I PARTE
ALVORADA
Caminho
Quando encontras um caminho
Sem obstáculo nenhum
Cuida que talvez, maninho,
Não leve a lugar algum.
Novidade
Sinto-me a cada momento
Aqui nascido, jucundo,
Do novo para o invento,
A nova eterna do mundo.
Constrói
Qualquer ave constrói ninho
E qualquer aranha, teia,
Só o homem constrói caminho
À amizade que o rodeia.
Paz
Um caminho para a paz
Rumo é que não adivinho.
O rumo que é mais capaz
É que a paz é que é o caminho.
Loucuras
Em todas as estações
Há flores, tonalidades,
Como há loucuras que apões
Sempre a todas as idades.
Coração
O fundo do coração
Fica mais longe e mais fundo
Do que quanto houver à mão,
Mesmo mais que o fim do mundo.
Bem
Ruído faz pouco bem,
Atropela-me o ouvido.
Ao invés, como convém,
O bem faz pouco ruído.
Vero
Não é por quanto reclama
Que o vero amor se conhece.
Só conhecemos quem ama
Por aquilo que oferece.
Demoras
Pela rua do “já-vou!”
Que a demora tanto junca
Chega-se cá donde estou
Depressa à casa do nunca.
Falar
Para falarmos ao vento
Quaisquer palavras dão sobras.
Se ao coração falar tento,
Então são precisas obras.
Onde
Quando para onde iremos
Não sabemoss nem tratamos,
É certo que nos perdemos
E longe nunca então vamos.
Mentira
Quanto mais ela revida,
Mais, medida, é insanidade:
- A mentira repetida
Não se transforma em verdade.
Noite
Sempre a noite sem estrelas,
Na mais fria escuridão,
Já prenuncia janelas
De aurora em germinação.
Rir
Para a alegria surtir
Todo o efeito que contém
Deveremos sempre rir
Com alguém e não de alguém.
Humor
O bom humor é que espalha
Felicidade, jucundo,
Não a riqueza que calha
Haver acaso no mundo.
Consciência
Parem de bater-me à porta
Com pregões ou com fanais:
- Mais a consciência me importa
Do que a opinião dos mais.
Perpassarmos
Perpassarmos pela vida
Sem lhe ver nunca o sentido
É na biblioteca a lida
Sem nunca um livro haver lido.
Tu, flor
Trinta e quatro anos
A caminhar vida
De acertos, de enganos,
(Descendo a subida,
Trepando a descida),
Trinta e quatro anos
A caminhar vida...
Muito a vida deu,
Muito nos falhou,
Mas de meu e teu
O nó que se deu
Jamais desatou.
Muito a vida deu,
Muito nos falhou!
Juncámos a estrada
De beijos e abraços
A cada jornada,
De ternura traços
Que atam nossos laços.
Juncámos a estrada
De beijos e abraços.
Úlcera furada?
Costela fendida?
- Não há derrocada
Que nos quebre a ida:
São nova partida
Úlcera furada,
Costela fendida...
Quem recolhe a flor
Só cheira o perfume,
Ignorando o odor
Do que foi o estrume,
Mas o amor o assume:
- E, no fim, tu, flor,
És toda perfume!
Medos
O que faz que hesites
Traindo teus credos?
- Tu só tens limites
Porque tu tens medos.
Felicidade
Quando a partilhamos,
A felicidade
Com bem mais verdade
A multiplicamos.
Mudar
O motor maior
De mudar o mundo
É o educador
Ao se dar, fecundo.
Adivinha
Somos duas, somos duas,
Somos duas muito frágeis.
Fechamos ao mundo as ruas
Com dois batimentos ágeis.
R.: as pálpebras
Adivinha
Nunca a mim me ameiam
E depressa esqueço.
Quando me nomeiam,
Eu desapareço.
R.: o silêncio
Belo
Não te queixes da estranheza,
Que a estranheza tem um ganho:
Olha na cara a beleza,
Como o belo é sempre estranho.
Amanhã
O amanhã não é jamais
Dia para descobrir,
É para inventar a mais,
Que hoje é de nele investir.
Terra
Quando a Terra está doente,
Não há mais saúde humana:
Das curas a mais premente
É a da Terra que se dana.
Cimeira
A verdade verdadeira
É tão cimeira que invade
Além do que grade em jeira:
- Nunca há verdade, em verdade.
Esperança
Cultiva o que mais te alcança
A esperança a amanhecer,
Que viver sem esperança
É o que cansa de viver.
Um
Às vezes apenas falta
Um só que ficou de lado
E a falta fere tão alta
Que o mundo é despovoado.
Dois
Dois serão os infinitos:
O Universo e a estupidez.
Todos tem esta os quesitos,
Aquele terá talvez...
Mudas
De ti parte, não te iludas,
Qualquer terreno fecundo:
Em ti faz aquelas mudas
Que mudar queiras no mundo.
Adivinha de Édipo
De manhã tem quatro pernas,
Ao meio-dia tem duas,
À noite, com bênçãos ternas,
Três terá, saindo às ruas.
R.: o Homem
Amar
Amar é sofrer.
Para o evitar
Não podes amar.
Sem amor viver
É, porém, a par,
Por igual sofrer...
O enguiço quebrar
Não logra quenquer.
Ora, o amor gratificante
Paga o que houver a pagar,
Toca a vida para diante.
E, no balanço final,
Sempre o bem compensa o mal.
Bens
Por bens de qualquer cariz
Morrem, matam, que desdoiro!
- Para nós vida feliz
É o nosso maior tesoiro.
Adivinha
Do que o cérebro maiores
Tem os olhos apurados:
Que animal de tais pendores
Os graus tem dos dois trocados?
R.: o avestruz
Saber
De saber não há resquício
Em quem saber tudo cria:
Ter dúvidas é o início
Da plena sabedoria.
Amado
Ter amado e ter perdido
É bem preferível fado
A nunca ser pretendido
Ou a nunca ter amado.
Arroteia
Actua o que o sonho alcança,
Arroteia em todo o lado.
Quem só vive de esperança
Morrerá desesperado.
Imito
Quando imito quem é bom,
A ser bom aprendo a ser.
Se dum tigre mimo o tom,
Aprenderei a morder.
Vive
Sonha tal se tu viveras
Sempre uma eterna manhã.
Vive tal se tu morreras,
Se morreras amanhã.
Nunca
Não nos devemos lembrar
Daquilo que acaso demos
Sem nunca esquecer, a par,
Aquilo que recebemos.
Fatia
Fala pouco, que a quem cala
A melhor fatia coube:
O conhecimento fala,
A sabedoria ouve.
Prática
Tem coragem e te arrisca,
Põe em prática a vivência.
Tudo ganha quem petisca
Os frutos da experiência.
Actos
Aquele que é superior
É, no discurso, modesto.
Distinguimos-lhe o valor
Dos actos por mor do apresto.
Aprendo
Aprendo com a vitória
Muito pouco em quanto anota.
Muito aprendo e com memória
É sempre com a derrota.
Empréstimo
Não herdo a Terra dos pais,
Embora me atem cadilhos.
Tomo-a de empréstimo mais,
De empréstimo a nossos filhos.
Adulto
Em todo o adulto a criança
Anda escondida a espreitar,
A testar quando é que alcança
Cá fora vir a brincar.
Toma
De todos o mais esperto
É o que se toma por tolo
Por mês uma vez, sem dolo,
Ao menos e mais decerto.
Adivinha
Sou mui rápido e não tenho,
Não tenho perna nem asa.
Difícil é ter-me ganho
Em corrida quem me apraza.
Quem o fizer, faz-lhe engulho
Então tremendo barulho.
Vens apanhar-me? Impossível!
Vens ver-me? Sou invisível!
Quem serei eu, quem serei
Assim tão fora-da-lei?
R.: o som
Mão
Poderás cair sozinho
Mas, para te levantar,
Precisarás, no caminho,
De a mão te um amigo dar.
Vulcão
Se em teu coração tu fores
Lava, estrondos dum vulcão,
Como esperar que haja flores
Que então dali nascerão?
Murmuram
“Está mal, mas paciência...”
- Murmuram vozes letais.
Não, que importa a consciência,
Não opiniões dos mais.
Arriscas-te
Se não fazes companhia,
Mereça alguém ou não dó,
Aarriscas-te a, qualquer dia,
Seres tu quem fica só.
Educa
Educa as crianças bem,
A não serem uns estultos,
Não vá ser preciso, além,
Punir depois os adultos.
Libertar-te
Não poderás da violência
Libertar-te sem receio
Senão com a paciência
Da não-violência por meio.
Alegria
O dever realizado,
O bem que houvermos cumprido
De alegria são traslado
Duma vida com sentido.
Ausência
Seja embora o desespero
Uma ausência que me acua,
De ausência alguma me abeiro
Mais ausente do que a tua.
Mentira
Por perigosa que fira
A mentira em que voguemos,
Mais perigosa é a mentira
Que a nós próprios nos dizemos.
Reside
De ser feliz o segredo
Reside na liberdade
E ao segredo desta acedo
Na coragem que me invade.
Integridade
Integridade é fazer
Aquilo que estiver certo,
Mesmo se ninguém a ver
De longe houver nem de perto.
Vento
O pessimista se queixa
Do vento, enquanto o optimista
Que este mude espera e deixa.
Aparte destas sequelas,
Porém, anda o realista
Que aos ventos ajusta as velas.
Caminho
Se estiver muito difícil
Um caminho de encontrar,
Não busques bomba nem míssil:
-Faz teu caminho, em lugar!
Feliz
A felicidade é o bem
E de feliz as matrizes
Para ser feliz alguém
São de outros tornar felizes.
Tive
Que do amor que tive eu diga,
Não que ele seja imortal
(De fogo breve tem liga
Que apaga ao menor sinal...),
Mas que, enquanto dure, o fito
Cumpra de ser infinito.
Beco
O que um beco sem saída
É apenas é um bom lugar,
Não para teimar na ida,
Para de volta voltar.
Grandeza
A grandeza do ideal
Não é nunca a de atingi-lo,
Mas a de lutar por tal.
Após tudo o que se tente,
Atingi-lo é simplesmente
Um presente porque fi-lo.
Condição
De lágrimas são meus frisos,
De sorrisos, sonho à ida:
As lágrimas e os sorrisos
São a condição da vida.
Permite
As artes são a mentira
Que, furando a opacidade,
Permite a quem a confira
Conhecer mesmo a verdade.
Gramática
Só na gramática, a sério
Poderemos prestar preito
Ao que seria o império
Do tempo mais que perfeito.
Escravos
Do silêncio donos somos
Cultivado em nossas lavras
Mas escravos dos mil tomos,
Tomos das nossas palavras.
Patrão
Laborava, laborava
Todo o dia em plena empresa
O patrão da vida escrava,
A fronte erguida, a mão tesa,
E de António se chamava.
Do outro lado do mundo
Ouve um dia que vivia
Mestre de saber profundo.
Acorda nele a alegria,
António sonha, jucundo.
E o entusiasmo é tanto
Que vende a empresa e a casa
E, de todos para espanto,
Feito andorinha, bate asa
Mundo fora, sem quebranto.
Ao tecto do mundo chega,
Busca o mestre com afã,
De dia, se tal adrega,
De noite até de manhã,
Que o sonho é lume que pega.
À choupana desejada
Chega, enfim, aonde mora
O mestre duma alvorada
Que na vida lhe demora,
Que lhe dê nova largada.
“De longe venho” - lhe diz-
“Esta viagem inteira
Através do mundo fiz
Para uma questão cimeira
Lhe colocar de raiz.”
“Uma só?! Pois está bem.
Diz-me então qual é a pergunta!”
- E o mestre olha para além
O Todo onde tudo junta,
Surpreso do que ali vem.
“Só que tenho de ser claro
Na pergunta que fizer”
- Ao António, um frio raro
Fá-lo inteiro estremecer. -
“ Mas noutra língua, reparo,
Não sei como perguntar.
Posso perguntar na minha?”
“Podes.” Porém, devagar,
Foi-se o mestre, pois que tinha
Uma só resposta a dar,
Só uma questão a atender.
Comentou, porém, à porta:
“Quando algo queiras saber,
Teu coração é que exorta,
- Ele é que irá responder.”
Presente
Aqui presente, inauguro
O futuro enquanto viva:
O presente do futuro
É a perene expectativa.
Pesar-lhe
A mulher é perigosa:
Sempre a si própria como isco
Disposta a usar-se, dengosa,
Quem não vai pesar-lhe o risco?
Pobretana
Pobretana miserável
Sob a chuva aos tropeções
É o homem nada notável
Que viva sem ambições.
Casa
O Manel das Obras, quando
Se viu sem tecto nem renda,
Foi dormir por entre as cobras,
Dos penhascos numa fenda.
“Tua casa ergue de cacos!”
- Diz-lhe um anjo entre os buracos.
Quando acordou, foi juntando
A cacaria em redor,
Telha quebrada, o nefando
Vidro que nos rasga a dor,
Pratos e jarras partidas,
Mil desperdícios das vidas.
Vai transformando em beleza
Todo o caco desprezado,
É parede, ombreira tesa,
É uma empena com telhado...
Durante quarenta anos
Fintou da vida os enganos.
Os vizinhos reparavam,
Afirmavam que era louco.
Mas os turistas passavam
E paravam, pouco a pouco,
No espanto daquele gánio
Que lograra tal convénio
De tirar dos lixos arte,
Mais conforto e rumo à vida.
E ele nunca pôs de parte
A transmutadora lida:
O caco colou final
Com anos noventa e tal.
Depois morreu, como todos.
E, afinal, todos vivera,
Pois todos, de mil e um modos,
Dos lixos de cada era
Tentam erguer vida fora
Quanto o mundo rememora.
Fugir
De si próprio não pretenda
Fugir (opção perigosa)
A uma esperança de lenda
Aferrando-se dolosa.
Hora
Quando a hora de mudar
Auguramos que chegou,
Logo iremos repassar
Quanta perda nos magoou.
À medida que mais velhos
Ficamos, a nossa quota
Cresce em difíceis artelhos
Para a lonjura da rota.
Mas o tempo experiência
Nos deu para superar
Da derrota esta evidência,
Para mais longe rumar.
Logo, de rever preciso
Por igual esta ladeira,
A do cume que igual viso,
Embora doutra maneira.
Se só vislumbro a derrota,
Vou ficar paralisado.
Se só vitória se nota,
Creio-me um deus aqui nado.
Precisamos, pois, das duas
Vertentes desta montanha,
Para ir trepando às luas
Que, ao final, ninguém apanha.
Lagarta
Uma lagarta rasteja
A vida inteira no chão.
Olha os pássaros que inveja,
Indignada do destino,
Da forma gorda e sem tino
Que lhe demarca a função.
“Sou, de toda a criatura,
Uma das mais desprezíveis,
Repugnante, sem altura,
Feia e sempre condenada
A rastejar, degradada,
Por lamas inacessíveis.”
Mas um dia a natureza
Pede que faça um casulo.
E a lagarta se despreza,
Assustada, pois jamais
Fizera coisas que tais:
“É uma campa, ali me anulo.”
Tal túmulo ao construir,
Prepara-se para a morte.
A revolta de existir
Não a impede de clamar
Por Deus tanto a maltratar:
“Já viram a minha sorte?
Quando enfim me acostumei,
O Senhor o pouco leva
Com que em vida me bastei.”
Tranca-se desesperada
No casulo e, inconformada,
O fim aguarda na treva.
Uns dias depois, porém,
Repara em si transmudada
Na borboleta que tem
A mais linda das texturas:
Asas de cetim e puras
Já luzes da madrugada.
Pode volitar nos céus,
Ser dos homens admirada.
Então a espantam de Deus
Os desígnios insondáveis:
São os inacreditáveis
De que a vida anda talhada.
Melhorar
“Quero melhorar a vida
Mas não consigo deixar
De no pecado cuidar,
Querer a fruta proibida”
- É minha queixa constante
Do inspirado mestre diante.
“Ai como está quente aqui!”
- Responde-me ele e, soprando,
Se abana de vez em quando. -
- “Vai lá fora e traz dali
De vento fresco um bocado
Para a sala, num braçado.”
“Mas é impossível, ó mestre!”
“Pois de igual modo é impossível
Não pensar no apetecível,
Por mais que um homem se adestre.
Mas se sabes dizer não
Sempre a qualquer tentação,
Elas não vão, afinal,
Provocar-te nenhum mal.”
Decisão
Se houver uma decisão
A ser tomada por nós,
Ir por diante é o guião,
O efeito sofrendo após.
De antemão jamais sabemos
A consequência qual é.
O adivinho que visemos
Aqui perde sempre o pé,
Que as artes divinatórias
São só de aconselhamento,
Nunca são premonitórias,
O porvir feito é de vento.
Conselheiras quanto baste,
São péssimas profetizas.
Após o que, pois, jogaste,
Larga-te ao sabor das brisas.
Reza esta pedra angular:
“Faça-se a Tua vontade!”
Quando a Vontade mostrar
Um problema, sempre ele há-de
Trazer junto a solução.
Se um adivinho lograra
Ter o futuro na mão,
- Que feliz tal jóia rara!
Fogo
É de inveja, amor ou ódio
O que for qualquer paixão.
De fogo divino um bródio,
É fogo na escuridão,
Com apetite de eterno.
E, no escuro o fogo emana,
Para o céu ou para o inferno,
Da fundura de alma humana.
Esquecimento
Se inventas o esquecimento,
Inventas, no que ele arquive,
Sempre, momento a momento,
A morte do que ainda vive.
Fora
A vida inteira à procura
Lá por fora, lá por fora...
A vida inteira a loucura
De crer que a alegria mora
No gesto de abrir postigos
À fímbria do amanhecer,
Em esperar nos abrigos,
Supor que ao abrir qualquer
Janela viria a entrar
Algo eterno dentro em nós
Que ir-nos-ia transmudar
E nosso ia ser após.
Uma vida inteira a ver
Passar o mundo diante
E o mundo defronte a ser
Calado, imóvel, constante,
De tarde amarelidão,
De manhã branco e luz de oiro.
E nós sem vermos que não
Basta a termos um tesoiro
Abrir ao amanhecer
As portadas da janela.
Estar disposto requer
Àquela efémera tela,
Fugidia, imprevisível,
Requer sempre aprisioná-la.
E nem sequer é possível
(O que, afinal, mais abala)
Nascer isto a já sabê-lo,
Nascer a estar já disposto
A apanhar tudo em novelo,
Dando a vida após o gosto.
Perto
“Há muitos anos procuro
A minha iluminação
E que estou já perto auguro.
Qual a próxima estação?”
O mestre a isto responde:
“Como é que tu te manténs?”
“Ainda não logrei onde
Sustentar-me com meus bens”
- Contesta logo o aprendiz,
No encolher de ombros de tédio. -
“Meu pai e mãe são quem diz
Que aqui me mantêm nédio.”
“Pois bem, teu próximo passo
Olhar é de frente o sol
Um meio minuto escasso”
- E do céu lhe aponta a mole.
O discípulo obedece.
Quando acaba, o mestre pede
Que o campo lhe descrevesse
Que em redor lonjuras mede.
“Não consigo vê-lo” - diz
O discípulo ofuscado. -
“Do solar brilho a matriz
Pôs-me aqui encegueirado.”
E o mestre, serenamente:
“Um homem que apenas busca
A luz e deixa pendente
O dever é uma patusca
Busca de iluminação.
Acaba por não lograr
Luz que lhe clareie o chão,
Não há nada a iluminar.
Aquele que mantiver
Os olhos presos no pego
Da brilhante luz solar,
Fixo no Sol, fica cego.”
Viajante
Um viajante percorria
O vale muito cavado
Da serra onde discernia
Um rebanho apascentado.
Partilhou com o pastor
O alimento que levava.
Permaneceram um ror
De tempo à beira da cava
Do fragaredo, a falar
Da adivinha que era a vida.
“Se eu em Deus acreditar,”
- O viajante, a voz delida,
Comenta, meditabundo -
“Teria de crer também
Que não sou livre no mundo,
Já que Deus é que mantém
O governo de meus passos.”
O pastor então o leva
A um alcantil cujos traços
Abismais são funda treva
Onde se podia ouvir,
E com toda a nitidez,
O eco dum discurso a vir
Ter com quem primeiro o fez.
“Os penhascos são a vida
E o grito de cada um,
O destino que o convida”
- Diz o pastor ovelhum. -
“Aquilo que nós fizermos
Trepa ao coração de Deus.
Logo após, em certos termos,
No-lo devolvem os céus.”
E remata em tom pacato:
“Deus tem por costume agir
Como um eco do meu acto,
Para o melhor prosseguir.”
Longe
Chegou longe o viajante.
Tarde acorda para o encontro,
Chega à rua e, logo adiante,
Repara no desencontro,
Na embirração do destino:
O carro foi rebocado
Por polícia em desatino.
Chega, pois, muito atrasado.
Prolonga-se, após, o almoço
Mais do que houvera previsto.
“A multa será que posso,
Na má fortuna a que assisto,
Pagar do pouco que tenho?”
De repente se recorda
Da nota, fortuito ganho,
Que, dos peões entre a horda,
Colhera, no chão perdida.
“Acaso apanhei a nota
Antes de a quem foi devida?
Acaso a tirei da rota
De quem deveras precisa?”
Quer-se então ver livre dela.
Sentado na pedra lisa,
Um mendigo se arrepela.
Logo a nota ele lhe entrega.
“Um momento, eu sou poeta.
Vou pagar-lhe, não na adega”
- Diz-lhe o poeta, a voz discreta -
“Mas com uma poesia.”
“A mais curta, estou com pressa”
- O viajante anuncia.
O mendigo então começa:
“Se você continuar vivo
Nesta oca correria,
Veja: nunca chega, esquivo,
Nunca chega onde devia.”
Discípulo
“Tenho passado o meu dia”
- Diz o discípulo ao mestre -
“Pensando o que não devia,
Sonhando, não no que adestre,
Mas no que não é de ansiar
Ou fazendo planos loucos
No que não é de planear.”
O mestre leva-o, aos poucos,
Pelo trilho da floresta,
Junto ao tugúrio que habita.
O dedo a uma planta assesta:
“Sabes o que esta concita?”
“A beladona?” - retruca
Com segurança o aluno. -
“Pode matar quem manduca
As folhas de que me muno.”
“Não pode matar, porém,
Quem a contemplar apenas”
- Comenta o mestre, indo além
Com as passadas serenas. -
“Da mesma maneira, pois,
Os desejos negativos
Nenhum mal causam depois
A quenquer que, dentre os vivos,
Se não deixe seduzir
Por eles, por mais que o tentem.”
E do poente a mal luzir
O alvor ambos já pressentem.
Aldeia
Nesta aldeia de montanha
Existe aquela ladeira
Que no fundo o vale apanha.
À tarde, dela se abeira
Um velho que a sobe e desce.
A um turista que ali trepa
À primeira nem lhe acresce
Ver do velho a rija cepa.
Ao lá tornar, vê que o homem
Se cruza sempre com ele.
Quão mais férias o ali tomem
Mais pormenor a que apele:
A roupa, a boina, a bengala,
Os óculos, os chinelos...
Se na aldeia pensa ou fala,
Já do velho é com anelos.
Com ele uma vez conversa:
“Nas montanhas em redor
Morará o Deus de que versa
O espanto deste esplendor?”
E o velhinho, repousando:
“Deus vive em qualquer lugar”
- Disse, sábio, meditando -
“Onde o deixarem entrar.
Deus é, de todos os modos,
Qualquer que seja a ladeira,
Sempre o mais velho de todos
Que te cruza ignoto à beira.”
Fogo
Certa noite, ao atear
O fogo de campo, alguém
Sério pôs-se a meditar
No encanto que o lume tem.
“O roteiro espiritual
É como a fogueira que arde
Ante nós ao vendaval.
Quem a ateia, como à tarde,
Quando os paus amontoámos,
Conforma-se, ao acendê-la,
Com o fumoo acre dos ramos,
Desagradável sequela,
As lágrimas a arrancar,
Tolhendo a respiração.
É a conquista singular
Da fé que temos à mão.
Porém, uma vez aceso,
O fumo desaparece,
A chama ilumina o teso,
No calor tudo se esquece.”
Alguém então perguntou:
“E se acenderem o fogo
Para nós? Se em mago voo,
Alguém tolhe o fumo logo?”
“Quando alguém isso fizer,
Um falso mestre será.
Leva o fogo onde quiser,
Apaga-o, se o quer, de lá.
E, como não ensinou
Ninguém a acendê-lo, então
Deixa os que incapacitou
- O mundo - na escuridão.”
Retirou
A mulher com os três filhos
Retirou para uma herdade,
De alma para atar cadilhos
Rumo à espiritualidade.
Porém, em menos dum ano
Se apaixona e recasou,
De meditar colhe o arcano
E pela escola lutou
Para os filhos que levava.
Fez amigos, inimigos,
Um dente que cariava
Ignorou, correu perigos,
Em tempestades, nevões,
Boleia apanhou fortuita,
Repara ao carro os travões
E a descongelar, gratuita,
Canalizações aprende,
Estica, estica a pensão
Até que a todo o mês rende,
Pois do desemprego então
O escasso fundo os mantém.
Janelas calafetadas
É aquilo que nunca tem,
Mas ri muito, às gargalhadas,
Quanto chora em desespero.
Uma capela constrói,
Repara a casa, o quinteiro,
E as paredes, se algo a mói,
Pinta, ensina a contemplar...
“Acabei por entender
Que a vida tecendo a orar”
- Comenta a quem o quiser -
“Não pode significar
Nunca,
nunca, isolamento:
O amor de Deus desmedido
Tanto é que a cada momento
Nos impõe ser dividido.”
Porta
Diz o mestre ao aprendiz:
“Quando o caminho começas,
Vês uma porta que diz
Qualquer coisa nas travessas.
Volta e conta qual é a frase.”
O discípulo à procura
Parte sem que nada o atrase.
Chega então à porta escura,
Lê, mas retorna interdito.
“No começo do caminho
Aquilo que estava escrito
Era, mal me vi sozinho,
Só: “isto não é possível” -
- Diz, contrafeito, admirado.
“E onde é que isso era legível,
Na porta ou no muro ao lado?”
“É na porta” - responde ele.
“Põe a mão na maçaneta,
Abre a porta que repele,
Impõe tua acção concreta!” -
- Diz o mestre e é obedecido.
Como o lema está na porta,
Ao abri-la é removido
Para trás: já não importa,
Nunca mais ele o vai ver.
E o discípulo, confiante,
Logo a se robustecer,
Segue enfim para diante.
Imagina
Imagina um bando de aves
De pombas a esvoaçar.
Quantas então, sem que as traves,
No bando vão ter lugar?
Serão cinco, dez ou vinte...?
Seja qual for a resposta
Ninguém consegue o requinte
De segura a ter suposta.
Podemos imaginar
De pássaros sempre um bando,
Mas deste o número, a par,
Foge ao controlo em que mando.
Era a cena realista,
Clara, definida, exacta.
Que é que faz que nunca exista
Resposta a quantos, na errata?
Quem definiu quantas aves
Deverão aparecer
Na cena que tu te graves?
- Não foste tu nem quenquer...
É na fímbria do mistério
Que há sempre um segredo etéreo.
Vislumbra
Vai um jovem de visita
À gruta dum eremita
A ver se vislumbra o traço
Do antigo primeiro passo
Daquela sabedoria
Que eterna dele irradia.
“Preciso de saber qual
É o primeiro espiritual
Degrau que devo trepar
Rumo a me plenificar” -
- Pede ele ao santo eremita.
Este logo então o incita
A ir à beira do poço,
Mirar-se até ao pescoço.
Enquanto o jovem se mira,
Pedras o eremita atira
Pondo as águas a ondular.
“Não posso em mim reparar
Enquanto brinca, jucundo,
A atirar pedras ao fundo” -
- Queixa-se ele, com razão.
“Tal e qual” - diz o outro então -
- “Como em águas turbulentas
Não vês o rosto que tentas,
Éimpossível buscar Deus
Se a mente estiver de seus
Anseios demais farrusca
Para dar conta da busca:
Este é que é o primeiro passo.”
E o adeus é o deste abraço.
Gume
Como o gume do formão
A entalhar-me experiências,
Preciso é ter ambição
Para encher-nos as carências.
Bambu
O discípulo estranhava
Quando o mestre vergastava
De bambu com a varinha
Quem distraído se tinha
Durante a meditação
(E que, a pedi-lo, ergue a mão!).
“Arcaico medievalismo,
É como absurdo que o crismo.”
Só mais tarde percebeu
Que ele é que era ali sandeu.
Muitas vezes é preciso,
Para tomarmos juízo,
No plano físico pôr
O que era espiritual dor,
Para vislumbrar o mal
Que ela causa a cada qual.
As terríveis consequências
De negativas consciências,
De algum negro pensamento,
Não as vemos de momento,
São percebidas mais tarde
Quando o inferno já em nós arde.
Tais pensamentos doendo
No plano físico, entendo
Como me trarão abalos
E acabo por evitá-los.
Terapeuta
Ao terapeuta o paciente
Vai queixar-se, envergonhado:
“Tenho um dedo diferente
De tanto tê-lo chupado
E não consigo parar...”
“Não ligue” - o outro responde. -
- “Doravante vai chupar
O dedo que corresponde
Da semana a cada dia,
Cada dia um diferente.”
Ora, cada vez que ele ia
Com a mão tocar um dente,
Lembra-se, tem de escolher
O dedo que, no momento,
Objecto deverá ser
Dum olhar agora atento.
Antes da semana finda
Finda curado do mal.
Se o mal é um hábito ainda,
É difícil e fatal
Não saber lidar com ele.
Porém, se a atitudes novas
Doravante nos impele,
Decisões, escolhas, provas,
Então temos consciência
De que afinal, sem remorso,
Não nos resta paciência,
Já não vale a pena o esforço.
Sibilas
As Sibilas escreveram
Nove livros a narrar
De Roma o porvir que leram
Em feitiços de enguiçar.
Levaram-nos a Tibério.
“Quanto custam?” - quis saber
O dono do grande Império.
“Cem oiros” - a responder
Se uniram as feiticeiras.
Ele expulsa-as, indignado.
Fugindo, queimam, ligeiras,
Três livros do todo dado.
E voltaram, repetindo:
“Continuam a custar
Cem moedas.” E ele, rindo,
Voltou-as a rejeitar.
Três livros queimam de novo,
Voltam com os três restantes:
“Cem e vê o porvir em ovo.”
Curioso, Tibério, dantes
Tão renitente, a pagar
Acaba os livros que restam.
Porém ler só vai lograr
Restos que ao porvir mal prestam.
É que não regatear
Com uma oportunidade
De viver é o singular
Jeito que mais ganho grade.
Torres
Não estou interessado
Novas torres de Babel
Em construir, empenhado,
Desculpando o meu papel
A pretexto de chegar
Até Deus um qualquer dia.
Serão sempre de enganar,
Seja de cimento a guia,
Sejam os textos sagrados,
Com os velhos rituais
Ou com os novos tratados
De científicos sinais
Duma existência de Deus.
Torres que tais, todas elas
Levam a escalar os céus
Desde bases sem estrelas,
Escuras e solitárias.
Do alto dão visões da Terra,
Ao céu não vão mercenárias
Mãos nenhumas, nada o aferra.
Tudo, pois, que conseguimos
É uma eterna confusão
Das emoções que sentimos,
Línguas baralhando o chão.
Ponte para Deus, só fé
E o caminho, humano amor
Na alegria e dor até,
Que é sempre um feliz cantor.
Rabis
Dois rabis tentam levar
Conforto íntimo aos judeus
Que nos campos, a penar,
De concentração sandeus
Sobrevivem dos nazis
Às humilhações mais vis.
Durante dois anos, mortos
De medo, os perseguidores
Enganam e seus confortos
Dão aos crentes seguidores.
Correm dois anos ilesos,
Um dia, porém, são presos.
Um dos rabis, de pavor
Do que pode acontecer
Dali por diante, um ror
De orações desfia, a ver
Se tolhe o medo e o perigo
Conjura ao tredo inimigo.
Já o outro, bem ao contrário,
Passa os dias a dormir.
“Por que é que, tão temerário,
Assim andas hoje a agir?”
- Pergunta, mui assustado,
O que olho nem tem pregado.
“Para poupar minhas forças.
Sei que irei precisar delas
Doravante, se te esforças
Neste esconso a acender velas”
- Diz-lhe o outro, muito calmo,
A ocupar do catre um palmo.
“Mas tu não estás com medo?
O que pode acontecer
Não sabes?! Não é segredo!”
- Torna o primeiro, a tremer.
“Tive medo até à hora
Da prisão. Porém, agora
Que estou preso, que adianta
Temer o que já ocorreu?
O tempo que o medo implanta
Acabou, deu no que deu.
Agora o que nos alcança
- Será o tempo da esperança!”
Falta
À tua falta de vontade
Falta vontade deveras,
Ou um risco te persuade
Que é vontade e são quimeras?
Falar com desconhecidos
Não falas, seja conversa,
Sejam contactos temidos,
Ou desabafo o que versa.
E depois sempre julgamos
Que bem melhor foi assim.
Ninguém a ajudar findamos,
Nem a vida ajuda ao fim.
Que importantees pareçamos
A distância faz de nós,
Muito seguros, fintamos
Nossa insegurança após.
Mas na prática impedimos
É que de nosso anjo a voz,
Através doutrem, dos cimos
Se manifeste até nós.
Eremita
Um velho eremita chão
Foi um dia convidado
À corte do rei que então
De maior era apodado.
“Eu invejo um homem santo
Que de pouco se contenta” -
- Comenta o rei, com encanto.
“Vossa majestade inventa.
Eu invejo-o por com menos,
Menos que eu se contentar” -
- Diz o eremita, aos acenos,
O rei a cumprimentar.
“Como pode dizer isso
Se este império me pertence?!” -
- E o rei quase perde o viço
Do dito que o não convence.
“Justamente, justamente” -
- É do eremita a resposta -
- “Tenho o coro permanente
Das esferas, costa a costa,
Tenho os rios e as montanhas
Do mundo inteiro em redor,
Tenho a Lua, o Sol, tamanhas
Estrelas, só de me impor
Que Deus em meu imo tenho.
Vossa Majestade o treino
De reinar tem só por ganho:
- Tem apenas este reino!”
Palavra
Queria a palavra certa
De dizer o que vislumbro
Quando és minha porta aberta
Daquilo em que me deslumbro.
És um pedaço de Deus
A caminhar a meu lado,
Mais céu que todos os céus
Que o mundo hão acobertado.
Teus olhos são para ver,
Mas bem mais para ser vistos:
Há um infinito qualquer,
Quando os olho, em meus registos.
“Amo-te” é tão pouco e tanto,
Diz o que diz e não diz:
És mistério em cada canto,
Não o alcanço por um triz.
Pois tu, no que és mais além,
Afloras profundidade
E eu, sempre este pedro-sem,
Nem te espelho a identidade.
Amo-te, mas tão deveras
Que amor é palavra oca
Do vislumbre das esferas
Que em ti capto em minha toca.
Ermitão
Perto de Soria
Existe uma ermida
Na rocha esculpida
Onde um ermitão,
Só, se refugia
Em contemplação.
Vai um peregrino
Procurá-lo, à tarde
De outonal destino.
Ele, sem alarde,
Todo hospitaleiro,
Acolhe-o, partindo
Um naco de pão.
Logo vai seguindo
A passo ligeiro
Um riacho no chão.
Diz que vá com ele:
Vão colher alguns
Cogumelos lá.
Mas no trilho eis já
Um jovem imbele
Sem modos nenhuns:
“Santo, tenho ouvido
Que a iluminação
Ao que andar perdido
Não se alcança, não,
Senão se não tiver
De carne comer.
Faz algum sentido?”
“Ledo antes aceita
O que a vida oferta”
- Comenta o ermitão. -
“Não peca a receita
Contra o imo alerta
Nem contra o torrão
Que tão bem te aleita.”
Lar
Como a melhor das famílias,
Temos excentricidade
E jovens impetuosos,
Há discussões e quezílias,
Membros voluntariosos...
- Temos um lar de verdade!
Efeito
O presente não contém
Nada mais do que o passado
E o que como efeito advém
Já na causa me era dado.
Açude
No agora-aqui prefiguro,
Do tempo no açude alteado,
Que a corrente do futuro
Mergulha já no passado.
Adquirido
O que inauguro,
Previdente:
Futuro
Adquirido pelo presente.
Solitários
Por mais que mais solidários
Tentemos ser e sem medos,
Mais nos deixam solitários,
Sempre mais, nossos segredos.
Curada
Por mais que finde danada
Da vida nas contradanças,
É qualquer alma curada
Ao brincar como as crianças.
Marcado
Marcado pela rotina,
Testemunhos invalido
Se a prova lhes não atina
Que espero de quanto lido.
Tão convicto da justeza
Ando de meu julgamento
Que invalido (e com certeza!)
Provas se lá não o alento.
Nada que mereça o nome
De verdade, na verdade,
Pode vir dali que eu tome,
Tanta é a minha necedade.
Poder
O poder de Deus qual seja
Pouco importa, que o aspecto
De absoluto não poreja,
Todo-poderoso tecto.
Antes é o que se coloca
Ao nosso nível humano
E aqui se limita à toca
Na qual com Ele me irmano.
Afastar
Muitas vezes começar
Por afastar da cabeça
As questões fará limpar
O coração mais depressa:
Do coração as mazelas
Fáceis ficam, sem sequelas.
Além
Quando além da dor presente
Nada vês do que se avista,
Perdes Deus, provavelmente,
De vista.
Dor
A dor tem capacidade
Nossas asas de cortar,
Impedindo de voar.
Se tal eventualidade
Muito tempo persistir,
Poderás mesmo esquecer
Que um outro porvir te quer
Para voar a seguir.
É que tu foste criado
Para voar por todo o lado.
Crescer
O apetite, singular,
Rejeita às vezes petiscos:
Crescer implica mudar
E a mudança envolve riscos.
Trabalho
Não é o trabalho suado,
No final,
Mas o propósito sonhado
Que o tornará especial.
Medo
Pelo medo dominado
Quem viver é de supor
Liberdade em nenhum lado
Encontrar nunca no amor.
Contendo-o
Há quem creia que amor cresce,
Quem cresce é o conhecimento,
O amor só se expande e desce
Contendo-o a cada momento.
É o amor, em quanto impele,
Do conhecimento a pele.
Julgar
Julgar não é destruir.
Julgar,
Apontando já o porvir,
É tudo repor no lugar.
Convicção
Nunca se pratica o mal
Tão perversa, integralmente
E com alegria total
Como quando é feito assente
Em distorcida e brumosa
Convicção religiosa.
Vínculo
Se não olho além os céus,
Perco o vínculo superno:
Assim que abolimos Deus,
Tornou-se deus o governo.
Mas, se o vínculo mantenho
E Deus, afinal, à trela
É o que quero por meu ganho,
É o diabo a sentinela.
Por qualquer das duas vias
Nunca um além é presente:
Na primeira nem o vias,
Na segunda porque mente.
Verdade
Da falsidade
As simulações
Que quantidade
De combinações!
Qualquer verdade,
Qualquer,
Só tem um modo de ser.
Forçado
Regato ou ribeiro,
Só vivo e açodado:
Amor verdadeiro
Jamais é forçado.
Forças
Não é próprio dum amor
Forçar uma relação,
Mas é já de seu ardor
Abrir caminho à função.
Mil
Podes-te bem despedir
Da família, dos amigos,
Mil quilómetros sair
Até longínquos abrigos,
Que os no coração tens fundo,
Nas vísceras que em ti vi,
- Pois não só vives no mundo,
Todo o mundo vive em ti.
Infinito
O Infinito é o que se entrega
Todo inteiro a cada um,
Não tem parte, não tem prega,
Dá-se todo, nada nega,
Tal se não haja outro algum.
Perdoas
Se perdoas a quenquer,
Livra-lo do julgamento,
Mas, se muda não houver,
Não há relacionamento,
Que não pode em chão fingido
Ser nunca estabelecido.
Céu
Sempre o céu se sobrepor
Vem ao que há neste lugar,
Que na Terra não há dor
Que o Céu não possa curar.
Levando
A fé nunca sabe aonde
Está sendo ao fim levada
Mas conhece e ama o bonde
Que a vai levando em jornada.
Sempre
Sempre que tu perdoares
O Universo muda então.
Sempre que estendes a mão,
Quando uma vida alcançares,
Se alcanças um coração,
Os mundos transmutar-se-ão.
A cada amabilidade,
Visível serviço ou não,
Propósitos da deidade
Logo realizados são.
E à força deste sinal
Nada volta a ser igual.
Perdão
Não deixes que a raiva, a dor,
Perda que sentes na pele
Te impeçam perdão de impor
E as mãos do pescoço dele
De retirares de vez:
Entre crime e criminoso
Há lonjuras que não vês.
Não te proíbas o gozo
De o ver inteiro em seus pés
Ou a sofrer do que fez
Ou a enjeitar vergonhoso
O seu rosto de altivez.
Qual o porvir que lhe entroso?...
- Só com perdão ele o centro
Não é nunca por ti dentro.
Lágrima
Da lágrima a maravilha
Nunca menosprezes, não.
De água curativa bilha
Ou de alegria cachão
Pode ser e até, por vezes,
É dela a melhor palavra
Que, pelo correr dos meses,
Um coração canta e lavra.
Culpado
O perdão nada desculpa.
O culpado pode tudo
Ser menos livre: o imo o inculpa.
A lei final a que grudo
Nunca será, pois, a nossa:
Lá só Deus o mal destroça.
Confies
O perdão jamais requer
Que confies no perdoado.
Mas, se ele se arrepender,
Em teu imo é revelado
O milagre de estender
A mão ao que há começado:
Começou-se a construir
De reconciliação
A ponte ainda por vir.
A estrada por este chão
Pode levar, na jornada,
À confiança restaurada.
Primeiro
O perdão será primeiro
Para aquele que perdoa,
A libertá-lo do argueiro
Que o vai destruir à toa,
Que lhe põe fim à alegria,
Ao poder de amar em pleno,
Todo aberto à luz do dia.
Crês deveras que um aceno
O culpado irá fazer
Ao tormento que causou?
Que lhe importa a dor doer?
Ao invés, se alimentou
Do sofrimento que tens.
Acabar não vais com isto?
Ao perdoar, outros bens
Alcanças, como é previsto:
Libertas o homem dum fardo
Que carrega sem saber,
Que o pica dentro, tal cardo,
Sem o embora conhecer.
Quando optas por perdoar
Outrem que te causou dor,
Acaba-lo por amar
E por amá-lo melhor.
O resto é depois com ele,
Se corresponde ou se não,
Mas já lhe incendiaste a pele
E - quem sabe? - o coração.
Verbo
Verbo é essência: ser amar.
Os substantivos existem
Porque há um Universo a par
Onde os físicos insistem
No que é real singular.
Mas, se um Universo apenas
For massa de substantivos,
Quaisquer que sejam as cenas,
Já está morto, nem há vivos
Que arrepelem as melenas.
Tudo ao fim é sempre “eu sou”,
Nem sequer mesmo há mais verbos,
Que o mais dele irradiou,
Tudo raios dele acerbos,
Arco-íris que nos falou.
São os verbos deste arquivo
Que o Cosmos mantêm vivo.
Religião
A religião tem lei
Para ganhar o poder
E controlar toda a grei
Que requer para viver.
Deus, ao contrário, concede
O poder de reagir
E a reacção o que pede
É ser livre de servir
E amar em toda e qualquer
Situação que acontecer.
Cada dia é diferente,
Único e maravilhoso
E é Deus quem está presente
Neste poder de que gozo.
Se responsabilidade
Só nos dera, simplesmente,
Já na nossa intimidade
Não era de andar assente:
Tarefa a realizar,
Obrigação a cumprir,
A vencer ou fracassar,
- Tudo é nada, ao resumir.
Porém, se agir em meu fundo,
Isto é logo um novo mundo.
Lei
A lei poder de julgar
Dá mais o de superior
Se sentir a quem sentar
De réu no banco de dor.
Acreditas que a viver
Andarás mais elevado
Que aqueles que estás a ver
No lugar de ser julgado.
Aplicar regras subtis
De responsabilidade,
Expectativa, são vis
Tentativas, na verdade,
De nos criarmos certeza
Duma incerteza a partir.
Mas Deus gosta da incerteza.
A regra gerar, gerir
Nunca pode a liberdade.
Dela o poder, em lugar,
É o desta pobre verdade:
Só pode mesmo acusar.
Ofertar
Não sentes a liberdade
Ao saber que nunca podes
Ofertar nada, em verdade,
Àquele a que a amar acodes?
Não te alivia a pressão
Que sentes na relação?
Complexo
Sempre um relacionamento
Será muito mais complexo
Do que as regras que eu invento.
Mas da regra o frio amplexo
Nunca me dará resposta
Às questões do coração.
Por mais que afine a proposta
- Nunca as regras me amarão!
Castiga
Deus jamais é quem tu pensas,
Não castiga por pecados,
Os pecados são doenças,
São em si castigos dados,
Pois que devoram por dentro.
Deus não visa castigar,
É de cada qual o centro
Que só se alegra a curar.
Produzir
Produzir a confiança
Não podes, do mesmo modo
Que humildade não se alcança
Como quem cozinha um bodo.
Ela existe ou não existe.
Toda a confiança é fruto
Da relação que subsiste,
De ser amado um produto.
Se alguém que amado é não sabe,
Nele a confiança não cabe.
Escravo
Deus uns escravos sujeitos
A seu querer jamais quer,
Mas irmãos e irmãs afeitos
A partilhar o que houver:
Mais do que ser nosso abrigo
Partilha vida comigo.
Atingir
Deus usa as tuas escolhas
Para atingir seus propósitos.
Onde quer que te recolhas
Em recônditos depósitos,
Como os mais um monstro escondes
Que te acaba por trair,
Nem responde ao que respondes
Nem nada te irá servir.
Traído no que esperavas,
Prisioneiro do terror,
A oportunidade escavas
De Deus tomar por mentor.
O tesoiro que era a sina,
Aquilo em que confiavas
Virou-se em tua ruína:
- Que trilho agora em ti gravas?
Mentiras
Mentiras são fortaleza,
Dentro dela vais sentir-te
Seguro e com mais poder,
Não te sentes uma presa,
À tua vida podes ir-te,
A manipular quenquer.
Mas o forte requer muros,
Portanto constróis alguns
Comprovativos seguros
Das mentiras empregadas.
Não deixas, dos teus, nenhuns
A sofrerem bordoadas.
Buscas só que funcione
Para que te sintas bem
Com as mentiras urdidas.
Nada nisto há que te abone:
Muros separam também,
Vão mais sós as mãos fingidas.
Sei
Sei que vais ter de passar
Por mil e uma situações
Antes de ouvir, concordar
E, finalmente, mudar.
Se aos primeiros abanões
Não ouves, não é frustrante
Nem é de desiludir:
Já só faltam mil adiante,
O que faz tudo empolgante.
Base para construir,
Já cá temos uma ponte
Que hás-de um dia atravessar.
Mais perto fica o horizonte,
Mais perto te fica a fonte
Que espera por te curar.
Instituições
Deus não cria instituições,
Isso é mesmo ocupação
Dessas más imitações
Que o papel de Deus farão.
Logo, de religiões
Deus não é um apreciador
E, pelas mesmas razões,
A política que for
Deixa-lhe interrogações,
Como deixa a economia.
- Mal batem lá corações,
Como é que as apreciaria?
Resgatar
Como resgatar alguém
Que, a afogar-se, não confia?
Se te afundas tu também,
Deixa resgatar-te o guia!
Escuridão
A escuridão é que esconde,
Vera, a dimensão dos medos,
Das mentiras e seus credos
E dos arrependimentos,
Quando nada nos responde
Entre alegria e tormentos.
São mais sombra que reais
Por isso maiores são
No escuro onde os vemos mais.
Se a luz brilha no saguão
Que ocupam dentro de ti,
Vais vê-los tal como são,
Pouco mais que um nada em si.
Presumes
Já viste que em tua dor
Presumes sempre o pior
Doutrem e Deus a respeito?
Temos estado a falar
Contigo, sem nos parar...
- Só hoje ouviste a preceito!
Mas não houve desperdício.
Como de fendas resquício
Na parede e cada à vez,
Porém sempre entrelaçadas,
Preparámos-te as pegadas
Para hoje, mês a mês.
É que algum tempo é preciso
Para preparar com siso
O solo que houver em mente,
Se quisermos mesmo a sério
Que ele acolha o dom sidéreo
Prometido na semente.
Brincas
Tu não brincas com criança
Nem sequer pintas com ela
Para mostrar quanto alcança
De superior tua tela.
Em vez disto te limitas
Para assim facilitar
E honrar tudo o que concitas
Nela, ao te relacionar.
Capaz de perder até
Vais ser a competição
Em prol do amor, pois que ele é
Visado em primeira mão.
É que nada tem a ver
Com perder e com ganhar
Mas com amor a crescer,
Respeito a se enraizar.
Eis a radical função
Da relação entre todos,
Deus connosco e os mais à mão,
Eu e tu, em quaisquer modos.
Bons
Os bons relacionamentos
Não têm a ver com poder.
Para evitar os tormentos
De ânsias que ele em nós erguer,
O melhor é sempre optar
Então por se limitar
E por se pôr a servir:
Fazemo-lo com doentes,
Mentes a se escapulir,
Com os pobres dependentes,
Com os velhos mui amados
E os mui novos desarmados...
O bom relacionamento
É ser doutrem alimento,
Do que vês nas profundezas,
Que é sempre o que tu mais prezas.
Importa
Quando conheces deveras,
De nada importa a aparência,
O ser transcende as esferas
Do que só parece a essência.
Quando descobrires quem
Há por trás dum rosto lindo
Como do feio também,
Conforme o conceito advindo,
As aparências se apagam,
A importância até perderem.
As bases que tudo tragam,
Raízes de os seres serem,
São Deus: mora no interior,
À volta como através
De tudo, seja o que for:
É o real daquilo que és!
Qualquer que seja a aparência
Que mascare esta verdade
Acabará, na evidência,
Por cair de opacidade.
Independência
Pela independência optámos
Contra os relacionamentos:
Perigosos nos tornámos
Uns aos outros, em momentos.
Os mais devêm objectos
Prontos a manipulados
Serem, mesmo por discretos
Gestos, ou administrados
Doutrem em ruim benefício.
E qualquer autoridade,
De escrúpulo sem resquício,
Como a vemos na cidade,
É apenas uma desculpa
(E a que ao mais forte lhe agrade)
Para os mais forçar, sem culpa,
Sujeitos dele à vontade.
Difícil
Difícil é para nós
Um bom relacionamento.
Criamos a uma só voz
Hierarquias em aumento,
Regras para as proteger,
Regras para administrar,
Depois leis tudo a reger
E que é preciso aplicar.
É a cadeia de comando:
Destrói relacionamento
Sem olhar a quê ou quando,
Em vez de, a todo o momento,
Ao invés, o promover.
Vivemos mui raramente
Laços fora do poder.
A hierarquia, inclemente,
Impõe-nos regras e leis
Em a desperdiçar findamos
A maravilha de anéis
Que entre nós jamais gozamos.
Contrabalançado
Em nosso mundo, o valor
De alguém contrabalançado
É sempre pelo pendor
Do sistema preservado
Que tem de sobreviver:
É o social, o religioso,
O económico qualquer
Ou político oneroso...
É um indivíduo, primeiro,
Depois mais alguns serão,
Até que, por derradeiro,
Muitos facilmente são
Sacrificados ao bem
Manutenção-do-sistema.
É aqui que assentam também
Todas as lutas, por lema,
Confrontos pelo poder
E todos os preconceitos,
Todas as guerras que houver,
Amores à força afeitos.
O poder, a independência
Alargam-se com tal ânsia
Que hoje em dia esta tendência
É tão normal como a infância.
Base
Tentas dar sentido ao mundo
Com base numa visão
Pequena, de olho infecundo,
Incompleta, do que são
Deveras realidades.
A um desfile isto é assistir
Pelo buraco das grades,
Minúsculo, de sentir
Dor, egocentrismo e mágoa,
Ainda a fresta do poder
E de crer vogar em água
Sozinho, um nada de ser.
Tudo é intérmina mentira.
Vês na dor e morte males
Definitivos em mira,
Deus, um traidor que não cales,
Indigno de confiança.
Ditas termos, julgas actos,
Culpado é Deus que te afiança.
O erro em teus desacatos
É que em ti Deus não é bom.
Se o bom viras e que tudo
Da bondade tem o tom,
Mesmo sem ver por miúdo,
Tu, então, confiarias.
- Contudo, nunca confias!
Termo
O mal é o termo que usamos
Para uma ausência de Deus,
Tal de escuridão tratamos
De ausência de luz os véus,
Como a morte nos descreve
O que é uma ausência de vida.
Morte, escuro, são um breve
Sopro em mão vazia erguida,
Não existem realmente.
Deus será Luz, será Bem,
Será Vida plenamente,
Nada de escuro contém.
Luz e Bem e Vida existem.
Porém, se alguém se afastar,
Só escuros nele subsistem.
Independência afirmar
Só redundará no mal
Porque, separado dEle,
Só consigo é cada qual,
É a morte que então o impele:
Separou-se, na corrida,
De Deus que apenas é Vida.
Corrompe
O poder corrompe à mão
De humanos independentes,
Sejam homens ou mulheres.
Contrário da relação,
São papéis em palco assentes
Da vida que tu viveres.
Deus quer-nos todos parceiros,
Homem-mulher face a face,
Iguais, únicos, diversos,
Distintos, porém inteiros,
Complementares no enlace
E, por igual, ambos tersos
Em receber o poder
Donde o poder todo emana
Como toda a autoridade
Que verdadeiros vão ser:
Do Espírito – não engana
Nem faz de conta, em verdade.
A ver com um desempenho
Deus nunca tem nem precisa
De moldar-se a um artifício.
É existência em que devenho:
Crescer nEle é uma divisa
De ser meu ser por ofício.
Seguidor
Ser um seguidor de Deus
Não é ser como Jesus:
A independência dos céus
É matar, como é de jus.
Deus veio-nos dar a vida,
Vida real, vida dEle.
Dentro em cada qual convida
A viver na mesma pele,
A ver dEle com os olhos,
Ouvir com comuns ouvidos,
Com mãos comuns os escolhos
Afastar, mal são sentidos,
A pensar como Deus pensa...
Mas nunca força a união:
Se a teu modo é que compensa,
Tudo bem, é o que farão.
É que, nas coisas do amor,
O tempo joga a favor.
Máquina
Boa embora na intenção,
A máquina religiosa
Mente esmaga e coração,
Tritura gente, gozosa.
De Deus em nome o que é feito
Muitas vezes nada a ver
Tem com Ele e seu trejeito,
Muitas vezes irá ser,
Mesmo quando involuntário,
No que deixa nos depósitos,
Ponto a ponto bem contrário
De Deus aos ternos propósitos.
Recursos
Política, religião,
Economia – sistemas
Recursos terríveis são
Os quais muitos usarão
Para sustentar extremas
Ilusões de segurança
E de controlo falhado.
Da incerteza que os alcança
Têm medo, são criança
Que ao futuro teme o fado.
Instituições, estruturas,
Todas as ideologias
Esforço inútil de curas
São para tais criaturas,
Todas falharão as vias.
A sensação de certeza
Bem como a de segurança
Não existem, vela acesa
Que um sopro de ligeireza
Logo apaga se as alcança.
Um sistema garantir
A segurança não pode.
Só Deus: se me entrego ao ir,
Confiante e sem pedir,
Acolhendo o que lhe acode.
Controlo
À necessidade preso
De controlo como os mais,
Eis-me aqui, pois, indefeso.
Os sistemas sociais,
Política, economia,
Família, contas reais,
Compromissos, tudo enfia
Uma camisa de forças
Nos gostos do dia-a-dia.
Não muda, por mais que o torças,
Mas ninguém pede que o mudes,
É tarefa a que não orças,
Que ao Espírito a que aludes
É que isto dirá respeito.
Sabe Ele com que te iludes,
O que é de tomar a peito
E sem agredir ninguém.
Tudo é um processo, com jeito,
Não episódio que advém.
Confia em Deus só, portanto,
E cresce no amor por quem
Te rodeia, o amor, o encanto
Que Deus partilha contigo.
Não te compete, entretanto,
Mudá-los de seu postigo.
És livre, ama no teu canto
De compromisso ao abrigo.
Falsos
As instituições, sistemas,
Bem como as ideologias,
Esforços vãos, falsos lemas,
Dos humanos fantasias,
Estão sempre em toda a parte,
É forçoso interagir.
Deus pode dar-nos, com arte,
Liberdade de subir,
De superar um qualquer
Sistema em que me encontrar:
Religioso pode ser
Ou social, ao calhar,
Económico ou político...
Teremos a liberdade,
Crescendo que não é mítico,
Que por dentro nos persuade,
De nos situar dentro ou fora
De todo e qualquer sistema,
De nos mover sem demora
Entre eles, sem que se tema.
Eu e Deus juntos podemos
Estar do sistema dentro
Sem dele ser parte: vemos
Que outro é sempre o nosso centro.
Oriundo
Quem a Deus ama oriundo
Será de todas as crenças.
Cristão, budista, no fundo,
São vertentes de pertenças.
Mórmones ou muçulmanos,
Baptistas ou democratas,
Tais como republicanos,
Gente de aldeias pacatas
Que não vota nem faz parte,
Um seguidor assassino,
Outro um hipócrita aparte,
Banqueiros, um clandestino,
Apostadores, judeus,
Europeus, americanos,
Uns génios, outros sandeus,
Também palestinianos...
- Ninguém tem de converter-se,
Mas Deus quer juntar-se a eles
Na transformação que verse
Torná-los anhos imbeles,
Filhos e filhas de Deus,
Todos irmãos entre si,
Todos queridos dos céus.
- Tudo então vai dar aqui,
Todo o caminho que andemos?
Não é assim, de modo algum,
Os trilhos que pisaremos
Não vão a lugar nenhum
Na maior parte dos casos.
Deus é que vai viajar
Por todos, sem mais atrasos,
Até todos encontrar.
Impor
Impor a minha vontade
Sobre a vossa – dirá Deus -
É o que um amor de verdade
Não faz aos amados seus.
Qualquer relacionamento
Verdadeiro está marcado
Pela aceitação, primeiro,
Mesmo quando o perfil dado
Das escolhas nunca for
Nem útil nem saudável.
Esta é a beleza do amor
Que une Deus num Uno fiável.
Uns aos outros submetidos
Estarão no eterno os três.
Submissão não são sentidos
De autoridade, tal vês
Entre humanos ocorrer,
E não é obediência.
É um acto de amor a ser,
De respeito a toda a essência.
Submetido a ti, à beira,
Está Deus de igual maneira.
Místico
Ia um místico à floresta,
Para um recanto secreto,
Sempre que da humana gesta
Som de tragédia discreto
Lhe invadia a paz celeste
De sangue com cheiro agreste.
Então, aí retirado
A Deus pede em oração
Que um termo ponha a tal fado
Desta humana condição.
E Deus sempre o atendia
No que na oração pedia.
Mas o místico morreu
E os desastres continuaram.
Um discípulo então seu,
Dos que em vida mais o amaram,
Foi para a floresta orar
Ao tal secreto lugar.
“Senhor, não sei as palavras
Da oração que hei-de dizer.
Só sei que é longe das lavras,
Aqui, que é de me manter.
Mas atende o meu pedido:
- Do mundo finda o gemido!”
E deus também o atendeu
Pela vida inteira além.
Mas eis que um dia morreu
O discípulo também.
A dor do mundo trepava
Do silêncio que se cava.
Um monge que ouvira a história
Então vai para a floresta:
“Eu não tenho de memória,
Senhor, nem prece nem desta
A sacristia secreta,
- Mas trata o que o mundo afecta.”
Deus atende-o por igual,
Não liga da prece aos termos
Nem ao secreto local.
Só que o monge entre os enfermos
Acaba, enfim, por cair,
À morte até sucumbir.
A lenda chega aos ouvidos
Dum sufi mui solitário,
Deficiente dos sentidos,
De palidez um sudário:
“Alá – ora por sua vez -
“Sei lá que oração te fez
O santo místico outrora,
Nem que floresta ou lugar
Recanto é de tua hora!
Sei é que tenho de orar,
Que, mais que eu deficiente,
O mundo é bem mais urgente.”
E também o atende Alá,
O Deus de todos os nomes,
Sem florestas dacolá,
Nem recantos que lá tomes,
Nem a prece de memória:
Deus ama é uma boa história!
Passo
Se és namorada, mulher,
Onde anda o enamoramento?
- Se, em cada passo que der,
Em ti me renovo o alento.
Mas, na longa caminhada,
Onde é que o alento ponho?
- Olho em ti a namorada,
Logo à vida a anima o sonho.
Os que deixam de se olhar
Deixaram de ver a fonte,
Deixam então de sonhar...
- Que alvorada há no horizonte?
Fugimos
Se fugimos, o problema
Desata a nos perseguir
E acaba sempre, por lema,
A apanhar-nos a seguir.