelo mais óbvio. Antes daquela conjuntura histórica
nunca tinha havido urgência nenhuma de apelar aos presbíteros para aguentarem,
persistirem, não se deixarem abater. Eis a razão porque o versículo é um inciso
tardio. O irmão reproduziu o que lá diria a real fonte dele: o sentir aflito
das comunidades.
- Não precisavam era de o pôr
na boca de Jesus – contrariei, um pouco arrojado. – No fundo, isto é uma
mentira. Uma mentira bíblica. Onde vai parar o texto sagrado, a inspiração
divina, hein? Grande falcatrua!
- Ah, seu herege danado! – riu
o meu Mestre, divertido. – Olhe que, se o não excomungam, ainda lhe aparece aí
algum padre espanhol da linha dura e espeta-lhe uma facada. Depois, olhe, não
tem seguranças que o protejam...
- Mas não é verdade? – insisti,
rindo com ele.
- Não é tão claro como pretende
– continuou. – Primeiro, afirmou-lhes Jesus: “Onde se reunirem dois em meu
nome, eu estarei no meio deles”. Logo, Ele vive na expectativa e no voto
comunitário, no apelo que faz a todos e cada um. Segundo, muitos deles, ao
orarem e meditarem, contactavam e falavam em concreto com Ele. Ressuscitado,
Jesus não é um ausente e manifesta-se, aparece, fala e empenha-se na aventura
de todos e cada um. Muitos convivem com Ele quotidianamente como com os outros
e as demais realidades da vida. Isto não ocorre apenas com S. Paulo. O encontro
místico não é uma raridade e onde a fé for mais intensa e autêntica, menos
barreiras se lhe opõem e mais indivíduos se lhe permeabilizam. Ora, para todos
estes, aquela admoestação que você faria é menos deles que de Jesus a quem
obedecem como o grande guia visível que permanentemente lhes dá a mão. O apelo,
portanto, mesmo na boca deles, é do mestre e não do discípulo (que se lhe
limita a ser fiel). E, em terceiro lugar, diga-me lá, se Jesus vivesse naquelas
comunidades, em conjuntura tão aflitiva, que é que diria, hein? O mesmo que o
irmão, com aquelas ou com outras palavras. Para o caso é indiferente, o sentido
é que conta, não é verdade?
Devo ter ficado de boca aberta porque
o que me ocorreu foi atirar-lhe:
- Tem a certeza de que não foi
advogado noutra incarnação qualquer?
Respondeu-me com uma
gargalhada:
- E devo ter sido tão mau que
agora me vejo obrigado a advogar apenas as boas causas. E, ainda por cima, as
boas causas perdidas. Miséria de sorte!
- Pronto, retiro o comentário.
Fui estúpido. Reparando bem, que importa o inciso ser mais ou menos tardio?
Metendo-nos na pele deles, entendemos logo.
- Pois, e o mesmo ocorre com a
conformidade com o espírito do Evangelho. Ou não? Há dúvidas, é?
- Não é bem... – hesitei eu,
sem encontrar as palavras. – Quer dizer, é aquele paralelismo terra-céu,
terra-céu. Parece quase um mecanicismo, um automatismo, não sei...
- Creio que entendi –
concentrou-se o Fr. Benedito. – Imagine-se na pele do místico que todos os
dias, na meditação (ou mesmo fora dela, ao deambular nas freimas de cotio) vê
fisicamente Jesus a acompanhar tudo o que ocorre em redor, empenhado com todos
no melhor rumo a imprimir mundo fora e comunidade além. Consegue?
- Julgo que sim. E então?
- Quando, de repente, no meio
duma disputa angustiada na reunião da comunidade, o presbítero logra
sensibilizar cada um dos partidos a aspectos em que pode concordar com o outro
e vice-versa, mais, quando cria um ambiente tal de acolhimento mútuo que,
inesperadamente, um terceiro vislumbra uma leitura que recupera e supera as
duas anteriores numa nova síntese em que tudo e todos finalmente se harmonizam,
que é que ocorre?
- Reconciliam-se todos –
retorqui.
- Em que estado de espírito? -
insistiu o meu Mestre.
- Bem, se a angústia era muita
e de há muito prolongada, é bem capaz de redundar em euforia, numa festa de
palmas, gritos, cânticos e danças. Eu por mim cuido que reagiria assim.
- E agora repare: o irmão é o
místico que viu Jesus e a corte celeste inteira permanentemente a tentar
inspirar este rumo e esta descoberta final. Como é que os vê agora, como se lhe
apresentam, em que estado, ante a vitória consumada?
- Infelizmente não sou místico,
não tenho visão nenhuma. O anão não trepa a tais alturas. Calculo, porém, que a
euforia do lado de lá bem capaz é de ser maior que a daqui. Ah, pois, entendi o
paralelo.
- Como é que pode não estar
consonante com o espírito do Evangelho? Não é outra coisa, é a realização dele.
- Correcto, não pode –
concordei, percorrendo toda a linha de pensamento.
- É a festa do retorno do filho
pródigo. Haverá mais alegria no céu por um pecador que se converta que por cem
justos – citou de cor Fr. Benedito.
De repente, porém, caí em mim.
Foi como uma explosão na minha cabeçorra desproporcionada de anão insatisfeito.
- Espere aí, a parte final do
versículo não condiz. E vem estragar a festa toda. E vai estragar o festim do
céu – quase gritei. – “O que desligares...”?!
- Rigorosamente, irmão
Ambrosino. Rigorosamente.
- Então não faz sentido nenhum!
– insisti, como se fora um místico traído, tanto tentara imbuir-me da hipótese.
- Pois não. Portanto, é que o
sentido tem de ser outro. E foi outro e é outro. – Fr. Benedito continuava muito plácido, como
quem goza a conjuntura.
- Outro?! Qual? Qual?
- O que o irmão Ambrosino lhe
deu – replicou, sorrindo, irónico.
- O que lhe dei?! Mas que
sentido é que lhe dei? – perdi o pé. – Eu nunca falei em desligar...
- Pois não, mas se o presbítero
não ligar entre si os que se desentendem dentro da comunidade, que é que
ocorre? Lembra-se que referiu que se frustra o plano de Jesus e Ele volta ali a
ser condenado à morte, lentamente.
- É verdade – confirmei. - E
então?
- Experimente trocar o termo
“desligar” por “não ligar”. Qualquer das traduções é correcta, são sinónimos,
no sentido fundamental. Agora releia o versículo com a nova tradução. Talvez aí
a luz dispare.
- “O que não ligares na terra
não será ligado nos céus.” Alto! Isto era o meu alerta ao presbítero
desistente. Se eu fora o tal místico, veria a festa adiada do lado de cá e do
lado do Além, com Jesus e todo o céu a terem de continuar a inspirar, porque a
tarefa foi traída e nunca mais lá chegávamos, à meta da comunhão de todos na
grande euforia de cá e do céu.
- Fez-se luz? – rematou o Fr.
Benedito.
- Claro! E de que maneira! Como
é possível termos pervertido uma mensagem tão óbvia, tão cristalina e tão
fértil transmudada naquilo que historicamente tem sido há tantos séculos
vivido? Mas que aberração!
- É simples. Venceram os
comodistas e os preguiçosos. E a leitura deles sempre lhes alimentou uma
fingida boa consciência. Podiam trair o céu doravante sem escrúpulos nem
culpabilizações. Traíam também os homens e a humanidade, claro, adiando-lhes a
festa final de cada etapa da aventura rumo ao Infinito, no tempo e na vida
interior. Mas, em contrapartida, alimentavam o próprio bem-estar nas pompas e
nas benesses, no gozo dos palácios e dos privilégios... O diabo é mesmo muito
traiçoeiro, irmão Ambrosino, é capaz de enganar até os melhores. E gente de boa
fé, quantos deles gente de boa fé! Decerto uma larga maioria, séculos fora.
Fátima
– 17 de Junho de 2013
Andei todo o dia a meditar na
longa fala transcrita que tive há dias com o meu Mestre. Devo ter parecido mais
ou menos embruxado, que os eventos de cotio foram correndo ao lado de mim,
quase sem eu dar por ela. Alguns irmãos, os que foram cruzando pela biblioteca,
perguntavam se eu andava bem, porque tinha um ar esquisito qualquer. Claro,
tinha a cabeça na lua, girava por ali a flutuar. Não me descosi, evidentemente.
Como lhes poderia explicar? Nem para mim sei contar direito, quanto mais...
O problema é que pressinto que
deixei escapar alguma coisa. E que era importante para o que ando a tentar
desvelar. O quê? Houve um momento em que eu teria gostado de estar mais com os
pés na terra: é que, de corrida rumo ao Algarve, o meu irmão Antonino
visitou-me, a meio da tarde, com a minha cunhada e o meu sobrinho, filho deles,
um miúdo pequeno, de quatro anos apenas. Gostei de os rever, de descobrir novas
de toda a família, dos sonhos e projectos do lar. Foi o melhor momento do dia.
Creio que mereciam que eu tivesse estado mais integralmente presente, mas
pronto, estive como consegui.
Não vislumbro porquê, após a
despedida ficou-me um vazio que ainda cuidei que era saudade. Mas não. É o
vácuo de algo que, na troca de ideias e novidades, se escapuliu sem deixar
rasto e que eu deveria ter agarrado. Se calhar, um pormenor irrelevante que
apenas pesaria no contexto deste meu projecto. Tenho andado a rever o diálogo
que tivemos no parlatório, a ver se logro repescar o que foi.
O meu irmão Antonino e a minha
cunhada são ambos professores, ela dos miúdos, ele dos mais velhos. Gostam daquilo,
estão onde deveriam andar, dois bons pedagogos, dedicados e com intuição. E o
meu sobrinho beneficia disto, claro. Tem um brilhante ambiente de família, em
meu entender. Não é por ser meu irmão, creio que sou mesmo imparcial, pelo que
me é dado descobrir de muitos outros casos.
Falámos do trabalho deles, do
fim do ano lectivo e das avaliações terminais. De vitórias e derrotas.
Contaram-me casos de pais que são de bradar aos céus, ou de irresponsáveis, ou
de descuidados, ou de tapadinhos de todo para qualquer intuição. É do que mais
gosto quando falo com eles. É um tipo de mapa ilustrado dos povoados por onde
vão andando. E depois também têm progenitores e alunos que são génios
ignorados, santos heróicos votados ao anonimato. Há mesmo de tudo na amálgama
de vilas e aldeias. Ambos vivem num campo de labor privilegiado para o
discernimento disto. Eles gostam dum retrato colorido ao vivo e eu fico
maravilhado. Quando nos encontramos, a maior parte do tempo gastamo-lo em
relatos fascinantes de casos atrás de casos, que uns chamam os outros e nós
nunca nos fatigamos.
Estou triando em revista todos
os de que me lembro e não, o que me escapou não anda aqui. Foi um dado
diferente. Saltou repentinamente uma faísca, vislumbrei uma paisagem qualquer
de sentido que de imediato se apagou, na sequela da conversa animada, e agora
não logro repescar.
Porém, tenho a impressão de que
era um pormenor importante para um ângulo qualquer de abordagem do tema que
trago em análise.
Vou dormir sobre o problema.
Nem sequer compreendo que ângulo ficou na sombra na longa reflexão com o meu
Mestre. O sono é bom conselheiro, talvez amanhã tudo acabe claro. Ou então,
apagado, porque, afinal, não quererá dizer nada...
Fátima
– 18 de Junho de 2013
Durante a missa cada niquice me
distraiu. Dei por mim completamente absorto na proa de barco, em betão armado,
que a frente da igreja conventual sugere. Nunca fui particularmente vulnerável
à arquitectura, as pedras tocam-me relativamente pouco, que é que me deu?
Parece que tudo servia para me afastar dali. E foi tal qual durante a
eucaristia inteira, menos ao correr da curta homilia de Fr. Ramiro. Ele, de
facto, tem um dom qualquer. Como é que me agarrou quando tudo me largava a
rédea? Ali há um carisma muito particular.
Falou da compaixão, o dever de
sermos compassivos, de tomarmos por padrão a dor que sofremos quando alguém de
quem gostamos foi atingido, de quanto nos dispomos a fazer por ele. “Não há
maior amigo que aquele que dá a vida pelo amigo” – foi o mote e o tema.
Mal findou, findou minha
concentração, bem contra vontade. Era como se estivera exaurido, eu que nem
sequer tenho freimas que me fatiguem. O meu íntimo andava a navegar não sei por
onde.
Repentinamente, ao entrarmos
para o claustro rumo ao refeitório para o pequeno-almoço, a faísca disparou e
então fui capaz de rever tudo. Ainda para mais, no âmbito da compaixão.
Evidentemente! Não há coincidências...
No contexto das festas de fim
de ano lectivo, o meu irmão Antonino, reparando no filho, o Nuno, muito
entretido a imitar uma corrida de carrinhos debaixo da mesa, cortou a sequência
do diálogo, um pouco repeso:
- Olha, quem não pôde ir à
festa de anos do primo foi ali ele – e apontou com o queixo o pequenito, para
lhe não chamar a atenção. – Fiz asneira mas creio que compus tudo a tempo.
- Então? Que ocorreu? –
interroguei, curioso.
- Descobrimos que a comida
empastada, tipo açorda, lhe provoca engulhos a ponto de vomitar – comentou a
minha cunhada.
- Bem. E daí?
- Olha, não sabíamos – retomou
o meu irmão. – Quando o vi a não comer e a puxar o vómito, ao almoço, quase na
hora de ir para a festa do primo, aquilo pareceu-me teatro para despachar e
chegar lá mais rápido. Então proibi-lhe a festa e pu-lo de castigo no quarto.
Claro que a minha mulher e a avó não gostaram nada do desfecho.
- Era demais, mesmo sem ainda
termos entendido donde a atitude vinha. Mas ele julgou que não e pronto, não o
desautorizámos – explicou a minha cunhada. – Só que, a meio da tarde, falei com
o Nuno – é o filho - e dei-me conta de que ele não estava entendendo nada de
nada. Então expliquei-o aqui ao meu marido para ele ver que rumo dar ao caso.
- Pois. Aí fui eu ao quarto
falar com o miúdo, para ele me explicar porque é que fizera aquilo. Pouco a
pouco descobri que ele, afinal, bem tentara comer, só que aquela pasta mole lhe
provocava engulhos de tal ordem que não conseguia dominar o vómito que lhe
induzia. Fiquei para morrer! Tinha feito asneira da grande. Fora castigar um
comportamento que ele não poderia de maneira nenhuma dominar
- Mandaste-o logo para a festa?
– perguntei.
- Já não dava, era tarde
demais. E depois ele não tinha comido ainda. Estava tão ressentido comigo que,
aliás, agora recusava comer. Outra comida, claro! – riu-se. – Senti-me
encurralado. Isto não podia ficar assim.
- Mas ele acabou por vir
lanchar e comeu bem – interrompeu a minha cunhada. – Não houve desgraça
nenhuma.
- Pois foi – retomou o
Antonino. – Tudo terminou bem mas foi preciso um reencontro entre nós, engraçado,
muito sugestivo. É que estávamos mesmo desencontrados.
- E então? - questionei, curioso.
- Como ele mantinha renitente a
recusa, vi que não me deixaria alternativa senão impor-me, obrigando-o. Ora,
era o que eu não queria de todo outra vez. Para asneira, já bastava tê-lo
obrigado e tão inadequadamente antes. Lembrei-me de pedir- lhe ajuda.
- Ajuda, como? – inquiri,
deveras interessado.
- Olha, - continuou o meu irmão
– pedi-lhe mesmo, convictamente: “ Não me obrigues a isto, é muito chato! Não
gosto nada desta conjuntura, isto custa-me, magoa... Que tristeza! Não me
obrigues a ter de impor-me, por favor!”
- E ele? – perguntei.
- Mudou radicalmente de
atitude. Ficou de olhos arregalados a olhar para mim. Creio que viu deveras
como aquilo tudo me estava a magoar, a doer. Limitou-se a concluir: “Está bem”.
Levantou-se e foi para a cozinha ter com a mãe para almoçar. Ao fim da tarde, todo
o ressentimento se evaporara como por encanto. Foi um momento lindo.
- Estavas mesmo em sofrimento,
era?
- E de que maneira! O que mais
me custava era vê-lo ferido, ainda pior, por culpa minha. Não era a minha
asneira sem intenção, era a dor, o esmagamento que vi nele. Aquilo feriu-me cá
dentro duma forma que nem te digo! Quando lhe pedi foi mesmo do fundo do
coração. E ele entendeu e correspondeu com a maior das naturalidades. Tenho ali
um grande homem, mano!
E o diálogo derivou para outros
casos e eventos. Evoquei-o agora porque intuí que a postura do meu irmão era
mesmo reveladora. Eles estão a conseguir educar o miúdo (como, aliás, os
alunos) sem recorrer a castigos físicos. Aqui, porém, foi um evento-limite e
houve uma pena de rejeição (mal aplicada, claro, mas os factos não eram
conhecidos – quem poderia adivinhar que uma comida normal dava engulhos e
provocava o vómito?).
Inesperadamente, a dúvida
brotou-me diante. Como é que um pontífice pode manter a unidade sem meio nenhum
de se impor? O extremismo é mau conselheiro e dá-me a impressão de que há uma
ressalva qualquer que deve, neste contexto, ser feita às abolições a que
cheguei. Todavia, manter qualquer pena que consume a desunião entre fiéis e
adie a festa é uma traição à terra e ao céu. Então como é que isto há-de ser
entendido?
Mais uma vez, os meus olhos são
míopes, tão anões de lonjura de entendimento como os meus pés de largura de
passada. Sou tapado, pronto, que hei-de fazer? Terei de socorrer-me do espelho
doutrem para nele projectar a profundidade de alcance que me está faltando.
Pus-me à espera dum dos três
meus mestres preferidos. Agarrei o primeiro que apareceu, o Fr. Marcos. Por
acaso (será?) o de mais finas análises, que é o que porventura aqui me vai ser
requerido.
Contei-lhe esta conversa e a
minha dúvida. Pôs-se imediatamente a alinhar distinções, como é apanágio dele.
Vou tentar transcrevê-las sem me perder. É que fazem todo o sentido, ao menos
para o minúsculo alcance do anão escrevedor.
- Em primeiro lugar, -
principiou ele – nada de confundir autoridade na família e na comunidade. Na
família há o itinerário do nascimento à adultez que tem de ser acompanhado. Na
comunidade, não, todas as faixas etárias coabitam e partilham em simultâneo.
- Mas os vínculos afectivos não
devem servir de referencial? Bem sei que não é o mesmo e que esfriam à medida
que os números devêm avassaladores. Hoje iremos num bilião e meio de cristãos.
Como falar de vínculos com semelhante coisa? – questionei, meio perdido.
- É outra área a não confundir.
Os afectos são dos perfis de proximidade, não das multidões, da mole anónima.
Os laços e as normas terão de adequar-se a cada caso e conjuntura. Irão ser
obrigatoriamente diferentes. Mas creio que a função de referencial do mais
íntimo para o mais distante e frio é aqui adequada. A questão é em que termos.
A relação de seu irmão com o filho é uma, a dum bispo com os respectivos
diocesanos é outra. Até já não é igual se for numa grande família e, mais, se é
de tradição africana em que todos se vêem co-responsáveis até qualquer coisa
como o sexto grau de afinidade. Aqui a afectividade conta menos que o sentido
de dever e a vontade de lhe corresponder solidariamente.
- Mas, então, –
contra-argumentei, dubitativo – para onde vai a função de referencial?
- É para estabelecer o ponto de
partida que alimenta a sequela inteira e tem de realimentá-la, quando se lhe
perde o rumo. Por baixo, como as brasas da fogueira, tem de acompanhar toda a
construção comunitária com o maior número viável de vivências de base íntimas
experimentadas por todos e cada um. A elas se reportarão sempre em cada degrau
da elaboração da manta social: é para servi-las, torná-las mais abundantes,
mais gratificantes e fecundas que tudo deve ser ordenado.
- Mas isto desviou-nos do ponto
– alertei eu. - Varremos as penas todas, da excomunhão, a mais violenta, até à
admoestação, a mais branda, ou devemos admitir que alguma devemos manter, como
o castigo do meu irmão ao filho que levou a um final a reconstruir a comunhão
tão bonito?
- Varremos tudo. Para podermos
manter tudo. Claro.
- Está a gozar comigo, Fr.
Marcos. Agora é que eu não estou entendendo nada. Nem é exequível...
- É exequível, é – retorquiu
ele, divertido. – É que a questão está mal colocada.
- Como mal colocada?! –
admirei-me, recordando todo o diálogo de há dias com o Fr, Benedito.
- Repare bem, irmão Ambrosino.
Ninguém tem o direito (e muito menos o dever) de impedir o projecto de Deus de
consumar a comunhão entre os homens, a principiar nos fiéis. Certo?
- Certo.
- Então temos de abolir das
leis, regulamentos, das práticas e tradições tudo aquilo que pune. Senão, é a
derrota de Jesus história além. Nenhum pontífice pode arrogar-se tal direito e
o dever dele é o de ter de garantir o contrário, a todo o custo: a união dos
corações entre todos, o bom entendimento universal, em todo o tempo e lugar.
Também está certo?
- Claro – concordei. – Era o
que eu dizia. Portanto...
- ...Portanto, – interrompeu-me
o Fr. Marcos – como é preciso a todo o custo garantir a unidade que redunde no
“vede como eles se amam”, dito pelo mundo em redor, então todo o pontífice deve
empregar os meios capazes de converter os corações, sejam eles quais forem. E,
embora se antolhe absurdo, perante a experiência histórica repetida até à
saciedade, pode ocorrer um caso, uma conjuntura em que o que o atinge seja o
uso de qualquer daquelas penas abolidas do campo dos direitos-deveres. Faço-me entender?
- Tira com uma mão o que dá com
a outra? A Igreja tem sido useira e vezeira em tal modelo. É uma prática
asquerosa! – retorqui, convicto.
- De acordo – reiterou o Fr.
Marcos. – Se for isso. Mas não, é outra via que apenas aparentemente repõe o que
retirou. Só exteriormente podem ser iguais, interiormente, na vivência que as
anima, contradizem-se.
- Como, então? – refilei. –
Troque-mo por miúdos, que o não vejo.
- É simples. A derradeira
instância é esta: o dever de gerar permanentemente a unidade dos fiéis na
unidade da fé. Urge utilizar os meios requeridos para tal, em cada caso
concreto. Se, porventura (hipótese que jamais ocorreu até hoje, em milénios de
história), se demonstrar que uma pena qualquer leva alguém, uma tendência, uma
corrente doutrinária (é quase inimaginável, mas que sabemos nós dos abismos do
coração?), que a pena o leva a reconverter-se interiormente, deveras, a uma
unidade perdida, pois bem, é por aí que se deverá ir. O dever de recriar
perenemente a comunhão sobrepuja tudo. Os meios são os que garantirem em cada
qual a autenticidade do itinerário, sejam lá quais forem. Apenas em concreto se
poderá escolher e decidir. Não há leis, é uma escolha ética. E que isto só é sustentável
enquanto lograr aquele fito. Se o não logra ou provoca uma qualquer mistificação,
um simulacro, está condenado e tem de ser banido in limine. Sem contemplações ou
cai no que vemos história além.
- Mas como, se apenas a
posteriori podemos verificar o efeito? – reniti.
- Exactamente: se o efeito for
a unidade real, não simulada nem forçada, era o caminho. Se não, tem de ser de
imediato banido e trocado por outro rumo, infatigavelmente, até se atingir o
fito almejado, a festa da comunhão na terra e nos céus. Creio que está tudo
conciliado. Fiz-me entender?
- Correcto. Tenho muito em que
pensar, Fr. Marcos, muito.
Despediu-se com uma gargalhada
a ecoar no claustro. As andorinhas fugiram assustadas. E eu escapuli-me, pouco
menos confundido do que elas.
Fátima
– 19 de Junho de 2013
Vivi hoje o dia inteiro
obumbrado pelos efeitos práticos do diálogo com o Fr. Marcos. É que, se aquilo
for acolhido, muita prática tem de mudar. Curiosamente, agora não entendo
porque ainda não ocorreu. É que, se o Papa levantou a condenação de Galileu,
que é um marco de referência, um protótipo, então como pode o resto manter-se
por igual? Não faz sentido, uma vez que é o mesmo. Foram milhares os casos,
muito mais em Espanha (e em Itália) que aqui ou noutros países. Todos os
condenados pela Inquisição terão de ser reabilitados, todos os mortos pelas
Cruzadas merecem o nosso acto de contrição e pedido de perdão. Ou não é?
Por mais que analise, chego
inevitavelmente à mesma conclusão: o acto do Papa, ao anular o caso-padrão,
anulou nele todos os demais, implicitamente. É apenas tirar a conclusão e
explicitá-la. O erro não esteve nas vítimas (por mais pecadores que fossem,
como todos somos), mas nos perseguidores (que na atitude tomada falharam
redondamente, por mais santos que tenham logrado ser nos demais domínios da
espiritualidade e da vida).
Claro que este arrepiar caminho
não lhes adianta nada, às vítimas dos desvios de antanho (desvio, quer dizer, o
pecado ou o crime a coberto ou, pior, imposto por lei). Já morreram e não iremos
com isto restituir-lhes a vida que por nossa culpa lhes foi roubada ou
infernizada. O problema é connosco. Como é que somos Igreja? Continuando a
julgar que o caso foi arrumado, não há mais nada a fazer? Como doravante já não
há mais Inquisição nem Cruzadas, findaram as vítimas? Talvez, mas continua aqui
uma fenda em aberto.
Vou ver se me consigo explicar
bem. É que a unidade com elas não só foi rompida definitivamente então, como
agora ainda não foi refeita. O nosso arrependimento colectivo, institucional,
se e quando for autêntico, quando for deveras uma conversão interior
colectivamente assumida tem de repor as pontes que foram quebradas, refazer com
eles a comunidade, a união de nosso lado com todos. No que desta banda depende,
temos de recuperar a festa da comunhão no céu.
É que eles continuam vivos no
Além, a aguardar que lhes estendamos o arco da ponte. Apenas chegando aqui
cumprimos a tarefa pontifícia até ao fim, no âmbito do tempo, da Igreja
terrestre. Eles poderão recusar a mão estendida, mas isto é o outro lado da
união, não é o nosso. Nunca poderão é cumprir esta metade do encontro. E ele,
deste lado, continua indefinidamente recusado, na conjuntura ambígua em que
deixamos de perseguir Galileu e lhe pedimos perdão do pecado cometido, mas,
quanto aos demais, nem uma palavra. Foram excluídos da comunhão, de nossa parte
e por nós assim continuarão para a eternidade. Nem que eles pretendam unir-se e
conjugar-se connosco em todas as nossas utopias mais elevadas. Se calhar
pretendem-no todos e nós aqui a continuarmos olimpicamente a repudiá-los.
Podemos estar a ser mesmo parvos de todo. Ainda para mais, a frustrar todo o
desígnio de Jesus, todo o projecto que nos propõe.
Se calhar estou a ver isto tudo
mal, mas, francamente, não vislumbro nada que me esteja a escapar. Aliás, o
comportamento da Igreja-instituição, outrora como hoje, no que a este domínio
particular se reporta, é pouco menos que de descrente na vida eterna. Muitos
dos protagonistas daquele passado negro deviam ser ateus completos sob uma capa
fingida de crentes muito espiritualistas. Isto atingiu todos os patamares, da
base ao topo, Muitos Papas foram mesmo criminosos impunes (um deles até mandou
assassinar o rival dele na eleição, rival que o tinha vencido e renunciado a
ser Papa, cedendo-lhe o lugar: o agradecimento foi o punhal do celerado – é exemplar
do nível de degradação a que tudo pode descer se não vigiarmos por preservar o
mundo espiritual e o rumo correspondente). E é porque não crêem na vida eterna
nem na comunhão de vivos e defuntos (que estão vivos doutra forma e noutra
dimensão, a da interioridade) que dão tudo por arrumado com as excomunhões,
perseguições e penas capitais. Como não crêem em mais nada, não vêem que o
problema se mantém em aberto, longe de resolvido, para a eternidade, até que
alguém caia em si e retome o diálogo, estenda a mão, reconstrua a ponte,
religue a comunhão com quem estiver do lado de lá, à espera para reatar a fusão
do corpo místico de Cristo, a comunhão com tudo o que há de divino em todos e
cada um de nós, do lado de cá e do lado de lá da vida.
Bem, a verdade é que, aqui
chegado, me vejo um pouco atordoado com o que o meu lápis vai discorrendo. É
que se me escancaram portais ainda muito mais vastos e eu até tremo a cuidar se
não estarei a alucinar. Preciso de parar um pouco, pôr-me a orar e meditar
calmamente, a ver se o que vislumbro se me não varre do chão como lixo que me
veio agarrado às sandálias de irmão leigo, anão que anda para aqui a voar com
não sei quantas asas emprestadas. Amanhã verei melhor.
Fátima
– 20 de Junho de 2013
De certeza que foi um sonho, só
pode ter sido. Levantei-me para matinas de tal maneira convicto de que tinha de
ir ajudar na cozinha que até o matineiro ignorei. Aliás, dirigia-ma para a copa
espontaneamente quando, de repente, reparei que todos iam direitos à igreja.
Apenas então caí em mim e me integrei no mudo e calmo cortejo dos irmãos. O
mais divertido é que era o matinário indigitado para o ofício de hoje. O Fr.
Benedito, de vez em quando, propõe-me surpresas destas. Como ando a participar
regularmente em tudo, então ele julga que nenhum dom devemos excluir. Atribuem
uma qualidade à minha voz que eu ignoro se tenho, um segundo tenor assim-assim,
treinei num coro da capela universitária, em Coimbra, durante o meu curso.
Consigo modular mais ou menos o tom, dar-lhe volume e ressonância e, claro,
adoro cantar, vem-me cá do fundo e sinto-me liberto. Acho que não tenho nenhum
timbre especial nem harmónicos de jeito, não é uma voz rica. Mas pronto, a
comunidade gosta (ou faz por isto, creio eu). Por mim não regateio, disponível
para todo o préstimo. Querem-me a cantar? Eu canto. E fico-lhes deveras grato
porque me dá muito gozo. É estranho, é um momento em que nunca me sinto anão. Parece
que cresço, cresço, cresço, à medida que a voz se me ergue e reboa pelo espaço,
batendo à porta do Infinito. É uma coisa do género que eu vivo quando canto,
não logro explicar melhor.
E hoje lá matinei, ao lado do
irmão cozinheiro (claro, não ia juntar-me a outro, após o que me ocorreu) e
através, evidentemente, do matineiro dele. Podia ter corrido à cela pelo meu
mas na confusão daquele baralhamento matinal nem tal me ocorreria. Pronto,
estava destinado, eu vejo que estava, para quê ignorar o discreto empurrão que
do íntimo nos impele? Deus, Jesus e quantos estão com eles não dormem, não é?
Nós é que nos distraímos. Em geral nem reparamos, mas eles não param de
segredar-nos ao ouvido, alegres e persistentes. Quando medito nisto, é mesmo
divertido. Hoje foi praticamente uma partida que me pregaram. Devem ter-se
escangalhado de riso ao ver o anão feito barata tonta, para um lado e para o
outro, sem ver onde pousar. Até a mim me dá vontade de rir.
Fui para a cozinha,
evidentemente, descascar batatas e ripar couves. É o melhor caldo da minha
vida, evoca-me a infância inteira, os bocados de couve da horta e batata da
jeira a boiar na água azeitada e grossa, o cibo do campo de meu lar aldeão, de
gente pobre a fazer denodada pela vida, ombro a ombro com os mais. Hoje calhou
de ser aquela receita de reconfortante memória, ao menos para mim. Mais uma
coincidência, não é verdade? Não há dúvida, não há coincidências.
O irmão cozinheiro é um idoso
bonacheirão, sempre pronto para uma laracha a propósito. É a alegria de viver
incarnada. Julgava que teria sido algum jovem perdido nas berças, com uma
quarta classe mal amanhada, de natural bom, equilibrado, e que topara com esta
vocação por mero acaso, como quem tropeça numa pedra nalgum carreiro perdido,
matas fora. Afinal, não fora assim. Naqueles tempos também andara por um curso
superior que não findou, que isto é que o atraía, a clausura dum convento.
Largou tudo e para aqui se mandou, com o dote culinário dele e sabedoria de
vida.
De repente dei comigo a
desabafar dos meus assombros e temores, nem sei bem como. Ele é um homem que
sabe ouvir e convida à confidência. Hoje era quem me apetecia, não eram os
mestres. Hoje era aquilo que eu via que me estava a atemorizar, não a minha
crónica cegueira. Precisava era dum bom cozinhado de tudo isto, que ingredientes
já eu tinha de sobra.
- Sabe, irmão, eu fico mesmo
baralhado – confessei, a meio do diálogo – porque me parece demais. Mas, por
outro lado, vejo que não. O encontro ecuménico, pelo menos de nossa parte, não
é encontro nenhum. Isto faz algum sentido?
- Pois, se calhar, faz. Sabe
qual foi o meu primeiro contacto com a nossa Ordem? Quando andei pela
Engenharia, inscrevi-me num curso de verão da Universidade da Paz que naquele
tempo funcionava em Tihange-les-Huy, nas margens do Mosa, na Bélgica.
- Nunca ouvi falar nela. Era
uma instituição comunista? Pelo nome...
- Não, não, pelo contrário. Nem
imagina quem era o fundador e líder daquilo. Já ouviu falar em Dominique Pire?
- Pelo nome, que me lembre,
nunca. É homem ou mulher?
- Homem. A Universidade era
dele, uma instituição privada. Continua a não lhe dizer nada? – E, ante a minha
negativa: - Olhe, era Prémio Nobel da Paz, o mais novo a quem até então Oslo o
tinha atribuído.
- Pronto, tudo bem, e daí?
Desculpe lá a minha ignorância... – aguilhoei-o.
- Imagina o que ele era fora da
universidade e das freimas que ela lha dava? – insistiu o irmão cozinheiro, com
o olhinho vivo de quem põe uma adivinha.
- Eu bem gostaria mas estou
inteiramente a zero. Ainda por cima, aquele Prémio Nobel é atribuído a
entidades oriundas das mais variadas áreas. Agora até à União Europeia, não é?
- É verdade, irmão Ambrosino,
nunca lá chegaria. Dominique Pire era um monge dominicano. Um monge da nossa
Ordem, veja lá.
- Era? Então...
- Pois, faleceu poucos anos
depois, um homem de meia-idade ainda, andava eu, entretanto, como oficial da
Intendência, na guerra de Angola. Foi lá que me informaram.
- É muito estranho. Se
pertencia à nossa comunidade, como é que eu nunca ouvi falar dele? Ainda para
mais, com um prémio daqueles, foi de certeza uma voz que retumbou pelo mundo
além. Foi ouvido fora e silenciado dentro? Não acredito!
- Nem eu – riu ele
gostosamente. – aqui não ligamos ao culto da personalidade, a não ser aos
santos canonizados.
- Então ele acabou esquecido...
E é assim?
- Claro, evidentemente, nem ele
aceitaria outro tratamento.
- Está mesmo a gozar comigo,
não é?
- Não estou, não! – e ria,
saboreando o meu tacteio hesitante.
- Vá lá, irmão, descosa-se!
Afinal, porque é que o trouxe à baila?
- Sabe qual era o tema da
Universidade? O diálogo fraterno: características, objectivos e meios. Cursos
frequentados por universitários de meio mundo. Só no meu, dezoito países, e foi
dos de menor leque. Chegava a haver vinte e cinco e mais.
- Mas um empreendimento que tal
teve de ter muito impacto. Ficou tudo perdido no passado? Morreu o bicho.
acabou a peçonha, salvo seja, como o povo diz? Conte lá! Olhe que o tema era
tramado, aquilo é uma bomba.
- Nem imagina quanto! E como
ele conseguia ser eficaz.
- Vá, explique, não se faça
rogado!
- Olhe, irmão, hoje o mundo tem
o Presidente Obama, um mulato, à frente da maior potência mundial. Nem imaginam
que, na sombra, durante o meu curso na Universidade da Paz, eu, os meus colegas
e todas as iniciativas instituídas por Dominique Pire tivemos de parar uns dias
para resolver, ajudar a ultrapassar a iminência duma guerra civil nos Estados
Unidos, a desencadear pelos Black Muslisms. Fizeram um ultimato, desesperados
com o assassinato do seu líder Malcolm X, de Martin Luther King e muitos outros
anónimos, vítimas dum racismo exacerbado. Era por poucos dias. Estavam armados
e eram uns milhões de negros e mestiços, mormente nos Estados sulistas.
- E foram vocês que os
pararam?!
- Foi a nós que fizeram o
ultimato. Duas semanas para terem eco bastante, na comunicação mundial, os
direitos civis pelos quais lutavam, em lugar da cobertura e branqueamento dos
crimes, mormente dos assassínios do racismo, que então andavam sistematicamente
a fazer.
- Nunca ouvi falar em tal
episódio. Mas como é que souberam da guerra iminente? Foi um evento duma
tremenda gravidade.
- Pois foi, E soubemo-lo porque
nos chegou da América o escritor de Na
Pele dum Negro, John Griffin (era um best-seller mundial naqueles anos),
aflito, porque eles o tinham prevenido de que iam desencadear uma guerra civil
e ele é que negociara com os dirigentes do movimento aquela dilação temporal,
convicto de que Dominique Pire iria atingir resultados que os convenceriam a
parar a violência e a não desistir de continuar por meios pacíficos o combate
pela justeza da causa negras, dos direitos civis para todos.
- E conseguiram-no? Pelos
vistos conseguiram-no!
- Pois conseguimos. E muito
mais do que poderíamos prever ou até os mentores dos Black Muslisms. Todos os
canais da Universidade, toda a rede mundial de iniciativas, tudo ficou entupido
de mensagens solidárias com a luta pacífica pelos direitos civis na América, toda
a comunicação social trouxe para as primeiras páginas este combate e respectiva
justeza. A cobertura dos criminosos caiu por terra.
- Eh, irmão, mas que vitória!
- Pois, mas a maior é que
recuou tanto o racismo multissecular, inveterado e acéfalo que hoje temos Obama
como Presidente e reconfirmado em segunda eleição. Ninguém o imaginaria há uma
geração atrás. Dominique Pire deve andar aos pulos, pelo céu fora, numa festa
pegada. O que o diálogo a sério pode fazer! – e rematou com uma gargalhada.
- Mas aqui ninguém o sabe,
nunca ouvi falar de tal coisa. Não faz sentido a campanha de silêncio –
insisti, muito convicto.
- Qual campanha de silêncio?!
Não lhe acabei de contar tudo? Ora essa, não me diga que não ouviu nada – e
ria, galhofeiro.
- Não é isso, é que a
comunidade, se calhar, também gostaria de ouvi-lo. Assim, fica aqui pela
cozinha... Não é uma perda? E, se era tão eficaz, tem de se lhe retomar o rumo.
Precisamos é de caminhos.
- E quem lhe diz que os não
temos ou que os não trilhamos? Oh homem de pouca fé! – ironizou ele, muito
divertido.
- Mas onde? Como? – de facto eu
estava de novo sem enxergar nada.
- Diga-me lá, irmão, que é que
deveras importa: a mensagem ou o mensageiro, o Evangelho ou o missionário?
- Os dois, os dois, ora essa! –
afirmei, muito senhor de mim.
- Já ouviu um missionário a
sério? Jesus a sério? Hein? – e o olhinho brilhava, brincalhão.
- Pronto, para eles, não, é
verdade. A boa Nova é que importa, eles são instrumentos descartáveis. E,
quanto mais autênticos, mais assim se lêem. Ganhou, irmão, ganhou. E então?
- Então, repare. Na nossa Ordem
algum dos mestres foge ao diálogo, à tentativa de diálogo mais profundo, mais
autêntico, mais exigente de que é capaz? Já descobriu alguma perspectiva,
alguma abordagem, alguma atitude em que eles não tentem encontrar uma qualquer
ponta de sentido, para aí tentarem a conciliação com ela? Eu nunca vi. E não é apenas
nesta comunidade. Os grandes nomes da teologia mundial da nossa congregação
pautam-se pelo mesmo vector. É ou não é?
- De acordo. Isto é Dominique
Pire?
- Ou isto é Dominique Pire ou
Dominique Pire é isto: ignoro quem bebeu em quem, se caminham de mãos dadas, se
autonomamente o descobriram... Pouco importa nem a eles lhes importa,
importante é o caminho. E é o que mundialmente nos esforçamos por palmilhar. Eu
inclusive, seu humilde cozinheiro – rematou, bem-humorado.
Parei, com a noção de ter perdido
o fio da meada. A que propósito vinha isto tudo? Ele leu-me o pensamento.
- Chamei o caso à pedra porque
colocou a dúvida acerca do ecumenismo. Duvidou se o da nossa Igreja era algum
diálogo de jeito. E se calhar não é, creio eu também. Com o barulho dos tachos
e das panelas eu não consigo ouvir bem as intervenções, ainda por cima, com a
idade, a surdez aumenta gradualmente – rematou a rir.
- Já agora, como é que
Dominique Pire, no tal curso, punha a questão? Ou não dá para resumir? –
perguntei, curioso por entender que é que requer um diálogo autêntico, na visão
dum perito com impacto mundial.
- Dá, dá. Olhe, o ponto de
partida é lograr colocar-se entre parêntesis para ser capaz de ouvir o outro.
Depois, ouvir é tentar entendê-lo do ponto de vista dele, não do meu. Em
terceiro lugar, é valorizar e acolher tudo o que nele descobrir que faça
igualmente sentido para mim. Finalmente, isto, feito de ambos os lados, deixa
os dois no fim mais ricos (com as achegas recolhidas), mais próximos (com os
aspectos novos doravante em comum partilhados), mais unidos (com a mútua
consideração aumentada pelo que o outro, afinal, descobriu e aceitou partilhar
comigo, enriquecendo-me), o que redunda em laços de paz (não se guerreia
aqueles por quem temos consideração e que nos servem de bom grado,
enriquecendo-nos). Não esqueça que Dominique Pire pretendia dar uma achega à
paz mundial, ele vinha das tragédias da Grande Guerra.
- Mas isso, na prática...
- Na prática ele propunha uma
metodologia que, mais ou menos manquejando, a humanidade tenta cumprir. O lema
era: dar o pão para colher a paz. Juntarem-se as potências para findar com a
fome no mundo que, ao cooperarem nisto, desenvolveriam mútuo respeito e
admiração. Aí, quebrar a paz seria impossível. Uma utopia generosa. Mas para lá
vai caminhando a humanidade, se calhar tropegamente, mas vai indo. Na ajuda
aquando das tragédias humanitárias, na conciliação de conflitos, na acalmia e
resolução de guerras...
- Talvez, talvez... – hesitei,
retomando o meu fio de pensamento. – Por acaso não estaremos de novo numa
conjuntura em que de dentro da Igreja se apurou um fermento para o mundo e
depois, entre nós, a fornada não levedou? É que é o que me parece, Deus me
perdoe. Devo estar mesmo cego de todo.
- Irmão Ambrosino, vamos por
partes. É o ecumenismo que lhe está causando engulhos? Qual é a falha?
- Então, a Igreja excomungou-os
a todos, aos outros cristãos, e anatematizou todas as doutrinas. Isto deu cabo
de quaisquer pontes, até hoje. Que é que eu ponho entre parêntesis para ouvir
os outros? Já ficou tudo condenado de vez, as pessoas e as ideias...
Definitivamente. Como é que pode haver um ponto de partida?
- Não está mesmo a ver? – e as
bochechas tremiam-lhe de riso. – Oh, irmão, então?... É levantar todas as
excomunhões e abolir todos os anátemas, claro! E pedir-lhes perdão pelo caminho
desviado e por quantas perdas de todo o tipo acarretou. Depois, agora sim,
desencadear o diálogo, infatigavelmente, até à comunhão e à paz universal. Até
à grande utopia!
Fátima
– 21 de Junho de 2013
- Não é preciso levantar nada,
à partida, irmão Ambrosino, para avançar. Temos de ir contra ventos e marés,
mesmo se aquilo não ocorrer. Até para lhe abrir caminho, amadurecer o terreno,
está a ver?
O Fr. Ramiro fixa-me, atento. E
continuou, meio a brincar:
- Já viu algum de nós deixar-se
tolher por tais preconceitos, na teoria ou na prática? Estamo-nos nas tintas
para excomunhões e anátemas, quem é que liga a tanta asneira? Foram tudo
obscurantismos de antanho. Repare lá se nos cursos, por exemplo, alguém
subalternizou o bispo Robinson, de Um
Deus Diferente, perante Jean Cardonnel, de Deus Morreu em Jesus Cristo, aquele anglicano, este católico, ou se
Hans Küng predomina sobre Moltmann, e assim por diante. Certamente não
encontrou nada disto.
- Também, Fr. Ramiro, vai-me
buscar apenas os perseguidos ou marginalizados...
- Mas justamente: uns da casa,
outros de fora. Todos vítimas do mesmo caminho torto rumo ao precipício, todos
a alertar para o desvio e a apanharem pela cabeça abaixo por o fazerem. E entre
nós, todavia, acolhidos em perfeita igualdade. Exactamente como os que não
levantam ondas. Nada de discriminações, ouvimos todos e de todos tentamos
acolher tudo o que, no íntimo de cada um e na comunhão comunitária, na Igreja,
fizer, afinal, sentido. Não é isto que procura?
- Claro, pois. Está tudo bem,
afinal. Eu é que sou um cabeça-dura...
- Ora, irmão Ambrosino, qual
bem, qual carapuça! Está mas é tudo mal!
- Pronto, tinha que se pôr a
fazer pouco do anão! Oh, Fr. Ramiro!...
- Pelo contrário, é a fazer
muito, mesmo muito, deste grande anão. Não vou tratá-lo com paninhos quentes,
tem arcaboiço de gigante, aguenta tudo e mais que fora.
- Goze, goze...
- Estou a falar muito a sério,
acredite.
- Então como é que pode estar
tudo bem e tudo mal ao mesmo tempo? Isto é uma lógica nova, Fr. Ramiro?
- Oh, agora goza comigo, é?
Caminhávamos pelo quintal fora
(pelo que nos vai restando dele) ao lado da verdura do batatal e do canteiro de
alfaces, buscando a sombra fresca das nespereiras, já quase sem frutos, mas
cuja copa farfalhuda não há sol que penetre. Quedei-me em silêncio, a aguardar
mais explicações. A tarde calmosa era propícia a sedimentar ideias. O Fr.
Ramiro era um dos bons para isto.
- Mesmo entre nós, cuidado! –
retomou, ponderando. - Não há nada pior que o triunfalismo. É o irmão directo
do dogmatismo e alimentam-se um ao outro pela ladeira abaixo das perdas até à
queda definitiva no abismo. Aqui nós vamos tentando fazer o melhor, todavia a
tentação do sectarismo é permanente e a da intolerância também. A vigilância
para evitar constantemente os dois pendores não pode nunca afrouxar, sob pena
de errarmos para um lado ou para o outro. E, mesmo logrando o equilíbrio,
jamais descobriremos definitivamente se é o mais correcto, o mais acertado.
Temos de abandonar-nos confiantes à misericórdia do Espírito, indefinidamente
atentos aos sinais dele, para logo mudar de rumo, quando e onde o requerer.
- Entendi, Fr. Ramiro. Mas com
todas estas cautelas e reservas e atitudes interiores, poderia afirmar que
vamos indo bem, não é?
- Sim, vamos tentando, vamos
tentando, sem afrouxar, atentos e humildes...
- É correcto, o Infinito está
sempre infinitamente distante – resumi.
- Mas isto é só, irmão
Ambrosino, um dos lados da moeda – continuou.
- Qual é o outro?
- O que na Igreja repudia tudo
isto. Desde logo aqueles para quem o que está está muito bem e o que esteve
ainda esteve melhor. Que este mundo, para eles, anda perdido. E, se o Papa não
alinha, mata-se o Papa. Pobre João Paulo II, não é? E ele ainda escapou, já
quanto ao primeiro do nome, não sei, há muito quem julgue que nele acertaram
mesmo e foi para a cova mal deu vislumbres de ir mudar.
- Acredita em tal enormidade?
- Não, duvido apenas. Mas
duvido muito. Com o Banco do Vaticano dominado pela máfia, que era de esperar?
Lembre só quantos suicídios ocorreram depois, em cadeia, de altos quadros,
quantos autos em tribunal, quantas prisões. Ora, nisto é sempre a ponta do
icebergue que apanhamos, o maior desaparece na escuridão das profundezas.
Portanto, pobre João Paulo I, que Deus o guarde, já que nós muito provavelmente
não o soubemos guardar, não é?
- Bem, mas, com tal gente, só
cadeia! Claro, com o perdão perenemente disponível para o arrependimento que
eventualmente advenha. Para sermos coerentes e fiéis até ao fim na demanda da
união. Como fez João Paulo II ao Ali Agka.
- Ah, tem os binóculos bem
afinados, irmão Ambrosino. Parabéns! – sorriu, bem disposto.
- Já quanto aos mais o irmão
não diria o mesmo. Como é, Fr. Ramiro?
- Aí é que o caso é deveras
bicudo. Vai ver que ainda iremos dar com Roma a penitenciar-se do passado, duma
história desviada da autêntica espiritualidade repetidamente, séculos e
séculos, a repudiar excomunhões e anátemas sobre milhões e milhões de mortos, a
orar para o céu nos abrir as portas e todos partilharmos da cósmica festa da
comunhão em Deus... e depois manter-se
tal e qual com os vivos de hoje.
- Ai não acredito! Se fizer uma
coisa...
- ...Fará a outra? Era bom,
era! Mas não seja ingénuo. Então já não andamos todos no movimento ecuménico? O
próprio Papa Francisco é um entusiasta. Logo, repare, aqui as agulhas já foram
todas acertadas, o comboio apenas tem de continuar, que vai no bom caminho.
- E não vai?!
- Lá ir, vai – continuou o Fr.
Ramiro. – Mas há montes de pedras nos carris. Não se retiram? Prezamo-las
tanto, já que vêm de tão veneráveis avoengos, que nem se lhes pode tocar?
- Nós também aqui não as
podemos retirar e, contudo, tentamos a abertura completa a todos, não é? Não a
conseguimos, é isso?
- Nós, com a nossa minúscula
vagoneta, apenas logramos contornar os pedregulhos da linha. É alguma coisa já,
mas quantas perdas de tempo, quantas hesitações, quanto meio caminho andado
quando podia e devia ser caminho inteiro! Isto, para já não falar das suspeitas
e reservas que nos caem constantemente em cima. Já não falo das perseguições e
castigos, que então teríamos de constatar que os travões mantêm o comboio
praticamente parado no apeadeiro de partida. No fundo, como estamos, a máquina arrancou
e as carruagens deram um estremeção. Mas ninguém logrou partir do cais de
largada. E há tanta viagem a desencadear, tanta paisagem nova a descobrir!
Tanta! E nós aqui encegueirados pelo culto dos pedregulhos ancestrais. É uma
pena. Quanto desperdício!
- Eu cá não entendo nada e da
Cúria Romana, muito menos. Mas com um Papa entusiasta do ecumenismo não é de
esperar a muda? Julga que ele fica satisfeito com o estremeção das carruagens
da igreja para tudo ficar, ao fim, praticamente na mesma? A paralisia também
não é tanta...
- Olhe, irmão Ambrosino, não
duvido de que o Papa Francisco incitará ao ecumenismo. Tem-no feito a vida
inteira, não irá parar doravante, pelo contrário. Vai dar mais força. Há,
porém, aqui dois problemas. O primeiro é se ele logra discernir que por trás da
desunião há um erro de princípio que é o responsável das falhas há séculos e
séculos: a reivindicação do direito de desunir que nunca ninguém teve nem
poderá ter. O direito de recusar Deus que é amor é uma contradição nos termos e
a consumação da derrota, do pecado, na prática. Conseguirá o Papa Francisco
vislumbrá-lo, por trás da prática fiel dos que o antecederam e dele próprio? Ou
ficará julgando apenas que é uma questão de fidelidade ao dever do amor, de
prática ética, sem nunca discernir o pilar que vem sustentando e apoiando
milenarmente os desvios? Ignoro a resposta. A barca mete água mas o timoneiro
pode crer que apenas se deve às ondas batidas e ao desgaste da calafetagem, sem
ligar ao rombo no casco que, por mais que bombeie, perenemente lhe inunda os
porões. Esta é a minha dúvida. Que ocorrerá? Creio que nem ele, com toda a
franqueza e autenticidade que procura, saberia hoje responder. O Papa continua
a caminhar, veremos onde o caminho o leva. Temos muito que orar pelo caminheiro,
como ele insistentemente pede.
- Pois, é um problema, de
facto. Mas há um outro, é?
- Há, e se calhar é bem maior.
A Igreja vive do culto do passado, a principiar na Bíblia e na Tradição, não é?
Já reparou em quantos milhões entendem que a espiritualidade se reduz a
defender e reproduzir a herança, seja qual for, que por aqui lhes venha parar à
mão? É assim na nossa Igreja, nas demais confissões cristãs, mas é o mesmo nas
outras religiões. Então temos nisto um sarilho. São biliões e biliões de
indivíduos, dentro e fora do comboio, a venerar tanto a máquina que o impele
como o pedregulho que a História despejou nos carris. Que é que o maquinista
pode fazer? Atirar o comboio para a frente, atropelando aquela gente toda que
ali salmodeia cânticos à veneranda penedia dos ancestrais? Também não pode, não
é? Ainda por cima, os veneradores dos cadáveres atados aos pés são violentos,
porventura assassinaram um Papa e tentaram reiteradamente assassinar outro. Que
é que a prudência, o dever da eficácia, aconselha ao maquinista em apuros
destes? Apenas ele pode calcular, no caso e conjuntura como se configurar em
concreto, a cada momento, qual o maior ganho com menor perda. Não é viável nem
uma qualquer regra nem uma lei: o Papa terá de decidir na angústia da solidão
íntima. Ele e Deus, com a comunhão solidária de todos nós, claro, mas cá de
fora da decisão. O maquinista limita-se a apitar? A provocar solavancos? A
avançar centímetro a centímetro? A parar aguardando que a semente germine, até
que permita às multidões discriminar o que é a máquina espiritual e o que é o
pedregulho empecilho, na confusão das tradições?... Digo-lhe, irmão Ambrosino,
não queria nada estar na pele do Papa, isto deve ser incrivelmente angustiante.
- Estou a entender. Até pode
ter de ficar tudo parado. O tempo dos homens a aguardar o tempo de Deus. E
oxalá que nós estejamos à altura de ajudar na inspiração que o Papa tiver. Se
calhar é por isso que os anteriores mudaram a prática sem dizerem uma palavra
acerco do fundamento que os inspirava.
- Se calhar... – rematou o Fr.
Ramiro.
Fátima
– 22 de Junho de 2013
Pois, se calhar. Isto andou-me
a moer o juízo todo o dia, como um mote que não se vai da memória. Era bem
preferível uma cantilena qualquer, embora profana, poderia andar a trauteá-la.
Mas não. Foi o dia inteiro aquilo. Não tinha significado nem alcance nenhum,
cuidava eu. Mas no que respeita à escrita deste diário é tudo um bocado
estranho. E foi tudo ao contrário.
Claro que a vida inteira de
qualquer um é assim, mas quem repara? Nem eu antes reparava em nada. Agora é
que me vem a talho de foice e, não fora ter de escrever, de certeza andaria tão
alheado como outrora, como toda a gente. A vida anda pejada de a-propósitos.
Todavia, de habituados, nunca reparamos, é tão natural! Chesterton ria disto
alegando que ficaríamos espantados se uma pereira desatasse a frutificar
macacos, quando o que é deveras espantoso é que ela nunca os dê e, ao invés, dê
peras a vida inteira. E a isto ninguém liga.
Adiante. Andava eu naquilo, entregam-me
para arquivar uma revista francesa antiga. De repente deparo, na capa, com uma
referência a um desaguisado entre o Papa de então e o Patriarca de
Constantinopla (Istambul actual), o líder espiritual da Igreja ortodoxa, o primus inter pares de todo o oriente
europeu. Por acaso lembrava-me de ter lido a reportagem há anos e fui logo
relê-la, à luz da reflexão que venho tentando desenvolver.
E aqui está. É uma ilustração
concreta da ambiguidade inultrapassável das decisões a tomar no contexto do ecumenismo.
Ambos os pontífices se haviam encontrado, o diálogo fora amistoso, acertaram
formas de cooperação, a reaproximação de ambas a Igrejas fora atingida em
concreto. Mas eis senão quando, posteriormente, alguém no Vaticano se lembra de
mandar missionários para a Europa de Leste, para converter aqueles hereges,
réprobos danados, todos, ao que parece, condenados ao inferno por causa do filioque que continuam a não aceitar.
Alguém descortinará o que isto
é? Por acaso ainda me recordo, do meu curso de História, como um episódio
anedótico (hoje em dia), mas que é capaz de virar o mundo de pernas para o ar,
como o fez no séc. XI. Os bizantinos não aceitaram que no credo constasse que o
Espírito Santo procede do pai e do Filho porque, para eles, Filho e Espírito
procedem ambos do Pai. É o problema do filioque,
que significa e do Filho. Alguém hoje
dividiria a Igreja a meio, rasgaria a meio um Império, por uma bizantinice tal?
Não há sequer um crente em mil,
hoje em dia, para quem isto signifique o que quer que seja. Nem sequer
suspeitam da existência de tal coisa, quanto mais... E para uma vivência
espiritual deveras que alcance tem uma tal bizarria? É zero, absolutamente
zero! É assim entre cristãos e já nem falamos doutras religiões, uma vez que os
arroubos espirituais ocorrem por igual em todas. Deus não faz discriminações,
sabemo-lo desde o princípio, e Jesus morreu para salvar todos e não apenas os
cristãos, muito menos só os católicos. Então que é aquilo? É preciso não ter
vivência íntima de espiritualidade nenhuma para protagonizar um evento
daqueles. E sabotar todo o trabalho do Papa, evidentemente.
O Vaticano tem um lobby gay
(confessa publicamente o Sumo pontífice Francisco) que anda a atar a Igreja.
Outros cardeais denunciaram a quantidade de ateus cínicos, materialistas,
encobertos por batinas e cabeções, porventura solidéus, teatralizando o papel
de grandes crentes, muito fiéis, embora todos instrumentalizando os benefícios
eclesiásticos em proveito de egoístas, mesquinhos interesses mundanos, bem
rasteiros. A Cúria Romana enxameia de simulacros de cristãos, os sepulcros
caiados de branco, no dizer de Jesus. É sempre isto e, por igual, nas outras
igrejas e religiões. Os parasitas pululam permanentemente nos topos do poder e
das benesses, é irremediável. A não ser quando nos desfizermos de tais
píncaros. Até lá, é bem verdade que, acima do Papa, haverá fatalmente seis
Secretários de Estado, como brincava João XXIII. E o actual Sumo Pontífice bem
se queixa...
Andava eu com tudo isto a
dar-me voltas à cabeça, chamam-me à portaria. Tinha uma visita. Um colega
indiano da Faculdade, já o não via há que anos, mas mantém um apreço cordial
pelo anão. Já era igual, lá em Letras, naqueles tempos de jovens.
O Edgar retornara a Portugal
com a família, após uma estadia de alguns anos em Moçambique, entre os canecos
onde tinha alguns familiares, após a ocupação do Estado Português da Índia pela
União Indiana. Era um bebé, praticamente um recém-nado, quando fugiram. Não lhe
restam memórias dali, mas restam nas raízes e nas sagas da parentela que as
cultiva, ao que me parece, como um pendor poético da tradição cultural que
fazem questão de manter de geração em geração. Creio que é típico da comunidade
indiana.
Isto explica que já na
Universidade o grande herói dele fora o Mahatma Gandhi. Por acaso sempre o
admirei também, pela incrível luta não-violenta até à independência do Estado.
E devo ao Edgar muita da informação que dele tive.
Estávamos a pôr as novidades em
dia (não é que aquele homem continua um professor solteiro, parece um monge
como eu?), desatei a contar-lhe o projecto disto que aqui tenho entre mãos, por
freima cometida por meu Mestre, Fr. Benedito, um frade que, por este motivo, só
pode acreditar em milagres.
O Edgar confirmou-me,
entusiasta, nesta lavoira e então, quando lhe narrei as minhas derradeiras
ideias e o impasse em que a Cúria Romana
se calhar anda colocando o Papa, contou-me um episódio ocorrido com Gandhi,
já ele vivia jejum atrás de jejum contra a colonização inglesa.
- Houve um dia – recordou ele –
em que, no meio das imensas, das intermináveis manifestações e peregrinações
que pululavam por todo o continente indiano colonizado, entre os que procuravam
e tentavam contactar o grande líder espiritual que ele acima de tudo foi,
apareceu um jovem cristão aqui da Europa.
- Era já o movimento em busca
de guias espirituais por parte de muita juventude ocidental, como quando fomos
universitários?
- Sabes, a grande onda foi
depois. Mas havia já muitos que se deslocavam até à Índia para de perto
lograrem seguir o fenómeno político-espiritual. Creio que foi o fermento para a
onda posterior que, aliás, correu menos para lá e mais para o Tibete, por
exemplo. Julgo que por mor do Dalai Lama.
- Outro grande mentor da
espiritualidade mais autêntica. Claro, tinham matado o teu herói. E que ocorreu
com o jovem cristão?
- O rapaz confessou-lhe que
andava à procura dum sentido para a vida e que o que o convencera fora o
extraordinário rumo que nele reconheceu. Pedia para lhe indicar o que fazer
para atingir um nível tão grande de autenticidade espiritual como ele.
Pretendia ser iniciado e dedicar a vida a tamanho ideal. Onde deveria
dirigir-se? A que templo, a que religião, a que guru? Que lhe indicasse a via.
- Então e Gandhi?
- Respondeu-lhe: “Se é isto o
que procuras, não precisas de vir para a Índia. Vasculha-o na tua terra, na tua
religião. Lá no fundo encontrarás tudo. Vive-o a partir daí, que chegarás onde
queres. Tens lá tudo à mão, ao teu dispor”.
- Ó Edgar, mas que grande
resposta! Gandhi era mesmo um homem do outro mundo.
- Isto é que é ecumenismo a
sério, de quem atingiu as raízes e vive em coerência com a fundura de seu imo.
Que o ouve e lhe obedece, à voz discreta que aí perenemente nos fala, não é?
Não é, seu meio frade? – brincou, dando-me uma palmada amistosa que me evocou o
mesmo gesto, habitual nele aquando dos tempos académicos.
- E cá temos – confirmei – como
um homem fundamentalmente espiritual, cuja fé nada tinha de cristã nem, menos
ainda, de católica, nos vem dar uma lição de vida interior autêntica, fiel ao
Espírito que o impele, a Deus que a ninguém discrimina, ao Jesus ignoto que a
todos, incluindo a ele, salvou. Reconheceu a Voz que do imo fala, que todos
tropegamente procuramos, que é a mesma em quaisquer pendores da montanha do
mistério, em todos os corações que buscam, em todas as culturas e tradições.
Não há dúvida, grande Mahatma Gandhi!
- Pois, Ambrosino, é muito
diferente do que vivem os que rasteiraram o Papa no episódio que contaste.
Parece que ainda não entenderam nada. Olha se algum deles era capaz de dizer o
recíproco daquilo a um hindu que o procurasse!
Quando nos despedimos, dei
comigo macambúzio. Como é que conseguimos ser tão infiéis? Tão medíocres? Tão
contraditórios?
A Igreja institucional é tão
pecadora (e eu com ela, pois até agora nunca sequer me tinha dado conta disto,
quanto mais lograr inflecti-lo!) que nem vislumbro onde pára a Igreja
espiritual, a comunhão real de corações e vidas, de corpo e espírito entre
vivos e mortos. Que bocado de mim me resta para partilhar da grande comunhão?
Ai valha-me Deus! Muito bom e paciente tem mesmo o Céu de ser connosco!
Fátima – 23 de Junho de 2013
Hoje entupi de todo. Quando
reli o que escrevi fiquei cheio de escrúpulos. Por muito menos quantos,
história além, acabaram postergados, excomungados, condenados à fogueira,
guerreados até à morte? E afirmo eu teses que tais! É verdade que o papel é
inerte e, enquanto isto apenas daqui constar, é seguro como selado num túmulo.
Em épocas de antanho, porém, até o pensamento, igualmente pecaminoso, era
perseguido. Deus meu, que tempos aqueles! Como é que pudemos ter sido capazes
de tal? E ainda não estamos arrependidos, nem pedimos perdão. Ainda não nos
convertemos. Isto é de arrepiar qualquer um. Muito mais um anão apalermado,
perdido em bolandas que tais. Ou será que ando vendo tudo mal?
Ainda estive quase a ir-me
confessar, para acalmar a consciência, mas reconsiderei. Isto não é temática de
confissão, quando muito seria a minha quota-parte de ignorância, conformismo,
de inconsciência colectivamente partilhada. E como é que eu poderia ter a
pretensão de acusar um erro de todos, de toda a instituição, de quase todos os
tempos? O anão é pequeno demais, rebentaria logo como um balão de tanto
orgulho, de tanta mania de andar a ver o que porventura mais ninguém vislumbra.
Em vez de confissão seria sei lá o quê! Pior a emenda que o soneto...
O grave é que eu não vejo onde
é que possa ter errado. Ao que creio, os meus mestres também não. Fico
reconfortado, mas a tremelicar como canavieira ao vento. No fundo, o que mais
me intriga é isto: como é que a Igreja pode andar a receber lições do século?
São os ateus e os indiferentes que nos dão aulas de democracia, tolerância e
pluralismo que não há maneira de lograrmos assimilar e integrar, enquanto
comunidade e instituição eclesiástica. São os mesmos com crentes de todas as
religiões (incluindo a nossa e a nossa Igreja, valha-nos isso ao menos) que nos
propõem direitos humanos universais, mas que nós varremos da soleira da nossa
porta institucional. São mentores espirituais sem religião explícita ou doutras
religiões, doutras igrejas, que nos dão testemunhos de fé coerente e tão
profunda, duma espiritualidade tão vívida, com tanto Deus incarnado (gostaria
de dizer), que ficamos de cara à banda: como é que nós pretendemos seguir Deus,
seguir Jesus, se perdemos o tempo (mais outrora que hoje, é verdade) a repudiar
e desconfiar de tudo isto? Que ocorre, afinal, connosco?
Deus só é Deus quando age em
nós? E quando age nos outros, como é que é? Deixa de ser Deus?! E se os outros
lhe são fiéis, lhe tornam a vida transparente, devêm gurus a iluminar meio
mundo, que lhes faremos? Serão todos uns hereges que quase, quase condenamos ao
inferno (como se Deus andasse a nosso mando)? Como é que invertemos tudo isto?
E como é que não fazemos nada para o endireitar? Têm apenas uns pozitos de
verdade, uns germezitos de santidade aqueles pobres pagãos? Os benditos de
Deus? Nós atrevemo-nos a discernir mais do que Deus, a julgar e apoucar Deus? Mas
atrevemo-nos mesmo, há séculos que o praticamos! E muito convictos de que nós é
que temos razão. Mesmo contra Deus e as obras dEle que são gritantes perante
qualquer coração aberto. Como é que a Igreja sociológica Lhe fechou as portas e
ninguém vê? Ou, aliás, muitos viram, muitos profetas o apontaram a dedo séculos
fora e a todos lhes foi cortada a cabeça. Cortámos sistematicamente a cabeça às
vozes que Deus nos tem vindo a enviar história além. E não houve um rebate de
consciência comunitário colectivo? A verdade é que não houve, tudo foi sempre
esmagado na violência e no sangue, pelos tempos, pelos milénios.
É isto que os últimos Papas
vêem e recusam continuar, firmes, intransigentemente. É isto que o Papa
Francisco intui, ao pretender renovar a Igreja, creio eu. Não sabe como,
evidentemente, senão não teria nomeado um grupo de trabalho. Algo quer, porém,
e não é um remendo, senão não precisaria de grupo nenhum. Para pôr um penso
rápido qualquer um serve, ninguém pede uma junta médica.
Ora, neste pendor, ou muito me
engano ou tudo tem de ser refundado. O desvio é colossal. A
Igreja-corpo-de-Cristo foi traída sistemática e multissecularmente pela
Igreja-instituição. Nesta vertente é tudo menos aquela. Aqui espatifou
triunfalistamente o vede-como-eles-se-amam e trocou-o persistente e
estruturalmente por um diabólico vede-como-eles-se-odeiam. E odeiam tanto que
se andaram a matar mutuamente há séculos e séculos. E continuam, doravante com
os fundamentalistas islâmicos a matarem mui religiosamente em nome de Alá como
os integristas cristãos a tentar liquidar o Papa em nome de Cristo. Pequenas
minorias, cá e lá, felizmente. Mas será que a maioria já deixou de estar com o
espírito (ou melhor, a falta de espírito) deles?
- Muitos séculos, é verdade –
comentou-me, de repente, o irmão porteiro, quando a meio da tarde desabafei com
ele acerca disto tudo (tinha-lhe levado uma revista para ele entreter,
actualizando-se, os momentos mortos que hoje foram muitos, como em todos os
domingos após a missa) – mas repare que foi por pervertermos o que ocorreu ao
princípio.
- A que é que se está a
referir?
- Ora, ao Concílio de
Jerusalém, claro. Os Actos dos Apóstolos são
nesta vertente muito clarificadores. Ninguém fala nisto mas eu já reparei há
muito. Todos olham para o confronto doutrinário, para o arranjo de mútuo
entendimento, para as repercussões vindoiras, para as implicações teológicas,
sei lá. E tudo bem, não é? São perspectivas importantes, nalguns casos de ecos
descomunais. Mas sempre me fez confusão que não liguem às pessoas envolvidas,
às atitudes, ao trato. Está lá tudo mas não importa a ninguém.
- Ó irmão porteiro, – brinquei
logo eu – abra-me lá a porta, que cá fora morremos de calor nas fogueiras de
queimar hereges. Troque-me lá isto por miúdos, que o meu alforge está vazio,
temo que meramente cheio de moeda falsa. Vá, fale, fale!
- Ora, que é que eu entendo? –
retorquiu, meio à defesa. – É teoria para os mestres. Agora eu!
- Não é para os mestres, não,
que eles andam entretidos com aquelas questões maiores e, pelos vistos, não têm
tempo para ninharias destas – insisti, convicto. – Isto é para os pequenos como
nós. Ah! Desculpe, irmão, não se ofenda, eu, como anão, sou um pequeno
minúsculo, o irmão porteiro é um pequeno pequeno. Está certo? Pronto, e é
connosco. Ponha-me lá as cartas na mesa, que isto anda a afligir-me e, se
calhar, o que viu ajuda a acalmar-me, nem que seja desdizendo-me. Faz-me esta
caridade?
- Por amor de Deus! Tudo o que
eu puder, irmão Ambrosino. Mas é da minha humilde cela, que há-de ser bem
míope. Contudo, não reservo nada, certo?
- Conte lá então, que abrir a
porta leva a mais do que parece – incitei-o.
- Olhe, repare, é simples.
Saulo de Tarso (que tomou o nome de Paulo, o Apóstolo missionário) nunca foi
discípulo nem conviveu com Jesus, mas após a conversão foi de extremo a extremo
e, em vez de perseguir cristãos (ele, testemunha que guardou as roupas dos que
lapidaram St.º Estêvão, o proto-mártir), doravante põe-se a expandir o cristianismo
por sua iniciativa, sem prestar contas a ninguém. Pior, sem respeitar os
rituais judaicos como os outros, presos ainda às próprias raízes que iam
impondo aos demais.
- Até aqui, tudo bem, é o que
sabemos dos factos. E então? – questionei.
- Então, quando o chamaram a
Jerusalém, repare como o tratam. Ninguém o excomungou, ninguém declarou anátema
sobre nenhuma doutrina (logo ele cheio de tantas que nenhum dos outros podia
entender, de tão ignorantes), ninguém o condenou como herege, ninguém formulou
nenhum dogma. Nem ele próprio que era o mais capacitado, pela formação superior
que detinha. Todos os procedimentos seguidos mais tardiamente, pelos séculos
fora, estão dali ausentes. Mais: não há qualquer sinal de que sequer lhes
tenham passado pela cabeça. Não acha curioso?
- Perfeito, perfeito! – interrompi,
como se um balde de água me tivesse inesperadamente lavado de montes de lama. –
Clarinho como a luz do sol!
- E depois há o outro lado –
continuou, divertido. – Há muito mais sol do que cuida. Chamam-no. Para o
julgarem? Não. Para ele lhes explicar o rumo dele e os fundamentos. Para o
rebaterem? Não. Para o entenderem a ele em primeira mão (não pela boataria,
repare) e às razões, para as compreenderem, a fim de as poderem acolher, desde
que tivessem sentido também para eles, como de facto ocorreu. Não para lhe
atirarem à cara os motivos deles próprios e pronto: ou aceitas ou vais para as
profundas dos infernos. Como foi o lema multissecular posterior. Agiram
rigorosamente ao contrário.
- Lindo, lindo! – exclamei,
pouco menos que extasiado.
Não é um teólogo, é um frade
simples que pondera com o coração e repara no pormenor crucial. Eu nunca
poderia ter escolhido para viver outra comunidade!
- E o remate? – perguntou ele,
tocado pelo meu entusiasmo. – Foi exemplar. Acertaram qual seria o modus
vivendi, atentos às duas comunidades culturais com que estavam envolvidos. Para
quem fizer sentido, o ritual da tradição, para quem não fizer, outro qualquer
que forem inventando e lhes toque o coração. Acordam numa pluralidade de
caminhos, de rotas, de tradições. Está a ver? Nem um dogma, nem um itinerário
único, nem uniformização de ritos. Mútuo acolhimento e caminho livre para a
festa da comunhão que mais sentido fizer em cada contexto. Quando a gente olha
para o que veio a ocorrer séculos depois, é uma dor de alma. Perseguições?
Expulsões? Desterros? Guerras? Penas capitais? Donde é que veio tudo isto? Que
horror!
Fiquei sem palavras. Quase
pulava de exultação. O irmão porteiro, quem diria?! Desmontou-me aquilo tudo
com uma facilidade! Quase parecia o Fr. Marcos com as distinções dele. As de
agora, todavia, eram mais clarinhas, eram mesmo terra a terra sem grandes (ou
nenhumas, em verdade) teorizações. Factos, apenas factos a falarem. E que
mundos em contrate, o do princípio e o das sequelas posteriores, tão negras!
Tirou-me tanto peso de cima que
me apetecia cantar. Se eu tivera asas, teria voado.
Andei na cela para trás e para
diante, horas esquecidas. Até se me varreu a biblioteca. Felizmente todos sabem
onde estou, mas ninguém precisou de mim. Tinha uma certeza na cabeça: isto
daria uma força tremenda ao Papa Francisco na hora de agir, se tal vier a ser
alguma vez a decisão que o imo lhe inspire.
Fátima
– 24 de Junho de 2013
Hoje desatei a rir, ao reler as
derradeiras linhas de ontem. O anão a dar-se ares! E nem reparou. Não me estava
eu já a ver a dar a mão ao Papa? Grande palerma! Como se ele não tivera mais
que fazer do que perder tempo com um parvalhão como eu! É engraçado como a
gente embandeira, com o entusiasmo, e logo perdemos a noção das proporções. Até
já me esquecia de que isto é um diário que, embora não tenha de ser íntimo,
decerto ninguém terá sequer pachorra de folhear. É para mim e para a gaveta. E
por alegre obediência a meu Mestre que sabe melhor do que eu o que, afinal, me
dá mesmo gozo. O que é, de facto, o caso. Por meu alvedrio jamais o teria
descoberto e, no fim de contas, acaba a entusiasmar-me deveras. É curioso como
nem para mim próprio consigo ser bom. Até nisto preciso dum mediador para me
descobrir ao espelho. Grande Fr. Benedito, nunca saberei agradecer-lhe
bastante. Por isto e por tudo o mais.
De manhã, ainda cedo, tivemos
uma prenda inesperada.
- É S. João, dia de festa. De
celebrar com sardinhas e broa, como o povo de socos e aguilhada, na minha terra
– alardeou alegremente o irmão Marista Dimas, meu companheiro no Curso de
Teologia de verão, anos atrás.
Fez questão de me entregar
pessoalmente a caixa do peixe e o pão de milho para a celebração da comunidade.
De vez em quando passa cá pelo convento e trocamos dois dedos de conversa.
Ficou-nos o gosto dos anos de aulas em comum, nas férias grandes, em que ele
andava sempre tão fatigado do encerramento do ano lectivo, no colégio da
comunidade dele, que não raro adormecia exausto ao meu lado. Quando acordava,
ríamo-nos ambos e eu perguntava-lhe se não era melhor uma cura de repouso para
recuperar à altura. Recusava sempre:
- Não, não. O que apanhar das
aulas já é muito bom. Ficam uns buracos mas eu vou tentando tapar as lacunas.
Se agora perder isto, nunca mais terei oportunidade. A vida cada vez mais me
vai ser assoberbada. Assim, o que aprender, muito ou pouco, aqui me há-de
ficar.
E apurava novamente o ouvido. O
irmão Dimas era um colega bem-disposto, sempre a brincar com as próprias
limitações e que não tomaria ordens, era apenas professor, como a generalidade
dos salesianos, congregação dedicada ao ensino e educação de jovens. Era mesmo
a escolha dele, confidenciara-me outrora. Sentíamo-nos de algum modo
emparelhados, talvez por isto conversámos tanto: eu também era assim como que
um meio frade.
- Encerramento do ano lectivo
já sabes... – comentou-me ele quando lhe perguntei como ia, bem como a
respectiva comunidade (havia mais quatro membros que frequentaram o curso
connosco, mas com nenhum deles me liguei tanto). – Temos lá uma pedra no sapato
curiosa. É um bom aluno, em plena adolescência, mais um anito e salta para a
Faculdade.
- E qual é o escrúpulo? –
brinquei eu, alardeando o radical da palavra que na origem queria significar
exactamente aquilo, a pedrinha no sapato que nos põe a manquejar, apesar de tão
minúscula e, aparentemente, inócua.
- Virou para o Partido
Comunista, mas à moda antiga. Quero dizer, o miúdo é que tem uma postura
anacrónica. Não que o de cá não o seja igualmente. Pelo menos eu julgo que sim.
Mas refiro-me ao rapaz. Afivelou umas palas e não há maneira...
- Que queres dizer com isso? –
adiantei. – Não é de certeza o nosso preconceito carunchoso contra o comunismo.
O Papa a receber Gorbachev, o primeiro-ministro soviético, antigamente, e o resto
da igreja de costas viradas, numa condenação sectária, completamente surda e
suspeitosa. De candeias às avessas.
- Ah, não, não! – acudiu logo
ele. – Quer dizer, – repensou – atitudes preconceituosas daquelas continuam aos
montes. Mas não é ao que me estou referindo. Aliás, é praticamente o mesmo, mas
do outro lado. Acaba por ser engraçado, podes crer.
- Ai é? Pronto, picaste-me.
Agora tens de arranjar tempo para me explicar, desculpa lá...
- Ora, com todo o gosto, irmão
Ambrosino – retomou, disponível. – Lembras-te de termos lido, durante o curso,
uns artigos de análise ao comunismo que, em lugar da doutrina, desmontavam a
atitude, o comportamento?
- Claro, os que revelavam a
contradição entre a utopia sedutora e a prática de horrores, entre o ideal e o Gulag, de Soljenitsine, entre O Zero e o Infinito, de Arthur
Koestler... – principiei eu, pronto para um rosário de referências, dado que
são quase inesgotáveis, em torno da “maior burla do século”, no dizer de Mário
Soares, o nosso ex-Presidente, pai da pátria democrática.
- Pois, também, também, -
cortou o irmão Dimas – mas não era este pendor, era outro a ele ligado dum modo
subtil e algo escandaloso, em ambas as frentes: refiro-me aos que criticavam o
movimento devido à postura de próceres, mentores e militantes convictos – ela
era uma atitude religiosa, no entender deles. Não te lembras disto?
- Recordo-me de o ler em
artigos de revista, ao tempo. Ah, de certeza que há uma referência ao tema n’O drama do Humanismo Ateu, de Henri de
Lubac. Ena, onde isso já vai!... Há quantos anos! Quando é que este teólogo
morreu?
- Sei lá bem! O curioso é que,
se cuidas que já lá vai, não vai nada. Vive ali inteirinho, bem presente
naquele rapaz. Acreditas? Um ilustrador digno de estudo. Acaba por ser um caso estimulante.
É um anacronismo vivo, a emparceirar dia a dia connosco.
- E como é que o perfil se
traduz? – questionei, interessado. – Deve ser muito curioso. E também
elucidativo: nós a julgarmos que é um momento do passado e, de repente, ei-lo
aqui, pujante, à mão de semear. Um jovem...
- E bem novo! – continuou o
irmão Dimas. – No conselho de Turma resumimo-lo, no fundo, a isto: desde que
provenha do partido Comunista, o que for dito é uma verdade absoluta e,
portanto, sagrada – não se lhe pode tocar, ninguém pode discordar, não pode ser
revista, não pode ser limitada nem relativizada. Apenas venerada, acolhida e
seguida cegamente. Estás a ver como é que podíamos enfrentar isto na Filosofia,
não estás? É militar pela acefalia, pela carneirada mais seguidista. Onde fica
o juízo crítico? Em lugar nenhum. Abolido: hospital psiquiátrico ou Sibéria com
ele. Foi onde chegaram lá, não é?
- Cruzes! O rapaz diz isto?! –
duvidei eu.
- Não, eu é que o digo –
retorquiu o irmão Dimas – para retraçar claramente o perfil. Mas a lógica está
lá toda. Claro que podem ser verduras da juventude onde ele está entrando, com
as inseguranças próprias. Aquela postura é também uma bengala de apoio. Com
tempo e mais firmeza nas pernas tudo pode ser ultrapassado, não é? O itinerário
da maioria vai por aí, felizmente.
- Mesmo no Partido Comunista?
- Mesmo no Partido Comunista,
embora para serem expulsos a seguir – riu ele, descontraído. – Pelo menos no de
cá, eles, lá dentro, continuam a ser donos da verdade absoluta, não sei como,
devem ter o monopólio do Espírito Santo. E exigem veneração ao sacrário do deus
Secretário-Geral. Quem discorda, anátema, seu herege! Expulso para as trevas
exteriores! Claro que todos têm liberdade de opinião... desde que seja para
concordar com eles. Diálogo? Claro que dialogam com todos... desde que seja
para todos, ao fim, andarem a seu mando. Coligações? Evidentemente que sim...
desde que seja nos termos e sob o férreo controlo dos inspirados, os que têm o
dom da infalibilidade e que são eles apenas.
- É engraçado, – comentei – não
aprenderam até agora nada com os comunistas italianos e franceses, para já nem
falar dos chineses e até dos cubanos... Os de cá enquistaram no vazio mais
esquisito...
- Ah, não – retorquiu o irmão
Dimas – é tudo menos vazio: eles estudam a sério, investigam o terreno,
comparam soluções e caminhos, fazem um labor deveras em profundidade. Têm
propostas com cabeça, tronco e membros.
- Mas então... – hesitei eu.
- Até aí estaria tudo bem. O
que está mal é o estatuto atribuído ao termo a que chegam, a cada etapa. Uma
vez tomada uma decisão, torna-se um dogma, tão ou mais divino que uma divina
revelação. Daí para diante apenas admitem a adoração ao santíssimo sacramento
definido e são réprobos todos os que se desviem, distanciem, critiquem, optem
por outro rumo. Quando dizem: ”Não nos peçam para nos descaracterizarmos”, o
que continuam a pretender é manter a sacralização. Redundou no passado no culto
da personalidade, numa série de líderes feitos deuses. Com pés de barro como
todos, não é? Mal morrem...
- É muito estranho, - ponderei
eu – principalmente quando se afirmam ateus, até de ateísmo militante. Hoje não
se atrevem mas, se pudessem, duvido se não iriam de novo até aí, como foram até
aos endeusamentos que após calcaram aos pés. A cegueira perante a contradição
confunde-me sempre. Como é possível?
- É verdade – concordou o irmão
Dimas. – E a pior contradição é de fundo: é que eliminam, a partir dali,
qualquer dialéctica. Pára tudo perante o Absoluto, a Verdade final revelada. É
o anti-marxismo mais radical e definitivo. Marx, se o pudesse fazer,
repudiá-los-ia sem contemplações. Um absoluto que cai, de relativo, trocado por
outro que volta a cair, numa cadeia interminável, e eles não abrem os olhos nem
corrigem a atitude. É degradante.
- E é o que temos no tal miúdo?
- E é o que temos no tal miúdo –
concordou. – Esperemos que abra os olhos a tempo, senão é mais um fanático, um
extremista a caminho, mesmo nos termos contidos em que, entre nós, o Partido
Comunista opera. Só que a semente fanatizada do dogma, entendido como verdade
final definitiva, está lá, como está na prática partidária deles.
- E não estás a ser vítima dos
preconceitos de antanho? – ironizei.
- Olha, - retorquiu-me,
bem-humorado – eles expulsaram do partido o seu antigo candidato à Presidência,
membro do Comité Central. Bastou duvidar da eficácia do rumo e propor uns
acertos. Está tudo dito: herege! Excomungado para as trevas exteriores, seu
lúcifer disfarçado de anjo! Maldito! Quem se atreve a duvidar do deus?! – E,
mudando de tom: - Já nem a Igreja faz isto, não é verdade?
- É verdade, é – concordei. –
Mas olha que fizemo-lo outrora e o intuito, então, era per omnia saecula saeculorum. E mesmo agora... quantos não
lamentarão que tenhamos perdido a força? Não são apenas os integristas,
fanáticos de exterioridades, que cada vez menos peso terão, desde que queiram
ir abrindo os olhos para a espiritualidade íntima, vivida a iluminar o
quotidiano. Não, há muitos mais, honestos e desonestos, mundanos ou na busca
insegura de caminho, que se agarram a um esteio qualquer e se tentam firmar
nele como num rochedo. É uma inevitável mistificação mas, quanto mais o for,
mais se lhe agarram, em desespero. E dá naquilo.
- Isto de o Partido Comunista
ser um antro de religiosidade dogmática, inconfessa, logo obscurantista, tem
muito que se nos diga. Pergunta aos mestres se a asneira não é a mesma neles e
entre nós. Suspeito bem que o seja, para nosso mal, não é?
Fátima
– 25 de Junho de 2013
A minha ideia, hoje de manhã,
era seguir o conselho do irmão Dimas e procurar os mestres. Quando reli o
texto, porém, vieram-me dúvidas tão em catadupa, para além da da sacralização,
que acabei tolhido, de caderno na mão murcha.
Que é que aquilo tem a ver com
o tema do meu diário? Directamente, nada. Não ando a converter o Partido
Comunista nem ninguém, aliás, nem de dentro nem de fora, até porque não
vislumbram nem entendem, por conseguinte, nada daquilo. Depois, que tem a
Igreja a ver com isto, senão por reflexo indirecto da conversão espiritual dos
homens, se e quando o conseguir com real conteúdo interior (e não num
simulacro, numa exterioridade qualquer, como tantas vezes outrora)? Por outro
lado, alguma renovação eclesiástica pode alguma vez melhorar tais sintomas,
primeiro na Igreja, depois nas comunidades e na colectividade em geral? Ou o
inovamento que vislumbro, a chave do motor de arranque, a destruição do poder
de perseguir, julgar, condenar e executar acaba repercutindo nalgum pendor
deste jaez?
Não enxergo nada e tenho de pôr
ordem nisto, antes de ir tagarelar com alguém que decerto terá bem mais que
fazer que aturar um anão perdido, com curto-circuito nos miolos. Não sei
porquê, mas, como de hábito, tenho a impressão de que algo de mais relevante
anda por trás do saboroso cavaquear de ontem e eu não descubro. De certeza que venho
a colocar mal as questões, o ângulo é outro qualquer que me continua a escapar.
É que pressinto intimamente que tudo aquilo fará muito sentido, numa vertente
particular. Ora, eu olho para lá e não encontro sentido nenhum para o que tenho
aqui entre mãos. Este anão nasceu tapadinho de todo, deve ser da falta de
altura, o tampo caiu-lhe muito de cima, tapou-lhe o cérebro com tanta força que
doravante não há ideia que o obrigue a destapar.
Levei a manhã nestas bolandas
interrogadoras, até o caderno onde rascunho me acompanhou à biblioteca e
fui-lhe regularmente deitando um olho enviesado.
Fiz questão de orar e cantar a
terça, a sexta e a nona mas o olhar não se me desanuviou. Depois de vésperas
enchi-me de coragem. Eu sei que o meu Mestre, se tiver tempo, nunca se me nega,
não é verdade? E depois, ele é que me meteu nisto...
- Ora esta! É muito boa! –
exclamou Fr. Benedito, mal acabou de ler as páginas em que encravei. – Pois,
irmão Ambrosino, parece que não tem nada a ver, mas tem bem mais do que parece.
Continuou meditabundo por um
grande intervalo. Eu quase via as rodinhas do relógio a encaixarem umas nas
outras dentro da cabeça dele. Aguardei em silêncio. Iria ser revelador,
evidentemente. Preparei-me para o “faça-se luz!”.
- Acabais de pôr o dedo, pelos
vistos sem reparardes sequer, na forja da maldita chave que, afinal, nos dá
hoje o motor de arranque para a actual renovação da Igreja, para usar a sua
metáfora. Foi daí que se desencadearam os erros, elo a elo, cada vez mais
desviados e devastadores, história além.
- Não compreendo a ligação... –
hesitei.
- Olhe que até foi muito feliz
analisarem-no numa instituição que não a eclesiástica. Aqui dentro, entre nós,
na Igreja, dói muito mais, são espinhos que temos de arrancar da própria carne.
Findamos sempre com feridas. E mantemos cicatrizes e sequelas, como entes
diminuídos multissecularmente. É bom o bisturi em carne alheia, é o que a
medicina faz com as cobaias, salvo seja. Descobrimos mais objectivamente, sem
interferências afectivas nem riscos de parcialidade.
- Então concorda que a
dogmatização é um erro ainda agora também nosso? Mais outrora que doravante,
mas enfim... – duvidei, como já ocorrera com o irmão Dimas.
- Mas evidentemente, quando
alimenta um itinerário como o descrito durante o vosso diálogo. Há muita
ambiguidade no conceito de dogma, compreende?
- Aí é que me confundo –
intervim. – Estamos a lidar com a fé. Ora, um acto de fé num programa
partidário, até numa filosofia política, é uma abstrusidade. É ser
completamente ignorante, ou, pior, recusar os factos, sabendo-o. Neste domínio
tudo é transitório, inseguro, a verdade de hoje é o erro de amanhã, a opinião
dum vale o que vale a opinião doutro, tudo é relativo e, a prazo,
inelutavelmente condenado pelo tempo, substituído por outras realidades, de
igual natureza efémera, no mesmo âmbito. Qualquer elevação ao absoluto é um
erro crasso. Mas, em contrapartida, ter fé no campo da fé? Isto é um erro?
- Não, não é. Mas aquilo é um
erro, o que acaba de referir.
- Claro, está inteiramente
deslocado no campo aplicação.
- Não, não! É pior – cortou o
Fr. Benedito. – é um erro em si. Na fé, no mundo secular, na vida quotidiana,
em família...Onde quer que germine tal atitude é uma erva daninha que temos de
arrancar de raiz o mais possível.
- Mas a fé não é em Deus, em
Jesus, no Céu?... Não é fé no Absoluto, não é o Caminho, a Verdade e a Vida?
Não estamos no âmbito do transitório, o efémero é apenas da História, do tempo,
não da eternidade... – objectei.
- Perfeitamente de acordo –
asseverou o meu Mestre com o olhinho irónico a provocar-me.
- Pronto, já sei que me quer
pôr a rabear – comentei, rindo. – Mas não é este o fundamento histórico, pelos
séculos fora, das múltiplas formas de sacralização no domínio da fé? E não tem
de haver algo de sagrado, de intocável, aqui?
- Novamente de acordo – e
fez-me uma vénia, gozão. – Não é aí que está o busílis, claro.
- Então onde? – piquei-o, a
ficar já meio danado comigo porque nunca consigo enxergar, de tão cegueta que
sou.
- Não vê mesmo, irmão
Ambrosino? – agora não ria, olhava-me muito atento, quase desconcertado perante
o calhau duro que deveras me sinto.
- Vá lá, desembuche. Olhe que
acabo mesmo às escuras! – ameacei.
- Repare que tem as peças todas
na mão. É apenas jogar direito. Como é que responderia a uma série de questões
deste tipo: Deus e a nossa compreensão dEle são a mesma coisa? A
Igreja-corpo-de-Cristo e a Igreja-institucional são a mesma realidade? O
universo espiritual, em particular o Céu, é o que dele discorremos e o que no
cotio incarnamos ao viver? O aspecto da fé que identificamos num dogma definido
esgota-se no conceito utilizado para referi-lo, a palavra é a realidade?
- Oh! Pare, pare! – cortei de
repente. – É a distância então? A lonjura a que ficamos inelutavelmente,
inultrapassavelmente sempre? O Infinito aproximável indefinidamente e jamais
atingido em plenitude, em tempo histórico? É isto? A parusia que ainda não
chegou?
- Ora bem! Agora quase lhe podia
pedir que tire as conclusões.
- Espere, Fr. Benedito, não vá
tão ligeiro. Que é que isto tem a ver com a sacralização? Adoramos a Deus sobre
todas as coisas...
- Repare que diz adoramos. E
não é, é amamos. Adoramos é da ordem da sacralização, amamos é da ordem da
vivência da fé, incarnando no tempo.
- Quer dizer, a sacralização
não tem lugar? Há pouco afirmou o contrário...
- Evidentemente. Veja lá, como
é que concilia tudo isto?
- É carga demais para as minhas
costas. Eu sou um anão... – ri-me.
- Ah, pois, mas um anão de
grande costado. Não está a ver?
- Acha que lho perguntaria?
Quer dizer... agora, de repente... espere aí! – quase gritei quando se acendeu
em mim uma pequena lamparina. – Sagrado, sagrado... pois claro, só pode ser o
primeiro termo das suas perguntas: apenas Deus e os respectivos domínios. Nunca
o lado de cá, enquanto tal, não é? Somente os lampejos do além que lograrmos
apontar, referir. Mas então... – parei, inesperadamente interdito.
- Vá lá, tire a conclusão, não
tenha medo – incitou-me o meu Mestre.
- As sacralizações acabam todas
indevidas, não é? São sempre dum dado qualquer, material, conceptual, cultural,
tradicional, sei lá... – duvidei, meio perdido.
- Claro, a menos que... –
continuou Fr. Benedito, a pescar nas minhas águas túrbidas.
- Ah, sim, pois, a menos que
aqueles dados sejam meros referenciais de algo do outro mundo. Então os
objectos não têm nunca nada de sagrado, nenhum deles, na dimensão terrena que
obrigatoriamente revestem.
- Afirmou muito bem: “Do outro
mundo”. E não do mundo espiritual. É que este tem uma dimensão do lado de cá, a
da nossa interioridade. E é tão histórica e tão pouco sagrada como tudo o mais
neste plano de vida. Mas já agora, nesta lógica, sacralizar é um verbo com
sentido justificado?
- Então, se passamos o tempo,
nós e os mais, a sacralizar as coisas mais variadas... E digo coisas de
propósito, porque ou são realidades do tempo que nunca deveriam ser
sacralizadas ou então não são elas que o são mas a realidade divina a que se
reportam e não temos outra forma de a referir senão através daquelas
modalidades que, obviamente, não são nada divinas.
- Em conclusão, Deus é
inatingível, é inefável, é, portanto, intocável, quer dizer, é sagrado. Nestes
termos, alguém consegue violá-lo, o sacrilégio é, em concreto, exequível de
algum modo? Como se viola uma fronteira inviolável, que o é por natureza e não
por determinação de alguém?
- Ah, compreendo. Deus é
sagrado por si e em si. Não há como não o ser nem ninguém logra lesá-Lo. Fica
sempre para além do alcance. Sacralizar, portanto, neste pendor, é um verbo sem
sentido. Nós é que tornamos intocável uma coisa qualquer, ela em si jamais será
sagrada, mesmo que seja o dedo apontado ao grande mistério: ele é o dedo,
jamais o mistério que aponta (e que apenas por isto participa no Além, o
incarna, com ele comunga). Mais nada. Confundir ambos é uma asneira. Pior
ainda, se for trocá-los.
- Grande irmão Ambrosino! Está a
ver? E a trejurar que era cegueta, hein? – brincou o meu Mestre.
- Falar com outrem inspira-me
sempre. E então consigo...
- Pois pôs o toque, creio eu,
bem no meio da ferida: tomar o dedo que aponta pelo horizonte apontado ou
trocar o horizonte pela seta no terreno, quando esta vira e, em vez da lonjura,
desata a apontar para os próprios pés. É aqui que as sacralizações acabam todas
por dar, seculares ou religiosas, na nossa ou noutra fé qualquer. E todos
findamos idólatras, mais ou menos, mesmo sem o querermos.
- Idólatras, Fr. Benedito?!
- Então, acabamos a adorar o
dedo ou ajoelhados aos pés da seta. E o horizonte, isto é, Deus, o Espírito,
vai ficando cada vez mais ignorado. Até acabar por já não ser mais preciso, uma
palavra oca. Foi sempre assim história além, em todos os séculos, em todo o
lado, em todas as religiões. E os profetas foram sempre chacinados por clamarem
por Deus, postergados em nome dos ídolos entretanto instalados. Isto veio de
trás, culminou em Jesus Cristo e continuou sempre, sempre, até hoje. E, se
calhar, continuará, quem sabe?...
- Confirmo, mas um aspecto não
entendo: donde vem tal deriva? É diabólica! – havia aqui uma dúvida que eu não
lograva explicitar.
- Ora, irmão Ambrosino, é muito
mais fácil descansar que continuar no caminho de pedras, é mais gratificante iludir-se
que desesperar num roteiro indefinidamente prolongado, de metas adiadas ao
infinito, embora sempre mais e mais participáveis (por cada qual e pelo tempo
além).
- Sim, compreendo, mas há muito
quem de boa fé tropece. Onde está, rigorosamente, o erro? Não é mera estupidez
e menos ainda má intenção generalizada. Não acredito.
- Nem eu! Quer ver o raciocínio
a cru? É assim: Deus incarnou (não é verdade?) em Jesus Cristo, o Filho de Deus;
logo, temos Deus incarnado, ainda por cima ressuscitado depois de morto; ora,
se deus incarnou no mundo, o mundo tem tanto Deus como Deus tem mundo; por
conseguinte, seja o que for que tomemos do mundo contém Deus, portanto já temos
tudo, não precisamos de mais nada. Deus em si pode ir passear. Nós, por cá,
faremos é a festa. Está tudo já consumado.
- É um tanto grosseiro, ó Fr.
Benedito. Nunca ninguém...
- Pois não – interrompeu-me. –
Mas revela claro onde está o erro em que aquilo assenta. Até Israel, no Antigo
Testamento, se fartou de cometer esta falha. É, talvez, o pecado mais
constante. O bezerro de oiro, no tempo de Moisés, foi apenas o protótipo do que
sempre andou a ocorrer. Ou a tender a ocorrer, melhor dito.
- Bom, então diga lá o que é,
que eu voltei a perder os meus binóculos, não enxergo nada.
- Os filósofos chamam-lhe o
erro da hipóstase.
- Mas a hipóstase é o mistério
da incarnação, o Homem-Deus na teologia daquele tempo, da cultura grega, que os
concílios de antanho ratificaram. É o erro?
- Disse que era nome de
filósofos, não de teólogos. Para eles a hipóstase é o erro que consiste em
confundir um conceito com o dado que ele refere; uma teoria com a verdade; uma
descoberta qualquer com a realidade acabada daquela matéria; um saber, mesmo o
matemático, com o absoluto; o tempo, por mais intenso que o vivamos, com a
eternidade... e assim por diante. Está a ver o paralelo nalgum lado?
- Foi o que falámos há pouco,
entre Deus e o conceito que dEle temos, e os mais exemplos todos.
- Pronto, está explicado.
Quando dogmatizamos um modelo de Deus, tendemos a adorar o modelo e não a Deus.
E em todos os demais domínios, o mesmo. Definimos um dogma qualquer e logo
anatematizamos, excomungamos, perseguimos... Ora, se Deus é definitivamente
indizível, absolutamente inatingível, em nome de que é que fizemos aquilo? Da
teoria, claro, não do Deus a que ela se reporta como dedo apontado, e ao qual
jamais logra capturar em nosso escasso e falho entendimento. Está a entender
bem? Foram tudo inúmeros bezerros de oiro séculos fora a que passámos o tempo a
prestar culto, confundindo-os com o Deus a que se deveriam reportar e de que,
afinal, se desligaram, porque os homens entenderam que cada ídolo já continha
Deus que chegasse, não precisavam de mais. Se Deus é aquilo, então aquilo é
Deus. Ficamos descansados, já podemos avançar para o juízo final, matando, perseguindo,
desterrando... Até porque, bem vistas as coisas neste prisma, cada executor é
arma de Deus incarnada, nem precisa de ter mais dúvidas. Deus, incarnado em
Jesus, agora incarna em todos e a todos transforma em braço da justiça dEle.
Nem têm problemas de consciência. Os terroristas islâmicos actuais cometem o
mesmo erro. E querem hipostasiar o islamismo na terra, o mesmo erro que a
Igreja de antanho cometeu ao tentar a cristandade. É não ter noção nenhuma da
distância infinita e, portanto, intransponível, por natureza, entre o tempo e a
eternidade. Em qualquer que seja a dimensão e domínio, porque se verifica em
todos, sem reserva alguma. É a nossa frágil condição de humanos. Nem sequer um
mero conceito chega a ser a realidade que aponta, mesmo no mundo secular.
Imaginemos então no resto...
- Agora entendo, finalmente,
donde veio a chave para o arranque da renovação...
Fátima
– 26 de Junho de 2013
- Pois é. Há um erro estrutural
– reflectiu Fr. Benedito – no assumir da espiritualidade, uma deturpação
fisicalista de toda a vivência íntima naquele itinerário. E leva directamente,
de fisicalismo em fisicalismo, a consagrar direitos e deveres fundados na mesma
base. Desviam-se os comportamentos, a seguir, as comunidades, finalmente, a
instituição eclesiástica inteira. E temos o pecado instalado na Igreja
sociológica, a rir-se da Igreja de Cristo. Doravante o pecado é de direito. O
pior é que é um pendor que inquina tudo, todas as áreas da vivência comunitária
da fé. Coitado do Papa, ele bem se desunha...
- Mas é actual?! – estranhei,
de repente.
- Então, irmão Ambrosino? Onde
encaixa a papolatria? Ou julga que é um palavrão sem conteúdo real? – ironizou
Fr. Benedito.
- Sim, há casos... – concordei.
- Se apenas fora isso, muito
bem estaríamos. Repare: há sempre hipóstase (mas eu prefiro empregar
fisicalismo) quando se confunde uma realidade actual com a plenitude consumada,
o zero com o infinito, seja em que domínio for. É fatalmente confundir o
relativo com o absoluto e trocar este por aquele. Olhe agora o que fizeram do
Papa pelos tempos além: primeiro Sumo Pontífice, depois vigário de Cristo, a
seguir representante de Cristo na Terra, finalmente Cristo na Terra. Sem mais.
Aqui ele já é Deus incarnado. É a designação vulgar na comunicação, mormente
religiosa. Lembra-se do que era o Imperador Romano, no tempo das perseguições
que tantos cristãos mataram, no circo dos leões e fora dele, justamente por não
reconhecerem a pretensão dele ao título divino? É que ele era deus e os
cristãos recusavam-se a adorá-lo. Pois olhe, os cristãos, a grande massa
anónima, amorfa, iletrada, acéfala, deu nisto: restaurou o antigo imperador na
personagem do Papa e idolatra-o - é o termo, metaforicamente e no real
conteúdo. Não só a Igreja não converteu o Império Romano como ele é que
converteu a Igreja de Cristo, no pendor deste simulacro.
- Está a gozar comigo, Fr.
Benedito, não está? Quer que eu me estenda ao comprido no meio do chão... –
brinquei, perante semelhante cenário. – O Papa não é nada assim, sabe-o muito
bem.
- Pois claro que sei e é por
isso que é rigorosamente assim. Mas já lá vamos ao pobre do Papa Francisco.
Quero só apontar-lhe mais isto: não há modo fácil de explicar o erro
fisicalista aqui quando o dogma diz que o Papa é infalível e tal dogma se encontra
sacralizado a ponto de se lhe não poder tocar.
- Mas pode-se, como em qualquer
outro – protestei. - Então a reinterpretação o que é? Nenhum fica de fora,
senão é matéria morta e não serve para nada.
- Devia ser, devia ser... Mas o
Hans Küng, teólogo de carreira, teve a coragem de tocar nele e olhe o que lhe
ocorreu: expulso de tudo e de tudo suspenso. Se não fora o Conselho Ecuménico
das Igrejas acolhê-lo, ainda teria morrido na miséria. E mesmo assim teve
sorte, que, há séculos atrás, tê-lo-iam matado. Ora, aqui já se não pode
atribuir isto ao populacho, não é? É já com gente do poder, com a respectiva
máquina institucional. A papolatria vai muito mais longe, mais fundo e mais
alto do que à primeira vista se antolha. É mais um parâmetro do desvio colossal,
do pecado colectivo e institucional instalado, do eterno bezerro de oiro.
- Ó Fr. Benedito, eu gosto
tanto deste Papa... Não me diga que eu também...
- É porque gosto dele deveras
que estou a desmontar-lhe isto. Não vê como ele anda aflito e avesso a
semelhante vertente? Desde o primeiro momento que se comporta sempre ao
contrário. Logo, antes de qualquer saudação, pediu: “Rezem por mim!” E que quer
dizer esta que correu mundo pela comunicação internacional: “Somos todos
pecadores, a principiar por mim que tenho muitos pecados. Mas Deus perdoa-nos
sempre.”? Que é que ele andará a fazer com semelhantes atitudes senão a derruir
o pedestal? É uma luta inglória, coitado do homem! É um contra todos, pobre
dele! E ainda por cima, por mor daquilo, aqueles palermas ainda o endeusam
mais. Não há maneira de entenderem o recado, invertem sempre o sentido dos
sinais: “Agora é que ele é mesmo Deus na Terra, vejam só com que
autenticidade!” – dirão, estou mesmo a ouvi-los. Enfim, o Papa Francisco deve
viver mesmo angustiado com tão estapafúrdios desvarios. Mormente por serem, em
geral, bem-intencionados. Não são, por isso, menos mal vividos, mas farão doer
muito mais, não é?
Ficámos um bom bocado a olhar
um para o outro, apreensivos. Bem gostaríamos de dar a mão. Claro que todos os
dias oramos por ele. Doravante, agora que entendi este pecado muito mais em
profundidade, no incomensurável alcance e projecção histórica até que reveste,
toda a oração há-de ter outro horizonte. Custa muito, porém, ficarmos por aí. Mas
que mais, que mais?
Como de hábito, leu-me o
pensamento.
- Tem o diário. Não acredita?
Ajuda para além do que cuida. Vou-lhe confiar um segredo. Enquanto esperávamos
pelo Papa Francisco, a olhar para a janela vazio do Vaticano, de repente vi a
imagem de Moisés, a descer da montanha do Consistório dos cardeais, com as
tábuas da lei na mão, e a aparecer ali. Olha a multidão, vê o enorme bezerro de
oiro da papolatria em que ela entretanto caiu e, desconcertado, dobra-se,
quebra as tábuas da lei todas (não há mais mensagem divina nenhuma) e afirma:
“Tenham juízo, rezem por mim!” Foi isto, tal e qual. Quase juraria que é o que
ele sentiu mesmo. E, como Moisés, tem de reformar tudo. Senão a idolatria
continua cada vez mais funda, cada vez mais longe, cada vez mais duradoira.
- É o que o Papa anda a ver?
- De certeza, irmão Ambrosino.
E ele já sabe que os anteriores que também o viram, ao assumirem-se como
profetas, como os profetas de sempre foram vítimas de assassinato ou tentativa
de assassínio. É o que ele igualmente enfrenta, ao ir por aqui. Só que ele
continua. Nisto é deveras admirável. E não tem nada de papolatria este
sentimento, é por mor duma atitude grande dum homem que tenta estar à altura do
desafio. Aqui, sim, é que adivinho a marca de quem quer guiar-se por Deus. Num
homem tal logro discernir o impulso do Espírito. É, em rigor, o contrário da
papolatria generalizada.
- Mas a reforma não é para isto
– opus, de repente.
- Pois não, é para a Igreja.
Esta pequena peça é um derivado. Serve para ilustrar como o fisicalismo, a
convicção de que o tempo consumou em plenitude qualquer dimensão da Infinidade,
de que há uma incarnação acabada do Espírito na matéria em qualquer domínio, -
serve para ilustrar como isto anda a inquinar tudo, como tudo perverte, a ponto
de dominar a organização da Igreja, em instituições, no direito, nas práticas
comunitariamente incentivadas... A questão que o Papa e todos enfrentamos é
como se dá a volta a isto, como é que se torna a colocar o descomunal comboio
da Igreja institucional e sociológica nos carris de Jesus Cristo.
- Mas haverá sempre desvios,
somos todos pecadores, é inevitável...
- Justamente, isto é que é o
problema. Se não fora a liberdade de falhar, tudo seria muito simples. Vejo
aqui duas questões: primeiro teremos de limpar tudo o que for cristalização
legal, estrutural de qualquer falha dentro da Igreja; depois, encontrar, em
alternativa, um modo e uma fórmula que estimule maximamente a virtude e limite
ao máximo a probabilidade do desvio, sabendo, entretanto, que qualquer
modalidade de vida, pessoal ou colectiva, é sempre, entre nós como no século,
pervertível.
- E o que eu tenho para aí é
muito pouco. Ou não?... – duvidei.
- Não importa, é o que tiver. Pode
bem ser uma chave que abre a porta ao arejamento do mosteiro completo. Um dado
de nada pode muito bem ter repercussões encadeadas até ao infinito. Quem sabe?
É o que der, certo? De coração aberto e de braços abertos.
Fátima
– 27 de Junho de 2013
A
Dr.ª Silvana, de Línguas e Literaturas Clássicas... Quando eu fui caloiro lá na
Faculdade de Letras, em Coimbra, já ela ia a meio do curso e era uma dirigente
da Juventude Universitária Católica Feminina. Vi-a regularmente na capela
joanina (de D. João V), nas celebrações que a Schola Cantorum (de que eu fazia
parte) musicava. Há quantos anos já!...
Mais velha que eu um bom
bocado, entrou tarde na Universidade. Era, todavia, brilhante: os colegas
espantavam-se com a facilidade com que lograva falar em latim, por exemplo. Ao
que constava, mais ninguém o conseguia, mesmo nos derradeiros anos da
licenciatura.
A mim surpreendeu-me, na Queima
das Fitas dela, quando me informaram de que era, afinal, uma freira sem hábito.
Viera formar-se para ser professora algures no Instituto religioso a que
pertencia. Eu nem sequer tinha desconfiado. Quebrara todos os clichés e
ademanes que sociológica e culturalmente se costumam ligar a clérigos, frades e
freiras. Era tão desenvolta, despachada e integrada na vida académica e
extra-escolar como qualquer outra colega. Apenas não namorava nem ligava nada a
isto. Havia, porém, tantos e tantas mais... Nem sequer tal traço dava nas
vistas como diferença. De resto, madura, um equilíbrio adulto, muito
responsável no trabalho e no trato, muito exigente de franqueza, autenticidade
e solidariedade com os outros.
Enfim, soube dela anos mais
tarde: tinha-se fixado em Roma. E tentava persistentemente rumos novos para a
Igreja, sempre em redor dum pequeno núcleo, mais ou menos flutuante, doutras
mulheres (freiras ou não, sei lá!) que eram sensíveis a idênticos anseios. E
mais anos correram sem me recordar sequer dela, até hoje.
Veio-me a notícia do
falecimento da Silvana: um cancro, um maldito cancro. Estaria a entrar na
velhice, creio eu. Já não a viveu connosco, portanto. O colega que disto me
informou é um médico idealista, a trabalhar em estreita colaboração com o bispo
da Beira, em Moçambique, cuja irmã era uma das do séquito daquela freira sem
hábito. O Dr. Macário Luís, como sabe que vim aportar a este convento, quase
anualmente passa por aqui de fugida, quando vem de férias, sempre muito
atarefado, lá do extremo das Áfricas. Traz e colhe novidades, habitualmente, da
frágil rede de dispensários onde labuta e quer que lhe abra uma janela para o
mundo, porque lá, ao que relata, não há tempo nem fôlego para tanto.
Soube, porém, da notícia e eu
não. Fora uma carta da irmã dele, datada de Roma, há já uns tempos atrás.
- Carteiam-se habitualmente, é?
Nunca me tinhas contado... Eu quase já nem me lembro dela. Em Coimbra era tão
discreta que, se não fora por ser tua irmã, nem sequer nela teria reparado,
julgo eu. Por isto é que deve ter ficado solteira. Ou foi por escolha?
- Não, não, foi por acaso. Como
comigo, não é? Onde é que arranjamos tempo, quando nos metemos em vidas como as
nossas?
- É interessante terem mantido
o contacto estes anos todos, apesar da lonjura.
- Deve ser mesmo por isso. Dois
irmãos desenraizados, um para cada lado do mundo. Vemo-nos ao espelho nas
cartas que regularmente trocamos. É uma revisão de vida periódica.
E, de repente, como eu lhe
tinha referido este meu diário e as bolandas divertidas em que me tem jogado,
lembrou-se de algo.
- Olha que nem de propósito!
Sabes o que a Rosário me tem vindo a pormenorizar nas derradeiras cartas, há um
bom par de meses? Aquilo são quase ensaios e não missivas, ela estende-se por
folhas e folhas, pormenores e mais pormenores. Agora que te ouvi reparo que sou
capaz de não ter entendido bem em que é que andavam, afinal, envolvidas tão
empenhadamente.
- Tem a ver comigo, é?
- É bem capaz. A Silvana e as
outras do grupo, incluindo a minha irmã, andam há meses a promover reuniões e
encontros e audiências, sei lá, para libertar os teólogos, se eu bem entendi.
Vou ter de prestar mais atenção àquilo. Pois se até tu andas a tratar de
arrumar a casa! Pelos vistos tenho vivido um pouco a leste, enredado lá com os
meus doentes e as higienes e os saneamentos e as prevenções... Enfim parece que
alguma coisa me vai a correr ao lado e eu sem dar por ela, não é?
- Oh, é só um dos empenhamentos
do Papa Francisco. Nós é que aqui o tomámos a peito, quer dizer, eu, a pedido
do Fr. Benedito. Se calhar mais ninguém por cá ligará nada ou grande coisa...
Pelo menos (e de certeza) ao que eu tenho vindo a escrever. Não percebo nem uma
ponta disto, como deves calcular. É mais um trabalho edificante para mim do que
outra coisa. Obriga-me a meditar num tema sério demais para o alcance das
minhas curtas pernas. E nisto apenas tenho de ficar agradecido, mais nada. Vivo
a questão por dentro, senão era mais uma vertente da vida e da Igreja em que eu
ficaria à margem.
- Ó Ambrosino, não te faças
parvo! Ganhaste em esperteza o que perdeste em tamanho, homem. Sempre vimos
isso em ti, sabe-lo bem. Não foste tu que desenrascaste os teus colegas de
curso que esbarraram em Kant? Olha que eu lembro-me e mais não tinha nada a ver
convosco, lá nas Letras, era da vizinha do lado. E em Medicina ninguém sabe que
existem semelhantes avantesmas.
- Pronto, não percamos tempo
com ninharias. Contavas que a Silvana andava com o grupo numa roda viva. A
propósito dos teólogos? Porquê?
- Na da Rosário, era porque era
a chave. Elas julgam que seria a chave de tudo, isto compreendi bem. Numa
renovação da igreja, claro. É do que andavam a tratar, como tu com a tua
tarefa.
- Bem, não compares. Elas, em
Roma, a tocar directamente com os instrumentos todos, nos lugares adequados,
com as personalidades precisas. E eu a rascunhar para a gaveta. Tem mesmo piada
a comparação – e desatei a rir, porque achei mesmo graça.
O Macário, porém, não achou
nenhuma. Olhou-me quase severo:
- Não desconverses, homem!
Isto, afinal, deve ser mesmo importante.
- Ai, lá que o é, é. Pronto,
desculpa, sou todo ouvidos.
- Se eu bem entendi a minha
irmã, a Silvana argumentaria assim: se temos uma Igreja moribunda, a papaguear
velhas receitas dum cardápio bolorento que já não satisfazem o apetite de
ninguém, ali abandonada no leito da senilidade, então o que há a fazer é
renovar-lhe a saúde com novas abordagens, receituário criativo, conceitos
inesperados, teorias arrebatadoras que levem a enferma a saltar do catre,
cantando e dançando de entusiasmo. Com a alegria dos primeiros tempos, como
quem nasceu de novo.
- E quem o faria? Os teólogos?
- Justamente. Eles é que são os
teorizadores, os peritos em rasgar a bisturi a carne do mistério, revelando-lhe
os segredos abscônditos, capazes de nos arregalarem os olhos de espanto.
Peritos em pegarem no morto e lhe reanimarem o coração, aos pulos,
ressuscitando-o. Eles são os médicos das almas, aptos a desencadearem milagres
por dentro de cada um, como nós, os médicos, tentamos por fora.
- E então, elas abriram
caminho?
- Não, ao que a Rosário conta,
não. Quer dizer, encontraram alguns entusiastas, da base ao topo. Até umas
novas companheiras para o núcleo de animação lá do grupo, que são sempre poucas
(mas a Silvana foi uma mulher persistente a vida inteira, não é?)
- Alguém do topo? Quem?
- Alguns cardeais. É verdade.
De contar pelos dedos, claro. Mas alguns. E, pelo meio, monges, padres,
monsenhores, bispos... Contudo, sempre excepções. A maioria não arrisca. Ela
diz que são uns medrosos. E que, pior, é que a grande massa é inabordável.
- Porquê?! – espantei-me.
- Nesta derradeira carta
conta-me que tiveram muito que sacudir a poeira dos sapatos, como diz o
Evangelho. E faz uma reflexão curiosa, pedindo perdão a Deus, se for um mau
pensamento: suspeita que a grande maioria é, no mínimo, agnóstica; porventura,
se calhar, encobertamente ateia e, decerto, no sigilo da vida privada,
inteiramente pagã. E que vive com isto sem qualquer escrúpulo, em perfeita paz
de consciência.
- Não acredito! Como é que é
possível?!
- Olha, possível, é, embora
deveras incrível. E, quanto a mim, definitivamente intolerável. Sabes como? Ela
desabafa que nunca lhes passaria pela cabeça, mas que encontrou alguns casos e
desconfia que os há-de haver aos montes. São indivíduos que aderiram ao
cientismo, não são ignorantes nem trapaceiros: para eles não há deus nenhum nem
qualquer realidade espiritual. Lembras-te da tese do pensamento como secreção
glandular do encéfalo? Pois. A única realidade que existe é a do mundo
sensível, susceptível de abordagem científica. E ponto final.
- Mas aquilo são leigos
ateus...
- Não, não. Homens da Igreja.
- Ora, é uma aberração! Como é
que é possível?! E sem rebate de consciência?! Como é que o conseguem?!
- Muito simples, ao que ela
descreve pormenorizadamente. A Igreja é um aparelho descomunal de enquadramento
das multidões, que as domestica e molda para o bem comum, através dum rico
encadeado de mitos poéticos, como os contos de fadas para encantar as crianças.
É a isto que reduzem a vida e a realidade espiritual. Aliás, toda a Revelação.
Ora, sendo isto, portanto, um serviço comunitário de vastíssimo alcance, eles
são os funcionários e gestores deste bem colectivo que, garantindo qualidade de
vida à humanidade em geral, com a paz dos bons costumes, lhes garante
simultaneamente uma vida regalada a eles, como, aliás, é de inteira justiça,
para quem pense nestes termos. Estás a ver? Onde é que há lugar para rebates de
consciência? É tudo lógico e com todo o sentido. Ainda para mais, cheio de
bondade para a humanidade inteira – sorriu, irónico.
Fiquei sem palavras um grande
momento. Foi como um tijolo em cima da cabeça. Ele olhava-me com um sorriso
triste e resignado. Voltei a mim, meio a tremer.
- No Vaticano?! Na Cúria?! –
perguntei, assombrado, a medo.
- No Vaticano, na Cúria. Pior:
vai do leigo ao bispo. Creio que ela não fala em cardeais aqui, neste contexto.
Mas sei lá...
- Bispos?! Oh, meu Deus! Não
pode ser!
- Já te expliquei como pode.
Sem problema nenhum. E porque não? É uma carreira de apoio social como outra
qualquer, com as respectivas promoções. Para quem estiver nesta postura...
- É cínico demais, ó Macário.
Até me provoca cólicas... – o estômago estava-me a doer mesmo. Cada vez ficava
mais sem palavras.
- Porque te espantas,
Ambrosino? – continuou ele. – Julgas que o Papa Alexandre VI acreditava nalguma
coisa além do explosivo Renascimento pagão do tempo dele, cheio dos mitos poéticos
do politeísmo greco-latino e da ciência experimental a derrubar tudo em redor?
Claro que não. Era um ateu chapado a fazer a fita e, portanto, não teve
escrúpulos nenhuns em transformar o Vaticano num bordel e as freiras que mais
lhe importavam em prostitutas, com orgias constantes, ao fim de cada dia de
trabalho. Dá-te por muito satisfeito por hoje ainda não termos recaído nisto.
- Eu não estou em mim... Mas
tens razão. E esta gente, ao menos, não tem dúvidas?
- Pelos vistos, não devem ter
muitas. Evidentemente, contudo, que os há-de haver com elas, cada indivíduo
trilha o respectivo itinerário e, em cada momento, a atitude encontra-se num
ponto diferente, não é? A Rosário conta-me um caso que uma delas testemunhou,
que o ouviu da boca dum participante. Na circunstância, um leigo. É secretário
dum monsenhor qualquer que vive apaixonado por um padre jovem, um carreirista
sem escrúpulos, diz o leigo, que utiliza aquele grilhão homossexual para trepar
pela hierarquia acima. As relações amorosas entre eles são predominantemente em
fim-de-semana. Então, de manhã, levantam-se, confessam o pecado um ao outro e
absolvem-se mutuamente, até à próxima vez. Assim, comenta humoristicamente o
secretário, têm a festa garantida do lado de cá e do lado de lá. Por causa das
dúvidas... É como ele remata a facécia, comenta a Rosário, quase com as tuas
palavras.
- É a degradação de tudo,
Macário. Não há arrependimento, não há emenda, não há confissão de reconhecer a
falha... Aquilo não é nada. Que significa semelhante simulacro de sacramento?
Esvaziou-se de tudo, é uma casca oca, não tem conteúdo...
- Pois não. E como poderia ter
se eles não acreditam em coisa nenhuma? É um mero mecanismo, à cautela. Até nem
este precisar de ser evocado. Até ao ateísmo completo.
- Mas que quadro tu me pintas!
É muito mais macabro do que poderia julgar. E agora principio a compreender o
que estava por detrás da denúncia do Papa Francisco de que há um lóbi
homossexual no Vaticano que emperra a renovação da Igreja. E tanta gente aqui a
suspeitá-lo de reaccionário, de conservador, obscurantista, por referir a
homossexualidade. Ai valha-nos Deus, que isto é muito mais complicado do que
parece. Como é que ele pode dar a volta a aberrações tão abismais? Oh, coitado
do Papa...
- Para a Silvana e o grupo dela
seria tirando os arreios que tolhem a teologia e convidando os teólogos a
entrarem pelo mistério dentro. Um grande acto de fé no Espírito Santo,
Deixando-O conduzi-los por e para onde Ele quiser. Em vez de andarmos nós aqui
a pretender salvar Deus. É mais ou menos isto que comenta a minha irmã.
- É boa! Uma paulada na
Congregação da Fé?
- Não me parece que a Silvana
se incomodaria muito com ela. Aliás, quantos ateus andarão lá dentro, até à
frente daquilo?
- Garantem o depósito da Fé,
como lhe chamam. Em si, não é tão mau assim... Fé em palavras cadavéricas, com
o verdete de antanho. Ora, até os escolásticos precisavam de comentar. E
discutiam. Agora...
- Bem, teólogos não faltam,
há-os por todo o mundo. Claro que já sabemos o que tende a ocorrer aos que pretendem
inovar, injectar vida nalgum pendor. Mas, se calhar, é preciso um bocado de
tudo. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra, como o povo diz.
- Provavelmente. Agora a
Silvana entendia que o que andava a alimentar a grande multidão dos
inabordáveis era justamente a teologia de frases feitas, de lugares comuns, de
palavras mortas. Este é que é o mito para as multidões, servido pelo apoio
social eclesiástico ateu, dos funcionários carreiristas da Igreja. E andam
muito bem apoiados em Roma. Com teologia-cadáver, as velharias de antanho, a
alimentar o temor supersticioso das multidões. E os serventuários a repetir,
como agulha de gramofone, o som vazio, enquanto incensam os quatro pontos
cardeais. Aliás, se a teologia não for repetitiva, isto não pode funcionar: nem
os operadores incréus saberiam o que dizer nem fazer, nem a multidão teria o
mito poético com que sonhar acordada, a se deixar arrebanhar e conduzir.
- Ah, pois, por isso os
integristas queriam a missa em latim, justamente para ninguém poder entender
nada. O mito deles opera pelo imaginário, pela fantasia, não tem a ver com
realidade nenhuma, nem racionalidade, muito menos com um itinerário de
conversão, de aprofundamento inesgotável da vida interior. Aliás, se esta foi
abolida...
- Quanto menos sentido as
palavras fizerem, mais sentido para eles farão, neste estranho rumo. Que
absurdo! A Silvana escolheu um campo de intervenção muito singular.
- Pelos vistos, uma causa
perdida. Ou a tua irmã não a interpreta assim?
- Só é perdida a que for
abandonada, afirmam elas. De resto, tudo fermenta e Deus faz como entender.
Entregam-se à vontade dEle e continuam (não sei doravante, sem a Silvana),
enquanto este “bom combate” as tocar no íntimo. O nosso tempo não é igual ao
tempo do Espírito, ponderam, e, portanto, ficam descansadas, ocorra o que
ocorrer. Seja feita a vossa vontade – é o lema. Seja o que Deus quiser – é a
postura interior, bem no dizer e no sentir fundo do povo crente. Tudo muito
simples, como tudo o que é muito autêntico, ao fim e ao cabo.
- Olha que é lindo, ó Macário.
E tem piada. Foste logo buscar frases feitas, lugares comuns, palavras mortas,
como dizias, e, de repente, vê lá que força de vida! Repara bem como isto é
mesmo tramado, não é?
- Evidentemente. Aliás, em todo
o cadáver houve vida. A questão é encontrar o pendor em que se manifesta e, de
repente, ele ressuscita dos mortos. Servir cadáveres é que não faz sentido. A
não ser que se queira matar a vida. Agora surpreender-lhes o segredo vital e
recuperá-los, que maravilha! É o sonho de qualquer médico. Não procuramos outra
coisa o tempo inteiro. Os teólogos bem podiam aprender connosco. Em vez de
serem apenas cangalheiros, não é?
- É verdade. E então, se forem
forçados pela perseguição, é bem mais triste, como continua a ocorrer, bem
contra a escolha e a prática dos Papas. Eu não sabia se a Silvana teria razão
em depositar tanta esperança na mensagem dos teólogos. Agora, de repente,
começo a vislumbrar-lhe um sentido bem mais profundo e vem noutra intervenção do
Papa Francisco: ele criticou muitos padres por não serem mais que vendedores de
velharias, de antiguidades. Já viste para onde ele apontava?
- Por mim, julgo que ninguém o
entendeu, no fundo. Se calhar, por trás, andam estas e outras lutas de muitas
Silvanas e de muitos grupos incógnitos que estão a fermentar gradualmente o pão
de amanhã. O Papa, porventura, sentiu-lhe o cheirinho, a abrir o apetite, e não
resistiu a franquear-lhe a porta. Mas vê só o tamanho da reconversão a operar!
Ah, Papa Francisco, tens de ter umas costas muito largas!
- Isto é uma reviravolta que só
te digo!
- Suspeito que a própria
Congregação da Fé tem de ser extinta. Não perderá nunca o tique inquisitorial,
por muito que eventualmente o não queira. E, de facto, andam, quê, a salvar
Deus? Que é aquilo? Que falta de Fé será esta? Pretendem trazer o Espírito
Santo à trela? Cuidam que são donos dEle? O que ruma sempre por caminhos
imprevistos? Que sopra onde quer? Julgam que O têm prisioneiro? É uma
instituição demasiado ateia para poder subsistir.
- És capaz de ter razão. A
conciliação é outra coisa. E é tarefa interminável dos pontífices, rumo
indefinidamente à plenitude. Não é para se descartar. Não é delegável. Então,
de facto, que é aquilo?
Fátima
– 28 de Junho de 2013
Depois de nos despedirmos
ficou-me a dúvida: como garantir o “depósito da Fé”, como lhe chamam?
Evidentemente que os processos anteriores institucionalizados falharam todos:
guerra (seja de reconquista aos moiros, seja de religião), Cruzadas, Inquisição
ou Congregação para a Doutrina da Fé (seja lá qual for o nome que lhe seja
dado). Seguiram a via da violência, da imposição. Daí o erro. Nem a instituição
actual escapa a isto, que mais não seja porque a grande multidão interpreta-lhe
a intervenção permanentemente nesta linha, mesmo distorcendo-lhe o intuito e
pervertendo tudo. Fica-nos, pois, apenas o exemplo do I Concílio de Jerusalém.
Bastará?
- Claro que sim! – retorquiu-me
o hortelão, um irmão que veio do povo já muito entrado na idade e que se
delicia levando a terra a produzir. – Não vê como é com judeus e maometanos?
Não têm hierarquia nenhuma nem institutos que tais, nem tribunais da fé e olhe,
perderam alguma coisa? Não. Estão aí bem pujantes, um alfobre de crentes.
Então?
Fiquei de queixo caído ao ouvir
isto. O nosso hortelão é mesmo um camponês. Com votos, é verdade. Mas onde foi
buscar aquela resposta? Quando me viu admirado a olhar para ele, desatou a rir,
mesmo à gargalhada. Tinha acabado de me colher um braçado de alfaces do talhão
onde estávamos, para eu ir entregar à cozinha.
- Ó irmão Ambrosino, não fique
com essa cara! Pois é, sou um campónio, nunca tive estudos de monta, mas cismei
em compreender aqueles calhamaços de O
Cristianismo, O Judaísmo e O
islamismo, sabe? Não tive coragem de lhos ir pedir, era muita presunção
minha, mas emprestaram-mos e explicaram-mos os que os foram lendo. E tiveram
paciência comigo, que burro velho já não aprende linguagem, como soi dizer-se.
E ao menos aquilo julgo que entendi bem. Ou não?
- Ora, se entendeu! Mais que
bem. Mas apanhou-me de surpresa, nunca imaginei que lhe importasse tanto. Ler
aquilo, esmoer aquilo e assimilá-lo, olhe que é obra! Que trabalheira! Como é
que das hortaliças saltou para uma coisa daquelas? Algum motivo particular?
- Pois claro, como podia não
ser? Mas, se ficarmos aqui à conversa, não há refeição para ninguém...
- Eu já volto, que o tema
importa-me. Fica por cá e pode aturar-me um bocado?
- O tempo que quiser, irmão
Ambrosino. A terra nunca tem pressa e o que se não fizer em St.ª Luzia faz-se
no outro dia. Portanto, já que lhe caí no goto, não deixe para amanhã o que
pode fazer hoje. Eu cá não largo o sacho tão cedo, senão para as horas.
Corri entusiasmado para a
cozinha com o meu braçado de verduras e disparei sem mais intervalo novamente
para a horta. Intuí que qualquer coisa de estranho se me iria revelar donde
menos esperaria. Talvez com peso nesta minha aventura. Um hortelão também pode
ter com que renovar a Igreja. Todos temos, a questão é desvendá-lo e pô-lo a
render. Que é que me poderá vir daqui? Um campónio a abalançar-se a desbravar
Hans Küng (ajudado, claro), na tentativa das pontes ecuménicas entre as três
religiões do Livro. Que é que o terá levado para ali? E tudo indica que
entendeu mesmo! Este convento traz-me as surpresas mais fascinantes!
E foi mais surpreendente do que
eu imaginava. Vou ter de deixar assentar a poeira para as ideias se arrumarem.
Farei um dia de pausa, que isto é demais.
Fátima
– 29 de Junho de 2013
- Sabe porquê? – atirou-me, mal
me aproximei, como se o diálogo nem houvera sido interrompido. – É que eu não entendia como é que podia ter
salvação, sendo tão ignorante que nem compreendo metade do que os nossos
mestres falam, está a ver? Por um lado, todos afirmam que temos de alcançar a
sabedoria, por outro, lemos que Deus se esconde dos sábios e se revela aos
ignorantes. Para um labrego como eu é de ficar às aranhas. E como o saber não
ocupa lugar, olhe... Mas foi um bocado de atrevimento para um casca grossa, até
eu entendo. Não me espanta o seu ar admirado.
- Ora, não acho nada – pus-me a
ajudá-lo a limpar as ervas ruins, enquanto lhe puxava pela língua. – É aprender
até morrer, diz o povo e com razão. E não foi tempo perdido, não é? Conseguiu
dominar aqueles quilos de literatura. Olhe que até a mim me custou, tive de
encher-me de paciência e de persistir.
- Ah, também teve curiosidade.
Sabe, a mim não foi aquela do ecumenismo, ultrapassa-me demais e já não é para
a minha idade, cheia de cãs. Era mais cá comigo e para poder acompanhar a comunidade,
andavam todos enredados naquilo, um homem sente-se de fora ao não tentar ir
mais ou menos na peugada dos restantes, como quem diz.
- E julgo que fez muito bem e
acompanhou certamente muito melhor. Mas deixa-me um bocado perdido. Se a sua
dúvida era aquela, como é que o Hans Küng ajudou?
- Ai ajudou e muito. Olhe só:
afinal, os judeus e os islamitas também se salvam, não é?
- Evidentemente, como a
restante Humanidade. Somos todos filhos de Deus e Jesus veio salvar-nos a
todos. Não pode haver discriminações a partir duma base destas, claro.
- Pois aí é que bate o ponto.
Lá na minha aldeia das berças o povo todo acreditava no contrário. Se não for
católico, com a missa dominical, a confissão e a comunhão pascal, nada feito.
Ah, e todos têm de ser baptizados e casados pela Igreja. Afinal, isto não é
mesmo verdade. Nada mesmo.
- Correcto. E andámos séculos e
séculos com tais antolhos. E o povoléu ainda anda por aí. É a tal ignorância
que não tem sabedoria, não é?
- Como lhe digo. Custou-me a destrinçar,
que a gente é de poucas letras. Mas olhe, foi um descanso quando o entendi. E
sabe o mais cómico? Não devo ensinar isto lá na aldeia. Dizem que sou um
herege. Até na minha família. Ficam muito assustados e põem-se a rezar pela
minha conversão, porque devo ser “um frade comunista, cruzes canhoto!” Já
desisti, não tenho mesmo jeito para lhes explicar, entendem tudo torto. Então,
olhe, é melhor ficar calado, engendra menos destroço.
- Não é nada de admirar, se
foram séculos e séculos a incutir-lhes aquilo na cabeça. Então, durante os
Descobrimentos, não tivemos S. Francisco Xavier a baptizar multidões, na Índia,
que ignoravam praticamente tudo acerca da fé cristã, convicto de que ao menos
garantia assim que as portas do Reino lhes ficavam abertas? Uma mão cheia de
água na cabeça, uma frase ritual e eis o céu escancarado como por magia. A
liturgia transformada em superstição. E não viam que isto era quase o mesmo que
ir à bruxa, salvo seja. É o fisicalismo mais oco, mais dessorado, sem nenhum
conteúdo vital a transmudar vidas, povos, a história. Ora isto, naqueles
tempos, era até com os melhores. Imaginemos como seria com o povo ignaro, não
é? Cumpre-se um rito, está tudo salvo, nem que a seguir sejamos todos
criminosos da pior espécie, livre-nos Deus.
- Já tinha ouvido qualquer
coisa. Mas então, antigamente, era mesmo assim?
- Foi, foi durante séculos e
séculos. Como se o Reino de Deus já se tivesse consumado e a Igreja andasse aí
a servi-lo ao quilo a quem o quisesse. Era como ir ao balcão da mercearia e
comprar uns gramas de sacramentos, uns arráteis (como diz o povo) de terços
mais um quilómetro de missas e estava o caso arrumado. Até compram Deus ainda
hoje com as promessas, não é? Ainda hoje. E ai de quem desdiga desta
superficialidade e mercantilismo, crendice vazia!
- Mas então a liturgia...
- É para viver-se com conteúdo
de sentido, a tocar nas vidas e a transformá-las. Senão, para que é que serve?
Alimentar atitudes supersticiosas? Bruxarias?...
- Ah, pois, entendi! É como a
minha dúvida, só que é do lado contrário.
- Explique-me lá, que
agora eu é que não entendi nada.
- Ó irmão Ambrosino, eu sou
meio ruim a explicar, não sei se me compreende...
- E eu sou meio mau entendedor.
Mas tente, que eu vou-me esforçar.
- Então, eu era como o resto do
povo. Que é que eu compreendia? Nada. Aqui é que tudo foi mudando, com o mestre
de noviços, com os retiros, as palestras, o director espiritual, os cursos...
Um indivíduo, por muito calhau que tenha na cachimónia, sempre há-de ir
esmoendo. E, quando dá por ela, pronto, olhe, já o não entendem os da igualha
de antigamente. Como comigo.
- E que é que não entendem? O
que me contou?
- Olhe, que isto da salvação
não tem nada a ver com o beatério, andar sempre na igreja, a bater com a mão no
peito, a desfiar terços e novenas e vias-sacras, eu sei lá... Tem a ver com a
maneira de viver a vida com os mais (no meio do mundo ou retirado). Ou fazemos
pelo melhor ou não. O resto, ou redunda nisto ou então é um engano. E acreditar
que aquilo é que salva, mesmo sem tratar disto, ou maltratando os outros e o
povo, o que é pior, é um erro e de vez. Aqui é que não há mesmo salvação. E não
vale a pena acreditar no contrário, porque acreditar, sem ir dando sempre a
volta de dentro para fora, que é que adianta? A gente ou vive abraçado a Deus
ou não. E não é a liturgia que nos abraça, obrigatoriamente, é como O abraçamos
na lavoira do dia-a-dia. Se a liturgia ajudar, tanto melhor, senão, não presta
para nada. E se nos afastar de lá e pretender bastar-se, sem tocar a vida para
a frente, para a união consigo, com todos e com tudo, então é que é mesmo uma
bruxaria. Faz o contrário do que devia fazer. É um muro que me impede de chegar
aos talhões de cultivo. Aí morro à fome nem que acredite que vou ser
miraculosamente alimentado.
- Boa, irmão, boa! O
fisicalismo (é falar como o meu Mestre), para si, não faz mesmo sentido nenhum.
Ou alimentamos o conteúdo de sentidos para a vida ou desperdiçamos o dom de
Deus nos rituais, mesmo os mais veneráveis. Andaremos a matá-los e a
pervertê-los. E a corrupção do óptimo dá o péssimo, aqui como em todo o lado. A
melhor liturgia, o mais elevado sacramento redundará no mais elevado obstáculo
e contrafacção do Espírito. Aliás, andamos nisto há que séculos, de olhos
tapados!
- Pois, a mania de que algum
efeito hão-de fazer e, como são coisas sagradas, não há-de ser mau. E eu a ver
a maior beata lá da minha parvónia, uma língua de palmo, a cortar em toda a
gente, Deus lhe perdoe, toda segura de si porque ela, sim, era mulher de
religião, não era como a restante gentalha. E cuspia para o lado! O resto não
foge muito disto. Como é que há quem não veja? Ou não querem ver?
- Bem, lá que os ritos têm
efeito, têm: ou alimentam a espiritualidade, afinando permanentemente a vida
interior para dar frutos na exterior, ou não alimentam e, no limite, substituem-na,
sem lhe tocarem, num rosário de magias e crendices que impedem os indivíduos de
chegar a ela, uma vez que crêem que o gesto externo é que é o caminho. É o
vício maior do ritualismo que os respectivos próceres não há maneira de verem
e, portanto, não arrepiam no roteiro. Continuam a empanturrar-nos de ritos
mágicos, sem olharem aos efeitos que andam desmultiplicando mundo fora.
- Olhe, eu vou-lhe contar um
caso, irmão Ambrosino. Foi com um colega meu da escola, andava dois ou três
anos à minha frente. Passou em miúdo pelo seminário e depois tornou à parvónia.
Éramos ainda moços e encontrámo-nos, como outras vezes, na missa de domingo.
Ele pôs-se a um canto, muito calado, de olho atento no celebrante de então que
ia lá a rogo, por impedimento do pároco, ausente da terra. No fim, com ar um
tanto nervoso, e declaradamente enfadado, arrastou-me para o adro, longe de
ouvidos alheios, e regougou: “Nunca mais cá ponho os pés! Nem aqui, nem em mais
lugar nenhum!” Estava meio a tremer, mas muito determinado. “Que é que há?” –
perguntei, espantado com a mudança de humor dele, dado que era um brincalhão,
permanentemente, não conseguia resistir a andar constantemente a contar
larachas.
- Alguma coisa o revoltou, foi?
– questionei, a ver onde aquilo iria parar.
- Pois. Mas era pior. E, para
mim, um plantio exemplar que me fez cuidar muito e dar muita volta.
- Conte, conte, sou todo
ouvidos.
- Desabafou o Quintino (era o
nome dele): “Ó pá, eu discordo do homem do princípio ao fim, tudo o que ele
contou, desde que abriu a boca, é um chorrilho de asneiras. Para mim, são erros
atrás de erros, no dizer deles seriam heresias atrás de heresias”. E quase
bufava de exasperado. Eu fiquei confundido e nem consegui dar-lhe troco,
limitei-me a ouvi-lo e a tentar compreendê-lo. Quando me viu na expectativa a
olhar para ele, desabafou, de repente: “Vê lá, é isto. Só me apetece rogar
pragas a cada afirmação que ele fez. Tenho de estar aqui a conter-me para não
desatar a disparatar contra o gajo, entendes? Dá-me cá uns nervos e uma revolta
que nem imaginas! E o pior é que não é só com este, é com todos. Tudo isto está
errado e eu não devo aguentar mais. Não é nada assim como eles dizem, não devia
ser nada assim! Aquele paleio não tem nada a ver com a vida, nada... Como é que
não vêem? Eu não aguento mais, não aguento!” E bufava, enraivecido. Eu
limitei-me a um tímido e ambíguo: “É mesmo?..” Depois de respirar fundo várias
vezes a se acalmar, olhou-me de frente e rematou: “Para vir aqui acabar
revoltado a rogar pragas contra as ideias deles, ficar ao fim numa pilha de
nervos, completamente ao contrário, virado do avesso, estás a ver... é melhor
não vir. Isto é tudo ao invés do que deveria ser. Para mim não há aqui
celebração nenhuma, festa nenhuma, revelação nenhuma. Então, para não ficar
pior, desisto de vez, nunca mais ponho os pés em missas, seja lá onde for, nem
em nada mais. Acabou!”
- E cumpriu?
- E cumpriu.
- Foi para si um plantio
exemplar por ser um a mais no abandono de milhões, pelo menos no mundo
ocidental, de qualquer religiosidade, da Igreja?...
- Não, não! Isso era o que eu
julgava na altura, meio tolhido pela novidade e sem entender. Depois, então
aqui com o noviciado, abri os olhos. O Quintino foi mesmo exemplar do que deve
ser feito em casos tais.
- Abandonar tudo?! –
admirei-me.
- Aí é que está o engano.
Aquilo não foi abandonar nada. Bem ao invés, aquilo foi agarrar tudo, com ambas
as mãos, antes de lhe escapar, aquilo foi o acto de fé mais autêntico que, se
calhar, até hoje testemunhei. Aquilo foi segurar o ovo, deitando fora as cascas
vazias com que o andavam a enganar, como se fora o ovo inteiro. Abandonar os
rituais todos em nome da interioridade que lhes roubaram, para preservar esta a
alimentar a própria vida, como é que isto poder ser um abandono?
- Estou a entender, julgo que
estou a entender. Mas como norma...
- Pois, como norma! Está a ver
porque é que eu vim aqui parar e professei? Ignoro o caminho do Quintino. Saiu
da terra e não deu mais novas. Às tantas encontrou uma trilha igual. Ou até que
não tenha nada a ver aqui com a nossa comunidade mas lhe dê o mesmo, de algum
modo. De fora, se calhar pode parecer um ateu completo e, afinal, ser duma
espiritualidade intensa que apenas daquele modo logra protestar e gerar ao
menos uma mezinha minúscula às deturpações que se generalizaram e lograram
legitimar-se na Igreja, com as teorias mais retorcidas, não é? Por mim, no meu
fraco entender, cuido assim. E julgo que presto justiça ao meu amigo de infância,
perdido por esse mundão de Deus.
- Abandonar a Igreja em nome da
fé? Julgo que entendo, mas lá que é muito estranho, é...
- Não vou contra, porque se me
antolha o mesmo, claro. E faz-me alguma confusão... Mas já reparou em quanta
fome de espiritualidade autêntica hoje vemos mundo além, nos mais variados
movimentos, fora de qualquer igreja ou religião? Quer dizer muito. Eu vejo
milhões, centenas de milhões de Quintinos aí. E sinto-os muito irmanados
comigo. Ao contrário dos matarroanos das berças que perdem o tempo em
ritualismos que não passam de magia oca e não revelam qualquer fome de
interioridade, de reordenarem e aprofundarem, a partir do imo, a vida inteira.
Vão à igreja mas eu sinto que não têm nada a ver comigo. Os outros não vão, mas
eu sinto-os como meus irmãos na fé, mesmo que não se identifiquem com nenhuma.
E Deus me perdoe se me engano, que eu não sou de grandes luzes. Isto é falar
com o coração. Mas é a linguagem que Deus fala e que Deus entende, não é?
Fátima
– 30 de Junho de 2013
- A segunda dúvida é que era o
meu problema: como é que eu me salvo, se eu não entendo nada de religião? Eu
nem sabia o que era um teólogo, quanto mais... – retomou o frei hortelão,
quando lhe virei a atenção para este lado.
- Bem, não é requerido nada disso,
era o que faltava! O céu andaria bem vazio. E quantos teólogos estarão no
inferno, irrepesos! É o bom coração... – ia a continuar, retomando a fala dele,
quando me interrompeu, inopinado.
- Julga mesmo? Eu também andei
por aí, mas depois de muito marralhar, olhe, creio que o juízo de Deus não
corre por tal carreiro.
Fiquei, de repente, perdido. A
que é que se está reportando? Aguardei, interdito. Ele entendeu o meu
aturdimento e apressou-se a explicar.
- É isto: Deus salva pelas
ideias ou pelos actos? Quer dizer: amar a Deus é pensar nEle ou é unir-me em
sentimentos, afectos, intuições, vontade, sonhos, pensamentos, projectos,
actividades, tudo?... Eu inteiro ou as minhas teorias?
- Ah, isso, pois. E então?
- Ora, descobri que nenhuma
religião julga que Deus salva ou condena por mor das teorias que quenquer tenha
na memória. Os místicos também não. É sempre, mesmo nos grandes Doutores, pela
“vida exemplar” que levam. São, afinal, os actos que contam, os actos em que
tudo, num indivíduo, se junta numa mancheia, unida bem apertada. É onde a gente
mora inteiro. Isto é que conta. Ou aí vamos andando com Deus ou não.
- Evidentemente. E daí?
- Não está mesmo a ver, irmão
Ambrosino? Olhe, o que me deixou baralhado foi isto: alguma vez a Igreja condenou
alguém pelos actos? Não. Nunca, nem sequer quando teve de suportar Papas
publicamente imorais ou criminosos, não é? Que, graças a Deus, em dois mil anos
houve de tudo, para todos os gostos. É verdade ou não?
- É, mas condenar como? Quando
muito, a Igreja absolve dos pecados em nome de Deus. Deus que perdoa sempre
como acentua peculiarmente o Papa Francisco. Não estou entendendo.
- Ai está, está. Veja, alguma
vez a Igreja deixou de condenar, até hoje em dia, qualquer ideia, qualquer
maneira de ver, qualquer teologia que julgue desviada? Nunca. E não apenas as
ideias mas quem as teve e tem, os movimentos, as comunidades. Ora, se Deus o
não faz e se está nas tintas para o que pensem ou deixem de pensar, em nome de
quê o faz a Igreja há milénios? Claro que eu não ignoro: sempre afirmou que era
em nome de Deus. Mas se Ele não actua deste modo, como é? Está-me a entender?
Na Revelação, nem Deus nem Jesus nunca elaboraram uma teoria qualquer, uma
teologia, uma concepção do que quer que seja. Indicaram por todos os meios o
Caminho. Esta é que é a Verdade que redundará em Vida. Ora, são atitudes para
arrotear as leivas, para incarnar em actos. Não conceitos, ideologias ou
teorias. Então como é?
- Anda tudo desviado? Sente-o
como tal?
- Repare: até Israel descobriu
que Deus não é atingível por palavras nossas. Não pode ter nome, daí os vários
nomes, Eloim, Javé, Jeová, Emanuel, Deus, para sublinhar que não há nenhum
capaz, não vale a pena. Então que é isto na história da Igreja? Eles sabem o
que Ele é? Não sabem. Então como se atrevem?...
- Até aqui entendo. E daí? O
fisicalismo empestou tudo, convenceram-se de que o céu já estava na terra, o
Infinito estaria consumado e eles eram os porta-vozes oficiais encartados. Quando
a interioridade se esvazia, o orgulho ocupa o espaço deixado vago. É
permanentemente assim, da base ao topo, em toda a comunidade religiosa, nossa
ou outra qualquer. Por aqui julgo que entendo o fenómeno, o que o não torna
menos pecaminoso nem repulsivo. Foi uma história milenar de horrores. E continua,
embora mais branda, em fogo lento.
- Pois, mas não foi por aí que
mais me tocou, sabe?
- Então?
- É que entendi como podia
salvar-me, apesar da minha ignorância toda. A teologia, sozinha, não perde nem
salva ninguém. É uma ferramenta, o que conta é a lavoira que lavrar com ela ou
sem ela ou até contra ela. É o que eu puser na vida, é como me puser no rio dos
dias. Posso navegar ou encalhar. Normalmente, a teoria mais tocante
desencalha-me melhor e navego mais solto, a que o for menos tende a encalhar-me
mais e a tolher-me a esteira da navegação. Só que isto é para onde tende, pode
em concreto lavrar tudo ao contrário. Então, a mais errónea, se der bons
frutos, tudo bem, a mais acertada, se estimula ao mal fazer, tudo mal. Este,
calculo eu, se bem entendi, é o juízo de Deus. Ora, eu não compreendo como
justificar aquilo de obrar à margem dEle ou, pior, contra Ele. Como actuámos
desde sempre, não é? Cheios de certezas que têm de ser, ainda por cima, sempre
falhas: Deus é e será irremediavelmente inatingível. Como é que estamos
constantemente prontos a ignorar isto tão rápido? É muito estranho!
- É, de facto, muito estranho –
repeti, pausado. – Parece que a teologia, afinal, então não será tão
relevante... Pela sua experiência.
- Bem, não o querendo desdizer,
eu quase diria que é o contrário.
E, perante o meu ar de
perplexidade:
- Repare, foi ela que me abriu
os olhos e aqui estou. Sem ela onde estaria? A praticar superstição ou bruxaria
dita religiosa num canto qualquer? Pois. Por outro lado, é uma teologia morta,
de frases feitas e lugares comuns, tecida de banalidades de base que semeia
Quintinos aos milhões pelo mundo fora, desde há séculos. Então como é que é
irrelevante?
- Pronto, retrato-me. Como, perante isto,
equilibra os pratos da balança?
- Para mim é simples. Se Deus
salva o católico, o protestante, o judeu, o muçulmano, o hindu, o budista, o
animista, o ateu... e hoje vemos que salva, os nossos santos vêem-no, os
místicos confirmam-no nas visões deles, a graça de Deus toca-os a todos, os
milagres dão-se com todos... bem, cuido que é de concluir que o Céu é mesmo
radical: pouco se lhe dá a forma como a gente O vê, todos os caminhos podem ir
dar à mesma cumeeira. Poderão uns ser mais fáceis e directos, outros mais
enredados. O que conta é caminhar para lá, mais e mais, até onde cada pé
adregar de atingir.
- Vale tudo o mesmo? Se os caminhos não são
todos iguais...
- O que temos é de pôr o melhor
de nós ao dispor dos mais e acolher o melhor que nos puderem indicar. Cada um
vá por onde as pegadas mais firmes lhe assentarem, então não é? Deus pouco se
importa com isto, questão é que resulte em vida santa, em amor por Deus, pelos
outros e por si próprio, tudo formando um amor único. Quem for por aqui
salva-se, quem não for, perde-se. Tudo o mais são ferramentas, umas manuais,
outras automáticas. Mas quem escolhe o que lhe convém é o coração de cada um.
Não é um tribunal, uma igreja, um exército. Nem um dogma qualquer. Deus me
perdoe se estou errado, mas é o que vejo e o que sinto. E foi o que me libertou
por dentro. Posso não entender nada de teologia, mas se levar a vida como Deus
ma quer, então estarei com Deus, do lado de cá e depois do lado de lá. E os que
entenderem tudo, se o não fizerem, não lhes vale de nada o entendimento,
estarão fora da união com Deus. Perdidos.
- Então, a teologia...
- A teologia ajuda ou desajuda,
conforme ela for. E conforme o coração onde a semente cair. É tal e qual como
aqui na minha horta, salvo seja, que Deus se amerceie de nós.
Fátima
– 1 de Julho de 2013
- O depósito da Fé está furado!
– comenta o Fr. Nardo, divertido, a propósito dos meus últimos escritos. Ele
adora afirmar aquilo e aqui não podia vir mais a calhar.
Íamos a pé rumo ao Santuário,
cujo recinto cruzaríamos para atingirmos um lar de freiras. A Casa de Betânia,
em cujo auditório vai decorrer uma palestra para um movimento de leigos. E eu
acompanho o palestrante, embora também me apeteça meter o bedelho, já que é
temática ligada ao ecumenismo, o que toca em particular as minhas dúvidas. O
Fr. Nardo é que adora gozar com tudo e tem mesmo graça. Vai pôr a assistência à
gargalhada. Põe sempre. É o grande dom dele, a alegria em pessoa.
- Furado ou não, é algo que não
me preocupa – comentei eu. – Onde me não encontro à vontade é naquilo de que
qualquer religião, até a falta dela, no ateísmo, agnosticismo ou indiferença,
afinal, tudo pode levar a Deus. Já entendi que uns caminhos facilitam, outros,
não, o trilho é directo ou desviado mas, mesmo assim... Cristo morre na cruz e
depois vale pouco mais ou menos o mesmo que se não tivera morrido? Sinto uma
conclusão destas meio desconfortável, há por aqui um desperdício qualquer que
não foi tido em conta...
- E Jesus Cristo há-de se
preocupar muito com isto, não há dúvida! Olha lá, não queres ser instrumento de
Deus?
- Claro.
- E a teologia não é um
instrumento nas tuas mãos?
- Pois.
- Então, apenas o instrumento
dum instrumento é assim tão importante que te tire o sono? Não deixes que to
faça. Dorme em paz e que o Senhor te acompanhe! – rematou, risonho
- É que é um prejuízo enorme e
uma inutilidade. Para que é que serviu levar às costas o peso do mundo inteiro?
“Cordeiro de Deus que tiras o pecado do mundo”, não é? Se antes e depois tudo
caminhava no mesmo rumo...
- Lá caminhar, caminharia. Mas
chegava a bom termo? – E, com uma risada bem-humorada: - Olha os que andam de
joelhos, às voltas à capela das Aparições. Esfolam as rótulas até sangrar e não
chegam a lado nenhum. É sempre à volta!
- E era tal e qual? Também não
creio que o teria de ser. Basta reparar no Antigo Testamento, pejado de santos
Patriarcas e Profetas e sei lá que mais. Com o resto da humanidade era o mesmo,
não é? Deus não se deixa circunscrever, atar de mãos, nem é monopólio de
ninguém. Então fico meio perdido.
- Ai que eu tenho de rezar o
responso de St.º António, a ver se te encontras! – brincou ele. – Eu não sou
grande teólogo, sabes bem, dá-me muito mais gozo a palhaçada, que esta vida é
uma alegria. Agora repara: se Jesus não o tivesse feito, se não virasse o rumo dos
dias, afectando tantos em redor que o levaram à cruz, se outros mais o não
tivessem feito, antes e depois dele, onde é que estaríamos, hein? Como é que
cuidas que não valeu de nada?
- Ah, pois, aí valeu! Valeram
todos. E não estaríamos aqui, de certeza que não. Os lutadores da liberdade é
que libertam, pagando o custo em sangue e lágrimas. Em todos os povos,
evidentemente. E em todos os tempos.
- E os que cantaram o cântico
do amor? Em melodias, palavras, gestos, actos e projectos de vida que
transmudaram o mundo inteiro numa alegre romaria? E olha que o pagaram e de que
maneira, que morrer por amor foi o lema universal, pela humanidade fora, tempos
além.
- Bem visto, Fr. Nardo, bem
visto. Plenamente de acordo. Mas fica-me a morder aqui uma peça desencaixada. É
que são todos iguais, Jesus é igual aos restantes. Faz parte dum movimento
anónimo em que muitos convergem, embora se ignorem mutuamente. Não sente isto?
É como retomar a disputa dos primitivos em que houve filósofos que compararam
Sócrates e Jesus, pelo paralelo da vida e da morte deles, e acabavam por
preferir aquele como o grande modelo, não este. Podíamos repeti-lo com muitos
outros. Somos todos filhos de Deus. Que grande confusão!
- Ai, ai, que temos de te
arranjar uma bússola. E um mapa bem ilustrado, cheio de paisagens de todo o
mundo – gozou ele, por mor da minha colecção de postais ilustrados. – Ora,
Jesus também é um homem como todos os mais. Ou não? Não me digas que o endeusas
igual a tantos que assim se descartam de responsabilidades: Ele era Deus, podia
bem dar conta do recado; agora eu, não, sou meramente humano, não me peçam nada
daquilo. Ainda vais aqui? Valha-te Deus!
- Não, não! O alheamento, o
passa-culpas não é coisa de anão. Sabemos alombar com o que calha e muito mais
do que o nosso porte permitiria. Aliás, ninguém nos perdoa a falta de estatura,
é pormenor que nunca podemos ignorar. Ai de nós, os anões!
- Então que bicho te mordeu? De
certeza que acordaste de pernas para o ar ou os anões não conseguem fazer isso?
A propósito, nunca te vi fazer o pino – pronto, há-de andar sempre a gozar.
Claro que desatei a rir. Tem um
sentido de humor imparável, tudo lhe serve de pretexto. E todos o adoram,
evidentemente, por isto. Torna qualquer dia leve, por mais pesado que se nos
apresente. Com ele é sempre festa.
Quase perdi o fio da meada. Mas
tornei, renitente, que o espinho magoava e eu não estava a localizá-lo, a
identificá-lo com rigor.
- Olhe, Fr. Nardo, se não há
qualquer diferença em Jesus... Como é que tudo isto se justifica? A Igreja,
todas as igrejas, todo o movimento cristão, o cristianismo enquanto vector de
cultura mundial... Assente no vazio? Não há nada que o justifique, nada
especial, melhor, específico? Declarou há bocado que Jesus também é homem. E ser Deus não representa nada? Os que não crêem...
não têm a que agarrar-se!
- Ah, agora bateste no ponto.
Não tocas bombo, que é maior que tu, mas tocas pandeireta. Não se ouve tanto,
mas um ouvido atento distingue-a. – E, de repente, mudando de tom: - Ó Tomé
desgraçado, tens mesmo de pôr o dedo na ferida? Como vais converter um mundo
cheio de Tomés? Que exemplo é o teu, homem de fé mais curta que o teu tamanho?
– e continuava a ironizar alegremente.
- Vá lá, Fr. Nardo, que isto
anda-me a picar o peito e olhe que ainda acabo mais pequeno com estas angústias
todas. Qualquer dia sumo-me - brinquei, por minha vez.
- Ó Paulo, Paulo, vem em minha
ajuda! – simulou ele, divertido, uma grande imprecação. – Pois, irmão, tens
toda a razão: tudo assenta num enorme vazio, andamos aqui a flutuar nas nuvens
do nada, há milhares de anos, e, ao mais, não temos asas – agora imitava um
grande pregador, com gestos largos, uma voz grossa contida, para não alarmar os
viandantes com quem nos cruzávamos. – E tudo isto não valeria a ponta dum chavelho,
- continuava ele a pantomima – não fora o facto de Jesus ter ressuscitado. Uf!
– fez ele, como um pregador fatigadíssimo. – Acabei! Obrigado, S. Paulo, por me
dares a dica, que isto de converter estes pagãos de cabeça mais dura que os
fraguedos da Serra de Aire, cansa que se farta.
- A ressurreição? – perguntei,
subitamente aparvalhado. Como é que me tinha esquecido?
- A ressurreição, qual é a
dúvida? Tem-la em algum outro? Que é que virou S. Paulo que nem sequer o
conhecia, senão que Ele o derrubou no caminho de Damasco, depois de morto, o
imprecou a sério e o convidou a operar ao invés? O que ele fez, claro, quem me
dera o mesmo! Mas não é visita para um frade bobalhão que apenas sabe rir e
divertir os mais. – E, como eu estava com um ar meio aturdido: - Ó irmão, então
Abraão ressuscitou? Moisés ressuscitou? O Rei David ressuscitou? Não, nem
acreditavam que tal coisa era viável, nem lhes ocorreu. Era tudo cá na terra,
na terrinha. E mais. Buda ressuscitou? Confúcio ressuscitou? Aliás, Maomé ressuscitou?
Não, nem nenhum teve pretensões a tanto. Contudo, creio bem que estão todos salvos.
Todos foram homens de Deus, o melhor que souberam e conseguiram, cada qual a
seu modo. Tal como eu sou meio bufão e espero que Deus se divirta e agrade
comigo.
- Pronto, pronto, não fique
afobado. Eu só estava espantado com a minha estupidez. Pois claro, onde é que
eu já ia! A minha fé, deveras, é frágil, até tenho vergonha de mim...
- Ei, onde isso vai! É igual
com toda a gente, que julgas? Uma fé sem dúvidas não é fé nenhuma, é uma
crendice qualquer. Não acreditas que eu faço milagres? Olha que te farei para
aí um que até ficas de olhos vesgos, vais ver! Não acreditas? Ah, seu maldito!
– gozou, no seu jeito inveterado.
Inesperadamente caí em mim.
- Mas então temos de os
converter! Como S. Paulo. Senão, senão... Não é?
- Como S. Paulo, disseste muito
bem, como S. Paulo. Não é convertê-los, é informá-los. Levar-lhes a Boa Nova –
Evangelho: é o que significa. Percebeste?
- Não, nada. Não é o mesmo?
- Pois, devia ser. Mas em geral
tornou-se no contrário. A alegria, a libertação tornou-se no horror, na
matança. Ou te convertes ou estás tramado. Pior, matamos-te o corpo para te
salvar a alma. Se não tivesse sido trágico, era mesmo divertido. A perversão da
alegria genuína que viria de descobrir que a morte não existia mais, que a
ressurreição nos ficava ao alcance, não foi derivar numa comédia, foi uma
tragédia pelo mundo fora.
- Mas como é que isto podia ser
feito?
- Então, levar uma espantosa
novidade é dá-la às gentes, mais nada. Elas acolhem-na como entenderem. Querem
saber pormenores? Querem trocar por miúdos as implicações? Querem festejar?
Querem reorganizar a vida em função disto? É o mesmo como com qualquer grande
novidade que nos avassala a vida. Reagimos e tomamos as iniciativas que melhor
se adequarem ao caso. Não é assim na realidade quotidiana? Eu, por exemplo,
adoro fazer festa e gozar com tudo, é o meu carisma. Deixem os indivíduos
livres. Pois se isto era para os libertar!
- Certo, mas então como faríamos?
- Muito simples Chegas ao
budista e contas-lhe: sabes que a tua via permite a ressurreição? É verdade,
Jesus conseguiu-o, seguindo o caminho estrito da espiritualidade a vida
inteira. Chego ao hindu e informo-o: o teu rumo de vida interior, vivido com
toda a autenticidade de que a gente for capaz, vence a morte e culmina na
ressurreição, em corpo e espírito – Jesus atingiu-o. Converso com o islamita
informando-o de que a vida piedosa dele o salvará inclusive da morte,
permitindo-lhe a ressurreição da carne, porque o grande profeta Jesus em que
ele crê o conseguiu, abrindo o caminho desde então para todos. E do mesmo modo
com os mais, estás a ver? Levamos-lhes a informação crucial. Deus, Jesus está
movendo por dentro o coração de todos e a nossa novidade pode remover a
derradeira barreira para o salto no Infinito, tanto na interioridade como no
século.
- Quer dizer, não os converto,
acrescento-lhes uma nova dimensão, abro-lhes a porta do céu. Deles depende
depois o aproveitamento que entenderem, que caminho seguir.
- Nem mais, grande pequeno
teólogo – voltou o brincalhão.
- E se não ligarem nada...
- Sacodes o pó dos sapatos e
vais-te embora. É a ordem que temos da boca de Jesus. Quer dizer, respeita-los
integralmente até ao fim. Se Deus os respeita, com que direito os queremos
converter à força, os perseguimos, aprisionamos, chacinamos? Que é isto? Que é
que tem a ver com a Grande Novidade e as implicações dela? Trai-a e perverte as
trilhas todas.
Fátima
– 2 de Julho de 2013
Foi logo às matinas, enquanto
cantava a plenos pulmões, que de repente entendi: é mesmo como S. Paulo! Quer
dizer, eu já tinha entendido, não é? Mas veio-me ainda outra luz, mais
obumbrante, inesperadamente. Mais ou menos como se me dividisse em dois, um que
já via meio cego, outro a deslumbrar-se com a paisagem inteira. Inteira por
ora. Sei lá bem quantas revelações mais me virão a caminho! Sou um
privilegiado, muitas graças tenho eu a dar. Primeiro a Deus, a Jesus, a todos
os santos que me andarão a abrir os olhos. Depois ao meu Mestre que me pôs esta
freima entre mãos. Quem adivinharia que tanta luz se me faria? Eu, por mim,
nunca. Sou mesmo um tolhido, de corpo anão e de alma anã. E agora reparo que o
somos todos, cada qual a seu modo. Vamos trepando por degraus da noite para o
dia. E são pequenas coisas que nos levam ao patamar posterior. Ora, S. Paulo
erguia nas mãos uma enorme escadaria que punha ao dispor de quenquer, pelo
mundo antigo fora, até queria vir aqui, à Península Ibérica...
Pergunta o anão antigo, meio
cego:
- Para abolir o politeísmo, o
culto dominante de Mitra e quaisquer outros pré-existentes?
- Não, não – responde o anão
novo, de olhar deslumbrado. – Não para os abolir, mas para os consumar, no que
tinham de apelo espiritual (e todos tinham) e, assim, ultrapassá-los.
- Não vai dar ao mesmo? –
insiste o anão vesgo.
- Ora! Tenta levá-los a partir
de dentro até à plenitude, tornando inúteis os rituais e as crenças
preparatórias – contrapõe o anão iluminado. – Isto é que os leva a caducar,
muitas vezes instantaneamente. Daí a aparência de abolição. Mas é mentira, em
dois sentidos. Primeiro porque ir até à plenitude não abole nada, apenas torna
imprestável a vestimenta antiga que então se pode despir e abandonar. É o que
quer dizer que nem um jota nem um til serão abolidos da lei, como Jesus afirma
no Evangelho. Em segundo lugar, a abolição, porque não cumpriu o fito prévio em
plenitude, afinal não abole nada nunca: continua a crença antiga pelos séculos
dos séculos, no coração e na privacidade dos crentes dela, enquanto o ideal
íntimo que visa não for definitivamente consumado e, então, sim, de vez ultrapassado.
- Não vejo nada disto em S.
Paulo – persiste o anão meio cegueta.
- Ai vês, vês – retruca o
outro, de olhos arregalados. – Olha-o no altar ao Deus Desconhecido. Não prega
contra os mais, não os ataca nem derruba. Ao contrário, traz a novidade dum
Deus que eles ignoram. E mais, dum que resolve o problema de todos porque
arrumou com a morte, venceu-a e ressuscitou. Um Deus que logrou levar até ao
fim o que todos os deuses visam: dar um sentido à vida, cada qual em seu campo,
a fim de a realizar em vez de a frustrar, trazendo a felicidade a cada um.
Felicidade que a morte derrota mas que o novo Deus resolveu, consumando
definitivamente a meta que todos propugnavam mas não conseguiam atingir e
ultrapassar.
- Ora essa! – instava a miopia
renitente do velho anão. – Então continuaria tudo igual, nas religiões, pelo
mundo fora. Mas o cristianismo expandiu-se e é predominante...
- Pois é, de nome – e o novo
quase se diverte. – Mitra predominou com o politeísmo durante três séculos.
Depois começou a abolição. Então continuaram a predominar, às escondidas, como
todos os outros cultos e crenças, pelo mundo fora. Ou julgas que os quase
duzentos milhões de brasileiros, por exemplo, ditos cristãos, o são de facto?
Não, nem um por cento entendeu nada do que isto significa (e já seriam milhões,
apesar de tudo). É por isso que atrai tanto, por ali, o candomblé, as mães de
santo, Iemanjá, sei lá que mais. E é o mesmo pelo mundo fora. A abolição torna
clandestino o que antes era patenteado e que então perdura indefinidamente,
tornando doravante mais difícil levar a Boa Nova da ressurreição a quenquer que
seja. Até porque os próprios cristãos a perdem de vista e andam para aí a
estrebuchar em ritualismos ocos, pejados de superstições mágicas.
- Então é praticamente preciso
abolir tudo – insiste o anão da escuridade, na suspeita duma aurora vindoira.
- Pois é – confirma o outro,
vidente, alumbrado. – Se o que importa é a espiritualidade de fundo, a
fermentar tudo... Que interessa o mais? Por si, nada. Só para alimentar aquela.
- Mas há pormenores que me
deixam entalado – retoma o de vistas curtas. – Por exemplo: como abandonar a
eucaristia? E os mais sacramentos? Não é?...
- Aflige, de facto – confirma o
anão do alumbramento. – Mas repara nisto: chegas junto dum guru hinduísta ou
dum mestre zen e vais-lhe dizer: podes salvar-te, mas apenas se fores baptizado
ou se frequentares a missa... É isto a Boa Nova? Não. Implica isto? Também não.
Jesus faria assim? Não, nem sequer admitiu repetir o baptismo de João, nem
baptizou Apóstolos nem discípulos. Tudo agora é pelo Espírito, diz Ele. Nada
daquilo é importante, já que não é a questão de fundo. Tudo tem o valor de quanto
valer por reconduzir a ela. Fora disto ou é indiferente ou devém anti-valor, se
se lhe substitui e nos impede de abrirmos os olhos e de lá chegarmos, à
espiritualidade íntima e ao dinamismo dela.
- Mesmo a eucaristia? –
escrupulizou o anão nocturno. – Que ele pediu?
- Mesmo a eucaristia –
confirmou o de olhar de aurora. – Deus salva em todo o lado, nunca precisou
dela para salvar ninguém. Jesus pede-a em memória dEle. Julgas que a iria pedir
a quem não tem tal memória, não lhe é íntimo, não entende nada disto, vive
alheio a tal história, embora com profunda espiritualidade? Em casos tais é-Lhe
inteiramente indiferente. O que Ele quer é que todos atinjam Deus, com
eucaristia ou sem ela, com sacramentos ou sem eles, até porque, para a intuição
íntima, toda a realidade é sacramental: “Os céus e a terra proclamam e glória
de Deus” – diz o salmista.
- Mas para quem entender...
- ...E para que entenda mais e
mais e para que viva mais e mais, a iluminar o mundo em redor, aí, sim:
eucaristia, sacramentos, liturgia devoções, as nossas horas, a oração a permear
tudo, a fusão do aquém e do Além – rematou o anão iluminado. – Enquanto der luz
e a luz por ali continuar a desmultiplicar-se. É a função de tudo aquilo. Por
este pendor o guru pode querer partilhá-lo, o mestre zen, ser aqui também
iniciado, até o ateu, de repente, pode suspeitar de que andará por este lado um
mundo qualquer a escapar-lhe. Aí, tudo poderá voltar a fazer todo o sentido. Aí
tudo deverá entrar com toda a força. E a graça produzirá frutos a cem por um,
não é? Aqui já não é nada daquilo um obstáculo à vida interior nem substituto
dela. Correcto?
- Agora perdi-me – torna o anão
trôpego, a apalpar no escuro. – Como é que viemos aqui parar a partir de S.
Paulo? Isto já não tem nada a ver com ele, pois não? Andamos por ali fora a
especular...
- Nem penses! – cortou-lhe a
palavra o anão de olhar de luz. – É tudo estritamente paulino. – E, ante a dúvida hesitante do outro: - Vejo
bem que ainda estás como os que, afinal, não entenderam nada das deliberações
do I Concílio de Jerusalém, nem do que Paulo explicou e levou a acatar pelos
demais Apóstolos que também o não haviam entendido, antes de ele lhes ter
aberto os olhos.
- E que foi...? – perguntou o
meio cego, uma vez mais a não vislumbrar nada.
- Simples: se a fé na
ressurreição é que conta, o itinerário para ela é que é crucial. Logo, tudo o
restante é apenas um meio para a caminhada e nada mais. Portanto, os ritos só
importam para quem fizerem sentido neste rumo. Fora disto é a roupa velha a jogar
fora, de gasta definitivamente. Ninguém, pois, irá doravante circuncidar-se se
para ele tal rito for tradição alheia ou de que se alheou. E o mesmo quanto a
quaisquer outros rituais e liturgias. Não se impõe nada a ninguém. Informa-se
da Boa Nova e deixa-se produzir os frutos que cada um e cada comunidade entenda
cultivar em coerência com ela. Implantando-a em qualquer que seja a tradição ou
cultura que deste modo se eleva potencialmente ao apogeu. É o que a
ressurreição permite a todas e cada uma e a cada indivíduo nelas inserido.
Deixando-o a ele como a elas livres para operarem como melhor lhes aprouver e
mais significativo e fecundo espiritualmente for para todos.
- Então, e daí? – a
perplexidade do anão míope continua.
- Daí que todos, a partir dalgum
momento, ignorámos a lição paulina e apostólica que dalém nos vinha e desatámos
a erradicar as culturas e tradições, as crenças e religiões, por todo o lado,
implantando o modelo único que durante séculos se foi urdindo, enriquecendo,
complexificando na cultura ocidental. Em lugar de deixarmos que tal fermentação
múltipla acontecesse igualmente em todas as outras regiões, pelo mundo fora.
Quer dizer, acabámos fazendo o que os Apóstolos, judeus de origem palestiniana,
entendiam dever ali fazer e provavelmente levar S. Paulo a praticar. Só que ele
explicou-lhes e eles compreenderam e deram-lhe carta branca para a
inventividade duma espiritualidade viva que inovaria permanentemente durante
séculos. Voltámos, portanto, para trás. Não impomos agora o judaísmo ritual,
impomos o catolicismo (e cristianismo em geral) com o rosto ritualizado adquirido
à roda do Mediterrâneo. A asneira é a mesma, a violação conciliar e da Tradição
apostólica é evidente. Embora multissecular, o que a não desagrava, bem pelo
contrário.
- Mas foi assim um itinerário
tão longo? E as criações foram mesmo ao gosto das comunidades? – o anão cegueta
não desiste, dentro de mim.
- Claro que foram. Recorda. Em
pleno séc. XIII, mil e duzentos e tal anos já decorridos depois de Cristo, ainda
ninguém tinha certeza nenhuma de quantos eram, por exemplo, os sacramentos. S.
Tomás de Aquino opina que sete era um número conveniente, já que era
arquetípico, remetia ao primeiro capítulo do Génesis, aos sete dias da criação.
Sete, pois, seriam como sete portas abertas à criação do homem novo. Daí que se
arranjaram então os sete actuais, aproveitando a simbologia, o que está de
acordo com o contexto sacramental, o de símbolos evocadores duma realidade
outra, a da dimensão espiritual e, nesta, a da suprema realidade divina. Tudo
isto, porém, foi uma construção cultural multissecular, embora com profunda
inspiração espiritual de múltiplos protagonistas. E foi disto que fomos dando
cabo gradualmente com o maldito fisicalismo, com a dogmatização de tudo e mais
alguma coisa, como verdade sagrada, como um intocável absoluto de vez consumado
já na terra. Um erro fatal em todos os domínios. O nosso pecado colectivo mais
estrutural, porventura. Que Deus nos ajude! Muito nos custa ser humildes, ser a
caminho!
- E julgas que o Papa Francisco
irá nisto?!... – ai meu anão das dúvidas!
- Se não, então como é que anda
há decénios a cultivar amizade como de irmão com o rabi de Buenos Aires? São
amigos e dialogam e a paz é possível, por aqui, mesmo para a Palestina ensanguentada
há milénios – comunicam ambos. – Se não é aquele caminho, então qual é? O das
destruições de antanho? Ora! É o que repudiam...
- Quer dizer, por trás dum
gesto tão simples anda uma reconversão descomunal daquelas? Ah, grande Papa!
Não deixa de me surpreender todos os dias. Quem diria?!
- Não é por acaso que escolheu
ser Francisco: o gesto mais simples arrasta um mundo atrás. O de Assis foi o
mesmo, não é?
- Continuo com um medo
desgraçado – treme o meu anão do escuro. – Por aqui não irá tudo dar num caos?
- Tem juízo! – admoesta-o o da
luz. – Caos maior que o que gerámos nos caminhos transviados da História?
Centenas de Igrejas separadas, milhares de seitas, perseguições e genocídio de
judeus, guerra e Cruzadas a matar muçulmanos... Ao invés, agora,
reencontramo-nos. É uma questão de fé em Deus: entregamos tudo nas mãos dEle e
depois fazemos o melhor que pudermos e soubermos, deixando o Espírito agir e
acolhendo-O no íntimo e na vida. Não temos da andar a salvar Deus, o depósito
da Fé, os dogmas... Ele é que nos salvará a todos, se O deixarmos agir e O
acolhermos bem humildes, dispostos a crescer e a aprender indefinidamente. Se
nos pusermos todos, de novo, a caminho do Infinito. A caminho de Deus.
Fátima
– 3 de Julho de 2013
Andava muito entretido, a
predispor-me para a hora de sexta, actualizando as fichas de leitura da
biblioteca, quando dei por mim completamente distraído. Reparei pela primeira
vez com outros olhos para as festividades cristãs herdeiras do paganismo
prévio. O Natal, o Ano Novo, até a Páscoa fazem agora todo o sentido no
itinerário que percorreram. Não vieram abolir mas consumar, realizar em
plenitude uma expectativa anterior. Não agrediram nada nem ninguém,
acrescentaram mais uma prenda ao que dantes havia já. Ao levarem a caducar, por
superarem, a ordem anterior e respectivos privilegiados, estes desencadearam
múltiplas perseguições: eles tornavam-se inúteis, dispensáveis, perdiam poder e
estatuto com o fim gradual das rotinas. Então é que se entende bem como sangue
de mártires é semente de cristãos: como é que o povo, libertado para uma
perspectiva de plenitude atingível, podia ver com bons olhos a chacina dos
respectivos libertadores? Teria de fazer corpo com eles contra os sicários.
Pior: estes apareciam-lhes como quem pretendia impedi-los de consumar a festa
da vida em pleno, num salto para o Infinito, tentando acorrentá-los aqui, num
frustrante quotidiano histórico a desembocar na morte. Nestes termos, os
próceres da cultura pré-cristã estavam à partida condenados, tanto mais quanto
mais enquistados ficaram no respectivo feudo, doravante caduco.
Aquelas festas não foram um
baptismo apressado com umas tintas de cristianismo, sem qualquer reconversão,
aprofundamento interno do apelo espiritual pré-existente, foram antes o
respectivo desenvolvimento orgânico, doravante aberto à irrupção do Absoluto.
Isto é que não fere, não magoa, não viola ninguém. Foi o primitivo caminho de
autenticidade, gradualmente abandonado depois, a ponto de não termos agora, por
exemplo, nenhuma festividade do Dragão Chinês, nem nada correspondente do
Japão, da Índia, das Américas... Para aqui já nos encaminhámos sempre a abolir
e a condenar, a bem ou a mal. Nem os pobres e alegres ameríndios que tão bem
nos acolheram, a nós, portugueses, como enviados dos deuses, escaparam à triste
sina.
Perambulava eu por este
encadeado de ideias, entra-me porta dentro o Fr. Benedito.
- Irmão Ambrosino, quer
aproveitar uma boleia e vir connosco a um colóquio nos Maristas? Só podemos ir
quatro professores e o carro leva cinco. Vem? Aquilo é giro, sobre a disciplina
na escola. Como há pelo País fora inúmeras transgressões...
- E não fico deslocado? Não sou
professor...
- Eu cá julgo que irá gostar. O
tema promete. E convém-nos entender melhor os Irmãos Maristas, eles é que andam
com a mão na massa, como Congregação de educadores, não é? Então, quer vir?
E lá fomos os cinco, uma viagem
longa, até ao colégio na grande cidade.
A iniciativa durou o dia
inteiro e não me senti nada de fora. Claro que eu estudei durante muitos anos,
não me foi difícil meter-me na pele do aluno nem na do professor.
Registei duas ideias. A
primeira é que a autoridade, para ser pedagógica, deve seguir um itinerário que
os melhores educadores trilham, dum ponto de partida a um ponto de chegada
ideal: principia por ser autoridade imposta, transita para consentida, depois
para participada, culminando no poder partilhado, idealmente em perfeito pé de
igualdade entre educador e educandos. A segunda é que, quão mais imaturo,
inexperiente, o educador, mais tende a proteger-se com os primeiros patamares,
quão mais experto, mais atinge o píncaro; simetricamente, os alunos, quão mais
turbulentos, mais requerem os degraus do princípio, quão mais socializados,
mais aptos ficam para o acúmen derradeiro. Donde resulta, em concreto, que o
equilíbrio ideal, em cada caso e momento, é o da conjugação destes dois
vectores que permita a optimização possível, agora e aqui, tendendo sempre a
uma melhoria de ambos os lados que vá caminhando indefinidamente para a meta
final, a do poder partilhado entre iguais.
- Não tenho nada a ver com
alunos, mas espanta-me – comentei, enquanto retornávamos calmamente, no
veículo, ao cair da tarde – que a autoridade, o poder na Igreja não tenha uma
pedagogia paralela. Nem sequer vi nunca uma formação em tal domínio.
- Pois não, nem há – reflectiu
Fr. Marcos. – Em contrapartida há exemplos de grandes lideranças que
empiricamente palmilharam aquele trilho, por exigência interior de coerência
com elas próprias. É que uma pedagogia destas é também um itinerário de
profunda espiritualidade. Uma via de servir os outros com cada vez mais
autenticidade e empenho.
- Oh, claro, querias isto com
todos?! Apenas há um ceptro, apenas um báculo. Partilhá-lo, como?
Esmigalhando-o aos bocados e repartindo migalhas de poder? Quem vai nisso? E
deixava de ter vénias e rapapés, mais as benesses e prebendas? Está bom, está!
Canta-me essa cantiga, a ver se eu acredito... Lá um santo de vez em quando,
por engano, pronto. Mas a regra?!... – era o feitio meio gozão do Fr. Nardo.
- Contudo, olha que ter um
modelo daqueles, como referência, dentro da Igreja, era capaz de dar jeito. Há
já tanto quem argumente que a orgânica eclesiástica não é uma democracia, como
se a monarquia ou o Império fosse um regime sagrado (que entretanto
dogmatizaram)... – fez o Fr. Benedito. – Aquilo seria a demolição sistemática
do Imperador-deus, do Papa-Jesus... E não apenas por virem a terreiro, até ao
povo, mas por partilharem os poderes reais que detêm, em concreto, tendendo a
colocar cada vez mais tudo e todos em pé de igualdade. Era muito giro!
- E destruías a Hierarquia?! – abespinhou-se,
meio a brincar, Fr. Ramiro. – Saíste-me cá um anarquista! – E, mudando de tom:
- Mas era o que poderia dar algum sentido ao hierarca. Ele em si é uma
contradição nos termos. E não é por imitar pantomineiramente o Império Romano.
A dinâmica da espiritualidade é que não vai nunca em tal sentido. É
rigorosamente ao contrário, como o modelo pedagógico analisado hoje. Por mim,
nem vejo porque não pode adaptar-se, pode perfeitamente e era uma grande
melhoria, dos grupos e organizações de base, pelo mundo fora, aos escalões
intermédios, de bispados e provinciais das ordens, até ao topo, ao Vaticano
inteiro, até ao Papa.
- Já repararam o que era seguir
toda a gente o continuum do poder imposto ao consentido, ao participado, até ao
partilhado, com igualação tendencial de tudo e todos? - retomei eu, quase para mim. – Mas que
reviravolta! Até numa comunidade como o nosso convento, não é?
- Conferimo-lo, aliás, com cada
prior que elegemos, – comentou Fr. Ramiro – pela forma como assume e desempenha
o cargo. Não há dois iguais e não é apenas no estilo, maneira de ser. É
prioritariamente neste ponto. Às vezes alguém julga-se enaltecido e fica com o
rei na barriga, outras entende que é um serviço a bem de todos e nem daquilo se
lembra. E há quem partilhe mesmo, tanto quanto as circunstâncias o vão
permitindo. O modelo existe empiricamente, embora inexpresso. E é decerto isto
em todo o lado. Exprimi-lo, o que lhe empresta é mais força, torna-o
consistente e um ideal generalizado.
- Mas contradição nos termos
porquê? O hierarca anda à chapada a ele próprio? – claro que era o Fr. Nardo.
Rimo-nos todos, ele é mesmo assim.
- Porque todo o poder é para
servir e, portanto, não pode ser sagrado que quer dizer intocável – retomou o
Fr. Ramiro. – O poder serve para realizar as minhas potencialidades, primeiro,
na relação comigo, com os outros e com o mundo. Depois o poder serve para
ajudar os outros a realizarem as potencialidades deles, em todos os campos em
que lhes puder dar a mão. Em terceiro lugar, o poder serve para me
disponibilizar para ser por outrem ajudado, onde isto desmultiplique o meu
potencial de realização e o de todos. Não há realidade menos sagrada que o
poder, estamos todos sempre a mexer nele, a qualquer nível, seja no nosso seja
no dos outros.
- Ah, mas isso é um poder muito
bom, um poder muito querido. Eu dele gosto, importa-me lá bem que seja sagrado
ou não! – riu o incorrigível Fr. Nardo.
- Se não for isto, então é um
poder de usurpação, anda a violentar, a diminuir, a castrar sempre, de algum
modo, o poder doutrem. Então devemos atacá-lo e derrubá-lo. Logo, é tudo menos
sagrado, intocável – retomou o Fr. Ramiro. – Este é para ser tocado, abalado e
derrubado. Ora, este é que pretende sempre ser o sagrado, a ver se o temem e
lhe não tocam. Era o que faltava! Portanto, hierarquia, na Igreja, que é isto?
A reivindicação do direito à perversão? Só se for... Quem tem a lata de terçar
armas pela intocabilidade do Imperador Romano? Nem os romanos acataram tal
bizarria. Fartaram-se de apunhalar e derruir o pretenso intocável, o sagrado, o
hierarca. Que é que vem uma coisa destas fazer para dentro da Igreja?
- Ora esta! – retomou, irónico,
o Fr. Nardo. – Para dar uma oportunidade aos ateus e descrentes, aos que não
têm vida espiritual nenhuma, de poderem implantar aqui o reino deles. Também
são filhos de Deus, não é verdade? Embora filhos de pai incógnito... pelo menos
para eles.
Rimo-nos todos, mais uma vez. O
carro ronronava no sereno do crepúsculo.
- O pior – Fr. Benedito saiu
dum mutismo meditativo – é que o poder é propriedade e propriedade é poder. O
Vaticano é um Estado, tem um aparelho governativo, tem palácios e mais palácios
com tesoiros de arte e mais tesoiros, de todo o tipo. As dioceses reproduzem-no
em menor escala, as ordens religiosas, também. E assim por diante. A igreja
institucional tornou-se um descomunal potentado económico, porventura o maior
do mundo, já que os outros Estados soberanos são, na maior parte do Planeta,
falidos cronicamente ou pouco menos. O aparelho eclesiástico é um desmedido
mostrengo secular. Que é que isto tem a ver com o Reino de Deus? “O meu Reino
não é deste mundo” – afirmou Jesus. Então que é semelhante monstruosidade?
- Ai não sabes?! – satirizou o
imparável Fr. Nardo. – É a nação do Cristo-Rei! Ele não se queixou de que não
tinha aqui reino nenhum? Pronto, deram-lhe um reino e encheram-no de coisas e
loisas. Agora não tem mais de que se queixar, não é? E nós até já lhe
inaugurámos duas estátuas, uma ali, em Almada, e outra na Madeira. E o Brasil
inaugurou-lhe uma terceira, no Corcovado, no Rio de Janeiro. É rei. Que mais é
que Ele pode querer? Só pode estar satisfeito. Ou nada O contenta?
- A gente ri-se – comentou Fr.
Marcos – mas isto que dizemos a rir afirmam-no convictamente a generalidade dos
crentes e, pior, a tal dita hierarquia. Entre nós e pelo mundo fora, o que
agrava tudo. Como é que não entendem que “o meu reino não é deste mundo” quer
dizer que não é agora e não será nunca? É o reino do espírito, da vida interior
a fermentar a fornada da vida exterior inteira em cada um e todos, a todos os
níveis da rede comunitária e colectiva, sempre e para sempre. Não é um reino
aparte, mas o íntimo de qualquer reino, individual ou colectivo, a alma dele a
mover tudo em sintonia com o Espírito que do imo tudo inspirar e atrair e a
todos nos conjugar num comum sentido de vida. Como é que isto é tão difícil de
entender e tanto se deturpa, a ponto de ter derivado num reino secular? E com
tentáculos pelo mundo inteiro! É não entender nada de nada.
- Quando a vida espiritual, a
vivência e orientação a partir do imo, com o que mais fundo tocar o coração de
cada qual, se confunde com uma materialização qualquer, pronto, eis as portas
escancaradas para chegarmos a um Estado, a uma basílica, catedral, palácio,
seja lá o que for... O Reino de Deus já está realizado, já acabou tudo.
Consumou-se a História. Embora a História continue, mas eles não reparam.
Pararam num Monte Tabor qualquer: “Que bom, Senhor, estar aqui! Vamos montar as
tendas e nunca mais iremos para baixo.” Apesar de Jesus os mandar logo descer,
a estes. Os daqui, há séculos que se recusam e não vão.
- Ena! Espere! – caí de repente
em mim. – Então, quer dizer, é de acabar com o Estado do Vaticano, com o banco,
entregar palácios, tesoiros, basílicas, catedrais, igrejas, sei lá que mais...
às comunidades, aos países, desfazermo-nos das propriedades acumuladas... e
ficar como? Com o imprescindível à vida que levarmos, ao projecto espiritual
que quisermos fermentar no mundo? Estou a deduzir bem, não estou?
- Evidentemente – confirmou o
meu Mestre, muito divertido.
- Isto é o que o Papa Francisco
teria de fazer? Vai cair o Carmo e a Trindade!
- É o que ele anda fazendo.
Abandonou o palácio e foi viver para a residência de St.ª Marta. E porquê?
“Porque aquilo é grande demais para mim e muito solitário” – comentou ele. Para
bom entendedor... – rematou Fr. Benedito.
- Mas é demais, é escaqueirar
tudo! Quem é que consegue? Mesmo que tenha a coragem requerida, não irá ter
força bastante – duvidei.
- Pois, se calhar, não. Mas é
no que ele anda metido, poria as mãos no fogo em como é. E o poder do Espírito
sabemos lá até onde irá. - E o Fr. Ramiro concluiu, mesmo ao jeito dele: - Um
grande castelo de cartas pode cair ao chão com um sopro. E que é tudo aquilo
senão um descomunal castelo de cartas, inteiramente vazio de qualquer vida
interior? Como no caso de Jesus no Templo, não passa dum antro de ladrões. É só
ver o banco, por exemplo, o do Vaticano. Uma ventania e tudo aquilo é varrido
de vez.
Fátima
– 4 de Julho de 2013
- Engraçado, é do que eu estava
a falar – admirou-se o irmão porteiro. – Quando pedi alguma obra, alguma
revista acerca da “igreja subterrânea” foi porque me falaram duma qualquer que
santificou Judas Iscariotes, o enforcado que entregou Jesus por trinta
dinheiros.
Falávamos na portaria onde lhe
acabara de entregar alguma literatura relativa ao tema. Informara-o da nossa
saída de ontem e da conversa, ao retornarmos.
- Mas que relação...? –
comentei eu, perplexo.
- Então, Cristo-Rei... Os
zelotas ganharam. Judas Iscariotes, o da seita armada que pela força pretendia
expulsar os romanos, pode voltar, está perdoado e vitorioso, finalmente. Conseguiu.
Naquele tempo, a estratégia de entregar Cristo ao Sinédrio não resultou no
levantamento militar que ele pretenderia e, desgostoso, frustrado e
arrependido, enforcou-se. Olha, agora finalmente entronizaram Jesus, foi
cumprido o plano dele e dos zelotas de então. Que, ainda por cima, acabaram
posteriormente exterminados. É muito curioso! As voltas que a História dá!
- Ah! Nunca tinha reparado. Mas
é mesmo. Ele recusou a espada de Pedro no Jardim das Oliveiras, recusou Judas,
o zelota, que o vendeu aos esbirros, foi rei dos judeus, na tabuleta da cruz,
por escárnio e escarmentação dos povos sujeitos a Roma. E depois, por mais que
Ele recuse, entronizam-no como Cristo-Rei! E são (continuam a ser) os
discípulos dEle! Acolá foi apenas um (que se matou), agora são, pelos vistos,
todos (ou alguns, com o beneplácito dos mais). E nenhum se mata, não é? –
ironizei, divertido.
- Ao menos os da “igreja
subterrânea” beatificam o Iscariotes por ele, embora involuntariamente, ter
aberto a porta à sequência paixão-morte-ressurreição, a culminar nesta vitória
final fantástica. E, como ele se arrependeu, só pode ser um santo que, mesmo
ignorando-o, nos entregou o Ressuscitado e, com Ele, o caminho, finalmente,
para todos o sermos. Foi o instrumento, às escuras, de Deus e de Jesus para
consumar a descomunal Boa Nova, a gloriosa realidade do Além para a Humanidade
inteira, doravante disponível.
- Mais uma vez, tudo ao invés
daquilo. Pelos vistos, estes entenderam o que é que é o Reino, o teor de vida
interior que leva à ressurreição, vai adubando a sementeira de cotio que
culmina nela. Os zelotas, lá e cá, não compreenderam mesmo nada.
- E acabaram no extermínio. Não
sei quando os daqui acabarão.
- No extermínio?! Oh, irmão! –
fiz eu, fingindo grande escândalo. Ele deu uma gargalhada, ante a ambiguidade
em que não reparara.
- Espero bem que não! –
continuou, bem disposto. – Mas o
extermínio daquela postura era bom, trocada por uma espiritualidade que
reordene, que espiritualize a vida secular inteira.
De repente reparei num pormenor
muito significativo que me andara a escapar.
- Exacto. Ele fez o mesmo –
murmurei para mim. – Isto é o máximo!
O irmão porteiro olhava-me,
perplexo, à espera. Vi-lhe a cara de quem ficou às aranhas e desatei a rir.
- É uma niquice em que ninguém
repara mas que, afinal, é duma importância extrema. Vê só: os zelotas não
atingiram o fito deles e acabaram em nada, no cemitério do tempo. Mas Jesus não
os combateu, nem condenou, nem rejeitou. Acolheu um como Apóstolo, até. Depois,
olha bem, quando eles, por meio de Judas Iscariotes, tentam obrigá-Lo, ele
acolhe a traição dele e oferta-lhes em troca, não o irrelevante Reino de Israel
que eles pretendiam, mas a vitória da Humanidade sobre a morte. Aliás, mais que
a imortalidade do espírito, a ressurreição, o poder de qualquer alma retomar a
carne, manifestando-se num corpo glorioso que os limites da matéria, o
espaço-tempo, já não dominam mais. Ele não os destrói, aos zelotas, recupera o
ideal deles e eleva-o a proporções nunca vistas, perante as quais o que
pretendiam perde o interesse por inteiro, de tão insignificante. Não entenderem
isto é que levou aquele partido ao aniquilamento, uns anos depois.
- Tudo bem, e daí? – ele não
compreendia o alcance.
- Daí que foi o mesmo que a
Igreja dos mártires fez no princípio. A vitória, a autenticidade proveio-lhes
deste pormenor que, afinal, muda o sentido de tudo: assumir o ideal doutrem. Só
depois é que desatámos a matar os infiéis e então estragámos a Mensagem,
degradando-a. E acabámos, de conquista em conquista, no Cristo-Rei: o reino,
afinal, deste mundo. Desgraçado do Cristo que nem depois de morto, nem depois
de ressuscitado deixa de aguentar tratos de polé.
- Ah, pois! Um rei bem alto,
bem distante, bem entronizado. Numas alturas a que ninguém chega, com que
nenhum outro rei pode rivalizar.
- É quase como quem diria:
agora, que estás morto, quem manda somos nós. És rei e acabou! Queiras ou não
queiras. Já não tens voto na matéria.
- O triunfalismo é tramado! –
meditou, como para ele, o irmão porteiro. – Não fica nada de vida interior
autêntica. No auto-elogio fecham-se os ouvidos ao aguilhão íntimo que tão
frágil impele. Um nada e ficam surdos, já mais segredo nenhum é dali acolhido.
Aliás, se triunfámos, que mais é requerido, já temos tudo, não é? Ouvir o quê,
então?
- Lógico. Até porque, com o rei
no trono, quem é que se atreve a ouvir-lhe os murmúrios? É uma falta de
respeito. Imperdoável!
- E eis-nos reduzidos aos
aparatos e aparências. Tudo oco por dentro.
- Aparatos e aparências, notas
bem – confirmei eu.
Ficámos um instante parados, a
olhar um para o outro. E eu arregalei os olhos, lembrando-me da frase do Papa
ao escolher St.ª Marta, a vulgar residencial.
- Já viste a solidão dum tal
rei? A que andam condenando Jesus? – perguntei-lhe.
- A que O condenariam, se
pudessem. Felizmente não têm poder nenhum sobre Ele, não é? O Ressuscitado tem
é uma infinita paciência, senão, que varridela!
- Pois, mas têm sobre o Papa. E
é aquilo a que o condenam. Ele é a imagem de Jesus, para eles e para os fiéis.
Conheces a desculpa que ele deu para recusar o palácio e optar pela pousada,
com os outros todos que trabalham por lá? É que o palácio era grande demais e
muito solitário.
- Ah, estou a apanhar o
paralelo. O pedestal do Cristo-Rei é grande demais e a imagem, lá nas alturas,
é muito solitária. Quer dizer...? – suspendeu, a olhar para mim.
- ...Quer dizer que o Papa
Francisco recusa toda aquela alienação, não é rei nenhum, não tem trono nem
pedestal. Vive no meio do povo a aventura dos desafios e angústias de cada
jornada – parei, contido, meio encandeado. – Cada vez me surpreende mais. A
gente escava um gesto, uma palavra dele e é como em Lourdes: brotam águas,
torrentes de águas comuns mas com poder de cura. É mesmo muito curioso. É cada coincidência!
Foi a meditar nisto, meio
aparvalhado, que voltei à biblioteca: este homem vai mesmo refundar a Igreja?
Quanto mais mergulho nisto, mais o descubro em sintonia com o apelo último do
Espírito. Que nem eu entendo bem mas parece vir-me a saltar da ponta do lápis.
Quando ele pede “rezem por mim”, alguém entendeu para onde isto aponta, por
quem e para quê estamos a rezar? Sinto-me esmagado, o horizonte é descomunal,
ainda mais para o porte dum anão.
Grande Papa! Que é que andas a
tramar com tanto retiro e discrição? Com tanta humildade e alegria, com a paz
de quem entregou tudo e então “seja feita a tua vontade”, “eis aqui o escravo
do Senhor”? A estratégia do minúsculo grão de mostarda: ninguém repara, ninguém
vê e depois... Por mim, quando levanto a ponta do véu, não deixo de ficar quase
sem palavras: há cada mundo mais inebriante por trás de cada fresta!
Quando trepei ao escadote para
arrumar na prateleira adequada o derradeiro livro, dei comigo a interrogar-me:
quem é que impôs, apesar de tudo, um Cristo-Rei sem ceptro nem coroa, até,
aliás, sem trono (já que o pedestal o não é) e de braços abertos para o povo?
Um rei de braços abertos à multidão?! Alguém deve ter tido um rebate de
consciência qualquer e logrou encontrar eco para a estátua resultar aquela.
Quero crer que no coração dos novos zelotas restou sempre um recanto algures,
pelo menos, com um restinho de luz a bruxulear e que porventura ninguém lhe
quis fechar os olhos. Daí aquele rei esquisito, só de túnica e de braços de
acolhimento.
Talvez, Papa Francisco, tenhas,
por mor disto, maior margem de acolhimento do que o meu ignaro cepticismo me
permite adivinhar. Sei lá bem! As minhas vistas são curtas, que olho muito de
baixo. Quem me dera, porém, que também aqui os factos me venham a espantar!
Abri ao acaso a Bíblia que tenho sempre na mesa e, claro, (vejam só a
coincidência!) caiu-me sob a vista: “O filho do homem não tem sequer uma pedra
onde repousar a cabeça.” Obviamente que me evocou logo o outro versículo: “Quem
quiser entrar no Reino de Deus largue tudo o que tem e siga-me.”
Pronto, estou num convento, é
verdade, e nós gostamos particularmente disto, é correcto. E não ignoramos os
malabarismos exegéticos que milenarmente vêm sendo feitos para não tomar aquilo
à letra, como qualquer fundamentalismo extremado, mas que têm, em
contrapartida, legitimado o extremo oposto do aparato, do luxo, da riqueza
desbragada... para maior glória de Deus! Já que a Deus tudo é devido – é o
enorme cinismo da tradição pervertida, sempre e sempre retomado, por mais que o
denunciemos. E lá vêm os príncipes da Igreja a fruir de faustos principescos...
mas é tudo por Deus, não haja confusão! É, no mínimo, burlesco.
Ora, isto é tão cómico que não
resisto ao comentário do meu amigo Marista, uma vez, durante o nosso curso de
Teologia: “Sabes, os espanhóis são tão religiosos, tão religiosos que até têm a
pedra que Jesus não tinha onde repousar a cabeça!”
Isto apenas para denunciar uma
interpretação bizarra que se infiltrou subrepticiamente, vem dominando subliminarmente
tudo e tudo empurrando, conseguintemente, para um registo inteiramente
inaceitável. É a que tende a olhar para a denúncia de Jesus de nem duma pedra
dispor como se isto fora uma queixa. Não é, bem pelo contrário, é um programa:
quem queira ser filho do homem, então nem uma pedra pode ter. Naquele tempo,
como agora, como sempre. Não pode prender nem uma pedra a si nem prender-se a
si a nenhuma pedra: livre, tem de estar livre, disponível para cumprir as
impulsões do Espírito, usando como os passarinhos do que a natureza lhe
providenciar, sem se adonar de nada nem se deixar adonar por nada nem por
ninguém.
É viável viver isto no acúmulo
de bens em que a Igreja institucional se tornou, ao correr dos milénios? Pois,
parece que é o que o Papa Francisco anda a tentar, no meio da sumptuosidade
vaticana, arredio e arredado para um canto minúsculo que apenas vale pelo calor
humano que lá logram partilhar. O resto fica abandonado. É, no fim de contas,
inútil. Foi um equívoco multissecular.
Adivinho que de facto nos
teremos de livrar de tanta quinquilharia que nos pesa às costas. Não nos deve
prender nem a devemos prender a nós. O Reino é feito doutra realidade cuja luz
nos encandeia por dentro. Não são os brilhantes de fora, estes acorrentam.
O Papa Francisco anda a
murmurá-lo, afinal. Alguém o entende?
Fátima
– 5 de Julho de 2013
As nossas heranças. Há cada
uma! Defender a tradição... É, afinal, o maior dos equívocos. Que tradição, no
fim de contas? Basta reparar que, por tradição, também somos pecadores, e de
que maneira! Os teólogos tendem a reivindicar que seja apenas a Tradição
Apostólica. Que fazer, então, à Patrística, os grandes Padres da Igreja até ao
séc. VIII? Apenas intérpretes daquela, os executores porventura mais fiéis, mas
também pejados de inovamentos teóricos e práticos (basta pensar em St.º
Agostinho)? Como discriminar?
Enfim, é tudo por demais
complicado para a cabeça dum anão. Perguntas intermináveis, respostas meramente
germinais. Quem me mandou a mim meter nisto?
Cogitava eu nestas querelas
quando íamos da igreja, à hora de sexta, perambulando pelo claustro, num
remanso mais ou menos orientado para o refeitório cuja cozinha já rescendia ao
prândio. Nem reparei atrás de quem caminhava. Como nos mantemos ou calados ou
falando em surdina, nunca ligaria a tal, não fora o tema murmurado me atingir
em palavras soltas os ouvidos. Afinal ia seguindo, sem notar, o Fr. Marcos e o
Fr. Benedito, entretidos no murmúrio, com o Fr. Ramiro ao lado, meio alheado. Trocavam
ideias à roda do que me vinha a preocupar. Apurei as orelhas.
- ...E depois esta mania de
dogmatizar tudo. Coisa mais disparatada! - perorava o Fr. Benedito,
esbracejando, como de hábito. – Eu fiquei com a mesma perplexidade que a
Alexandra Solnado em Um Voo Sensitivo
quando, em Masada, posta a meditar, acolhe a ordem de encaminhar para a Luz os
suicidas do combate heróico de há séculos.
- Vou querer lê-lo também –
murmurou o Fr. Marcos. – Quando acabares, avisa. Temos de rever muita coisa.
Agarrou-se-nos aos pés muita lama dos caminhos.
- Há que tempo andamos nós a
meter no inferno os suicidas? A recusar-lhes um enterro cristão? E agora,
inesperadamente, Jesus dá-lhe a ordem ao contrário. Mais importante ainda: ela
vê-os voar para a Luz. Que é que os impedia, afinal? O maldito preconceito. Em
vez de salvar andámos a condenar.
- Grande mandato, não há
dúvida! Bendito cristianismo que é pau para toda a colher! – gracejou Fr.
Marcos.
- É um pormenor muito curioso –
interveio Fr. Ramiro. – A Alexandra não se enganou nem nada? As visões são
quase sempre tão ambíguas!...
- Não – retomou o Fr. Benedito.
– Até duvidou daquilo e, antes de encaminhar as almas, perguntou, para
confirmar, já que os suicidas não tinham perdão.
- E daí? – interessou-se o Fr.
Ramiro.
- A resposta foi curiosa e
inesperada: os suicidas não têm problema em salvar-se, os mais renitentes são
os egípcios mumificados, ficam há milénios presos aos cadáveres e recusam
largá-los, dê por onde der. Dá para acreditar? E nós que nunca ligámos nada às
múmias, nem porventura os cristãos coptas lá do Egipto! O problema do suicídio
está muito mal colocado mas virou doutrina comum e, logo, a gerar regulamento
cogente para o mundo inteiro. Como uma verdade de Fé. E pronto, sem mais
rodeios, é uma asneira. É uma asneira!
- Curioso! – repetiu,
meditabundo, Fr. Ramiro. – Até onde remontará?
- Foi, em rigor, o que me
perguntei – retomou o Fr. Benedito. – Não me recordo de alguma vez ter
encontrado qualquer referência a isto em lado nenhum. Mas andei a vasculhar
pelos índices da História, eu podia não ter ligado e aquilo ter-me corrido à
margem. E nada, nada. Evidentemente que é uma questão marginal, quem se vai
agora preocupar com isto, não é? Mas para as almas dos suicidas, não, nem que
fora apenas uma. Nós recusámos orar por eles, mais, impedimos as próprias
famílias de o fazerem. “Dai-lhes, Senhor, o eterno descanso entre o resplendor
da luz perpétua “ – é para todos menos para o suicida. Postura oficial. Certo?
- Certo – confirmaram os outros
dois. Todos conhecíamos isto, até eu.
- Em nome de quem? Claro que
operámos sempre em nome de Jesus Cristo. Mas se ele agora, afinal, rejeita
isto, como é que é? Evidentemente que o rejeitou permanentemente. Então em nome
de quem o andamos há milénios a fazer? Nem vos passa pela cabeça!
- Ah, chegaste lá! Conseguiste,
afinal! – exclamaram em uníssono ambos os interlocutores. Tinham parado à
esquina do claustro e formaram um pequeno círculo em que eu me integrei, de
orelhas bem arrebitadas.
- Quem, finalmente? – atrevi-me
a insistir. Cada vez descubro revelações mais espantosas.
- O grande santo, o grande
orago, o grande doutor da Igreja... – e o Fr. Benedito suspendeu teatralmente a
palavra, por momentos, largando depois a bomba - ...é nem mais nem menos que
Platão!
E, perante o nosso espanto
embasbacado:
- Sim, sim. Um pagão
politeísta, morto quinhentos anos antes de Cristo.
- Tens a certeza?! Onde? –
questionaram, incrédulos, os outros dois.
- Ora, - ironizou Fr. Benedito
– foi inspirado pelo Espírito Santo de modo mais infalível que o Papa. De
certeza, senão a Igreja não teria feito tal coisa, não é verdade?
- Deixa-te de gozo, em que
texto desencantaste isso em Platão? – urgia Fr. Marcos, deveras empolgado.
- No Ménon. E mais: é uma página apenas no diálogo todo. Transcrita pelos
séculos e milénios, quase sem lhe mudarem uma palavra. Apenas os deuses se
tornaram no Deus. Uma profecia dogmática, como a de qualquer outro profeta.
Intocável. Palavra de Deus, ámen. Aquilo é que foi mesmo inspiração, por pouco não
parava no cânone da Bíblia... – rematou, com sibilina ironia.
- Tenho de ir lê-lo - afirmou
Fr. Marcos.
- E com todo o idealismo
platónico, andamos a abandonar os suicidas no inferno. Muito coerente, não há
dúvida – comentou o Fr. Ramiro, sarcástico.
- Ora, ora! – brincou Fr.
Benedito. – Por respeitinho aos deuses, perdão, ao Deus. Não estão a ver? Se um
pagão tem tanto respeito, como é que a Igreja pode ter menos? Não pode! Logo,
toca de enfiar tudo nas profundas do inferno, que a gente cá respeita muito a
sério, nem que seja contra a vontade do Deus respeitado. Ele é bonzinho, não se
quer impor, mas a gente compreende-O muito bem e não Lhe quer ficar atrás.
Portanto, ofertamos-Lhe um inferno cheio de suicidas, aqueles malditos
desrespeitadores da vontade divina!
- Haja paciência! – desabafou o
Fr. Marcos.
- O nosso poder de asnear,
enquanto Igreja, é mesmo infinito, valha-nos Deus! – comentou o Fr. Ramiro. –
Maldito triunfalismo! Deita-nos as defesas abaixo, deixamos de estar vigilantes
e é logo cada asneira!
- Pergunto-me como é que
ninguém se questionou. Eu também o não fiz, valha a verdade, sou tão falho como
os mais. – E Fr. Marcos tinha um ar meditativo. – Será que Jesus faria aquilo,
abandonaria o suicida? Como é isto imaginável, se nunca abandona ninguém? No
meu íntimo, é o procedimento que sinto, que julgo como correcto? Os membros da
comunidade sentem o mesmo ou não? Como é possível que ninguém tenha feito estas
perguntas durante séculos e séculos? Tudo por mor das vénias a Platão! Como é
que toda a gente se aboliu perante ele? Isto é cristão? Não. Isto é seguidismo,
isto é a carneirada...
- Pois é, meu irmão na
desgraça, pois é. E andamos todos na mesma carruagem – sublinhou Fr. Ramiro. –
Mil anos com Platão a puxar, baptizado por St.º Agostinho no séc.V, e depois,
com S. Tomás de Aquino a baptizar Aristóteles no séc. XIII, a hegemonia gradual
deste até hoje. Que é feito de Cristo, no meio de tudo? Não é filósofo nem
teólogo, foi ficando mais ou menos na gaveta. Quem se lembra de perguntar como
é que Ele agiria? Quem se mete na peugada dEle? Ainda para mais, Ele não
definiu nenhum compêndio moral nem código de conduta.
- Pois isto é que é o pior: é
que é em tudo – rematou Fr. Marcos. – Ultimamente é o que mais me vem
afligindo. Como é que ninguém perguntou porque é que Jesus não deixou nenhum
código moral? Pelos vistos devem ter julgado que Ele o terá esquecido ou não
teve tempo.
- Bem, cortaram-lhe as asas
muito cedo. Três anitos não podiam dar para muito... – atrevi-me eu a comentar.
- Não podiam dar?! Deram a ressurreição!
– exclamou ele, excitado. – Que mais, então que mais? Há um erro crónico
cometido neste domínio!
- Sou todo ouvidos – interveio
o Fr. Benedito.
- É isto: Jesus não deixou
código moral nenhum porque não deve existir nenhum nunca, definitivamente – Fr.
Marcos quase perdia o controlo da voz na surdina.
E, perante o nosso ar
espantado:
- Calma, eu explico. Entendendo
por moral as regras de comportamento, os usos e costumes, melhor, os bons
costumes, por um lado, e, por outro, entendendo por ética a escolha ponderada,
caso a caso, de qual o comportamento mais adequado aos envolvidos, no caminho
da plenitude, reparem, o que importa é isto, não aquilo. É assim ou não é? – e
olhou para nós.
- Ah, estou a compreender –
concluiu o Fr. Ramiro. – Jesus quer o óptimo ético, pela escolha lúcida que
optimize cada conjuntura, não o enfileiramento do rebanho, tudo na mesma
tropeada, seja o melhor ou não a extrair dos eventos. Quanto a mim,
perfeitamente de acordo.
- Correcto. E, obviamente, isto
implica que não há código moral – reflectiu Fr. Benedito. – A Igreja, todavia,
não faz outra coisa, não é? E nunca fez.
- Aí é que bate o ponto –
retomou o Fr. Marcos. – Jesus também conhecia o código dos bons costumes, da
moral, e ora lhe obedeceu, ora rompeu com ele, segundo o alcance a optimizar em
cada caso. Não fora isto, nunca teria sido morto. A moral é conformista, por
norma.
- Mas alguma função há-de
ter... – atrevi-me a argumentar.
- Exactamente. É propedêutica:
enquanto se não tiver melhor caminho, enquanto a sensibilidade não for tão
apurada que logre ponderar as variáveis de cada caso, então o mais prudente é
ir pela norma. Tem perdas, mas as menores. O maior ganho é quando por aqui já
não é de seguir porque logramos escolher o óptimo naquela conjuntura. Parece-me
óbvio que tem de ser deste modo... – e o Fr. Marcos olhou-nos, hesitante, como
se apenas então reparava que estávamos ali.
- A prática da Igreja anda
muito longe disto. Aliás, historicamente sempre desconfiou da escolha ética,
nos termos em que a defines – meditou o Fr. Ramiro. – Seguro, seguro, apenas o
guia do Magistério, o director espiritual, o hierarca no pelouro. Assim, como
generalizar a escolha individual esclarecida? Nem sequer há nunca dois casos
iguais, quando atingimos um tal nível de exigência...
- Mas este é o funcionamento de
Jesus... – objecta Fr. Marcos.
- Julgo que tens razão. Quando
é que a Igreja aí chegará? Nunca mais se enredaria nos dilemas em que perde o
tempo a quebrar a cabeça. – E o Fr. Benedito desatou a listar: – Aborto ou não?
Pílula ou não? Casamento homossexual ou não? Prostituição legal ou não? Droga
ou não? Sacerdotizas ou não? Divórcio ou não? Para já não falar em casamento
dos padres ou não – dado que aqui até viola a Tradição Apostólica, uma vez que
o próprio S. Pedro era casado. Se o próprio Papa o era, como é que se deixou ir
isto a ponto de constituir um problema? O Espírito tem de andar muito arredado
de tanta, tanta Igreja institucional!
- Mas então não diria nada, não
tomaria posição?... – perguntei, perplexo.
- Dizer, diria, mas não, não
tomaria posição – era outra vez o Fr. Marcos, com as distinções infinitesimais
dele. – Explicaria o que, por norma, se lhe antolha a melhor resposta, o melhor
comportamento, tendencialmente, qual lhe parece o perfil mais equilibrado dum
bom costume. A seguir apelaria à mais funda consciência de cada um para optar
pelo que, em concreto, se lhe imponha como o óptimo atingível para tudo e todos
os envolvidos, nem que seja a violação por ultrapassamento de quanto anteriormente
tiver sido referido. Quando a Igreja fizer isto, então, sim, estará a fazer
germinar cristãos adultos, não os leigos teleguiados que hoje temos, rebanho a
marcar passo.
- Pois, Jesus Cristo não faria
assim... – ponderou Fr. Ramiro.
- Pois não, Jesus Cristo não
era assim – rematou Fr. Benedito.
Fátima
– 6 de Julho de 2013
Andei o dia inteiro à coca de
Fr. Marcos, o nosso mestre de Teologia Moral. A conversa de ontem deixou-me
curioso, à espera de mais. A distinção que ele introduziu é duma extrema
pertinência e finalmente entendi porque a Bíblia não contém nenhum código
moral, apenas as indicações genéricas dos Dez Mandamentos, por um lado, e das
Bem-Aventuranças, por outro, com o resumo, ainda mais abstracto, da lei do
amor: ama a Deus sobre tudo e aos outros como a ti próprio. Aquela ausência é
tanto mais gritante quanto é gritante a presença desconcertante destas. Agora
isto faz todo o sentido: Deus, Jesus quer ética, não quer moral. Quer o coração
de cada um a escolher, com toda a luz que do íntimo lhe brotar e dos mais o atinja,
não a marcha ritmada dos mercenários, meros números regidos pela batuta do
general.
Porquê procurá-lo? Por mor
daquela frase perdida no meio das reflexões: a moral é conformista. Isto há-de
ter muito que se lhe diga. Será mesmo? Então porque e como muda? Por outro
lado, ser conformista é mau? Sempre, por vezes, como distinguir?
As perguntas moem-me o juízo e
a verdade é que esta minha cachimónia nunca chega às respostas. Também nasceu
anã como eu, porventura, para nunca atingir aquele lado. Quando alguém abre a
fresta, fico maravilhado com a paisagem, mas a verdade é que eu nunca sei
abri-la por minhas mãos. Sou de discernimento tolhido como se me tolheu o
corpo. Não tenho, portanto, outra alternativa: andei o dia inteiro à coca do
Fr. Marcos.
Já passava muito da hora de
nona, estava a ver que chegávamos a vésperas e ele sem vir. Eu sabia que tinha
hoje o dia ocupado com trabalho fora, ligado ali aos cursos e aos alunos. Anda
tudo em exames finais e avaliações, trabalhos e debates e o mais que a tudo
isto se liga. Andei vigilante como sentinela, hora a hora. Ainda não era
crepúsculo mas já o sol declinara muito quando chegou. Vinha esbaforido de
calor (andamos a estorricar acima dos 40º) e com ar muito fatigado. Temi que
não estivesse para me aturar, de tanta exaustão. Foi ao contrário.
- Ora ainda bem, irmão
Ambrosino. Era mesmo o que me vinha a apetecer, para me distrair das freimas e
descontrair um bocado. Deixe-me apenas arrefecer e mudar-me, que vou ter
consigo à biblioteca, é o lugar mais fresco. Isto hoje está uma caloraça que
mal conseguimos respirar. Que suão!
Aguardei-o no recanto mais
abrigado. O calor, por estes dias, é inevitável, seja lá onde for. Então aqui,
na Serra de Aire, a Cova da Iria faz um recôncavo, parece aquecer como um
caldeirão. O convento é um pouco afastado, mas é quase um fogo de campo, o bafo
chega aqui. Nas invernias é bom, mas hoje...
Quando se repoltreou na
cadeira, pu-lo a par das minhas perguntas.
- É inevitável, irmão, a moral é
sempre conformista e tem de o ser. Repare, o termo deriva de mos que em latim quer dizer costume, o
que é de uso comum. Moral, portanto, significa o sistema dos usos e costumes.
Qualquer comportamento não conformista é o que entrou em ruptura com o sistema,
não é de uso, não é costume. Logo, fica de fora da teia da moral.
- Então será ético – comentei.
- Não, não. Tanto pode sê-lo
como ser imoral. Até pode ser indiferente, o que referimos como amoral. Para
ser ético tem de ser escolha do íntimo, lúcida, ponderada responsavelmente e
conferida com a comunidade envolvente e com a Igreja. É muito exigente o
caminho alternativo. Tão exigente que levou Cristo à cruz, está a ver?
- Mas então é praticamente
inexequível. Levaria qualquer um ao esgotamento. Que stresse! Jesus não
empurrou ninguém até um estado destes. Nem o quererá.
- Pois não, pois não. É
justamente por causa disto que existe a moral: a rede de usos e costumes é que
nos sustenta. Mal de nós se tivéssemos de partir do zero, todos os dias a
reinventar tudo. Já estaríamos mortos de exauridos.
- Está a entender a minha
dificuldade? Jesus não quer a moral, quer a ética mas a ética é inexequível.
Então em que é que ficamos? Afinal, Jesus quer a moral e mantém-na, para a
nossa sobrevivência. É deveras confuso, tem de concordar.
- Nem por isso, creio eu. Não
vejo nunca Cristo stressado nem consta que sofresse qualquer depressão por
ficar esgotado, não é? Todavia, de certeza que viveu a vida inteira com ética e
da mais exigente. Sublevou de tal maneira a moral que não lhe sobreviveu mais
que três anos, na vida pública. Foi uma bomba de rupturas que acabou por o
matar.
- Mas como é que se actua, como
operamos tal coisa? Damos uma no cravo, outra na ferradura? Hoje sou moral,
amanhã sou ético?
- Ah, ah, ah! – gargalhou Fr.
Marcos, muito alegre. – Havia de ser mesmo cómico. Repare, sabemos pouco da
infância de Jesus. Em contrapartida, verificamos que não foi pelo que ocorreu
durante ela que foi morto, certo?
- Claro. E daí?
- Lembra-se do episódio dEle com
os doutores do Templo? Como é que Ele conjugou os dois modos de abordagem, o
moral e o ético?
- Bem, se estou a compreender,
pôs o moral de lado e optou pelo ético, ficando na conversa com os doutores em
vez de ir ter com os pais que andaram aflitos três dias à procura dEle,
julgando-O perdido. É isto?
- Certo. E qual foi a reacção
dos pais?
- Maria criticou-O duramente
por Ele lhes ter pregado tal partida.
- E a resposta?
- Qualquer coisa como: porque
vos afligis, não sabeis que tenho de tratar das coisas de meu Pai?
- E depois?
- Depois?! Depois mais nada. Há
mais?
- Não, justamente. Não há mais
nada. Ficou tudo esclarecido e resolvido. O modelo é clarinho como água.
- Pode ser, mas eu devo
precisar de óculos porque não vejo nada. Qual modelo?
- O da conjunção da moral com a
ética.
- Ora, pôs de lado a moral e
escolheu a ética. Mas já vimos que não...
- Qual pôs de lado, qual
carapuça! Não pôs, não senhor! – interrompeu-me, abrupto.
- Então...?
- Antes de a pôr de lado estava
a agir em conformidade com quê, hein?
- Ah! Pois, era costume irem ao
Templo com familiares e vizinhos. E foi o que fizeram. De acordo. Obedeceram à
moral até àquele momento.
- Ora bem! E porque é que não
continuou com o comportamento moral?
- Porque teve de tratar das coisas
do Pai. O. K., já compreendi. Vamos com a moral até ao momento em que nos surge
uma exigência do Espírito que a torna incompatível e então, em consciência,
optamos pela atitude ética que responde ao que Deus, na circunstância, requer.
É isto?
- Perfeito. Mas como evitar a
arbitrariedade, a decisão aleatória?
- Ausculto-me no íntimo,
verifico para onde me empurra o coração e a consciência...
- E podes cair no maior
disparate, numa alucinação pegada, com a cabeça na lua.
- Está bem, tenho sempre de
conferir-me com o meu ambiente, a comunidade mais íntima, até à mais alargada,
os valores da cultura, a firmar-me no meu salto.
- E onde se encontra isso no
episódio do Templo?
- Não estou a ver. Ele fica com
os doutores... Aliás, como criança, não é pedir demais que tenha em conta tanta
ponderação?
- Ah, mas é que ela está lá,
não directamente mas claramente sugerida. Aliás, implicada, o que é
definitivamente mais seguro.
- Porque é que me faz isto?
Sabe que eu sou cegueta...
- Ai não é, não. Como é que Ele
responde a Maria e resolve tudo? Ainda agora o repetiu.
- Espere. Pois claro. “Não
sabeis...?” Exactamente, eles sabiam. Certamente o haviam esquecido com a
aflição da perda e da procura. Logo, isto era tema concertado e pacífico entre
eles. Por isso termina tudo: quando eles abrem os olhos, caem em si. A escolha
ética está conforme, apesar do burburinho. Fugiu à norma em nome dum bem maior,
a vontade do Pai. E depois tudo retorna ao mesmo. Regressam, em conformidade
com o costume, conforme a moral. Resumi bem?
- Evidentemente. Mas falta um
pormenor. A moral, quando vivida daquela maneira, é mesmo à margem da ética? É
mesmo por uso e costume, é por rotina? Maria vai com as outras? Ou, desde que
intervém a escolha ética, tudo isto muda de estatuto?
- Ai, Fr. Marcos, põe-me a
cabeça em água. Não chega aquilo?
- Não, não chega. Mas eu
facilito-lhe a vida. Como é que dá por um apelo do Espírito no meio da rede de
comportamentos morais? Seguindo no meio da tropeada do rebanho para onde quer
que ele vá? Sem pensar sequer?
- Ah, não, tem de se estar
atento, senão a rotina leva tudo de cambulhada. Aqui é mesmo “vigiai e orai,
que não sabeis nem o dia nem a hora”.
- Pronto. E com isto julgo que
resolveu o problema da lenta mudança da moral tempos fora e região a região. Se
jamais houvera transgressões, seria fixa para a eternidade. A escolha ética é
que renova e revitaliza tudo, inaugura o porvir e mergulha no imo até à
Infinidade. Ela é o porta-voz de Deus, Jesus só por ela pode ir passando, secularizando
mais e mais o Espírito mundo além.
De repente fixei-o, altamente
preocupado:
- Mas então a Igreja... passa o
tempo a referir rumos morais, até contra tudo e contra todos... Aprisiona toda
a gente ali!
- Pois é. Desviámo-nos e muito.
Aquele era um primeiro passo que até pode nem ser dado: Jesus e a Bíblia
inteira nunca o fizeram, deixaram os usos e costumes irem evoluindo por si. Já
vimos como, não é? Os profetas foram-se batendo, um atrás doutro, por escolhas
éticas que melhorassem a rotina da moral instalada. Embora perseguidos e
mortos, a verdade é que a rede costumeira foi sempre mudando. E continua,
claro, em todo o mundo, mais lenta ou mais acelerada.
- Até aí, diria que tudo bem. O
erro vem a seguir, não é? Mas como evitá-lo? O Igreja não pode definir a
escolha ética, por definição é pessoal, porventura irrepetível. Como é que se
pode fazer isto? Ou não tem saída?
- Tem, tem, mas é outra. A
fronteira é esta: a Igreja deve estimular, desejar e aprovar toda a escolha
ética que quenquer entenda em consciência fazer, tenha ela o conteúdo que
tiver, transgrida o que transgredir; quanto a este, ao conteúdo, é matéria
estritamente remetida a Deus, intocável em absoluto de nosso lado. Aqui é que
se aplica com rigorosa propriedade a ordem: “Não julgueis para não serdes
julgados”. Ninguém tem o direito de pronunciar-se sobre o juízo de consciência
doutrem: tem de ser entregue em absoluto a Deus, é da intimidade entre o
Espírito e uma qualquer alma, onde ninguém de fora logra deveras entrar. Logo,
se o fizer, violará sempre outrem e, nele, o projecto de Deus, seja ele qual
for. Ora, este é o pecado sistemático da Igreja neste domínio.
- E viola mesmo, como nos
suicidas?
- Ora, se fossem apenas estes!
Ainda hoje um pároco de Lisboa recusou celebrar missa fúnebre mais o ritual do
enterro por um homossexual que havia casado com outro, agora viúvo. Ambos
cristãos católicos que decidiram ir por ali. Em vez de acolher a escolha deles,
como deveria (no caso optar entre duas morais contraditórias, a da Igreja e a
do País legal), não, puniu-os porque deveriam ter obedecido à moral
eclesiástica. É não entender nada do que está em causa. Deus é que pode julgar,
nós não, nem individual nem institucionalmente. Nós devemos é querer indivíduos
maduros, responsáveis, ponderados, capazes de decidir e escolher. Termina aqui
a nossa intervenção e o nosso aplauso. O mais transcende-nos. Doutro modo
andaremos sempre a matar os profetas, dum modo ou doutro. E a matar Jesus, o
ressuscitado, pela mesma via. É uma tristeza!
- Estou agora a lembrar-me:
recusamos os sacramentos aos divorciados recasados, aos que vivem em
mancebia...
- E poderia continuar a lista.
Quantos recusam absolver a mulher que tome a pílula? Ou o que vê o espírito dos
mortos? A punição da mancebia chega a ser hilariante: é que os amancebados não
cumpriram o ritual e não assinaram os papéis. Quer dizer, se os chineses não
houveram inventado o papel, todos os casais estariam no inferno. Logo, os
chineses são os verdadeiros salvadores da Humanidade, uma vez que todos
nascemos de casais, doutro modo condenados, e o verdadeiro grande sacramento é
o papel, afinal de contas! Às tantas o Papa ainda mora em Pequim e nós temos é
para aqui um sucedâneo qualquer e nunca reparámos...
Evidentemente, desatámos à
gargalhada com semelhante disparate.
- Mas como é que é possível um
desvio destes, Fr. Marcos? Tudo parece tão claro, tão simples... E depois...
- E depois, olhe, é o
triunfalismo, dirão uns, à maneira de o povo entender. É o fisicalismo, dirão
outros, a falar mais caro para teólogo entender. É a hipóstase, ditarão
caríssimo da teologia para a filosofia, para ninguém entender, senão algum raro
iniciado. Trocado por miúdos, convencemo-nos de que já temos o Ressuscitado e,
portanto, a verdade absoluta. Logo, tudo já foi consumado, não é preciso fazer
mais nada. Enquanto aguardamos neste Tabor, o que importa é o regabofe, que
depois, no Além já previamente garantido, a farra ainda vai ser melhor.
- Que estranha convicção,
inquina tudo!
- A ressurreição deixou de ser
um projecto, um itinerário de vida, dum ser em construção rumo à plenitude,
passou a ser tomada como propriedade ao dispor, gratuita, ainda por cima
inamovível (ninguém tem poder de acabar com ela, não é?). E é uma propriedade
da Igreja, vejam só! Isto é que é poder a sério! E doravante a Igreja
distribui-a como muito bem lhe der na veneta, já que é a fiel depositária dela.
E eis como o depósito da fé redundou nesta aberração. Tudo ficou coisificado.
Não há interioridade nenhuma, nem a lógica de semente que tem de crescer ao
infinito, em todos os tempos, em todos os lugares, até à consumação final em
plenitude, a Parusia. Só que esta, para aqueles, parece que já ocorreu. É a
realidade física: o cientismo ganhou. Não existe mais nada.
- Mas então, mas então... –
gaguejei, pela inesperada reviravolta.
- Mas então, não tenha medo,
estes pendores da Igreja são absoluta e totalmente ateus. É verdade. Se calhar,
os verdadeiros e definitivos ateus que existem. Os outros, ao menos, ainda
andam à procura. Estes, não, já têm tudo. Procurar o quê? Não é? Só quem sente
falta... estes, não, estão mais que cheios.
- E a Igreja é isto?! –
espantei-me.
- Ah, não! A Igreja também é isto. E não é só porque o Corpo
místico de Cristo (que ela é sempre) não tem nada a ver com tais maleitas, é
que ela igualmente incarna a autenticidade do Espírito numa infinidade de
pessoas, obras, instituições, organismos, sacerdotes e pontífices que nunca
perderam o norte e permanentemente procuram reconduzir a barca desviada ao rumo
correcto. O diabo e o bom Deus andam sempre de braço dado no tombadilho,
acredite.
- E o Papa alinhará nestas
reconversões?
- Lá que o quer, quer. Até onde
entende? Sei lá bem! Mas, por outro lado, que quer entender, tudo indica que
sim. Até onde estará disposto a ir? Veremos. Como ele não vai muito em teorias
mas bem mais em atitudes, qualquer dia um gesto aparentemente aleatório e muito
inocente acaba por ter por trás tudo isto a fermentar. Vai ver!
Fátima – 7 de Julho de 2013
Hoje participou na nossa missa
um grupo de leigos extremamente curioso. Raramente cá vêm, já são de idade, mas
fizeram Teologia há meio século atrás, nos ardores dos anos 60, em pleno
deslumbramento do Concílio Vaticano II. Agora são reformados, uns, antigos
professores, outros, juristas, até um economista... Nunca aparecem exactamente
os mesmos, mas mantiveram laços entre si do tempo de universitários e acabam,
de vez em quando, nesta como que romaria de saudade. Têm sempre temas de
diálogo muito interessantes, para não dizer importantes.
Reservam lugar num hotel,
cativam um espaço de convívio apenas para eles e vêm-nos aqui buscar, aos que
dentre nós estiverem disponíveis e empenhados, para vivermos o dia com o grupo,
trocando ideias sobre as temáticas mais variadas. Não há nada de rígido, têm
permanentemente uns lemas geradores a despoletar a partilha de modelos,
sensibilidades e valores e depois é ao sabor do imaginário e ao gosto de cada
um. O divertido é que há constantemente matéria para horas e horas e ninguém se
fatiga nem repete. São encontros muito saborosos, partilham amizades e sonhos,
solidariedades e utopias, festas e revoluções. Com eles é que eu vejo ali ao
vivo o fermento a levedar a fornada, qualquer que seja o campo, da Fé à
teologia e filosofia, da economia às doenças, da entreajuda à política, enfim,
corre por ali a vida em todos os domínios, na busca de autenticidade,
espontaneamente. Eu diria, isto é que é uma pequena igreja, inter-familiar (já
que são quase todos avós, em vários núcleos), partilhando o pão e o vinho do
Espírito que germina pelo mundo além. Lembram-me aquelas que lemos nas
Epístolas de S. Paulo e nos Actos dos Apóstolos. Um retorno muito espontâneo às
raízes, não programado por ninguém.
Hoje principiaram por uma
diatribe dum grupo fanático de Fátima que fez correr na Internet uma petição
para que o fenómeno seja propriedade exclusiva dos católicos, dado que
constatam estar a haver indícios de vários aproveitamentos alheios, que nada
têm a ver connosco.
- Ora cá está, em plena era do
ecumenismo, uma atitude deveras exemplar. Após reunidas as tropas, devemos ter
depois a proclamação duma nova cruzada contra os infiéis – ironizou o Dr. Luís,
um antigo Delegado do Ministério Público reformado que nunca quis ser juiz.
- Mas teve algum eco? Subscreveu
muita gente a petição, foi? – era o Dr. Costa, o filósofo que permanentemente
recusou tal designação, retrucando logo: “Não, sou professor de Filosofia” (mas
haviam de ouvi-lo nalgumas tiradas espectaculares, que logo entenderiam qual o
apodo que melhor lhe conviria!).
- Ora, meia dúzia de cavaleiros
medievais – ironizou a Prof. Jovita, investigadora universitária em fim de
carreira – que bem queriam fundar um movimento a partir dali, não sei para quê,
se calhar para terçar armas. Não deu em nada, felizmente. Ou ainda iríamos ver
o recinto diante da basílica transformado em arena de torneios.
- Olha, se calhar era capaz de
atrair outras multidões de turistas, nos intervalos, um novo folclore –
satirizou o Dr. Correia, um economista ainda no activo, numa multinacional. –
Gorou-se uma oportunidade de novos negócios. Se calhar era o que o grupo
pretendia, ao convocar às armas para manter o monopólio.
- O que me espanta – interveio
o Fr. Benedito, sempre pronto para acolher este tipo de grupos – é que se tenha
gorado tão rapidamente. Depois de tantos séculos de Cruzadas e de Inquisição,
culminando com o exclusivo da Igreja Católica, por proibição da entrada doutras
religiões em Portugal, aquilo é uma melhoria de vulto.
- Ainda conseguiram chegar ao
noticiário da televisão, não eram tão inermes como isso – anotou o Dr. Luís. –
Mas morreu por aí. Pelo menos, não deram mais sinal de vida, que tenhamos
conhecimento.
- Ora, puseram-nos na ordem –
comentou o Fr. Nardo que hoje nos acompanhou. – É curiosa a reviravolta disto.
Queriam avaramente apropriar-se dum evento que, ainda por cima, é duma
infantilidade atroz e duma religiosidade de miséria. Ali não há nada de
espiritualidade íntima, profundidade nenhuma. Aquelas mensagens até eu era
capaz de as ditar. São confrangedoramente básicas. Queriam ficar com aquilo
para quê? Para transformar o recinto num enorme parque de estacionamento? –
Muito gosta ele de repetir isto! - Se calhar dava-lhes lucro, com a dificuldade
que há de arrumar as viaturas.
Sorriram todos ao comentário
jocoso dele.
- A inversão da atitude
evangélica é que para mim é chocante: em vez de partilhar, aferrolhar. E,
depois de aferrolhar, defender. – O Fr. Benedito fez uma pausa, meditabundo. –
Não é que não tenham, infelizmente, História além, uma infinidade de
conjunturas paralelas de que se alimentarem. As piores já referiram. Mas dá que
pensar. Ainda hoje há quem opere, de boa fé, deste modo. Que vida interior
terão?
- Ora, as de mata-moiros,
então! – exclamou, humoristicamente, Fr. Nardo. – E já tens muita sorte em não
teres, ali à entrada da basílica, dois guardas suíços, como na do Vaticano.
- Quanto a mim, é a lógica do
depósito da Fé – tomou a palavra o filósofo. – Se fazes um depósito, a seguir
tens de o defender. Ninguém pergunta sequer o que é que o depósito requer, no
conteúdo dele. Podem perfeitamente ignorá-lo. Aliás, qualquer tesoiro finda
mais bem defendido se os guardas ignorarem o que contém, que então não sofrem a
tentação de o assaltar, por sua vez.
- Mas que interessante! -
interveio a Prof. Jovita. – É uma curiosa interpretação do culto da ignorância,
diria do obscurantismo até, que durante séculos a Igreja acarinhou para toda a
comunidade crente. O Índex de livros proibidos e o latim garantiram que os
fiéis desconheceriam de facto, séculos e séculos, de que é que constaria em
concreto o tal dito tesoiro da fé. Então defendê-lo-iam, cuidavam eles,
inteiramente ignaros do que andariam a defender.
- Bem, papagueavam o catecismo,
ao menos do Concílio de Trento para cá, desde o séc. XVII – fez o economista. –
De facto, antes, nem este negócio havia. E os ignorantes davam muito jeito para
manter o clero de barriga cheia, sem suspeitarem que aquilo nada tinha a ver
com Evangelho nenhum. Os protestantes tramaram a boa vida.
- Nem agora os crentes
suspeitam e continuam tão ignorantes como antigamente - retomou o Fr. Nardo. –
Papagueiam, como referiu, e é verdade. Que é que adianta decorar um catecismo?
É um rosário de fórmulas mágicas que nenhuma criança entende deveras (nem pode
entender, tão pequenitos são), mas que tem o condão de escancarar as portas do
céu. Ora, se a gente tem aqui em Fátima uma cancela privativa que nos facilita
a entrada no Reino, vamos deixá-la roubar? Não. Toca a cerrar fileiras, a
defender tão maravilhoso privilégio. De espantar é, de facto, não haver mais
nesta milícia. Que lá bem ignaros, duma espiritualidade (se é que se lhe pode
chamar isto) de miséria, é o que confirmamos todos os dias na multidão de
papalvos que aqui vêm comprar milagres a quilómetros de sofrimento ou por
angústias a quilo. Evidentemente que estão de boa fé e Deus não pode deixar de
ouvi-los. São crianças bem adultas e até velhas que perderam a vida enganadas
por uma Igreja de fórmulas e ritos dessorados. Têm as vozes bem de cana rachada,
por mais que exteriormente os cânticos lhes corram afinados.
- Quem lucra com isto? – tornou
o economista.
- A estrutura eclesiástica que
continua praticamente tão parasitária como sempre – respondeu-lhe o Fr.
Benedito. – Até S. Paulo, que legitimou que viva do altar quem para o altar
vive, trabalhou, afinal, nas artes de tecelão, para se manter sem depender de
ninguém. Mas eu sou suspeito, que as ordens religiosas sempre historicamente
alertaram para isto, embora tenham caído na tentação muitas vezes.
Calámo-nos todos por momentos,
a meditar naquilo. Os mercenários do monopólio de Fátima... Uma aberração, na
perspectiva duma espiritualidade minimamente autêntica, alimentada nas
inspirações do íntimo. Mas, por outro lado, toda uma lógica de alienação bem
coerente.
- Há nisto uma outra vertente
que me aflige muito mais – retomou o Dr. Luís. – Não é apenas entesoirar e
depois defender. É também constituir tudo e todos os mais como inimigos de que
urge defender-nos ou, porventura, que teremos de atacar.
- E aí temos o fim de qualquer
ecumenismo – rematou o Dr. Costa, na lógica do filósofo. – Mesmo sem ser
preciso chegar à guerra. Quando rotulamos o adversário, acabou o diálogo, morto
e enterrado. Aliás, não entendo porque aqui se caminha tão lentamente. O
Exército Azul, dos Cristãos Ortodoxos, tem cá instalações e comunidade, por
exemplo, e é como se não existira. Há quantos decénios! Transitam por cá
crentes de todos os horizontes e religiões e são olimpicamente ignorados.
- Não, não – cortou o Fr. Nardo,
muito irónico. – São todos muito bem acolhidos. Em instalações católicas, nos
rituais católicos, nas cerimónias católicas, até nas casas de acolhimento de
congregações católicas. Somos todos hospitaleiros, desde que na marca católica.
É o ecumenismo do “filho, queiras ou não queiras, tens de ser bombeiro
voluntário!” Alguém viu outrem maltratado? Não... Os bombeiros sempre trataram
bem toda a gente.
- Isto faz-me lembrar dum
pormenor que nunca mais me esqueceu, - acrescentou a Prof. Jovita – dum encontro
da JUC, nos velhos tempos. Uma colega referiu (e reparem que isto foi já nos
anos 60, não é?) que tinha ficado empolgada porque na Universidade da Paz, na
Bélgica, o Prémio Nobel Dominique Pire, monge dominicano, resolvera a afluência
de alunos de múltiplas religiões da forma mais simples: criou uma capela única
onde se podiam suceder os cultos das confissões que o pretendiam. Bastava
pedi-lo, para ordenar as horas da utilização, mais nada. Tudo na mesma capela,
cada qual da própria vez, aberta a todos, sem restrições de tipo nenhum. Já lá
vão mais de cinquenta anos, não é? E aqui continuamos mais ou menos a marcar
passo, à espera do dia de amanhã que já foi ontem.
- Não há dúvida, – aditou o
filósofo – mantemo-nos donos da verdade absoluta. Que não existe nem jamais
alguém poderá deter em campo algum: Deus não se deixa apanhar nunca em nenhuma
vertente. Os israelitas já o tinham descoberto milhares de anos antes de
Cristo, registaram-no bastante claramente no Pentateuco bíblico, mil e
quinhentos anos antes (eu sei que o I Capítulo, o da Criação, foi apenas meio
milénio) e nós, os católicos, não há maneira de o descobrirmos, dois mil anos
depois dEle. Olhem que é um grande mistério! Reparem que até os filósofos ateus
concordam que a verdade é inatingível, qualquer que seja o domínio. Até eles! E
nós, que temos a obrigação de ter mais juízo, não, andamos para aqui com um
espantalho no ar convencidos de que é uma grande coisa. Haja paciência! Quando
é que isto muda?
- Olha! Quando o espantalho
cair! – tinha de ser o Fr. Nardo e desatámos todos a rir, claro.
- Quer dizer, nunca, se calhar,
– atalhou o economista – até porque o negócio pode ir para o charco e são
milhões, anualmente. Podemos ter muito bons argumentos, de espírito
elevadíssimo, a encobrir fitos bem mais rasteirinhos. Se a cultura da verdade
absoluta cair, é bem capaz de erguer-se outra qualquer em lugar dela, que os
privilegiados da fortuna nunca a largam de bom grado, eclesiásticos ou não. O
barro é frágil e, quanto mais protegido, mais frágil finda. Ora, a Igreja
protege muito, é um escudo tremendo. Não podemos ignorar isto, por muito reles
que seja.
Ficámos como que meio
envergonhados, a olhar para as mãos. Aquilo foi pior que um murro no estômago. E
não havia resposta nem desculpa: é verdade... A Igreja comunidade de crentes é
tão humana, tão humana! Como é que depois embarca em alucinações tão
incongruentes, em manias de grandeza tão inadequadas como aquela do depósito da
Fé, tornado um dogma arbitrário (um somatório de dogmas), uma verdade absoluta,
Deus agarrado pelos cabelos à má fila? Somos tão contraditórios!
- Não devemos deixar-nos abater
– encorajou o Fr. Benedito. – Eu tenho esperança noutra coisa. Creio que os
novos zelotas que pretendiam privatizar as aparições de Fátima mexeram-se, não
por verem outras igrejas ou outros credos a rondarem por aqui, mas por um novo
motivo. É que ocorrem por cá pequenos cursos de meditação, monitorados por quem
não tem qualquer ligação individual à Igreja. E a verdade é que eles resultam e
muito bem. Por exemplo, a Alexandra Solnado lidera alguns, confessa que vê e
fala com Jesus quando medita. Ele, segundo ela, é que lhe vai dando as
indicações do que fazer e como. A maioria dos participantes tem visões,
normalmente de familiares falecidos com que ali contactam (são os alunos, não
ela), mas também de Jesus, igualmente. Os casos são aos milhares. Tenho
acompanhado isto de perto. Não há falcatruas, é mesmo verdade, estou
inteiramente convicto. Ora, os monopolistas dos dogmas como é que poderiam
engolir uma coisa destas? Ficou-lhes entalado na garganta. E de lá não irá sair
nunca mais. Jesus não lhes obedece nem respeita a fronteira da Igreja. Quem
diria? Vejam só!
Isto despertou o interesse
desmesurado de todos.
- Crê que pode vir a mudar
tudo? Como? – perguntou o Dr. Luís.
- O movimento Nova Era é
transversal a todas as religiões e corresponde a uma enorme ânsia de
espiritualidade que não é respondida pelas vias tradicionais, pelos nossos
ritos, orações nem sacramentos, nem pelos de ninguém. Como movimento informal,
tem lá de tudo, desde a charlatanice à crendice milagreira, até à mística, à
santidade, ao martírio mais genuínos. Ora, estes é que nos importam. Acompanho
muitos leigos que se tornaram meditadores. Mudaram e continuam mudando de vida,
com uma vivência interior cada dia mais autêntica e fecunda. Ora, isto vem
ocorrendo no mundo inteiro, com gente de todas as origens, credos ou sem credo
nenhum. Após quinhentos anos de secularização agnóstica ou ateísta, isto anda a
reespiritualizar a cultura mundial toda, a partir de novos referenciais que não
anulam nem chocam nem destroem os anteriores. Permite, se bem assumido e
aproveitado, revitalizar tudo. É o Espírito a caminho. E sem ligar nada aos
religiosos encartados. Quer nossos quer dos outros. A requerer de nós uma
enorme atitude de humildade: temos de largar tudo e pôr-nos a caminho.
Teologias, dogmas, depósitos, tradições, ritos – todas as vestimentas culturais
que se nos pegaram à pele nestes dois milénios. “Largue tudo e siga-me”, não é?
Mais uma vez, como sempre.
- Integra os autores todos de
auto-ajuda e de orientação da vida interior, certo? - perguntou a Prof. Jovita
(já estou a vê-la a investigar tudo). – É uma área fascinante, também para mim.
- Pois, é verdade. Há-os de
todos os horizontes – confirmou o filósofo. – De repente lembrei-me da católica
irlandesa Lorna Byrne. Mas, por exemplo, Neale Walsh era um agnóstico marginal
quando se colocou diante da folha em branco e desencadeou toda a série das Conversas com Deus. Sei lá, Deepak
Chopra é um médico hinduísta cristão, a formação mais díspar de todas as que
conheço e que ele logrou sintetizar no imo dele, brilhantemente. Brian Weiss
era um psiquiatra todo drogado de cientismo ateísta e agora até profecias faz,
com base nos tratamentos hipnóticos em que é especialista. Bem, isto é um nunca
mais acabar, uma avalanche no mundo inteiro... Se calhar, de facto, pode vir a
virar tudo. Nunca tinha pensado nestes termos, confesso.
- Mas que é que pode virar? Uns
milhares de indivíduos, tudo bem. Milhões, vá lá, no mundo inteiro. Mas a
máquina colossalmente ferrugenta da Igreja, hum, não me cheira... – era o
cepticismo do economista.
- Também, que é que era
preciso? – a Prof. Jovita meditava. – Neste campo bastaria abrir os braços,
acolher, não é? Em vez de se pôr a julgar: quem são os fiéis, quem é o infiel,
quem é o diabo em figura de ateu, de cientista agnóstico, sei lá! Onde houver
sinais de boa espiritualidade, abrir a porta e convidar a entrar. Simples,
cristalino como água.
- Pois, para os converter a
todos – riu o Fr. Nardo. – E amanhã acabou a auto-ajuda de vez, a empresa
faliu. Mas salvam-se, salvam-se todinhos.
- Exacto, falta saber quem
converte quem. A Igreja foi sempre perita em assimilar quanto topou no caminho
– ponderou o filósofo. – Agora o risco é o mesmo. Se calhar é melhor que tudo
engrosse no rumo em que vai. Nós temos de salvar as gentes, ninguém tem de
salvar a Igreja, não é?
- Ou, ao invés, - reflectiu Fr.
Benedito – a Igreja apenas se salva se e quando salvar os indivíduos. O que não
é o mesmo que convertê-los. Por confundir ambas as coisas é que chegámos aqui,
com a hemorragia de milhões e milhões de baptizados que abandonam tudo,
tornados indiferentes, agnósticos ou ateus declarados, porventura militantes.
Não podem confundir o Espírito que sopra onde quer com as materializações
estereotipadas em que nós pretensamente O aprisionámos.
- Pois, é o Espírito
engarrafado – riu o Fr. Nardo, impenitente. – E nós andamos a impingi-lo às
garrafinhas. Não quer uma garrafinha de missa? – perguntou, bem-humorado, ao
Dr. Luís.
- Muito obrigado, já estou
servido – retorquiu este, alinhando na rábula. – Só fiquei à espera para pagar.
Quanto é? Ah, e com recibo, que, se a garrafinha missseira não estiver em
condições, reservo-me o direito de a trocar por uma nova, certo? Aqui não dão
garantia? Olhem que é ilegal!
A brincadeira foi subitamente
cortada:
- Bem, é uma senhora abertura o
acolhimento que estamos a propor! – ponderou o filósofo. – A única reserva era
o nosso juízo de consciência acerca da espiritualidade visada, se é séria ou se
é uma falcatrua. Sendo séria, portas abertas. Os padres, os seminaristas, os
bispos... estarão disponíveis para frequentarem cursos de meditação? E
dar-lhes-ão continuidade? Quanto a esta, julgo que sim. Agora, entrar e
interiorizar a técnica... não sei. Mas lá que seria muito bom, seria.
- Aliás, é o padrão que deveria
ter sido permanentemente seguido: onde sintamos o Espírito mexer, acolhemo-lo –
é outra vez a Prof. Jovita. – Ao contrário do que multissecularmente temos
vindo a fazer, que é comparar o que Ele faz com que nós fazemos e, se é
diferente, rejeitamo-Lo. Logo, Deus não encontra outro modo de operar hoje
senão longe de nós, à nossa revelia, entre quem nos chega a ser inteiramente alheio.
E já temos muita sorte em não ser entre quem é contra nós, tão estranhos ao
sopro do Espírito andamos há séculos e séculos. Oxalá venha aí a reconversão!
Fátima
– 8 de Julho de 2013
Como é que eu podia ficar calmo
depois duma conversa daquelas? Vim de lá com um monte de problemas. É verdade
que falar com gente de formação universitária nos põe a cabeça em água. Não
admira que cronicamente a Igreja tenha preferido e cultivado os ignorantes: dão
muito menos canseira. Se não foram os desvios, a violação de direitos de base,
a subversão do Espírito em seus intuitos... Enfim, não há bela sem senão.
O que me toca de imediato é
isto: como pode o Papa abrir os braços da Igreja com aquela latitude? Mesmo que
abra os dele, como desaferrolhar o resto? É uma questão de cultura, não se
veste e despe como um casaco, requer gerações, mexe fundo por dentro de cada
um. Como lograr mudar isto aqui e agora? Ou não é exequível? Ou nem é
desejável? E há mesmo tudo o que referem no movimento actual de procura do
Espírito, de orientação interior? Ou é um epifenómeno como foram os hippies, ou
o Maio de 68 em França, fogo de ervagens que encandeia um instante e logo se
apaga, cinzas inócuas que o vento do tempo varre lépido para o esquecimento?
Enfim, dúvidas demais, mesmo para a cabeça tonta dum anão.
E há santos e mártires por ali?
E a Igreja caminha ao lado sem reparar sequer? Continuamos com um sectarismo
cego, os do clube são os bons, os de fora são os maus? Todo o ecumenismo de
nosso lado é uma farsa? Nós somos a Luz do Mundo, os mais têm por lá uns
morrõezinhos quase apagados e frios? O triunfalismo continua assim, mesmo
quando Jesus Cristo nos desautoriza de todos os modos, por todo o lado?
Revela-se aos de fora, como a Alexandra Solnado, aos de dentro marginalizados,
como a Lorna Byrne, e os internos comuns, leigos e hierarquia, olham
despeitados e invejosos e ignoram-nO olimpicamente? Não nos ligas, também não
te ligamos, ora toma! Somos o irmão desdenhoso do filho pródigo? Por onde anda
enveredando esta Igreja institucional? Ou serei eu que ando perdendo o juízo?
Tenho mesmo a bússola enguiçada! Quanto mais me adentro, mais me desnorteio.
Sou mesmo um pobre grumete desajeitado nesta descomunal barca de Jesus. Seja o
que Deus quiser!
- O Papa alheio a tudo isto?! –
admirou-se o meu Mestre, quando o apanhei antes de vésperas. – Creio bem que é
o contrário. Já o viu cumprir algum protocolo? Varre-os a todos, que é uma
limpeza! Desde o primeiro dia, logo no primeiro acto. Agora, claro, podemos
julgar que é só isto. Aliás, quem viver de estereótipos terá de reduzir isto a
um estereótipo igualmente. Só que o esqueleto implica sempre mais do que os
ossos, queiram-no ou não os traficantes de cadáveres. Ou não é assim?
- Ai, troque-me tudo por
miúdos, que eu fiquei com a cabeça em água e ainda não me livrei do afogamento.
Estou que mal consigo respirar.
- Ah! Ah! Ah! – riu-se ele com
vontade. – Afoga-se em pouco fundo, é? Não se desculpe com o tamanho, que não
tem nada a ver. Às tantas, por compensação, é num anão qualquer que desponta o
génio. Ainda vai ver!
- Eu até entendo a quebra
permanente do protocolo. As atitudes humanizam-se, aquilo deixa de ser a seca
de gestos ritualizados em cujo sentido já ninguém repara e, ao invés, transmite
a mensagem com as palavras invulgares e as atitudes inesperadas. Que mais há?
Mesmo isto já é muito, julgo eu, no meu fraco entender.
- E julga muito bem, irmão
Ambrosino – retorquiu Fr. Benedito, meio gozão. Esperei por mais e nada.
- Não vislumbro mesmo além,
pode crer. Que é que vê, então?
- Eu?! Exactamente o que
aponta. Já referiu tudo. Não reparou?
- Ai, há-de estar sempre a
gozar comigo! Estou a falar a sério.
- Eu também!
- Pronto, explique-me lá o que
eu comentei e nem ao menos compreendi. Melhor, o que é que há para além do que
compreendi.
- Irmão Ambrosino, é que nem
sequer é para além. O Papa Francisco anda a dar cabo do protocolo inteiro, em
nome do relacionamento concreto entre os indivíduos e do sentido, do conteúdo de partilha mútua
que contiver cada momento. Até agora fá-lo com tudo e com todos. Reparou no que
ele fez ao discurso que ele tinha, com umas quatro páginas, na mão, no encontro
com aqueles jovens, há dias?
- Pois, não leu discurso
nenhum. Sentou-se à frente e pôs-se a dialogar. “Perguntem, que eu respondo.” E
dobrou os papéis no bolso. Está a ser desta maneira com tudo. Vira do avesso o
modelo protocolar. O estereótipo, não é?
- Agora responda: que é o nosso
ritual, em qualquer campo, até na missa, que é o nosso Livro de Horas, que é
que são as devoções, as orações estandardizadas? A que é que apelidamos de
católico cumpridor? Já reparou?
- Ah, compreendo, modelos
prefixados, únicos e universais.
- Protocolos estereotipados,
portanto, não é? E agora veja o que designamos de crente praticante...
- O que os cumpre. Ah! É
cómico: o Papa, que passa o tempo a romper com todos, então, não é um católico
praticante! Boa, muito boa! Ele vai mesmo dar cabo do juízo a esta multidão
amorfa e rotineira toda. Mas que gozo!
- E se continuar a ser desta
maneira com tudo, até onde irá, hein?
- Por esta via tudo, deveras,
pode vir a ser reformado, não é? Conforme cada um e cada comunidade for capaz
de vitalizar o encontro mútuo, seja lá qual for a celebração. Dos sacramentos à
oração, a um mero diálogo a dois ou em grupo... Tudo, de facto.
- De acordo. Acabou de referir
o que faltava. E respondeu aos desafios de ontem.
E, perante o meu ar perplexo,
confundido de todo:
- Sim, irmão Ambrosino! Também
o acolhimento sem reservas dos que procuram a espiritualidade, num contexto
religioso ou fora dele, na nossa Igreja ou noutra qualquer, na nossa religião
ou noutra qualquer... Basta o itinerário da vida interior, por aí perpassa
Deus, por aí caminha Jesus, a incitar o povo dos homens a caminho da plenitude.
As barreiras irão cair todas porque apenas isto é importante. E o que pensamos
pouco importa, porque é mero instrumento para a meta, não pode ser barreira
nunca, como até agora.
- Quer dizer, quando
ultrapassamos os formalismos em nome do encontro, lentamente cairão todos eles,
porque a única realidade que conta é a da mútua comunhão sempre a caminho,
sejam quais forem as diferenças, as vertentes e ladeiras por onde cruzámos para
aqui chegarmos. Estou a ver.
- O Papa anda a trepar a
alpendurada todos os dias. Pode ser apenas germinal, mas são os gérmenes disto
que ele anda por ali a semear.
- Eu duvido é que ele o esteja
vendo. Eu, por exemplo, não estava a ver nada. Bem sei que sou tapadinho de
todo, não me posso comparar...
- Veja o que vir, a verdade é
que anda operando nesta lógica permanentemente. Queira ou não queira, o
fermento está levedando a fornada e é o fermento disto. Espreita um mundo novo
por trás daquelas atitudes de nada. Aparentemente irrelevantes. Até acaba por
ser uma estratégia inteligente para ter eficácia. Levanta poucas ondas, os
embalsamadores de cadáveres ritualistas nem se apercebem do tsumani que aí
virá...
- A propósito, Fr. Benedito,
que é aquilo dos santos e mártires do novo movimento espiritual que hoje cruza
o mundo? Não os reconhecemos na Igreja?
- Nunca o fizemos e continuamos
a não fazê-lo.
- Mas então, nesta lógica,
também isso...
- Evidentemente, também isso
cairá, depende tudo de quão longe acabe por ir a caminhada. A fornada anda
levedando e não é apenas o Papa. Ouviu aqueles leigos de ontem, já estão do
outro lado, bem longe da peugada do rebanho. E nós aqui? Não em público, mas em
particular, quem tem reservas fundadas? De facto, ninguém. Quando muito, alguns
manterão preconceitos de antanho que ainda não foram extirpados. Vão a caminho,
como a grande multidão do povo de Deus.
- Mas há exemplos tão claros
assim?...
- Há e conhece alguns. Alguém
na Igreja trata, por exemplo, Gandhi ou Luther King como santos? Mas como
poderão não sê-lo, não é? Não digo o reconhecimento com os protocolos oficiais,
evidentemente, são mais estereótipos, mas como acolhimento consensual de facto
entre as comunidades para quem forem significativos, exemplos de profunda
espiritualidade a transformar o mundo.
- Estou a lembrar-me de que
Hans Küng pergunta como é possível não acolhermos Maomé como o santo profeta
que é para o islamismo.
- Ora bem. Aí tem outro caso.
Mas há muitos mais, mormente de gente simples a viver com os íntimos uma
autenticidade de vida interior tão grande que, de facto, serão santos, mesmo
que nada tenham a ver connosco. É o caso de Paula,
a filha de Isabel Allende, morta de cancro aqui na vizinha Espanha, ou o de
Estrella, a biografada em Graça e Coragem
na Vida e Morte de Treya, escrito pelo viúvo, Ken Wilber, dez anos depois do
passamento dela, também vítima de carcinoma. É um itinerário espiritual de
tamanha autenticidade que muitas vezes dou por mim a rezar-lhe para que ela me
ajude e me inspire, como oro a qualquer santo cristão. Quem me dera atingir a
grandeza e a heroicidade dela durante o quinquénio da tribulação que acabou
matando-a. É uma espantosa mártir contemporânea, cujo itinerário trilhou e
aprofundou na rota apenas dos meditadores, fora de qualquer confissão religiosa
explícita organizada. O Espírito de Deus é que manda e conduz, a nós resta-nos
ter o coração aberto e estarmos atentos para Lhe discernirmos a marca, onde
quer e em quenquer que Ele a imprima. Não somos nós que mandamos, é Deus. Jesus
não é nossa propriedade, nós é que temos de ser servidores fiéis dEle. Em vez
de embandeirarmos em arco porque Ele nos escolheu: aí já O abandonámos e apenas
fazemos asneiras. Individuais, colectivas e institucionais.
- Ando mesmo a leste disto
tudo. Também é o ramo mais distante do ecumenismo, não é? Aliás, eles nem fazem
parte do movimento, pois não? Ainda por cima cruzam transversalmente através de
todas as fés, certo? Mas na lógica de até agora, isto principiaria com os
cristãos, depois iria até aos judeus, em terceiro lugar, aos muçulmanos, as
três religiões do Livro. A partir deste patamar, era o diálogo com o budismo e
o hinduísmo. Finalmente, viriam os que se mostrarem abertos ao apelo à vida
interior, num conjunto amalgamado de indiferentes, agnósticos, ateus, animistas
e outros quaisquer. Foi o quadro que eu concluí das minhas leituras. Agora o
movimento de espiritualização da cultura mundial que anda a varrer tudo em todo
o lado, como é, no meio disto?
- Bem caracterizado, irmão
Ambrosino. Pois, como diz, estava aquilo muito bem organizado, num protocolo
previsto, mais um estereótipo. Ergue-se a ventania deste movimento e abala de
repente tudo. Já nada corresponde de igual maneira. É o mesmo de que temos
vindo a falar. O Espírito, quando impele, é assim. Não presta contas a ninguém,
não respeita protocolos e rompe com os estereótipos todos. Nós, muito
humildemente, temos é de andar atentos e segui-Lo, vá Ele por onde for, corra
para onde muito bem lhe aprouver. Digamos obrigado e sigamo-Lo.
Fátima
– 9 de Julho de 2013
O Papa Francisco, na primeira
viagem fora do Vaticano, foi à ilha de Lampedusa, quase na costa de África (100Kms),
para onde tendem a ir permanentemente emigrantes africanos clandestinos, em
busca do eldorado europeu. Umas horas antes de o Papa ali chegar, mais um barco
cheio deles foi interceptado. É o programa da rotina quotidiana, de há anos a
esta parte.
Sua Santidade continua com a
prioridade aos pobres: pede solidariedade com estes que ali chegam, os mais
graves deserdados. E alerta para o facto de que, à medida que vamos enricando,
vamos cada vez mais ignorando que aqueles existem, mesmo que nos morem ao lado
ou durmam, sem abrigo, à soleira da porta da nossa urbe.
Hoje, à hora de vésperas,
tivemos um inovamento. E cai mesmo bem quebrar ocasionalmente a rotina: já não
nos deixamos embalar pelo papaguear meramente automático. Fr, Ramiro quis fazer
uma rápida leitura a propósito do que acabáramos de ouvir do Papa.
- Primeiro, os pobres. Como
Francisco de Assis, tornar-se um deles, despindo definitivamente a roupagem de
filho-família rico. O Sumo Pontífice já abandonou os palácios e hoje foi até ao
recanto dos mais deserdados. Ignoramos até onde quererá ou poderá ir. Mostra,
porém, cada vez mais, que não se identifica com a família da mãe-Igreja rica,
tão mais pobre quão mais rica. Não lhe importa a riqueza para nada, só não vê
ainda, creio, é o que é que há-de fazer com ela. Jogar aquilo tudo ao Rio
Tibre?... A todos os Rios Tibres do mundo?...
Respirou uma breve pausa e logo
continuou, esquemático, o que não lhe é nada habitual.
- Depois: quão mais temos, mais
ignoramos quem não tem. Primeiro, a palaciana Igreja toda apalaçada. A
princípio, Igreja dos escravos; uns séculos depois, Igreja dos senhores dos
escravos; a seguir, quase Igreja dona dos senhores dos escravos. A cada
patamar, mais distante destes, portanto, e mais os ignorando, logicamente. A
ponto de não ser, aquando do fim da escravidão, porta-voz dos escravos mas dos
aflitinhos donos deles (na generalidade dos casos). Coitadinhos dos donos, não
é?
Parou de novo, a deixar repousar
as águas.
- Finalmente nós, claro. As
ordens religiosas, com voto de pobreza, pelos séculos fora perenemente com
manigâncias para enricar. E com enormes fortunas acumuladas. Não apenas os
Templários, mero expoente extremo. Mas de facto todos, todos... Pouco adianta
que os bens sejam comuns: na hora de os defender, formamos logo barricadas
atrás de cada um, mercenários das coisas e já não militantes do espírito, da
vida interior atenta aos murmúrios de Deus e a dar-lhes cumprimento mundo fora.
Os bens são traidores: colam-se-nos como grude, queiramo-lo ou não, e não há
forma de os despegar, quando nos agarram. São ventosas de sanguessuga a
chupar-nos o sangue das almas. Terminamos com corpos desalmados, mal nos
precatamos.
Íamos calmamente a caminho das
celas para a pernoita, ainda com os ouvidos cheios dos avisos do Fr. Ramiro, e
eis-me abordado pelo irmão cozinheiro que me vinha entregar algum material
levantado há dias na biblioteca.
- Toma lá, seu desalmado –
brincou ele – seu dono de toneladas de livros que ainda te irão sugar num
instante qualquer alma que tenhas nessa teu corpo enfezado! Mal te precates,
vais ver!
Recolhi as obras, rindo, e
retorqui, alinhando nos motejos:
- Deita para cá, seu ratoneiro,
que o que tu tramas vejo eu bem: mil manigâncias para enricar. Pelo tamanho da
pança, vejo enormes as sanguessugas. Onde isto já vai! Nem o purgatório te
chega! Não te precates, não!
Desatou a rir, por sua vez.
- Aquilo recordou-me um caso
exemplar, quando eu era jovem, em Darque, uma vilazinha nos arredores de Viana
do Castelo – retomou ele, agora sério.
- O quê? – arrebitei a orelha.
- Era a inaugurar uma
quintazinha restaurada por uns novos-ricos de fora. Um género de casa de campo
para um casal de meia-idade, vendedores de mobílias de estilo. Clientela da
alta, estás a ver? Corria ali muito dinheiro. O próprio restauro era uma
fortuna. Mas tudo resultara muito bonito, a casa, os anexos, o próprio terreno
cultivado. Espampanante, claro, muitos doirados, talhas em madeira, os quartos
a rivalizarem com os de príncipes e princesas, como nos contos de fadas. Mas
gostei, para um ignorante completo de cabedais daqueles, até achei bonito e de
arregalar o olho, entendes?
- Porque é que te lembrou disto
o comentário do Fr. Ramiro?
- É que eu entrei, levado por
um cliente dos lados da minha família. Um tipo de acompanhante letrado, para o
caso de ter de botar faladura e o meu apadrinhante não ficar à vontade. Ignoro
como é que cuidou que eu me veria. Enfim, adiante! Estavam lá, comendo e
bebendo, todas as sumidades da terra e arredores. Pelo que me levou, já vês de
que sumo eram feitas: as carteiras tinham muito recheio, o resto...
- Costuma ser. Quanto mais
pejadas as carteiras, mais vazias as cabeças e estéreis os corações. Poucos
escapam ao fado. Que, aliás, eles julgam alegre, enquanto desdenham dos mais.
Foi o que apanhaste, não foi?
- Bem, é capaz. Eu era verde
demais e depois, o barulho das luzes, como quem diz, com todas aquelas
fulgurações, deixou-me meio zonzo. Estás a ver o boi a olhar para o palácio?
Ali era eu, mais ou menos...
- Claro, como não? Então que é
que foi que to lembrou?
- Olha, juntaram lá o
supra-sumo. Logo, quem é que havia de estar?
- Quem? Oh, mas não há bispo
nenhum por ali. Não me digas...
- Pois, bispo não, mas o pároco,
todo feliz e aperaltado. A abrilhantar a festa barriguda. Na ocasião, como
jovem cheio de verduras, pareceu-me um evento bem natural.
- Eu diria que é praticamente
da praxe. E todos tendem a prestar-se a tal, desde que soe a dinheiro, não é? A
inversão do mandato da Igreja é assim, que lhe havemos de fazer? É quase
requerido um herói para resistir a estes hábitos que os séculos implantaram. É
por isto que a atitude do Papa tem que se lhe diga. E, a propósito, continuo a
não entender que é que te evocou o episódio.
- Já lá chegamos. Pois o pároco
fora convidado mas com uma tarefa. Uma que, aliás, muito o honraria: ele teria
de botar discurso num evento tão importante. Era o orador principal na hora dos
brindes.
- Claro que isto é um
reconhecimento da Igreja mas pelo pior dos aspectos: é materialismo completo.
Para onde foi a espiritualidade, a vida interior? Nem rastos! Pompas, aparatos,
faustos e, na cúpula do zimbório, a fechar a arquitectura com chave de oiro, a
Igreja, no representante institucional dela. Que espectáculo mais alienado!
- E ainda não viste nada.
- Ai há pior?
- Como não, se foi um dos
empurrões que me trouxeram até aqui? Não ignores que eu também trato das
barrigas, não é? Então, estômago por estômago, antes de qualquer indigestão
letal, julguei mais avisado vir parar ao convento. Sempre é mais firme, no meio
de tanta incongruência e toleima, para não dizer pior.
- Conta, conta lá!
- Olha, o brinde foi um encómio
aos donos da moradia que se derretiam de vaidade e fingida modéstia. Um
encadeado mais ou menos deste teor: bem-vindos a esta terra que engrandecem com
tal presença; bem-vindos a uma Igreja que o que requer é filhos destes,
dispostos a obras grandiloquentes como esta que aqui vemos e hoje inauguramos;
cidadãos exemplares que trabalham e não destroem a paz nem armam arruaça...
Sabes, eu era novato e tudo isto era o Antigo Regime falando, ele parecia
porta-voz de Salazar, não de Cristo. Na ocasião eu nem dava por nada, apenas
mais tarde, na Faculdade. E depois da Universidade da Paz, então... fui abrindo
os olhos, como o País.
- E vieste parar aqui?! Quando
os outros se foram indo embora do País, da Igreja, de tudo?! Às centenas de
milhares?
- Olha, tem lógica. É que ainda
não ouviste o resto.
- Qual resto?! Ainda tens mais?
Desembucha, que está curioso.
- No retorno, o meu
apadrinhante abriu-se, a rir muito, cinicamente. Queres ver? Eu fiquei de cara
à banda. Ele repetia: “O dinheiro compra tudo, não há dúvida, o dinheiro compra
tudo, rapaz. Se queres alguma coisa da vida, trata de ganhar muito bago, quanto
mais, melhor.”
- De que é que ele estava
falando?
- Dos “cristãos exemplares”,
claro. Da faladura do padre.
- Então porquê?
- Porque, afinal, aqueles
ricalhaços, eram dois divorciados, viviam amancebados (queriam lá casamento!),
nem relações tinham praticamente com a família, nem sequer com os filhos,
andavam numa rixa permanente porque ele era um mulherengo inveterado e a todo o
tempo punha os cornos a ela... e assim por diante, a lista nunca mais acabava.
Ora, para aquele padre era isto que a Igreja requeria. Desde que pingue
dinheiro – afirmava, cínico, o meu apadrinhante. - “O dinheiro compra tudo” -
estás a ver?
- Mas... mas... Ora! O padre
sabia lá! Eram gente de fora...
- Mesmo que o não soubera...
Que é que leva a afirmar tudo aquilo? A bolsa recheada. Mais nada, irmão. Para
mim ficou clarinho como água. E, é óbvio, fez-me nojo. Eu era um crente de
boa-fé. Uma tal atitude era completamente inadmissível. E aquele padre ficou-me
como a imagem dum charlatão. Eu findaria mais bem-disposto com um actor a fazer
uma rábula, entendes? Este, ao menos, poderia julgar que era tal e qual mas eu
lograria distanciar-me e desculpá-lo do engano. Mas não era um actor, nem
convicto nem pantomineiro, era um graduado do ofício. Deu-me volta ao estômago.
Eu não era daquela Igreja, eu não sou daquela Igreja. Então, olha, aquilo foi
mexendo comigo, durou anos, mas a pouco e pouco a revolta foi dando frutos.
- E vieste aqui parar. Com que
intuito, em semelhante contexto, irmão?
- E vim aqui parar. Olha, não é
por orgulho que o digo, até porque já para cá vim há alguns anos e o Papa há
pouco apenas foi eleito. Mas julgo que é com o intuito dele. A Igreja
institucional alimenta cada aberração no terreno que é uma tristeza! Então,
olha, por muito irrelevante fermento que eu seja (e, claro, nem sequer penso em
qualquer paralelo com o nosso Papa Francisco), eu ponho o meu pequeno punhado
na fornada, pronto.
- Entendo-te muito bem. Mas
quem se confrontou com casos idênticos deitou a fugir. Quer lá ter a ver com
semelhante Igreja! Ainda para mais, aliada do fascismo, no Antigo regime,
oficialmente... Valha-nos Deus! Tu deves ser um caso, quê, em cem, em mil?
Tinhas de ser mesmo uma raridade!
- Sei lá bem! Nem me importa.
Repara, o cristianismo, com a ressurreição à mão de cada um, com a vida
interior auscultada no íntimo, ancorada na comunidade e na Igreja, em tudo o
que nela vai devindo corpo de Cristo em permanente desenvolvimento rumo à
plenitude – isto é de tal maneira fascinante que reduzi-lo àquele nada, àquele
vazio a contabilizar dinheiro, não sei, é tão estúpido, tão revoltante, nem
tenho palavras... Eu lido com panelas, sou fraco nos discursos...
- Não és nada, não. Tal estado
de espírito atirou-te para aqui, mais um entre nós. Que maravilha!
- Pois foi. Lá fora é difícil
descobrir o que há de espantoso nesta mensagem tão simples: podemos
ressuscitar, é apenas pormo-nos a caminho de lá. O céu, afinal, anda ao alcance
da mão. É abrir caminho a partir de dentro e pronto. Alçamo-nos à plenitude. À
felicidade que andamos por aqui permanentemente a falhar.
Fátima
– 10 de Julho de 2013
- Ah! Ah! Ah! Não sei quantas
vezes o mundo acabou já desde que eu nasci. Perdi-lhe a conta. E o pior é que
não tenho maneira de descobrir em qual é que vivo, hoje em dia. Isto é mesmo
muito confuso, para um pobre campónio quase analfabeto.
- Ora, eu daqueles também me
rio. Então dos quiliastas que andam, de milénio em milénio, à espera do fim e
não se reconvertem de vez ante a negativa dos factos, nem sei se rir-me, se
apiedar-me. São uns tristes mas ao menos lêem o Apocalipse. Agora dos mais que
continuam regularmente a anunciá-lo e sempre a falhá-lo... Na melhor das
hipóteses, uns alucinados, com os pés na Lua; na pior, aldrabões sem escrúpulos
de explorar a crendice dos ignorantes, dos simplórios sem defesas.
- Então que conversa é aquela,
irmão, hein? Fim do mundo?! O ano transacto?! Estamos aqui à luz das estrelas
ou somos fantasmas sem o saber?
Não, não me fiz entender, não é
deste teor. É outra coisa. Uma profecia de muitos, entre eles vários místicos e
santos reconhecidos pela Igreja. A convergir com cientistas de múltiplos ramos.
Deve querer dizer algo e eu não adivinho o que é. Mas bem gostaria. Anda aqui a
escapar-nos uma realidade qualquer e o que me consta é que ninguém liga.
Depois de arrumada a cozinha da
ceia onde eu e o irmão porteiro demos apoio, caminhávamos pomar fora os dois
com o hortelão, o céu constelado a cobrir-nos de arroubamento. O diálogo era
entre ambos eles. Despoletara-o um estudo sobre as profecias relativas a 2012
que o porteiro acabara de ler e o entusiasmara, apesar de, aparentemente,
desmentido pelos factos.
- Uma coisa é correcta, –
intrometi-me, a picá-los – as visões apocalípticas não se verificaram. Ou então
reportam-se a quê? Os místicos, porventura, também se enganam, ao interpretarem
as visões que têm – eu lera em diagonal o livro e reparara que era o tema
predominante de alguns santos da Igreja, desde há uns trezentos anos, apontando
para esta época, senão para aquela data.
- Sei lá bem! – retorquiu logo
o porteiro. – Mas duvido. Julgo que encontrei um fio de meada em que porventura
ninguém ainda reparou. É decerto pretensão minha, não é? Quem sou eu, para
descobrir mistérios? Mas pronto, foi o que me veio à mente. O mais provável é
ser uma doidice como a dos mais.
- Ora! Doidice ou não, aqui
estou eu pronto para ouvi-la. É que, na minha parvónia, todos auguram que é o
mal de que sofro. Portanto, venha de lá isto, para eu me sentir menos
desacompanhado.
- Apoiado! – confirmei. – Seja
lá o que for, estamos aqui para acompanhar e dar a mão, se for o caso.
Portanto, irmão porteiro, abra lá a porta e deixe entrar.
Calámo-nos, aguardando que se
encorajasse. Ouvíamos um coro de grilos a sublinhar o silêncio, na amplidão do
infinito. Não havia réstia de luar mas, ao invés, milhões de estrelas, cheias
de arrepios, na noite calma, com uma brisa refrescante. Foi um minuto a
meditar, concentrado num abraço ao Universo.
- Tentando ir por ordem –
retomou o porteiro, num murmúrio como para ele. – Há quem veja a aura dos
indivíduos. Vários, no mundo. É uma faculdade rara, mas já a confirmaram ter
algumas individualidades.
- Aura?! Mas que é aura?!
Troca-me isto por miúdos, que eu cá entendo de horta e pomar e aqui não há nada
chamado aura. E também não é uma mulher ou é? – o hortelão, homem do campo,
perdeu-se logo.
- Olha, é algo assim... Nunca
tocaste numa antena de rádio quando ele está a tocar? Pois, não. Mas já te
chegaste à beira dum ou cruzaste por ele ou viste alguém fazê-lo... Sim? E
reparaste no que ocorreu?
- Aquilo aumentou o volume.
Quase sempre costuma estragar, não é?
- Não importa. Provoca um
efeito, mesmo sem a gente lhe tocar, basta ir aproximando. A aura é assim, é um
halo que nos rodeia até mais ou menos meio metro do corpo. É como um campo
magnético que altera os aparelhos eléctricos.
- Está bem. É como um tronco a
arder, quando a gente chega perto apanha o bafo quente, mal comparando. Também
não o vemos.
- Nem mais. A verdade é que os
que vêem a aura dos outros constataram uma muda acelerada nelas nos últimos
decénios. A investigadora Nancy Tappe que primeiro pesquisou isto (e, por
acaso, é um membro ordenado numa igreja protestante) verificou que, num período
de dez anos, as crianças que nasciam com aura de cor índigo saltaram de trinta
a setenta e cinco por cento. Imaginem quantos serão agora! Curiosamente, o
fenómeno é mundial. Muito rapidamente desenvolveram uma rede planetária de
estudo e apoio a estes miúdos e respectivas famílias. Também opera em Portugal.
- E daí? Foi o fim do mundo?! –
admirei-me eu.
- Elas precisam de ajuda?
Nasceram deficientes, é? – questionou o hortelão.
- Não, não. É o contrário.
Esperem. É isto: quem requer auxílio somos nós que não temos a cor índigo, mormente
os pais, os educadores, professores e outros que tais.
- Nós, é?! – o hortelão
suspeitava, muito duvidoso.
- É que os índigos nascem
tendencialmente hiperactivos, em geral vêm superdotados, como que programados
para quanto é electrónica na comunicação e quase todos têm faculdades novas que
os psicólogos denominam capacidades psi ou fenómenos paranormais. Estão a ver?
Como é que lidamos com isto? Ninguém foi preparado para uma bomba destas a
explodir-nos na comunidade, ainda para mais em todos os continentes ao mesmo
tempo.
- E tu julgas que isto é o fim
do mundo – concluí eu, meio irónico.
- Não, não é isto. Repara nos
números. A sequência foi esta: o primeiro estudo foi feito quando Nancy Tappe
achou estranho que os bebés de aura índigo, que eram à roda de três por cento,
desataram a aumentar rapidamente e chegaram aos trinta por cento. Aí ela
estudou novecentos deles para tentar captar que características diferenciadoras
da personalidade arrastaria a mudança de cor da aura. Resultou naquilo que referi.
Dez anos depois já são esmagadoramente dominantes no mundo inteiro e a
transformação continua. Há um ponto em que, à escala mundial, a humanidade
deixa de ter a aura dominante anterior (que era acastanhada) e passa a ter a
índigo. Ora, foi isto que acabou de ocorrer nestes últimos anos.
- Não reparei em nada. Tudo
corre como dantes – comentou o hortelão.
- Ninguém reparou, creio eu.
Como na horta, muda a cultura, mas, dado que a lavoira continua, diremos que
está igual. Mas, se calhar, deixou de ter feijão catarino e passou a ter
feijão-frade. E, se a humanidade era constituída daquele, ao ser trocado o
cultivo, aquela humanidade extinguiu-se, o mundo que era ela acabou.
- O quê?! Estás a falar da
extinção duma estirpe humana, como o homem de Cro-Magnon ou de Neanderthal,
ou o homem gigante e o anão de Java? Debaixo de nossos olhos,
sem nós vermos?! – espantei-me eu.
- Não, não! Estou suspeitando
duma evolução, dum pequeno salto qualitativo, tão discreto que mal damos conta.
Mas, apesar de tudo, muito perturbador, a ponto de os profetas mais sensitivos
o verem como capaz de derrubar toda a ordem anteriormente implantada, capaz dum
apocalipse.
- Ora, ora! Não ocorreu nada.
As pereiras continuam ali com aquelas belas peras e as figueiras, com os figos.
Então não? - o hortelão fincou os pés na terra.
- Não é o que eu vejo e os
estudos apontam. Adivinham quantos miúdos estão anualmente a ser sedados com
Ritalina, nos Estados Unidos, por ninguém descobrir como lidar com tanta
hiperactividade e tanto superdotado? Mais de três milhões. É o massacre dos
inocentes, a uma escala nunca vista. E são apenas os números dacolá. Ora, o
fenómeno é mundial. Todos os países operam o mesmo, incluindo aqui. Que é que
andamos a fazer à nova geração? E em que é que isto os irá tornando?
- Ou ando muito distraído ou,
para já, não vejo nenhuma desgraça particular – comentei eu, à retranca, mas
com a curiosidade alerta.
- Nem eu, confesso – concordou
o porteiro. – Os índigos estão atingindo a adultez e ocupando todos os lugares
da colectividade, substituindo espontânea e gradualmente a geração anterior,
como permanentemente ocorreu antes, não é? Os filhos sucedem aos pais. Até
agora, ao que tudo indica, sem sobressaltos diferentes dos de qualquer outra
troca de gerações. Ainda bem, se deveras assim for.
- E podia lá não ser! Claro que
tudo corre pelo melhor, não te aflijas. Não inventes para aí desgraças que nem
existem – o nosso hortelão é o bom senso terra a terra.
- Mas porque é que te veio isto
à ideia? Foi apenas aquele livro? – perguntei.
- É que há outro pendor da
personalidade em que ponho muita fé: os índigos manifestam uma fome particular
de espiritualidade, viraram em geral para a vida interior e a orientação dela.
Nunca, em nenhuma geração anterior, isto foi traço característico de qualquer
tipologia de personalidade. Mas aqui é. Dá-me muita esperança e, ao mesmo tempo,
põe-me deveras apreensivo.
- Porquê?! – admirei-me eu.
- Explica-te, que eu sou muito
lento – fez o hortelão.
- Quando os índigos predominarem
à frente do mundo inteiro (e é para breve), irá ocorrer uma inversão da cultura
mundial neste domínio. Até agora, desde o Renascimento (corrige-me, irmão
Ambrosino, se estou vendo mal, que tu é que és formado nestas áreas, está
bem?), desde ali tem sido um movimento global de ateização, de cientismo e
positivismo, de materialismo, alheios a qualquer apelo à hegemonia do espírito,
da interioridade, na orientação da vida de cada um e do mundo. A
espiritualidade, bem como a crença religiosa de qualquer tipo, ou foram
banidas, ou secundarizadas, esvaziadas de qualquer conteúdo vital a sério.
Estou certo?
- Claro – confirmei. – E então
os índigos irão inverter isto?
- É o que espero. Têm quase
todos aquele traço de personalidade.
- Creio que temos de nos
congratular. Porquê o receio? – insisti.
- Porque andamos todos alheados
disto. Nem sei se a igreja cristã a que pertence a primeira investigadora do
fenómeno, Nancy Tappe, lhe liga alguma importância. Ora, o resultado é, por
exemplo, sedarem estes miúdos aos milhões e milhões pelo mundo fora, em lugar
de acolherem os novos desafios e os encaminharem no melhor sentido, tanto para
bem dos pequenos, como das famílias, como das comunidades e países, como da
humanidade inteira. Aquilo é um desvio pela via da facilidade, não uma medida
de optimização. O nosso alheamento, como o dos pais e famílias em geral
relativamente às novas gerações, deu permanentemente mau resultado. Crianças
marginais, traumatizadas, diminuídas mental, afectiva e fisicamente, revoltadas,
que alimentam um número infindo de adultos criminosos ou excluídos. Como evitar
este efeito numa geração com mais potencial ainda? Drogá-los não creio ser a
alternativa ideal. Tenho receio. Andamos traindo o mandato de amar a Deus e aos
outros como a nós. Ninguém se sedaria se for um hiperactivo ou um superdotado,
para andar por aí como um drogado ou um morto-vivo.
- Mas é mais uma questão de
pais, de educadores, de médicos. Nós... – hesitei.
- Sim, mas a
Igreja-atenta-ao-mundo em cada um de nós, em cada pai, educador, médico, em
cada comunidade, acolhe como normal, sadio, espiritual, o alheamento? Nem que
isto corte as asas ou desvie tendencialmente uma geração inteira da humanidade?
Uma geração que seria um passo em frente? Mete-me medo.
Fátima
– 11 de Julho de 2013
Hoje fui logo ter com o meu
Mestre, por mor das dúvidas, e pu-lo a par da nossa conversa sob o manto de
estrelas, logo após matinas. Ele iria ter aulas no Curso de Verão, mais tarde,
e eu não queria perder o momento. Nem aguardei pelo pequeno- almoço, não fora
ele ficar aperreado com outros compromissos.
O que me levou a tanta
impaciência é que, ao contrário do irmão porteiro, eu fiquei meio entusiasmado
com o tema. Não me preocupou particularmente o alheamento, mais ou menos universal,
perante os portadores de aura índigo, como ele. Não. O que me arregalou a
curiosidade foi ser provável andar a ocorrer um minúsculo salto evolutivo na
fileira humana, diante de nossos olhos, e nós sem darmos por nada. Vi-me logo
como um australopithecus distraído ante a primeira pegada do filho rumo à
humanidade vindoira que hoje somos nós. É uma hipótese fascinante. Embora
desmascare a nossa curta inteligência...
- Tanto pode ser como não, a
evolução não parou, continua através de nós – o Fr. Benedito era indiferente ao
fenómeno. – O que me importa é a tarefa que nos impõe. Conviria desempenhá-la
bem e a Ritalina não é, manifestamente, o caminho ideal. E, se estiver em curso
mais um degrau a trepar pela humanidade (e é, porventura, o caso), não deveríamos
andar de costas voltadas, como de costume, antes acompanhar, descobrir os
melhores caminhos, divulgá-los, incentivá-los. Agora, com o receituário de
antanho, apenas fechamos portas, metemos travões, atrasamos tudo. E já é uma
sorte não desatarmos a matar os índigos, a pretexto de que são bruxaria, como
antigamente. Sempre fizemos e demos cobertura a cada asneira! Isto de a gente
se convencer de que tem a verdade na algibeira... Valha-nos Deus!
- A mim a questão toca-me
fundo, vou olhar com outro cuidado os miúdos com que topar. Sinto isto como uma
pequena maravilha, caso se confirme, como já vem sendo em múltiplos horizontes,
mormente de cientistas mundo fora.
- E também tem muita sorte,
irmão, que há cem anos tanto entusiasmo com o evolucionismo ainda lhe
acarretaria uma excomunhão. E mesmo hoje existem igrejas que o não acatam, toda
uma corrente ideológica, os criacionistas, que até o chegaram a proibir de
ensinar nas escolas. Tudo em nome duma religiosidade mágica estática e duma
teologia caduca que já deveria estar morta e enterrada há séculos. Mas não,
ainda estrebucha marginalmente. Vivemos tão longe do núcleo de sentido do
cristianismo, a mensagem espiritual da ressurreição e respectivas implicações
de reordenamento da vida e do mundo a partir da interioridade, do imo de cada
qual! Já nem o vislumbramos sequer, em igrejas inteiras. É um desperdício...
- A nova geração, pelos vistos,
tende a dar conta disto, são famintos de espiritualidade. Claro que tudo pode
ser corrompido, o nosso livre arbítrio é um doce e uma chaga, não há nada a
fazer, senão um acto de fé no bom senso do homem.
- Pois é. E a ambiguidade já é
mais que manifesta. Não é apenas com a Ritalina para drogar os hiperactivos, é
bem mais grave, quanto a mim.
- Está a falar de quê, Fr.
Benedito? O irmão porteiro só nos contou daquele sedativo...
- Não, não tem nada a ver com
isto. Vocês falaram dos dons novos, das faculdades paranormais que tendem
eventualmente a desmultiplicar-se nas novéis gerações, lembra-se?
- Claro, mas o irmão porteiro
apenas o referiu, não explorámos nada aí. Há novidades, é?
- Muitas. Se são mais ou menos
do que outrora, ignoro, é para os investigadores, não me envolvo em tal
polémica. Mas que, por todo o mundo, há quem mostre poder de telepatia, de
telecinese, de clarividência, de levitação natural, de cura, sei lá que mais, é
indubitável. Porque perderam o medo e agora falam, quando antes não? Porque
doravante são mesmo uma avalanche mundial? Descubram-no os cientistas. Nós
temos outro papel, o de emprestar sentido e rumo a tudo e bem pouco o andamos
operando. Mas o que mais me preocupa é um dom em particular que, este sim,
estou mesmo convicto de que se está generalizando a grande velocidade.
- Qual? Qual?
- O de comunicar com os mortos.
Que não estão mortos, evidentemente, sabíamo-lo pela fé. Só que doravante
tornam-se percepcionáveis a cada vez mais indivíduos. Que falam com os
espíritos, com os fantasmas...
- Conte lá! Conte lá! Eu fico
fascinado com isto.
- Olhe, anda rodeado deles.
- Eu sei, mas não vejo nenhum.
- Não, anda rodeado de
indivíduos que os vêem e contactam permanentemente. Está sendo avassalador pelo
mundo, são centenas de milhões com tal faculdade.
- Então e como é?
- Olhe, por exemplo, uma jovem
universitária, a Mafalda, tem o espírito duma criança de sete, oito anos com
que brinca desde que nasceu, é a Maria Teresa. Vê-a perfeitamente, embora
inconfundível com os outros indivíduos, desde que acorda. Às vezes a pequenita
nem a deixa adormecer bem, quando quer brincar: vai à cama e faz “buh!” para
acordá-la. Lá em casa ninguém mais da família a vê. Em contrapartida, a Mafalda
vê e fala com o avô que lhe morreu há anos, com uma prima criança ainda, que
lhe faleceu de doença há meses, com desconhecidos que lhe pedem coisas que ela
às vezes nem entende o que aquilo é, e assim por diante...
- Mas que estranho! E é igual
com todos os que vêem?
- Não, não. Os meditadores, em
geral, atingem graus de visão muito diferentes uns dos outros. A própria
faculdade pode desenvolver-se mais ou menos. Conheço uma família que é
aproximadamente deste modo: à partida, nenhum membro via. Fizeram cursos de
meditação com a Alexandra Solnado e, logo durante eles, a filha passou a ver,
ficando fascinada. Daí para diante continuou sempre a ter contacto com o Além,
embora apenas em meditação, onde vê ocasionalmente os avós falecidos (inclusive
antes de ela ter nascido), um tio morto há poucos anos que, após a morte, veio
cumprimentá-la rejuvenescido e muito alegre, até, o que é mais curioso, duas
crianças desconhecidas que vêm brincar com ela e que, quando perguntou quem
eram, lhe responderam ser os filhos que ela há-de vir a ter. É perturbador,
para as ideias preconcebidas que a gente tem, não é?
- E de que maneira, Fr.
Benedito! A filha foi a única da família?
- Não, a mãe, quando em
meditação, via luzes que se moviam e, às vezes, vultos. Ocorreu, porém, que lhe
morreu a cadela de estimação, ao fim de dezassete anos de convívio. Sentindo a
dor da perda, o vazio, chamou-a durante a meditação, o animal destacou-se da
luz e ela principiou a vê-la e a interagir com ela, a ponto de a cadelita ir
deitar-se entre o casal e, gradualmente, a senhora lograr vê-la mesmo de olhos
abertos, em vigília. Também isto é perturbador, não é?
- Pois, um indivíduo fica
desconfortável. Temos de rever muita coisa...
- E não é tudo. O filho do
casal nunca viu nada, mas o marido, em contrapartida, que nunca vê coisa
nenhuma em meditação, recebe ordens em sonho. É deste modo: está sonhando e,
inesperadamente, o sonho é interrompido por uma ordem ou sinal em que uma ideia
lhe é transmitida sem palavras mas com uma força extrema e com um conteúdo
inequívoco. Por exemplo, sonhou com a mãe dele há muito falecida, bruscamente o
sonho é interrompido pela ordem sem palavras:”Manda-a para a Luz!” Ele cumpre a
ordem. Dias depois, a filha, em meditação, é contactada pelo avô, marido da
senhora remetida para a Luz, que, muito expansivo e falador, lhe conta da
alegria de finalmente a ter com ele.
- Mas é tudo diferente! Vamos
ter de mudar... – parei, de boca aberta.
- Quer ver mais? O mesmo
cavalheiro, quando a cadelita lhes morreu, sentiu o mesmo vazio, também lhe era
muito ligado. Estava a sonhar na sesta, de repente a cadela irrompe no sonho,
interrompe tudo postando-se-lhe à frente, a olhar para ele, metendo-lhe na
cabeça a ideia sem palavras: “Eu estou aqui!” Ele acordou, caiu em si, entendeu
finalmente que o animal continua vivo noutra forma de vida e sentiu-se
instantaneamente calmo, o vazio desapareceu. Até hoje. No além, mesmo os
animais confabulam para nos ajudar. Nunca ouviu uma coisa destas, pois não?
- Nunca, Fr. Benedito! Mas que
estranho! O que isto implica, não é?
- É aí que está a minha
preocupação, viu?
- Então porquê?
- Anda alguém, na Igreja, a
ligar a isto? Não. Os meditadores vão encaminhando cada caso o melhor que sabem
e podem. E quem fica de fora? E a Igreja que tende a pôr tudo isto à lonjura da
suspeita? Como gerir a contento esta nova faculdade? As gentes andam aflitas, a
escondê-la, no geral, não vão os mais achá-las malucas ou anormais. E com isto
atrofiam um poder com potencialidades nunca vistas. Caiu a barreira da
incomunicabilidade entre a vida e a morte. Depois da ressurreição, é o facto
mais extraordinário de que tenho notícia. Aliás, complementa-a: Jesus apareceu
a muitos e testemunhou-a, agora alargamos a ponte muito para além do que
creríamos viável. Os dois mundos fundem-se, interpenetram-se, podemos ir
infinitamente mais longe na economia da salvação e no plano de Deus para o
mundo e para o Reino, cá e lá. É um potencial nunca visto. E nós deixamo-lo
abandonado para aí, inteiramente ao acaso.
- Mas é mesmo desta dimensão,
Fr. Benedito? Eu cá não vejo nada, não é?
- Pois, nem eu. Mas quem me
dera! E, quanto à dimensão, olhe, a católica irlandesa Lorna Byrne, que desde
criança vê os espíritos, em vigília (e não é um ou dois, são aos milhares)
perguntou-lhes porque é que ela os vê e nós não. A resposta foi que em breve
praticamente todos os verão, o que confirma a hipótese de que estamos mesmo a
assistir a uma transformação evolutiva da Humanidade. É o que anda de facto a
ocorrer à nossa volta no mundo inteiro, pelo menos nesta dimensão, na faculdade
de fazer cair a barreira entre os dois universos, o perceptível e o espiritual,
o dos corpos e o das almas.
- É fabuloso! Muito gostaria
eu!... – confessei, como em transe.
- E quem lhe diz que não? Olhe,
eu conto-lhe um pormenor que ocorreu uma vez, justamente com Lorna Byrne. Ia
ela rua fora, quando o espírito que mais lhe aparece e a acompanha, o arcanjo
Miguel (como se lhe identifica) se põe a caminhar-lhe ao lado, conversando. Ela
vai respondendo, discreta, não vão os transeuntes julgar que lá vai outra vez a
falar sozinha. Cumprimenta os conhecidos e, curiosamente, repara que o arcanjo
os cumprimenta igualmente, o que ela estranha, tanto por não ser vulgar como
porque os outros o não vêem. Qual não é o espanto dela quando, no dia seguinte,
uma conhecida lhe vem perguntar quem era aquele cavalheiro tão bem posto com
quem ia rua fora na conversa. Afinal, ele mostrara-se a toda a gente! E ninguém
suspeitou sequer de que era um arcanjo! Quem lhe diz a si, irmão Ambrosino,
quem me diz a mim que não andamos cruzando com eles na rua e nem ao menos
suspeitamos?
- Ai valha-me Deus! Eu devo
estar a ficar maluco! – exclamei. – Acha mesmo?
- Sei lá bem! Se ocorre uma
vez, pode ocorrer permanentemente, não é? Que sabemos nós?
- Mas que maravilha! Eu cá por
mim nem me preocupava mais. É lindo!
- Olhe que faz mal. Nem tudo
são rosas. E há bem pior do que esconder, atrofiar ou recusar a nova faculdade.
Há um rol de ajudas a prestar neste domínio mas anda tudo com a vista noutro
lado, distraído por inteiro dos sinais.
- Bem, como de costume, não
vejo nada, não é? Explique-me lá, Fr. Benedito.
- Repare, não há apenas espíritos
bons, em harmonia com a Luz, a brancura iridescente que é Deus. Há também os
maus que recusam fundir-se com ela. Há anjos e demónios, há céu e inferno. Uma
vidente que tenta encaminhar estes últimos distingue-os na linguagem: espíritos
são os da Luz; fantasmas são os das trevas. Se aqueles nos podem e querem
ajudar, estes, ao invés, tentam dominar-nos e precisam de ser ajudados para
optarem pela Luz.
- É a doutrina antiga, vem no
catecismo – apontei eu, arrefentando.
- Exacto. Como é que julga que os
dotados da nova faculdade lhes reagem? Sejam crentes, agnósticos, indiferentes
ou ateus?
- Cada qual ao modo dele. Não
imagino, Fr. Benedito.
- Veja bem, a faculdade aflora
independentemente da atitude religiosa de cada um. Por estranho que pareça, as
posturas são muito iguais, entre crentes ou ateus: quase todos ficam aterrados,
qualquer que seja a visão, dum espírito luminoso ou dum fantasma sombrio. Isto
é o cúmulo da confusão. E é o mesmo, quer em visões esporádicas, quer
permanentes. Quem se entusiasma, como nós, ao descobrirmos isto? Praticamente
ninguém. O outro mundo é vivido como aterrador pela generalidade dos
indivíduos, crentes ou descrentes. Não adianta.
- E daí? Que se aterrem, olha
que parvos! – desabafei, meio desconcertado.
- Não faz sentido, irmão
Ambrosino. Ainda se foram apenas os descrentes e restrito aos fantasmas que
recusam a Luz! Mas não, é a resposta ao diferente, o que estraga tudo. Apenas
porque é diferente é aterrador, quer um espírito bom, quer um fantasma mau? É
completamente desajustado!
- E então? Que é que poderíamos
fazer? Que é que ficaria na nossa mão?
- Desmontar isto, como os
meditadores tentam. Os espíritos luminosos são bem acolhidos, estamos-lhes
gratos e pedimos-lhes todo o apoio que nos puderem dar, na rota que Deus nos
propuser. Os fantasmas são encaminhados para a Luz, estimulados a
escolherem-na, em lugar de se enquistarem por aqui, a encostarem-se e influírem
nos que se lhes depararem como influenciáveis.
- Esconjurados, não? É o rito
tradicional do esconjuro – lembrei-me de repente.
- Não é bem o mesmo. O
esconjuro faz apenas metade do caminho: tenta afastar o fantasma daquele que
ele influencia, a quem causa mal. Não tenta convencê-lo a salvar-se, a
integrar-se na Luz. Aqui era isto o fundamental, até porque a maior parte dos
entes que se vêem por cá não anda aqui por mal, pelo contrário. Pretende
continuar um projecto terreno qualquer, sem ver que o melhor apoio é o dado em
harmonia com a Luz, e energia divina, íntima do Universo. Há apenas uma miopia
onde o fantasma não discerne. Com o nosso apoio pode lograr trepar à plenitude
espiritual e com isto ganharemos todos, ele e nós.
- É uma forma de oração pelos
mortos – considerei.
- Exactamente. Mas vendo-os ao
vivo, falando com eles ao vivo. É muito mais deslumbrante, não é?
- Claro. Então é isto que o
preocupa?
- Não, há muito mais e mais
grave. Ninguém anda a explicar o que é a nova faculdade nem como lidar com ela.
Logo, os charlatães, os bruxos, os curandeiros, todos aproveitam das
fragilidades e andam para aí a enganar meio mundo, roubando descaradamente toda
esta multidão de gente indefesa e aflita. Fazem rezas, receitam mezinhas, dão
as leituras mais estapafúrdias do fenómeno (mau olhado, bruxedo...). Quando era
apenas de acalmar os progenitores e as famílias, explicando-lhes o que isto é,
que potencialidades tem. E ajudar os miúdos e jovens a lidar com a faculdade
nova, acolhendo os espíritos bons, arredando os fantasmas maus e impelindo
estes para a Luz, onde encontrarão a plenitude, se o quiserem e logo que o
queiram. No fundo, ensinando todos a gerir da melhor maneira o novo poder: em
vez de o temer, tomar o domínio dele; em vez de aterrar-se com as entidades das
aparições, impor o discernimento entre as boas e as más, sem terrores inoportunos,
acolhendo aquelas e ordenando a estas qual o caminho a trilhar, sem deixar-se
intimidar nem dominar por elas, nem influir negativamente em nenhum pendor.
- E os que fazem as leituras
dos mortos? – lembrei-me de repente.
- É um bom serviço a todos a quem
o prestam. Com duas reservas. A primeira é que se esquecem de prevenir que
escolhem as entidades boas e preterem as que poderão fazer mal. Dão deste modo
a ideia de que todos vivem no Céu. É mentira. Não o afirmam mas o silêncio
deles induz em erro. A segunda reserva é que isto é temporário, até todos
lograrem comunicar com o Além, e constitui apenas uma pequena amostra do enorme
benefício que pode resultar do uso adequado de tão espectacular faculdade.
Aquilo é apenas uma pacificação. Já imaginou o que é construir o Reino de Deus,
de mãos dadas com os dois lados da vida? O Céu na terra e a terra já implantada
no Céu? Incrível!
Fátima
– 12 de Julho de 2013
Apetecia-me pôr-me à frente do
espelho, à chapada à minha cara de anão bobo sem a véstia de berloques. Não há
maneira de aprender a controlar o meu entusiasmo perante ouvidos débeis que
podem ficar feridos sem razão. E foi o que ocorreu a meio da manhã, depois da
hora de terça, quando me ofereci ao irmão cozinheiro para ir à horta trazer-lhe
o braçado de alfaces e pepinos de que ele precisava para uma salada de almoço.
Eu estava ao lado quando ele os pediu ao hortelão, não me custava nada dar
aquele giro quintal fora, com o dia nevoento que hoje se apresentou. Até
preciso de ir mexendo regularmente os artelhos, senão nem o instrutor do
ginásio me vale.
Qual o disparate? É que fiquei
nas nuvens com a conversa de ontem com o meu Mestre e, quase sem dar por ela,
abri a boca diante do hortelão, que me esqueço constantemente de que é homem
direito, de poucas letras mas exemplar bom senso, o melhor dum camponês
matarroano das berças. E, como não podia deixar de ser, pus-lhe os cabelos em
pé. Literalmente, que bem lhe reparei nos dos braços todos arrepiados.
- Mas então... Mas então... Ver
os mortos... falar...? – ele nem atinava no que dizer.
- Pois, já viu que maravilha?
Há montes de gente que anda a consegui-lo, dentro de algumas gerações vão ser
praticamente todos. Caiu o muro de silêncio da morte.
- Mas é mesmo a sério?! A mim
mete-me medo. Deus nos livre! E não é coisa de bruxaria, por artes do diabo?
- Ai, não, não! Somos nós que
estamos a evoluir, atingimos a fronteira.
- Pois eu cá não quero. Comigo,
não!
- Então e se for a visão de
Jesus, dum santo, dum avô, sei lá?...
- Não, não, é melhor não, que é
mais seguro.
- E uma aparição que Deus lhe
manda, também acha que não? Como a dos pastorinhos, por exemplo? Muitos santos
as têm...
- Ah, eu cá não sou santo
nenhum, olha lá!... Não me entendo com milagres destes, é para outra gente,
mais assisada, que lá eu é daqui da terra que vou tirando alguma coisa de jeito
para o sustento da comunidade e pronto. Aquilo tem tamanho demais para mim, é
melhor nem cuidar de altas cavalarias, não é comigo. Está bem para quem estude,
que lá um casca grossa como eu, não, até se perdia a vontade de Deus, se fora
coisa que viera dEle, que eu cá desconfio muito. Desconfio muito de novidades
que tais, desculpa a minha ignorância, irmão Ambrosino.
Então caí em mim. Que estou eu
a fazer, valha-me Deus? Lembrei-me de repente do diálogo com o Fr. Benedito:
ele prevenira que havia muito quem sentia terror perante as novas experiências,
porventura a resposta espontânea mais comum. Ora, aqui estava ela. E urgia
invertê-la com o nosso empenhamento esclarecido e clarificador, em vez do
alheamento generalizado actual. Ora, logo à primeira, dei um grande exemplo!
Ainda para mais, foi apenas com a novidade, que faria se fora com um facto, com
um avistamento! Teria dado cabo do pobre do hortelão. Se ficou de pêlo
arrepiado só com uma nova destas, para mim e para o meu Mestre tão esperançosa
e prenhe de promessas, ficaria em estado de choque? Teria perdido os sentidos?
Ficaria louco? Sou tão desprevenido como tapado. Não tomei precaução nenhuma,
esfusiante com as potencialidades da nova perspectiva. Nem entendo aquela
reacção, inteiramente fora dos meus parâmetros. Como é que uma coisa tão
prometedora pode desencadear o terror e a fuga? Uma resposta destas arrisca
perder tudo, fica a marcar passo no ponto de partida, quando a porta aberta se
alarga à infinidade do horizonte. Que atitude mais castradora!
Claro que inverti logo o rumo
do diálogo, apressei o irmão hortelão a apanhar os legumes requeridos,
reafirmei-lhe que aquilo não era nada connosco, fique descansado, que o que nos
faria falta deveras era mesmo a horta e o pomar bem virentes, o mais é teoria
lá para os mestres. E bem me custou isto, que por dentro ando vibrando mesmo ao
contrário: é tão prometedor o mundo novo que ali adivinhamos!
Duma coisa estou convicto: não
tenho deveras jeito nenhum para ajudar as gentes a não reagirem mal a estas
realidades. Logo à primeira, mesmo sem ocorrer ainda nada, deitei logo tudo a
perder. Sou mesmo um desastrado! Nem vejo como é que poderia ser doutro modo,
como faria a abordagem para pôr um indivíduo entusiasmado como eu. Aliás, isto
deixa-me tão confuso que até me vejo a esfriar perante aquela nova faculdade em
desenvolvimento entre nós: se ela aterrar assim tanto e tantos, então cuidado,
que em lugar de bons frutos pode dá-los maus, até muito maus mesmo. Estou a
lembrar-me da caça às bruxas, durante séculos: se calhar andámos a matar estas
novidades que nos traziam o mais formidável fermento de porvir, depois do da
fé.
Corri para a cozinha mal fiquei
com o braçado cheio do que era requerido, a pôr-me rapidamente longe do pobre
hortelão que afinal, sem querer, vim desinquietar. Espero que oblitere a minha
fala tonta rapidamente e que os pêlos dos braços se lhe acamem pacificamente no
lugar.
Entrei de rompante na cozinha
criticando-me da minha estupidez e falta de sensibilidade (eu deveria ter
conseguido prever e prevenir aquela atitude aterrorizada), quando dei de caras
com o irmão cozinheiro. Ele reparou logo. Pronto, temos o caldo entornado!
- Que cara é esta, irmão
Ambrosino?! Viste um fantasma! – ironizou, mas preocupado.
Como poderia eu evitar? Tive de
lhe contar tudo.
- Anda mesmo a ocorrer?
Fantástico! Não ligue ao nosso irmão hortelão, é uma alma simples, uma coisa
destas é demais para ele. A barreira da morte a ser ultrapassada, o silêncio
quebrado, os laços reatados... é o Mundo Novo! Principiou o Mundo Novo! É a
promessa apocalíptica a cumprir-se, irmão Ambrosino!
Eu olhava-o, aparvalhado com a
resposta. Não encontrava palavras para preveni-lo de que, cuidado, isto até poderia
vir a dar muito mau resultado, em vez de bom. Sentia-me perdido, o outro
aterrou-se, este fica esfusiante, fora dele com o entusiasmo. Que é suposto eu
fazer ou dizer? Tenho de pôr água na fervura, que a perversão do óptimo dá o
péssimo. O provérbio repentinamente acalmou-me.
- Ó irmão, eu também reagi tal
e qual, mas repare que, mal usado, um poder destes pode danificar para além de
tudo o que até agora conhecemos.
- Qual o quê! Atingimos o Todo,
temos o Absoluto ao alcance. É a grande festa final, quem duvida? Uma coisa
destas!
De repente lembrei-me dum
episódio narrado em Um Voo Sensitivo
da Alexandra Solnado, mesmo a talho de foice.
- Parece mas não é o salto no
Infinito, ainda não. Olha que nem Jesus o atinge. Pediu para ser encaminhada
para a Luz uma amiga de infância que, revoltada com a morte dEle, ficou por
aqui e recusou-se a subir. Se nem Ele o logrou, como vamos nós ter a
pretensão...? É o primeiro ressuscitado e vê só! Nunca iremos entender o lado
de lá, Deus nunca é deveras alcançável. É e será sempre inominável, não é?
- Ora! Pronto, digamos que é um
sinal do Outro Mundo que nos abre a porta. Mas olha que é mesmo uma novidade do
Outro Mundo, não minimizes.
- Calma, viste o que fez ao
hortelão? Que é que faria às multidões, aí no meio da rua? O terror e os
autos-de-fé, por um lado, o espanto e o fim do mundo, do outro. São dois
exageros paralelos. São dois erros e poderão dar cabo de nós. Os
desajustamentos pagamo-los sempre em perdas.
- Ora! Ficaste tão empolgado
como eu. Não vale a pena fingires.
- Não estou a fingir nada. Isto
entusiasma-me, se calhar para além do razoável. Estou preocupado é com outra
coisa. A confusão disto com o Absoluto, com o Céu, com Deus. É quase dizer que
é a segunda vinda de Cristo, a parusia. Ora, não se trata de consumação final
nenhuma nem de nenhuma verdade absoluta qualquer que finalmente se atinge.
Cometemos sempre a mesma asneira.
- Ah! Entendo. Outra vez a
hipóstase, o triunfalismo, o fisicalismo. É isto? Claro, é muito tentador e, se
calhar, estou mesmo a cometer o erro.
- Pois. Caímos nele sem dar por
nada, mal nos precatamos. E tem sido sempre o mesmo, história além.
Convencemo-nos de que agarrámos Deus ao descobrir a viabilidade da
ressurreição: temos um ressuscitado, temos a porta aberta para o Além,
agarrámos o Céu, atingimos Deus... Com qualquer dogma definido, o mesmo. A
esperança é tanta, a fé tão expectante que confundimos constantemente o
prenúncio com a consumação, a parte com o todo, o sacramento com a consumação
do mistério que aponta e assim por diante. A Bíblia é a palavra de Deus e
esquecemo-nos dos homens que a foram laboriosamente escrevendo. É
permanentemente isto. Depois dogmatizamos tudo e mais alguma coisa. E quanto
mais ignorantes, mais dogmáticos. E quanta ignorância corre pelas fileiras dos
crentes, até dos oficiais do ofício!
- Tens razão! Até nós que
estamos aqui, que é que tratamos de aprofundar? É mais fácil deixar correr. E o
que está bem não se muda, não é? Com o tempo é encarado naturalmente como uma
verdade final, quando pode ser a escolha mais banal e transitória que ocorreu.
É verdade que qualquer asneira de antanho, ao vir nimbada de história, ganha
foros de venerável e, não tarda, é sagrada. O tempo tornou-a intocável. Agora,
repara, estamos a falar, não do passado, mas do futuro. Andamos a inaugurar uma
nova etapa e que é espantosa. Portanto...
- Portanto, irmão cozinheiro,
estás a ver como a dogmatização principia? Quase de certeza que é deste jeito,
com um entusiasmo desmedido, que não mede as proporções. Então não relativiza a
vivência, projecta-a ao infinito. Não teria mal nenhum se a não confundir com
ele. Nesta confusão é que está o erro. O Infinito nunca se hipostasia, o
Absoluto nunca se fisicaliza, Deus em nenhum aspecto se deixa capturar por um
dogma, seja qual for. O nosso triunfalismo é o pior dos equívocos, daí a
derrota gradual através dos séculos, tanto maior quanto mais operámos em
conformidade com ele. E tudo principia com um juízo desajustado no momento da
revelação. Ficamos tão eufóricos que nunca queremos abandonar de boa vontade o
Monte Tabor onde se nos revelou a transfiguração.
- De acordo. Irei conter-me. Ou
melhor, conter-me, não, que a maravilha é para a sentirmos e partilharmos como
maravilhosa. Mas estarei vigilante para não precipitar os meus juízos com a
confusão dos dois mundos. Tens toda a razão, irmão pequenino, que tens alertas
bem maiores que o teu tamanho, acredita em mim. Certo, portanto, a aventura
continua, nada está consumado. Mas lá que há um passo em frente, irmão, há mesmo.
- Pois há e eu bem gostaria de
dá-lo com os que o dão. Mas sou mesmo tapado. Basta-me a alegria de lhes dar
uma palmada nas costas de parabéns.
Fátima
– 13 de Julho de 2013
De repente lembrei-me. Foi numa
aula de Psicologia do antigo Curso Complementar. O Veiga trouxe, a propósito de
fenómenos paranormais, alguns textos da Sociedade Espanhola de Ovnilogia, onde
davam conta dum encontro com extra-terrestres e das conversas havidas com eles.
Como éramos todos jovens, aquilo tornou aquela aula num momento entusiasmante,
com o confronto de todas as atitudes viáveis, desde o céptico mais renitente
que acusava tudo de fraude, até ao que acreditava na boa fé do autor mas o cria
com alucinações, até quem julgava que eram percepções extra-sensoriais de quem
era superdotado, até à postura do Veiga que era diferente de tudo.
- Eles já lá chegaram. Nós
ainda por aqui andamos às apalpadelas, - afirmava ele, inteiramente convicto –
quando eles alcançaram o que todos nós visamos, já lá estão.
- Aonde? – questionava o
professor. - Estão onde? Explique lá o que está vendo.
- Conseguiram realizar tudo o
que o homem sonha. São o homem total, os sonhos estão todos realizados, ali não
há mais falhas, atingiram a perfeição. Nós é que andamos ainda aqui, muito atrasados.
- Alcançaram a plenitude? –
insistia o mestre. – Aquilo é o paraíso?
- É o homem integral, poderia
afirmar que é o paraíso. É o que nós ainda buscamos. Estamos por ora demasiado
longe, mas eles, não. Já lá vivem. É o céu em que muitos creditam por cá e de
que falam. Eles chegaram lá, é aquilo, o estado perfeito. Têm tudo, quem me
dera!
- A religião dos OVNIs?! Ó pá,
não me lixes! – ironizava o Freitas. – Vamos de mal a pior. Ao menos a outra
era do outro mundo. Que é isto agora? Adorar um OVNI?! Estás parvo!
- Ó pá, não é adorar, mas é ver
que aquilo é tudo o que a gente mais quer. E eles conseguiram-no, nós ainda
não. – defendia-se o Veiga. – Diz lá que não gostavas, hein?
- Pois, gostar, gostava. Mas
daí até... – retrucou o Freitas, meio abespinhado. – Ó pá, só falta pores-te aí
de joelhos a rezar ao OVNI! Nem tanto ao mar nem tanto à terra.
- Então e depois?
- Eu não digo?! Estás passado,
Veiga!
- E tu já viste alguma coisa
melhor? Diz! Já viste? – contrapunha o outro.
O professor trouxe à colação
outro dado. Alguns de nós tínhamos ido a um filme polémico, o Mundo Cão, onde ressaltava uma cena
filmada algures no centro do continente africano, ao sul do Sara, em plena
floresta. Havia aí uma tribo muito isolada de caçadores-recolectores que
integrara na respectiva religião animista um culto inesperado, a que
peregrinavam regularmente, com procissões e cantorias, numa grande festa onde
elevavam ramos verdes ao ar. Tinham o santuário no planalto duma colina coberta
de ervagem mas ali não cresciam árvores, só capim. Ora, o que constava de tal
recanto sagrado era nem mais nem menos do que a réplica... dum avião! Eis o
deus deles! Feito de troncos, tábuas grosseiras e paus. Mais: oravam para o
deus pousar na colina e os vir salvar!
- Que é que vocês diriam a esta
tribo acerca do que julgavam do avião? – questionou o professor.
- Ora! Que era uma parvoíce –
retrucou logo o Freitas. – Grande deus, não haja dúvida!
- Mas tem muito a ver com a
leitura do Veiga, ou não? – insistiu.
- É muito diferente –
argumentou o visado. – Um avião! É o que mais há, não tem nada que se compare.
- Olha, não?! – retomou o
outro. – Para nós é vulgar, mas para eles uma aeronave é uma visita do outro
mundo, é deus a viajar pelos ares. É exactamente a figura que tu estás fazendo
com os OVNIs, só te falta o santuário e a peregrinação. Aliás, há quem o faça,
na América há uma seita com aquela religião. Vá lá, tu ainda não chegaste a
tanto.
- Há, há, que eu vi, no filme Contacto, do Carl Sagan. É uma seita
fanática, terroristas que quase matam os cientistas e abortam o projecto –
confirmou uma colega, creio que era a Anabela.
Eu só mais tarde viria a ler o
romance que dera origem ao filme, em grande parte movido pela curiosidade
desperta nesta aula.
- Mas que há de errado na
atitude da tribo? – insistiu o mestre.
- Ora! Porem-se a adorar um
objecto banal como se fora Deus, – reflectiu o Veiga. – embora implique para
eles uma enorme evolução para ali chegarem.
- E porque é que não é Deus
nenhum? Como lhes explicariam vocês?
- Então... nós estamos aqui,
temos aviões e ninguém é deus de jeito nenhum, não é? – respondeu o Freitas. –
Se nos tomarem por deuses, bem, então, é ver a asneira nos Descobrimentos com
os índios da América. Nós ainda os deixámos sobreviver mais ou menos, mas aqui
os vizinhos espanhóis foi cada massacre! Grandes deuses, não haja dúvida! Só se
fossem demónios: levaram-lhes o inferno, não é?
- Contudo, eles julgam que nós
nos deveríamos sentir deuses. Não nos sentimos? – o professor não desarmava.
- Quem, nós?! – a Manuela era
das alunas mais brilhantes, mas raramente intervinha nos debates. – Ora!
Passamos o tempo em guerras, conflitos, somos uns fracassados, queremos sempre
mais e melhor, cheios de invejas uns dos outros, de ódios, de traições... E a
miséria e os miúdos abandonados e a fome e a injustiça dos podres de ricos ao
lado dos bairros de lata em que nem reparam... Grandes deuses, nós! Ficava aqui
a noite toda a alinhar a lista dos podres... Eles apenas precisariam dum dia
connosco, abriam logo os olhos. Não era pedir muito, o estendal é tão grande
que lhes entraria pala vista dentro, nem que o não quisessem...
- Em conclusão, isto aqui não é
o céu? – ironizou o mestre.
- Nem pouco mais ou menos! Mais
depressa é um inferno – comentou outro qualquer, atrás de mim.
- Imaginando que os OVNIs são
reais, que é que daqui concluímos para a atitude mais correcta a ter? Que lhe
parece, Veiga? – o professor não desistia de obter uma postura lúcida,
equilibrada.
- Estou-me a lembrar de Os Deuses Devem Estar Loucos, viu o
filme, não viu? Fartei-me de rir. E acho que é um bocado aquilo. Está bem, são
deuses, mas loucos. Portanto, não são deuses nenhuns, mas lá que nos desafiam,
desafiam. E bem gostaríamos de chegar além, onde eles já andam. Como os
bosquímanos, não é? Mas depois íamos dar com as guerras deles, com os
criminosos, com a escravidão, os raptos... Sei lá, os problemas que eles
tiverem. Não são os daqui, de certeza, são os do mundo deles. Podem é já ter
resolvido aqueles com que nos debatemos, creio eu. Estão mais à frente...
- Snr. Dr., tenho uma dúvida –
interrompeu o Mota, o mosca-morta, creio mesmo que foi a única vez, que me
lembre, que interveio numa aula. – Li um livro em que defendem que os deuses
antigos eram, afinal, astronautas, extra-terrestres que nos visitaram. Até a
televisão tem programas disto. A religião, então, vem daqui, é apenas isto, não
é? É como a do avião, é tudo o mesmo. Ou a dos OVNIs, igualzinha. Que grande
aldrabice! Que é que o Snr. Dr. acha?
- Boa questão! Que é que
julgam? Vamos respeitar as escolhas de fé de cada um, para podermos reflectir e
ver claro até onde for viável. Correcto?
A Manuela, católica convicta,
fez logo questão de pôr os pontos nos is à partida.
- Eu gosto pouco de falar,
gosto mais de ouvir, mas agora farei alto. Para mim que sou católica isto é
muito claro. O Deus em que acredito não tem nada a ver nem com astronautas
extra-terrestres, nem com OVNIs e então com aviões divinizados, só para rir... São
realidades de tipo diferente, mundos diferentes. Apenas para que me entendam, o
mundo divino é o reino do espírito. Nós partilhamos dele pela nossa
interioridade. A vida interior, em nós, tem muitas dimensões, mas aponto apenas
duas que todos compreendem: o pensamento que nele próprio não é uma realidade
percepcionável (o povo diz que o saber não ocupa lugar) e o amor que não tem
conta nem medida. Não me refiro às expressões deles, mas ao que forem em si
mesmos. Deus é desta natureza, é o absoluto, o infinito dela, o Espírito em
pleno.
- Explique melhor a distinção
entre o que são e as expressões deles – insistiu o professor.
- O que me ocorre é este
exemplo: todos vemos por aí textos em chinês. Têm um pensamento qualquer
incluído neles. Para mim, como para quem, como eu, não souber chinês, vejo a
expressão mas não capto o pensamento. São realidades distintas, de natureza
diferente, irredutíveis uma à outra. Quando refiro a dimensão espiritual do
pensamento é a da mensagem que não descubro no texto chinês que a tenta
exprimir. A expressão é percepcionável, o pensamento é apenas vivido dentro de
nós, por quem o pensa, não tem qualquer dimensão no espaço que os sentidos
doutrem logrem captar. São dois mundos diferentes: tradicionalmente dizemos que
o homem é constituído de corpo e alma. Esta é a dimensão da alma e o meu Deus é
desta natureza, espírito puro. Não tem nada a ver com aquela conversa.
- Mas se as religiões vierem
dali... – argumentou o Freitas.
- Calma aí, pá! – interrompeu o
Veiga. – Todas?! Como descobriste?
- E tudo nelas? – insistiu a Manuela, apontando implicitamente a mesma
tecla da espiritualidade.
- Eu explico – retomou o
Freitas. – Se vem uma (e vimos que vem uma, por muito animista, primitiva que
seja e muito limitada em crentes), então, por hipótese, podem vir todas. Não
afirmo, ponho a hipótese apenas, certo? Sei lá bem! Por outro lado, não
proponho nada sobre o conteúdo delas, se tudo deriva ou não daquela fonte. Coloco-a
na origem porque me parece ter alguma probabilidade e razoabilidade, tendo em
conta os factos e as atitudes perante eles que viemos anotando.
- Reparando bem, para mim, até
podem vir todas dali. Qual é o problema? – o Veiga, de repente, parecia não
lograr encaixar bem as várias partes da pergunta. – Vejo uma realidade mais ou
menos deste modo, como nos OVNIs: está correcto, eles não são deuses, mas
revelam uma dimensão nova do Universo, um género doutro mundo que nem
adivinhávamos que podia existir e que, afinal, pode estar ao alcance. Mais: que
é tremendamente atraente, é um íman de nos fazer perder a cabeça. Aquilo é mais
que O Feiticeiro de Oz ou Alice no País das Maravilhas. Quem é que
não vai correr atrás, não é?
- Ora! A religião do avião... e
nós aqui com os aviões a sabermos o que vale... – murmurou de lado o Mota, mais
para ele que para a turma, mas o Veiga ouviu o argumento.
- O ponto é esse mesmo, aí é
que está! – exclamou, virado para o colega, como quem agradece uma pista
luminosa. – Julgo que apanhei. É o outro mundo: começa por ser uma realização
mais avançada neste mundo que nos abre os olhos. Nós podemos transformar este
mundo noutro, como atingir outros a partir deste. Isto permite-nos descobrir
que tudo provém do potencial que temos cá dentro, na vida interior. A viragem
está aqui. Tudo pode principiar no mundo exterior, no Universo, com uma
experiência qualquer que nos deixe fora de nós, que nos extasie. Logo damos
conta de que temos o poder de trepar até ao nível dela, até ao que nos
arrebata. A nossa interioridade anda armada com recursos para treparmos ao
infinito e o Universo ei-lo disponível e aberto a que trepemos por aí fora, sem
limite. Isto culmina num horizonte de Infinidade realizado também interiormente,
com todo o nosso potencial em acto, desde as raízes mais profundas, até
inatingíveis, e também exteriormente, com o Cosmos inteiro aberto à nossa
demanda. Isto é uma perspectiva de Deus e de plenitude do arco da velha, só vos
digo! – terminou, pasmado, como quem acabou de acolher uma revelação do Além.
A turma quedou num silêncio tão
grande, tão profundo, que recordo que o professor o rotulou de religioso, num
comentário ocasional, no dia seguinte.
Vem toda esta memória a
propósito de que Fina d’Armada defende que as aparições de Fátima foram um
evento OVNI ocorrido em 1917, quando ainda ninguém o tinha estudado como tal
nem desvendado, o que irá decorrer apenas a partir de 1946, com o primeiro
avistamento relatado por um piloto aviador que na Grande Guerra combatera em
caças americanos.
A resposta a uma tese tão
contraditória da atitude de milhões de peregrinos foi praticamente nula. É uma
proposta tão exclusivamente secular, tão a-religiosa (para não dizer ateia),
sem qualquer pendor de interioridade, nem lugar a partir donde esta se poderia
implantar, que foi ignorada por inteiro por todo este vector de crentes, como
se nunca tivera sequer existido. Contudo, os dados históricos dão que pensar,
as correspondências e sobreposições com uma infinidade de eventos OVNI
posteriores são demasiadas. Principalmente a primeira aparição, cujo
avistamento é feito prioritariamente por uma quarta vidente de que ninguém
fala, mas que em tal dia acompanhara Lúcia, num terreno um pouco afastado da
Cova da Iria, por onde hoje se estende a Via-Sacra e se encontra a imagem do
chamado Anjo de Portugal. A nuvem que se vai lentamente aproximando delas e que
pouco a pouco toma a configuração dum jovem muito formoso, segundo o critério
das crianças, configura o que hoje designaríamos por holograma que gradualmente
vai sendo afinado para ser apreensível pela vista delas. Sabemos também que nas
aparições posteriores nunca fica ajustado à visão do Francisco que lhe chega a
atirar uma pedra porque não vê nada.
Isto e tudo o mais que a
investigação histórica permitiu reconstituir poderia ser o cavalo de batalha
dos descrentes de Fátima. Não o foi, porém. Os incréus ignoram tanto tal tese
como os crentes. E por uma boa razão. É que Fina d’Armada propõe substituir uma
crença por outra, nada mais verosímil, pelo menos por ora. Quem é que acredita
em OVNIs, com a cortina de silêncio oficial do mundo inteiro? Com os cientistas
desacreditando-se mutuamente, com as mais variadas atitudes e especulações
relativas ao fenómeno? Com as suspeitas a perseguir as carreiras de quantos se
atrevem a dar a cara para testemunhar o que experienciaram (e nem sempre é
convergente ou do mesmo teor ou tipologia)? Qualquer descrente de Fátima descrê
igualmente disto. É mais uma especulação (para não dizer alucinação) entre
muitas outras.
Contudo, mesmo que fora um
evento OVNI, nada retiraria à dimensão e projecção espiritual que teve e tem.
Tudo por causa do itinerário interior trilhado pelos intervenientes. Primeiro,
as crianças. Da perplexidade e do sigilo primitivos, rapidamente evoluíram para
uma leitura religiosa do ocorrido. Esta deveio a plataforma de comunicação que
ofertaram a quenquer que lhes aparecia, findou a estabelecer o contacto em tal
base. Até se compreende melhor a religiosidade infantil, superficial, da
mensagem, dum ritualismo exterior corriqueiro, inteligível para crianças de
aldeia, imersas numa crendice popular sem espiritualidade autêntica nenhuma.
Isto foi desmultiplicado logo pela família e comunidade, bem como pelas
autoridades religiosas e civis, uma vez transpostas as primeiras suspeitas e
dúvidas. A partir daqui, com o avolumar das multidões, o desafio torna-se
exclusivamente religioso. Os pastorinhos mais novos, Francisco e Jacinta, não
têm tempo de aprofundar a vivência espiritual, morrem pouco depois, crianças
ainda. Lúcia sobrevive decénios, professa como freira contemplativa e vai
aprofundando a vivência interior. O conteúdo doravante já não tem de ser o duma
religiosidade superficial, popular e infantil. Progride no normal itinerário
duma irmã com votos que se dedica à busca duma autenticidade espiritual de
vida. E vai cobrindo o respectivo caminho pelos decénios além. Com uma
particularidade: as resistências interiores que qualquer outra
criança-jovem-adulta encontraria, tombaram durante as experiências das
aparições. Ela então consegue ser interiormente mais maleável, disponível e
transparente que outra qualquer que não tenha cruzado pelo tremendo abalo das
aparições e todas as respectivas sequelas, boas e más. Caíram-lhe todas as
defesas ali, duma vez para sempre, para o resto da vida.
É isto que permite entender o
que, por exemplo, o P. Mário de Oliveira, em Fátima Nunca Mais, não entende: que para o fim da velhice ela
confirme que, depois do termo das aparições na Cova da Iria, agora comunica com
Nossa Senhora permanentemente, praticamente todos os dias. Por muito estranho
que pareça a quem não tem contacto normal com o Além de forma sensível,
qualquer meditador que o tenha ou qualquer indivíduo nascido com tal dom não
acha nada de invulgar naquilo, é também da própria experiência quotidiana dele.
Porque não na de Lúcia, ainda para mais após uma vivência tão avassaladora como
aquele terramoto por que passou em criança? É mesmo desta maneira que as coisas
ocorrem. Apenas o não seria se ela mantivesse escudos interiores, barreiras
preconceituosas que o impediriam. Ora, o caminho que fez não foi este, foi o de
ir explorando a espiritualidade até ao limite do que podia e ia entendendo. O
resultado apenas poderia ser mesmo aquele. De estranhar não era isto, mas
ocorrer o contrário.
Com OVNI ou sem OVNI, com Nossa
Senhora ou sem ela, o facto é que os pastorinhos abriram a porta à vivência da
espiritualidade mais profunda de que quenquer for capaz. Isto é que conta, isto
é que, afinal, nos pode salvar em Fátima e a torna altar do mundo. O mais é
folclore: bom para entreter, mais nada. E não deve distrair daquilo, o
fundamento.
Fátima
– 14 de Julho de 2013
Hoje, domingo, após mais um dia
13 de Fátima em fim-de-semana foi momento de muita agitação por estes lados.
Temos sempre várias visitas de leigos que de algum modo se ligaram ao convento,
mormente os que frequentaram ou frequentam Teologia e que arrastam com eles
familiares, amigos e conhecidos. Quebra-nos a rotina e realimenta-nos de
novidades e de preocupações de que, doutro modo, nem teríamos nota.
Só para ficar com uma ideia da
fecundidade destes encontros transitórios, vou tentar listar quantas aporias
vieram hoje a talho de foice e contando apenas com os meus visitantes (os
docentes daqui têm, por norma, tantos ou mais do que eu e calculo que bem mais
problematizadores).
A pergunta mais grave tem a ver
com a ressurreição de Jesus. Há dois romances de grande sucesso mundial, um de
Daniel Silva, outro de José Rodrigues dos Santos, que levantam um problema
decisivo: foi encontrado por arqueólogos, há uns anos atrás, o túmulo da
família de Jesus, em território de Israel. As autoridades israelitas tomaram
medidas imediatas para o vedarem ao público, bem como retiraram, guardaram e
tornaram secreto tudo quanto ali foi encontrado. Ora, entre as várias ossadas
identificadas, de José, de Maria, de Tiago, estão também as de Jesus. A questão
é: ressurreição como? Corpo glorioso como?
Depois outro berbicacho: que
sentido faz o apelo ao respeito do que é natural para fundamentar normas
morais? O caso mais grave é o da contracepção, mormente do uso da pílula, em
que a generalidade dos cristãos não acredita na doutrina oficial da Igreja. Mas
ao lado deste há outros: a homossexualidade, por exemplo.
Mais grave ainda, quando a
pergunta é que sentido pode ter um fundamento moral que meramente se ancore nos
usos e costumes ancestrais. Que renovação, que mundo novo pode vir daqui? E não
era este que o cristianismo teria de trazer à terra? Que implica a Boa Nova, o
Evangelho senão isto? A verdade, porém é que, por exemplo, toda a moral do
amor-paixão e da sexualidade apenas tem aquele fundamento. Que andaremos,
afinal, a fazer no mundo?
Finalmente, um desafio que é
mesmo individual: que dizer a uma família que resolveu radicalizar as escolhas,
seguir até ao limite as exigências da ressurreição e derivada espiritualidade,
e que isto redundou em atitudes tão para além das fronteiras convencionais como
não se casar pela Igreja, eliminar os ritos e os sacramentos, não baptizar os
filhos, para educá-los (e educarem-se mutuamente todos no lar) numa
espiritualidade a partir da vivência íntima familiarmente compartilhada,
visando a humanização integral em comunhão com quanto na comunidade e no mundo
a aprofunde, estimule, reforce e confirme? Um esforço de secularização
completa, levado ao limite.
Isto põe-me a cabeça zonza.
Onde é que um anão minúsculo de corpo e de entendimento pode algum dia fazer
luz em semelhantes coisas? É fácil condenar tudo e varrer o pátio dos crentes.
É assim a Igreja tradicional, mas isto é a Igreja traidora. Jesus e o Espírito
encontram tão pouco lugar nela que andam falando e agindo lá por fora, entre
quem não tem nada a ver connosco. Que é que o parvo dum anão pode fazer senão
conter-se e perguntar então que lugar lhes pode abrir? As respostas tradicionais
estão infectadas, não são muito cristãs nem são deveras espirituais, por mais
bem-intencionadas que tenham sido, por mais virtuosos que os mentores delas
hajam em concreto vivido. Desviaram-se muito, não se lhes consegue reconhecer,
praticamente, autenticidade nenhuma quando as conferimos com a inspiração proveniente
de nosso imo mais profundo e o eco de nosso coração. E quando as conferimos com
isto mesmo nos demais crentes, nos demais humanos.
Ora, nestes termos, que fazer?
Ouvir, ouço. Não julgo, acolho. Mais, porém, não consigo e todas estas almas
andam esfomeadas de alimento veraz de que não disponho.
Fátima
– 15 de Julho de 2013
Nem o Papa dispõe. Nem, aliás,
tem de dispor. Ele deve antes implantar pontes entre as pontes de todos os
mais. É o Sumo Pontífice, o criador de pontes dos criadores de pontes, os
pontífices, que terão de ser os bispos, os padres, os diáconos... Mas pontes
entre quem? Em meu entender de míope crónico, só vejo dois territórios: o dos
teólogos e o dos leigos a quem apelidaria de místicos - os que inaugurarem
roteiros espirituais inéditos na perene busca do Infinito. Por ora não há nada
disto ainda, que os ocupantes destes dois domínios foram desde há muitos
séculos atados de pés e mãos por uma hierarquia totalitária, à maneira do
Império Romano (que copia, em vez de o ter reconvertido, cristianizado). Esta
conversão ao Império não é das menores chagas da Igreja institucional. Aliás,
tende a chagar o resto em cadeia, em todo o corpo social eclesiástico.
Andava eu meditando nestes
termos, a palmilhar a biblioteca como um autómato, um livro aqui, uma revista
além, quando Fr. Benedito entra porta dentro à minha procura. Nem vinha em
busca de obra nenhuma, era por mim a demanda, que suspeitou que o reboliço das
vésperas me teria deixado alterado, cheio de questões e de novidades a terem de
ser equacionadas. Conhece-me melhor que eu a mim próprio. Evidentemente que me
não fiz rogado em pô-lo a par dos meus sobressaltos.
Concentrei-me no problema da
ressurreição: com o esqueleto de Cristo encontrado, como é? Ressuscitou em
corpo e alma? Que é que isto, doravante, quer dizer?
- Ah, sim, não me admira o
desnorteamento – comentou logo o meu Mestre. – Mas é sempre o mesmo: toma-se
uma teologia qualquer como a verdade e pronto, mal um facto a contradiz,
derrubando-a, jogamos fora com ela a mensagem que lhe subjaz. O que temos é de
refazer, aqui como em tudo, em qualquer que seja o campo, a teologia que
interpreta os dados. E sempre bem convictos de que ninguém nunca é dono da
verdade, qualquer que seja o grau de aproximação atingido ao que ela será, por
fim, na plenitude derradeira.
- De qualquer maneira, em corpo
e alma?! O esqueleto estava, afinal, no túmulo...
- Pois parece que sim.
- Parece?! Afinal, é ou não é?
É da maior importância... – ia eu a
argumentar.
- Não é, não - cortou cerce Fr.
Benedito. – Não tem mesmo qualquer tipo de importância, absolutamente nenhuma.
- Essa agora! Madalena encontra
o túmulo vazio e vem-lhe ele falar em porte de jardineiro. É o que lá está...
- Pois é, e daí?
- Então como é que as ossadas
estão na tumba da família?
- Se forem as dEle (e nunca
saberemos, podem ser doutro qualquer), é porque trasladaram o cadáver para lá,
certamente de noite e clandestinamente, como as circunstâncias obrigariam. É a
atitude mais natural do mundo. Qual é o problema?
- Então quem é que apareceu a
Madalena, aos Apóstolos, aos discípulos, a S. Paulo...?
- Jesus ressuscitado,
evidentemente. Esta é que é a novidade espantosa.
- Mas como, se o cadáver estava
no túmulo, afinal?
- A pergunta apenas faz sentido
se o irmão Ambrosino estiver prisioneiro da teologia fisicalista tradicional em
que embarcámos infantilmente desde o princípio.
- Contudo, é o que está no
texto do encontro com Maria Madalena. Por isso ela vem a correr informar os
outros, o túmulo está vazio.
- Ela até pode ter confundido
os dados. Mas repare: em lado algum ela (ou qualquer outro) diz que o corpo de
Jesus ressuscitado é o do cadáver deposto na tumba. Em lado algum. Correcto?
- Correcto. Mas de certeza que
ela julgou que era: não está na tumba e vem-lhe falar disfarçado de jardineiro.
Que é que alguém cuidaria? Era juntar dois e dois, não é?
- Pois, eu de certeza
concluiria o mesmo, em tal contexto. E daí?
- Jesus não corrige a confusão.
Deixa o erro grassar? É um bocado estranho.
- Julga? Onde é que Jesus (ou
Deus, já agora) alguma vez se incomodou com a teologia que fazemos? Com os
conceitos que elaboramos, as teorias que inventamos? É nisto que Ele interfere
ou nos actos que praticamos? Seja no Antigo, seja no Novo Testamento. Seja nos
textos canónicos, seja nos apócrifos. Há algum dogma ou algum anátema
pronunciado por Deus ou Jesus? Encontra algum? Já quanto às práticas é outra
coisa, aqui corta a direito. Mas no pensamento, encontra?
- Que eu saiba, não. Mas aquilo
é uma confusão grosseira, ainda para mais duma discípula predilecta. Seria de
esperar alguma consideração por ela...
- Se calhar Ele tem mais do que
julgamos. Primeiro, ignoramos se confundiu as duas realidades, cadáver e corpo
glorioso, como ocorreria connosco ali, como ocorreu com a teologia tradicional
durante dois milénios. Depois, Jesus ia perder tempo com tal ninharia quando
lhe estava mostrando que vencera a morte e domara a matéria para além de tudo o
que era concebível? Que é que aquilo importava? Que é que nos importa semelhante
ninharia? Que é que importaria à própria Maria Madalena? Nada, ela corre a dar
a novidade da ressurreição, não a propor qualquer teologia acerca dela, esteja
ou não confundida neste particular. Perante o espantoso dum ressuscitado, tudo
o mais perde o valor por inteiro, não gastamos sequer tempo com isso.
- Concordo. Mas repare como
hoje importa. Os que me contaram andam deveras baralhados. Pode deitar por
terra toda a Boa Nova no coração de muita gente, aniquilar a especificidade do
cristianismo. A fé perderia um referencial-chave, para nós e para todo o mundo,
na era do ecumenismo. Perderíamos a nossa achega mais relevante a partilhar com
os demais.
- Ah, sim, perdemos, se não
enterrarmos de vez o fisicalismo, esta multissecular mania de encaixotar tudo
em realidades físicas, selar e guardar no depósito, onde mais ninguém se atreva
tocar-lhe. Como se o espírito pudera ser acorrentado numa qualquer dimensão
física, como se Deus se deixara escravizar numa qualquer materialização ou
concepção, alguma vez, em qualquer que fora a vertente. É um erro crónico que
depois leva (e levou sempre, pelos séculos fora) ao triunfalismo do vazio, da
ausência de espiritualidade, da falta de vida interior a caminho, a
secularizar-se laboriosa no mundo. E a chacinar os infiéis à espadeirada,
claro.
- Mais um caso, é? Mas lá, com
Maria Madalena e os outros, não teve problema...
- Eu julgo que teve. Repare em
S. Tomé. É um episódio que não tem sido lido à luz destes dados.
- Ele não acreditou. Depois
viu, palpou as chagas. Como é que tem a ver com isto?
- Imagine que houve uma
trasladação nocturna clandestina. Quem a faria? Decerto Tiago, o irmão de
Jesus, Maria, a mãe, José, o pai, se fora vivo ainda. Precisariam da ajuda de
mais alguém, que os pais de Jesus não teriam força bastante para ajudar Tiago a
remover a pedra de entrada. Teria de ir alguém da roda íntima. Terá sido, por
hipótese, Tomé. Sabendo todos o risco que corriam de ser mortos depois, caso
fossem descobertos, ficaram num silêncio de morte. Quando entre eles corre a
nova da ressurreição de que nenhum sequer suspeitaria antes, Tiago e os pais
mantêm o silêncio, que serão as primeiras vítimas se houver represálias. Mas
Tomé, que ninguém ligaria àquela manobra secreta? Imaginemo-nos da pele dele.
Sabe bem onde depositou o cadáver, ouve as conversas e a euforia, a ligação
entre o túmulo vazio, se calhar, e o ressuscitado. Só que ele não pode confiar
a ninguém porque é que o sepulcro não tem nada. Se fôramos nós, que é que
faríamos?
- Pois, em tal hipótese não é
provável deixar os eventos correrem, como se nada fora. A dúvida dele aí faz
muito mais sentido. Ele sabia o que os mais ignoravam. Teria de tirar a limpo
uma coisa daquelas. O cadáver conhecia onde o depositara. Então que era isto
que contavam? Tinha de ver as chagas, de tocar-lhes. Os outros poderiam
embarcar na lógica: sepulcro vazio, logo, ressurreição. Ele, não, mas não podia
abrir a boca quanto a isto. Restava tirar tudo a limpo. Estou a entender.
- Mas ainda não entendeu que,
nesta hipótese, fica liquidada definitivamente a teologia fisicalista da
ressurreição.
- Porquê? Não vejo de todo.
- Porque, para S. Tomé dizer
“meu Senhor e meu Deus!”, é que separou de vez o cadáver do corpo glorioso. Não
é o sepulcro vazio que lhe serve de ponto de partida, é a realidade que se lhe
apresenta diante. “Põe o dedo nas feridas e não sejas descrente mas fiel.” Mais
uma vez, nenhuma referência ao túmulo, fizesse ele o que fizesse nas cabeças dos
mais, porventura de sinal contrário na dele relativamente aos outros. Não tem
definitivamente relevo nenhum em qualquer dos sentidos, perante a espantosa
novidade que as aparições lhes estão comunicando, só por elas. Basta o facto,
nem é preciso dizer nada, como com os discípulos a caminho de Emaús.
- Então como iremos olhar para
isto? Que leitura dos dados?
- Ora! Exactamente como S.
Tomé, eventualmente sem vermos nada como Jesus pede. Por um lado, a confirmação
da imortalidade, em vida de Jesus ainda em disputa (os judeus da diáspora criam
nela, os da Palestina eram mais renitentes). Por outro, o fenómeno inesperado,
inteiramente inédito, do domínio da matéria pelo espírito numa dimensão e com
um poder jamais vistos, nem sequer adivinhados: corporifica-se numa sala
fechada como desaparece dela sem cruzar através de nada, aparece ao caminho e
desaparece instantaneamente quando identificado, levita e sobe pelos ares como
bem entender, tem feridas para mostrar ao incréu e não as tem mais noutras
eventualidades, surge e derruba S. Paulo a caminho de Damasco, a ponto de
encegueirá-lo...
- E o cadáver continua no
sepulcro – cortei eu.
- Pois claro. Jesus não precisa
do cadáver para nada. Faz da matéria o que entende, do corpo do Universo
constrói o que chamamos de corpo glorioso à medida do que o próprio projecto dEle
requer.
- Outrora como hoje, estou a
ver.
- Exactamente. E quando, por
exemplo, aparece à Alexandra Solnado, tomando a configuração humana, na
meditação, insiste com ela para não estar permanentemente à espera disto, antes
se disponibilizando a relacionar-se com Ele pela energia espiritual, sem mais.
É um tipo de prolongamento do diálogo com S. Tomé: não é requerido ver para
crer. E é melhor crer sem ver. Faremos então a caminhada de dentro para fora,
sem precisarmos de nenhuma corporificação captável pelos sentidos. Aqui não há
desvios: Deus cruza através de nós para o mundo, a matéria vai-se gradualmente
espiritualizando sem perdas.
- De repente lembro-me do
profeta Ieshua do Iraque. O nome é o de Jesus e é contemporâneo dEle. Contou a
história de Cristo que conhecemos, no traçado geral. Pode ser um discípulo
fugido até lá. Há quem diga que Jesus não morreu nem ressuscitou, que é este,
foi raptado, curado e fugiu para ali. Interpretar a ressurreição como estamos a
fazer abre outra possibilidade: se Jesus ressuscitado quis fazer outra missão
no Iraque, podia, afinal, perfeitamente fazê-lo, retomando um corpo normal e
sendo ali um profeta pregador como o foi em Israael. Os iraquianos apenas lhe
não impuseram a tragédia que os judeus lhe provocaram com a morte na cruz.
Morreu em paz. Nós só teríamos de os informar do ressuscitado, tenha sido Ele
ou não.
- Evidentemente que poderia
ser. Que sabemos nós? Andamos por aqui às apalpadelas com os olhos arregalados.
E já é muito bom se lograrmos ir tendo os olhos bem abertos. Lembremo-nos do
arcanjo Miguel da irlandesa católica Lorna Byrne, quando ele toma um corpo e
caminha falando com ela estrada fora, a cumprimentar quem ela cumprimenta,
levando todos a julgá-lo um indivíduo como outro qualquer e, afinal,
identifica-se-lhe como um arcanjo durante a vida inteira dela. Se ele pode
fazer uma coisa destas, porque é que Jesus não poderia? Claro que pode e, se
calhar, fê-lo mesmo e nós só temos é de abraçar aqueles irmãos na fé. Não tem,
mais uma vez, problema nenhum.
- Pois, o que conta é a vida
espiritual e o rumo de autenticidade que lhe damos, tocando o mundo para
diante. O mais é permanentemente instrumental, uma alavanca para potenciar
isto. Fora daqui não importa nada, no domínio da fé, não é verdade?
Fátima
– 16 de Julho de 2013
Hoje, terça-feira, tive de
voltar ao ginásio. Se as cruzes, com a idade, dão de si em toda a gente, então
nos anões é um problema. Nós balançamos permanentemente e, se não andarmos, as
articulações atrofiam a grande velocidade. Pelo menos é o meu caso. Não poderei
dar-me ao luxo, por exemplo, de ler uma tarde inteira, como às vezes me ocorre,
preso de entusiasmo a um livro qualquer. Quando me pretendo mexer depois, estou
emperrado por inteiro, dói a sério. Isto, porém, é o menos. Pior, bem pior, é
quando um estrangulamento dum músculo algures, por um movimento insignificante,
me esfaqueia. Fico que me não logro mexer. É uma punhalada em carne viva. Por
isto hoje a aula inteira foi de marcha e de degraus. É curioso como o trepar
escadas me ajuda a recompor tudo o que me vai ficando por aqui avariado.
O meu instrutor farta-se de
brincar comigo quando me vê assim pior.
- Mas então?! Isto não é
natural?! Claro que é. E aqui não temos de respeitar a natureza? É só na
pílula? Não acredito! Também tem de ser neste domínio. Aliás, como iremos
acumular sacrifícios se acabarmos com a dor? Este de certeza é o motivo porque
não tenho aqui, nas minhas aulas, mais frade nenhum lá do convento. Eles são
religiosos deveras, com penitência o dia inteiro, e depois jogam-me para aqui o
rebotalho infiel que, para além de pequenino, nem sequer tem nome de gente. Não
o querem lá, de certeza, certezinha!
- Goze, goze. Para penitência
já basta o que basta, que a vida não se inibe nem comove. E, quanto ao natural,
então não o é tratar da saúde e bem-estar? Seu herege, sempre a dar ouvidos ao
diabo!
- Olha quem fala! Não ouve o
Vaticano e quer ser frade. Como é viável? – e fez esgares de escandalizado
divertido. – Temos de respeitar o método natural, venham lá quantos filhos,
perdão, quantas dores vierem, até para humana edificação. Egoístas libertinos,
apenas a pensarem no prazer! Depois refugiam-se num convento para esconderem os
complexos de culpa. Pois, como se a gente não topasse! Olha o St.º Agostinho
com o filho ilegítimo que ele nunca adoptou. Depois toca a pregar contra a
devassidão, a ver se Deus lhe perdoa. Mas só após gozá-la e bem. Grande
exemplo!
Era tudo a brincar mas fiquei
meio encalacrado por mor dos diálogos do fim-de-semana. Ele, claro, não podia
adivinhar. Mesmo assim, estiquei um pouco a corda.
- Pois, não respeite a
natureza, não ligue ao efeito de estufa, ao degelo, aos picos da alteração
climática e depois queixe-se do aumento disparatado do vulcanismo, dos
terramotos, das inundações, das ondas de calor, dos maremotos cada vez mais
mortíferos... Não ligue ao esgotamento do Planeta e depois queixe-se do colapso
mundial, do custo da energia, da falta de recursos...
- Ora aí está! Ai ligo, ligo!
Portanto, embora me arrisque a perder o cliente, era melhor respeitar a
natureza em si próprio. Ela deve querer torná-lo um santo, para aí um padroeiro
dos anões (ainda não há nenhum, pois não?). Logo, sofra a bem sofrer e, se não
tem pecados (que os seus, a ajuizar pelo tamanho, devem ser só pecadilhos, nem
vale a pena perder tempo com tais niquices), então é pelos meus, está bem? É
que então eu terei a sorte de St.º Agostinho, gozo a vida bem gozada e, no fim,
vou para o céu à sua conta. Que tal? Até lhe farei o favor de lhe permitir
cumprir o voto de salvar almas. Se não salvar outra, salva a minha. Ainda me
irá ter de agradecer depois, do lado de lá, vai ver!
Claro que desatávamos a rir e a
aula dele corria num instante, nem dava por ela. E, curiosamente, não notava o
esforço. Apenas mais tarde, quando os músculos arrefeciam, é que dava por mim
todo dorido, da cabeça aos pés, de me ter ginasticado por inteiro. Mas já
cirandava então pelo convento. Era sempre deste modo. Tive sorte com o
instrutor.
O diálogo, porém, ecoava-me a
outro nível. A verdade é que reconhecia nele os argumentos da generalidade dos
leigos casados, a propósito justamente das indicações morais relativas ao
controlo da natalidade. A famosa proibição do uso da pílula contraceptiva como
doutro qualquer meio artificial de intervenção que interrompa o curso normal da
relação sexual, com a eventual fecundação no fim. E sentia-me um pouco
desconfortável. Não por vir dele o tema e a perspectiva de abordagem, nem
sequer por reconhecer que a generalidade dos cristãos vive interiormente
dividida, querendo-se crente coerentemente fiel, por um lado, e não achando que
deva aderir, por outro, àquela indicação doutrinária. Nem sequer provém o meu
desconforto do facto de a maioria, deste modo em contradição, não lograr
assumir esta atitude de ruptura como uma escolha ética consciente e madura,
como um dever a cumprir, sem culpabilização. Com efeito, quase todos os leigos
com que falo e de que tenho notícia, optam por não cumprir a indicação com a
consciência pesada, convictos de que ficam em pecado mas não vêem melhor
alternativa. Findam e vivem rasgados por dentro, desequilibrando a harmonia
familiar, quando não destruindo-a sem recurso, com complexos de culpa e
agressividades insuperáveis, definitivos. É o normal entre os crentes mais
convictos. Escapam-lhe os meramente formalistas e os indiferentes.
Não, o meu desconforto provém
do facto de que eu intuo que isto tem de estar tudo errado mas não lobrigo
onde, nem como, nem porquê. Como de hábito, a minha baixa estatura permite-me
alcançar a pegada posterior mas, mais longe, nem trepado na cadeira, nem de pé
em riba da mesa. Não enxergo nada, ponto final. E é uma tristeza. Nem para os
amigos logro estender um dedo fidedigno de apoio.
Andava eu nestas elucubrações,
dando conta de minhas freimas conventuais, quando me lembrei duma conversa, há
meses, com a irmã Fátima, que é enfermeira e me veio dar umas injecções para a
artrite que então me tolhera de todo. É do convento feminino gémeo do nosso e é
quem nos ajuda nestas emergências, já que não temos médico nem enfermeiro entre
os professos. A vocação dela é mesmo de doentes e enfermos, não tem mãos a
medir aquando das peregrinações e vive-o com um entusiasmo fascinante. Quis
mesmo o convento porque pode dedicar-se mais, uma vida inteira ofertada, com
uma esfusiante dedicação.
- Sabe, irmão Ambrosino, o que
me faz mais confusão? A escolha das Testemunhas de Jeová. Já me ocorreu ter de
ajudar uma, foi ali num desastre. Estanquei-lhe as hemorragias mas aquilo
requeria transfusões e, quando lhe perguntei pelo tipo de sangue, recusou
terminantemente. Nem que morra! Não ia ofender a Deus – afirmava ele, convicto
- num transe tão perigoso como aquele. Claro que o respeitámos, não é? Mas como
se pode ter convencido de que salvá-lo ofenderia Deus, se for daquela maneira,
com uma transfusão? A gente mete cada coisa na cabeça!
- É um versículo da Bíblia... –
comentei.
- Pois é. Mas quantos há que
caducaram? Os tempos mudam, mudam as conjunturas e as sensibilidades. Quem lê
hoje o Levítico, por exemplo? É a mostra viva de que tudo, por fim, será
ultrapassado. Porquê ficar agarrado fanaticamente àquela frase, morra quem
morrer? Porque é a vontade de Deus?! Deus quer acabar connosco quando nos põe à
mão meios de nos salvarmos uns aos outros? Está bem que é apenas o corpo, mas
se Ele não nos queria com corpos não nos teria criado com eles, não é? É uma
atitude tão singular!...
- A mim também me faz confusão.
Mas qualquer postura fanática faz, claro. Como é fácil ir por uma norma externa
em vez de auscultar-se por dentro! A vida interior é muito exigente. Qual
espiritualidade, qual quê! Uma leizinha e pronto. Fico salvo, está o caso
arrumado. Valha-nos Deus!
- A natureza é sagrada, não lhe
podemos tocar. Contudo, é apenas nisto, porque, por azar, vem no Livro. De
resto podemos operar, transplantar, tirar, recoser, endireitar ossos, sei lá,
tudo. Agora a natureza já não é sagrada, está a ver? Nisto como no resto.
- A história da natureza tem
muito que se lhe diga. É que nos temos de perguntar se a cultura é pecado, em
derradeira instância. Toda ela é criação artificial do homem, sotoposta à
natureza e, pior, inflectindo-a permanentemente em todos os rumos. Mais: hoje
em dia a cultura humana está esgotando e destruindo a natureza. Como é que é
então? Acabamos com a cultura, voltamos a ser caçadores-colectores, como nos
primeiros milhões de anos? E mesmo isto de caçadores não interfere na natureza?
Então, colectores apenas, mais, quando muito, necrófagos, como os corvos e os
abutres? A idiotia destes preconceitos sacralizados brada aos céus.
- Pois, sacralizar a natureza,
a que propósito? Porque deu na veneta a um ilustre desconhecido qualquer? Que
arbitrariedade mais estúpida! Porque é que não me há-de dar a mim na veneta de
fazer exactamente o contrário? Que é ele, seja lá quem for, mais do que eu ou
do que qualquer outro indivíduo? Nada, rigorosamente nada. Entretanto,
incógnito embora, erigiu ali mais um ídolo, o da natureza, e lá andam aqueles
milhões de alienados a queimar-lhe incenso e a sacrificar-lhe gente. Os ídolos
matam inelutavelmente os povos. Vislumbrar o Deus vivo é mesmo difícil, mas
consiste em ver apenas aquilo que nos liberta. Só O vemos no fruto concreto. Se
o fruto é fatal, em qualquer sentido, então é mais um ídolo. Teremos de ir mais
longe e mais fundo. Ainda não é Ele. Aliás, não será nunca, em definitivo,
caminhamos numa aproximação ao infinito do que for o Infinito.
Na ocasião não liguei uma
matéria a outra. Hoje é que a ponte se me fez cá dentro. A Igreja oficial é
idólatra naquela orientação moral do controlo da natalidade? Não vejo
alternativa. Devo, porém, estar cego, como comigo é de hábito. Andei horas com
isto a moer-me o juízo, à espera de que o Fr. Marcos aparecesse com um momento
livre para eu poder tirar dúvidas. Ele sempre é um perito, mas nunca lhe ouvi
tal tese. Em contrapartida, não se fatiga de afirmar que aquela não é matéria
de dogma, não faz parte da fé, quando é de acalmar consciências perturbadas com
as contradições a enfrentar na vida real. Se calhar pensa mesmo deste modo e
não o diz, para não introduzir mais confusão em espíritos ainda incapazes de
assimilar tal alternativa, ou ignorantes, ou dados ao escândalo, sei lá...
- Bem, irmão, - retorquiu-me
ele, um pouco hesitante, quando lhe pus o problema – nós somos e seremos
sempre, inelutavelmente, um pouco idólatras em nosso culto a Deus, qualquer que
seja o campo. Nunca O entenderemos na plenitude do que é e do que implica.
Vamo-nos achegando a vida inteira e durante a História toda, quando temos
humildade bastante para, ao menos, entendermos isto. A lonjura entre nós e Ele
é infinita, como é próprio da finitude perante o Infinito. Mais: isto é na
melhor das hipóteses, porque, habitualmente, deixamo-nos convencer, individual
e colectivamente, de que já O alcançámos e aí morreu a caminhada e principia a
matança em nome de Deus que, neste caso, é sempre, inelutavelmente, um ídolo
qualquer a que damos o estatuto de verdade absoluta. Como diria a irmã Fátima e
muito bem: desatámos a matar gente, logo andamos a adorar um ídolo. Não é
apenas para fundamentalistas islâmicos, Testemunhas de Jeová e quejandos, é
para todos, para nós igualmente. Mesmo quando a morte não é tão gritante, mas
mata, por exemplo, a fogo lento.
- Então é mesmo um ídolo o
respeito pelo método natural no controlo da natalidade. Com os problemas de
consciência e os deslaçamentos que desencadeia em tantos milhões de pessoas
pelo mundo fora...
- Evidentemente. O curso da
natureza foi aí sacralizado, posto no altar, e todos lhe devem adoração,
sacrificando-lhe a felicidade, o equilíbrio, o lar, o bem dos filhos, a vida,
se for preciso. Idolatria completa. Em lugar de ver o óbvio: a natureza inteira
foi entregue ao homem, para nomeá-la, ser dono dela, sujeitá-la ao projecto
dele. Primeiro capítulo do Génesis, clarinho como água. Toda a natureza,
incluindo a do próprio homem. Certo?
- Mas que cegueira! Como é
possível isto?!
- Muito simplesmente:
incensamos vários ídolos encadeados, que dão a mão uns aos outros. Quer ver, no
caso? O pior de todos: a tradição histórica, tanto mais idolatrada quão maiores
os nomes que a sustentam. É um tal queimar incenso, por muito que se desvie e
nada tenha a ver com um são desenvolvimento espiritual. Lembra-se do magister dixit medieval? Na vida secular
lutam contra ele desde o Renascimento, nós cá temo-lo no altar e liquidamos
quenquer que tenha a pretensão de não o adorar. Matamos gente, logo é um ídolo.
Mas há mais: o respeito pela vida é outro, tornou-se absoluto, doa a quem doer,
mate quem matar. Já viu? Mata-se para não matar! E não abrem os olhos! A força
dos ídolos!
Fátima
– 17 de Julho de 2013
Matamos para não matar –
ficou-me isto no ouvido, a evocar-me a disputa na Irlanda relativa à Lei do
Aborto que finalmente o permite em determinadas conjunturas. A querela mais
violenta foi à volta do risco de a mãe se matar.
Entendiam os inconscientes
adoradores do ídolo da vida que admitir isto seria a porta aberta para cada um
escolher em consciência o que fazer no caso concreto que se lhe deparar, o que
redundaria na arbitrariedade mais incontrolável. Venceu a outra postura, como
era sensato.
Não cuidaram os contraditores
de ponderar se a escolha de consciência não é justamente o que é requerido ao
homem quando se lhe coloca a natureza nas mãos, ao dispor, para dela fazer o
que melhor lhe convier. Incluindo a natureza dele próprio, de cada um e da
Humanidade inteira. É o conveniente a cada um, a cada lar, a cada comunidade, à
espécie humana como um todo que em todas as deliberações é de ponderar,
tentando harmonizar tudo, nível a nível. Isto nunca tem receitas nem certezas
de escolha, importa arriscar e verificar, reajustar, conferir, ir avançando por
tentativa e erro quando faltam referenciais e assim por diante. Em todos os
campos da vida é deste modo, também no do aborto. Há incompetências, há
ignorâncias, há má fé, há crimes, mas igualmente há sabedorias, há heroísmos,
há aprendizagens, há abnegações e amores dedicados. Em tudo deve haver lugar
para o itinerário das consciências, para as escolhas do livre arbítrio, para o
amadurecimento de cada um e de todos. Porque é que, quanto ao aborto, deveria
ser diferente?
Os que aqui julgam que lutam
pela vida são do mesmo vector que não tem pudor em empunhar armas gritando:
“Morte aos infiéis!” É igual a asneira do fundamento: endeusaram um qualquer
pretenso depósito de fé e, uma vez tornado absoluto, operam na lógica letal da
adoração do ídolo. Nem reparam na morte encadeada, cruenta num caso, incruenta
no outro, que tal atitude desencadeia. E não vêem como traem o primeiro mandato
da criação: que o homem se adone da natureza inteira, fora e dentro dele
próprio. Nem sequer é porque vem na Bíblia, é porque é deste talhe que o homem
é feito, como os ateus compreendem e assumem muito bem, derrubando felizmente
os ídolos. Como dizia Henri de Lubac, eles não nos deixam fazer batota, no que
lhes deveríamos ficar muito gratos.
Ainda bem que já ultrapassámos
a atitude tibetana de respeitar tão idolatricamente a vida que nem uma enxada
podem meter à terra, dado que eventualmente matarão alguma minhoca. É
preferível morrer à fome ou numa miséria subalimentada e desequilibrada do que
atentar contra o dogma sagrado, este, sim, absolutamente intocável, do ídolo
que é a vida. E depois morrem por lá aos pontapés ou sobrevivem como
verdadeiros mortos-vivos. Que deus quer isto? Que Deus nos valha!
Andava eu tão embrenhado neste
cogitar que nem nos ofícios atentei. Fui a matinas distraído por inteiro.
Cantei automaticamente, sem reparar em quê, dando-me apenas ao gozo de jogar a
voz pela amplidão. Fiquei com a ideia de que ia a voar nem sei por onde.
- Eh, irmão, hoje está nas
nuvens, hein? - abordou-me inopinadamente Fr. Nardo, quando nos retirávamos
pelo claustro.
- Cruzes, até me assustou! –
retorqui, ao vir a mim lá do mundo por onde adejava sem reparar sequer.
- Exactamente, não anda por
aqui, vai apenas aqui a caminhar o seu bamboleio, mas o irmão vagueia por
longe. É lindo esse outro mundo por onde escolheu vadiar?
- Olhe, Fr. Nardo, nem por isso
– e resumi-lhe aquelas meditações.
- É cómico como converge com as
minhas pesquisas actuais. Ando à volta de Orígenes e de Tertuliano por um
motivo idêntico: que é que levou estes homens, de resto brilhantes, a atitudes
tão disparatadas no domínio da sexualidade?
- Quais atitudes?
- Olhe, fundamentalmente, por
parte de Orígenes, ter-se feito castrar para dominar o impulso sexual; por
parte de Tertuliano, considerar um pecado mortal a masturbação ou o coito
incompleto, o onanismo, porque, segundo ele, era matar uma infinidade de
indivíduos potenciais em miniatura. Creio, aliás, que nunca foram beatificados por
causa disto, uma vez que eram, como teólogos, muito lúcidos, bem profundos, no
meio de todas as querelas dos dois primeiros séculos da nossa era em que
viveram. Luminares que acabaram por atear o fogo a eles próprios. Se calhar
tornaram-se tochas de tanto querer iluminar o mundo. E arderam, pelos vistos
arderam, queimaram-se bem! – riu, animado, bem ao jeito dele.
- Há por aí uma idolatria
também, é? Pelo menos o culto de Príapo não foi.
- Ah, pois não! Mas é o do
anti-Príapo, tão absolutizado ou mais do que aquele e de que ainda hoje somos
vítimas. Veja, é o culto do altar donde ele foi derrubado, o culto da ausência,
do vazio. Isto evoca tanto ou mais a presença do que está ausente que devém
obcecante, domina o pensamento e o afecto a toda a hora, não há forma de
evitá-lo mais. Então, em desespero de causa, Orígenes castra-se, Tertuliano
enfia tudo no inferno. Caso arrumado! É a lógica do princípio: se o gentio não
se converte, mata-se; se o herege não se retrata, enforca-se; se o incréu é
renitente, queima-se em auto de fé.
- E não vêem que, se o deus
mata em vez de dar vida, não é deus nenhum, tem de ser um ídolo qualquer? Em
vez de desmascararem o erro e mudarem, reconvertendo-se, impõem o erro a ferro
e fogo, doa a quem doer. O preconceito é diabólico.
- Exacto, é o diabo em figura
de gente. Aliás, mascarado de Deus. É o maior carnaval da História. Pena é que
deu em tantos mata-moiros entre nós e pelo mundo além, abandonando atrás deles
uma esteira de mortos. A gente gosta muito de matar. E então em nome de Deus,
que grande gozo! Não deixa escrúpulos nem remorsos, é uma festa, maior que num
matadoiro qualquer de gado para consumo – rematou, sarcástico, com um grande
sorriso de divertimento.
- E com o céu garantido, não?
Como os extremistas islâmicos? – lembrei.
- Evidentemente. Andam a
repetir os nossos erros. Devíamos estar muito orgulhosos de seguidores tão
fiéis, não é? Ou deviam estar os que continuam propugnando tais idolatrias –
continuou a ironia, bem-disposto.
- Ora, Fr. Nardo, agora não há
mais seguidores de Orígenes nem Tertuliano. Até os castrados dos coros
italianos do período barroco foram há muito banidos. E criminalizados os
perpetradores deles que lhes exploravam as vozes angelicais à custa do
banimento da possibilidade de se realizarem neste domínio, o afectivo-sexual e
familiar. Acabou de vez. Ou não?
- Era bom, era! – retomou ele,
meditabundo. – Há formas germinais por todo o lado, sementes que, se não dão
árvores, dão arbustos, dão ervas. Não há nunca erradicação definitiva. É
ilusório. E os mentores disto bem nos querem convencer de que sim, para
deixarmos de estar vigilantes e poderem ir proliferando à socapa livremente. É
o que lhe digo, eles adoram matar, são todos açougueiros de profissão – riu de
novo.
- Não vejo nada. Onde é que
continua? – a minha cegueira chega a irritar-me.
- Olhe, um bom exemplo da
pertinácia disto é St.º Agostinho. Morreu há milénio e meio e continua aí bem
fresco, pronto para as aventuras, em qualquer teólogo e nas práticas e juízos
de qualquer leigo que nem sequer dele tenha ouvido falar.
- Mas não é por motivos destes,
é a teologia dele, a cristianização de Platão.
- Claro, claro. Mas é um caso
de não só, mas também, entende?
- Ora! Eu cá não entendo nada.
Nasci burro e burro hei-de morrer.
- Falsa humildade, irmão, falsa
humildade. Mas eu lhe explico. Ele chega a propugnar, em A Cidade de Deus, que todos deveriam tornar-se monges e monjas, de
modo que, com o voto de castidade cumprido, findariam os nascimentos, acabaria
de velha a Humanidade e, portanto, ocorreria a consumação final com a segunda
vinda de Cristo, a Parusia. E pronto, como vê, ficava tudo resolvido. Deus não
quer acabar, acabamos nós com isto – riu-se ele, bem-humorado.
- Olha, mais um fisicalismo! –
exclamei eu, repentinamente lúcido. – O fim não é deste modo, é uma visão que
hipostasia uma realidade espiritual num enclausuramento físico, como se este
tivesse o poder de a aprisionar e esgotar. Mesmo que ocorra o colapso da
humanidade, nada adviria naqueles termos. Aliás, já muitas fileiras humanas se
extinguiram e a aventura planetária, o roteiro cósmico continua. Desapareceu o
homem de Cro-Magnon e o de Neanderthal e daí? Qualquer filão evolutivo pode
terminar num impasse, o Cosmos continua eternamente com a respiração de
Big-Bang – Big Crash. A realidade espiritual, a da vida interior em nós,
remetem para outro plano, não é o material, é o da nossa interioridade e da do
Universo.
- Pois claro. Mas porque é que
St.º Agostinho faz tal proposta utópica? Não é por nada disto, é para purificar
a Humanidade da abjecção do sexo. Está a entender? Ele tem um complexo de culpa
inamovível, por mor do desbragamento da juventude, antes de ter conhecido St.º
Ambrósio e se ter convertido, em Florença. Então vai de extremo a extremo: das
orgias e libertinagens salta para a castração simbólica – tudo no convento! E a
única regra que lhe importa e refere: castidade. Se estivera atento ao que Deus
de nós pretende e o Espírito nos inculca intimamente, acolheria o homem como
Deus o criou, sexuado, capaz de amar e corporificar o amor sensual e
sexualmente. Perguntaria como gerir isto a contento, como em todos os demais
campos da vida. Assumiria, então, eventualmente, as respectivas
responsabilidades perante o filho ilegítimo dele e a abandonada mãe. E assim
por diante. Mas não. Nem se fala mais nisto: aniquila-se. Se não é pela
castração, é pelo convento. Caso arrumado. É o mesmo padrão do ídolo que vimos,
o anti-Príapo. Agora veja bem, irmão Ambrosino, porque por aqui anda: a
penitenciar-se das libertinagens agostinianas ou a disponibilizar-se para o bem
da comunidade? Repare atento, que pode ser um castrado fora de tempo sem o
saber! – ironizou, no pendor brincalhão dele.
- Quer dizer, todas as
repressões medievais, abstinência total durante a Quaresma, sexo apenas para
procriar, depois, abstenção e sempre esforçando-se por não sentir prazer – tudo
isto é o complexo de culpa de St.º Agostinho? Todos foram vítimas daquilo? E
ainda hoje?! Não posso acreditar!
- Ai pode, pode, porque é verdade.
A pura das verdades. St.º Agostinho tem cópias recentes a reforçá-lo, aliás. A
Rainha Vitória teve uma juventude desbragada e, quando ascendeu ao trono de
Inglaterra e respectivo Império, virou ao contrário. Impôs na corte e pelas
colónias além a atitude vitoriana de corte cerce com quanto cheire a espavento,
a festa, a celebração explosiva. E nas relações humanas, o mesmo: tudo contido,
reprimido, reduzido a um esqueleto frio e distante. Com idêntico ideal para as
relações íntimas. É típico dos extremos: quando arrependidos caem no extremo
oposto que é tão erróneo como o de partida, em lugar de buscarem o equilíbrio
justo, o meio-termo onde radica quanto é construtivo. São mais gingões do que
um anão, ora tombam para a direita, ora para a esquerda, sem haver modo de os
pôr em sentido – brincou.
- Quer dizer, trocam um
absoluto por outro tão absolutizado como ele, um ídolo por outro igual, de
sinal contrário, sem repararem que é na idolatria que está a asneira, não no
conteúdo, qualquer que seja.
- Ora nem mais, pequenino
sábio! E eis porque andamos há dois milénios a falhar por inteiro a estrita
função de espiritualizar tudo, de dar o rumo que mais nos liberte e realize
neste campo tão fundamental da vida. Por mor, aliás, doutro ídolo que ai de quem
se atreva a derrubar: a tradição histórica. Todos a incensam e lhe vergam a
cerviz, ninguém jamais se preocupou em saber se corresponde ou não aos ditames
da espiritualidade. E aqui não corresponde, manifestamente.
Fátima
– 18 de Julho de 2013
E
aqui não corresponde manifestamente aos ditames da espiritualidade – foi o
remate que me ficou a remoer. Toda a moral do amor-paixão e da sexualidade anda
viciada por complexos de culpa há milénios, ninguém logra enxergar sem este
nevoeiro espesso que a todos nos encegueira. Então como corresponder ao apelo
da interioridade? Ainda para mais é tudo tabu, ou melhor, cinquenta por cento:
do amor podemos falar; do sexo, não. Apesar dos derrubes todos, a sexualidade
abordável é meramente a biológica e, depois, o cruzamento dos afectos com ela e
dela com os afectos. Além disto é o atoleiro em que todos ficamos presos e com
risco de nos afogarmos. Tudo coerente com o princípio de que o sexo é mau e,
conseguintemente, é para se extinguir. Quanto menos falarmos, melhor. Quanto
menos, melhor.
Como é que eu, enfiado num
convento, poderei vislumbrar alguma aberta? Estou no pior lugar possível para
tal objectivo.
Há um erro óbvio em toda a
postura milenar: o repúdio da estrutura sexuada da humanidade, um repúdio do
plano de Deus. É como se andáramos há séculos a berrar ao criador que ele errou
ao criar-nos deste modo. A atitude correcta aqui é fácil: tudo o que foi criado
é bom, primeiro capítulo do Génesis. Ora, se é bom, é para ser acolhido, aceite
como tal, sem reservas nem suspeitas: como todo o Universo, o sexo também
proclama a glória de Deus. Não é o rosto do diabo, não tem nada a ver com ele,
nem se afastou nem recusou o mundo divino, pelo contrário, espelha-o.
Até aqui, tudo bem, não
adivinho dificuldade. A teoria é fácil. As vivências disto é que implicam já
uma revolução, de há tantas gerações andarmos a implementar o contrário.
Primeiro que isto assente e tudo se desculpabilize à partida, quanto tempo
levará? Se calhar precisaríamos todos duma terapia psicológica para erradicar o
complexo colectivo de culpa, de pecado.
Também não levanta dúvidas a
desculpabilização do sexo no matrimónio, hoje em dia já com o prazer
legitimado. Mas aqui principiam as restrições, herdeiras da suspeita crónica,
ancestral. De qualquer modo, desde que a cópula seja vaginal, creio que ninguém
objectará contra a multiplicidade de posições em que pode ocorrer, conforme o
apetite do casal.
Para diante, porém, é a
floresta negra em que todo o mundo se perde. No fundo, a prevenção moral resume-se
a isto: os perigos são tantos que tudo é proibido. E tudo é pecado mortal (eis
a rejeição a imperar). É a gestão mais adequada desta área da vida? Não é,
claramente. Que é que será o mais conveniente, neste âmbito, ao desenvolvimento
pleno do potencial humano, em prol de cada um e de todos? Se acolhermos como
bom o sexo, então não é para ser restringido, muito menos eliminado, é para ser
usado como qualquer outra faculdade humana, de modo que nos beneficie, dê
alegria de viver, traga prazer e satisfação em todos os domínios onde chegue,
na geração de filhos, na relação humana, na partilha de afectos e laços, na
estimulação da fantasia e assim por diante. Ou o acolhemos e não podemos
eliminar campos à partida ou eliminamos e então estamos a rejeitá-lo preconceituosamente.
Até aqui também se me antolha claro.
Há, todavia, um pormenor de
peso a que temos de estar muito atentos: qualquer ferida neste domínio rasga
por dentro o indivíduo com uma violência extrema. É uma espécie doutro lado da
moeda do prazer extremado que promete, ou dá o anverso ou o reverso. Isto,
porém, nunca pode justificar o aniquilamento da capacidade, justifica que se
detectem e evitem os comportamentos que a levam a lesionar, como nos demais
domínios da vida. Não há nada diferente. Também a frustração da afectividade no
amor fere tanto que muitos sempre se mataram por não suportarem a conjuntura. O
amor frustrado é letal. Nunca ninguém, todavia, se lembrou de eliminar ou
restringir o apaixonamento, a pretexto da perigosidade da respectiva
frustração. E se há restrições no amor carnal é (e foi) sempre por mor da
componente sexual, não pela afectiva. Creio que também até aqui todo o mundo
estará de acordo.
Daqui para diante é um pântano
de tropeços. E eu, ainda por cima, não entendo nada por mim, nem sequer tive
nenhuma experiência minha, nem enquanto estudante ainda, antes da vida
conventual. Aqui dentro também não terei recursos vividos, não temos cá nenhum
viúvo nem, que eu saiba, alguma vocação tardia, como a do Papa Francisco, onde
recolher alguma vivência e reflexão despreconceituosa relativa ao tema. Irei
buscar factos e testemunhos e confidências que vida fora me têm vindo a ser
feitos por colegas e amigos, nalguns casos justamente confundidos com as
contradições entre moral e realidade, o que os levou a reequilibrar os eventos
noutros parâmetros.
Quando andava na Faculdade,
fomos em grupo acampar, com algumas tendas, para além da Fonte da Telha, na
Costa da Caparica. A Míriam, uma colega de Ciências que tinha sido noviça e
desistira, comprara um iglô e, à noite, dormiu nele com o Anselmo que andava em
Letras. Não eram namorados nem nada, mas amigos já de longo convívio, de alguns
anos. E meus amigos também de há muito tempo.
- Olha, todas as noites nos
masturbámos um ao outro – confidenciou-me ele mais tarde, no bar de Letras. -
Foi a coisa mais natural: apeteceu-nos, éramos amigos, assumimo-lo
espontaneamente como uma prenda que trocámos entre nós. Sem mais expectativas
de parte a parte, nem precisámos de falar disto nem nada.
- Quer dizer, não perturbou os
laços nem os afectos? Tudo completamente pacífico?
- Exactamente. Aliás, se algo
tivesse mudado, todos vós daríeis conta, não é? Passámos os dias inteiros
juntos. Olha, se alguma coisa mudou, é que ainda ficámos mais amigos, temos
mais uma boa memória em comum.
- É curioso como ficou por aí.
Normalmente os envolvidos quererão ir até ao fim, creio.
- Claro. Mas é que eu sabia que
ela não toma a pílula nem tinha qualquer preservativo. Nem eu. Nas conversas do
grupo já tinha aflorado a questão, ocasionalmente. Isto, por um lado. Por
outro, ela tinha mostrado que pretendia preservar a virgindade para o
casamento. Pronto, respeitei as escolhas dela.
- Nada de negativo, então?
- Eu não vejo em quê. Pelo
contrário, tudo positivo.
Mais tarde foi ela que abordou
o tema, informando-me dum contexto de vida diferente.
- Sabes? Eu fui violada
sistematicamente em miúda por um tio. Fiquei com repulsa pela vida sexual,
embora ele nunca tivesse sido violento fisicamente. Mas a clandestinidade, a
culpabilização com a ideia de que era pecado, o facto de, mesmo pequena, aquilo
saber bem, deixaram-me completamente dividida, convicta de que estaria
condenada ao inferno. Sabes como somos em miúdos, não é? Mesmo o convento, para
mim, era uma forma de expiar, de tentar escapar à pena eterna.
- Bem, foi mesmo muito mau.
- Pois foi. Uma coisa tão
simples, tão inocente... quem é que prejudicava? Ninguém.
- Mas pelos vistos
prejudicou-te bem fundo anos seguidos.
- Claro, pela forma como foi
mal assumida: com a convicção de que é pecado, de não poder deixar ninguém
suspeitar, sequer; um crime, no que toca a ele, de acordo com a lei, tudo. Se
não me tivesse culpabilizado, tudo não passaria duma experiência de prazer
partilhado de que nem me lembraria mais, senão como um momento bom da infância.
Assim, tornou-se uma angústia violenta durante anos.
- Como te safaste de tal fado?
- Com terapia psicológica. Por
acaso com um frade terapeuta. Conseguiu, mas demorou anos, que eu acabasse por
encarar tudo, afinal, com naturalidade. Embora às vezes ainda a vista do pénis
me provoque um arrepio. Aquilo deixa perenes cicatrizes, é uma luta permanente
para a gente não voltar para trás e estragar tudo.
- Então, com o Anselmo...
- Foi a coisa mais natural do
mundo. Estávamos deitados, apeteceu-lhe, eu não tinha nada contra, também me
agradava, pronto, partilhámos o prazer. Foram uns dias de férias óptimos, pelo
convívio do grupo, pelas peripécias das refeições e da praia, pelas conversas
ao serão e também pelo prazer sexual que partilhámos. Tudo normal, tudo
construtivo, tudo em conformidade.
- Com exclusão da fecundação e
da cópula propriamente dita.
- Evidentemente. A sexualidade
tem múltiplas valências, esta é apenas uma delas que é de viver quando for o
momento para tal. Ali, não, nem com ele, somos meros amigos. Mas, por mim, não
acho mal nenhum em consumar a relação, mesmo com um conhecido, até de ocasião,
que me atraia, desde que seja do acordo de ambos. Forçado é que não e violento
muito menos. Tem de prevenir-se o efeito duma gravidez indesejada, mas hoje em
dia, com os preservativos, mormente a pílula, só quem é irresponsável ou muito
inconsciente é que não toma em conta todos os efeitos para decidir como for
mais conveniente em cada caso.
- O acto, para ser moralmente
defensável, não tem de englobar todas as componentes?
- Em campo nenhum é assim,
porquê aqui? Olha, usamos cá no curso a inteligência para aprender os
conhecimentos já de trás acumulados. Ninguém se culpa por não usá-la a
descobrir novos desenvolvimentos para que ela também serve, nem para aplicá-los
correcta e eficazmente, que é outra possibilidade, nem para seleccionar os que
prestam ou não para um fim qualquer, e assim por diante. Com todas as nossas
faculdades e capacidades é deste modo. Porque é que aqui havia de ser
diferente? Não vejo razão nenhuma. São tudo preconceitos culpabilizadores e
repressões arbitrárias. Só temos que pesar prós e contras, de modo a eliminar
estes e a aproveitar aqueles. Nisto como em todo o lado. Com a contracepção ao
alcance (que devemos usar livremente, conforme o projecto afectivo de cada um,
e não com teias de aranha na cabeça) e o mútuo respeito dos intervenientes
entre si, é tudo muito simples. Não há perdas, só há ganhos, a vida torna-se
muito mais interessante e divertida. Que é que pode justificar que façamos ao
contrário? Isto era sado-masoquismo: é doentio, não é moral nem ético. Andarmos
a punir-nos porquê, não é?
- Apenas isto e é tudo? Nem
sequer o risco de fugir às responsabilidades da paternidade ou maternidade?
- Mais depressa tal ocorre
quando há repressão: a obsessão do prazer proibido acaba por dominar tudo e
excluir o resto. Vivido com naturalidade, como uma experiência boa, não, é tal
e qual como os mais momentos gratificantes da vida, disponibiliza-nos para os
desdobrarmos. Aliás, vou-te confidenciar um pormenor de que ninguém fala, por
pudor. Eu, ao contrário da generalidade das raparigas, masturbo-me
regularmente, se calhar por mor do trauma infantil que me exacerbou. Mas agora
é por prazer. Não faz mal nem a mim, nem a ninguém. Porque haveria de ser
culpabilizado? Pecado?! A que propósito? Por Deus ser um palerma que não sabe o
que anda a fazer? É completamente estúpido e estes preconceitos retorcidos e
indefensáveis dão cabo do juízo a muito rapaz, principalmente, que têm uma
apetência sexual quase insaciável e acabam carregados de complexos de culpa,
convencidos de pecarem, como eu andei durante anos. É uma desgraça e uma pena.
Tudo por completa arbitrariedade sem qualquer fundamento, um sado-masoquismo em
que tantos embarcam de boa fé, sem capacidade crítica nenhuma. Ou, então,
tendo-a, mas sem se atreverem a usá-la. E chamam a isto espiritualidade, vida
interior?! Onde é que no íntimo deles o ouvem, no coração o auscultam? Em lado
algum, é apenas porque vem tal e qual de geração em geração e ninguém se atreve
a apontar o dedo e gritar: “O rei vai nu!” Neste domínio vai de todo,
seguramente. Quanto mais me liberto mais o verifico e com mais firmeza. Todo o
mundo anda, neste âmbito, errado e bem errado. Pelo menos o ocidental.
Fátima
– 19 de Julho de 2013
Nem de propósito, acabam de
visitar-me a Isabel e o Luís, ambos juristas, também do meu tempo da
Universidade. Ela chegou a ser dirigente da Juventude Universitária Católica,
ele sempre se manteve um pouco de lado no que respeitava à religião. Já naquele
tempo se questionavam muito acerca do que falhava na moral sexual reinante e
porque é que falharia. Recordámo-lo esta tarde, a propósito da morte da actriz
Silvia Kristel, a protagonista da série de filmes Emanuelle, cuja proposta erótica deu muito que falar em nossa época
universitária, principalmente porque falhava na prática, como relatou a
supervisora dos guiões, a socióloga Emanuelle Arsan, no livro-relatório Uma Grande Família. Ainda agora o que
mais os motiva, aos meus antigos colegas, é descobrir o que é que leva as
atitudes a falharem neste campo, a terem efeitos negativos imprevisíveis.
- Lembras-te de te ter contado
– perguntou-me a Isabel – que havia um grupo de colegas nossos que casaram na
parte final do curso e que, ao fim-de-semana, iam para uma casa alugada e
faziam troca de casais? Achámos aquilo tão excitante que resolvemos
experimentar. Olha, um falhanço em toda a linha.
- E descobriram porquê?
- Neste caso, sim – respondeu o
Luís. – Repara bem. Uma coisinha insignificante pode, em tal campo, deitar tudo
a perder. Aqui foi uma frase de brincadeira da Isabel. Riu ela, enquanto vestia
uma langeri provocante; “Querias, não? Isto não é para qualquer um. Aqui não tocas.”
Pronto, foi o bastante. Senti-me rejeitado, ainda por cima o outro casal avisou
que não tinham preservativo, nós também não, que a Isabel sempre tomou a
pílula. Foi como se eu tivesse sido atirado porta fora. Nunca me senti tão mal,
é impressionante.
- E foi mesmo aquilo em que eu
– comentou a Isabel – nem sequer tinha reparado. O outro casal é o da minha
secretária. Como eles não sentiram connosco nada negativo, decidiram ir a um
bar de swing, para ver. Meteram conversa com um casal com que engraçaram e
fizeram a troca. Correu bem com todos, tiveram relações agradáveis os quatro,
ninguém se sentiu em baixo nem excluído. Parecia tudo bem...
- Então não foi, é? Mais
confusão? – questionei.
- Vê só: o marido dela ficou
literalmente obcecado com a mulher do outro casal, todos os dias falou nela, só
queria chegar ao fim-de-semana para voltar ao bar e tornar a possuí-la –
descreveu a Isabel.
- Interessante é como superaram
o mal-estar que aquilo introduziu entre ambos – sublinhou o Luís.
- Foi – retomou ela. – Falaram
porque tal atitude ameaçava a estabilidade da união dos dois e a minha amiga
não o queria de modo nenhum. Então foram de acordo em parar a experiência e não
voltar ao bar.
- Mas era apenas por um tempo,
- retomou ele – até se sentirem bem e desejarem retomar a aventura, sem cometer
erros. Escolheram então outro local. Contaram as dificuldades que tinham a
alguns casais, ao acaso, que também lhes foram confidenciando as deles. Nas
várias trocas de impressões acabaram por encontrar um par que sentiram bastante
afim. Perguntaram se não queriam tentar, foram para o quarto e, mais uma vez, a
troca a contento de todos correu bem para os quatro.
- E, na sequência, - continuou
a Isabel – não houve mais obcecação por parte de ninguém. Gostaram tanto que,
até hoje, vão regularmente ao bar e fazem amor os dois casais, trocando de par.
É muito giro terem-no atingido. Compartilham muito mais prazer.
- E agora não há perdas
nenhumas? – questionei eu. – Como é que vocês leriam o princípio que garante isto?
- Olha, quanto a mim –
retorquiu o Luís – é o consentimento mútuo, sem ninguém se sentir mal. E o
cuidado que cada um toma com os outros para este ser o estado de espírito
partilhado por todos. Basta um sentir-se marginalizado ou secundarizado e pronto,
afunda-se tudo imediatamente. Como ocorreu connosco.
- E com eles, – acrescentou a
Isabel – quando o marido ficou grudado à outra parceira. A minha amiga
sentiu-se ignorada e o casal em risco. Souberam corrigir a situação, dar tempo
ao tempo, e agora, olha.
- Pois, também há uma caminhada
interior, - completou ele – um amadurecimento que requer tempo. Cada qual tem
de estar atento a si próprio e aos outros, mormente ao seu cônjuge, não é?
- É muito curioso! – meditei
eu. – Não conheço ninguém que equacione estas questões e encontre alguma
conclusão que tenha sentido.
- Claro, é por isso que mexe
connosco. Ao examinar com minúcia como correram de princípio as coisas com a
minha amiga, reparei numa série de pormenores que confirmam o que o Luís refere.
Queres ver? Por exemplo, quando se dirigiram para o quarto, a parceira do outro
casal pegou na mão da minha amiga e foi deste modo que foram. Vê só a
diferença: se ela tivesse pegado na do marido da minha colega, o dela ia
sentir-se de fora, a minha secretária suspeitaria que ela lhe estaria roubando
o parceiro e assim por diante, de certeza tudo acabaria correndo muito mal. Mas
não. O cuidado com os outros levou a uma atitude que os integrou a todos.
- É mais que mútuo
consentimento, – reflecti eu – é acolhimento atencioso, é trato cordato, atento
a aspectos de nada que dispõem bem.
- E há mais – acrescentou o
Luís. – Queres que conte? – perguntou à Isabel. – Quando chegaram ao quarto, em
vez de se porem os quatro a acariciar-se mutuamente, não. Acariciaram-se ambas
as mulheres uma à outra, com a do outro casal a tomar a iniciativa, até
descontrair a colega da minha mulher. Quando ficaram calmas, foram-se despindo
gradual e mutuamente, um género de strip-tease improvisado, até ficarem nuas. E
apenas então a outra estendeu a mão ao par da parceira, convidando-o a
participar. E mesmo aqui foi para se porem ambas a excitá-lo, depois a despi-lo
e só quando ele ficou nu é que a outra se deitou, segurando a mão dele, num
convite a possuí-la. Ele penetrou-a enquanto continuava a beijar a mulher.
Aliás, acabou passando duma para a outra. Quando sentiu o orgasmo da nova
parceira, tratou de dominar-se, para poder tê-lo ele com a esposa. Ora, foi
esta que, sentindo o que ele estava tentando, o empurrou para dentro da outra
para ele ter com ela o prazer todo. Vê só a quantidade de pormenores.
- Mas o marido desse outro
casal ficou de fora?
- Não, não – interveio a
Isabel. – assistiu a tudo muito atento, de lado. Só no fim, despido, é que
subiu à cama, beijou a esposa, fez um carinho à minha amiga e ficou a olhar
tanto a parceira como o marido da minha colega. A esposa empurrou-o brandamente
para esta mas ele não avançou mais, apesar de extremamente excitado, com uma
enorme erecção, enquanto o outro também o não empurrou para a mulher. Apenas
então se possuíram. E, com todas estas delicadezas, estavam ambos tão excitados
que atingiram o clímax em segundos. Estiveram sempre a ser acariciados pelos
outros dois, durante o acto. Nem sinal de qualquer sentimento negativo. Tudo
bom. Por isso ainda dura, não é?
- Mas que coisa mais a leste de
tudo! – espantei-me. – Afinal, apenas
questão de mútuo consentimento, cuidado comum com os sentimentos e
susceptibilidades dos intervenientes. E um do outro, no casal. Ninguém força ninguém,
ninguém se força a si próprio. Cada um respeita em absoluto o parceiro, todos
os outros. Atento e muito atencioso. E bate certo, hein? Tudo simples assim?!
- É, de facto, - retomou a
Isabel. – Os sentimentos sofrem uma revolução completa. A minha amiga
confidencia-me, por exemplo, que a excita deliciosamente ver o marido a ter
prazer com a outra. Nunca imaginou tal em dias de vida, com a ciumeira
generalizada com que convivemos todos os dias, até entre namorados. E que,
aliás, antes ela sentia. Basta ter sentido e compartilhado, e pronto, é uma
revolução em curso, dentro e fora de nós.
- E mudam mesmo?! –
espantei-me.
- Ora, se mudam! – retomou o
Luís. – eles têm-nos contado cada caso!
- Sou todo ouvidos – incitei
eu. – É que isto é inteiramente novo, cuido, pelo menos para mim. Muito
desviados devemos andar duma correcta gestão das potencialidades humanas neste
domínio, como vocês já desconfiavam quando éramos estudantes.
- Olha, - retomou ele com gosto
– que me lembre (e ainda neste âmbito dos ciúmes) há o caso duma jovem que, a
princípio, eles acreditaram até que era solteira. Muito convivente, sem ser
acompanhada do par, não se fazia rogada em ir para a cama com quem a atraía,
rapaz ou casal. Afinal é casada, vão os dois ao bar mas separam-se à entrada,
cada um para seu lado, porque o marido gosta tanto dela que ele é que a incita
a encontrar outros parceiros. Curiosamente porque teme que, se não for desta
maneira, algum dia ela ainda o deixe, o que para ele seria intolerável. “Não
tem ciúmes?” – perguntaram-lhe. “Não. Pelo contrário, fico aflito é se ela não
encontra nenhum par com quem ir”. Ele, aliás, abandona-se muitas vezes pelo
convívio do bar, sem se preocupar em encontrar qualquer parceira. Vê lá bem!
- Essa agora! – admirei-me
ainda mais. – Com a quantidade de crimes passionais que todos os dias ocorrem
no País e mundo além! Fico parvo.
- Há outros ainda mais
significativos – lembrou a Isabel. – Um dia falaram com um casal que nunca
tinham encontrado. Segredaram os outros que tinham lá ido porque sentiam
saudades da companheira. Não entendendo, os nossos amigos pediram que lhes
explicassem. E é outro mundo. A esposa tinha como melhor amiga uma professora
da margem sul do Tejo, muito linda, segundo eles, que, por qualquer motivo,
nunca casara. Um dia, ambas combinadas, decidiram preparar uma prenda ao
marido: fecharam-se no quarto do casal, deitaram-se nuas na cama e, quando ele
chegou do emprego, a mulher mandou-o tomar banho e depois ir ter ali, que tinha
lá uma surpresa. Quando ele voltou, deu com ambas nuas debaixo do lençol, a
esposa referiu-lhe que agora tinha duas à espera dele, para se deitar a meio.
Ele fê-lo, ela desatou a acariciá-lo, ele correspondeu-lhe, ainda confuso,
momentos depois sentiu a amiga a masturbá-lo e, poucos segundos após, a
chupar-lhe o pénis. Foi tão inesperado e sensual que muito rapidamente estava
quase a tingir o orgasmo. A mulher apercebeu-se, parou e disse-lhe: ”Vá,
domina-te, que agora é a minha vez.” Trepou para cima dele, encaixou-lhe o falo
dentro e desatou a mover-se até atingir o clímax. Afastou-se para o lado,
elogiando-o: “Muito bem, conseguiste dominar-te.” E, logo após. “Vá, agora é a
vez dela” – e empurrou-o para a amiga. – “Trata de a satisfazer, está bem?” –
acrescentou. Ele fez por cumprir, dominou-se, apesar de mover-se dentro da
rapariga, para conseguir provocar-lhe o orgasmo antes dele. Ela atingiu-o e só
então ele se soltou para fruir todo o prazer de a possuir. Repara só nos
pormenores do cuidado mútuo, no respeito da posição de cada um no trio, com a
esposa a comandar e a compartilhar. Numa palavra, foi tão bom que daí para a
frente passaram a ter sexo a três regularmente. E sentiam a falta quando não
podiam, como naquela noite.
- Olha! – exclamei eu. – É a
família tradicional chinesa mais comum, com a esposa e a concubina que a
própria mulher oferta ao marido. Entre eles, no oriente, é imemorial. Entre nós
é a primeira que ouço. Curioso é que é pacífica lá e pacífica aqui, pelos
vistos.
- Se tudo for feito
correctamente, no respeito dos laços mútuos, das expectativas que uns têm sobre
os outros, dos afectos que em cada evento forem vivendo, com muito escrúpulo
para não lesarem os papéis que têm na relação, olha, todas as modalidades batem
certo, podem viver-se pacificamente e de modo gratificante. Todas. Mas tu é que
as estudaste, não é?...
- Pois, é da Antropologia
Cultural. Existiram ou existem nalgum lugar. Mas é capaz de ser uma grande
confusão – duvidei, um pouco céptico. – Já viste? Monogamia aqui, poligamia em
Marrocos, bigamia entre os Macondes moçambicanos, poliandria no Alasca, família
matriarcal, com relações íntimas livres para a mulher, no interior chinês,
família de grupo na Índia, sem limite de parceiros, todos mutuamente
cônjuges... Que salgalhada!
- Contudo, minimamente estáveis
todas elas – argumentou a Isabel. – O que quer dizer que todas as modalidades
podem ser vividas construtivamente e de modo gratificante para os
intervenientes. Doutro modo, a humanidade nunca teria enveredado por tantas
alternativas tão contrastantes, nem elas se aguentariam imemorialmente. Mas
aguentam e continuam. É um etnocentrismo flagrante julgar que nós é que somos
os bons, o resto é lixo!
- Mas tudo à mistura?! –
contrariei, confuso. – Acolá é cada qual no próprio mundo, pelo menos. Doutro
modo chocariam, não?
- Não, não – retorquiu o Luís.
– Nos Estados Unidos convive praticamente tudo, sem problema que vejamos. A
dominante é a monogamia, mas os mórmones são poligínicos (cada um pode ter
várias esposas), os esquimós tradicionais são poliândricos (cada rapariga casa
com os irmãos todos dum lar) e nas zonas urbanas, mais anónimas, cruzam-se
experiências de todo o género. – E, parando um instante: - Ora, sabes isto
melhor do que eu!
- Ah, tens razão, naquela
salada há de tudo, já me tinha esquecido. E também os desequilíbrios todos. Há
cada violência! Estou a lembrar-me dos davídicos que se suicidaram em bloco. E
doutros. Então nas seitas fanáticas parece que há permanentemente um chefe que
é polígamo. É uma constante por aquelas bandas. Credes que não há relação, é? É
que, lá como cá, não respeitam os requisitos para os relacionamentos baterem
certo. Então há lesões, há rupturas, há crimes, violências de todos os matizes.
Não tem a ver com as modalidades da relação, mas com a dificuldade de viver
qualquer delas a contento. O problema é o mesmo onde há um modelo uniforme, por
exemplo, o monogâmico que é o nosso. No fundo, é porque não há educação
afectiva nem sexual à altura. É que, quando as há, pelo menos entre nós, no
mundo ocidental, é educar para o preconceito e para a castração. Ora, neste
caso, então é melhor não haver nada, que deste modo os indivíduos terão de
aprender por eles próprios. Só que, depois, dá nisto: infinitas perdas, desvios
letais, preconceitos empedernidos, enfim...
- Era bom – cortou a Isabel -
entender porque bate mal tanto caso. É que o julgamento vulgar podemos
resumi-lo nestes termos: não deu bem porque eles não acataram os bons costumes,
quer dizer, não aplicaram a lei da auto-castração, a reprimir, o juízo de que
tudo aqui é mau e, portanto, pecado. Este é o padrão. Ora, enquanto assim for, não
há resposta, uma vez que a base para o julgamento e o apelo à reconversão é por
inteiro errónea. Fugirem dum erro para caírem noutro? Ainda para mais sendo
este propugnado pela cultura dominante inteira? Não admira que haja tanta gente
a bater com a cara nas paredes. E que o casamento se deslace em cada vez maior
número de casos. Os casais pressentem que isto está mal mas depois como
encontrar alternativa? Solitariamente é quase um milagre.
- Isto vemo-lo melhor – avançou
o Luís – num caso concreto. Por exemplo, de que consta a fidelidade? Versão
dominante: relações sexuais exclusivas dentro do casal. Mas alguém é infiel nos
casos que referi? Rir-se-iam todos de tal coisa. Não, ninguém. Contudo, sem
excepção, têm relações extra-conjugais. Aquele conteúdo do conceito deriva
directamente dos valdevinos que, após se arrependerem de violar tudo e todos,
com o complexo de culpa, se mutilam, se castram. Ora, o conceito ganha logo
outro conteúdo quando se vive a sexualidade equilibradamente integrada na vida
real dos protagonistas. Infidelidade é ludibriar o companheiro, é trair-lhe os
afectos, as expectativas, atropelar-lhe o estatuto e os papéis que desempenha
no relacionamento, é ser dúplice, viver uma realidade e simular outra, é mentir
com uma vida às escondidas... numa palavra, infidelidade é trair a regra do
respeito e acolhimento mútuos, em qualquer que seja o pendor. Não tem, pois,
nada a ver com relações extra-conjugais: estas tanto podem ser uma coisa como
outra, depende de como forem vividas pelo casal.
- Isto altera tudo – meditei
eu. – Como é que ninguém vê? Grande caminhada vocês têm feito!
- Foi desde jovens – comentou a
Isabel – o nosso entretenimento mais apaixonante.
- Até me vejo com a cabeça à
roda! É que, ponderando bem, então, realidades tidas por marginais, suspeitas,
porventura criminosas, podem ser, deste ponto de vista, se calhar,
perfeitamente normais, eventualmente gratificantes e sadias. A prostituição, a
pornografia, a literatura erótica, sei lá...
- Exactamente – afirmou,
convicta, a Isabel. – Nelas nada têm de mal. O mal não está aí, que até poderão
fazer muito bem a muita gente. Olha, animam a vida íntima de qualquer casal
cuja sexualidade caiu na rotina, por exemplo, ou anda inibida por qualquer
preconceito ou restrição de origem exterior. Nós que o digamos, não é, Luís?
- Afirmativo. Eu, por exemplo,
não era capaz de ter uma cópula oral com a Isabel antes de vermos um filme
centrado nela. Olha, para mim, foi uma libertação: não apenas o consegui como
vivemos um dos períodos mais gratificantes eroticamente do nosso casamento. E
não foi caso único. Um diferente foi que nenhum de nós lidava à vontade com a
masturbação do outro, sentíamo-nos de fora, como enjeitados, quando, ao lado,
se acariciava. Pois tivemos a sorte de ver um filme em que os pares se possuíam
enquanto se masturbavam. Excitou-nos tanto que, durante semanas, não tivemos
relações doutra maneira e foi mais um dos grandes períodos de prazer que
partilhámos em nossa vida em comum.
- Mas então onde é que anda o
mal em toda aquela área?
- Na violação dos
intervenientes, quando a houver – continuou o Luís. – Prostituição à força, não.
A enganarem ou aliciarem com falsas promessas, não. A escravizarem, não. A
reduzirem à miséria e à fome para abaterem resistências, não. E assim por
diante.
- Mas sexo por dinheiro... –
resisti eu.
- Se ele o permite, qual é o
problema? - perguntou a Isabel. – É uma das valências dele, mais nada. A ser
utilizada ou não, conforme os indivíduos o entenderem, no projecto de vida
deles. Tão simples como isto. O sexo nele próprio não tem mal nenhum. Se um
indivíduo quiser viver dele, é uma escolha de vida, temporária ou definitiva.
Seja homem ou mulher. Se for uma opção livre integrada num rumo de vida
qualquer, tudo bem, é assim mesmo que deve ser, como qualquer outra faculdade e
potencialidade humana. Só o não vemos desta maneira porque andamos cheios de
teias de aranha nos olhos, dos preconceitos ancestrais.
- Então também não vedes mal na
pornografia, menos ainda na literatura erótica, não é?
- Mal, há sempre, só que não é
nelas. Por exemplo, se num filme sado-masoquista a vítima foi forçada, pior, raptada,
escravizada e se a torturam até à morte, isto é criminoso, do mais grave. E o
filme, nele, pode nem sequer deixar transparecê-lo. Até ser pedagógico, a
mostrar como lidar com tendências daquelas para evitar-lhes a perigosidade e
retirar todo o benefício de tais experiências-limite. Também é mau se o filme
propugnar uma teoria de perversão da sexualidade, de utilização dela de modo
criminoso, (por exemplo, a aliciar vítimas para o crime). Não é a pornografia
que tiver que é má mas a teoria que expõe, a tese que propõe.
- Na literatura, então, é que
não haverá nada de mal, certo?
- Claro que pode haver, não
nela mesmo mas no intuito que houver aí e no uso que lhe for dado. Um exemplo:
um livro para conquistar crianças para integrarem, à falsa fé, uma rede
pedófila ou a prostituição infantil. Tudo pode perverter-se mas tudo é bom à
partida.
Fátima
– 20 de Julho de 2013
Não logro digerir aquilo. É
demais. Será que têm mesmo razão? É uma maneira de ver tão nos antípodas do que
tradicionalmente a Igreja e a cultura ocidental ajuízam em tal matéria que, de
certeza, os fariseus rasgarão as vestes gritando: “Blasfémia!” e os bem
pensantes vestirão de luto. E, se do lado destes não houver mesmo fundamento,
ou melhor, se o fundamento for deveras um enorme complexo de culpa milenarmente
a punir-se, num intérmino sado-masoquismo, de anos de libertinagem abusiva,
violadora, criminosa, por parte de gigantes da igreja (noutros domínios), como
Orígenes, Tertuliano, St.º Agostinho (e certamente muitos mais), quantas
gerações ainda irão ser requeridas para mudar de cultura? Ninguém muda dela
como troca de camisa. Não são apenas os juízos que faremos, mas
fundamentalmente os afectos que eles alimentam e os enraízam, os automatismos
comportamentais que se instalaram e se reproduzem como naturais, sem darmos
sequer por eles, as estruturas colectivas que ali se alicerçam e que mutuamente
se legitimam... Se nada disto tiver justificação, quantas perdas mais hão-de
ser suportadas, quantas lesões ferirão ainda milhões e milhões pelo mundo fora?
Se não tiverem fundamento os
argumentos dos meus amigos, então onde radicam as feridas e o mal-estar da
ordem implantada? Porque é que ela é uma desordem que aprisiona, fere, castra,
amputa estrutural e sistematicamente a vida inteira nestes domínios? Isto não
pode ser remetido à conta de Deus: tem costas largas mas não para nos dar cabo
da qualidade da existência em campo nenhum. A que propósito? Isto seria um
anti-deus e é o que andamos milenarmente a adorar nestes domínios sacrilegamente.
Idolatricamente. Deus não poderá jamais identificar-se com semelhante
arbitrariedade, com tanta negatividade, com tais correntes e algemas que nem o
sado-masoquismo extremado alguma vez impôs tão generalizadamente e de modo tão
persistente. É estranho que os que pretendem escravizar-nos ao natural na
contracepção, aqui sejam o mais anti-naturais possível, sem escrúpulo nenhum!
Enfim, sinto-me perdido. Vou
parar por aqui. Contradições demais para o crânio empedernido dum anão de palmo
e meio.
Temos trabalho para todo o dia.
É bom, a ver se logro acalmar o pó que me tolhe a vista e as emoções. Que volta
dar a uma proposta destas?
Agora é noite e torno ao texto
apenas para anotar a ideia que todo o dia me andou a martelar cá dentro:
felizmente o Papa não tem de falar acerca de nada disto. Nem é tema para
reconverter qualquer estrutura da Igreja institucional, creio eu. Isto é tudo
mentalidade, doutrina, cultura ambiente, clima respirado individual e
comunitariamente. É neste âmbito, portanto, que deverá ser encarado,
fermentado, abordado, evoluído. Ora, quem mexe predominantemente por aqui?
Teólogos, profetas, leigos, todos os agentes que vão revolvendo a amálgama do
mundo. A hierarquia tem apenas de implantar pontes. Não irão ser ágeis neste domínio,
se o itinerário espiritual de quem com ele mexer e viver for convergindo em
teses como as dos meus amigos. Deixemos, porém, que o Espírito fermente a
fornada que nos alimente os amanhãs. Deixemos.
Ora, é aqui que bate o ponto.
Até agora não foi deixado, não há margem de manobra. Os meus amigos seriam
irremediavelmente excomungados, caso fora público (ou tivera público impacto)
tal teoria. Isto, apenas isto, é o que está mal e tem de ser mudado. Todos têm
de ter direito de reflectir, de conferir com os factos a leitura que deles
fizerem, seja correcta ou errada, verificando todos nós que a verdade final é
inatingível, apenas aproximável ao infinito. Como estamos, é-nos proibido
aproximá-la. Urge mudar isto na Igreja para ser Igreja – comunidade a caminho.
Não parada, agrilhoada a qualquer cadáver de antanho.
Fátima
– 21 de Julho de 2013
Hoje é domingo. Durante a
eucaristia matinal na nossa igreja-navio, então aberta à comunidade, lembrei-me
de que, sendo o dia de Jesus, o Senhor, deveria partilhar as minhas
expectativas e dúvidas acerca do Veiga e da Mariana.
Há dias visitaram-me e
puseram-me a par do estranhíssimo ponto onde os levou, até agora, o itinerário
da vida interior deles. Vistos de fora, parecem dois ateus, agnósticos ou, no
mínimo, indiferentes. Não têm qualquer prática religiosa, como se diz. De
dentro, porém, são dois crentes profundíssimos empenhados inteiramente numa
Igreja espiritualizada, a revolver até ao limite as entranhas da vida real em
cada dia, em todos os papéis que desempenham, com todos os indivíduos com que
lidam e cruzam
Como é viável uma síntese
destas? Pacífica, numa perene paz de consciência, numa alegria do fundo, diria,
quase, em plenitude, totalmente operante mas sem sinais externos, praticamente,
à margem da vida familiar, laboral e social: tudo aqui dentro em todos os
planos. Que espiritualidade é esta? Fará mesmo sentido? Para eles, faz. Mas
para outrem, para a comunidade crente, para a Igreja institucional, para a
Igreja corpo de Cristo?...
Nunca na vida me vi tão
perdido, no meio desta floresta virgem de caminhos, como desde que me dei a
este labor. E também nunca me encontrei tão desafiado e tão arrebatado. As duas
vertentes são uma vivência apenas, os extremos tocam-se e fundem-se cá dentro
numa realidade única. Como os extremos se fundem no Veiga e na Mariana. Em
campos diferentes, claro, mas é igual o produto íntimo.
Eram dois colegas que não davam
nas vistas, de Filosofia, namoraram desde o meio do curso. Nas reuniões da
Juventude Universitária Católica ficavam nas últimas cadeiras. Nunca os vi
tomar a palavra, discretos e tímidos. Atentos, porém, e muito cordatos nos
convívios. E levavam tudo muito a sério. Pelos vistos, muito mais a sério do
que algum dia me passou pela cabeça.
- É uma secularização radical –
resumiu, duma penada, o Fr. Benedito. – Cristo não pretendia outra coisa, a
Igreja não deve pretender outra coisa, nós não devemos pretender outra coisa. O
que andámos a instituir História além foi sempre em nome disto, foi este
fundamento que o justificou, embora na prática a encobrir com manto de
santidade intuitos mesquinhos inteiramente alheios, às vezes bem mais
rasteiros, egoístas, materialistas. Quando não criminosos.
- Por exemplo? – interrompi-o.
– É que não estou a ver nada, para variar.
- Como julga que despontou o
clero como classe privilegiada? Como é possível ter-se legitimado isto que está
nos antípodas do que Cristo pretendeu? Como é que se copiou toda a estrutura
hierárquica do Império Romano, com o Imperador-deus no topo, sem nenhum rebate
de consciência? É o mais alheio que podemos imaginar ao espírito cristão. Uma
estrutura de poder, de domínio, de coerção, com direito de vida e morte sobre
os indivíduos, com direito de salvar e perder os súbditos para a eternidade?
Que é que Jesus tem a ver com tal monstro? A pretender dominar o mundo pelo
poder soberano, não a converter os corações? Cristo onde morará no meio disto?
Poderíamos continuar a lista o dia inteiro. Mas foi a pretexto de secularizar a
mensagem, a fermentar o Reino de Deus. É por isto que é tão difícil de
desmascarar. O Veiga e a Mariana atacam-no melhor: incarnam ao vivo o caminho
alternativo, até ao extremo onde logram atingir. Pelos vistos, que os não
conheço, creio eu. Ou conheço?
- Mas não é muito arriscado o
trilho por onde se meteram? Sem sacramentos, sem rituais, sem comunidade...O
apoio é o que a vida lhes traz.
- Justamente, irmão Ambrosino.
Os sacramentos, os ritos, os textos bíblicos, a comunidade dos crentes e tudo o
mais são mero apoio. Apoio apenas. O que importa é a vida ir incarnando o
Espírito, a partir da interioridade, cada vez mais profundamente, dia a dia
mais autêntico, com o quotidiano a ficar gradualmente transparente a Ele,
flexível e moldável pela sua inspiração, de modo que a lida inteira O irradie
como uma aura que rodeia o indivíduo. Isto é que é o objectivo de tudo. Se
estiver ausente, então aquela manta de rituais fica sem alicerce, é uma
alienação institucionalizada, uma cortina que nos veda a porta para Deus, em
vez de nos pôr a caminho dEle. A eucaristia, por exemplo, substituiu, na grande
multidão, a descoberta de Jesus: “Já fui à missa, já cumpri a minha obrigação,
estou santificado, já não preciso de fazer mais nada.” Ponto final. Em lugar de
levar ao itinerário interior e transformação da vida, cristaliza
definitivamente o ponto onde alguém estiver. Com a agravante de o tomar por
santo, por mais pecador ou até criminoso que em concreto seja.
- Mas eliminar tudo? Não é
desligar-se da fonte? – insisti, preocupado.
- Eles repudiam-no, julgam-no
ilegítimo? Ou não?
- Ah, não, pelo contrário. Até
participam ocasionalmente. Olhe, na morte dum irmão dela integraram-se com a
família, amigos e vizinhos na missa e no enterro. Uma forma significativa de
“estar em comunhão solidária com todos no mais relevante” – foi como mo
referiram. E são meditadores, com a técnica muito apurada e com a oração
integrada nela. Não cumprem é nenhum ritual preciso, regular e estabelecido nem
neste âmbito em particular. É ao sabor das conjunturas, conforme a vida vai
requerendo, se bem entendi. Eu por mim julgo que ficaria perdido, acabaria
esquecendo-me e, quando fora dar por ela, já teria abandonado tudo. Quer dizer,
não me refiro aos rituais, devoções, sacramentos e quejandos, mas à própria
vida espiritual. É isto que eu temo que lhes venha a ocorrer.
- O risco é real,
evidentemente. Por isto é que temos a panóplia inteira da liturgia, não é? No
caso deles, porém, com a caminhada tendo ido já tão longe e com tanta
autenticidade, não creio que venha a haver algum problema. Pelo contrário, tudo
indica que irão é mesmo cada vez mais longe e mais fundo, sem paragens nem
desvios. São dois santos leigos, inteiramente incógnitos, traçando um rasto de
luz pela vida além, iluminando tudo e todos em redor, pegando o fogo do
Espírito em toda a lenha do mundo por onde caminham. É uma pequena maravilha.
Até a mim me encanta.
- Sabe, o meu desconforto é que
sinto que, de alguma maneira, isto torna tudo o mais inútil. Que fica da
Igreja, não é? Não somos precisos para nada... Para quê o Magistério, a
pastoral, por exemplo?
- Pois, não fica nada porque
fica tudo. E não somos precisos porque somos muito, muito precisos. Nunca
fomos, aliás, mais, não é verdade?
- Pronto, lá está a fazer pouco
do pobre anão! Sabe muito bem que é um disparate pegado e que eu não entendo
nada. Vá lá, ponha as cartas na mesa, tudo bem explicadinho, que senão eu fico
inteiramente em branco e a culpa é sua, Fr. Benedito. Estraga-me o domingo
inteiro.
- Ora, é clarinho como água! Se
todos conseguirem recobrir as pegadas do Veiga e da Mariana (e, quando digo
todos, digo a Humanidade inteira) então para que é que precisaríamos da igreja
institucional, com tantas estruturas, organismos, instituições, movimentos,
congregações, iniciativas, grupos, comunidades e assim por diante? Para nada.
Teríamos atingido a secularização completa, estaria a consumar-se o projecto de
Cristo, de Deus (e da Igreja, enquanto lhes é fiel). Tudo aquilo murcharia por
inútil, acabada a tarefa de vez, a contento do Espírito que a anima. O projecto
de divinização da vida real, de construção do Reino de Deus na terra, estaria a
ocorrer, finalmente, onde deve: na amálgama inteira da realidade secular, em
todos os planos e com toda a gente e ali a desenvolveríamos. A Igreja ter-se-ia
tornado no Corpo Místico de Cristo incarnado, aliás, incarnando mais e mais
pelo mundo além, rumo ao Infinito.
- Então não é preciso de todo
nada daquilo, isto é que era de promover. Ou não é?
- Não, não é. Toda a Igreja
institucional foi nascendo e crescendo para promover a secularização do
Espírito, através da vida interior de cada um, rumo a uma autonomização adulta,
madura e completa do respectivo rumo de vida, impelido pela espiritualidade em
todos os domínios em que em concreto intervenha. No limite, todos caminhariam
como o Veiga e a Mariana, com pé firme e seguro, auscultando bem o íntimo e
seguindo-lhe os apelos furtivos e discretos, num perene diálogo do exterior com
a interioridade, a realimentar-se um à outra permanentemente, numa caminhada ao
infinito. Sem jamais parar, sem nunca tergiversar. Como lograr isto sem toda a
Igreja institucional? O Veiga e a Mariana também os conheceste enquanto
participavam nela, não é verdade? Então... É justamente para isto que ela
serve. E quem nos dera que se tornasse inútil por haver consumado a tarefa
algum dia! É uma utopia inexequível de todo. Mas é bom tê-la diante dos olhos,
quanto mais dela nos aproximarmos, mais fiéis estaremos a ser ao nosso mandato
de cristãos e ao projecto de Cristo.
- Estou meio perdido. Então
porque não fazemos nada disto? Nos mandamentos da Igreja é pecado não ir à
missa ao domingo, não se confessar ao menos uma vez por ano, não comungar pela
Páscoa... Isto anda tudo ao contrário.
- Pois anda. Sabe? Era uma
tentativa de prevenir as fragilidades dos povos. Mas foi muito canhestra e não
logrou furtar-se à vontade de poder, de domínio sobre todos, por parte da
hierarquia, do clero. Duas realidades que nada têm a ver com cristianismo
nenhum, foram e são, institucionalmente, a perversão do dever de servir, a
diaconia de mediar, de criar pontes, permanentemente, a ligar todos com todos. Infelizmente,
a História inteira tem promovido o contrário. Agora andamos a tentar arrepiar
caminho, com o exemplo convicto e sem vergar dos últimos Papas. Já não era,
aliás, sem tempo! Mas ainda falta generalizá-lo na rede completa, não é? E
destruir o clero como classe social.
- Oh! Isto é no campo do
ecumenismo. Agora no encaminhamento dos fiéis não vejo por ora nada. Eu, por
mim, fiquei baralhado com o Veiga e a Mariana. Que faria o resto da Igreja!
Ninguém vê ponta de tal nem o promove, creio eu.
- Claro que não. Séculos e
séculos a instituir o contrário, como é que doravante virariam do pé para a
mão? Aliás, o clero, como classe, para se manter, tem de propugnar o inverso:
quanto mais infantis e dependentes os crentes, mais subservientes e disponíveis
para a tosquia regulamentar. O clero e a nobreza de antanho, é ver quem esfola
mais o desgraçado do campónio ancestral, acorrentado a crendices. Séculos e
séculos. Sem ou com muito poucos rebates de consciência. Porque é que somos
duma ordem menor? Porque S. Bento, S. Domingos e S. Francisco não lograram
tolerar mais aquele estado de coisas no tempo deles. Tudo renasce, porém,
permanentemente, é de todos os tempos. E, aqui como no mundo civil, quanto mais
o poder se torna totalitário, mais desconfia da cultura e mantém quem for culto
debaixo de olho. Apenas os ignaros o garantem descontraído. Logo, importa-lhe
promover e preservar a ignorância o mais possível, ao menos no domínio da
religião e da Igreja, para lhe não roubarem os pergaminhos. É humano e
compreensível, embora nada cristão. Porque é que julga que a eucaristia foi em
latim até ao Concílio Vaticano II? E houve o Índex dos livros proibidos?
Ninguém entendia nada, pura magia secreta. Era exactamente o que convinha.
- Mas é horrível uma coisa
destas! O ideal da Igreja transformado na promoção da carneirada acrítica,
acéfala, num seguidismo às cegas, para benefício duma classe de parasitas, a
viver no ócio pela manipulação sem escrúpulos das multidões. Que horror! Também
não é tanto assim...
- Pois não. É deste modo e ao
contrário também. Sempre, em todas as épocas. Os dois pendores coexistem e
coexistirão até ao fim dos tempos. Nós, aqui no convento, e toda a nossa Ordem,
temos o dever de fomentar o sinal contrário, para isto somos frades
mendicantes. E as demais ordens, cada qual no ramo dela, igualmente, embora nem
todas convirjam neste pendor.
- Mas também acumulámos
riquezas, tesoiros incontáveis. Foi tudo por trairmos?
- Olhe, em primeiro lugar, não
é por termos brotado da rebelião contra aquela perversão milenar que ficamos
isentos dela. Todos pecamos e a Ordem, a nossa e todas as mais, cai na tentação
muitas vezes, tanto individual como colectivamente. As refundações periódicas
não têm outra origem. Depois, os teres e haveres apenas são maus quando forem
mal geridos. Como tudo na vida. Finalmente, é de não esquecer nunca que, quanto
mais temos maior é a tentação de escorregar na perversão de manipular para o
conservar ou aumentar ainda mais, não é? Isto sem contar com os oportunistas
que vêem na Igreja uma grande carreira, firme e sem freimas, e que muito
cinicamente se infiltram sem escrúpulos nem crenças de qualquer jaez, senão um
egoísmo ilimitado. Antigamente tivemos alguns Papas que não foram mais do que
isto. Ateus materialistas agarrados ao poder, às riquezas e às benesses a fruir
dali pela vida adiante. Onde acumularmos tesoiros, os ladrões arranjam logo
maneira de roubá-los. Da base ao topo, como já experimentámos pela História
fora. “Vigiai e orai para não cairdes em tentação” nunca foi mais oportuno do
que neste domínio. As quedas aqui, para além de sistemáticas e estruturais,
chegam a ser institucionais. E permanentemente repetíveis pelos séculos
adiante. E hoje como ontem.
- Quer dizer, o Veiga e a
Mariana não proliferam porque não convém a esta mole de privilegiados, à
hierarquia, numa palavra? A Igreja é dominada por uma rede perversa, como se
uma quadrilha a tivesse conquistado e ocupado o poder? Que visão, Fr. Benedito!
- Exactamente, é mesmo isto,
com a reserva apenas de que em geral os respectivos sustentáculos estão de boa
fé. Têm é uma vida interior muito pobre, não alimentam espiritualidade viva
nenhuma, apenas formalismos. Portanto, ainda não entenderam nada, embora
julguem que estão perfeitamente certos e que o que há para operar é o que eles
operam. Padecem de mui grave miopia espiritual, não enxergam um palmo diante do
nariz. Mas ai de quem lhes desdenhe dos galões! Atiram-lhos logo à cara. Por
isto há tantos expulsos, suspensos, destituídos, transferidos... Enfim, é a
guerra permanente entre as duas ladeiras, melhor, entre os que teimam em trepar
e os que pretendem manter ou jogar abaixo quem persiste em voar. E não haverá
jamais vitória definitiva de nenhum dos lados.
Aqui parei, hesitante e meio
amedrontado. É que não vislumbro ganhos no campo da autonomia de raiz dos
crentes. Nós andamos é a ser batidos em todas as frentes. Qual não há vitória
de vez de nenhum dos lados? A Igreja institucional anda a infantilizar o mundo
inteiro há gerações e gerações. E a mantê-lo acorrentado a preconceitos, regras
e imposições infundados e injustificáveis. Então o praticante é o que cumpre
ritualmente liturgias?! E o que cumpre espiritualmente uma vida interior
permanentemente a caminho, cada vez mais profunda e irradiante, a ponto de
ultrapassar ritualismos e liturgismos de mera casca sem conteúdo, sem mais
sentido? Este não é um praticante? Porque não presta preito à classe dominante
do clero? Não paga vassalagem ao suserano? Arrepiei-me todo. Ainda não largámos
a Idade Média...
- Nós temos é a guerra perdida!
- desabafei de repente, num gesto de desânimo.
- Ora, porquê?! Conheceu-os, ao
tal Veiga e à Mariana. São fruto de quê? Alguém lhes logrou transmitir a
mensagem no meio do vespeiro e eles entenderam-na. Estão a ser-lhe fiéis dum
modo tão brilhante que até a si o desnorteou. O fermento anda a correr por aí
de mão em mão. Onde encontra a boa fornada leveda-a e dá frutos. Quantos mais
não haverá? Eu, se os vir, nem sequer imaginaria. De fora parecem ateus
indiferentes, não vão em rituais e liturgias, não é? Têm as deles, muito
privadas e inteiramente integradas na vida, de fora ninguém dará por elas. Só
de constatar isto apetece-me cantar, palavra! Um caso destes faz-me ganhar o
dia, o mês, o ano! Obrigado, irmão Ambrosino, isto é a alegria de viver
inteira! Alegre-se! Que o mundo às tantas anda por aí cheio deles e ninguém
sequer o adivinha.
- Ai! Que é que me está a
esconder? Para tanta euforia...
- Esconder?! Nada, não! Já
falámos disto há uns tempos atrás: é o atalho para o Além. Lembrei-me, de
repente, de que eles, os seus amigos, são meditadores e que oram daquela
maneira por dentro da vida quotidiana. Foi o que acabou de me relatar. É o
trilho que todos seguem no movimento que anda a espiritualizar a cultura
mundial, cruzando as igrejas, as religiões, os ateísmos, os agnosticismos... É
um itinerário planetariamente trilhado, à espera de que as confissões lhe
escancarem as portas sem reservas: é a busca da espiritualidade íntima mais
autêntica atingível por cada um, o que é comum a todo o homem nascido e visado
simultaneamente por todas as crenças. Ora, esta gente está no carreiro do Veiga
e da Mariana e são muitos milhões pelos continentes além.
- É mesmo?
- É mesmo. Apenas não entendo
porque não somos todos também meditadores, porque é que os seminaristas não
aprendem a meditar deveras, com toda a técnica e rigor. Porque é que os padres
e os bispos não frequentam cursos, retiros destes. Porque é que não fomentam
isto em todas as comunidades e paróquias, em todos os organismos e serviços. Para
termos “grupos de oração” em todo o lado deste molde (como Lorna Byrne lhes
chama).
- Não seria um bocado demais? É
uma moda. Daqui a uns anos quem irá falar nos meditadores? Vê neles outras
pernas para andar? Com tanto entusiasmo...
- Têm, têm outras pernas. E que
pernas! De duas ordens, ainda para mais.
- Explique-me.
- Primeiro, sabe que já
suspeitávamos e os textos apócrifos confirmam que S. João Baptista integrava
uma comunidade (de género monástico) que era perita, entre outras vertentes, em
meditar? Com técnicas idênticas às praticadas hoje em dia? Mais: os apócrifos
dão vários indícios de Jesus os frequentar no período anterior à vida pública.
Isto permite entender melhor o contexto do baptismo no Rio Jordão. Ambos
estavam ligados, para além do parentesco de primos, por vivências idênticas em
idênticas comunidades. Que esperamos nós para lhes seguir o exemplo? Não é
verdade?
- São as duas ordens de razões?
- Não, não. Isto é apenas a
primeira. A segunda, que venho conferindo e confirmando todos os dias, numa
infinidade de casos, tantos que já lhes perdi a conta, é que esta técnica de
meditação-oração deita abaixo as barreiras que impedem a comunicação com o
mundo espiritual. Todas as potencialidades de cada um se desbloqueiam, manifestam
e desatam a desenvolver-se, às vezes de modo espantoso.
- Esta das barreiras... não
entendo. Que barreiras? O crente crê, o descrente não crê. Barreiras?!
- É outra coisa. Olhe, para
tornar a falar apenas da que para mim é mais surpreendente, grande parte dos
praticantes da meditação comunicam ali com entes queridos que faleceram,
vêem-nos, falam com eles, inter-comunicam, recebem indicações, às vezes
orientações decisivas para a vida. De repente caiu a barreira opaca da morte,
daquém e dalém tudo se torna mutuamente transparente. E são aos milhares, só
entre nós. Agora imagine pelo mundo inteiro. Milhões? Centenas de milhões? Ignoro,
mas que isto é lindo, é. Que maravilha! E é-nos dado hoje em dia assistir e
partilhar de tudo. Há revoluções individuais de extremo a extremo.
Evidentemente, com vivências destas...
- Então deveríamos entrar
todos. Uma coisa assim!...
- Pois, pois. Mas sem
expectativas. Cada qual tem os próprios dons. E não há dois iguais. É ir
predisposto a acolher o que o Espírito nos queira dar, seja lá o que for. Se
não houver novidades, é a lição de Tomé: “Crês porque viste. Bendito o que não
vir e crer.” Em muitos casos é Jesus que aparece e há quem não pretenda outra
coisa senão vê-Lo. Então finda fechado ao que é próprio dele. Não mandamos no Além,
também aqui. É acolhê-lo sem reservas e segui-lo no que entenda remeter-nos ou
propor-nos. A pedra de toque, nisto como em toda a vida espiritual autêntica, é
a humildade perante o Infinito que se nos desvele em qualquer que seja o pendor.
- Vamos então arranjar maneira
de entrarmos na onda? Também queria, Fr. Benedito. Não se esqueça do anão, está
bem?
- Certo, acho que vou tentar.
Vou tentar. Prometido.
Também aqui o Papa Francisco
nada mais tem a fazer do que deixar que tudo corra, que o Espírito encontre
porta franca, que ninguém O tente aprisionar ou substituir-se-lhe, feito deus
às três pancadas. Quanto ao mais, por parte dele, é participar e partilhar,
emprestar a força do exemplo para que tudo se desmultiplique, entusiástico,
pelo mundo inteiro. Mais nada. E é quanto bastará. E será muito, muito deveras.
Deus queira!
Frei
Anão, meu amigo:
Quando ouvi que o Papa
Francisco nomeara uma comissão de cardeais para estudarem a reforma da Igreja,
nem sequer me tinha ocorrido algum dia escrever à volta do tema. Nem aquilo me
motivou.
Tinha lido há tempos O Vaticano Contra Cristo e por aqui
ficara informado da mediocridade e perversão instaladas, do vespeiro insano que
tende a submergir o topo da hierarquia eclesiástica e todas as instituições que
por ali enxameiam. Mas verificara simultaneamente que a denúncia provinha dum
grupo de cardeais dos quais apenas um, já reformado, dava a cara. Os outros
protegiam-se com o anonimato da fúria das represálias. Não era, portanto, mera
teoria, era perversidade ao vivo e a fazer sangue, pretendendo cobrir-se com o
manto insuspeito da fé, da inocência e da moralidade. E, pelos vistos, ai de
quem lhe levante a máscara e lhe exponha a podridão a público! Ora, a denúncia
vem de dentro. É bom e cria alguma esperança...
Conhecia da comunicação social
os escândalos do Banco do Vaticano, os suicídios, as mortes suspeitas, as
prisões. E as interrogações. Perguntara-me que é que isto tem a ver com
cristianismo. Onde é que o cristianismo chegara para se identificar com
baixezas destas. Pior, para alimentá-las e se alimentar delas. Hoje vivo na
expectativa de ver o que irá resultar da nova comissão nomeada pelo Papa
especificamente para extirpar este cancro.
Lera em Um
Voo Sensitivo de Alexandra Solnado que muitos (a maioria?) no Vaticano
querem remodelar, recuperar a espiritualidade genuína, mas não vêem o que
fazer, como efectivá-lo. De que maneira dar a volta a tudo aquilo? De facto, a
Igreja institucional é uma máquina de proporções tão gigantescas, tão
monstruosa, que ninguém a logra abarcar nunca na totalidade. Tentá-lo deixa
qualquer um mal disposto. Vira, em Este
Jesus Cristo Que Vos Fala, da mesma autora, como ela se vira canhestra ao
escrever cartas aos mentores do Santuário de Fátima e ao Papa. Que é que alguém
entende disto, por muito boa vontade que tenha?
Quanto a mim, por aqui me
ficaria. Tinha apenas algumas vagas ideias acerca do que poderia ser feito.
Daquelas que toda a gente tem, basta parar nisto alguns minutos, não é verdade?
Nada que justificaria um livro. Nem, menos ainda, qualquer pretensão de
pertinência. Que voz tem um leigo à margem? Nem que fora perito, quanto mais...
Contudo, o homem põe e Deus
dispõe.
Estávamos a assar umas douradas
para o almoço aqui na esplanada de casa, já depois da uma da tarde, aproveitando
o sol de Maio, o mês das aparições de Fátima. Eu punha a mesa enquanto a minha
mulher vigiava o lume e o peixe. A brisa era fresquinha, a contrastar com o
calor que apanháramos um pouco antes, nas espreguiçadeiras, a bronzear a pele
para curar as articulações e conter as alergias. Estava a acabar de alinhar os
talheres e servia os copos de vinho quando tudo principiou.
De repente entrou-me pela mente
dentro o senhor, Frei Anão, meu amigo, com o corpo e ademanes daquele que a
memória logo me evocou, de há decénios, e com que convivi no convento em
Fátima, durante o meu curso de Teologia. Irrompeu com o modelo inteiro do
romance, numa estrutura pronta e ser escrita. Apanhou-me tão desprevenido que
parei o que estava ordenando, olhei para a minha mulher que não dera por nada e
apagava prestes o lume que estrugia do carvão, ameaçando queimar as douradas.
Fiquei um pouco perplexo e
deixei uns dias a ideia a amadurar cá dentro. Não era porventura pelas minhas
propostas vagas que aquilo me vinha. Por outro lado, não sentia qualquer pulsão
de procurá-las mais a fundo, de pesquisar, ler ou reler o que quer que fora:
era um empurrão para me sentar e escrever, mais nada. E um enorme atractivo
para executar isto mesmo, com uma expectativa de profundo gozo, de vir a ser
muito gratificante. Foi um íman afectivo poderoso, o que me deixava perplexo
porque não me vinha mais nenhuma ideia, mais nenhuma precisão, nem sequer um
encadeado de temas, de vertentes, nem de perspectivas relativas a qualquer
pendor.
A pulsão e o atractivo
mantinham-se, entretanto, se é que não aumentavam. Convenci-me de que deveria
obedecer. E aprestei-me para me colocar diante do papel, sem nenhum vislumbre
do conteúdo rigoroso que poderia ocorrer, da mensagem a transmitir, afinal. Não
seria, definitivamente, minha. Tinha, porém, uma ideia genérica, com a
impressão de que poderia ser a chave: era a da plena liberdade de pensamento e
de expressão que a Igreja propugnava para fora e nunca admitia para dentro. Esta
contradição secular é um escândalo gritante e tão flagrante que não dá para
entender, como não dá para entender o sepulcral silêncio à volta dela dentro de
portas. Anda tudo cego? Estão todos mudos? Era o fio condutor de que dispunha à
partida. O meu.
Porque me convenci de que era a
chave que abriria em cadeia as portas todas, não faço ideia. Meteu-se-me na
mente e pronto. Donde me veio, quem ma plantou no meio do alfobre, também
ignoro. Foi, porém, o aguilhão a picar-me para andar, apesar do meu mastigado
passo de boi, relutante e renitente em fincar-se no chão firme, nada de
aventuras por mundos ignotos.
Finalmente, convicto, abri o
caderno e anotei a data. Fiquei parado, um pouco interdito, sem vislumbrar bem
o que escrever. Então encontrei o comportamento condutor que me poria a ponta
da meada na mão. Da primeira e, depois, de todas as vezes, mormente quando
repentinamente ficava com a mente em branco, sem uma palavra a adiantar, sem um
sentido a abrir caminho. E quantas vezes foram!
Qual foi ele, o tal
comportamento? Invoquei-o, amigo anão, e a todo o universo espiritual, a todos
os que, do reino de Além, quisessem e me pudessem ajudar nesta aventura à
descoberta. E o resultado aqui está: meu, que dele sou o autor; não meu, que me
veio donde nem sequer logro imaginar. Sei lá bem o que é o outro mundo!
Verdade é que antes nunca
pensei em nada disto, muito menos o vislumbrei sequer em qualquer nesga. As
precisões rigorosas que a cada degrau pontuam, dobra a dobra, o terreno nunca
as encontrara anteriormente. Não as conhecia, nem sabia que eram viáveis, nem
sequer que existiriam. Isto deixa-me desconcertado, mas é assim. Anão amigo,
caixinha de surpresas, hein?
Nunca tinha sentido na pele o
que Neale Walsh, das Conversas com Deus,
conta da maneira como elas lhe ocorreram: sentava-se diante do papel cheio de
perguntas e dúvidas e sem nenhuma resposta. De repente estas desatavam a jorrar-lhe
da ponta da esferográfica, à medida que as ia escrevendo e voltando a
questionar, surpreendendo-o permanentemente, até porque muitas vezes desdiziam
as ideias feitas e os preconceitos instalados de que ele partia ingenuamente
convencido. Isto não vinha manifestamente dele.
Apenas agora verifiquei o que
tal era (aliás, estou-o verificando aqui mesmo, enquanto escrevo este remate).
Frei Anão, meu amigo, é mesmo divertido! Seja feita a vontade de Deus,
definitivamente. E deixo-me conduzir, abandonado, tornado o mais possível mero
instrumento fiel e laborioso. E o gozo que dá!
Primeiro, não é minha a cadeia
de temas abordados que nem sei qual nem quais são, uma vez que ainda não revi o
rascunho e não pude decorá-lo ao correr do lápis. Tudo se entrosa, creio eu, mas
o encadeado também me surpreendeu, embora à partida suspeitasse que havia de
resultar deste modo. Retive apenas o quadro geral de referência temática.
Nos primeiros aspectos, a
reforma, afinal, antolha-se tão simples que espanta como ainda se não viu de
que pende preso o desvio instalado. Basta uma medida de nada, uma abolição duma
lei abusiva, por exemplo, e todo o castelo de cartas desatará a desmoronar-se.
Era naquela presilha que se pendurava a perversão, a corrupção, o pecado
institucionalizado. Descosida ela, cai por terra todo o mal que suportava. O
que importa é detectar onde estão estes apagados pontos críticos, escondidos e
camuflados em norma, para os extirpar de vez. Custa a crer, porventura, que
provoquem tanto impacto encadeado. Contudo, os pontos nevrálgicos têm isto de
característico: suportam na insignificância deles uma estrutura inteira – desfeito
o nó, deslaça o tecido, seja qual for o tamanho do rolo.
Quando desatei a escrever,
julgava que, Frei Anão, meu amigo, apenas pretendia abordar aquelas vertentes e
que, terminadas elas, o aguilhão deixaria de me picar o costado a dar-lhe voz.
Enganei-me redondamente.
Uma vez findas, dei comigo de
repente à frente do papel em branco sem tema. Mas sentia que não terminara. Era
para continuar, mas com quê? Parei, concentrei-me e invoquei-o, amigo anão, com
quantos do reino espiritual me quiseram laborando nesta floresta virgem. E tão
repentino como o apagão, eis uma nova listagem de temáticas que me deixaram
perplexo. É que, quando, ao escrever ou meditar, me ocorrera qualquer delas,
sempre as arredara, que não eram para aqui chamadas, não teriam nada a ver com
reforma e menos ainda com refundação da Igreja.
Afluíram-me, porém, múltiplas à
mente então. É porque eram, portanto, para ser abordadas. Eu não via nada a
fazer sentido mas, obedientemente, pus mãos à obra. E, claro, logo à primeira,
vi quanto andava enganado. Eram conteúdos espirituais da vivência, práticas
individuais e comunitárias, vectores de cultura religiosa alienada e alienante
que terão de ser reconvertidos, à escala de continentes inteiros, à escala
planetária. Não depende de leis, regulamentos, instituições, organismos...
Apenas dos intervenientes e participantes. O Papa, a Cúria, o Tribunal
Eclesiástico...? Afinal é simples: requer-se-lhes que se não constituam em
obstáculos, que não ergam barreiras à caminhada do Espírito através do mundo. E
que não legitimem a obstrução, não deixem mais que outros o façam como, afinal,
tantas vezes tem ocorrido nestes dois milénios de Igreja institucional, sempre
tão distante da Igreja corpo de Cristo, sempre a pecar, sempre a arrepender-se,
sempre a ter de reconverter-se, até à consumação final. Tudo por uma Igreja
humilde, sem triunfalismos de tipo nenhum. Sem hipóstases, fisicalismos,
verdades acabadas em campo algum, antes, ao invés, com tudo e todos em
peregrinação rumo ao Infinito, inatingível em absoluto mas indefinidamente
aproximável. Uma Igreja a caminho da ressurreição de cada um e da Humanidade e,
connosco, do Universo inteiro. Deste Universo que sofre as dores do parto à
espera da revelação dos filhos de Deus que somos nós, todos os homens, por
qualquer que seja a via, religiosa, indiferente ou ateia. Que o Espírito mexe
com cada qual, não discrimina ninguém e é urgente reconhecê-Lo, onde quer que
ande revolvendo os fundamentos.
E de novo se esgotaram os
temas. E de novo senti que era para continuar. E de novo me encontrei em branco
perante a folha de papel. E de novo orei a quenquer que me pretendia na tarefa.
E de novo me atingiram os vectores derradeiros. Desta feita fiquei mesmo
amedrontado: eram de virar a cultura ocidental de pernas para o ar, eram de
virar a cultura religiosa milenar literalmente do avesso. Se é para fazer,
porém, fá-lo-ei.
De Roma depende apenas não
deixar-se embarcar em condenações, perseguições, excomunhões, explícitas ou
veladas. E, mais uma vez, não permitir que outrem o faça, tanto quanto lhe
estiver ao alcance. Velar pelo respeito dos Direitos Humanos, sempre entre nós
violados impunemente, em nome da ignorância a manter ou cultivar nas multidões
crentes e submissas.
Agora aflorava um homem novo a
semear, por ora quase inexistente. Meta longínqua a visar em vários campos
tremendamente sensíveis, moral e espiritualmente. Áreas que são tabu dentro e
fora da Igreja. E que, embora tais, me constatei impelido a denunciar como
erróneas de raiz, traidoras da construção e libertação humanas. Dou-as como me
vieram, como se me impuseram, provoquem o escândalo que provocarem, arrastem as
rejeições que arrastarem. Eu próprio me descubro hesitante. Mas se o Céu o
entende e quer deste modo, quem sou eu, quem somos nós para termos o topete de
O rejeitar, a pretensão de mandar nEle? Situe-se embora nos antípodas donde
estamos, temos é de O acolher, agradecer e seguir em frente, pelos inesperados
caminhos abertos diante a que nos convida. É que mais libertações de escravos
aí virão, como sempre, não é verdade?
Ao fim e ao cabo, porém, isto é
um romance, portanto, uma ficção. Todo o entrecho, todos os personagens, todas
as reviravoltas são imaginárias. Contudo, os conteúdos doutrinários, as
conjunturas eclesiais, as vivências, todos são escrupulosamente reais. Como os
autores apontados, as obras, as referências bíblicas e literárias. Os
problemas, os desafios, as distorções e perversões - o pecado está aí a
apodrecer o coração das multidões. Inteiramente real, para desgraça nossa. Mas
igualmente os fermentos, muitas vezes tão minúsculos que nem por eles damos. Só
que andam a transformar o húmus inteiro do território humano. São, portanto,
realidade. E carregada de futuro.
Caro amigo, Frei Anão, a
alegria que esta viagem me deu! Tão absorvente desde o princípio que minha
esposa se viu muitas vezes preterida, quando não ignorada, ao correr da
aventura. Tive de explicar-lhe a violência com que me sentia impelido, para ela
poder compreender e acatar, embora ocasionalmente relutante. Não estaria a
tornar-me obcecado, não era mesmo demais? Quem é que alguma vez escreveria
desta maneira, tão enclausuradamente, horas seguidas, dias seguidos,
semanas?...
Ao ouvir-lhe os ocasionais
remoques compreendi na carne o que repetidamente ouvimos de Alexandra Solnado
nos cursos e encontros que promove pelo País: “Tenho a impressão de que Jesus
está com muita pressa, ele pressiona muito, é tudo para ser feito já!”
Exactamente. Foi o que vivi
durante estes meses. Sem stresse nenhum, antes com inefável deleitamento. A
ponto de perder a noção das horas, até das refeições. “Senhor, é bom estar
aqui. Queres que montemos tendas para por cá ficarmos?” Como eu compreendo os
discípulos que treparam com Ele ao Monte Tabor! Se isto que é tão pouco me fez
aquilo, imaginem o que não era o arroubamento daquela visão real!
Frei Anão, meu amigo, muito
obrigado.
Aroeira, 22 de Julho de 2013
Bartolomeu Valente